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Leon Tolstoi
I
Era outono. Pela estrada real duas carruagens seguiam a trote rápido.
Na da frente viajavam duas mulheres. Uma, a senhora, magra e pálida.
A outra, a criada, gorda e de um corado lustroso. Seus cabelos curtos e ressecados
brotavam por baixo do chapéu desbotado, e a mão avermelhada,
coberta por uma luva puída, ajeitava-os com gestos bruscos.
O busto volumoso, envolto num lenço rústico, transpirava saúde;
os olhos negros e vivazes ora espiavam pela janela os campos fugidios, ora
observavam timidamente a senhora, ora lançavam olhares inquietos para
os cantos da carruagem.
A criada tinha bem ao nariz o chapéu da senhora pendurado no bagageiro,
um cãozinho deitado nos joelhos, os pés acima dos bauzinhos
dispostos no chão, tamborilando sobre eles, em sons quase abafados
pelo ruído dos solavancos das molas e do tilintar dos vidros.
De mãos cruzadas sobre os joelhos e de olhos fechados, a senhora balouçava
levemente nas almofadas que lhe serviam de apoio e, com um leve franzir de
cenho, dava tossidelas fundas. Tinha na cabeça uma touquinha branca
de dormir e um lencinho azul celeste envolto no pescoço pálido
e delicado. Uma risca brotava abaixo da touquinha é repartia os cabelos
ruços, excessivamente lisos e empastados; havia qualquer coisa de seco
e mortiço na brancura do couro daquela vasta risca. A pele murcha,
um tanto amarelada, mal conseguia modelar suas feições belas
e esguias, que ganhavam um tom vermelho nas maçãs do rosto.
Os lábios secos mexiam-se intranqüilos, as ralas pestanas não
se encrespavam, e o sobretudo de viagem formava rugas entre os seios encovados.
Mesmo de olhos fechados, o rosto da senhora expressava cansaço, irritação
e um sofrimento que lhe era familiar.
Recostado em seu banco, o criado cochilava na boléia; o postilhão
gritava animado e fustigava a possante quadriga suada; vez por outra espreitava
o outro cocheiro, que gritava de trás, da caleça. As marcas
paralelas e largas das rodas se estendiam nítidas e iguais pelo calcário
lamacento da estrada. O céu estava cinzento e frio; a bruma úmida
espalhava-se pelos campos e pela estrada.A carruagem estava abafada e recendia
poeira e água-de-colônia. A doente inclinou a cabeça para
trás e abriu devagar os olhos, grandes, brilhantes, de uma bela tonalidade
escura.
"Outra vez!" — disse ela, repelindo nervosamente com a mão
bonita e magra a ponta da saia da criada, que lhe roçava de leve a
perna, e torceu a boca de dor. Matriocha recolheu a saia com ambas as mãos,
soergueu as pernas robustas e sentou-se mais afastada. Um corado vivo cobriu-lhe
o rosto viçoso. Os belos olhos escuros da doente fitavam ansiosos os
movimentos da criada. A senhora apoiou as mãos no banco e quis também
soerguer-se para se sentar mais alto, mas faltaram-lhe forças. A boca
se contorceu e todo o rosto ficou desfigurado por uma expressão de
ironia impotente e malévola. "Pelo menos você devia me ajudar…
Ah, não é preciso! Eu mesma faço, só que não
ponha atrás de mim essas suas sacolas, faça o favor!… É
melhor mesmo que não me toque, já que não leva jeito."
A senhora fechou os olhos e mais uma vez ergueu as pálpebras, observando
a criada. Matriocha mordia o lábio inferior avermelhado, olhando para
ela. O peito da doente exalou um suspiro fundo que, antes de terminar, transformou-se
em tosse. Ela se virou, encolheu-se e agarrou-se ao peito com ambas as mãos.
Quando a tosse passou, tornou a fechar os olhos e permaneceu sentada sem se
mexer. A carruagem e a caleça chegaram à aldeia. Matriocha tirou
a mão roliça do lenço e se benzeu.
— O que é isso? — perguntou a senhora.
— A estação de posta, senhora.
— E por que você está se benzendo?
— Tem uma igreja, senhora.
A doente voltou-se para a janela e começou a se benzer lentamente,
com os olhos bem graúdos fitos numa grande igreja de madeira que a
carruagem contornava.
Os dois veículos pararam em frente à estação.
