Lima Barreto
PUBLICIDADE
A fazenda “Boa Esperança” está situada no vale do rio Grande, daquele rio Grande que, recebendo o Paranaíba, forma o grande Paraná. Colocada nesse vale e nas divisas de Minas e S. Paulo, próxima à serra da Canastra, em que nasce tanto aquele rio, como, na vertente oposta, o São Francisco, a grande propriedade agrícola sofre o influxo e a influência de gentes do sul do Brasil, pelo vale do Paraná; do norte, pelo de São Francisco, assim como, pelos afluentes e confluentes destes dois grandes rios, das de Goiás e Mato-Grosso.
Carreiros, boiadeiros, tropeiros e vagabundos, já não contando com ciganos e índios mansos, dos quatro pontos cardeais do sertão do Brasil passam pelas proximidades e, por ela mesmo, no romance do Sr. Veiga Miranda, Mau Olhado, que a todos descreve e analisa soberbamente. Segundo Guyau e pelas suas intenções, classificarei de sociológica a sua interessante novela.
Esse tipo curioso da nossa antiga propriedade agrícola, que é a fazenda, pinta-o e descreve-o o autor com minúcia e carinho.
Isolada na sua vastidão, a fazenda era como um feudo em que o seu dono governava, distribuía justiça, ditava leis, a seu talante, só não cunhava moeda para vir a ser um verdadeiro príncipe soberano. Falta-lhe também o aspecto militar do feudo antigo, para ter uma completa semelhança com o senhorio medieval.
A “casa grande” não o possui como o tinha o castelo antigo. Não há barbacãs, ameias, fossos, pontes levadiças, homens d’armas; e mesmo a nossa capangada só aparece no latifúndio quando as rixas entre senhores de fazenda, vizinhos, chegam ao auge. Essa espécie de “bravi” está sempre à mão, ao alcance do primeiro chamado, mediante boa paga. Não se fixa, ou raramente.
A “Boa Esperança” é um perfeito tipo de fazenda: e ela fornece aos proprietários, agregados e escravos todo o necessário à vida, exceto o sal.
É mais completa que muitas outras que não fornecem o pano, mas que a do alferes Malaquias, dá, por intermédio da lã, cardada e tecida, dos seus grandes rebanhos de ovinos. Lá, só se compra o sal…
É a fazenda, a descrição de sua vida total, o objeto do livro. A impressão que se tem é magnífica; mas, acabada a leitura da excelente obra do Sr. Veiga Miranda, cujas vistas sociais, sociológicas, seria melhor dizer, se traem no propósito e no desenvolvimento de sua novela, o leitor menos comum procura alguma coisa que lhe falta. É o escravo. O jovem e talentoso autor paulista só se ocupa dele na cena do batuque e, no mais, deixa-o como simples, nome ou alcunhas interessantes. A justificativa que não havia nela, na fazenda, castigos, não me parece valiosa. A antiga propriedade agrícola de um tipo geral, e por sê-lo, que o Sr. Veiga Miranda tratou, não podia existir sem o escravo que ela supõe. O eito, o banzo, a vida da senzala, etc., fazem-lhe falta e como deixam o estudo desse elemento da fixação da nossa população rural, inacabado.
Darwin que visitou uma, algumas décadas antes da ereção daquela que é o cenário do Mau Olhado, não deixou de vê-los e senti-los, nos arredores do Rio de Janeiro.
No seu livro em que narra a viagem que fez, a bordo da corveta, creio eu, em torno do mundo, “Beagle”, ele, se bem que ligeiramente, alude a eles.
A fazenda do “Sossêgo”, ali pelas bandas de Maricá, propriedade do Sr. Manuel Figueiredo, diz Darwin, tinha, pondo de parte a idéia de escravatura, alguma coisa deliciosa na sua vida patriarcal, tão profundamente nela se está separado e independente do resto do mundo.
Mais adiante, conta o autor da Origem das Espécies:
“Uma madrugada fui passear uma hora antes de sair o sol para admirar, à minha vontade, o solene silêncio da paisagem, mas, bem depressa ouvi elevar-se nos ares o hino que cantam em coro os negros no momento de começar o trabalho.”
Ao grande naturalista inglês, nesta passagem e em algumas outras, não escapou o fenômeno social da nossa escravatura e o Sr. Veiga Miranda, que é inegavelmente um escritor moderno, sagaz e ilustrado, não devia ter esquecido esse ponto que o tema do seu romance como que torna primordial e requeria ser estudado à luz das modernas correntes de pensamento superior.
A boa compreensão, ao jeito artístico da alma do escravo, explicaria melhor aquela atmosfera de crendice e abusão que desde o começo cerca os personagens do drama, ergue o feiticeiro Lelé às culminâncias de guia de multidão e aniquila o padre Olívio, atmosfera essa em que morre de amor por este a interessante Maria Isolina, protestando tragicamente contra a sua infecundidade imposta e criada pelas regrinhas da sociedade.
Nada temos, porém, de dizer quanto ao que não foi feito no seu livro, pelo Sr. Veiga Miranda; compete-nos falar do que o foi.
Nessa parte a obra é de uma rara virtuosidade de execução que às vezes peca pela exuberância do detalhe. À grande tela em que o autor trabalhou com ciência e vigor, não faltou nenhuma pincelada para o seu bom acabamento. Não só os personagens principais e secundários; mas as cenas domésticas, as das indústrias agrícolas próprias à fazenda, o Sr. Veiga Miranda não se limita a esboçá-las rapidamente. Ele as acaba e as arredonda suavemente.
