Machado de Assis
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[AB. 1906.]
Que esta perna trouxe eu dali ferida.
Camões, Lusíadas, c. V, est. XXXIII.
NÃO INVENTEI o que vou contar, nem o inventou o meu amigo Abel. Ele ouviu o fato com todas as circunstâncias, e um dia, em conversa, fez resumidamente a narração que meficou de memória, e aqui vai tal qual. Não lhe acharás o pico, a alma própria que este Abel põe a tudo o que exprime, seja uma idéia dele, seja, como no caso, uma história de outro. Paciência; por mais que percas a respeito da forma, não perderás nada acerca da substância. A razão é que me não esqueceu o que importa saber, dizer e imprimir.
B… era um oficial da marinha inglesa, trinta a trinta e dous anos, alto, ruivo, um pouco cheio, nariz reto e pontudo, e os olhos dous pedaços de céuclaro batidos de sol. Convalescia de uma perna quebrada. Já então andava (não ainda na rua) apoiado a uma muleta pequena. Andava na sala do hospital inglês, aqui no Rio, onde Abel o viu e lhe foi apresentado, quando ali iavisitar um amigo enfermo, também inglês e padre.
Padre, oficial de marinha e engenheiro (Abel é engenheiro) conversavam freqüentemente de várias cousas deste e do outro mundo. Especialmente o oficial contava cenas de mar e de terra, lances de guerra e aventuras de paz, costumes diversos, uma infinidade de reminiscências que podiam ser dadas ao prelo e agradar. Foi o que lhe disse o padre um dia.
— Agradar não creio, respondeu ele modestamente.
— Afirmo-lhe que sim.
— Afirma demais. E daí pode ser que, não ficando inteiramente bom da perna, deixe a carreira das armas. Nesse caso, escreverei memórias e viagens para alguma das nossas revistas. Irão sem estilo, ou em estilo marítimo…
— Que importa uma perna? interrompeu Abel. A Nelson1 faltava um braço.
— Não é a mesma cousa, redargüiu B… sorrindo. Nelson, ainda sem braço, faria o que eu fiz no mês de abril, na cidade de Montevidéu. Estou eu certo de o fazer agora? Digo-lhe que não.
— Apostou alguma corrida? Mas a batalha de Trafalgar pode-se ganhar sem braço ou sem perna. Tudo é mandar, não acha?
A melancolia do gesto do oficial foi grande, e por muito tempo ele não conseguiu falar. Os olhos chegaram a perder um tanto a luz intensa que traziam, e ficaram pregados ao longe, em algum ponto que se não podia ver nem adivinhar. Depois voltou B… a si, sorriu, como quando dera a segunda resposta. Enfim, arrancou do peito a história que queria guardar, e foi ouvida pelos dous, repetida a mim por um deles e agora impressa, como anunciei a princípio.
Era um sábado de abril. B… chegara àquele porto e descera a terra, deu alguns passeios, bebeu cerveja, fumou e, à tarde, caminhou para o cais, onde o esperava o escaler de bordo. Ia a recordar lances de Inglaterra e quadros da China. Ao dobrar uma esquina, viu certo movimento no fim da outra rua, e, sempre curioso de aventuras, picou o passo a descobrir o que era. Quando ali chegou já a multidão era maior, as vozes muitas e um rumor de carroças que chegavam de toda parte. Indagou em mau castelhano, e soube que era um incêndio.
Era um incêndio no segundo andar de uma casa; não se sabia se o primeiro também ardia. Polícia, autoridades, bombas iam começar o seu ofício, sem grande ordem, é verdade, nem seria possível. O principal é que havia boa vontade. A gente curiosa e vizinha falava das moças — que seria das moças? onde estariam as moças? Com efeito, o segundo andar da casa era uma oficina de costura, regida por uma francesa, que ensinava e fazia trabalhar a muitas raparigas da terra. Foi o que o oficial pôde entender no meio do tumulto.
Deteve-se para assistir ao serviço, e também recolher alguma cena ou costume com que divertisse os companheiros de bordo e, mais tarde a família na Escócia. As palavras castelhanas iam-lhe bem ao ouvido, menos bem que as inglesas, é verdade, mas há só uma língua inglesa. O fogo crescia, comendo e apavorando, não que se visse tudo cá de fora, mas ao fundo da casa, no alto, surgiam flamas cercadas de fumo, que se espalhavam como se quisessem passar ao quarteirão inteiro.