O marido da doente e o médico desceram da caleça e se aproximaram
da carruagem.
— Como a senhora se sente? — perguntou o médico, tomando-lhe
o pulso.
— E então, como está, minha cara, não está
cansada? — perguntou o marido em francês. — Não quer
descer?
Matriocha juntou as trouxas e encolheu-se num canto para não atrapalhar
a conversa.
— Mais ou menos… na mesma — respondeu a doente. — Não
vou descer.
O marido foi para a estação, depois de ficar um pouco com a
mulher. Matriocha desceu do carro e correu pela lama para a entrada do edifício,
nas pontas dos pés.
— Se eu estou mal, isto não é razão para o senhor
não tomar o seu café — disse a senhora, com um leve sorriso,
ao médico postado à janela.
— Nenhum deles se importa comigo — disse consigo mesma, mal o
médico se afastou devagarzinho e subiu correndo a escada da estação.
— Eles estão bem, o resto não tem importância. Oh,
meu Deus!
— E então, Edvard Ivánovitch? — disse o marido
ao encontrar o médico, esfregando as mãos com um sorriso jovial.
Ordenei que trouxessem alguma provisão, o que o senhor acha?
— Pode ser.
— E ela, como está? — perguntou suspiroso o marido, baixando
a voz e levantando as sobrancelhas.
— Eu disse: ela não vai conseguir chegar, e não só
até a Itália: queira Deus que chegue a Moscou. Ainda mais com
esse tempo.
— E o que é que nós vamos fazer? Ah, meu Deus! Meu Deus!
— o marido tapou os olhos com as mãos.
—Traga aqui — acrescentou ele para o homem que carregava as provisões.
— Ela deveria ter ficado — respondeu o médico, dando de
ombros.
— Agora me diga, o que é que eu podia fazer? — objetou
o marido. — Ora, eu fiz de tudo para detê-la, falei dos recursos,
das crianças que nós teríamos de deixar, e dos meus negócios;
ela não quer dar ouvidos a nada. Fica fazendo planos de vida no estrangeiro
como se estivesse com saúde. E fosse eu falar do seu estado… seria
o mesmo que matá-la.
— Mas ela já está morta, o senhor precisa saber disso,
Vassili Dmítritch. Uma pessoa não pode viver quando não
tem pulmões, e os pulmões não tornam a crescer. É
triste, duro, mas o que se vai fazer? O meu e o seu problema é fazer
com que o fim dela seja o mais tranqüilo possível. Nós
precisamos é de um confessor.
— Ai meu Deus! Mas o senhor entenda a minha situação
na hora de lembrar a ela esta sua última vontade. Aconteça o
que acontecer, isso eu não vou dizer a ela. O senhor bem sabe como
ela é bondosa…
— Mesmo assim tente convencê-la a ficar até o final do
inverno, — disse o médico, meneando a cabeça com ar expressivo
— senão pode acontecer o pior na viagem…
— Aksiucha! Ei, Aksiucha! — grunhiu a filha do chefe da estação,
jogando um lenço sobre a cabeça e pisando no alpendre enlameado
nos fundos da casa. — Vamos espiar a senhora de Chirkin, dizem que está
doente do peito e que estão levando para o estrangeiro. Eu nunca vi
como é uma tísica.
Aksiucha correu para a soleira da porta e ambas precipitaram-se portão
afora de mãos dadas. Encurtando a marcha, passaram diante da carruagem
e espiaram através da janela aberta.A doente voltou o rosto para elas
mas, percebendo-lhes a curiosidade, franziu o cenho e virou-se para o outro
lado.
— Mm-ãe-zinha! — disse a filha do chefe da posta, voltando
rapidamente a cabeça. — Que encanto de beleza deve ter sido;
agora vejam o que sobrou dela! Dá até medo. Viu, viu, Aksiucha?
— Sim, como está mal! — Aksiucha fez coro com a moça.
— Vamos dar mais uma olhada, a gente faz que está indo para o
poço.Você percebeu? Ela deu as costas, mas eu vi. Que dó,
Macha.
— É, e que lama! — respondeu Macha, e as duas correram
para o portão.
— Pelo visto, estou com uma aparência horrível —
pensou a doente. — Eu só preciso chegar mais rápido, mais
rápido ao estrangeiro, lá eu me curo.
— E então, minha cara, como está? — disse o marido,
ao se aproximar da carruagem mastigando.
