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A Raul Pompéia, o mais original e correto escritor brasileiro de seu tempo.
Capítulo I
– Ora, sempre vamos ao Rio de Janeiro, ao grande e espetaculoso Rio de Janeiro!
– exclamou Evaristo, pousando o chapéu, com ar de triunfo. – É
como lá diz o outro: – quem espera… Eu nunca me enganei com o Luís…
nunca!
Saíam-lhe em jorro as palavras, num tom quente de vitória,
de aclamação, de regozijo.
Adelaide não o compreendeu logo, e, sem o compreender, exultava diante
da intempestiva alegria do marido, com os olhos nele, ansiosa.
– Que é, homem de Deus, que foi… Que mistério!
– Nada, filha, nada; estamos aqui, estamos no Rio de Janeiro – ouviste? –
no grandioso Rio de Janeiro!
Ela sorriu com um muxoxo:
– Brincadeira!
– Brincadeira? Telegrama do Luís Furtado. Um emprego no Banco Industrial…
– Que é do telegrama? – perguntou Adelaide, arredando o cabelo dos
olhos e com o mesmo sorriso de incredulidade.
– Cá está, no bolsinho; recebi quando menos esperava.
E, desdobrando o papel:
– ‘Emprego Banco Industrial garantido. Venha. – Luís.”
Foram entrando ambos para a sala de jantar – Evaristo um pouco apressado.
– Tu não imaginas – ia ele dizendo, sem se voltar para a mulher -,
tu não imaginas como estou alegre! No Rio de Janeiro a coisa é
outra! Um homem adquire relações, ganha fama e, quando pensa,
tem sua economiazinha… Quem vai ao Rio, ipso facto, vai à Europa.
Ora, digam lá para que me tem servido a carta de bacharel? Para nada,
para coisíssima alguma! Bacharel em província é objeto
de luxo e eu estou farto de misérias!
Adelaide, meio triste, perguntou-lhe se queria jantar.
– Por que não? Imediatamente. Hoje é?…
– Terça.
– Domingo há vapor e eu tenho muito que fazer. Hoje mesmo, acabando
daqui, vou telegrafar ao Luís. Manda botar a sopa.
– Jesus, que sofreguidão, Evaristo! Ao menos tira o paletó.
– Qual paletó! Daqui para o Telégrafo e amanhã, se Deus
quiser, os jornais dão noticia da minha ida ao Rio. Um emprego no Banco
Industrial do Rio de Janeiro é papa-fina. Já ouviste falar no
Banco Industrial?
– Não.
– Pois é um excelente emprego – um empregão!
Adelaide pediu o jantar à porta da cozinha e veio sentar-se à
mesa.
Eram pobres, de uma pobreza honesta e limpa. Moravam nos arredores da cidade,
num lugar chamado Coqueiros, onde a vida era quieta e ninguém os ia
incomodar nas horas de descanso. Assim que desciam as primeiras sombras da
noite, caía todo o bairro numa extraordinária mudez, num silêncio
de aldeia feliz, cortado, apenas, em noites de lua, pelo choro melancólico
dalgum violão boêmio que passava dizendo histórias de
amor… A própria estação do trem era um pouquinho longe
da casa em que moravam.
Evaristo, porém, tinha suas ambições e não podia
contentar-se com aquela vida de jesuíta. O Rio de Janeiro atraía-o
para as grandes lutas, para cometimentos estrondosos, que o celebrizassem
dalguma forma. Rapazes, seus conhecidos (o Luís Furtado era um deles)
viviam muito bem na Corte – formados, gozando de nomeada na advocacia, no
magistério; outros, que nem sabiam o bê-a-bá do direito,
elogiados na literatura, na imprensa, em tudo! Luís Furtado, por exemplo,
Luís Furtado, ele o conhecia desde criança, desde os bancos
colegiais, quando ambos cursavam o Liceu; eram amigos, amiguinhos como dois
irmãos. Pois bem, Luís Furtado não tinha nenhum preparatório,
fora péssimo estudante de latim, na aula do Padre Lustosa, de francês,
e mesmo da língua de Camões; no entanto, estava muitíssimo
bem colocado no Rio – podia-se dizer que era dono de jornal, influência
literária e quase capitalista! E ele, Evaristo? Formado, bacharel em
direito, autor de muitos escritos, no entanto era aquilo: duzentos mil-réis
– uma vergonha – casa em Coqueiros, e, quanto a futuro, temos conversado!
– E ou não é verdade o que eu digo? – perguntava ele à
mulher.
Esta confirmava: “- Não dizia que não; mas o tal Rio de
Janeiro, o tal Rio de Janeiro…”
– Invenções, minha mulher, invenções da gente
que não tem o que fazer. O Rio de Janeiro não é, nem
nunca foi bicho-de-sete-cabeças. Eu leio jornais e sei bem o que aquilo
é. Você verá com os próprios olhos. Falam muito
nas francesas do Largo do Rocio, nos teatros, na jogatina. Ora, isso em toda
parte há; o vício está no sangue do indivíduo;
quando o homem tem de ser coisa ruim, o é no Rio de Janeiro, na Patagônia,
em Paris… no inferno! Compreende agora que não me vou atirar ao luxo,
ao pagode, à bandalheira. O que eu quero simplesmente, exclusivamente,
é fazer pela vida, ganhar algum dinheiro, prosperar, com os diabos!
Adelaide, rapariga dócil, de coração meigo como o coração
das pombas, ouvia tudo, e, em extremo confiante no marido, achava que o que
ele dizia era a pura verdade. Mas não deixava de o aconselhar que pensasse
bem, antes de tomar uma resolução. Nada de vexame, para depois
não haver arrependimento.
– Que arrependimento! Arrependido estou eu de já não ter metido
ombros a uma viagem. A província não bota ninguém pra
diante. Vamos à Corte, vamos melhorar. Por que não hei de ser
feliz, eu, que trabalho como trabalho, por quê? Faça de conta
que comprei um bilhete. A vida é simplesmente uma loteria: questão
de felicidade.
Evaristo tomou um gole d’água, para rebater a sobremesa e ergueu-se,
palitando os dentes.
– Então, sempre queres ir à cidade? – perguntou Adelaide sem
se mover.
– Imediatamente. Vou telegrafar ao Luís e espalhar a grande notícia!
– Mas não te demores, Evaristo; olha que fico só neste subterrâneo…
– Nada, não me demoro nada: é um pulo.
E o futuro empregado do Banco Industrial do Rio de Janeiro, depois de acender
um cigarro, largou-se, numa precipitação de médico que
vai a chamado urgentíssimo.
– ‘Té logo, ‘té logo!
Que pressa de homem! – sorriu Adelaide, ouvindo bater a porta da rua. – Que
desespero!
– Nhõ Varisto nem quis jantar! – acrescentou a cozinheira se aproximando.
– Tira a mesa, Balbina. Sabes que vamos para o Rio de Janeiro?
– Rio Janeiro, nhá Delaida! Onde é isso?
Uma terra muito boa, muito bonita, onde mora o Imperador…
– Ah!… Rio Janeiro…
E a preta velha ficou a olhar o teto, a olhar, com a mão no queixo,
muito admirada.
– Rio Janeiro… E a velha Balbina agora tem de procurar casa?
– Não sei; o Evaristo é que há de dizer…
As duas mulheres, a velha e a moça, trocaram um olhar vago, um olhar
quase sem expressão, mas onde havia uma sombra de tristeza. Balbina
compreendeu, àquela simples notícia, que ia ficar abandonada
no seu rancho de negra velha, sem ganhar dinheiro, sem emprego, sem ocupação
– ela, que estimava tanto “nhô Varisto” e “nhá
Delaida”, e que estava tão bem naquela casa! Adelaide, por sua
vez, compreendia a tristeza de Balbina – pobre criatura quase octogenária,
que eles ainda conservavam por amizade, por gratidão. Balbina fora
escrava do pai de Evaristo, falecido há anos. Adelaide compreendia
e ficava-se também a pensar no destino da velha, com uma ponta de saudade,
quase com remorso de a deixar. Porque Evaristo absolutamente não podia
levar Balbina – uma mulher idosa, coitada, muito boazinha, mas muito velha,
sem forças mesmo para resistir.
Entretanto, a meiga senhora não quis precipitar as coisas. Mais vale
uma esperança tarde que um desengano cedo. Deu a notícia por
lealdade e calou-se.
À noite voltou o marido, cerca de nove horas, com um embrulho debaixo
do braço, o colarinho imprestável de suor, às carreiras.
– Cá estou! – disse entrando. – Agora é arrumar os baús
e tocar! Amanhã os jornais dão a minha ida, isto é, amanhã
estoura a bomba!
Evaristo chamava “estourar a bomba” ao efeito que a notícia
havia de produzir entre os seus inimigos, que não eram poucos.
– Que embrulho trazes aí? – perguntou Adelaide, curiosa.
– Um paletó de alpaca para a viagem.
Adelaide cruzou as mãos, meneando a cabeça.
– Oh, homem vexado! Nem que fosses embarcar amanhã…
– Não há tempo a perder, não há tempo a perder.
Faça-se logo o que se tem de fazer!
– Quando há vapor?
– Domingo: o Maranhão. Hoje é terça, não é?
Quarta, quinta, sexta e sábado, apenas quatro dias para os preparos
de viagem. Nada!
– E a Balbina? – inquiriu Adelaide.
– A Balbina fica… não há remédio. Que vai ela fazer
ao Rio? Nada de criados, por enquanto; as despesas são muitas e eu
não posso arcar…
O coração de Adelaide comoveu-se ante aquele decreto formal
de Evaristo. – Pobre da negra: tão boazinha…
– Que queres? É a vida. Ela que procure outra casa. Está livre,
está senhora de si.
E foram-se recolher, à hora acostumada, sempre falando na viagem,
no embarque, nas despedidas – Evaristo arquitetando planos, construindo castelos,
lembrando uma coisa, outra…
Daí a quatro dias, com efeito, embarcava o futuro representante do
Banco Industrial. Foi um acontecimento, em Coqueiros, a ida de “dona
Adelaide” para a Corte, um verdadeiro acontecimento, por que todos a
estimavam, todos queriam bem a ela, mesmo os estranhos, que só a conheciam
de vista.
Balbina chorou a noite inteira, sem deixar o cachimbo, que lhe pendia dos
beiços trêmulos, fungando e resmoneando. “- Só os
abandonaria, quando eles, nhô Varisto e nhá Delaida, dobrassem
a esquina…”
– Deixe estar, Balbina, deixe estar que hei de lhe mandar umas coisas do
Rio – consolava Adelaide. – Também você já não
é mulher para sair dos seus cômodos.
– E, nhá Delaida, é assim memo.
E a velha enxugava os olhos com a aba do casaco.
– E, nhá Delaida, é…
Um carro de aluguel esperava os viajantes, enquanto Evaristo, pingando suor,
concluía umas arrumações no fundo da maleta, e Adelaide,
assoando as lágrimas, em toilette de gorgorão, abanava-se na
sala de jantar.
– Pronto? – perguntou de repente o bacharel.
– Eu estou pronta… respondeu a esposa, devagar, numa voz comovida.
E, daí a pouco, a velha Balbina se atirava aos pés de Adelaide,
chorando, soluçando, agarrando-a espetaculosamente pelas pernas, numa
dolorosa cena de lágrimas e exclamações.
– Deus a leve, nhá Delaida… vá com Deus!… Não lhe
hei de querer mal, não, minha filha…
Adelaide – aquele coração terno de ave mansa – chorava também,
um choro mudo que pungia.
– Basta, basta! – interrompeu Evaristo, limpando a face magra. – Acabem com
isso…
No fundo, ele também estava comovido, e homem nervoso, não
podia ver outra pessoa chorar.
O boleeiro perguntou para dentro se era só a caixa de chapéu,
a maleta e a gaiola…
– Só – respondeu Evaristo.
Adelaide embarcou aos olhos curiosos da vizinhança, que tinha o ar
compungido, depois embarcou Evaristo, ouviu-se um – adeusinho! – e o carro
estremeceu.
Balbina, em pé no meio da rua, levava ainda uma vez a aba do casaco
aos olhos.
…Foi assim que o bacharel Evaristo de Holanda se desenterrou de Coqueiros
– “humilde e saudoso lugarejo de província” – como depois
mandava dizer, em carta aos amigos.
Figurava a Corte do Império uma terra legendária de aventuras
e de muito dinheiro, onde, com algum trabalho, qualquer homenzinho podia fazer
fortuna em poucos anos, ou, quando mais não fosse, galgar posições,
eminências cobiçadas, conquistar nome – celebrizar-se. Devorava
os jornais do Rio, na biblioteca; lia tudo quanto na grande capital se publicava
em prosa e verso; não era estranho ao movimento literário, aos
saltos-mortais da política, às artes; interessava-se, como republicano,
pela saúde do monarca e pelos escândalos mais ou menos ruidosos
da Rua do Ouvidor; enfim, o Rio de Janeiro era, a seus olhos estáticos
de provinciano, a quintessência da civilização – Paris
em ponto pequeno.
Formado em direito, casara aos vinte e oito anos com uma rapariga órfã,
chamada Adelaide – essa de coração meigo como o das pombas –
que o amava desde o primeiro ano do curso e que o vira certo domingo numa
festa de igreja. Adelaide era pobre, mas isso o não demovia de suas
boas intenções: queria exatamente uma moça pobre, que
o idolatrasse. Ele também nada possuía, mesmo nada: estudara
à custa de um parente do Rio Grande, que lhe estabelecera parca mesada
até que recebesse o título de bacharel. Antes, porém,
do último ano acadêmico, pôde arranjar (a gente sempre
se arranja…) um emprego, não muito rendoso, que conservou, a despeito
da inútil carta doutoral, renunciando, com extraordinária isenção,
à esmola que lhe vinha todos os meses do Rio Grande. – “Era tempo
de se libertar!”
Não consultou a ninguém sobre o casamento; um belo dia soube-se
que o Holanda, filho do finado juiz de direito, estava casado com uma moça
pobre, mas “bonitinha”…
E estava. Casou sem ruído, sem luxo, indo logo morar em Coqueiros
e acabando por achar aquilo muito fora da civilização, incompatível
com a sua natureza irrequieta de homem que não veio ao mundo para morrer
obscuro “num lugarejo humilde de província…”
Luís Furtado é que lhe metera na cabeça o Rio de Janeiro.
– “Por que não te mudas para o Rio? – escrevia ele. – Uma coisa
é a gente viver na província e outra coisa é respirar
numa atmosfera civilizada. Sei de mim que estou muito bem, muitíssimo
bem. Dou-me com o João Alfredo e com os principais personagens da política
fluminense. Minha mulher está gorda e não quer saber de outra
vida; diz que o Rio de Janeiro é um paraíso (expressão
dela) e que tudo o mais, que não for o Rio de Janeiro, no Brasil, é
caboclada, é selvageria. O Raul, meu filho mais velho, botei-o no colégio,
no Internato Meneses Vieira, por insuportável. A Julinha é que
está um encanto, uma delícia! Já fala, já diz
mamãe, papai, bala, totó… Não imaginas. É uma
graça ouví-la chamar – diabo, diabo, diabo! Enfim, meu Evaristo,
a nossa casa, em Botafogo, se não é um palácio, também
não é uma choupana… Vamos entrar na estação
lírica.”
E concluía instando para que o amigo fizesse um sacrifício,
abandonasse aquela vida de província, trocando a monotonia de Coqueiros
pela Rua do Ouvidor, pela civilização, por um chalezinho em
Botafogo.
Evaristo ficava triste, mordia a ponta do bigode, passava a mão na
cabeça, refletindo, parafusando, oscilando entre o presente e o futuro,
entre a quietação provinciana e o tumulto de uma cidade grande
cheia de movimento e de sensações. ‘Té que um dia, não
obstante os ingênuos receios de Adelaide, optou pelo Rio de Janeiro
e escreveu a Luís Furtado, autorizando-o a arranjar-lhe um emprego
decente, é claro.
Meses depois Luís Furtado comunicava-lhe a sua nomeação
para o Banco Industrial.
O Maranhão chegou ao Rio num domingo luminoso e calmo. Adelaide enjoara
horrivelmente, sem sair do camarote, sem gozar dos aspectos da viagem, numa
indolência estúpida, com a cabeça a doer, os olhos mortos
de fadiga, debaixo dos lençóis, muitíssimo pálida.
Oh, aquele maldito cheiro de azeite e de alcatrão, que vinha da proa,
dava-lhe tonteiras, embrulhava-lhe o estômago, causava-lhe arrepios
de náusea! Sempre meiga, porém, não se queixava, não
se revoltava contra o marido, que, em parte, era o culpado. Bem que estavam
tranqüilos na província!
Evaristo foi de uma solicitude incomparável, de um carinho extremoso.
Ela nunca o vira tão amável, se é que se podia ser mais
amável do que ele sempre fora. Todos a bordo notavam que “aquele
moço de paletó de alpaca amarela” trazia os criados numa
roda-viva, ocupava-os a todo instante, e era só abrindo e fechando
o camarote, subindo e descendo escadas, numa azáfama. E entravam bandejas
e saíam bandejas com iguarias especiais, com limonadas e frutas, e
Evaristo ainda achava que era pouco!
Os passageiros desconfiavam de tanta dedicação e piscavam-se
os olhos e sublinhavam risinhos de instintiva malícia. Não era
possível que fossem casados! Qual casados! Donde saíra aquele
exemplo de marido?
E falava-se baixinho no camarote n0 16 e no moço de paletó
amarelo. Um caixeiro-viajante, que só andava de binóculo a tiracolo
e sombrero de cortiça, afirmou que no camarote no 16 ia uma senhora
tísica; uma ocasião vira-a, de relance, no fundo do beliche,
muito magrinha, coitada, quase a morrer… Outro passageiro dizia que era
a mãe do “paletó amarelo”, uma velha doente de reumatismo.
Quando o Maranhão largou ferro, Adelaide estava pronta para desembarcar.
A primeira pessoa que Evaristo viu da tolda na lancha do Arsenal de Guerra,
foi o seu inestimável amigo Luís Furtado.
– Não é ele, ó Adelaide? – perguntou, indicando um sujeito
alto, de cartola e sobrecasaca, muito aprumado na lancha.
Adelaide conhecia-lhe o retrato.
– É ele, sim, creio que é ele…
Nesse instante Luís Furtado acenava para bordo com o lenço;
reconhecera o amigo; e de ambos os lados trocaram-se sinais de boas-vindas.
Horas depois rodava um carro para Botafogo, conduzindo Evaristo de Holanda,
a mulher e Luís Furtado.
A residência deste era uma excelente casa de dois andares, vistosa,
olhando para o Corcovado, nas imediações do cemitério
de S. João Batista. Morava no primeiro andar; o segundo era ocupado
por uma família estrangeira de vida misteriosa.
Furtado quis mostrar que inda ora amigo do seu amigo, hospedando-o em casa,
acudindo-lhe às primeiras necessidades. Ele, que se gabava tanto de
altas empresas no Rio de Janeiro, que dizia-se muitíssimo bem colocado”,
na praça e na sociedade fluminense, que falava no Lírico, em
personagens eminentes da política contemporânea, despiu a vaidade
que ostentara de longe para com Evaristo, e agora fazia-se pequeno, sem importância,
“humilde secretário do Banco Industrial”.
– Modéstia… modéstia – opunha Evaristo, batendo-lhe amigavelmente
na coxa.
Adelaide sorria.
Enquanto o carro rodava para Botafogo, iam os três conversando, abrindo-se,
dizendo novidades, perguntando pelos amigos. Os três, não, porque
Adelaide não falava, não dizia nada – com um ar ingênuo
e tímido.
Luís Furtado provocou-a:
– Vossa Excelência que acha, minha senhora: Evaristo fez bem ou mal
vindo ao Rio?
Ela sorriu ainda, mas respondeu:
– Nem bem, nem mal… – voltando-se para o marido e catando um fio de algodão
que brincava na roupa dele.
– Esta minha mulher é uma santa! – gracejou Evaristo.
– Acredito, pois não! acredito – confirmou o secretário. –
Na minha opinião, todas as mulheres são umas santas…
– Oh, isso não! – exclamou o outro. – Mais devagar… Mulheres conheço
eu de gênio infernal, capazes de vender… Judas!
– Qual! – duvidou Luís com uma ponta de ironia.
Certo é que ele achava qualquer coisa de puro no rosto sereno e meigo
de Adelaide, uns longes de pintura religiosa, uma translucidez mística
e evocadora, qualquer coisa, enfim, que não sabia determinar. Olhava-a
de banda, enquanto dava atenção a Evaristo, como se quisesse
gravar bem, na memória, aquele estranho tipo de brasileira.
O carro parou. Tinham chegado.
– É aqui – disse Luís.
E, rápido, adiantou-se para oferecer a mão a Adelaide.
A rua estava, como de costume, silenciosa, muito banhada de luz, na calma
do meio-dia.
– Papai! Papai!
Era o filho mais velho de Luís, o Raul, que anunciava, berrando, as
suas férias do domingo.
– Não é preciso gritar, meu filho, oh! – advertiu o secretário.
E para Evaristo: – Cá está o meu Raul. Hoje, como é domingo,
veio passar o dia em casa com a mãe
– Um homem! – exclamou Evaristo. – Que idade tem?
– Nove anos… Não é, meu filho?
– É, sim, papai; ainda vou fazer nove.
– Um homem!
Foram subindo a escada do sobrado.
– Aqui moro eu desde 882.
– Boa casa, muito boa, tem quintal?
– Um quintalão! Hás de ver.
Em cima, no primeiro andar, houve um rumor de passos precipitados, corridinhos
na ponta dos pés, e de vozes falando baixo.
– D. Sinhá está aí, papai, comunicou o Raul.
– Bem, bem…
Entraram para a sala de visitas.
– Nada de cerimônias – pediu Luís Furtado. – Vocês agora
é como se estivessem na própria casa. Vai chamar tua mãe,
Raul.
O pequeno saiu correndo.
Adelaide, contrafeita, risonha por delicadeza, mas, em verdade, bem fora
dos seus hábitos, ia notando intimamente, sem expressão de surpresa
no olhar, a perspectiva do início carioca. Enquanto esperava a mulher
de Furtado, abstraía-se na contemplação dos objetos que
a cercavam agora, cada um dos quais era uma novidade para ela. Imobilizava-se,
retraída, quase esmagada pelo aspecto luxuoso e confortável
da mobília, dos quadros, das tapeçarias que ornavam a sala do
secretário. E aquilo dava-lhe uma volúpia de bem-estar, uns
arrepios de gozo calmo e de independência honesta que estava um pouco
na massa do seu sangue.
… Foi interrompida nas suas reflexões por D. Branca, esposa de Furtado,
que vinha entrando acompanhada de outra senhora mais moça e do Raul.
– Oh!… – fez aquela, numa voz que não era bem de surpresa.
– Ainda te lembras da Branca, ó Evaristo?
– Como não? – disse o bacharel, erguendo-se para cumprimentar as duas
senhoras. – Lembro-me bem. Está um pouquinho mudada, está…
D. Branca dirigiu-se a Adelaide, e beijaram-se.
– Sua senhora inda é muito moça! – observou a esposa de Furtado
para Evaristo. E apresentando a companheira: – Esta é uma amiga nossa
– D. Sinhá, filha do desembargador Lousada…
Raul, de mãos pra trás no meio da sala, não perdia palavra,
remoendo ocultas intenções brejeiras.
Todos se sentaram, menos ele, e a conversa prolongou-se através dos
costumes, da moda e da política.
As duas senhoras estavam em toilette de verão, cada uma com o seu
leque fantasia. – D. Branca um pouco gorda, mas ainda frescalhona, parecendo
mais moça do que realmente era; a filha do desembargador muito derretida,
encobrindo, sob densa camada de pó de arroz, a pele salpicada de sinaizinhos
indeléveis, uma rosa Petrópolis no seio; costumava passar os
domingos em casa do “Sr. Furtado”, um dos bons amigos do velho Lousada.