B… viu episódios interessantes, que esqueceu logo, tal foi o grito de angústia e terror saído da boca de um homem que estava ao pé dele. Nunca mais lhe esqueceu tal grito; ainda agora parecia escutá-lo. Não teve tempo nem língua em que perguntasse ao desconhecido o que era. Nem foi preciso; este recuara, com a cabeça voltada para cima, os olhos na janela da casa e a mão trêmula, apontando… Outros seguiram a direção; o oficial de marinha fez o mesmo. Ali, no meio do fumo que rompia por uma das janelas, destacava-se do clarão, ao fundo, a figura de uma mulher. Não se podia distinguir bem, pela hora e pela distância, se o clarão vinha de outro compartimento que ardia, ou se era já o fogo que invadia a sala da frente.
A mulher parecia hesitar entre a morte pelo fogo e a morte pela queda. Qualquer delas seria horrível. Ora o fumo encobria toda figura, ora esta reaparecia, como que inerte, dominando todas as demais partes da catástrofe. Os corações cá de baixo batiam com ânsia, mas os pés, atados ao chão pelo terror, não ousavam ir levá-los acima. Tal situação durou muito ou pouco, o oficial não pôde saber se dous segundos, se dous minutos. Verdadeiramente não soube nada. Quando deu acordo de si ouviu um clamor novo, que os jornais do dia seguinte disseram ser de protesto e de aplauso, a um tempo, ao vê-lo correr na direção da casa. A alma generosa do oficial não se conteve, rompeu a multidão e enfiou pelo corredor. Um soldado atravessou-se-lhe na frente, ele deitou o soldado ao chão e galgou os degraus da escada.
Já então sentia calor de fogo, e o fumo que descia era um grande obstáculo. Tinha que rompê-lo, respirá-lo, fechar os olhos. Não se lembrava como pôde fazer isso; lembrava-se que, a despeito das dificuldades, chegou ao segundo andar, voltou à esquerda, na direção de uma porta, empurrou-a, estava aberta; entrou na sala. Tudo aí era fumo, que ia saindo pelas janelas, e o fogo, vindo do gabinete contíguo, começava a devorar as cortinas da sala. Lá embaixo, fora continuava o clamor. B… empurrou cadeiras, uma pequena mesa, até chegar à janela. O fumo rasgou-se de modo que ele pôde ver o busto da mulher… Vencera o perigo; cumpria vencer a morte.
— A mulher — disse ele ao terminar a aventura, e provavelmente sem as reticências que Abel metia neste ponto da narração —, a mulher era um manequim, o manequim de costureira, posto ali de costume ou no começo do incêndio, como quer que fosse, era um manequim.
A morte agora, não tendo mulher que levasse, parecia espreitá-lo a ele, salvador generoso. O oficial duvidou ainda um instante da verdade; o terror podia ter tirado à pessoa humana todos os movimentos, e o manequim seria acaso mulher. Foi-se chegando; não, não era mulher, era manequim; aqui estão as costas encarnadas e nuas, aqui estão os ombros sem braços, aqui está o pau em que toda a máquina assenta. Cumpria agora fugir à morte. B… voltou-se rápido; tudo era já fumo, a própria sala ardia. Então ele, com tal esforço que nunca soube o que fez, achou-se fora da sala, no patamar. Desceu os degraus a quatro e quatro.
No primeiro andar deu já com homens de trabalho empunhando tubos de extinção. Um deles quis prendê-lo, supondo ser ladrão que se aproveitasse do desastre para vir buscar valores, e chegou a pegá-lo pela gola; depressa reconheceu a farda e foi andando. Não tendo que fazer ali, embora o perigo fosse menor, o oficial cuidou de descer. Verdade é que há muita vez algum que se não espera. Transpondo a porta da sala para o corredor, quando a multidão ansiosa estava a esperá-lo, na rua, uma tábua, um ferro, o que quer que era caiu do alto e quebrou-lhe a perna…
— Quê… ? interrompeu Abel.
— Justamente, confirmou o oficial. Não sei de onde veio nem quis sabê-lo. Os jornais contaram a cousa, mas não li essa parte das notícias. Sei que logo depois vieram buscar-me dous soldados, por ordem do comandante de polícia.
Tratou-se a bordo e em viagem. Não continuou por falta de comodidades que só em terra podia ter. Desembarcando aqui, no Rio de Janeiro, foi para o hospital onde Abel o conheceu. O vaso de guerra esperava por ele. Contava partir em breves dias. Não perdia tempo; emprestavam-lhe o Times, e livros de história e de religião. Enfim, saiu para a Europa. Abel não se despediu dele. Mais tarde soube que, depois de alguma demora em Inglaterra, foi mandado a Calcutá, onde descansou da perna quebrada, e do desejo de salvar ninguém.
Fonte: www.cce.ufsc.br
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