— A mesma pergunta de sempre. E comendo! — pensou ela. —
Mais ou menos… — falou entre dentes.
— Sabe de uma coisa, minha cara, receio que, com esse tempo, você
piore no caminho; Edvard Ivanitch também acha. Não seria o caso
de voltar?
Ela calava, emburrada.
— Pode ser que o tempo melhore, que a estrada fique boa e que você
se recupere; e aí poderíamos ir juntos.
— Desculpe, mas se por muito tempo não tivesse lhe dado ouvidos,
eu estaria agora em Berlim e totalmente curada.
— Mas o que eu podia fazer, meu anjo? Era impossível, você
sabe. Mas agora, se ficasse por um mês, ao menos, iria se recuperar
prontamente; eu terminaria meus negócios, levaríamos as crianças…
— As crianças estão com saúde, eu não.
— Veja se entende, minha cara, com um tempo desses, se você piorar
na viagem… pelo menos você estaria em casa.
— Em casa, o quê? Pra morrer? — respondeu a doente irritada.
Mas a palavra "morrer" pelo visto a assustou, e ela olhou para o
marido com ar de súplica e interrogação. Ele baixou o
olhar e calou. De repente, a doente fez um beicinho infantil, e lágrimas
lhe saltaram dos olhos. O marido cobriu o rosto com o lenço e afastou-se
da carruagem.
"Não, eu vou" — disse a doente, levantando os olhos
para o céu, juntando as mãos e murmurando palavras desconexas.
"Meu Deus! Por quê?" — dizia ela, e as lágrimas
corriam ainda mais intensas. Rezou por muito tempo com ardor, mas no peito,
a mesma dor e opressão, no céu, nos campos e na estrada, o mesmo
tom cinzento e sombrio, e a mesma bruma de outono, nem mais nem menos rarefeita,
derramando-se do mesmo jeito sobre a lama da estrada, os telhados, a carruagem
e os tulups dos cocheiros, que discutiam em voz alta, alegres, enquanto lubrificavam
e preparavam a carruagem…
II
A carruagem estava atrelada, mas o cocheiro fazia hora. Ele havia passado
pela isbá dos cocheiros. A isbá estava quente, abafada, escura,
com um ar pesado, um cheiro de lugar habitado, de pão assado, repolho
e pele de carneiro. Havia alguns cocheiros no cômodo, uma cozinheira
ocupava-se no forno e, em cima deste, um doente estava deitado, coberto por
uma pele de carneiro.
— Tio Khviédor! Ô, tio Khviédor! — disse
o jovem cocheiro vestido de tulup, com um chicote no cinto, entrando no cômodo
e dirigindo-se ao doente.
— O que é que tu vai querer com o Fiédka, seu vadio?
— perguntou um dos cocheiros. — Olha só, tão te
esperando na carruagem…
— Quero pedir as botas dele; as minhas se acabaram — respondeu
o rapaz, jogando os cabelos para trás e ajeitando as luvas no cinto.
— Que que é? — do forno ouviu-se uma voz fraca, e um rosto
magro, de barba ruiva, espiou. A mão larga, descarnada e branca, coberta
de pêlos, enfiava uma samarra nos ombros cobertos por um camisolão
sujo. — Me dá alguma coisa pra beber, irmão; o que que
é?
O rapaz lhe serviu uma caneca de água.
— Sabe o que é, Fédia, — disse ele, indeciso —
pelo visto tu não vai precisar das botas novas agora; dá pra
mim, pelo visto tu não vai andar.
O doente tombou a cabeça cansada sobre a caneca reluzente, molhou
os bigodes ralos e caídos na água escura e bebeu sem forças.
A barba emaranhada estava suja; os olhos fundos, embotados, levantaram-se
com dificuldade para o rosto do rapaz. Depois de beber, ele afastou a água
e quis levantar as mãos para enxugar os lábios úmidos,
mas não conseguiu e enxugou-as na manga da samarra. Calado e respirando
com dificuldade pelo nariz, olhava o rapaz direto nos olhos, reunindo forças.
— Pode ser que tu já tenha prometido a alguém —
disse o rapaz. — O problema é que lá fora está
úmido, e como eu tenho que ir pro trabalho, pensei com meus botões:
eu pego e peço as botas do Fiédka; pelo jeito ele não
vai precisar. Agora, se tu precisar, então tu diz…
No peito do doente alguma coisa começou a vibrar e roncar; ele inclinou-se
e uma interminável tosse de garganta o sufocou.