Não me lembro de autor moderno nosso que seja tão cuidadoso nesse ponto como o autor do Mau Olhado. Vejam só este trecho que trata do empalhamento de rapaduras:
“Ao longo da mesa, à sua frente (do padre Olívio, filho de fazendeiro) à sua direita e à esquerda, os antebraços das mulheres agitavam-se, de mangas arregaçadas, envolvendo as rapaduras, enlaçando as embiras, dando os nós fortes. O padre ficou entre a madrasta (Maria Isolina) e a Placidina, filha do Laurindo Bravo, a destemida virgem selvagem que se entregara por um ímpeto carnal ao mais valente tropeiro do sertão, matando-o pouco depois, como as abelhas rainhas, e trazendo para a casa, dentro do seio, as duas orelhas ainda sangrentas. E, à sua frente, ficavam as duas primas mais velhas, Leonor e Gabriela, ladeando como sempre a figura alegre de Ismênia, com o seu rosto comprido, sardento, e o nariz acarneirado, um todo de traços meio masculinos, puxando muito aos do pai.
“Iaiá, (a filha, mais velha do fazendeiro) não tomava parte na tarefa noturna. Continuava a caber-lhe a mordomia da casa, desempenhada ainda com grande exibição de atividade e meticulosos zelos. Mandava logo ao começo uma bandeja de café, servido primeiro aos dois compadres e a Lelé (que andava agora nas boas graças de ambos, cercado cada vez de maior consideração, depois que os convencera de que salvara Maria Isolina), e depois transitado ao longo da mesa pelas empalhadeiras. E daí a pouco mandava colocar sobre a mesa, em vários pontos, travessas e peneiras cheias de pipocas.
“Olívio adestrou-se em pouco tempo no mister que lhe designaram. Escolhia para a madrasta as palhas mais macias, receando que o contato das outras a arrepiasse, desembaraçava as embiras, uma a uma, com cuidado, ajudando-a até a enlaçar com elas os molhos já formados. Maria Isolina repreendia-o de quando em quando, brincalhona, por uma demora, pelo defeito de uma palha, falando-lhe com vivacidade infantil, os olhos brilhantes, parecendo mais largos sob a luz forte do lampião belga.
“Olívio, de fato, se deixava apoderar, com intermitências, por uns alheamentos esquisitos, etc., etc.”
Maria Isolina, a madrasta, que casara muito moça com o fazendeiro, o alferes Malaquias, depois do primeiro contato matrimonial, violento e animal, num pouso de caminho, se tomara de uma invencível repugnância pelo marido e viera a adoecer duradoura e inexplicavelmente depois do primeiro e único parto mal sucedido.
Após a chegada do enteado, Olívio, que saíra padre, do seminário de Mariana, feio e cheio de espinhas, tímido e triste, a moça alquebrantada se apaixonara secretamente por ele. Uma quadrinha que há no romance, tenta dizer o indefinido mal dessa parada de sentimento:
Sina do meu coração,
Fui aprender a amar bem cedo,
E guardar a vida inteira
Esse amor como um segredo.
O autor, com muito relevo e habilidade, gradua esse sentimento da sinhá dona da “Boa Esperança” e o marca por gestos e palavras muito expressivos.
Nessa mesma passagem do empacotamento de rapaduras, ao descobrir que o padre estava fornecendo embiras a Placidina, apossa-se de Isolina uma raiva súbita que a leva a expulsar, sem motivo nem causa, do serão, a pobre agregada.
A figura central e mais original do romance é o Lelé. Feiticeiro e sacristão, letrado a seu modo, rábula de câmaras eclesiásticas, onde vai freqüentemente para arranjar o desimpedimento de matrimônios entre parentes próximos, esse Lelé confunde, mistura e combina, as crenças superiores da Igreja Católica com as primitivas do animismo fetichista dos negros e índios. Alia a isso, uma medicina de pajé, com a sua terapêutica de ervas silvestres, cozimentos, rezas e exorcismos. É médico e sacerdote.
Um tanto crente e um tanto impostor, aproveitando-se de epidemias e desgraças climatéricas, emprega o seu ascendente sobre o povo e também sobre os senhores de fazenda em cujo espírito o seu prestígio se tinha infiltrado, transforma a todos em fanáticos obedientes ao seu mando, para vingar-se do padre e realizar a sua estulta e bronca ambição de pontificar como um bispo autêntico na capela branca da fazenda “Boa Esperança”.
O Sr. Veiga Miranda põe todo o seu talento de observação e de psicólogo dos indivíduos e das multidões para o estudo e a ação desse personagem.
Ele percorre o livro todo e é como que a alma da obra.
Os personagens secundários, sobretudo a Borginha, a filha mais moça do fazendeiro, traquinas e desenvolta, são todos bem característicos e as concepções familiares e domésticas do Zamundo Bravo, lugar -tenente de Malaquias, e de seus filhos, filhas e noras, são documentos preciosos para o estudo dos nossos costumes do interior, onde todos, a começar pelos de lá, põem a máxima pureza e moralidade.
Analisar o livro, detalhe por detalhe, seria, para mim e para os leitores, fastidioso e fatigante. Lê-lo será melhor para travar conhecimento com um autor nacional que, às qualidades exigidas a um simples romancista, alia as de um psicólogo da nossa curiosa “multidão” roceira e as de um sociólogo que veio a sê-lo passando pela geometria.
E, por falar nisto, não nos despedimos do Sr. Veiga Miranda e do seu belo livro, sem lhe fazer uma crítica de mestre-escola. Diz o autor, pág. 241:
“Pairavam (os corvos) primeiro no alto, quase imperceptíveis, milhares, e iam baixando numa espiral invertida, até o ponto do banquete.”
Será mesmo espiral?… Riamo-nos um pouco como bons camaradas que somos… Até logo!
Revista Contemporânea, 26-4-1919
Redes Sociais