Lima Barreto
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Raramente vou ao teatro, embora, às vezes passe noites inteiras em claro a perambular pelas ruas e botequins; mas, de quando em quando, gosto de ler as notícias que os jornais dão das “premières”, sobretudo em se tratando de peças portuguesas.
Há dias li o “compte-rendu” de uma peça do Sr. Júlio Dantas – O Reposteiro Verde.
Sei bem que é de bom alvitre não julgarmos uma obra literária pelo seu resumo; mas a regra não é tão absoluta como querem por aí certos doutores artísticos cujas asserções trazem o vício de origem do interesse próprio ou dos seus chegados.
Encontram-se trabalhos literários que, por serem valiosos pelo fulgor do seu desenvolvimento, pelo rigor das cenas, pela percuciente análise dos personagens, pela largueza de vistas do autor, não podem ser resumidos e o resumo nada diz deles, mas há outros em que diz muito.
Esse drama do Sr. Júlio Dantas, pelos resumos por mim lidos nos jornais, não passa de um dramalhão de capa e espada, cheio de assassinatos e outros matadores da velha escola; entretanto, mantém-se ainda no cartaz.
É curioso observar o “engouement” que o nosso público vai tendo por esses autores portugueses de uma mediocridade evidente que a disfarçam com um palavreado luxuriante, um barulho de frase, mas que não aventam uma idéia, que não revelam uma alma, que não interpretam mais sagazmente um personagem histórico, que não põem em comunicação as várias partes da sociedade, provocando um mútuo entendimento entre elas.
No nosso tempo de literatura militante, ativa, em que o palco e o livro são tribunas para as discussões mais amplas de tudo o que interessa o destino da humanidade, Portugal manda para aqui, com grande sucesso, o Sr. Júlio Dantas e o Sr. Antero de Figueiredo, dois inócuos fazedores de frases bimbalhantes.
Que nós tivéssemos sofrido a ascendência e a influência de Garrett, de Alexandre Herculano, de Oliveira Martins, de Eça de Queirós e mesmo de Camilo Castelo Branco, admite-se.
Todos estes, para não falar em alguns outros mais, como Arnaldo Gama, Antero de Quental, Antônio Nobre, Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão; todos esses dizia são criadores, de algum modo originais, muitos deles concorreram para reformar a música do período português, deram-lhe mais números, mais plasticidade, inventaram muitas formas de dizer; mas, esses dois senhores a que aludi mais acima, sem concepção própria da vida, do mundo e da história do seu país, não vêm fazendo mais do que repetir o que já foi dito com tanta força de beleza pelos velhos mestres em glosar episódios de alcova da história anedótica portuguêsa, para gáudio das professoras públicas aliteratadas.
O Sr. Júlio Dantas não passa de um Rostanzinho de Lisboa que fez A Ceia dos Cardeais – obra que não é senão um superficial “lever de rideau”, sem um pensamento superior, sem uma emoção mais distinta, “verroterie” poética que fascinou toda a gente aqui e, creio, também em Portugal.
As suas peças históricas não têm um julgamento original de acordo com qualquer ideal estético ou filosófico; não traem um avaliador sagaz, ágil do passado; de rigor psicológico nada têm os seus personagens.
São glosas dialogadas de tradições e crônicas suspeitas, sem uma vista original do autor, sem um comentário que denuncie o pensador.
Entretanto, num país como o Brasil, em que, por suas condições naturais, políticas, sociais e econômicas, se devem debater tantas questões interessantes e profundas, nós nos estamos deixando arrastar por esses maçantes carpidores do passado que bem me parecem ser da raça desses velhos decrépitos que levam por aí a choramingar a toda a hora e a todo o tempo: “Isto está perdido! No meu tempo as coisas eram muito outras, muito melhores”.
E citam uma porção de patifarias e baixezas de toda a ordem.
Que Portugal faça isto, vá! Que lá ele se console em rever a grandeza passada dos Lusíadas em um marquês que tem por amante uma fadista, ou que outro nome tenha, da Mouraria, concebe-se; mas que o Brasil o siga em semelhante choradeira não vejo por que.
É chegada, no mundo, a hora de reformarmos a sociedade, a humanidade, não politicamente que nada adianta; mas socialmente que é tudo.
Temos que rever os fundamentos da pátria, da família, do Estado, da propriedade; temos que rever os fundamentos da arte e da ciência; e que campo vasto está aí para uma grande literatura, tal e qual nos deu a Rússia, a imortal literatura dos Tourgueneffs, dos Tolstois, do gigantesco Dostoiewsky, igual a Shakespeare, e, mesmo, do Gorki! E só falo nestes; ainda poderia falar em outros de outras nacionalidades como Ibsen, George Eliot, Jehan Bojer e quantos mais!
O caminho que devemos seguir, pois nada temos com essas alcouvitices históricas que o Sr. Júlio Dantas, o Rostanzinho de Lisboa, médico do Regimento de Cavalaria 7, discreteia pelos palcos com o chamariz da sua elegância e das suas lindas feições tratadas cuidadosamente, além do anúncio das suas imagens sonoras de carrilhão com que atrai as devotas.
Compará-lo a Rostand é uma grande injustiça, pois a peça do autor francês que fascina o autor português é o Cyrano de Bergerac; mas esta obra é, ainda assim mesmo, uma bela e forte peça no fundo e idéia; não é um simples bródio de prelados cínicos que comem glutonicamente a fartar e falam de amor, como se não tivessem batina.
Se digo isto do Sr. Júlio Dantas, que direi então desse Sr. Antero de Figueiredo?
Este senhor me parece um marmorista canhestro que fizesse uma “fouille” na Grécia, de lá extraisse um tronco, uma perna, um braço de um mármore antigo e dele fizesse um “bibelot”.
O campo de suas escavações é o grande Camões, onde vai retirar os episódios mais perfeitos e belos que as oitavas do poema esculpiram para fazer romances edulçorados que a transcendência estética do Sr. Malheiro Dias talvez ache superiores aos decassílabos de Camões e um assombro literário.
Mas, em que pese ao Sr. Carlos Dias eu volto ao Camões; e sempre que quero ter a emoção poética dos amores de Dona Inês de Castro e D. Pedro, o Cruel, abro o meu “Lusíadas”, edição pobre, e leio:
Estavas, linda Inês, posta em sossêgo.
Dos teus anos colhendo o doce fruito,
Naquele engano da alma, lêdo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus olhos o pranto nunca enxuto,
Aos montes ensinando, e às ervinhas,
O nome que no peito escrito tinhas.
Lido todo o episódio, fecho o livro, sentindo bem que li grande poeta e ninguém, depois dele, deveria tocar no assunto, sem profanar, tal foi a força de beleza com que seu gênio animou a história e a lenda de tão desgraçado amor.
A.B.C., 27-4-1918
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