— Pra que vai precisar? — trovejou de repente por toda a isbá
a voz da cozinheira zangada. — Faz uns dois meses que ele não
sai do forno. Tá vendo, tá se arrebentando, até as entranhas
dele doem, escuta só. Como é que ele vai precisar das botas?
Ninguém vai enterrá-lo com botas novas. Já não
é sem tempo, Deus que me perdoe.Tá vendo, tá se arrebentando.
Ou então que alguém leve ele daqui pra outra isbá ou
pra outro lugar! Diz que na cidade tem esse tipo de hospital; isso é
coisa que se faça, ocupar o canto todo… chega! Não se tem
espaço pra nada. E ainda por cima, ficam me cobrando limpeza.
— Ei, Serioga vá para a carruagem, os senhores estão esperando
— gritou da porta o chefe da estação.
Serioga queria ir sem esperar resposta, mas o doente, tossindo, deu-lhe a
entender com os olhos que queria dizer alguma coisa.
— Pega as botas, Serioga — disse ele, contendo a tosse e descansando
um pouco. — Só que tu me compra uma campa, porque eu tô
morrendo… — acrescentou roncando.
— Obrigado, tio, então eu levo; e a campa, tá, tá,
eu compro!
— Bem, meninos, vocês ouviram — ainda conseguiu dizer o
doente, e tornou a se curvar sufocado.
— Tá bem, ouvimos — respondeu um dos cocheiros. —
Vai, Serioga, vai pra carruagem, senão o chefe vem te chamar outra
vez. A senhora de Chirkin tá lá doente.
Serioga tirou depressa as imensas botas furadas e jogou-as debaixo de um
banco. As botas novas do tio Fiódor eram precisamente o seu número,
e ele foi para a carruagem, admirando-as.
— Êta beleza de botas! Deixa eu engraxar — disse um cocheiro
com graxa na mão, enquanto Serioga subia na boléia e tomava
as rédeas. — Deu de graça?
— Ah, invejoso! — respondeu Serioga, aprumando-se e juntando
as pontas do casaco junto aos pés. — Eia, vamos, belezas! —
gritou para os cavalos, agitando o chicote; carruagem e caleça, com
seus passageiros, malas e bagagens, saíram em disparada pela estrada
molhada, sumindo na bruma cinzenta de outono.
O cocheiro doente permaneceu sobre o forno da isbá abafada e, sem
conseguir escarrar, virou-se a muito custo para o outro lado e ficou quieto.
Até o cair da tarde, gente chegava, comia, saía da isbá;
e não se ouvia sinal do doente. Ao anoitecer, a cozinheira subiu no
forno e puxou a samarra por cima das pernas dele.
— Não fica zangada comigo, Nastácia, — disse o
doente — logo vou deixar este teu canto.
— Tá bem, tá bem, deixa pra lá — murmurou
Nastácia. — Onde é que dói, tio? Me diz.
— Uma dor insuportável por dentro. Só Deus sabe.
— Na certa a garganta também dói, tu tosse tanto!
— Dói tudo. Minha hora chegou, é isso. Oh, oh, oh! —
gemeu o doente.
— Cobre as pernas assim — disse Nastácia, ajeitando a
samarra sobre ele, ao descer do forno.
À noite, uma lamparina iluminava fracamente a isbá. Nastácia
e uns dez cocheiros roncavam alto pelo chão e pelos bancos. Só
o doente gemia fraquinho, tossia e revirava-se no forno. Ao amanhecer, aquietou-se
de vez.
— Estranho o que eu vi esta noite em sonho — disse a cozinheira,
espreguiçando-se na penumbra da manhã seguinte. — Vejo
como se o tio Khviédor tivesse descendo do forno e saindo pra rachar
lenha. "Nástia", diz ele, "deixa eu te ajudar";
e eu pra ele: "Como é que tu vai rachar lenha?", mas ele
agarra o machado e tome de rachar lenha com tanta vontade, e era só
lasca voando. E eu: "Como é que pode, tu não tava doente?".
"Nada", diz ele, "eu estou bem". E sacode o machado de
um jeito que me dá medo; aí eu comecei a gritar e acordei. Será
que ele já não morreu?
—Tio Khviédor! Ô, tio! Fiódor não respondia.
— É mesmo, será que ele já não morreu?
