Um Discurso Presidencial

Rui Barbosa

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Respondendo, no banquete de Belo Horizonte, ao speech, em que o ilustre governador de Minas Gerais assegurou à atualidade política “o apoio incondicional” daquele estado, que, se tem “a rara fortuna de ser o berço da idéia republicana no Brasil”, se ufana também de ter sido “a terra donde partiu a aclamação do nome do Dr. Campos Sales para a Presidência da República”, o eminente cidadão, que hoje exerce essas funções, mostrou-se, ainda uma vez, o mestre, que é, dos estilos do regímen, exordiando um discurso de excelentes promessas com a oportuna evocação da legenda do protomártir.

“Foi a esta bela região da nação brasileira”, disse S. Ex.ª, “que coube a glória de oferecer à República o seu primeiro mártir; e, quando já se pode dizer que, na consciência nacional, se reconhece, se proclama que a República é a forma definitiva de governo da nossa pátria, parece chegado o momento de renderse homenagem ao poderoso estado”. Infelizmente não quiseram as circunstâncias que a elegância dessa homenagem lhe fosse tributada no sítio onde está o coração das suas tradições, na velha cidade onde jaz o sacrário das relíquias da primeira história da nossa liberdade. Aqueles que respiraram uma vez em Ouro Preto, a antiga metrópole mineira acastelada, sob o seu céu puro, no fundo das devesas dos seus erros, como um baluarte natural contra as surpresas do despotismo, ficaram compreendendo que ali é que se sente bem o gênio nativo da nossa Helvécia, a alma das suas lendas, a sólida estrutura da sua moralidade, a índole forte, lenta e segura do seu progresso, o seu amor dos compromissos do passado, a sua circunspeção contra as imprudências do presente, a sua desconfiança dos imprevistos do futuro. Se a imaginação nos pudesse reviver a sombra de Tiradentes a contemplar e julgar a República, seria erguendo-se do seio daquelas rochas dilaceradas, quando o sol lhes cintila sobre os veios do oiro, ou do alto de uma daquelas quebradas, daqueles alcantis, cuja majestade severa pôs a coroa da criação e da história, que a mão do homem não destrói, à triste capital, hoje destronada.

Belo Horizonte não nos fala do humilde orago da Inconfidência. O herói da reação contra os excessos das cortes e os abusos dos validos, contra as instituições iníquas e as leis espoliativas, não se comprazeria nessa faustosa invenção da prodigalidade, que converteu as economias de um estado próspero nos déficits de um tesoiro endividado. Belo Horizonte é uma aventura sem critério, um sonho de nababos sem dinheiro, um produto dessa megalomania da criação de novas capitais, a cuja oca vaidade a constituição republicana erigiu o mais oco monumento no planalto de Goiás. A vítima do absolutismo extorsor não se reconheceria satisfeita nas galas de uma democracia perdulária.

Em compensação, nada corresponderia melhor à expressão moral da memória dos supliciados pela intolerância dos reis que os protestos da tolerância republicana associados a essa oblação histórica pelo chefe do Estado. Entende ele que, dada a consolidação definitiva do novo regímen, a cujo respeito não lhe resta dúvida nenhuma, “estabelecida essa convicção em todos os espíritos, abre-se campo para a grande política da tolerância, dentro da qual possam ser aproveitadas todas as aptidões em bem da pátria”. E, completando o seu pensamento, acrescenta: “É fora de dúvida que os grandes males, que ainda hoje deploramos, procedem principalmente do encarniçamento das nossas lutas internas; mas nada há que justifique lutas dessa natureza, quando as divergências não repousam em pontos fundamentais, quer na ordem das idéias, quer na ordem dos princípios, diretores da pública administração”.