Evaristo achou-a pedante e feia; Adelaide também, na sua mudez obstinada.
A propósito do Raul, que mereceu a atenção dos circunstantes,
veio a Julinha nos braços da ama. O pai adorava-a, e tomou-a logo,
num alvoroço, numa grande festa de beijos que ela – o diabrete! – repugnava,
esperneando.
– Como achas minha filha? – perguntou o secretário erguendo a menina
alto, nas mãos.
Evaristo, lisonjeiro, fazendo graça para a criança, achou-a
muito parecida com D. Branca, muitíssimo parecida! Os olhos, então,
eram os de D. Branca!
Adelaide, ao contrário, achou que ela “tinha ares do Sr. Furtado”.
O secretário exultou, porque, na verdade, Julinha era uma criança
linda, muito rosada, muito loura, de olhos vivos e angelicais.
– Quem é aquele homem, minha filha?
A pequena encarou Evaristo, sem responder.
– Quem é? – tornou Furtado. – Olhe bem para ele… quem é?
Julinha amuou, desconfiada, e abriu a chorar.
– Ta, ta, ta… não foi nada, não foi nada! É o Evaristo,
minha filha – o Evaristo!
– Menina! – ralhou D. Branca.
Mas a pequerrucha debatia-se com os pés e com as mãos, numa
cólera rubra, num desespero: – Diabo! diabo! diabo!
Todos riram, todos gostaram da assombrosa precocidade!
– Saiu à mãe – explicou Furtado, agora com um ar bonachão
de pai que tudo perdoa aos filhos.
D. Branca não protestou, e a menina foi conduzida para dentro. Falou-se
depois nas acomodações da casa. Evaristo e a mulher iam ocupar
um quarto nos fundos, defronte da sala de jantar, vizinho à área:
um bom quarto espaçoso, forrado e com bico de gás.
– Tanto incômodo! – murmurou Evaristo.
– Qual incômodo!
D. Branca entrou em familiaridades com Adelaide, franqueou-lhe a toilette,
mostrou-lhe o álbum de retratos, o vestido de seda com que fora ao
último baile no Cassino, uma jóia que a princesa lhe dera no
dia de seus anos…
– A princesa?…
Sim, eram muito amigas, o próprio imperador podia-se dizer que era
amigo do Furtado; até lhe prometera uma comissão à Europa.
Sim, a princesa, por que não? A princesa dava-se com muitas famílias
no Rio de Janeiro, não tinha orgulho, apertava a mão a todos…
Boa senhora! A mulher do desembargador Lousada era dama do Paço, tinha
intimidade com a imperatriz; por intermédio dela é que D. Branca
se relacionara com a princesa.
D. Sinhá confirmou: – “A mamãe era dama do Paço…”
Entraram ganhadores com a bagagem, que foi recolhida ao novo aposento de Evaristo.
Raul tomou conta da gaiola dos pássaros, onde refulgiam asas de corrupião
e de xexéu. Evaristo disse logo que o corrupião era do Furtado:
podia garantir a espécie; o xexéu, ele trazia para o diretor
do Banco.
E nesse andar escoou o domingo, com grande tristeza para o Raul, que no dia
seguinte voltava ao colégio, pensando no corrupião.
Os hóspedes recolheram fatigados da viagem, morrinhentos de calor
e de cansaço.
Adelaide, principalmente, queixava-se de uma dor na cabeça e de “confusão
nas idéias”.
Evaristo, para a consolar, disse que também estava com a cabeça
a arder. Trataram de se agasalhar na cama fresca e cheirosa a sabão.
Da janela do quarto via-se luz no segundo andar, e não poucas vezes
ecoava embaixo, no fundo escuro da área, o som de uma cusparada.
– Então, Adelaide, que achas do povinho?
– Que povinho?
– Da Branca e do Furtado… Assim… Não se pode adiantar juízo.
– E a tal D. Sinhá? Oh, mulher feia!
– Credo! – murmurou Adelaide. – Feia e pedante.
– É verdade: feia e pedante.
– Fala baixo…
– Viste, ao jantar, quando ela abria a boca?
– A mãe é dama do Paço.
– Que estás dizendo!
– É. Dão-se com a família imperial.
Adelaide respondia com os olhos fechados, morta de sono, às perguntas
do marido. Ele é que não tinha sono, encantado com a sua nova
posição, ruminando programas de vida, conjeturando sobre o futuro,
sobre o dia de amanhã.
E corria os olhos nos móveis do quarto, no lavatório de ferro,
no saco de roupa, no cabide, nos menores objetos, como quem duvida de uma
situação nova.
– Era, então, verdade que estava no “grande” Rio de Janeiro!
O que é a gente se decidir! o que é ter-se coragem!
Meio acordado, meio dormindo, viu a casinha de Coqueiros, na província,
entre árvores, a Balbina, caída aos pés de Adelaide,
à hora do embarque…, o Maranhão, onde ia um rapazinho, estudante,
que tocava flauta, e o Furtado acenando para bordo…
Capítulo II
D. BRANCA era mulher que, ao simpatizar com uma pessoa, não admitia
restrições, e Adelaide, fosse pelos seus bonitos olhos, fosse
pelos modos – que ninguém os tinha mais acentuadamente provincianos
– caiu-lhe nas graças, merecendo um lugarzinho no coração
dela.
A esposa de Evaristo ficou sendo, em pouco, uma das melhores amigas da esposa
de Furtado, com extraordinária satisfação para este,
que não ocultava a simpatia que lhe inspirava Adelaide.
Naquela casa de Botafogo viviam todos como se constituíssem uma só
família, como se Evaristo fosse irmão de Furtado e D. Branca
irmã de Adelaide, intimamente unidos, querendo um o que o outro desejava,
não se contrariando em coisa alguma. De manhã iam os dois homens
para o Banco, à mesma hora, depois do almoço, e ficavam as duas
na bela e encantadora harmonia de irmãs que se prezam, lendo, costurando,
trocando confidências na sala de jantar, enquanto não chegavam
os maridos – o Raul no colégio e a pequena com a ama.
Evaristo, por seu lado, ia conhecendo o Rio de Janeiro, inclusive a famosa
Rua do Ouvidor, que ele pitorescamente alcunhava de “beco da perdição”.
Não gostava da Rua do Ouvidor; aquele zunzum de abelhas que desciam
e subiam num movimento contínuo, aquela vozeria estéril dos
cafés e das portas de loja, punham-no de mau humor, enchiam-lhe os
ouvidos, irritavam-no, desequilibravam-lhe o sistema nervoso, ao mesmo tempo
que faziam-lhe confusão no cérebro habituado à vida calma
e refletida de homem honesto. – “Evidentemente nascera provinciano e
havia de morrer provinciano” – dizia.
– Mas é um engano – opunha Furtado – é mesmo uma grande tolice!
O homem, para ser homem às direitas, carece de lutar, de sofrer as
pequeninas misérias sociais… A natureza humana quer movimento, quer
emoções… quer vida, enfim. Todos nós somos uns aventureiros
que andamos à cata de filões de ouro…
Evaristo argumentava, porém, que não dizia o contrário,
que tudo aquilo era uma grande verdade, mas que ninguém podia ir de
encontro à natureza. Era o primeiro a reconhecer os benefícios
e as incalculáveis belezas da civilização; mas também
não havia negar que a título de civilização, emitia-se
muita moeda falsa, muito princípio errado – muita bandalheira!
E ficavam-se a olhar um para o outro.
O secretário do Banco Industrial conhecia o Rio de Janeiro de um extremo
ao outro e gozava mesmo de muito boas relações na sociedade
fluminense, não tanto quanto mandara dizer em carta a Evaristo, mas
gozava. Além do desembargador Lousada, seu vizinho tinha outros amigos
de alta posição na Corte, e era verdade que a princesa surpreendera
D. Branca com uma jóia no seu trigésimo aniversário.
A herdeira do trono ficara estimando a esposa do secretário desde uma
célebre noite no Cassino Fluminense. Essas relações,
porém, não excediam às praxes aristocráticas,
guardando-se, de lado a lado, o máximo respeito, como convinha à
fidalguia imperial da ilustre senhora.
Também era verdade que Luís Furtado uma vez – primeira e última
– conferenciara com o imperador no Paço e este lhe prometera rendosa
comissão à Europa; mas decorriam semanas e não se realizava
a imperial promessa.
Entre políticos, banqueiros e titulares, havia sempre um que era amigo
de Luís: o deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, moço muito
bem preparado, conservador até à raiz do cabelo, baixote na
estatura e no falar; o visconde de Santa Quitéria, diretor do Banco
Luso-Brasileiro, cuja fortuna se avaliava em muitos contos de réis
fora à casa de residência – vistoso palacete que só se
abria nas grandes festas; o comendador Pinto, outra fortuna considerável,
português, que se fizera a custo de muito trabalho e que encanecera
no Brasil…, e outros personagens de elevada hierarquia.
Quanto a jornalistas e poetas, conhecia-os quase todos; um por um, desde
o redator-chefe do Comércio do Rio (“O Times brasileiro”,
na opinião de Furtado), até o Valdevino Manhães, diretor
da Revista Literária e autor de muitos livros, de muitíssimas
obras, entre as quais o poema herói-cômico Juca Pirão,
paródia ao “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias.
Evaristo já os conhecia também – de longe uns, outros mais
familiarmente. O Valdevino Manhães, ou o “Dr. Condicional”,
estava no número destes; fora-lhe apresentado uma noite, no jardim
do Teatro Sant’Ana. Baixo, pequenino, metidinho a critico, um bigodinho quase
imperceptível, sempre de lunetas – era conhecido por Dr. Condicional,
porque nunca dizia as coisas em tom afirmativo: tinha sempre um mas…, um
talvez…, um se…, quando criticava obras alheias. Ninguém para ele
era escritor feito, nem mesmo os consagrados: todos haviam de ser grandes
poetas, grandes romancistas, grandes homens…, se continuassem a estudar.
Outra mania de Valdevino Manhães era falar na sua viagem à Europa.
– Oh, em Lisboa merecera os maiores elogios, as mais belas referências
de quanto jornalista sabe terçar a pena (terçar a pena era uma
de suas frases prediletas). O poeta João de Deus…
E ninguém o interrompia, ninguém dizia palavra enquanto ele
comentava João de Deus e o Chiado.
O novo escriturário do Banco Industrial não confiava muito
no Valdevino. – “Se todos os literatos do Rio de Janeiro fossem como
o autor do Juca Pirão, a literatura brasileira tinha de pedir licença
à Câmara para andar de quatro pés” – dizia ele a
Furtado.
E Furtado, surpreendido:
– Pois olha: é o critico da moda hoje, no Rio de Janeiro.
– Prefiro o visconde de Santa Quitéria ou mesmo o comendador Pinto,
que ao menos têm juízo para ganhar dinheiro…
Foram andando.
Uma tarde conversavam os dois sobre a vida na Corte, sentados à janela,
quando o hóspede do secretário lembrou-lhe que era tempo de
procurar casa e de instalar-se definitivamente com Adelaide: – uma casinha
barata, um cômodo, qualquer aposento, inda que fosse nos “subterrâneos
da Cidade Nova”.
– Qual instalar-te! Daqui não sairás enquanto formos amigos
– respondeu Furtado. – Minha mulher gostou muito de D. Adelaide – vivem muito
bem, dão-se perfeitamente… Podemos chegar a um acordo nas despesas…
– Não, isso não! Vocês têm sido muito incomodados…
isso não!
– História, homem! Incomodados têm sido vocês naquele
quartinho… Mas a Branca falou-me que os do segundo andar estão procurando
casa… Uma bela aquisição para vocês o segundo andar.
Evaristo levou o dedo à boca, refletindo, e apertando os lábios:
– É… assim bem…
– Pois então? Esperem um pouco mais… não há vexame…
D. Branca aproximou-se, com o braço na cintura de Adelaide.
– Ó Branca – disse Furtado -, não é exato que os estrangeiros
de cima vão se mudar?
– É sim. Andam em procura de casa. Por quê?
– O Evaristo, que lembrou-se agora de bater a linda plumagem, inda que fosse,
diz ele – para os subterrâneos da Cidade Nova!
– Qual, Sr. Evaristo, qual! Adelaide está muito bem. A Cidade Nova
é um lugar infecto, um horror! Esperem pelo segundo andar.
– E o aluguel? – perguntou, interessado, o rapaz.
– Oitenta mil-réis, filho! oitenta mil-réis… não é
dinheiro.
– Não é dinheiro, para os capitalistas…
– Oitenta mil-réis, nunca foi dinheiro.
– Eu, por mim, não me mudava… – ousou discretamente Adelaide.
Evaristo arregalou os olhos:
– Oh! então já vais gostando do Rio!
– Não desgosto…
– O Sr. Evaristo quer conversar – disse, rindo, a esposa de Furtado. – Vamos
a tocar um pouquinho de piano…
A tarde estava calma. Crianças brincavam na rua, enchendo-a de alvoroço,
em toilettes de verão. O desembargador Lousada passeava no jardim,
com o seu indefectível gorro de seda bordado a retrós, enquanto
a mulher e a filha, sentadas à porta, abanavam-se de leque. Dezembro
morria numa explosão de sol. A família imperial estava toda
em Petrópolis, gozando as delícias de um clima pregoadamente
aristocrático, os que não podiam sustentar o luxo de Petrópolis,
a vida fidalga de Petrópolis, os hotéis de Petrópolis,
corriam para o ar livre da rua, em trajos brancos, ou para a janela das casas,
num alvoroço de formigueiro incendiado.
À parte o clima, na estação outonal, a vida em Botafogo
tinha qualquer coisa da vida em Petrópolis, era como um prolongamento
do high-life, cuja sede firmara-se na antiga colônia alemã. Falar
na Cidade Nova a um morador de Botafogo, era o mesmo que cair no ridículo
e no desprezo de uma sociedade que não admitia plebeismos sentimentais,
nem alusões de mau gosto… Cidade Nova, isto é Saco do Alferes,
Gamboa, preto-mina, lenço no pescoço, violão, maxixe…
e outras belezas de igual jaez. Tudo isso era contra as boas normas de um
povo civilizado e muito principalmente contra os brios de um homem que vive
na mesma atmosfera de Sua Majestade o Imperador! Botafogo odiava a Cidade
Nova como quem repugna um meio asqueroso.
Os aristocratas que não tinham podido acompanhar o monarca a Petrópolis
bufavam de calor, e, à porta dos jardins ou à janela, iam refrescar
o sangue, os pulmões, como o desembargador Lousada. Ao anoitecer, recolhiam
à frescura do linho, pensando na volta das andorinhas imperiais.
D. Branca executou ao piano uma valsa de Strauss, para Adelaide ouvir. Tocava
bem, na opinião de vários professores ilustres; já se
exibira em concertos de primeira ordem.
Quando as tardes eram demasiado quentes, iam os dois casais arejar à
praia, onde passeavam famílias numa liberdade encantadora, trajando
garridamente suas roupas de verão, sem luxo, sem cerimônia, parando
à sombra das árvores, em grupos, vendo deslizar em pequeninas
embarcações de recreio na água cintilante. Que bom! Adelaide
examinava tudo com essa curiosidade infantil dos recém-chegados, comparava
as toilettes, as fisionomias, lendo histórias mundanas no sorriso dos
rapazes e na franqueza das raparigas, que se entrecruzavam piscando os olhos
à vista dos homens sérios. Como tudo aquilo tinha um encanto
particular! Como tudo era novo para ela! Sentia nalma um remoçar impetuoso,
uma vontade de possuir jóias com que se enfeitar, com que realçar
a sua beleza, e toilettes de luxo, à última moda, e essências
caras, embriagantes, e tudo o mais que seus olhos viam, desde que ela pusera
os pés no Rio de Janeiro.
D. Branca enchera-lhe os ouvidos de tanta coisa, meu Deus! de tanta história!
– Que no Rio de Janeiro as mulheres timbravam em se apresentar cada qual mais
bem vestida; que Botafogo era o bairro da aristocracia e do bom gosto; que
o luxo nada tinha com a honestidade de uma senhora, desde que ela se portasse
bem…, ao menos aparentemente; que, enquanto se era moça, devia-se
gozar, levar a vida rindo, passeando, nos bailes, nos concertos, nos teatros;
que os homens eram muito egoístas; enfim, Senhora D. Branca despertara
nela um sentimento novo, que lhe abafava toda a nostalgia da província
e deixava-a oscilando, remoendo, entre a vida simples e calma de burguesinha
honesta e a vida tumultuosa de mulher elegante e adorada nos círculos
aristocráticos de uma cidade como o Rio de Janeiro.
Enquanto Evaristo aborrecia-se – ele, que falava tanto da província:
“porque a província era o statu quo, a imobilidade, o abandono”
– ela deliciava-se agora, em plena Corte, em pleno Botafogo, cheia de vida
e de ambições, a exemplo de D. Branca e de outras senhoras,
que, sem desprezar os maridos, gozavam quanto podiam, vestindo-se bem, trajando
com elegância, ostentando beleza e mocidade aonde quer que se apresentassem.
Nos primeiros dias estranhara o Rio, achara tudo falso, tudo superficial,
tudo para enganar os olhos. Agora, não: tudo impunha-se ao seu espírito
como um dever, como uma necessidade lógica e humana.
E sempre que ia à praia, sempre que ia a um teatro, a um passeio,
voltava triste, desalentada, com uma dor no coração… Não
poder “como as outras” ostentar o frescor dos seus vinte anos, aparecendo
nas rodas elegantes, de braço com o Evaristo – ele todo nobreza, todo
modernismo, aristocraticamente enluvado; ela chique, numa pompa de rainha,
um sorriso à flor dos lábios – os dois em carruagem aberta ou
num camarote do Lírico! Oh, não poder gozar, como as outras
mulheres que ela via, deslumbrada e abatida, da sua pobreza honesta, da sua
triste posição de mulherzinha dócil, de esposa exemplar!
Aquilo ia calando em seu espírito, onde um princípio de orgulho
feminino brotava ocultamente.
Evaristo ganhava pouco ainda, o essencial para se ir mantendo com alguma
independência, sem dever a ninguém. Era inimigo de contrair dívidas;
um alfinete, que comprasse, havia de ser pago logo, na ocasião mesma
do negócio; por forma que o dinheiro do Banco, o ordenado, ia-se num
abrir e fechar de olhos, para a mão do homem da venda e para o bolso
do alfaiate. Ele próprio conservava a roupa que trouxera da província;
não tinha luxo, nem jóias de valor. Afinal não passava
– como dizia – de um pobretão mísero, empregado subalterno.
D. Branca podia luxar, aparecer – não era admiração;
o Luís ganhava tanto como oitocentos mil-réis, fora a renda
das apólices que possuía no Tesouro e de umas açõezinhas
do Banco Industrial. Onde, pois, a admiração? Nenhuma. Feria-lhe
também o amor-próprio de marido extremoso ver Adelaide, a sua
Adelaide, com os mesmos vestidos, com o mesmo chapéu, sem um brilhante,
uma jóia de ouro, envergonhada no meio das outras. – Mas… que se
havia de fazer? Por isso é que desejava ter uma casinha na Cidade Nova,
“um albergue”, de cinqüenta mil-réis, longe desse rumor
de etiquetas e ostentações. Um dia pra diante, quando pudesse
– muito bem! alugava um chalé em Botafogo e Adelaide não tinha
de que baixar a cabeça às exigências do high-life. Por
enquanto a palavra de ordem era – economia, muita economia!
De resto, o procedimento de Adelaide para com o esposo não mudara.
Evaristo continuava sendo o mesmo Evaristo, bom e leal, por vezes de uma ternura
lânguida, quase pueril, achando muita razão em tudo quanto ela
dizia, tratando-se como noivos.
D. Branca estranhava que eles ainda não tivessem filho, ao menos um
morgado para dar que fazer à mamãe…
E aconselhava banhos de mar no Flamengo: – por que não experimentavam
os banhos de mar no Flamengo? Um filhinho era indispensável a um casal…
Evaristo ria e jurava, rindo, que no mês seguinte iam começar
os banhos ali mesmo na praia de Botafogo.
A propósito de filhos, a mulher do secretário anunciou o batizado
da Julínha no primeiro domingo de janeiro. Ia fazer uma festa sem cerimônia,
entre pessoas de intimidade.
Evaristo recebeu a notícia com um – oh!… de surpresa. – Muito bem!
muito bem! Era preciso batizar a menina… Ele, se tivesse filhos, batizava-os
ao nascer.
E com ironia:
– Temos, então, a princesa?
– Como, Sr. Evaristo?
– Digo: a princesa há de comparecer à festa.
– Qual o quê! Pensa o senhor que a princesa anda se exibindo assim?
– Pensei.
– Vai ser a madrinha de minha filha, por procuração; isso bem…
E Evaristo, sempre irônico:
– O imperador é o padrinho…
– Não senhor, não senhor… O padrinho é o Lousada,
o velho Lousada. O imperador já é padrinho do Raul.
– Onde estamos nós metidos, Adelaide! exclamou o bacharel, arregalando
os olhos. Tudo aqui é principesco, minha senhora!
D. Branca compreendeu o debique, mas atalhou risonha:
– Tudo aqui não é principesco, não senhor! Não
queira fazer pouco…
– Eu, fazer pouco? Oh, não se lembre de tal coisa! Principesco é
uma maneira de dizer.
– Ah! o senhor é republicano?
– Republicano não: democrata.
– Pois está muito bem arranjado com a sua democracia!
Furtado, que estava lendo o Comércio do Rio, saltou:
– Quem é democrata – o Evaristo?
– Eu, sim…
– Democrata enquanto não conheceres bem o Rio de Janeiro…
– Por quê?
– Ora, por quê! Porque o Rio de Janeiro em globo é monarquista
e quem diz monarquista diz aristocrata.
– Não é razão. Se o Rio de Janeiro em globo (quero dizer
o município neutro…) é monarquista, eu posso muito bem sair
um republicano às direitas.
Furtado abriu numa gargalhada estridente.
– Aonde vens pregar essas teorias, meu caro? Na Corte do Império,
e o que é mais, em Botafogo! Ilusões da academia, rapaz, ilusões
de estudante de retórica!
– Não senhor, que o partido republicano está ganhando terreno
aqui mesmo, na Corte, às barbas d’El-Rei! Fala-se na ida do velho à
Europa; o velho está doido, já não pode governar, e o
resultado é que…
– É que estás a dizer tolices… A monarquia está guardada
por sentinelas da força do barão de Cotegipe, do visconde de
Ouro Preto, do João Alfredo e de outros… Cada um desses homens é
um obstáculo contra qualquer tentativa de assalto às instituições.
Chegou a vez do bacharel rir, mas rir com gosto, dando pulinhos na cadeira.
– O Cotegipe! (e ria). O Ouro Preto! (tornava a rir). O João Alfredo!
No momento psicológico voam todos, como aves de arribação,
para Petrópolis! Desaparecem como por encanto, somem-se na noite do
medo…
– É o que pensas. A opinião é deles, o povo não
permitirá que eles sejam desacatados.
– O povo! – exclamou Evaristo com voz de trovão. – A que chamas tu
povo?
– À população do Rio de Janeiro, à população
do Brasil – a treze milhões de almas que adoram o imperador!
– O povo brasileiro não se envolve nisso, meu Furtado; se fôssemos
esperar pelo povo, estávamos bem arranjados.
– E então?
– E então, é que a força armada.
Basta de política, basta de política, Sr. Evaristo. Ó
Luís, por favor, continua a ler teu jornal – interveio D. Branca. –
É favor!
Adelaide correu a tapar a boca do marido com a mão espalmada: – “Não
senhor, nada de política!”
E continuou-se a falar no batizado da pequena, sem alusões à
princesa, nem ao monarca. A esposa do secretário disse que tinha mandado
fazer um vestido para estrear nesse dia – uma toilette simples, de um tecido
novo, muito usado em Paris, que A Notre Dame recebera…
Adelaide mordiscou a pelezinha do beiço com tristeza. – Um vestido
novo, chegado de Paris!… E ela como se havia de apresentar no dia da festa?