Vamos ver — disse um dos cocheiros, que havia acordado.
Um braço magro, frio e céreo, coberto de pêlos ruivos,
pendia do forno.
— Vamos falar com o chefe da estação, parece que tá
morto — continuou o cocheiro.
Fiódor não tinha parentes. Viera de longe. No dia seguinte,
foi enterrado no cemitério novo, atrás do bosque, e Nastácia
passou vários dias contando a todo mundo o sonho que tivera e como
tinha sido a primeira a perceber a morte do tio Fiódor.
III
Chegou a primavera. Nas ruas úmidas da cidade rumorejavam regatos
velozes entre o gelo sujo de esterco; as cores dos trajes e o som das vozes
dos transeuntes distinguiam-se nitidamente. Nos jardins, atrás das
sebes, as árvores inchavam de botões e mal se notava o balançar
dos ramos ao sopro da brisa fresca.
Por todo lado gotinhas transparentes pingavam… Pardais desajeitados piavam
e adejavam com suas asinhas. Nos lados ensolarados, nas sebes, nas casas e
nas árvores, tudo se movia e brilhava. Reinava a alegria e o viço
tanto no céu e na terra como no coração dos homens.
Em uma das ruas principais, palha fresca se estendia no chão diante
de uma grande casa senhorial; na casa estava aquela mesma doente moribunda
que tinha pressa em chegar ao exterior.
À porta fechada do quarto, o marido da doente e uma senhora idosa.
Num divã, um sacerdote, vista baixa, segurando alguma coisa enrolada
na estola de seus paramentos.A um canto, uma velha, mãe da doente,
chorava com amargura numa poltrona Voltaire. A seu lado, uma criada segurava
um lenço, esperando que a velha o pedisse; outra lhe friccionava alguma
coisa nas têmporas e soprava por baixo da toquinha a cabeça grisalha.
— Vá com Cristo, minha amiga, — disse o marido à
mulher idosa ao seu lado — ela confia tanto na senhora… a senhora
é tão jeitosa com ela, procure convencê-la direitinho,
minha querida; vá, vá. — Ele já queria abrir a
porta, mas a prima o deteve, passou o lenço algumas vezes nos olhos
e sacudiu a cabeça.
— Agora não parece mais que chorei — disse ela, e abriu
a porta, entrando no quarto.
O marido estava agitadíssimo e parecia completamente perdido. Ia caminhando
em direção à velha, mal deu alguns passos, voltou-se,
andou pela sala e aproximou-se do sacerdote. Este olhou para ele, levantou
os olhos para o céu e suspirou. A barba cerrada, tingida de fios grisalhos,
também se ergueu e baixou.
— Meu Deus, meu Deus! — disse o marido.
— O que é que se vai fazer? — retrucou suspiroso o padre,
e mais uma vez sobrancelhas e barba se ergueram e baixaram.
— E a mãe dela está aqui! — disse o marido quase
em desespero. — Ela não vai suportar isso tudo. Porque amar como
ela a ama… não sei, não. Reverendo, se pelo menos o senhor
tentasse tranqüilizá-la e fazer com que ela saísse daqui…
O sacerdote levantou-se e aproximou-se da velha.
— É isso, ninguém pode avaliar um coração
de mãe, — disse ele — mas Deus é misericordioso.
De repente o rosto da velha começou a se contrair cada vez mais e
um soluço histérico a sacudiu.
— Deus é misericordioso — continuou o sacerdote, quando
ela se acalmou um pouco. — Em minha paróquia havia um doente
muito mais grave que Mária Dmítrievna; e veja o que aconteceu,
foi completamente curado com ervas por um homem simples, em pouco tempo. E
além do mais, esse mesmo homem está agora em Moscou. Eu disse
a Vassili Dmítrievitch que dava para se tentar. Ao menos serviria de
consolo para a doente. A Deus nada é impossível.
— Não, ela não tem mais jeito, — pronunciou a velha
— em vez de me levar, é a ela que Deus leva. — E os soluços
histéricos tornaram-se tão fortes que ela perdeu os sentidos.
O marido da enferma cobriu o rosto com as mãos e correu para fora
do quarto.
No corredor, a primeira pessoa que encontrou foi um menino de seis anos,
que tentava alcançar a todo custo uma menina menor.
— E as crianças, não permite que eu as leve para perto
da mãe? — perguntou a babá.
— Não, ela não quer vê-las. Isto a deixaria transtornada.