Há, nestas palavras, grandes verdades, e não pequeno merecimento em as dizer, grandes compromissos, e não pequena responsabilidade em os contrair. Reconhecer como evidência indisputável que os graves males ainda hoje por nós deplorados emanam principalmente da nossa incapacidade para o respeito das opiniões alheias, e, sobretudo, reconhecê-lo durante a quadra em que a recrudescência dessa disposição geral para a tirania tem revestido formas insólitas, destruidoras e cruentas, é fazer grande serviço à causa da benevolência entre os nossos compatriotas, flagelados pelo furor dos partidos e dos governos. Mas fazer essa confissão do alto do poder e sob o peso das suas culpas é assumir obrigações, para cujo desempenho se requer toda a pureza da sinceridade, toda a abnegação da fé e todo o heroísmo da honra.

Há, entretanto, mais de um ponto, em que o enunciado presidencial nos parece favorecer idéias, com que não podemos estar de acordo. Nós consideramos a tolerância como o maior passo para a consolidação do regímen republicano, para a consolidação de todo e qualquer regímen. Não podemos admitir que ela seja uma concessão, um benefício, uma bênção peculiar das instituições, cuja existência criou raízes inabaláveis. Acreditamos, pelo contrário, que nenhuma constituição se firmou jamais pelos meios reacionários, e que são sobretudo as formas de governo novamente implantadas, ainda malseguras na estima dos povos, as que necessitam de mostrar a sua perfeita compatibilidade com os direitos da consciência, as funções da palavra e a ação legal das minorias.

Tem por indubitável o Presidente da República, associado neste sentir ao Governador de Minas, ser ela hoje o sistema definitivo da nossa organização constitucional. Mais longe vão ainda os dois. A seu ver, essa é “a convicção, não dos republicanos, mas de todos em geral, embora muitos a não confessem”. Não queremos dizer que S. Ex.ªs não acertem no horóscopo de definitiva, com que agoiram o futuro da República. Nisso nos inclinamos a crer que este é o juízo mais seguro, bem que sem participarmos dessa confiança absoluta, contra a qual nos deve prevenir a fragilidade das instituições políticas, em não sendo resultantes evolutivas do tempo, frutos do desenvolvimento orgânico das nações. De ordinário as constituições mais anchas da sua eternidade são as mais enfermiças, os poderes mais confiantes na sua estabilidade são os mais passageiros. Quando se apresentou a Bonaparte o plebiscito de dezembro de 1804, que lhes acabava de dar perto de quatro milhões de sufrágios, disse o imperador: “Os meus descendentes conservarão por muito tempo este trono”. E ele durou apenas onze anos. Vendo as ilusões, de que a Providência rodeia o poder, exclama, a esse respeito, Chateaubriand, consola-nos a efêmera duração delas.

Mas a República no Brasil, forte em boa parte pela profunda fraqueza dos seus adversários, quase que não corre perigos senão da parte de si mesma. Crer, porém, que toda a gente considere imaginários esses perigos, e que a crença nesse regímen como o estado final do país seja universal, é mais do que permite o otimismo dos históricos e o entusiasmo dos festins. Não: ainda há desconfiados, ainda há incrédulos, ainda há pessimistas; e, se quisermos dar um penhor elementar da nossa tolerância, permitindo neste ponto a verdade, havemos de confessar que a corrente mais geral é a de apreensões e receios. Muito há que fazer, para lhe mudar a direção. Mas, a querer o governo encetar seriamente essa obra meritória, a primeira força, de que se deve armar, é a magnanimidade, a justiça aos adversários, a benignidade com os dissidentes.

Para que essa virtude seja, porém, eficaz, necessário será que não abra exceções; que abranja todos os matizes da hostilidade no terreno da enunciação do pensamento e do uso dos recursos legítimos contra o poder; que não tenha, enfim, reservas, como as que parece transluzirem das palavras do Chefe do Estado, quando alude a “divergências em pontos fundamentais, quer na ordem das idéias, quer na dos princípios diretores da pública administração”. A tolerância não pode ter ressalvas sendo contra o crime. As divergências fundamentais, as que interessam a própria base política das instituições, enquanto respeitarem as leis, têm o mais pleno direito à proteção dos governos livres

Publicado em A Imprensa, 26 de março de 1899.

 

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