Oh, com o seu vestido de provinciana, de mangas compridas e babados! Que vergonha,
Santo Deus! O melhor vestido que possuía era o de gorgorão,
com que embarcara…, mas estava fora da moda e da etiqueta. Antes nunca tivesse
vindo ao Rio de Janeiro…
Quase não dormiu, essa noite, pensando no batizado. À hora
de recolher, Evaristo achou-a triste, com um arzinho de choro, descobrindo
mesmo uma lágrima vagarosa na face dela. Mas não disse nada.
Adelaide continuou a se despir à meia-luz do gás, e rolou na
cama silenciosamente, de rosto para a parede.
– Ó Adelaide!… – chamou Evaristo, já desconfiado.
A mulher não respondeu.
Adelaide! tornou ele, aproximando-se.
– Que é?… choramingou a rapariga, encolhendo-se.
– Olha…
Ela não se moveu.
– Olha!
Mesma posição, mesmo silêncio.
– Olha cá uma coisa.
– Que é?
– Estás chorando?
– Não…
Mas pelo tom da voz, conheceu bem que alguma coisa havia no coração
de Adelaide.
– Como não, se te ouvi soluçar?
– Eu?!…
– Exatamente. Queres ocultar-me algum desgosto?
E devagarinho, como para não acordar uma criança, o bacharel
foi-se inclinando no leito.
– Vamos: é a primeira vez que choras em minha companhia, depois que
estamos casados.
– Nada… lembrei-me da Balbina.
Da Balbina? Homessa!
Falavam muito em segredo, cochichando, ela de costas para ele. A casa estava
toda no escuro. Furtado e a mulher não davam sinal de vida.
– Que tens tu com a Balbina? – tornou Evaristo. – Não é má
a lembrança! Como se a Balbina fosse tua mãe!
– Mas lembrei-me.
– Se me não dissesses, eu não acreditaria, palavra de honra!
E admirado:
– Chorar com saudades da Balbina! É curioso, é singular!
Os inquilinos do segundo andar apagaram a luz e um relógio bateu meia-noite.
Involuntariamente, por causa de Adelaide, Evaristo adormeceu pensando na
Balbina, a negra velha de Coqueiros, sem atinar com a significação
da lágrima que vira na face da esposa.
Certo é que a amiga de D. Branca recolhera com o pensamento no batizado
da Julinha. Quis desabafar, dizer tudo a Evaristo, suplicar-lhe que trouxesse
um vestido novo para a festa de D. Branca, rogar-lhe, pelo amor de Deus, que
fizesse um pequeno sacrifício… Mas não teve ânimo: podia
parecer uma exigência, uma falta de atenção, e ela nunca
abrira a boca para pedir a Evaristo um grampo, quanto mais um corte de fazenda!
Não era por vaidade, nem por orgulho, nem por capricho – é que
tinha obrigação de se apresentar à aristocracia em trajos
de mulher educada e não com um pobre vestido fora da moda, sem elegância,
mal cosido, mal ajustado ao corpo – horrível!
No outro dia Evaristo, inda na cama, interpelou-a sobre o acidente da véspera,
gracejando, rindo, na melhor boa-fé, longe de adivinhar o que se passava
no espírito de Adelaide. – Chorar pela Balbina – ela! Que extraordinário
coração, que alma cândida!
– Chora-se até pelos animais, por um gatinho, por um cachorro, por
um pássaro que a gente criou!…
E Adelaide, ocultando ingenuamente o desgosto que a pungia, lembrou ao marido
o fato de ter ele chorado a morte de uma patativa, antes de vir para o Rio
de Janeiro.
O bacharel não disse que não, mas afirmou que o caso era diverso
e que entre a patativa e a Balbina preferia a patativa.
E a lágrima da jovem senhora caiu no esquecimento como todas as coisas
deste mundo.
Ela, porém, via se aproximar o domingo do batizado, cheio de tristeza,
maldizendo a nova situação em que a colocara o destino. Positivamente
Evaristo não enxergava além das grosseiras necessidades da vida
doméstica e não via que uma dona-de-casa no Rio de Janeiro tinha
a obrigação de ser, ao mesmo tempo, uma dama elegante, uma senhora
distinta, com todos os requisitos para figurar num sarau pomposo ou em qualquer
parte aonde houvesse aristocracia e luxo… Como é que ela, vivendo
na casa de um homem fino, de uni capitalista, vivendo entre pessoas de “tratamento”
em Botafogo, ia-se apresentar aos olhos de D. Branca, aos olhos de D. Sinhá
e da mulher do desembargador, aos olhos de uma gente fidalga, na sua humilde
toilette de provinciana pobre? Todo o mundo havia de reparar e dizer mal.
N0 entanto, com qualquer dinheirinho comprava-se um vestido sério,
novo,que ao menos aparentasse… A própria D. Branca lhe dera a perceber
que se obtinha, no Rio, muita coisa de alto valor por “preços
baratíssimos…”
Oh, aquela festa, domingo, tirava-lhe o sono! Que belo, se caísse
uma grande chuva, um aguaceiro medonho, de alagar a cidade inteira, de deixar
tudo quanto fosse rua na lama! Quem dera! Ficava transferido o batizado ou
ninguém ia à casa de D. Branca, e ela, então, ela, Adelaide,
não tinha de se envergonhar, de baixar a cabeça a estranhos.
Mas – nem de propósito! – fazia um tempo claro, azul, luminoso, adorável,
como os belos dias de primavera, sem o menor sintoma de variação
barométrica, sem nuvens na limpidez cristalina das montanhas.
E a jovem esposa de Evaristo perdia-se em cogitações de toda
a ordem, moralmente abatida no seu orgulho, na sua vaidade latente de mulher
nova que se vê roubada nos seus direitos à partilha dos gozos.
Lembrava-se, por uma natural associação de idéias, de
que D. Branca lhe dissera certa vez: “O homem é egoísta
e finge não compreender as necessidades da mulher, quando se trata
de um vestido novo ou de uma despesa extraordinária. A mulher é
obrigada a pedir, a reclamar, a dizer o que precisa, o que lhe falta.”
Ela pedir a Evaristo? Pedir o quê? Uma toilette para o batizado da pequena?
E a roupa que trouxera do Norte, um enxoval quase completo, inda que fora
da moda? Que havia de dizer? Que razões apresentar a ele, que sempre
a conhecera pobre e refratária à etiqueta e ao luxo? Não,
não tinha coragem, nem queria, com uma exigência descabida, molestar
o grande coração de Evaristo.
Esperou, resignada, abafando impulsos d’alma.
Em casa de Luís Furtado, naqueles dias mais próximos à
festa, era este o assunto obrigado de todas as conversas. D. Branca, principalmente,
cuja loquacidade contrastava com a moderação dos inquilinos
do segundo andar – não fazia outra coisa senão remexer nas gavetas,
polir os móveis, expor os cristais, num açodamento, numa impaciência
que lhe dava ares de inseto doido. Queria tudo nos seus lugares, para quando
chegasse o domingo. Mandou afinar o piano, lavar a casa de um extremo ao outro,
inclusive o quarto dos hóspedes e o escritório de Furtado, no
rés-do-chão, substituir as cortinas da sala de visitas; enfim,
toda a casa ficou pronta com quatro dias de antecedência para receber
o desembargador Lousada e alguns convidados “sem cerimônia”.
Era pouca gente: o visconde de Santa Quitéria, o Dr. Condicional, dois
amigos quase íntimos do secretário, o Loiola, tesoureiro do
Banco, a viúva Tourinho, muito boa senhora, também rica e prendada,
o Xavier, do Jornal de Notícias e um ou outro rapaz, de intimidade.
Evaristo caiu das nuvens.
– Minha mulher – disse ele à esposa – temos grosso forrobodól
Esta gente chama festa sem cerimônia a uma reunião de altos personagens
que se divertem aristocraticamente. Com que vestido te vás apresentar?
– Eu?… O melhorzinho é o de casimira cinzenta, não falando
no de gorgorão…
– De casimira?.
Evaristo levou a mão ao queixo e fitou os olhos na mulher em atitude
contemplativa.
– Que dizes?
– Não sei… – respondeu Adelaide com indiferença.
O bacharel agarrou-se aos bigodes, repuxando-os com a língua, mordendo-os,
como se empacasse na resolução dalgum problema de direito.
– Aonde nos vimos meter! – dizia, passeando no quarto. – Aonde nos vimos
meter!
– É o teu grandioso e espetaculoso Rio de Janeiro!
Evaristo sorriu da ironia, e continuando a passear:
– Há um remédio…
– Qual?
– Fazer um negócio com o Banco…
– Negócio?
– Sim, levantar um pequeno empréstimo.
Noutras quaisquer circunstâncias, Adelaide o aconselharia que não,
como já o fizera uma vez na província; mas D. Branca acenava-lhe
de longe, no seu espírito, “que não desse uma nota, que
não fosse tola.”
– Que dizes? – repetiu o bacharel.
– Não sei…
– Pois eu sei: vou falar ao Furtado. Achei a incógnita da equação.
Isto de dever, todos devem mais ou menos; a questão é pagar.
Com duzentos mil-réis, sim, com duzentos mil-réis, arranjava-se
tudo: uma toilette para Adelaide, uma calça de casimira, e… e charutos….
O vestido, comprava-se feito, numa modista.
Entraram em acordo, ele e a mulher, sobre as despesas, fizeram cálculos
à ponta de lápis, rabiscaram papel até quase meia-noite.
Adelaide já agora também pedia a Deus que não chovesse.
Era uma ótima ocasião para se apresentar às amigas de
D. Branca, ficar conhecendo a viúva Tourinho, a esposa do desembargador
e outras senhoras do grand monde fluminense.
Evaristo falou, com efeito, ao secretário, no próprio Banco,
acerca do empréstimo, alegando razões de ordem doméstica.
– Era mais um grande favor ao “amigo Furtado…
– Queres um conselho de amigo? pergunta Luís.
– Não contraias empréstimo ao Banco. O Banco foi criado para
altas transações financeiras, e… e o diretor é um homem…
um homem…
– … um homem de têmpera antiga, velho e rabugento. Espera aí
um bocado…
O secretário levantou-se, abriu um cofre de ferro, que estava no gabinete
de trabalho, e contou duzentos mil-réis.
– Toma lá, sou eu quem tos empresta sem juros e sem prazo. Restituirás
no fim do mês… daqui a um ano, daqui a um século…
– Isso não! interrompeu o marido de Adelaide. – Vim pedir ao Banco
e não quero que te sacrifiques por minha causa. Isso não!
– Toma lá, homem, não sejas menino. Eu que tos empresto, é
que tenho absoluta confiança em ti – que diabo!
– Qual confiança! Isso já não é ser amigo, é
ser pai!
– Pois quero ser teu pai – dá-me essa honra.
Riram e o bacharel guardou as notas na algibeira da calça, com um
movimento discreto e reconhecido. – Ora, muito obrigado, Sr. Luís,
muito obrigado!
– Cavalheiros somos, na carreira andamos… – disse enfaticamente, com um
sorriso, o fidalgo de Botafogo.
Às quatro horas iam os dois no mesmo bonde a caminho de casa.
O bacharel entrou radiante, com um estranho fulgor na pupila. Adelaide acompanhou-o
ao quarto.
– Sabes o que é isto? – foi dizendo com a mão espalmada no
bolso.
E, antes que Adelaide respondesse, tirou o dinheiro, erguendo a mão
em triunfo.
– Quanto? – perguntou a rapariga com aquele risinho ingênuo que lhe
era muito natural.
– Vinte!
– Vinte? apenas vinte?
– … notas de dez!
– Ah!…
Evaristo, então, narrou, palavra por palavra, o diálogo entre
ele e Furtado, no Banco, e não ocultou o seu entusiasmo pela “generosidade”
do amigo, que ainda uma vez se revelara “digno e correto!”
– Belo homem, o Luís!
Eu também acho… – murmurou Adelaide.
– Olhe que me colocou, deu-me hospedagem, trata-nos à vela de libra,
e agora… duzentos mil-réis, para pagar amanhã, no fim do ano,
daqui a um século!
Adelaide aprovou com a cabeça o entusiasmo do marido.
E na mesma tarde, ao anoitecer, foram ambos dar um giro à Rua do Ouvidor.
Capítulo III
Luís Furtado era homem de meia-idade, alto, robustez física
invejável, pele rósea e conservada, bigode negro, tratado a
brilhantina, olhos negros e comunicativos, um pouco lânguidos, talvez
por afetação, talvez por temperamento.
Belo, verdadeiramente belo, ninguém o diria sem risco de profanar
o ideal antigo da beleza máscula; no entanto, podia dizer-se dele que
era, na acepção moderníssima, um bonito homem. A convivência
na Corte dera-lhe tintas de nobreza ao rosto largo de provinciano setentrional.
O Rio de Janeiro, com o seu maravilhoso poder de cidade cosmopolita, afinara-lhe
a cútis e a educação. Davam-lhe doutor, mas, em verdade,
nunca pusera os pés numa academia; os preparatórios mesmo, ele
os não completara; e como no Rio de Janeiro, na Corte, toda a gente
é doutor, ninguém punha dúvida no fictício diploma
de Luís Furtado.
Mas a qualidade característica do secretário do Banco Industrial
era o amor às mulheres, uma tendência notável para as
conquistas de boudoirs, para o livre câmbio de afeições
delicadas, para o culto imoderado de Vênus. Esse fraco, longe de o desprestigiar
no conceito das rodas aristocráticas, tornava-o ainda mais querido
de um e outro sexo, que viam no esposo de D. Branca, um homem de bom gosto,
entendido em essências finas e em cotillons. Quem é que, em Botafogo,
não o admirava, quem? Chegava-se até a dizer, num exagero, que
era a alma do bairro!
O casamento não lhe tirava a liberdade de homem que se governa; cumpria
seus deveres conjugais; nada faltava à mulher, nem aos filhos, todos
em casa o estimavam; queria, portanto, sua liberdade; “a melhor coisa
que Deus deu ao homem”. Tinha idéias definitivas, absolutas, sobre
o casamento e opunha-as a qualquer moralista indiscreto que lhe fosse criticar
os atos.
D. Branca nunca se agastava com ele, nunca lhe fizera a menor objeção
no tocante às suas aventuras donjuanescas. Quando alguém, homem
ou mulher, os queria intrigar e levava ao conhecimento dela fatos particulares
da vida do esposo, a ilustre senhora tinha sempre um risinho de incredulidade:
“- O Furtado era um bom marido e um bom pai de família. Os invejosos
é que o queriam desmoralizar”.
No entanto, conhecia o gênio do Furtado e uma ocasião surpreendera-lhe
no bolso do paletó uma cartinha de mulher, muito cheirosa e dentro
da qual havia um amor-perfeito já desbotado como essas flores raras
que se eternizam entre as paginas dos álbuns. D. Branca sorriu e devorou
com os olhos a misteriosa epístola, em verdade bem misteriosa, porque
nada tinha de indiscreto senão o caráter visivelmente feminino
da letra. Nunca se vira maior laconismo, nem tão cautelosos dizeres
numa correspondência de mulher. Assinavam as iniciais B. F. – “Branca
Furtado!”, pensou com estranheza e admiração.
E tornou a colocar o papel no bolso do marido, respeitosamente. Era um segredo
e ela não tinha o direito de violar segredo a quem quer que fosse.
Outra ocasião deparou com o retrato da cuja. – “Sim senhor: uma
mulher esplêndida! O Luís tinha gosto para mulheres…”
No dorso da fotografia, em cartão imperial, a seguinte dedicatória:
Ao Luís – B. F.
PETRÓPOLIS, 18..
– Petrópolis! – exclamou D. Branca. – É gente fina… (e com
uma ponta de despeito) esses homens… esses homens!…
O retrato voltou ao lugar onde estava, sem um arranhão.
Impossível haver mais liberdade e mais confiança entre marido
e mulher.
O procedimento de Luís para com D. Branca era igualmente recatado
e tudo fazia crer que a víbora do ciúme não lhe mordera
ainda o coração de esposo. Compreendiam-se um ao outro, e, quando
em um casal, a mulher compreende o marido e o marido compreende a mulher,
não há mais bela instituição que o casamento.
Ninguém peca por aceitar a vida como a vida sempre foi – tal a filosofia
de D. Branca, e com pequenas restrições, a do secretário.
Dizer que se não amavam? Erro gravíssimo. Adoravam-se quase,
e, em certos momentos, era como se fossem noivos em plena lua-de-mel. Segredos
da alma humana…
Uns olhos cobiçosos e apaixonados como os de Luís não
podiam, decerto, ver indiferentemente um rosto lindo de mulher. Foi o que
se deu com relação a Adelaide, a meiga esposa de Evaristo de
Holanda. O secretário viu-a no dia da chegada e admirou-a intimamente,
com olhadelas furtivas e traiçoeiras, enquanto o carro rodava para
Botafogo. Ria, e o seu riso tinha um tique muito delicado, muito nobre, muito
fino, de cavalheiro gentil, que se aprimora numa cortesia de salão.
E, era a todo o instante – “vossa excelência”, a todo o instante
uma frase elogiosa e comedida e mais uma perguntazinha discreta que Adelaide
respondia com o natural embaraço de quem chega a um lugar estranho
e pela primeira vez ouve linguagem desconhecida.
O que logo provocou a atenção da jovem esposa de Evaristo foi
um grande anel de brilhante que Furtado trazia no dedo – uma pedra enorme,
de primeira água, cujas facetas se multiplicavam à vista incisivamente,
como um prisma, quando ele erguia a mão morena para cofiar o bigode.
No outro dia, ao almoço, Adelaide estava com um vestido branco de
cassa e Furtado achou-a mais comunicativa e mais bela. A toilette de gorgorão
dava-lhe uns ares de respeito, que não iam bem com a frescura primaveril
do seu rosto; e aquela mudança de vestuário, aquela nonchalance
obrigou-o também a mudar o tratamento de “vossa excelência”
que tantas vezes repisara na véspera. Evaristo mesmo já lhe
havia observado que estavam “em família”, que deixasse o
“vossa excelência” para pessoas de cerimônias, do contrário
não se entendiam, nem podiam estimar-se como bons e velhos amigos.
E entraram todos na mais ampla intimidade, no mais belo convívio doméstico
e na mais franca harmonia. – Era pena que o andar superior não estivesse
desocupado, oh, era pena! – lamentava o marido de D. Branca. – Uns estrangeiros
que ninguém sabia donde tinham vindo!…
Mas, no íntimo, desejava que os estrangeiros não se mudassem
nunca; ele assim estava mais perto do seu novo ideal… Em casa ou no Banco,
uma só preocupação enchia-lhe o espírito: – Adelaide.
Como e por quê? Mistério! E a vida o que é senão
um grande e tenebroso mistério?
Luís coçava a cabeça, atordoado, impaciente, fechando
os olhos como para ver melhor no fundo da sua alma, e quer os fechasse, quer
os abrisse, tinha diante deles a imagem de uma criatura excepcional – anjo
e mulher – e essa criatura tinha os olhos de Adelaide, a boca de Adelaide,
o sorriso de Adelaide! Como resistir à tentação, ele,
que julgava a mulher uma força divina, um poder acima de todos os poderes
humanos e acima de todos os preconceitos sociais? .
E nesse filosofar à-toa, nesse monologar do cérebro, perpassava
também o riso bom de Evaristo, a alma simples do amigo, cheio de confiança
e de um otimismo às vezes ingênuo. Furtado espancava uma imagem
para deliciar-se com a outra, com a dos olhos meigos e sorriso angelical…
À noite, fora de horas, acordava, abria os olhos num êxtase
sonâmbulo – enquanto a mulher se imobilizava – e punha-se a fazer cálculos,
a maquinar planos de general em véspera de batalha. – Como havia de
ser isso? Como havia de ser aquilo?…
E, no outro dia, eram os mesmos olhares, as mesmas finezas, que Adelaide
já não estranhava, por virem donde vinham. Não padecia
dúvida que o Sr. Furtado era um cavalheiro de educação
e ela achava muito bonito um homem de educação… Os modos do
Sr. Furtado, quem é que os não apreciava?
Ao almoço e ao jantar, longamente discutiam assuntos caseiros e D.
Branca via-o quase sempre de bom humor à hora das refeições,
dizendo pilhérias, mostrando-se entendido em matéria culinária
e em coisas de boudoirs, improvisando anedotas, gracejando, servindo à
mulher e ao Evaristo, para poder servir a Adelaide, fito único dos
seus olhos e da sua imaginação.
À noite escancaravam-se as janelas da frente e jogava-se à
luz do gás amortecido por causa do calor. Nos jogos de parceria, Furtado
sentava-se defronte de Adelaide, tocando-se os joelhos, a pontinha dos pés,
em torno da pequenina mesa de charão colocada ao centro da sala, e
divertiam-se horas e horas, num tête-à-tête voluptuoso
e calmo, perturbado, às vezes, por uma gargalhada geral que irrompia
uníssona das quatro bocas.
Evaristo chamava aquilo, aquelas reuniões familiares “uma pândega”,
sempre melhor que as da Rua do Ouvidor: mais honesta e menos tumultuosa.
– Inda havemos de fazer um piquenique no Jardim Botânico! – disse uma
noite o secretário.
– É verdade, é verdade! – aplaudiu, com entusiasmo, D. Branca.
– Vamos um dia, um domingo, ao Jardim Botânico!
– À Tijuca não seria melhor? – lembrou Evaristo, que ardia
por fazer um passeio à “tal Tijuca”.
Mas Furtado apontou inconvenientes de ida e volta: – era muito longe a cascatinha,
lá onde o diabo perdeu as esporas, enquanto que o Jardim Botânico
ficava perto e era mais elegante. Depois, com o tempo, ir-se-ia à Tijuca…
– Em primeiro lugar – concluiu Evaristo – é preciso que esses estrangeiros
do segundo andar ponham-se ao fresco, vão para o diabo que os carregue!
E ficou assentado que num belo domingo iriam os dois casais ao Jardim Botânico,
em piquenique.
Antes disso, porém, havia o batizado da Julinha. Estava tudo pronto
como para uma grande recepção de aniversário: vidros,
móveis, tapetes, cristais, o serviço da copa, o buffet, uma
quantidade enorme de garrafas, mesa lauta sobre à qual via-se toda
a baixela da casa e vasos com flores naturais e altas pirâmides de doce,
pondo manchas na brancura da toalha, e em cada prato um buquezinho de violeta
arranjado especialmente pelas mãos de D. Branca; e em toda a casa,
desde a sala de visitas até os fundos da cozinha, um ar alegre de interior
holandês, um ar festivo e risonho, cheirando a flores como a atmosfera
matinal dos jardins. Viam-se em todo aquele esmero, em toda aquela simplicidade
grega – na composição de um vaso, no arranjo dos buquês
– o zelo aristocrático de D. Branca e o gosto não menos aristocrático
de Luís Furtado harmonizando-se nas menores coisas, traindo-se a cada
hora. O papel da sala de visitas parecia mais novo; os quadros destacavam-se,
muito nítidos, numa bela disposição ornamental de galeria
pobre; o piano sofrera uma mão de óleo e guardava ainda o cheiro
da fábrica, de costas para a janela, reluzindo como um espelho; as
cortinas pendiam frouxamente das armações de ouro… Enfim,
na alcova esponsalícia de D Branca estava o berço de Julinha>
todo em festa, ao lado da grande cama de casal. Para aí é que
deviam convergir os olhares do desembargador e da mulher, especialmente destes,
porque D. Branca entendia que ser dama do paço era merecer as atenções
devidas à própria imperatriz; além disso, o velho Lousada
tinha, mais do que ninguém, direito a essas atenções
como padrinho da pequena. D. Branca esforçara-se por dar ao berço
um aspecto luxuoso e sereno, para que se não dissesse que ela, no meio
das suas ostentações, pouco amor tinha aos filhos. E conseguira-o,
sem desprezar um ou outro conselho quer de Adelaide, quer de Furtado, quer
mesmo de Evaristo, que também fora chamado a dar sua opiniãozinha.