O menino parou um minutinho e examinou atento o rosto do pai; mas, num repente,
deu um chute no ar e, com um grito de alegria, continuou a correr.
— Faz de conta que ela é o cavalo murzelo, papai! — berrou
o garoto, apontando para a irmã.
Enquanto isso, no outro quarto, a prima sentava-se ao lado da doente e conduzia
habilmente a conversa, tentando prepará-la para a idéia da morte.
Na outra janela, o médico mexia a tisana.
Metida num roupão branco, cercada de almofadas na cama, a doente olhava
calada para a prima.
— Ah, minha amiga, — disse, interrompendo-a inesperadamente —
não precisa me preparar. Não me trate como criança. Eu
sou cristã. Eu sei de tudo. Eu sei que minha vida está por um
fio; eu sei que se meu marido tivesse me escutado antes, eu estaria na Itália
agora e, quem sabe, podia até ser verdade, eu estaria curada. Todos
lhe diziam isso. Mas o que se há de fazer? Pelo visto, foi assim que
Deus quis. Todos nós temos muitos pecados, eu sei disso; mas espero
a graça de Deus, que a tudo perdoa, a tudo perdoa. Eu me esforço
para entender, mas tenho muitos pecados, querida. Por outro lado, já
sofri bastante. Esforcei-me para suportar com paciência meu sofrimento…
— Chamo então o padre, querida? Você vai se sentir mais
leve comungando — disse a prima.
A doente baixou a cabeça em sinal de consentimento.
— Deus, perdoa essa pecadora! — sussurrou. A prima saiu e fez
sinal para o padre.
— É um anjo! — disse ela ao marido, com lágrimas
nos olhos.
O marido come&cceccedil;ou a chorar; o sacerdote entrou na sala; a velha permanecia
desacordada; no quarto principal reinava um silêncio absoluto. Uns cinco
minutos depois, o padre saiu do quarto da doente, tirou a estola e ajeitou
os cabelos.
— Graças a Deus, está mais calma agora — disse
ele. — Quer vê-los.
A prima e o marido entraram. A doente fitava um ícone e chorava baixinho.
— Eu a felicito, minha amiga — disse o marido.
— Deus seja louvado! Como me sinto bem, agora; uma doçura inexplicável
— disse a doente, e um leve sorriso brincou em seus lábios finos.
— Como Deus é misericordioso! Não é verdade que
ele é misericordioso e onipotente? — E mais uma vez olhou para
o ícone com olhos marejados e ávida súplica.
De repente, pareceu lembrar-se de algo. Fez um sinal para que o marido se
aproximasse.
— Você nunca faz o que eu peço — disse ela com uma
voz fraca e descontente.
O marido esticava o pescoço e escutava-a submisso.
— O que foi, minha querida?
— Quantas vezes eu disse que esses médicos não sabem
de nada; existem remédios caseiros que curam tudo… Escuta o que o
padre disse… o homem simples… Mande buscá-lo.
— Pra quê, minha querida?
— Meu Deus, ninguém quer entender!… — E a doente franziu
o cenho e fechou os olhos.
O médico chegou-se a ela e tomou-lhe o pulso. Batia cada vez mais
fraco. Ele lançou um olhar para o marido. A senhora percebeu o gesto
e olhou à volta assustada.A prima deu-lhe as costas e começou
a chorar.
— Não chore, não aflija a você e a mim —
disse a doente. — Assim você tira este meu último sossego.
— Você é um anjo! — disse a prima, beijando-lhe
a mão. — Não, beije aqui, só se beija a mão
dos mortos. Meu Deus, meu Deus!
Na mesma noite, a doente era só corpo, e este corpo jazia no caixão,
na sala do casarão. No cômodo espaçoso, a portas fechadas,
um sacristão lia salmos de Davi com voz fanhosa e ritmada. A luz viva
das velas caía dos altos candelabros de prata sobre a fronte cérea
da morta, suas pesadas mãos de cera, sobre as pregas da coberta que
delineavam espantosamente os joelhos e os dedos dos pés. Sem entender
o que dizia, o sacristão lia de maneira compassada e, no silêncio
da sala, as palavras ecoavam estranhas e morriam. De quando em quando, de
algum quarto distante chegavam vozes infantis e o barulho do sapateado das
crianças.