– Eu nunca tive filhos, minha senhora… – protestou ele.
Mas a esposa do secretário alegou que era justamente por ele nunca
ter tido filhos que lhe pedia a opinião.
E, agarrado por um braço e pelo outro, o marido de Adelaide lembrou,
espirituosamente, que se devia colocar na cúpula a seguinte inscrição:
Este filho é o último da prole… – o que fez rir muito a D.
Sinhá do desembargador, a ela só, porque os outros não
acharam graça na idéia.
O leito de Julinha era todo de uma madeira escura e sólida, como ébano-da-índia,
e custara um dinheirão ao Furtado. Imitava o casco de urna pequena
gôndola com a proa recurva e estreita. Sobre ele caía fartamente
uma nuvem de rendas, abrindo-se para um e outro lado e quase tocando o chão.
A cúpula era um verdadeiro trabalho de arte, muito simples, mas curioso,
representando uma coroa ducal com embutidos de marfim. No alto do cortinado,
um grande laço de seda azul com franjas de ouro…
Ao todo seis carros, inclusive a berlinda, em que ia a pequena nos braços
da ama e a mulher o desembargador. As outras eram ocupadas sucessivamente
pelo funcionário do governo e D. Branca, pelo Furtado e o Raul, pela
viúva Tourinho, pelo tesoureiro do Banco Industrial e a esposa, e o
último carro por dois amigos do secretário, rapazes do comércio.
D. Sinhá não quis ir à igreja, deixando-se ficar em
companhia de Evaristo e de Adelaide nas suas toilettes de pouca cerimônia,
esperando a volta do batizado – “que era uma grande maçada vestir-se
toda de luxo somente para ouvir o latim de monsenhor Teixeira; logo não
estavam vendo?…”
Caíam as primeiras sombras da noite quando um rodar de carros anunciou
o regresso da Julinha com todo o seu acompanhamento. Encheram-se as janelas
de curiosos que queriam ver a criança, e um ligeiro alvoroço
percorreu, como um frêmito de novidade, aquele trecho do aristocrático
bairro. – É o batizado! é o batizado! – exclamaram vozes alvissareiras;
e os carros, um a um, foram parando na mesma ordem da saída, com a
mesma distinção, e um a um foram-se apeando os convidados, primeiro
os cavalheiros, depois as senhoras, risonhos todos, numa onda invisível
de essências. À porta da casa, tapetada de folhas, houve um murmúrio,
destacando a voz de Furtado:
– Entrem, meus senhores, queiram ter a bondade…
Seguiu-se o jantar – “um banquete de príncipe!” na opinião
de Evaristo. Adelaide foi apresentada à viúva Tourinho e ao
Loiola do Banco, houve brindes ao dessert, todos acabaram tratando-se familiarmente,
esquecendo o vestido de seda e a casaca, e a própria Julinha que, depois
de um berreiro infernal, adormeceu com a serenidade de um anjo.
Era noite quando Luís Furtado ergueu-se para levantar o último
brinde, o brinde de honra à “Sereníssima senhora D. Isabel,
princesa imperial e herdeira presuntiva do trono do Brasil!” O champanha
espumava nas taças de cristal e os hip! hip! hurras! estrondearam em
toda a casa.
– À Sereníssima!
– À herdeira da coroa!
– À imperial madrinha da Júlia!
E, todos de pé, esvaziaram as taças.
Furtado observou, então, limpando o bigode, que na sala estava mais
fresco.
– Vamos, desembargador… Ó Evaristo, dá o braço à
D. Rosa.
D. Rosa era a mulher do Loiola. O bacharel, estranho a etiquetas, muito filósofo,
como dizia o secretário, deu dois passos à frente e recebeu
amavelmente a mulher do tesoureiro.
– Muito obrigada, Sr. Evaristo, muito obrigada! – repetiu a gorda matrona.
– Oh, minha senhora…
E, em procissão, desfilaram os convivas pelo corredor. No alto da
escada do segundo andar ocultou-se, rápida, uma sombra de mulher. Instintivamente
o desembargador ergueu os olhos, baixando-os logo.
Furtado ia na frente, guiando os amigos, de braço com a ilustre dama
de Sua Majestade a Imperatriz.
Agora é que a sala de visitas tinha um aspecto nobre e luxuoso, ao
reflexo das serpentinas e do grande candelabro de cristal pendente do teto.
Quadros e bibelôs, o piano e a mobília, o espelho de primeira
ordem, rodeado de arabescos, a estante de música, as tapeçarias,
as cortinas, o papel do forro, tudo resplendia e dava uns tons de alta nobreza
ao conjunto.
Adelaide, sempre tímida, vinha de braço com um dos rapazes
do comércio.
Sentaram-se todos, rindo, palrando, o tesoureiro com a face congestionada,
a mulher idem, ambos muito gordos; a mulher do desembargador com o seu ar
indefectível de nobreza pouco comunicativa, querendo parecer mais moça
do que na realidade era, assestava de vez em quando o lorgnon de tartaruga,
que pendia-lhe de um correntão de ouro, e punha-se a observar uma estampa
do imperador, que havia na sala, entre dois consolos, enquanto o velho Lousada
falava com a viúva Tourinho acerca dos últimos incômodos
do monarca; o secretário instalara-se entre Adelaide e D. Branca e
respondia prontamente às perguntas que lhe faziam, ora um dos rapazes,
ora D. Sinhá, ora o tesoureiro do Banco, ora o próprio desembargador,
interrompendo a conversa com a Tourinho, e volvia-se freqüentemente para
a esposa de Evaristo. O bacharel divertia-se a gabar os trajos de Raul, dando-lhe
palmadinhas no ombro.
E pouco a pouco ia-se tornando maior a familiaridade.
– E o Santa Quitéria? – lembrou Furtado com ar de desgosto. Ele, que
é um dos meus bons amigos, faltar ao batizado de minha filha!
– E o Dr. Condicional? – saltou Evaristo. – Ainda ontem disse-me que vinha.
– Faltaram todos: o Santa Quitéria, o Pinto, comendador, o Condicional,
o Xavier… todos, enfim!
– Todos não! – protestou o velho Lousada, sorrindo – eu aqui estou
com minha mulher…
– O desembargador é gente nossa, é de casa – emendou Furtado.
– E eu também sou de casa? – perguntou maliciosamente a viúva.
– V. Exa., com a sua bondade, é de todo o mundo!
– Alto lá, meu amiguinho! – sorriu a boa senhora. – De todo mundo
é que não.
E quis saber o que é que o Sr. Furtado entendia por todo o mundo.
Furtado explicou-se razoavelmente.
Nisso pára um carro à porta. Todos os olhares volveram-se para
a entrada da sala. D. Branca e o secretário ergueram-se. Mas, antes
que se aproximassem da escada, já o Raul anunciava indiscretamente
que “era o Dr. Condicional!”
– Oh, o Manhães! – acudiu Furtado.
– Eu mesmo, caro amigo, eu mesmo. Venho dar-lhe os parabéns pelo glorioso
dia!
Movimento nas cadeiras; leve sussurro.
– Ah, esse é que é o autor do Juca Pirão? – fez um dos
rapazes do comércio.
– Sei que não vim de bonne heure… – tornou o literato dirigindo-se
para o grupo, consertando a sobrecasaca. – Em todo o caso, antes tarde que
nunca!…
Apresentações, cumprimentos, e o Dr. Condicional, dando jeito
ao pincenê, sentou-se. Trazia um grande buquê de violetas na lapela.
Novo carro parou quase imediatamente. Furtado, que se ia acomodando, ergueu-se
outra vez. Outra vez o Raul adiantou-se para anunciar, agora com toda a discrição
e respeito, “o Sr. visconde de Santa Quitéria!”.
– Oh!
A exclamação foi geral.
– O visconde de Santa Quitéria!
– Logo vi que não faltava! – disse Furtado.
E D. Branca teve um movimentozinho de surpresa muito especial, exclamando
também: – Oh!
Era, com efeito, o visconde de Santa Quitéria, o grande capitalista,
diretor do Banco Luso-Brasileiro.
Bem que todos tinham ouvido parar um carro!
Pelo menos naquele instante, ninguém se lembrou do ilustre poeta que
acabava de entrar. A chegada do visconde enchia a todos de surpresa e de alta
consideração. Entre a poesia e o capital – preferia-se o capital,
tanto mais quanto o diretor do Banco Luso não representava simplesmente
um capitalzinho de alguns mil-réis. Não. O Santa Quitéria
tinha fortuna para mais de seis mil contos!.
O ilustre personagem estacou à porta, fez um cumprimento geral com
a cabeça e entrou, muito correto, admirável de mocidade e de
frescura. D. Branca recebeu-o no meio da sala com o mais belo dos seus sorrisos.
Era um perfeito cavalheiro, o visconde. Residia ora em Petrópolis,
quando já não suportava o calor na Corte, ora no seu rico palacete
das Laranjeiras, pelo inverno chuvoso e nublado. Para as transações
da Bolsa tinha escritório na Rua da Alfândega, onde ocupava uma
saleta de frente e uma alcova com toilette de mármore e outros objetos
indispensáveis ao asseio de um homem. Idade média (pouco mais
de quarenta anos), muitíssimo conservado, sem um fio branco na cabeça,
olhos vivos, todo ele irrepreensível, tinha fama de beleza entre as
mulheres, que o admiravam, não tanto pela fortuna, mas especialmente
pela correção do trajo e pelo estranho conjunto das linhas fisionômicas.
Muita gente achava-lhe pontos de semelhança com Luís Furtado
que se orgulhava disso, que era uma honra para ele, uma grande honra! Por
duas vezes o tinham saudado na Rua do Ouvidor julgando cumprimentar o Santa
Quitéria: Sr. visconde!… – e ele correspondera delicadamente. Era
um engano que o honrava.
O visconde descera de Petrópolis na manhã daquele dia para
não faltar ao convite do secretário.
– Dou-lhe os meus parabéns – disse ele a Furtado. E voltando-se para
D. Branca, antes de sentar-se: – Peço licença a V. Exa., para
um presentezinho à pequena, uma simples lembrança.
D. Branca, humilhada, recebeu a dádiva do banqueiro, que este entregou
dentro de uma caixinha de veludo grená. Era uma jóia de ouro
e brilhante, uma linda medalha para pescoço.
– Oh, Sr. visconde!…
D. Sinhá quis logo ver o que era:
– Veja, mamãe, veja que bonita!
A dama de honra de Sua Majestade a Imperatriz tomou, cautelosamente, o brinde,
assestou o lorgnon e achou, com efeito, lindo, muito lindo!
A jóia correu de mão em mão, arrebatando um – oh! –
de cada boca. O Dr. Condicional lembrava-se de ter visto coisa semelhante
na vitrina do Farani.
D. Branca não se esqueceu de apresentar Adelaide ao visconde.
– “Sua amiga Adelaide, esposa do Sr. Evaristo de Holanda, comprovinciano
e amigo de Furtado…”
E a conversa continuou animada, picante, com um acentuado caráter
de brasileirismo, entrecruzando-se as vozes, as opiniões, os ditos
espirituosos.
O Dr. Condicional, que se sentara ao lado do desembargador, fez a apologia
do Instituto Histórico, do que o velho magistrado era membro, discorrendo
sobre os últimos trabalhos do barão da Corte Real, apresentados
ao Instituto, e sobre os progressos da geografia e das letras no nosso país.
Lousada, inclinava a cabeça para ouvir melhor, e saboreava os elogios
de Valdevino Manhães como quem escuta uma música voluptuosa,
uma vaga harmonia encantadora, os olhos entrecerrados, meio adormecidos, a
boca imóvel, serenamente imóvel…
De repente estalava uma risada e ele abria os olhos, com um sustozinho, pigarreando.
– E V. Exa. já apresentou algum trabalho, Sr. Desembargador? – inquiriu,
por delicadeza, o poeta.
– Ainda não, meu amigo, ainda não, mas tenho pronta uma refutação
aos Irmãos Pinzón do conselheiro Lisboa.
– Uma refutação?
– Exatamente, umas notas sobre os primeiros descobridores da América,
uns documentos importantíssimos, que valem toda a fortuna dos Rothschilds…
O visconde de Santa Quitéria, ao ouvir falar nos Rothschilds, deitou
o rabo do olho.
– … Calcule o senhor que os fenícios, muito antes de Pinzon, numa
época remotíssima, andaram no Amazonas…
– No Amazonas, desembargador? – repetiu Manhães com espanto.
– Pois não, no Amazonas… admira-se? Quanto mais se eu lhe disser
que os Cananeus andaram na Paraíba do Norte! Pois é a pura verdade.
Encontrei na biblioteca de Sua Majestade um fac-símile de inscrições
fenícias descobertas numa pedra da Paraíba.
E pouco a pouco ia-se tornando maior a familiaridade.
– E o Santa Quitéria? – lembrou Furtado com ar de desgosto. Ele, que
é um dos meus bons amigos, faltar ao batizado de minha filha!
– E o Dr. Condicional? – saltou Evaristo. – Ainda ontem disse-me que vinha.
– Faltaram todos: o Santa Quitéria, o Pinto, comendador, o Condicional,
o Xavier… todos, enfim!
– Todos não! – protestou o velho Lousada, sorrindo – eu aqui estou
com minha mulher…
– O desembargador é gente nossa, é de casa – emendou Furtado.
– E eu também sou de casa? – perguntou maliciosamente a viúva.
– V. Exa., com a sua bondade, é de todo o mundo!
– Alto lá, meu amiguinho! – sorriu a boa senhora. – De todo mundo
é que não.
E quis saber o que é que o Sr. Furtado entendia por todo o mundo.
Furtado explicou-se razoavelmente.
Nisso pára um carro à porta. Todos os olhares volveram-se para
a entrada da sala. D. Branca e o secretário ergueram-se. Mas, antes
que se aproximassem da escada, já o Raul anunciava indiscretamente
que “era o Dr. Condicional!”
– Oh, o Manhães! – acudiu Furtado.
– Eu mesmo, caro amigo, eu mesmo. Venho dar-lhe os parabéns pelo glorioso
dia!
Movimento nas cadeiras; leve sussurro.
– Ah, esse é que é o autor do Juca Pirão? – fez um dos
rapazes do comércio.
– Sei que não vim de bonne heure… – tornou o literato dirigindo-se
para o grupo, consertando a sobrecasaca. – Em todo o caso, antes tarde que
nunca!…
Apresentações, cumprimentos, e o Dr. Condicional, dando jeito
ao pincenê, sentou-se. Trazia um grande buquê de violetas na lapela.
Novo carro parou quase imediatamente. Furtado, que se ia acomodando, ergueu-se
outra vez. Outra vez o Raul adiantou-se para anunciar, agora com toda a discrição
e respeito, “o Sr. visconde de Santa Quitéria!”.
– Oh!
A exclamação foi geral.
– O visconde de Santa Quitéria!
– Logo vi que não faltava! – disse Furtado.
E D. Branca teve um movimentozinho de surpresa muito especial, exclamando
também: – Oh!
Era, com efeito, o visconde de Santa Quitéria, o grande capitalista,
diretor do Banco Luso-Brasileiro.
Bem que todos tinham ouvido parar um carro!
Pelo menos naquele instante, ninguém se lembrou do ilustre poeta que
acabava de entrar. A chegada do visconde enchia a todos de surpresa e de alta
consideração. Entre a poesia e o capital – preferia-se o capital,
tanto mais quanto o diretor do Banco Luso não representava simplesmente
um capitalzinho de alguns mil-réis. Não. O Santa Quitéria
tinha fortuna para mais de seis mil contos!.
O ilustre personagem estacou à porta, fez um cumprimento geral com
a cabeça e entrou, muito correto, admirável de mocidade e de
frescura. D. Branca recebeu-o no meio da sala com o mais belo dos seus sorrisos.
Era um perfeito cavalheiro, o visconde. Residia ora em Petrópolis,
quando já não suportava o calor na Corte, ora no seu rico palacete
das Laranjeiras, pelo inverno chuvoso e nublado. Para as transações
da Bolsa tinha escritório na Rua da Alfândega, onde ocupava uma
saleta de frente e uma alcova com toilette de mármore e outros objetos
indispensáveis ao asseio de um homem. Idade média (pouco mais
de quarenta anos), muitíssimo conservado, sem um fio branco na cabeça,
olhos vivos, todo ele irrepreensível, tinha fama de beleza entre as
mulheres, que o admiravam, não tanto pela fortuna, mas especialmente
pela correção do trajo e pelo estranho conjunto das linhas fisionômicas.
Muita gente achava-lhe pontos de semelhança com Luís Furtado
que se orgulhava disso, que era uma honra para ele, uma grande honra! Por
duas vezes o tinham saudado na Rua do Ouvidor julgando cumprimentar o Santa
Quitéria: Sr. visconde!… – e ele correspondera delicadamente. Era
um engano que o honrava.
O visconde descera de Petrópolis na manhã daquele dia para
não faltar ao convite do secretário.
– Dou-lhe os meus parabéns – disse ele a Furtado. E voltando-se para
D. Branca, antes de sentar-se: – Peço licença a V. Exa., para
um presentezinho à pequena, uma simples lembrança.
D. Branca, humilhada, recebeu a dádiva do banqueiro, que este entregou
dentro de uma caixinha de veludo grená. Era uma jóia de ouro
e brilhante, uma linda medalha para pescoço.
– Oh, Sr. visconde!…
D. Sinhá quis logo ver o que era:
– Veja, mamãe, veja que bonita!
A dama de honra de Sua Majestade a Imperatriz tomou, cautelosamente, o brinde,
assestou o lorgnon e achou, com efeito, lindo, muito lindo!
A jóia correu de mão em mão, arrebatando um – oh! –
de cada boca. O Dr. Condicional lembrava-se de ter visto coisa semelhante
na vitrina do Farani.
D. Branca não se esqueceu de apresentar Adelaide ao visconde.
– “Sua amiga Adelaide, esposa do Sr. Evaristo de Holanda, comprovinciano
e amigo de Furtado…”
E a conversa continuou animada, picante, com um acentuado caráter
de brasileirismo, entrecruzando-se as vozes, as opiniões, os ditos
espirituosos.
O Dr. Condicional, que se sentara ao lado do desembargador, fez a apologia
do Instituto Histórico, do que o velho magistrado era membro, discorrendo
sobre os últimos trabalhos do barão da Corte Real, apresentados
ao Instituto, e sobre os progressos da geografia e das letras no nosso país.
Lousada, inclinava a cabeça para ouvir melhor, e saboreava os elogios
de Valdevino Manhães como quem escuta uma música voluptuosa,
uma vaga harmonia encantadora, os olhos entrecerrados, meio adormecidos, a
boca imóvel, serenamente imóvel…
De repente estalava uma risada e ele abria os olhos, com um sustozinho, pigarreando.
– E V. Exa. já apresentou algum trabalho, Sr. Desembargador? – inquiriu,
por delicadeza, o poeta.
– Ainda não, meu amigo, ainda não, mas tenho pronta uma refutação
aos Irmãos Pinzón do conselheiro Lisboa.
– Uma refutação?
– Exatamente, umas notas sobre os primeiros descobridores da América,
uns documentos importantíssimos, que valem toda a fortuna dos Rothschilds…
O visconde de Santa Quitéria, ao ouvir falar nos Rothschilds, deitou
o rabo do olho.
– … Calcule o senhor que os fenícios, muito antes de Pinzon, numa
época remotíssima, andaram no Amazonas…
– No Amazonas, desembargador? – repetiu Manhães com espanto.
– Pois não, no Amazonas… admira-se? Quanto mais se eu lhe disser
que os Cananeus andaram na Paraíba do Norte! Pois é a pura verdade.
Encontrei na biblioteca de Sua Majestade um fac-símile de inscrições
fenícias descobertas numa pedra da Paraíba.
Capítulo IV
– Com efeito! – exclamou, surpreendido. – Nem que se estivesse esperando
a volta de D. Sebastião… Ah!… Eu já estava resolvido a alugar
o palacete do Friburgo!
– Agora, sim, senhor – disse Luís, batendo no ombro do amigo e rindo
para Adelaide – agora vão dormir folgadamente na sua cama de casal,
vão se regalar!
– Queres dizer, então, que passávamos as noites de olho aberto,
no nosso belo quartinho? Estás muito enganado. Nunca dormi tanto, e
a Adelaide melhor um pouco.
– Não segue-se, porém, que deixem de almoçar e de jantar
conosco…
– Em primeiro lugar, um exame nos aposentos; depois, trataremos do almoço
e do jantar.
– Já andamos por lá – disse D. Branca espevitadamente. – Sabem
o que encontramos?
– Algum menino pagão… – adiantou-se Furtado.
– Algum fac-símile de inscrições hebraicas para presente
ao desembargador?
– Sério; vejam se podem adivinhar – insistiu a esposa do secretário.
Os dois homens puseram-se a pensar em qual teria sido o misterioso encontro
das duas senhoras…
– Não sei – disse, por fim, o marido de Branca.
– Nem eu… – imitou Evaristo.
– Um irrigador de Ermarck, por sinal bem novinho.
– Que diabo quer isso dizer? – perguntou o bacharel com assombro.
Adelaide não se pôde conter e abriu numa risada sonora e gostosa,
ocultando o rosto nas mãos. D. Branca, ante a ingênua pergunta
de Evaristo, ria também para outro lado, enquanto o secretário
justificava a ignorância do amigo dizendo que o aparelho de Ermarck
ainda não era bastante conhecido no Brasil e que, por isso, o Holanda
tinha toda a razão… E acrescentou com ironia:
– São muito maliciosas as mulheres!
Mas Evaristo não descruzava os braços, estatelado, vendo as
duas senhoras rir.
– Então, é que já sabes o emprego do irrigador, Adelaide!
– Eu?
Novo acesso de riso sufocou a esposa do bacharel, como se lhe estivessem
a fazer cócegas.
– Sabem que mais? – disse afinal Evaristo. – Os ingleses, que deixaram o
irrigador é por que o irrigador não presta! Vamos ao que interessa.
Já Luís Furtado galgava o primeiro degrau da escada que ia
ter no segundo andar. Evaristo, Adelaide e D. Branca o acompanharam, todos
risonhos, a falar dos ingleses.
Eram trinta degraus estreitos, que subiam em curva, gemendo sob os pés,
iluminados por uma grande clarabóia de vidro.
O andar superior compunha-se de uma sala de frente, alcova, corredor e dois
quartos menores que a alcova, comunicando-se. Havia também um terraço
com grades de ferro, onde se erguia uma espécie de quiosque para o
water-closet.
O secretário começou a inspeção pela frente.
As janelas estavam abertas, deixando ver a praia de Botafogo; a enseada, não
muito longe, o Pão de Açúcar e os morros de Niterói
dando um aspecto grandioso e selvagem à baía. À direita,
erguido a prumo, o perfil negro do Corcovado atraía os olhos, em linha
reta para o alto, como um dedo enorme de gigante apontando o azul sereno.
A vista alcançava, depois, outras montanhas, e entre elas, o cemitério
de São João Batista, salpicado de túmulos brancos, numa
simetria pitoresca e lúgubre. Àquela hora, distinguia-se grupos
de pessoas, grupos negros em marcha, sumindo-se e aparecendo entre os mausoléus.
À esquerda, telhados e hortas.
O secretário não gostava de olhar o cemitério: recordava-se
tristemente da última vez em que lá fora enterrar a ilustre
senhora, bela mulher, cujo nome o Rio de Janeiro todo conhecia… Não
gostava, não gostava de olhar o cemitério…
D. Branca estava aflita por chegar aos fundos; queria surpreender o marido
de Adelaide com o irrigador de Ermarck.
– Que achas? – perguntou Furtado ao amigo, relanceando os olhos no aposento.
– Bom… bom – murmurou o bacharel. – Vamos cá!
E dirigiu-se aos fundos da casa, inspecionando o teto e o papel do forro.
– Vocês aqui estão muito bem – tornou o secretário.
– Muito melhor que na Cidade Nova – acrescentou D. Branca.
– Ao menos estão em Botafogo.
O corredor ia sair na área, forrado em todo o comprimento, claro,
fresco e iluminado pelos reflexos da clarabóia.
Percorreram tudo até o quiosqueziriho do terraço, que o bacharel
comparou poeticamente a uma “casa da pombos”.
– Agora venha ver, Sr. Evaristo, venha ver o que os ingleses deixaram – insistiu
de novo D. Branca.
– Tolice de minha mulher, Evaristo!
– Não, não, tenha a bondade, Sr. Evaristo, tenha a bondade.
Quero que o senhor veja…
A um canto do terraço, entre o quiosque e o gradil, estava uma espécie
de cilindro cor de cobre novo, com uma das extremidades em forma de funil
donde saía molemante, quebrando-se em curvas, um tubo estreito de borracha.
– Isso o que é? – perguntou, inclinando-se, o bacharel.
As duas senhoras abriram outra vez na risadaria, cabeceando, agarrando-se
como duas colegiais.
– Branca! – advertiu Furtado. – Olha que o Evaristo não é menino
de escola…
E segurando o amigo pelo braço o foi levando para dentro do corredor.
– Isso é uma das grandes invenções do século,
meu amigo; veio com a descoberta do micróbio parasitário.
Falavam baixo, com hipocrisia de homens que se querem dar ao respeito. Mas
D. Branca ouviu ainda um oh! de exclamação que o marido de Adelaide
não pôde abafar.
Estava escurecendo. Já o sol mandava o seu último adeus à
terça-feira com uns restos de claridade crepuscular.
Tanto o bacharel como a esposa acharam que se devia tratar logo da mudança,
ou antes da instalação, porque Evaristo inda não comprara
sequer a cama de casal. – Mudar o quê? Só se fosse uma rede que
ele trouxera do norte, uma rede esplêndida, de labirinto, e os indiscretos
baús de couro..
– Não te faças miserável! – ralhou Furtado. – Um homem
não tem o direito de menosprezar-se. Um baú pode conter as minas
de Salomão!
– O Evaristo vive a gracejar, Sr. Luís – disse Adelaide. – A mania
dele é chamar-se pobre, lamentar-se, berrar contra quem tem dinheiro!…
Isso até desanima.
– Mas, então, que querem vocês que eu diga? Que ando com os
bolsos recheados? que tenho apólices no Tesouro? que deixei na província
uma fazenda de gado? que trago os baús repletos de ouro e prata? Ora
muito obrigado, minha mulher!
– Não estou dizendo isso…
Aquele – que querem vocês que eu diga? – referia-se exclusivamente
ao marido de D. Branca e a Adelaide. Esta notou o carinhoso plural e como
que sentiu no fundo d’alma um prazerzinho em se achar na companhia de homem
tão educado e nobre. Aquele vocês, dirigido a ela e ao Sr. Luís,
trouxe-lhe um pequeno abalo ao coração, qualquer coisa de intimamente
agradável.
– D. Adelaide não está dizendo isso – repetiu Furtado. – O
que ela está dizendo é que tens a mania da pobreza, a mania
das lamentações…
D. Branca, por seu turno, observou que o marido tratava Adelaide com muita
distinção, muita gentileza; mas atribuiu à natural bonomia
do secretário.
Evaristo é que não observou coisíssima alguma; dissera
vocês, porque achava familiar o tratamento e porque tratava o Luís
por você e Adelaide por você, isoladamente. Não havia razão
para, referindo-se aos dois, proceder doutro modo.
A mulher, porém, descobre manchas no sol em pleno meio-dia e é
capaz de enxergar, com os olhos fechados, uma agulha num palheiro.
No outro dia, quando Evaristo voltou do Banco, encontrou o segundo andar
mobiliado; cadeiras, mesas, uma estante para livros, bela cama de casal, guarda-roupa,
cabides… o inferno!
Adelaide recebeu-o no primeiro andai, como de costume, risonha e feliz, mas
estranhando que lhe não perguntasse coisa alguma, rompeu o silêncio:
– Que despesão fizeste!
– Despesão?..
– Sim; quanto custariam as cadeiras, a cama, o sofá.
Evaristo, em pé, no alto da escada, julgou que a mulher houvesse enlouquecido
e olhava-a, sem compreender as palavras.
– Que cama? que sofá? que cadeiras?…
– Que mandaste da rua…
– Eu?!
– Está de muito bom gosto a cama, Sr. Evaristo – saltou D. Branca.
– Felicito-o!
Cada vez o bacharel compreendia menos o que lhe estava entrando pelos ouvidos.
– De bom gosto?…
– Pois não foi o senhor quem escolheu a mobília?
– Eu não escolhi nada, pelo amor de Deus! – nem sei do que se trata…
– Quer nos debicar, Adelaide, quer fazer surpresa… – disse a mulher do
secretário.
– Debicar!… surpresa!… Temos aqui almas doutro mundo?
Adelaide não quis acreditar numa brincadeira do marido, tal era a
sizudez que ele imprimia às palavras naquela ocasião. Evaristo
brincava, mas conhecia-se logo o seu tom de pilhéria.
– Deixem-me primeiro tomar fôlego, que eu estou me acabando! – exclamou,
dirigindo-se à sala de jantar.
As duas senhoras o acompanharam, entreolhando-se.
O bacharel encostou a bengala, respirou com alívio e sentou-se.
– O Furtado inda não veio?
– ‘Té agora, não – respondeu D. Branca.
– Então, que história é essa de cadeiras e camas e sofás?
Expliquem-se!
Adelaide explicou o caso da mobília: às duas horas, mais ou
menos, tinha vindo um galego trazendo, numa carrocinha, meia dúzia
de cadeiras, um sofá, uma cama de casal, uma estante e outros objetos
“para a casa do Sr. Evaristo de Holanda, em Botafogo”. Não
podia haver engano.
– Onde estão esses objetos?
– Lá em cima, tudo arrumado. A cama é que é um pouco
larga…
Pois ele não mandara coisíssima alguma nem tampouco autorizara
compra de móveis ao Furtado. Às duas horas tinha estado com
o secretário no Banco e ele em tal coisa não falara. Salvo se
o amigo inda uma vez queria ser generoso e bom apresentando seu nome a algum
armazém de móveis… Podia muito bem ser isso… Mas, então,
dir-lhe-ia francamente, prevenindo-o com antecedência, tomando mesmo
uma nota dos objetos indispensáveis a um casal. O Furtado, porém,
não o prevenira, não o avisara sequer! Donde tinham vindo esses
móveis? de que armazém? de que rua?
– Você compreende que a minha obrigação era recebê-los
– fez Adelaide numa voz humilde.
– Perfeitamente, ninguém diz o contrário.
– O Luís explicará tudo, Sr. Evaristo. Havemos de saber quem
foi da idéia.
– Corramos um olhar nos tais móveis – disse o bacharel, erguendo-se.
O pavimento superior da casa já não tinha o mesmo aspecto desolado
e vazio da véspera, com as suas paredes escorridas, com o seu ar glacial
de eremitério. Não. A sala da frente impunha-se agora aos olhos,
convidando à familiaridade, ao repouso honesto, à leitura de
um bom livro. Meia dúzia de cadeiras austríacas, torneadas,
o sofá, cadeiras de balanço, dois consolos, outra mesinha decorativa
para o centro… Na alcova o leito, e o toucador com espelho de cristal e
pedra-mármore. Num dos quartos, o guarda-roupa e os baús (os
célebres baús de couro) e no outro a estante. Assim é
que Adelaide dispusera os móveis, em acordo com D. Branca; unicamente
para surpreender Evaristo. Depois comprar-se-ia cortinas e bibelôs.
O soalho inda estava úmido da lavagem.
O bacharel cruzou os braços diante daquela transformação
quase milagrosa.
– Isto não pode deixar de ser obra do Luís! – disse, risonho.
Sim, estava quase convencido de que o Luís queria pregar-lhe uma peça.
Quem, no Rio de Janeiro, se lembraria dele senão o secretário?
Ninguém, absolutamente ninguém. Ele é que o tratava com
um carinho de irmão.
– Você que acha?
– Penso a mesma coisa. Só o Sr. Furtado…
– No entanto, o Furtado não arredou pé do Banco!
– As almas é que não foram… – murmurou, sorrindo, Adelaide.
E enquanto o outro não chegava, discutiu-se a procedência dos
móveis.
O secretário foi recebido com exclamações e altos brados
de agradecimento e jovialidade.
– Está de muito bom gosto a cama! – repisou D. Branca. – Assim é
que eu queria que você comprasse uma…
– E o guarda-roupa! – exclamou Evaristo.
– E a toilette! – fez Adelaide.
Mas o homem era como se estivesse numa casa de orates; fitava um, fitava
outro, com ar interrogativo e surpreso.
– As senhoras estão enganadas… Mobília?…
– Quem havia de ser? – interpelou o bacharel, crendo e não crendo
na estupefação do amigo.
– Não mo perguntes a mim, que também não posso atribuir
o caso ao meu bodegueiro ou às almas do outro mundo.
– Ora, falemos sério, não foste tu, mas foi o teu grande coração!
– resumiu Evaristo, desapontado.
– Juro-te!
– Não acredito.
– Melhor pra ti…
Ao final das contas, a dignidade do bacharel teve um ímpeto de orgulho
contra “esse misterioso fornecedor gratuito de móveis”, e
declarou positivamente que ia mandar tudo para o depósito, as cadeiras,
a cama, o sofá… tudo! Não aceitava favores de pessoas estranhas
e, de mais a mais, ocultas num criminoso silêncio. Tudo para o depósito!
Uma gargalhada do secretário acolheu as últimas palavras de
Evaristo, comunicando-se a D. Branca e a Adelaide, que ia abrindo a boca para
lamentar “a sua linda cama de ramagens e o seu querido toucador de mármore…”.
– Então, vais mandar tudo para o depósito!…
E Furtado novamente ria, batendo com as mãos na mesa, inclinando a
cabeça, sapateando.
– Impagável o nosso Evaristo! Simplesmente impagável esse homem
com a sua filosofia de algibeira e com os seus ímpetos!
– Não te rias, que estou falando sério!
– Por isso mesmo…
E Furtado confessou generosamente, aprumando-se na cadeira, que os móveis
tinham sido comprados por ele. Não fizera mais do que um dever de amigo..
. Restava saber se o Evaristo opunha-se à qualidade sofrível
do guarda-roupa…
– Qual opor-me! – disse o bacharel todo humilhado com a fineza do secretário.
– Escolheste a dedo!
– Mas não para ser entregue ao depósito.
– Para o depósito vou eu mandar os baús de couro e umas velharias
do meu tempo de província.
E não se tornou a falar nos móveis e a estima do bacharel pelo
secretário aumentou. Evaristo não perdia ocasião de gabar
o Furtado, exaltando-lhe o coração generoso, a grandeza d’alma
e outras virtudes que ele pouco a pouco ia descobrindo no seu velho colega
de Liceu… Um homem como se não encontravam muitos na terra do egoísmo
e da hipocrisia, nesse Rio de Janeiro fundamentalmente pervertido, onde as
traições contavam-se pelas amizades e ninguém dava crédito
senão ao ouro e à maledicência… Um homem que o recebera
no seio da própria família e que, depois de o hospedar em casa,
inda lhe emprestava dinheiro e fazia surpresas como a da mobília! Era
o que se podia chamar um filantropo, um amigo excepcional!
– Que achas?
Adelaide confirmou os elogios, mostrando-se reconhecida às boas intenções
do secretário, qualificando-o de generoso, de nobre, de fidalgo, emprestando-lhe
todos os caracteres de homem de bem que não alardeia as ações
meritórias que pratica. O Sr. Furtado era um exemplo de delicadeza
e cavalheirismo. – Evaristo não via como ele a tratava? Interessava-se
por ela como por uma irmã; nas refeições, nos passeios,
à noite, quando jogavam. E a mulher também, a D. Branca. Ambos
muito amáveis!
– São simpatias… são simpatias… – explicava o bacharel,
acendendo o cigarro, com uma ponta de vaidade. – Tudo neste mundo é
a gente se insinuar… O orgulho mata a aspiração, enfraquece
o estímulo.
De manhã, vinham os dois, ele e a esposa, almoçar em companhia
dos Furtado, como pensionistas dum botei, e Adelaide passava quase todo o
dia embaixo, na sala de jantar, com D. Branca, até à hora da
segunda refeição, lendo romances, relendo jornais, discutindo
modas, costurando. Uma vida sem preocupações, nem intrigas.
D. Sinhá, do desembargador, é que às vezes ia interrompê-las
com histórias de namoro e bilhetinhos e novidades de Botafogo, sempre
muito misteriosa e muito coberta de pó de arroz. Furtado não
gostava dela, não lhe achava encanto e profetizava-lhe horrores!
Que mais podia querer Adelaide? Que outras ambições podia desejar
Evaristo? Perguntasse-lho, e eles não saberiam responder. Tinham casa,
cômodos independentes. boa mesa, boas amizades, tudo por pouco dinheiro,
graças à generosidade do secretário, cuja dedicação
parecia aumentar.
– E o piquenique no Jardim Botânico? – lembrou Furtado uma bela manhã.
– É verdade, o piquenique? – repetiu D. Branca.
– Por mim, é quando quiserem – disse o bacharel. – Ninguém
mais do que eu aprecia o campo, as árvores, o ar fresco, e o perene
correr de um fio d’água.
– Você por que não determina? – perguntou Branca ao marido.
– Tantas manhãs boas para a gente se divertir!
Furtado marcou o primeiro domingo de sol. Convidava-se unicamente o visconde
de Santa Quitéria. Nada do desembargador, nem de pessoas estranhas.
Havia de ser um piquenique familiar, uma coisa toda íntima sobre a
relva macia, bem longe da entrada do jardim. debaixo de uma árvore.
– Ao champanha? – perguntou D. Branca com os olhos faiscantes, numa alegria
súbita.
– Ao champanha, sim, ao champanha. Um piquenique delicado e de bom gosto,
como se usa em Petrópolis e na Europa… Toilettes claras, roupas leves,
menu à francesa, encomendado ao Pascoal!… e que ninguém se
lembre de morrer enquanto houver sol e árvores na natureza!
– Não convidas a Tourinho?
Mas Furtado declarou inda uma vez que só convidava o visconde, isso
mesmo porque devia muitos favores ao Santa Quitéria.
– Nem ao Dr. Condicional? – gracejou Evaristo.
Furtado esboçou um risinho, compreendendo a ironia, e não respondeu.
Eram de uso, então, os piqueniques no Jardim Botânico. Em se
aproximando o calor, o grande parque enchia-se, aos domingos, de uma população
ruidosa e promíscua, de milhares de pessoas de ambos os sexos, largamente
espalhadas, indo e vindo, nos seus trajos fofos, ao som de uma banda de música
oculta pitorescamente sob as árvores; e os tons claros das toilettes,
o colorido gárrulo dos vestuários matizavam a frescura sombria
dos caramanchões, de mistura com o vermelho sangüíneo dos
flamboyants. Risadas estalavam num cascatear argentino que se ia perder nos
longes da mata, ecoando em ondas sonoras de uma cristalinidade musical. No
centro da comprida aléia de palmeiras que vai desde a entrada até
o fundo da quinta, um repuxo esguichava perenemente, caindo em leque numa
grande bacia de pedra, rodeada de mirtos silvestres. Crianças apostavam
corridas e juntavam ao som da música a alegria de suas vozes. Em toda
a parte a mesma liberdade comunicativa, a mesma expansão domingueira.
Desde as cinco horas da manhã até as sete da noite, o Jardim
Botânico era como uma grande sala de hotel. Almoçava-se, lanchava-se,
jantava-se ao ar livre, sob os castanheiros, na relva fresca e cheirosa, à
beira dos lagos.
Ao primeiro domingo de abril realizou-se o sonhado piquenique. A manhã
estava radiosa, de uma inefável limpidez, o contorno das montanhas
muito vivo, sem borrões de nuvens, recortando em ziguezague o azul
infinito e puro do céu – manhã deliciosa como uma recordação
do passado ou como uma tela impressionista em que vibrasse a alma das coisas
numa estranha sinfonia bucólica de poema virgiliano… manhã
como essas de que falava a esposa do secretário – boa para a gente
se divertir, para a gente esquecer um pouco as misérias da vida, longe
da Rua do Ouvidor e das mexeriqueiras do bairro… Valia a pena, decerto,
aproveitar uma manhã como aquela, indo entre as árvores, no
seio bom da natureza, bebendo a água das fontes, a ouvir o misterioso
segredar dos pássaros e o trilar dos insetos invisíveis – na
Tijuca, no Jardim Botânico, em Petrópolis, em Friburgo, em Santa
Teresa…, onde quer que houvesse frescura e um pouco d’água límpida.
Todos acordaram cedo, a começar por D. Branca e a acabar por Evaristo,
que, à última hora, não se sentia em condições
muito favoráveis a uma jornada no campo; mas, enfim, sempre se resolveu,
depois de tomar uma dose de conhaque com açúcar.
A mulher de Furtado, sobretudo, não ocultava o bom humor que lhe ia
na natureza. Era doida por piqueniques, ninguém lhe falasse em piqueniques!
Ergueu-se às quatro horas, mesmo porque não dormira bem com
o calor, e foi à janela da frente ver como amanhecera o dia, “se
o Corcovado tinha nuvens”… Qual nuvens! O perfil da montanha estava
limpo na meia sombra do alvorecer. Qual nuvens! Daí a pouco o solzinho
estava fora e ela em caminho para o Jardim Botânico, mais o Furtado
e a Adelaide e o Evaristo e o visconde, o simpático visconde, o homem
que ela tanto admirava e que em toda a parte era o mesmo – elegante, correto,
generoso como um nababo, fidalgo até no abotoar a luva a uma dama…
Oh, o visconde de Santa Quitéria! Como ela se ia divertir, naquele
passeio ao ar livre, como ela ia gozar! A última cartinha dele…
– Que horas são?
Era a voz do secretário, inda na cama, na frescura matinal dos lençóis.
D. Branca teve um pequeno susto, um ligeiro sobressalto.
“Que horas eram? Quatro e meia…”
Ele, então, bocejou, espreguiçou-se molemente, coçando-se
e tornou a perguntar:
– Quatro e meia?
– Deu agora… Não faças barulho para não acordar a
Julinha.
– Vamos tratando de nos vestir.
– Vamos. Não tarda clarear.
E começaram as abluções, os preparativos.
No segundo andar o som abafado de um despertador elétrico fez sinal
retinindo embaixo, nos aposentos do secretário. Ele e a mulher trocaram
algumas palavras. Tinham combinado com o visconde para as seis horas e o visconde
prometera pão faltar. – Às seis em ponto estaria na casa do
amigo Furtado.
Foi pontual o Santa Quitéria – questão de mais um minuto, menos
um minuto. Vinha chique e alegre, sorrindo ao aproximar-se da casa do secretário,
no seu veston de brim, chapéu de palha, binóculo a tiracolo
e uma pequena valise cor de chocolate.
As duas senhoras correram à janela e o marido de D. Branca foi recebê-lo
à porta da rua.
O visconde apeou nobremente, murmurou qualquer coisa ao boleeiro, e, risonho,
apertando a mão a Furtado:
– Creio que estou na hora…
O secretário respondeu com uma exclamação venturosa,
estirando o braço para o Corcovado:
– Veja que dia lindo!
– Efetivamente! Está convidativo, está próprio!
E respeitoso, solene, o amável banqueiro perguntou pela “excelentíssima
senhora” e pelas crianças.
– Todos bons, muito obrigado. O senhor visconde é que tem mocidade
para um século!
– Oh, meu amigo… As aparências iludem… já me vou sentindo
cansadinho, graças a Deus.
– Ora, o senhor visconde!
Branca e Adelaide gentilmente o acolheram no alto da escada.
Evaristo completava a toilette no segundo andar
– Que dia lindo, senhor visconde! – fez a esposa do secretário. recuando
para deixar passar o Santa Quitéria.
– Lindo, minha senhora, lindíssimo!
Tinham todos um ar alegre e trataram-se com uma familiaridade burguesa, na
mais bela disposição de ânimo.
Adelaide, curiosa, quis ver se o visconde trazia o anelão de brilhante,
e os seus olhos procuravam a mão do banqueiro. Trazia, sim. Era uma
das coisas que ela admirava naquele homem – o anel, uma jóia primorosa,
inestimável.
– O senhor seu marido vai bem, minha senhora?
– Bem, obrigada – respondeu Adelaide, menos cerimoniosa.
Porque o visconde de Santa Quitéria em roupa de passeio não
tinha ares de fidalgo, como quando se apresentava de casaca ou mesmo no seu
fraque justo e elegante. A roupa branca – larga e mole no corpo dava-lhe uma
feição distinta, mas democrata, uma feição popular
de rapazola que sacrifica o luxo pela comodidade, a moda pelo bem-estar. Vendo-o
assim, a esposa de Evaristo animara-se a lhe responder em tom quase íntimo
de conhecidos velhos.
O criado trouxe uma bandeja com chocolate e pão-de-ló. Todos
se serviram, inclusive o bacharel, que já estava presente.
Afinal, depois de meia hora de palestra matutina, e aos primeiros clarões
do sol triunfante, a comitiva, em dois carros, tomou a direção
do Jardim.
O visconde fora se reunir à família do secretário não
tanto por delicadeza, quanto por “chiquismo”, para ir na companhia
das senhoras, gozando a amável presença de D. Branca e da jovem
Adelaide. Não queria perder ocasião de se mostrar na altura
dos seus sentimentos e da intimidade com que o tratavam as dignas senhoras.
O título de nobreza, que ele carregava solenemente há dois anos,
graças à benevolência do Sr. D. Pedro II, não o
impedia dessas e outras manifestações democráticas. Os
reis também apertam a mão ao povo e também lá
um dia esquecem as púrpuras e a coroa, trocando-as pelo redingote burguês…
O próprio imperador já uma vez desembarcara na Europa, no cais
Sodré, de sobrecasaca e guarda-pó, como qualquer mortal.
Estimava muito o amigo Furtado e a Sra. D. Branca para não ter orgulhos
de nobreza, nem de fidalguia. O seu paletó branco e a sua calça
branca naquele momento significavam intimidade e também um pouco de
elegância. A toilette em harmonia com a estação e com
o gênero de passeio.
Num dos carros ia ele, D. Branca e o secretário, no outro Adelaide,
Evaristo e o Raul. A Julinha fora passar o domingo à casa do desembargador;
D. Sinhá prometeu desvelar-se por ela.
Na frase entusiástica do visconde “o dia estava lindíssimo!”
o céu, muito azul, parecia o fundo largo de uma tela desdobrando-se
infinitamente por sobre o universo. A Corte espreguiçava-se aos primeiros
ruídos da manhã luminosa. Na plataforma dos bondes flutuavam
bandeirinhas verde-amarelas com a coroa nacional. Os quiosques de Botafogo
tinham o aspecto risonho de pavilhões infantis, embandeirados também,
com os seus galhardetes em arco, sob as árvores, olhando para o mar.
Um cheiro vivo de jasmins inundava a atmosfera, como que aveludando-a cariciosamente.
Principiava a agitação nos cafés e nas hospedarias. O
Raul julgou mesmo ouvir sons de música ao longe e apurou o ouvido:
– “Se não estava enganado…”
Ia para mais de seis horas.
O visconde foi o primeiro a apear. Todos apearam, numa grande alegria, diante
do portão do “nosso Bois de Boulogne” como dizia o Santa
Quitéria.
Furtado indagou logo se o homem da rotisserie já teria vindo, e lançou
um olhar curioso pelas proximidades do portão.