"Se ocultas o rosto, eles se perturbam" — anunciou o livro
dos Salmos. "Se lhes cortas a respiração, morrem e voltam
ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados e,
assim, renovas a face da terra. A glória do Senhor seja para sempre!"
O rosto da morta estava severo, calmo, majestoso. Nada se movia, nem na fronte
limpa e fria, nem nos lábios cerrados e enrijecidos. Ela era toda atenção.
E será que ao menos agora ela compreendia essas grandes palavras?
IV
Um mês depois erigiu-se um jazigo de pedra sobre a sepultura da morta.
Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhuma campa, apenas uma relva
verde-clara brotava do montículo de terra, único vestígio
de um homem que havia passado pela existência.
— Serioga, tu vai cometer um pecado se não comprar a campa para
o Khviédor — disse a cozinheira da estação de posta.
— Tu dizia assim: é inverno, é inverno. Mas agora, por
que não mantém a palavra? Foi na minha frente que tu prometeu.
Ele já veio pedir uma vez, e se tu não compra, ele volta e dessa
vez é pra te estrangular.
— Que nada! Por acaso eu estou recusando?! — respondeu Serioga.
— Eu vou comprar a campa; já disse que vou comprar; vou comprar
por um rublo e meio. Não me esqueci, mas é que precisa trazer.
É só ir na cidade que eu compro.
— Devia pelo menos colocar uma cruz lá, é isso que você
tinha que fazer, — retrucou um velho cocheiro — senão isso
vai é acabar mal. As botas tu tá usando, né?
— E essa cruz, onde é que se vai arranjar? Não dá
pra fazer de lenha, né?
— Isso lá é coisa que se diga? Claro que de lenha não
dá pra fazer; tu pega o machado e vai mais cedo pro bosque, e então
tu faz. Tu pega e corta um freixo. Ou então tu vai ter que dar vodca
ao guarda florestal. Pra toda essa canalha não há bebida que
chegue. Faz pouco eu quebrei a trave da carruagem e cortei uma senhora tora
e ninguém deu um pio.
De manhã bem cedo, mal começou a clarear, Serioga pegou o machado
e foi para o bosque. Por toda parte estendia-se um manto de orvalho frio e
fosco que caía insistente e que o sol não iluminava. O nascente
mal começava a clarear, fazendo sua frágil luz refletir no firmamento
encoberto por nuvens ralas. Não se mexia um só talo de capim
e uma única folha nas copas. Só de quando em quando uns ruídos
de asas entre as árvores compactas ou um leve farfalhar pelo chão
quebravam o silêncio da mata. De repente, um som estranho, desconhecido
da natureza, espalhou-se e congelou na orla do bosque. E de novo ouviu-se
o mesmo som que passou a se repetir de forma regular, embaixo, junto ao tronco
de uma árvore imóvel. A copa de uma árvore estremeceu
de forma incomum; suas folhas viçosas sussurraram algo; uma toutinegra
pousada em um galho esvoaçou duas vezes, piando, e pousou em outra
árvore, remexendo a caudinha.
Embaixo, o machado ressoava cada vez mais e mais surdo; as lascas brancas
e molhadas de seiva voavam sobre o capim orvalhado, ouvindo-se um leve rangido
após os golpes. A árvore estremeceu por inteiro, inclinou-se
e aprumou-se rapidamente, vacilando assustada sobre sua raiz. Por um instante,
tudo ficou em silêncio; mas a árvore tornou a se inclinar e ouviu-se
mais uma vez o rangido de seu tronco; e ela despencou de copa na terra úmida,
quebrando e soltando os ramos. Cessaram os sons do machado e dos passos. A
toutinegra piou e voou para mais alto. O ramo em que ela roçou suas
asas balançou por algum tempo e estacou, como os outros, com todas
as suas folhas.
As árvores, ainda mais alegres, pavoneavam seus galhos imóveis
no espaço aberto há pouco.
Os primeiros raios de sol infiltraram-se por entre as nuvens, brilharam lá
no alto e correram a terra e o céu. A neblina derramou-se em ondas
pelos vales; o orvalho começou a brincar na relva; nuvenzinhas brancas
e transparentes dispersavam-se apressadas pelo firmamento azulado. Os pássaros
revoavam sobre a mata espessa e, sem rumo, gorjeavam felizes; folhas viçosas
sussurravam radiantes e tranqüilas nas copas, e os ramos das árvores
vivas mexeram-se lentos, majestosos, sobre a árvore tombada e morta.
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