– Qual! Ainda não veio… Pois olhem que eu tratei para as sete horas!
O visconde tranqüilizou-o puxando o relógio, e dizendo que ainda
faltavam quinze minutos para as sete.
– Aí vem ele! – descobriu o Raul com um gesto alvissareiro, apontando
para um homem que trazia na cabeça uma grande caixa de folha em que
se liam as inscrições: Confeitaria Pascoal – Rua do Ouvidor.
– Ora muito bom dia! – Saudou o empregado aproximando-se.
– Bom dia – corresponderam todos a uma voz.
Um clarão iluminou os olhos vivos do filho do secretário.
– Já há bocado que estou à espera de vossas senhorias
– tornou o homem da caixa.
– Vá entrando e acompanhe-nos – ordenou Furtado.
O visconde ofereceu o braço gentilmente à D. Branca e, com
as demais pessoas – ele à frente – seguiu em linha reta para o interior
do jardim.
Lá estava, entre as palmeiras, o repuxo cantando, em fios d’água,
a monótona balada das fontes; ouvia-se, de longe, o ruidozinho da água
a esguichar, caindo em arcos para um e outro lado e confundindo-se quase com
o nostálgico farfalho das árvores. O sol, brando e macio, erguia-se
lento, sobredoirando as eminências, pouco a pouco iluminando a espessura
do arvoredo e a larga extensão verde que enchia bruscamente os olhos
encantados de Adelaide como um sonho de glória e bem-aventurança.
Respirava-se a frescura das plantas e o aroma fino das trombetas e das rosas,
a essência matinal das grandes árvores e dos pequenos vegetais
que acordavam à vida num banho morno de luz. Pompeavam estranhas florações
no recesso da mata e um hino misterioso parecia levantar-se da natureza ao
astro fecundante que ressurgia com o seu esplendor incomparável de
rei absoluto.
Vinham chegando outras famílias, outros casais, outros grupos, que
logo se perdiam no emaranhado das aléias laterais, e em todas as fisionomias
brilhava uma satisfação íntima, um como prazer novo e
especial, um reflexo de imortalidade astral.
O visconde parou no chafariz. Todos pararam no chafariz.
– É realmente belo! – exclamou o bacharel com os olhos erguidos em
êxtase para a copa das palmeiras.
– A Tijuca é mais solene… – observou circunspecto o visconde.
– O barulho da cascata é como se a gente estivesse num ermo religioso…
no meio de um deserto… muito longe… . muitíssimo longe…
– Oh, então deve ser triste demais… – argumentou o marido de Adelaide.
– Como triste? É encantador! é poético!
– Falta aqui o Dr. Condicional para dizer que lembra o Evangelho na selva…
– insinuou o amigo de Furtado.
O visconde achou graça, e, desdenhoso, carregando a esposa do secretário:
– Um petit-maitre, o tal Manhães!
Todos riram, inclusive o Raul que perguntou à mamãe o que era
petit-maitre.
Escolhido o local para o piquenique, sob um caramanchão agreste de
parasitas imitando a entrada de um túnel e onde havia uma grosseira
mesa de pedra, nos fundos do jardim, o bacharel propôs uma volta, uma
grande volta “para abrir o apetite”.
Ninguém discordou da idéia. O Antônio ficava botando
sentido à comida. (Antônio era o criado do secretário.)
-Um vermutezinho não é mau antes do almoço, oh, visconde…
– lembrou Furtado.
– Vá lá um vermute.
– Já tão cedo! – exclamou Adelaide.
– Pois então!… – fez D. Branca.
– Cedo para preparar o estômago – replicou o banqueiro.
– Ah!…
O próprio Furtado tirou da cesta cálices, uma garrafa intacta
que o Antônio abriu com estampido, e bebericaram.
– Agora, toca!
E marcharam, ora a dois e dois, ora a três e três, por entre
os tufos verdejantes, papagueando e rindo, num começo de liberdade
familiar. Aves ariscas voavam pressentindo-os; pipilavam ninhos na frondosa
espessura das ramagens; estridulavam cigarras em desafio, numa orquestração
aguda e uníssona.
Evaristo, no meio de toda aquela paisagem tropical, de uma riqueza encantadora,
lembrou-se da província, e, num tom solene e misterioso, recitou descobrindo
a cabeça e estacando:
– Solidão, eu te saúdo! Silêncio do bosque, salve!
Lera isso há muito num clássico português e nunca um
pensamento alheio fora tão bem empregado!
– Olhe, D. Adelaide, como se deita a perder um homem – gracejou o secretário.
Adelaide sorriu.
– Vocês é porque não sabem glorificar a natureza, vocês
é porque não lêem os clássicos! – replicou o bacharel.
– Mas não te lembras do resto.
– Como não me lembro, se é uma das páginas que eu nunca
hei de esquecer?
E o bacharel, sem receio de escandalizar o aprumo do Santa Quitéria,
berrou para o alto, como se falasse às nuvens:
– Solidão, eu te saúdo! Silêncio do bosque, salve! A
ti venho, oh natureza; abre-me o teu seio. Venho depor nele o peso aborrecido
da existência; venho despir as fadigas da vida!. .. Os homens não
me deixam; amparai-me vós, solidões amenas, abrigai-me, oh solidões
deleitosas.
– Onde queres tu chegar com essa desfruteira, oh Evaristo? – interrompeu
o outro.
– Quero chegar ao fim da página…
– Olha que isso é um desrespeito ao visconde! – segredou Adelaide.
O banqueiro, porém, havia-se destacado um pouco e marchava com D.
Branca, sem se incomodar, no seu passo lento de garça real. Atrás
vinham as outras pessoas. O secretário tinha absoluta confiança
no visconde; até aborrecia-o dalgum modo a sisudez, a gravidade patriarcal
do celibatário. A Branca ia muito bem na companhia dele, do Santa Quitéria.
Este, enquanto o bacharel discursava e vendo-se longe de ouvidos perigosos,
abriu válvulas ao coração, baixinho e disfarçadamente.
– Creio que não a posso esquecer; acordo e deito-me pensando no nosso
grande amor… Imagine se estivéssemos sós aqui.
– Oh!…
Mas deixe estar que ainda havemos de ser muito felizes… muito felizes.
– Eu bem sei que me ama, bem sei, mas vi-o outro dia interessar-se tanto
pela minha amiga Adelaide…
O capitalista sorriu benevolamente, como quem perdoa.
– Sua amiga Adelaide é uma criança… uma menina de ontem…
e eu seria incapaz… Oh!… faça-me justiça…
– Eu não estou afirmando…
– Creia que não me preocupo com outra pessoa.
– E que tal a idéia do piquenique? Supus que não viesse…
O banqueiro guardava a atitude respeitosa e fidalga de quando se exibia nos
salões. Ia responder, mas ouviu passos na areia. Voltou-se: eram as
outras pessoas, o Raul, Evaristo, Adelaide e o secretário, que se aproximavam
silenciosamente.
Foi longo o passeio através das árvores, em romaria bucólica
e matinal pelas avenidas do jardim. O visconde colhia flores dedicadamente
para as senhoras. D. Branca, mesmo na presença do marido, colocou uma
na sua botoeira, sempre risonha, sempre afável, multiplicando-se em
gentilezas ao Santa Quitéria. Adelaide, entre Evaristo e Furtado não
perdia o ar ingênuo e melancólico que tanto preocupava ao Manhães
na noite do batizado e que encantava o secretário. Este volvia constantemente
os olhos para ela e de vez em quando arriscava um segredinho inofensivo, uma
pilheriazinha, elogiando-a, gabando-lhe os olhos, a boca, fazendo alusões
amorosas às flores, glorificando o amor livre dos pássaros,
lembrando cenas de romances, episódios do campo… Furtado aproveitava
os momentos em que o bacharel ia, com o Raul, fazer provisão de flores
para enfeitar a mesa do lanche”.
Os dois já não sabiam onde colocar flores; levavam grandes
buquês feitos à pressa. O secretário achava muita graça
naquela amizade do Raul ao Evaristo.
– Se meu marido é uma criança! – ralhava Adelaide.
– Uma criança de vinte e oito anos!… – dizia o secretário.
– Criança, porque não tem juízo, porque não se
importa…
– Deixe-o lá, deixe-o lá… É gênio.
– Mas não fica bonito, não é sério.
De novo entravam todos na grande além de palmeiras e de novo chegaram
ao caramanchão escolhido para o piquenique.
Ia para as onze horas. O sol inundava a floresta e nenhuma nuvem toldava
a maciez límpida do céu. Todos respiraram ao entrar no improvisado
restaurante coberto de folhas, rodeado de árvores e onde se gozava
uma frescura deleitosa e aromada de selva.
– Uf! – respirou Evaristo sentando-se. – Já é andar. Olhem
que demos a volta ao jardim!
– Outra dose de vermute – propôs o secretário.
– Apoiado, apoiado! – murmurou o visconde fazendo-se alegre.
As duas senhoras conversavam endireitando as toilettes, revistando-se uma
à outra com risadinhas.
O Antônio pusera “a mesa”; uma toalha muito branca alvejava
no pequeno recinto que a luz mal penetrava. Sobre a toalha brilhavam os talheres
de metal branco e os copos de cristal muito finos, e as flores que o Raul
colhera. Ao aspecto risonho da mesa as fisionomias tomaram uma expressão
viva de conforto. – “Era tempo de se ir comendo qualquer coisinha…”
– balbuciou Evaristo ao secretário. Este dispunha tudo na melhor ordem,
falando ao Antônio, sorrindo ao banqueiro, uma atividade pasmosa de
garçon d’hótel.
De dentro da caixa da confeitaria surgiu primeiro um prato com “vol-au-vents
e logo seguiu-se o estampido de uma garrafa que se abre.
– Vamos, vamos – comandou Furtado. – Senhor visconde. D. Adelaide… Branca…
Evaristo… Vão se sentando…
Riram-se todos à falta de cadeiras. Mas havia no caramanchão,
longe da mesa, um banco de pedra, onde se sentaram as duas senhoras. Os homens
comiam em pé.
– Aqui há ainda um lugar, senhor visconde – ousou amavelmente a esposa
de Furtado conchegando-se à amiga.
– Não, não, minha senhora, obrigadíssimo; eu faço
companhia aos do meu sexo…
– Isso, visconde, isso! – aprovou o bacharel. – Um homem é um homem!
Vieram outros pratos, outras iguarias delicadamente feitas no Pascoal, sob
encomenda do secretário: uma esplêndida torta de camarões
– regada a Sauterne – ostras e uma bela garoupa fria e apetitosa, não
falando no hors-d’oeuvre no fiambre, nas azeitonas muito fresquinhas e muito
negras que o visconde colhera com a ponta dos dedos, e as frutas ao dessert
– pêssegos, uvas e abacaxi frappé.
O almoço correu alegre, muitíssimo alegre, cheio de risos,
fermentado pelo Bourgogne e pelo champanha – um almoço leve, delicadíssimo
e substancial, “aristocraticamente fino”, como ideara o esposo de
D. Branca. Evaristo, ao abrir-se o champanha, pediu que não se fizessem
brindes.
– O brinde é a maior tolice do século dezenove – explicou ele,
tragando uma roda de abacaxi. – O brinde parece até uma invenção
do Valdevino Manhães ou de Mr. de La Palisse; eu sou contra o brinde
como sou contra a mon…
Ia dizendo monarquia, mas arrependeu-se logo, sem olhar para o visconde:
– … Como sou contra o voto feminino!
– Eu só compreendo o brinde quando é de honra, à Sua
Majestade o Imperador, à princesa… ou mesmo a um homem ilustre que
se não confunda com o resto da gente.
– Qual, senhor visconde! exclamou o bacharel depondo o talher.
– O brinde, seja ele a quem for, é uma das muitas ridicularias da
civilização… Não sei como qualificar o indivíduo
que interrompe a boa digestão de uma mesa, de uma sociedade, para,
de taça em punho, levantar um brinde às virtudes de outro, não
sei.
Evaristo esquecia-se do batizado da Julinha em que o diretor do Banco Luso-Brasileiro
fizera diversos brindes entre os quais um a seu amigo Furtado, que por sua
vez brindara à sereníssima herdeira do trono.
Adelaide fez-lhe sinal piscando o olho, mas o bacharel não percebeu
e concluiu dizendo catedraticamente que o brinde “era uma prova de ignorância
e de tacanhez intelectual”,
Todos estranharam aquela franqueza perante o visconde de Santa Quitéria,
na presença do respeitável amigo de Suas Majestades que ninguém
ousava contrariar nas menores coisas.
Furtado disfarçou o mau efeito das palavras de Evaristo, dizendo alegremente
que, para provar ignorância e tacanhez intelectual, ia brindar à
Inspetoria do Jardim Botânico e mais à Flora brasileira.
– Muito bem, muito bem, meu amigo – fez o visconde erguendo o copo. – O esposo
da Sra. D. Adelaide estava bem para niilista, ao que vejo. Atira-lhe com um
brinde &agagrave; Flora.
As palavras do visconde mereceram aplauso das duas senhoras. Adelaide e Branca
saudaram-no entusiasticamente.
– Bravo, senhor visconde, bravo – exclamaram as duas a um tempo.
E Evaristo, esmagado pela maioria, bebeu também à saúde
do Jardim Botânico, “uma vez que o amigo Furtado e o ilustre senhor
visconde faziam questão”.
Beberam, e o champanha, caindo no estômago farto dos homens e das senhoras,
trouxe-lhes ainda mais alegria e expansão.
A própria Adelaide tinha agora um brilho comprometedor nos olhos,
uma viveza fora do natural, e falava também, muito risonha, inclinando
a cabeça no ombro de Branca. A mulher do secretário lamentou
a ausência da viúva Tourinho; faltava uma senhora para completar
três casais, e a viúva sabia se divertir como gente, era uma
bela companhia.
– E o desembargador? por que não convidaram o desembargador Lousada?
– disse o marido de Adelaide, devorando um cacho de uvas.
– Oh, Evaristo, você ainda come? – acudiu a jovem esposa do bacharel,
cujas faces, ordinariamente pálidas, tinham agora um ruborzinho quente.
Furtado perguntou, então, se ainda queriam tomar alguma coisa, e como
todos recusassem, propôs novo passeio através das árvores.
Ninguém discordou da idéia. Evaristo, porém, falou ao
ouvido do secretário, que lhe respondeu baixinho, acrescentando alto,
para as senhoras e o visconde:
– Podemos ir, podemos ir; o Evaristo irá depois…
– Como, irá depois? – perguntou Adelaide com um arzinho de riso.
– Vão andando, que eu já os encontro – disse o bacharel misteriosamente.
– É questão de minutos…
– Espera por ele, oh Raul – ordenou Furtado.
E, oferecendo o braço a Adelaide, à imitação
do visconde, que já se apoderara de D. Branca, saiu do caramanchão.
O número de passeantes aumentava com o correr da tarde. O jardim ia-se
enchendo de famílias e rapazes que percorriam as avenidas de chapéu-de-sol
aberto à luz das duas horas. Os sons da música chegavam aos
ouvidos distintamente na aragem acariciadora que soprava. Como que esmoreciam
os tons vivos da paisagem, num desmaio lento; o sol esfriava um pouco e o
azul tinha agora uma cor poeirada de cinza, como um espelho que de repente
se ofuscasse a um bafejo úmido. Todas as coisas iam mudando de aspecto
à proporção que se aproximava o fim da tarde. Os tons
vivos iam-se traduzindo em tons melancólicos; a natureza, cansada de
luz, queimada pelos ardores do sol, numa indolência outonal, volvia-se
para o crepúsculo, adivinhava a noite. O repuxo central do Jardim entoava
a sua ladainha num ritmo blandicioso de cascata longínqua.
Furtado queria se abrir com Adelaide agora que estavam sós, dizer-lhe
tudo quanto sentia por ela desde que a vira pela primeira vez, contar-lhe
as suas insônias, o muito que a estimava, a extraordinária simpatia
que ela lhe inspirava; mas uma timidez amordaçava-o, uma timidez de
colegial, e, no fundo, um vago sentimento de compaixão pelo amigo,
pelo Evaristo, seu velho contemporâneo do Liceu, cujas qualidades, ontem
como hoje, eram dignas do respeito que se deve a um chefe de família
honesto e exemplar. Além disso, temia qualquer movimento de indignação
por parte de Adelaide; ela talvez o repelisse, dando escândalo num lugar
público, desabafando ali mesmo em face do visconde e de sua mulher,
inutilizando-o. Mas logo esses temores desapareciam e voltava-lhe o ânimo,
a coragem de homem useiro e vezeiro nas pugnas do amor fácil.
E já não pensava no Evaristo nem nas conseqüências
de uma deslealdade infame, trancando o coração ao sentimentalismo
e aos influxos nobres, abstraindo de tudo que não fosse o desejo criminoso
e lúbrico de aumentar o número das suas conquistas. Porque,
em verdade, a presença daquela mulher tirava-lhe o sossego íntimo,
arrebatava-o como a presença de outras igualmente respeitáveis
e a quem ele seduzira com os seus brilhantes e com as suas lábias,
triunfando como um general invencível. Apontava-as a dedo; via-as passar
na Rua do Ouvidor e saudava-as feliz e glorioso. Adelaide sorria-lhe e tanto
bastava para que dentro dele se ateasse a chama rubra do desejo, lambendo-o
vorazmente, como uma língua de fogo, queimando-lhe o coração,
escaldando-lhe o cérebro.
Ele então apertava-a contra si, mordendo o beiço, ameigando
o olhar, com ímpetos de explodir numa declaração formal,
absoluta e suprema, como se estivesse de joelhos num confessionário,
e pedir-lhe, pelo amor de Deus, por vida de seus olhos, por tudo! que soubesse
corresponder àquela estima, àquele amor, àquela loucura.
Adelaide ia rindo, muito satisfeita, não completamente fora do círculo
de idéias que preocupavam a Furtado; de algum modo ela não estava
muito longe de preferir o secretário a Evaristo; iniciada nos segredinhos
de alcova por D. Branca, que lhe abrira os olhos à vida fluminense,
tumultuosa e desregrada, na rua como nos salões, vendo o exemplo de
outras mulheres e da própria Branca, Adelaide insensivelmente ia-se
deixando absorver pelo meio que a cercava, embora a educação
que recebera na província, os hábitos ingênuos, a natural
timidez, que ainda conservava, não cedessem logo a um primeiro impulso
do coração. Ela notava as delicadezas de Furtado, via-o quase
sempre de olhos cravados no seu rosto como se quisesse adivinhar o que lhe
ia n’alma, guardava o caso da mobília e dos duzentos-mil-réis
e muitas outras provas de generosidade e fineza do secretário; mas
atribuía tudo a um sentimento de amizade para com Evaristo, a um impulso
natural de velho companheiro de escola.
Iam por uma aléia sombria de bambus, cuja copa unia-se formando um
túnel verde extenso, que se prolongava em ziguezague. Às vezes
o banqueiro desaparecia numa curva com a mulher de Furtado, e o secretário
conchegava o braço de Adelaide, numa pressão meiga e voluptuosa,
como se a quisesse envolver de carinhos, o olhar medindo toda a singeleza
do seu perfil, resvalando-lhe na cútis do rosto e caindo apaixonadamente
no pescoço que as rendas do plissê guarneciam de branco.
As palavras dele, ungidas de ternura, ritmadas pela emoção,
Adelaide ouvia-as inquieta, e, instintivamente, apressava o passo, medrosa,
de estar ali sozinha “com um homem!”.
– Como é escura esta avenida! – exclamou, de repente, erguendo os
olhos para a copa dos bambus.
Furtado estremeceu.
– Escura, mas muito agradável, não acha? – murmurou quase ao
ouvido dela.
– Pelo contrário…
– Não diga pelo contrário… Leia os poetas. .. A solidão
convida ao amor…
Adelaide estranhou aquelas palavras e calou-se.
O trajo branco do visconde assomou longe e tornou a desaparecer entre as
árvores.
A esposa do bacharel queixou-se de uma dorzinha de cabeça; o champanha
lhe fizera mal.
Ele tranqüilizou-a, dizendo que o champanha não fazia mal a ninguém;
que era uma bebida inofensiva como água… O vinho do Porto, sim, o
vinho do Porto estragava o estômago. Mas não tinham tomado vinho
do Porto…
– Então é do sol.
– E do muito sol que apanhamos. Eu mesmo sinto um fogo na cabeça,
uma quentura no cérebro.
De repente o secretário estacou; descobrira um pequeno inseto cor
de ouro no ombro de Adelaide. Colheu-o na ponta dos dedos e mostrou-lho.
– Veja que bonito!
– É verdade: lindo!
– Naturalmente confundiu-a com alguma rosa..
– Que graça, senhor Furtado…
– E então? Admira-se de que eu a compare a uma rosa?
– Muito lindo! – repetiu Adelaide observando o insetozinho na palma da mão.
Estavam agora frente a frente ocupados com a descoberta do coleóptero,
ele sem tirar os olhos dela, todo embebido na contemplação do
seu rosto ideal.
– O Evaristo gosta muito de insetos, vou guardar para ele.
E depositou cautelosamente o besouro na bolsa de couro da Rússia que
sempre trazia, dizendo:
– Que demora de meu marido!
– Anda às voltas, com o Raul.
E no momento em que ela fechava a bolsa para continuar o passeio, Furtado
abaixou a cabeça, num movimento nobre, e beijou-lhe audaciosamente
a mão, oferecendo-lhe, ato contínuo, o braço.
– Senhor!…
Ia exclamando: – Senhor Furtado!… – num tom de admiração
e de queixa; mas, o insólito procedimento do secretário gelou-a.
Um beijo!… Faltava-lhe toda a coragem, toda a presença de espírito,
para reagir no mesmo instante, lembrando ao marido de D. Branca o respeito
que todo o homem deve a uma senhora casada. Penderam-lhe os braços,
curvou a cabeça, e em vez de uma explosão de palavras que demonstrassem
a Furtado a sua indignação e o seu assombro, ela deixou que
as lágrimas corressem como pérolas de rosário desfiado.
Nunca homem algum se atrevera a tanto, nunca o seu pudor de mulher fora tão
cruelmente magoado como naquela ocasião e por um homem que devia ser
o primeiro a respeitá-la.
– Adelaide… – murmurou Furtado numa voz suplicante. – Zangou-se?
A jovem senhora não respondeu. Ia calada, muda, abafando o seu ódio,
enxugando as lágrimas. Compreendia agora os zelos do secretário
para com ela, a sua fingida dedicação ao Evaristo; compreendia
tudo…
Mas, ao mesmo tempo, compreendia a necessidade de ocultar aquele episódio
revoltante “para não dar escândalo”, para evitar a
cólera de Evaristo e uma grande desordem, talvez, entre o secretário
e a mulher. Oh, infelizmente era preciso mostrar cara alegre, ainda que o
coração estivesse sangrando… Nunca lhe passara pela idéia
que o Sr. Furtado, um homem que se dizia tão fino, tão bem-educado,
abusasse da sua posição e de um momento como aquele para…
para beijá-la, como se estivesse tratando com uma criadinha de família,
sem pejo nem nada! Era muita coragem e muita desfaçatez!
– D. Adelaide… – repetiu Furtado aproximando-se dela. – Queira desculpar-me
se a ofendi…
A esposa de Evaristo continuou no mesmo silêncio obstinado, como uma
pessoa que de repente perdesse a fala, indo maquinalmente pela avenida, sem
ver as coisas, olhando para o chão fofo que seus pés iam pisando
insensivelmente. De alegre que estava quando saiu do caramanchão, tornou-se
melancólica e indiferente às belezas do jardim e às fulgurações
da luz. Doía-lhe a cabeça com uma intensidade atroz.
Furtado emudeceu também, penalizado, um pouco arrependido já,
receoso de que Adelaide não fosse cometer alguma imprudência
desabafando-se. Mordia o castão da bengala com um ar sério de
quem cogita numa grave questão.
Aventurou nova pergunta:
– Quer que me ajoelhe e peça perdão? Creia que foi uma loucura
de que me confesso arrependido…
Adelaide suspirou levemente, como alívio, ainda sem responder. Neste
instante a música do outro lado do parque tocava uma habanera saudosa
cujo eco ia morrer longe nas montanhas, penetrado de evocações.
O coração terno da esposa de Evaristo encheu-se de bondade e
acordou subitamente da melancolia em que o deixara Furtado. Ela, porém,
não tinha coragem de abrir a boca e dizer uma simples palavra, como
se estivesse na presença de um estranho, de um desconhecido. Queria
esquecer a ofensa que recebera do amigo do Evaristo, acabar com aquilo e continuar
a viver como dantes; o homem às vezes não é senhor de
si… Lembrava-se dos favores que o bacharel devia ao secretário, da
extremosa amizade de D. Branca e um sentimento de gratidão penetrava-a
desanuviando-lhe a alma, restituindo-lhe o bom humor e a visão otimista
da paisagem e das coisas… Não valia a pena zangar-se, amofinar-se
por uma tolice, de uma loucura… Ninguém vira o secretário
beijar-lhe a mão, ninguém…; a aléia estava deserta
como o interior de uma gruta longínqua. Para que então, provocar
escândalo? Também não se deve ser muito escrupulosa…
deve-se desculpar, fechar os olhos a estas coisas.
Furtado ouviu um rumor na areia. O Raul aproximava-se correndo; atrás
dele vinha o bacharel em passo ordinário.
– Eh, lá! – gritou Evaristo. – Esperem ao menos pela gente!
O secretário voltou-se com Adelaide e riram ambos da filosofia ingênua
daquele marido excepcional.
– Já te fazíamos desertor!
– A mim?… Ufa, que já me não tenho nas pernas!… Desertor?
– Onde andaste há quase uma hora?
– Vendo as cascatas e os reservatórios… Pergunta ao Raul!
– Oh, que bonito, hem, senhor Evaristo? Que bonito, papai! A cachoeira vem
de lá de cima da montanha rolando, rolando como uma chuva…
– Esplêndido! – tornou o bacharel. – Já não nos lembrávamos
de vocês… Que é do visconde?
– Vai lá adiante com a Branca.
– Papai, oh papai! – interrompeu o menino.
– Que é, meu filho?
– Um homem estava tirando o retrato da cachoeira, com uma máquina…
– Já sei.
E para Evaristo:
– D. Adelaide é que está com uma dorzinha de cabeça.
– Melhorei um bocado, já não dói tanto – disse Adelaide.
– E agora para onde nos atiramos? – perguntou o bacharel.
– Ao encontro do visconde e da Branca.
Foram andando os três, mais o Raul. Saíram na grande aléia
das palmeiras, onde se achava o Santa Quitéria de braço com
D. Branca cm torno do repuxo, vendo cair a água em fios dentro do reservatório.
– Olá, como estão embebidos! – exclamou o Furtado.
O bacharel, por trás do secretário, piscou maliciosamente o
olho à esposa.
– É verdade, como estão embebidos! – repetiu Evaristo.
E aproximaram-se justamente na ocasião em que o Santa Quitéria
falava em voz muito baixa no seu escritório na Rua da Alfândega,
onde havia uma alcova, toilette, jarro com flores, et coetera…
O instinto de D. Branca advertiu-a da aproximação de Furtado;
ela fez sinal com os olhos ao banqueiro e entraram todos a confabular alegremente.
Estava reunida a troupe sem faltar uma só pessoa. O visconde consultou
o relógio: eram três e meia.
– Cedo – murmurou.
– Querem tomar alguma coisa? – ofereceu o secretário. – Um vermute,
um conhaque, um copo de água gelada.
Ninguém queria; em todo caso foram repousar à sombra do caramanchão,
enquanto o sol ainda estava quente.
Adelaide aparentava a mesma fisionomia naturalmente ingênua do costume.
Evaristo sempre despreocupado, não adivinhou, através do seu
rosto, a mais leve contrariedade. Já se habituara àqueles longes
de melancolia, que eram a verdadeira expressão do olhar da esposa.
D. Branca notou porém um tom cerimonioso na voz do Furtado, quando
este se dirigia a Adelaide. Desconfiança, talvez, mas notara… e ela
que conhecia bem o gênio do esposo, imaginou logo o fio de uma secreta
história de amor…
As cinco horas, nova refeição desafiava o apetite do bacharel
e do Raul, somente deles, porque as outras pessoas torceram o nariz à
galinhola e à maionese de salmão; contentaram-se parcamente
com uma fatia de queijo holandês, um pouco de marmelada e vinho de Bourgogne.
O visconde acrescentou água de Selters, limpando o bigode com cerimoniosa
fidalguia.
Evaristo e Raul é que não dispensaram a comezaina e entraram,
de rijo, na asa de galinha e na maionese.
– Vocês não sabem o que estão perdendo! – excitava o
bacharel, sem cerimônia, trincando as azeitonas. – Um bocadinho de maionese,
Adelaide!
O Raul achava graça nas palavras e no apetite de Evaristo e ria mastigando,
com um risinho dobrado e sonoro que fazia os outros rir.
– Então, D. Branca? Mostre ao menos que é filha do sul!
– Não, senhor Evaristo, muito obrigada – sorriu corando a elegante
fluminense.
– E o senhor visconde? e o amigo Furtado? Olha que gente!…
Abriam-se garrafas de vinho. O Antônio sempre alerta movimentava o
quadro, exibindo as suas qualidades de copeiro que ama o ofício.
– Não vás indigestar… – advertiu o secretário ao filho.
No mesmo instante Adelaide recomendava ao marido que “tivesse cuidado
com a maionese”.
A luz do sol desmaiava num crepúsculo cheio de misteriosas paIpitações.
Descia das montanhas um ar úmido; o som das cascatas vinha impregnado
do aroma da floresta, como se dele fizesse parte, e evocava, aquela hora,
longes de natureza tropical, saudosas ave-marias da infância… O parque
com as suas árvores colossais, com os seus renques de palmeiras, com
os seus túneis de verdura e com as suas planícies de grama,
onde brotavam pequeninos eucaliptos e obscuros vegetais de famílias
obscuras da Índia e do norte da América – o grande parque ia-se
revestindo de melancolia e cada árvore com a sua etiqueta explicativa
tinha um ar fúnebre de cemitério…
– Agora podemos ir – disse Evaristo -, mesmo porque vem caindo a noite…
Dirigiram-se todos para o portão do Jardim.
V
Adelaide recolheu-se triste naquela noite; por maiores esforços que
fizesse, não podia esquecer a afronta do secretário aos seus
brios de mulher casada, e o que mais a impressionava era o desplante, o cinismo
audacioso com que ele a beijara… – Que coragem de homem, Senhor! Quase à
vista de todos, em pleno Jardim Botânico, num lugar público!
Eis aí quando a gente perde a cabeça e comete uma loucura, eis
aí!
Depois falam, depois não dão razão, e uma mulher vê-se
obrigada sofrer os maiores insultos, porque tem medo de que lhe aconteça
pior…
Já há dias notara certas liberdades de Furtado, certa maneira
de lhe falar, de lhe dizer as coisas baixando a voz, ameigando o sotaque,
olhando-a insistentemente; já há dias notara… mas, palavra
de honra como não supunha o marido de D. Branca um homem sem escrúpulos,
um sedutor, um amigo desleal… Pobre Evaristo! nem sequer imaginava…
E caía-lhe n’alma um desgosto, uma tristeza, um cansaço da
vida, um peso enorme. Oh, quanto mais para dentro da civilização,
mais horrores, mais espinhos, como no interior de uma floresta de cardos,
povoada de insetos venenosos. Homens e mulheres traem-se com a mesma facilidade
com que se juram amar eternamente uns aos outros. Bem lhe diziam na província
que o Rio de Janeiro era um centro de perdição, uma Babilônia
de vícios, bem lhe diziam!… Melhor prova ela não podia ter:
o Sr. Luís Furtado, aristocrata de Botafogo, pai de família,
mostrava-se dedicado aos outros para poder abusar.. E assim era tudo.
O cérebro de Adelaide enchia-se de considerações, enquanto
Evaristo mergulhava num sono calmo e reparador. O bacharel não esperou
pela hora habitual de se deitar, fatigado do passeio, com uma invencível
morrinha no corpo, os olhos ardendo, a vista turva, esvaziou uma moringa d’água
fresca e estendeu-se na cama, na bela cama de casal. “Não era
de bronze para resistir às conseqüências de um piquenique!”
E dormia, o Evaristo, como o mais feliz de todos os bacharéis.
Adelaide é que não podia dormir, apesar de cansada também.
Era maior a preocupação moral que o sono. Ouviu bater oito horas,
nove, dez, onze, meia-noite, e o cérebro a trabalhar, a funcionar como
uma máquina de alta pressão. Chocavam-se nela as mais desencontradas
idéias: ora Furtado parecia-lhe um homem sem caráter, indigno
da amizade de Evaristo ou de quem quer que tivesse um bocado de vergonha,
ora afigurava-se-lhe cavalheiro distinto, com todas as virtudes e defeitos
(não há homem sem defeitos …) da sociedade em que vive. Ao
mesmo tempo que o condenava por lhe ter beijado a mão, ferindo-a no
seu amor-próprio, intimamente o perdoava, lembrando-se de que talvez
ele a amasse deveras e o amor é cego, o amor não quer saber
de razões… Quem sabe? ele talvez a amasse, talvez lhe consagrasse
alguma estima particular e fora de suspeitas criminosas. Beijou-a porque…
porque não teve forças para se dominar…
A consciência, porém, dizia-lhe baixinho que uma mulher casada,
uma mulher que se ligou a um homem para toda a existência, é
objeto que outro homem não deve tocar nem de leve, ainda mesmo a pretexto
de amizade fraternal ou de sagrada admiração; e a esposa que
se deixa beijar por um homem, que não é o seu legítimo
marido, tem na sociedade o feio nome de adúltera. Vinha-lhe, então,
um arrepio nervoso, uma sensação de remorso por não ter
energicamente repelido o secretário, mesmo com escândalo, embora
caísse sobre ela todo o ódio de Furtado e de D. Branca; acima
deles estava a sua dignidade e a honra de Evaristo. No meio dessas idéias,
e como uma aparição bendita, surgiu-lhe a figura de Balbina,
a preta velha de Coqueiros, e uma lágrima triste, uma lágrima
de saudade embebeu-se no travesseiro da meiga esposa do bacharel.
Evaristo roncava.
No outro dia falou-se muito no piquenique; todos tinham gostado imenso. A
correção do visconde, o ar fidalgo que ele não perdia
mesmo entre amigos, a toilette com que se apresentava, as suas delicadezas
mereceram especiais referências de D. Branca.
O secretário não esteve muito loquaz ao almoço; dava
uns apartes tímidos e avançava um ou outro juízo irônico
sobre o passeio da véspera, lamentando as dores de cabeça de
Adelaide e a eterna circunspecção do visconde. – “Afinal,
a verdade é que ninguém se divertira. Resultado: um passeio
de burgueses, um piquenique fúnebre!”
– Fúnebre por quê? – saltou Evaristo. – Vocês é
que não sabem se divertir; eu pelo menos fiz honra à confeitaria
Pascoal e gozei o que há muito não gozava: o aspecto da nossa
natureza, a sombra de uma árvore e a frescura de um veio d’água.
Nesta imperial cidade, onde a vida do rei é o que de mais precioso
existe, vale a pena um homem sair dos seus cômodos para respirar o ar
livre do Jardim Botânico ou de outro jardim qualquer. Nós é
que não sabemos gozar o que possuímos. O imperador absorve o
cérebro e o coração deste povo…
– Deixe o velho, Sr. Evaristo, Sr. Evaristo … – fez D. Branca. – O imperador
é um bom homem.
– Ninguém diz o contrário; mas o Brasil ainda é melhor
que ele…
– Aí vem política! – murmurou Adelaide, que até aí
não dera palavra.
Furtado olhou-a e sorriu; ela abaixou os olhos gravemente.
O resto do dia passou calmo. Adelaide subiu, depois do almoço, como
às vezes costumava, e foi ler os jornais. Estava resolvida a mudar-se
daquela casa antes que estalasse algum escândalo.
Mas a insistente idéia de Furtado não a abandonava e todo o
santo dia pensou nele, como num objeto querido, e nas histórias de
amor que lhe contara D. Branca. Como exigir de Evaristo uma mudança
brusca, ela que nenhuma razão podia alegar contra o sobrado ou contra
a família do secretário? Dizer-lhe simplesmente que não
estava bem ali era uma imprudência, tanto mais quanto as suas relações
com a esposa de Furtado eram estreitíssimas e ela sempre fizera grandes
elogios à casa e ao próprio marido de D. Branca. Antes esquecer,
antes esquecer tudo e apresentar-se alegre, fazendo pela vida como os outros,
não estorvando os projetos de Evaristo, aceitando os homens como eles
são – desleais e corruptos… Que podia ela só contra uma sociedade
inteira, contra milhares de pessoas? Nada, absolutamente nada. Homem e mulher
vivem conforme a sociedade os obriga a viver, fingindo não perceberem
aquilo que lhes está entrando pelos olhos; a mulher principalmente,
a mulher é um ente nulo, uma criatura sem vontade, uma pobre máquina
dos caprichos do homem. Triste daquela que, instigada pelo amor-próprio,
arrebatada por um movimento de dignidade feminina, rebelar-se contra o jugo
do meio em que vive! Não lhe faltarão apodos, nem grosseiras
alusões…
Na sua simplicidade provinciana a jovem esposa do bacharel começava
a compreender o papel inferior da mulher na civilização, e traçava
mentalmente um programa de vida, uma linha de conduta humilde e utilitária
sobre as bases que lhe fornecera a experiência de alguns meses. O Rio
de Janeiro aparecia-lhe agora sob um aspecto novo e convencional. Furtado
representava, a seus olhos, o homem moderno, capaz de todas as perversões,
de todas as hipocrisias, colocando acima da dignidade própria, o sensualismo,
os gozos inconfessáveis, a luxúria sob todas as formas e as
exibições públicas de toilettes à última
moda. Notara, no piquenique, a insistência com que o visconde de Santa
Quitéria se dirigia a D. Branca, levando-a pelo braço a passear
no Jardim, fora das vistas do secretário, enquanto este, por seu turno,
ia maquinando o melhor meio de pôr em prática uma traição
ao amigo… e essas e outras coisas enchiam-lhe o coração de
descrença e de pesar. O verdadeiro – a prudência lho dizia –
era fechar os olhos a tudo e esperar que Evaristo se convencesse da asquerosa
realidade… Ela nunca o havia de trair, isso nunca! Preferia morrer, preferia
suicidar-se… Queria-o muito, orgulhava-se em o ter como esposo de sua alma.
Ou a mulher ama o homem com quem vive e, se o ama, não o pode trair,
ou não o ama e, neste caso, é a pior de todas as mulheres de
vida fácil, porque diz hipocritamente que o ama para, à sombra
de um responsável. cometer infâmias. Não, ela havia de
respeitar seu maridinho enquanto Deus lhe desse juízo.
Arrumou a casa, espanou os móveis, passou uma vista nos jornais e
sentou-se entregue às suas reflexões, o espírito alvoroçado
pelo enxame das idéias, num grande silêncio de tugúrio
que nenhum estalido quebrava.
D. Branca, pé ante pé, foi encontrá-la na cadeira de
balanço, a olhar o teto, numa abstração infinita, rodeada
de jornais.
– Boa vida! – exclamou, com um sorriso afetuoso, a mulher de Furtado.
Adelaide teve um pequeno sobressalto: “- Oh!… Estava pensando…”
– Estava pensando! Isso é grave… Cai ou não cai o ministério!
O imperador vai ou não vai à Europa?
A outra endireitou-se na cadeira, passou a mão nos olhos, como quem
acorda, e suspirou de leve.
– Olhe que a vida é curta, menina, olhe que a vida é curta
– repetiu a amiga em tom conselheiro.
– E os desgostos são muitos…
– Qual desgostos, criatura! Uma mulher nova e bonita não pode queixar-se.
E sem transição, D. Branca aludiu ao piquenique. Adelaide gabou
a festa, para não contrariar a esposa do secretário, recordou
o champanha, os ditos espirituosos do senhor Furtado e, propositalmente, não
falou no visconde.
D. Branca, então, sem estranhar o silêncio de Adelaide, fez
o elogio de Santa Quitéria, enaltecendo-lhe os modos, “a impecável
distinção com que ele tratava uma senhora, a extrema delicadeza
que punha nas palavras e nos menores gestos”, concluindo que o visconde
era, na sua opinião, “o que se podia desejar de tout à
fai chic”.
– Ele parece simpatizar muito com a senhora.
– Comigo? Oh não, nem diga tal coisa!
– Por quê?
– Porque não é bom, pode alguém ouvir e eu não
quero – Deus me livre – uma questão com o Furtado …
O certo, porém, é que D. Branca exultou intimamente com as
palavras de Adelaide. – “Era, ent&aatilde;o, verdade que o visconde parecia
Simpatizar com ela… Que lembrança?…”
Ia animada a palestra, quando a campainha soou embaixo e vozes repercutiram
na escada.
Eram os dois amigos que voltavam juntos do Banco.
À noite ainda se falou no piquenique, tema inesgotável das
conversações daquele dia. Ninguém se lembrava de outra
coisa; o piquenique no Jardim Botânico era a grande novidade, o grande
acontecimento.
Adelaide estava mais expansiva; trocou algumas palavras, diretamente com
o secretário, emitiu opiniões, teve risos gostosos; enfim, já
não era a mesma que D. Branca surpreendera com os olhos no teto, a
pensar e que se conservara silenciosa ao almoço, enquanto as outras
pessoas comentavam o piquenique.
As noites eram mais frescas então; respiravam-se as primeiras brisas
do equinócio das flores, o sol ia perdendo a intensidade abrasadora
e caniculante que afugentara para Petrópolis e Friburgo os satélites
imperiais do monarca. A vida fluminense, por assim dizer interrompida com
a ausência da aristocracia palaciana, voltava a funcionar, é
verdade que sem o estímulo habitual, porque a sabedoria de Hipócrates
ordenava ao imperador uma retirada para o outro continente, e os olhos do
povo e da nobreza cedo começavam a chorar a ida inevitável do
augusto e perpétuo defensor do Brasil. Voltavam tristes as andorinhas
de Petrópolis, e essa tristeza comunicava-se ao meigo rebanho que atravessara
dezembro e janeiro ao sol, enquanto a asa negra da febre amarela estendia-se
pavorosa, sobre a heróica cidade.
Os jornais, numa faina lúgubre, pediam contas ao governo sobre o verdadeiro
diagnóstico da imperial moléstia e já se dizia por toda
a parte que “o rei ia, mas não voltava… – Diabetes … glicosúria…
surmenage… eram palavras que enchiam a Rua do Ouvidor subindo e descendo
com os transeuntes. – Quem ficava no trono! Quem se responsabilizava pelos
destinos da grande pátria americana? Toda a gente sabia que era a princesa,
mas toda a gente perguntava: – Quando era o dia do embarque? – e cada boca
era uma interrogação e cada olhar uma profecia. Republicanos,
abolicionistas, em conciliábulos secretos, viam na doença do
imperador o triunfo das novas idéias, a conquista da liberdade, a grande
hora da fraternização brasileira…” E reduzido às
míseras proporções de inválido, o segundo Alcântara,
bisneto da Sra. D. Maria I, universalmente conhecido pelos seus versos ao
bom povo ituano e pelo seu amor às letras, que na Europa dava-lhe foros
de primeiro poeta do Brasil – O celebrado amigo de V. Hugo e das canjas do
Teatro Lírico ia sulcar o Atlântico para bem do povo e felicidade
da nação, desse povo que tanto o amava e dessa nação
que ele governava há meio século.
Povo e nação volviam os olhos para a Tijuca à espera
de que saísse o augusto enfermo, com o seu préstito de áulicos
e turiferários, humilde agora mais do que nunca, dentro de um cupê
imperial, abatido e tristonho na grande dor que o pungia… Quantas pessoas
ainda não o tinham visto e queriam vê-lo agora no embarque! As
ruas haviam de se encher, as ruas e as praças quando os clarins dessem
sinal da aproximação d’Ele. Oh, havia de ser um espetáculo
comovedor, uma tristeza enorme, um pranto geral nos palácios e nas
choupanas, onde quer que brilhasse a fama do seu queridíssimo nome.
Os republicanos mesmo não se conservariam insensíveis.
– Porque – dizia, numa roda, o secretário – vocês podem negar
tudo, menos que o imperador seja querido pelos brasileiros.
A roda compunha-se dele Furtado, de Evaristo, de Valdevino Manhães,
do deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, e do Freitas Camargo, outro poeta,
companheiro do Manhães na Revista Literária.
O tema era a viagem do imperador daí a alguns dias. Estava-se em fins
de maio. Aboletados ao redor de uma mesinha no Castelões, cada um expunha
o seu juízo acerca do monarca e da imperial viagem à Europa.
O secretário do Banco apelava para a consciência de todos: –
era ou não estimado no Brasil o imperador?
Valdevino Manháes, cavalgando o pincenê afetadamente, e cruzando
as pernas com um ar doutoral, lembrou as suas tradições republicanas
e disse que, apesar de nunca ter merecido favor nenhum do Império,
não ousava negar a estima do povo ao rei; mas isso não queria
significar adesão eterna do povo às instituições
monárquicas: era um sentimento pessoal, uma generosidade afetiva, um
respeito mesmo às barbas brancas do velho…
– Engana-se, amigo – interrompeu o representante de Alagoas calmo, sem se
mover na cadeira, fitando os olhos no Dr. Condicional. – Pedro II enraizou
a monarquia no Brasil, e, ainda que tivéssemos o desgosto de lamentar
a sua morte hoje ou amanhã, o Brasil havia de ser sempre Império
do Brasil, nunca uma república. Desejar o sistema republicano para
o nosso país é querer a ruína de uma das maiores nações
do mundo. Veja o senhor a Inglaterra.
– Exatamente – apoiou Furtado.
– A Inglaterra é uma nação decadente! – berrou o Manhães.
– Não há termo de comparação entre a Inglaterra
e o Brasil. O Brasil um país novo, ainda nas faixas infantis…
– Por isso mesmo, por isso mesmo! – argumentou o deputado. – Os países
novos precisam de um freio, como o indivíduo na infância.
Qual freio, Sr. Doutor! De freio precisam os burros, e nós somos um
povo inteligente, um povo que não precisa de freios nem de monarcas.
A república há de se fazer, creia!
O alagoano, que pela primeira vez tratava com o Manhães, estranhou-lhe
o modo agressivo com que discutia e não retrucou. Valdevino continuou
a falar no meio do silêncio dos companheiros, não perdendo ocasião
de aludir à sua viagem à Europa e ao bom acolhimento que tivera
em Lisboa.
Camargo apoiava tudo quanto ele dizia por espírito de coleguismo e
em atenção ao diretor da Revista. Mas Valdevino lembrou-se de
que se comprometera a jantar no Globo com uns rapazes, e, estabanadamente,
despediu-se de todos. Foi então, só então, que o Camargo
abriu a boca, para dizer que o Valdevino era um idiota, uma besta!
Ismael Pessegueiro olhou Furtado e baixou a cabeça. Evaristo, mais
positivo e menos convencional, estendeu a mão ao poeta:
– Toque, amigo! O senhor agora disse tudo o que muita gente pensa e não
tem coragem de dizer.
– Um homem que vive a escrever asneiras e a rabiscar sujidades! Um repetidor
de frases ocas! Porque veio da Europa, entende que é já um mestre,
um alto personagem nas letras… Uma cavalgadura é o que ele é!
– Pobre Valdevino!… – lamentou Furtado ironicamente.
– Pobre Dr. Condicional! – fez Evaristo.
– É o que lhes digo – continuou o poeta. – Quando Ramalho Ortigão
aqui esteve, no Rio, a primeira pessoa que correu a beijar-lhe os pés
foi ele, o Valdevino.
– Os pés ou as mãos? – inquiriu malicioso, Evaristo.
– Os pés… que ele quando adula é para beijar os pés.
Em literatura, como em política, é um rafeiro dos medalhões…
– Oh!… – balbuciou com um risinho especial o representante de Alagoas.
– Pode acreditar, doutor! O Valdevino Manhães é conhecido na
Rua do Ouvidor; toda a gente sabe de quanto é capaz aquele idiota…
O secretário interveio com uma pilhéria.
– Vocês esquecem-se de que estão a falar do autor do Juca Pirão…
– Belo título de uma obra: Juca Pirão – continuou Camargo. –
Vejam vocês até onde pode chegar a estupidez humana!
– E é verdade que existe essa obra? – perguntou o deputado.
– É, doutor, infelizmente é! Faça o senhor idéia:
um livro com o título de Juca Pirão!
O Dr. Ismael carregou uma risada cheia de sarcasmo.
– Deixem o pobre homem… suplicou o Furtado. – O Valdevino é uma
boa criatura…
– Ouvi dizer que tem a mania do renome literário, é verdade?
– perguntou o Evaristo…
– Mania que o há de levar ao hospício – resmoneou o Camargo.
– Esses literatos, esses literatos… – disse com mistério o Holanda.
– Vivem se digladiando! – acabou Furtado. – Queres mais cerveja, oh Camargo?
– Não, não, merci…
– Doutor, outro copo…
– Obrigado…
– E tu, Evaristo?
– Eu também recuso.
– Então podemos levantar acampamento.
Ergueram-se os quatro fumando, com grandes ares de capitalistas.
A Rua do Ouvidor estava num de seus dias de festiva alacridade, inteiramente
cheia, como um rio a transbordar, tumultuoso, murmurejante e iluminado por
um sol acariciador de primavera. Iam e vinham os habitués de ambos
os sexos, numa procissão de toilettes vivas, num burburinho de festa
pública entrechocando-se, acotovelando-se. Famílias conversavam
à porta das lojas, moças e velhas madamas, senhoras de todas
as idades e de todos os tamanhos, rindo, como se estivessem no interior de
suas casas, beijando-se alto, enquanto os pais e os maridos discutiam política
à porta dos cafés, à espera que elas acabassem de “fazer
as compras”. Ecoavam gargalhadas entre os homens. Uma banda de música
a tocar polcas e valsas faria toda aquela gente esquecer-se de que estava
na Rua do Ouvidor e cair num grande bailado ao ar livre. As maiores notabilidades
da política, da literatura e das artes, os mais conhecidos escritores
e homens de Estado viam-se ali, em grupos, à porta do Café de
Londres, do Castelões ou do Pascoal, frechando, com o olhar, o madamismo
suspeito e as demoiselles ricas, assistindo ao desfilar tumultuoso das cocotes,
e das condessas, biografando-as uns aos outros com risinhos de inveterada
malícia, observando-lhes o andar, os meneios, a toilette, a opulência
das carnes, como se as quisessem devorar num ímpeto de canibalismo
sexual, acompanhando-as a perder de vista, gulosos, famintos e banais. Moços
de flor ao peito, no rigor da moda, alguns chegados de Paris, iam e vinham,
numa ostentação pedantesca de polainas, de casimiras claras,
de coletes brancos e de frases tolas, cumprimentando à direita e à
esquerda, erectos como figuras de vitrina. Os armazéns de modas enchiam-se;
enchiam-se os cafés e as confeitarias, e o zunzum aumentava de entontecer,
dentro das lojas e na rua.
– Sabes quem é aquela, oh Evaristo? – disse, parando, o secretário.
Indicava uma senhora de presença estranha, muito bem vestida, que ia
pelo braço de um cavalheiro, na outra calçada. Um movimento
de ansiosidade propagou-se no trecho da rua.
– Quem é?
– A baronesa de Lima-Verde, uma das mulheres mais formosas do Rio de Janeiro…
– Oh!… Vai com o marido…
– Isso é o que ainda não está suficientemente provado.
– Que queres dizer?
– Afirmam uns que o marido, o barão, passeia na Europa e que ela,
a baronesa… não gosta de andar só…
– Aquele senhor é então o cunhado, o irmão…
– Qual cunhado, nem qual irmão! Aquele senhor é sócio
de uma firma de capitalistas…
O bacharel compreendeu a alusão e exclamou, voltando-se para o objeto
do diálogo:
– Que estás dizendo?
– Não achas formosa?
– É realmente uma beleza… Mas então…
– Fecha os olhos, Evaristo, fecha os olhos… e não queiras saber
de mais nada.
Furtado, porém, resumiu em poucas palavras a crônica da baronesa,
citando nomes com um perfeito conhecimento de cousas. Entre os adoradores
da ilustre senhora estava o visconde de Santa Quitéria.
– O Santa Quitéria!
– Ele mesmo, e não te admires, porque outros de maior sisudez fazem
a corte à baronesa.
O Camargo e o deputado Ismael tinham-se despedido. Os dois amigos subiram
a Rua do Ouvidor, no meio de torvelinho geral, afastando-se a cada instante
para deixar passar as senhoras, rompendo a multidão, esgueirando-se
com as paredes, esbarrando com os transeuntes, aos encontrões, às
apalpadelas quase.
No Largo de São Francisco um golpe de ar bafejou-os de improviso,
como se saíssem de um túnel.
– Caramba! – exclamou o secretário. – A Rua do Ouvidor às quintas
é um formigueiro! Nunca vi tanta gente!
– Olha daqui… olha daqui! – insistiu o bacharel, voltando-se no meio do
largo, para a famosa artéria que regurgitava.
Era um espetáculo curioso. A rua muito estreita, com os seus sobrados
de dois a três andares, com os seus arcos de iluminação,
com as suas bandeiras, tinha o aspecto movimentado de uma pequena cópia
de bulevar em dia de festa. Embaixo a massa negra e compacta, ondulando como
uma procissão vista de longe, e um sibilar de vozes indistintas como
o vago rumor de uma colmeia alvoroçada.
– Queres que te diga o efeito que isso me produz, oh Furtado?
– ?
– Lembra-me o caos, o misterioso, o incompreensível, a vertigem dos
abismos… o grande nada dos heróis que dormem…
– Do vasto pampa no funéreo chão! – concluiu o secretário
arguendo o braço numa pose oratória.
E fitando o bacharel:
– Estás apocalíptico, homem! Olha, não vás fazer
como no Jardim Botânico, onde assassinaste barbaramente, creio que o
Garrett ou o Alexandre Herculano…
– Pois é o que me parece a tal Rua do Ouvidor, e a comparação,
se não é original, tem o mérito de exprimir exatamente
o que eu quero dizer.
E Evaristo dava às palavras um tom de ironia boêmia sublinhando-as
com um risinho cáustico e pérfido.
– Nunca hás de ser coisa alguma, porque vives a criticar a humanidade,
e a humanidade o que quer é que a gente não veja os seus ridículos
e as suas fraquezas.
– Pior! Achas que eu me devo subordinar aos caprichos da humanidade!…
– Que remédio tens tu!…
– O remédio dos incuráveis: a paciência…
– Bem, o lugar não se presta a discussões. Enfiemos outra vez
pela Rua do Ouvidor.
– Outra vez?
– Para tomar o bonde de Botafogo…
Mas uma surpresa estava reservada ao secretário. Justamente na ocasião
em que o bacharel passava diante da Notre Dame de Paris, deram de ombros com
D. Branca e Adelaide.
– Oh!
– Oh!
A mesma exclamativa saiu da boca de Furtado e da esposa. Evaristo soltou
um olá! fino, esganiçado e tão alto que algumas pessoas
voltaram-se com um movimento de viva curiosidade.
– As senhoras por aqui! – estranhou o bacharel.
– Por aqui! … – repetiu Furtado.
– Que grande admiração! E os senhores também não
andam passeando? – opôs D. Branca com um olhar interrogativo por trás
do véu que lhe cobria o rosto.
Adelaide esperou, sorrindo, a defesa da amiga.
– Nós somos homens…
– Morreu o Neves!
– Íamos ao Banco – disse Adelaide.
– Com escala pelo Largo de São Francisco… – atalhou o bacharel.
Nada de escândalo, nada de escândalo! – preveniu Furtado. – Já
agora…
– Já agora vamos fazer um lanche ao Pascoal – interrompeu a esposa
do secretário.
E os dois casais, bras dessus, bras dessous, foram andando rua abaixo tranqüilamente.
Eram duas horas da tarde. A onda de povo crescia; o movimento era cada vez
maior nos cafés; ouviam-se orquestrações de harpa e o
pregão monótono de leiloeiros destacando no meio da vozeria
dos transeuntes.
Logo depois do almoço D. Branca sem dizer nada ao marido, convidara
Adelaide para “uma volta na Rua do Ouvidor”. A tímida esposa
de Evaristo, guardando os seus escrúpulos e as suas conveniências
de mulher bem casada, objetou-lhe o desgosto que isso podia causar ao bacharel.
– Vais comigo, filha, vais com a tua amiga.
– E o Sr. Furtado?
– O Furtado não ralha, porque sabe que é perder tempo. É
uso no Rio de Janeiro as mulheres saírem sem os maridos. Uma coisa
tão velha! Outro dia fomos, eu e D. Sinhá do desembargador…
– Outro dia?
– Vocês ainda não estavam aqui; foi num sábado… Pensas
que o Furtado se incomodou? Qual!
– D. Branca! – fez a outra com um ar medroso.
– Não é nenhuma admiração, mulher. Metemo-nos
no bonde, como quem vai fazer compras à cidade, sem mistérios,
aos olhos de todo o mundo.
Adelaide não se resolvia. ” – Sair sem Evaristo e logo para a
Rua do Ouvidor!… Hum!…”
– Qual um, qual dois, rapariga; vista-se e vamos, que é meio-dia.
– D. Branca, D. Branca!
– Pior! …
– …Mas a senhora se responsabiliza, então…
– Responsabilizo-me pelo que você quiser.
– Bem… depois, depois! …
E Adelaide atraída pelas cavilações da esposa do secretário
(sempre fértil em expedientes), levada mesmo por um irresistível
amor de se mostrar, de se apresentar, de exibir os seus formosos olhos numa
rua tão pública, de ver as suas iniciais num jornal que descrevia
as toilettes da Rua do Ouvidor.
Adelaide correu, lépida, ao guarda-vestidos.
– Olha, o de rendas, hem! – lembrou a amiga.
– Sim, o de rendas, é claro…
E daí a pouco um aroma fino, de sabonete, de pó-de-arroz e
de essência de Houbigant espalhava-se em toda a casa – no primeiro e
no segundo andar -; fechavam-se gavetas com açodamento, farfalhavam
sedas e tiniam jóias. D. Branca por um lado e Adelaide por outro, esmeravam-se
nas toilettes como se fossem a um baile ou a alguma festa de rigor.
– Pronta?
– Pronta… – respondeu a esposa do bacharel, dando um jeito no vestido,
ao mesmo tempo que se revirava para o grande espelho do toucador.
E saíram de chapéu-de-sol aberto, uma jovialidade infantil,
pelas ruas de Botafogo, a tomar o bonde. Os passageiros olhavam-nas com esse
olhar curioso e indiscreto que às vezes confunde uma mulher honesta
com uma horizontal. Adelaide ia um pouquinho no ar, um bocadinho gauche, às
voltas com a luva da mão esquerda que não queria abotoar, sempre
tímida, em contraste com os modos vivos da esposa do secretário.
Um senhor de óculos e barba grisalha cumprimentou-as.
– Quem é?
– Não conheço…
– Nem eu…
D. Branca não se lembrava, ou fazia que se não lembrava: era
um dos titulares de Botafogo, o comendador Beltrão, dono de uma grande
fábrica de cigarros. Não gostava de cumprimentar os homens de
fisionomia idosa. – “Ora, o Beltrão… um velho!”
– E se encontrarmos o Sr. Furtado? – balbuciou Adelaide.
– Melhor… voltamos em boa companhia.
Mas o pensamento da jovem senhora estava no outro, no bacharel, no Evaristo.
– Que diria ele, depois? Que ela já o não consultava em seus
negócios, que não era a mesma Adelaide, que não fazia
caso dele, talvez… E como explicar a sua ida à Rua do Ouvidor, como
convencê-lo de que D. Branca a arrastava responsabilizando-se perante
ele, como? Os homens não acreditam facilmente nas mulheres, enquanto
não as vêem chorar, enquanto não as vêem de rojo
a seus pés… Há dois anos que eram casados e nunca Evaristo
duvidava das suas palavras; mas agora, no Rio de Janeiro… quem sabe? talvez
não as aceitasse logo, como na província. Outras idéias.
O mundo é todo cheio de contradições…
– Vamos voltar? – propôs ela à amiga.
E ia pretextar uma dor de cabeça, uma dor no fígado, um incômodo
qualquer, mas D. Branca atalhou:
– Voltar? Que idéia! Eu, nem que me pagassem; meu rico vestidinho
há de dar que falar hoje à Rua do Ouvidor. Voltar por quê?
– Por causa do Evaristo… – sorriu timidamente Adelaide.
– Ora, minha filha, tenha juízo! Então você é
alguma criança? O Sr. Evaristo é um rapaz inteligente, um homem
de bem, um cavalheiro… Os tolos é que prendem as mulheres, como se
elas fossem escravas. Já lhe disse que me responsabilizo…
– Eu sei, mas…
– Não admito razões. A senhora vai comigo; quem a leva sou
eu. E, em todo o trajeto de Botafogo à Rua do Ouvidor, uma e outra
mereceram grandes elogios, grandes exclamações e vivos olhares
de capitalistas e doutores que, mesmo na faina dos seus negócios, nunca
se descuidam do sexo amável.
No ponto dos bondes houve um senhor que lhes dirigiu a seguinte frase cheia
de ocultas intenções, numa voz melíflua e carinhosa:
– Como são lindas!
E outro, mais adiante:
– Oh, que beleza!
E ainda outro, já em plena Rua do Ouvidor:
– Deliciosas!
Tudo gente séria, moços bem vestidos, de colarinho alto e chapéu
de forma e anéis de brilhante.
Adelaide não sabia como pisar, nem que jeito desse às mãos,
nem onde pusesse os olhos, vendo surgir, de repente, o bacharel e agarrar
pela gola do fraque um homem daqueles, e culpá-la, e dar escândalo!
Arrependia-se mil vezes de ter acedido às instâncias de D. Branca.
A esposa do secretário, num coquetismo de mulher fácil, abanando-se
com o rico leque de plumas, uma ostentação imperiosa de sedas
e gazas resplandecia ao lado da amiga. Todos os olhares cravavam-se nela,
no seu belo porte de mundana, nas suas formas rijas que o espartilho evidenciava,
torturando-a.
– Bela rapariga! – foi uma das exclamações que lhe chegaram
ao ouvido. E ela como que redobrou de altivez, aprumando-se, garbosamente.
O instinto ou o que quer que seja levou-a a tomar o caminho da Praça,
pela Rua Direita. A mulher tem uma espécie de faro tão pronunciado
e admirável como em certos animaizinhos de estima. D. Branca ia pelo
faro, quando quem lhe havia de surgir? o visconde, o respeitabilíssimo
Santa Quitéria… Vinha de uma assembléia-geral de acionistas
no Banco.
– Oh, excelentíssimas, folgo de vê-las! – exclamou o banqueiro
estendendo a mão, todo inclinado, primeiro à Branca e depois
à Adelaide. – Andam passeando?
– Andamos passeando… – murmurou a esposa do secretário.
E emendou logo:
– Vamos fazer umas compras
– Ah!… Está muito bem, está muito bem.
– O Sr. Visconde já veio de Petrópolis.
– Sim, excelentíssima; Petrópolis está deserto… Desde
que a família imperial mudou-se para a Tijuca que Petrópolis
está deserto. O imperador embarca definitivamente na próxima
semana.
– Para a Europa?
– Exatamente.
E, com um ar compungido, o visconde acrescentou:
– Pobre velho! Vossa excelência não o conhece…
– Por que, Sr. Visconde?
– Porque… porque reputo gravíssimo o seu estado…
Adelaide prestava atenção à conversa, olhando o banqueiro,
medindo-o de alto a baixo, examinando-o.
– Que está dizendo?
– Gravíssimo… E comigo pensam os doutores da ciência.
– Pobre velho! – repetiu D. Branca sensibilizada. – Eu imagino a imperatriz…
– A imperatriz não o abandona; segue também.
– Coitada! E os príncipes?
– Os príncipes ficam em companhia da princesa. Pelo menos é
o que se diz…
– Um homem tão forte, um hércules! – exclamou a esposa do secretário.
– As aparências iludem, minha senhora, e a morte é traiçoeira.
Andam, então, fazendo compras?…
– Fazendo umas comprinhas…
– Bem, não as quero importunar.
E o Santa Quitéria descobriu-se, apertando, com uma delícia
enorme, a mão enluvada e fina de D. Branca.
– Recomende-me ao nosso Furtado…
– Agradecida.
Oh, como ela desejaria prolongar aquele tête-à-tête, aquele
doce encontro!… Mas o movimento era grande na Rua Direita, e não
menos grande a língua do povo.
O banqueiro afastou-se, num gracioso ademane, e elas, depois de ligeira hesitação,
voltaram pela Rua do Ouvidor.
Novos ditos, novas exclamações.
De um grupo, à porta de uma confeitaria, saíam estas palavras:
– As mesmas! as mesmas!
E uma chusma de olhares cobiçosos assaltou-as.
Entraram numa grande loja de fazendas, trocaram algumas palavras com o caixeiro,
moço amável que trazia sempre a ponta do lenço fora do
bolso do paletó, e – obrigada, hem, muito obrigada!… – saíram.
Foi então que o bacharel bispou-as, quando ele e o secretário
voltavam do Largo de São Francisco, e os dois casais resolveram-se
a tomar qualquer coisa no Pascoal.
A presença de Adelaide àquela hora na Rua do Ouvidor significava,
para Evaristo, uma desconsideração, aos seus hábitos
e às suas normas – um desvio da esposa, uma quebra de respeitos …
Sempre a conhecera tímida, obediente às suas prescrições
e inimiga de se apresentar onde ele não estivesse, e agora via-a na
rua mais pública do Rio de Janeiro, em grande toilette, como uma senhora
habituada ao luxo e à publicidade, que não receia o eco das
más-línguas, nem a audácia dos ociosos! É certo
que ia pelo braço de D. Branca, mas a esposa de Furtado… a esposa
de Furtado… a Sra. D. Branca… E enquanto caminhava para o Pascoal, Evaristo,
silencioso ao lado da mulher, como que se empenhava na resolução
de problema difícil. Adelaide merecia-lhe toda a confiança,
mas, positivamente, já não era a mesma Adelaide. Vir à
cidade sem lhe dizer, sem o prevenir?… Não, já não
era a mesma…
E enquanto durou o lanche, enquanto estiveram na confeitaria debicando empadas
e sanduíches – o bacharel manteve-se casmurro a torcer o bigode, a
olhar os que entravam e os que saíam, mais filósofo que nunca,
a alma vibrando numa indignação muda e tenebrosa.
Adelaide compreendeu que o havia desgostado e cruzou o talher.
D. Branca e Furtado entreolharam-se com admiração. Era a primeira
vez que os viam amuados.
VI
Ia enfim realizar-se a misteriosa e pranteada viagem do imperador. Na eterna
alegria do sol, que amanhecera esplendidamente luminoso, flutuavam preces
ao bom Deus pelo pronto regresso do monarca. Suspiros de saudade, louvores
à boca pequena, exclamações de inconsolável tristeza
erguiam-se nas ruas da cidade, formando uma atmosfera de vagas melancolias,
um como ambiente glacial de apreensões sinistras que a luz triunfal
do sol não espancava. Ia ficar deserta a Quinta de São Cristóvão
e o Brasil sem o imperador, o Brasil sem o Sr. D. Pedro II era como Um país
abandonado à aventura dos selvagens… Oh, o homem extraordinário
que antes de ser homem era rei! que tristeza para o povo, que desolação
para a Corte! Ninguém queria acreditar naquela viagem lúgubre
como a própria morte…
No entanto, chegava a hora do embarque. Apresentavam-se as carruagens; não
havia tempo a perder.
Às seis horas da manhã o desembargador Lousada e a mulher,
em berlinda especial, abalaram para a Tijuca. A ilustre dama de Sua Majestade,
a imperatriz, ia chorosa, com o lenço nos olhos, quase muda na sua
toilette de seda marrom. O visconde de Santa Quitéria, amigo particular
do imperador, não quis deixar de cumprir o religioso dever que lhe
impunham a amizade e a gratidão: lá foi também corretamente
encasacado, de luvas pretas. E outros e outros personagens de etiqueta levaram
a sua homenagem aos augustos viajantes.
Luís Furtado entendeu que melhor seria assistir ao embarque no Arsenal
de Marinha com D. Branca e os Holanda. Mas Evaristo foi dizendo logo que “só
costumava ir ao embarque dos seus amigos e que não transigia com as
suas convicções…”
– Não se trata aqui de convicções, nem de idéias
políticas – fez o secretário. – É um dever de todo o
brasileiro levar as suas despedidas ao imperador, ao homem que nos governa
há quase cinqüenta anos e cujas virtudes o mundo inteiro admira…
– Nesse caso vai tu, eu não. O meu dever, como republicano, é
não ir, é ficar em casa ou à minha banca de trabalho.
Nunca recebi favor do Sr. D. Pedro II, nem ele me deve coisíssima alguma.
– Queres, então, privar D. Adelaide.
– Não senhor, não senhor, Adelaide irá se quiser, eu
não proíbo…
– Sempre a mesma veleidade republicana; sempre a mesma tolice! – exclamou
Furtado. – Hás de lucrar muito com essas idéias!
– Não é questão de lucro, é questão de
consciência. Tenho o direito de pensar e de agir como entender.
– Bem; fica-te lá com a tua consciência, meu Camilo Desmoulins,
e depois não te arrependas… Então, D. Adelaide vai conosco?
– Pode ir…
A jovem esposa do bacharel tinha, com efeito, muita vontade de ver o imperador,
cujas barbas brancas ela nunca vira senão em retratos; mas o marido
era homem esquisito, inimigo figadal da monarquia, cheio de escrúpulos,
timbrando em continuar na Corte a mesma vida aperreada da província
– um incorrigível – e ela respeitava as idéias dele como se
fossem as suas próprias idéias. Resignou-se com um suspiro.
O mundo não se acabava; quando o imperador voltasse da Europa, iria
vê-lo…
Furtado, porém, renovou o seu pedido a Evaristo, obtendo dele uma
resposta que trouxe aos lábios da esposa o mais adorável dos
sorrisos. – Que sim – que Adelaide não devia perder o embarque espetaculoso
do Sr. D. Pedro II… ao menos por curiosidade, por desfastio…
– Muito bem, muitíssimo bem! – aplaudiu o secretário, risonho,
batendo as mãos. Gosto de ver um republicano de idéias largas
como o Evaristo. D. Adelaide agora não tem mais do que ir preparando
a toilette..
E no dia anunciado pelos jornais, todos, menos o bacharel que os acompanhou
somente até à cidade, dirigiram-se ao Arsenal de Marinha, ponto
de embarque do imperador.
A galeota imperial, encostada ao cais, fumegava, toda pintada de verde e
ouro, fria como uma baleia, crivada de olhares que a contemplavam num êxtase
selvagem. Dentro dos muros do Arsenal passeavam oficiais de Marinha e do Exército,
em grande gala, arrastando as espadas com ar marcial. Viam-se também
altos funcionários à paisana, de casaca e luva, e senhoras em
trajo de baile, exibindo o colo num decote pomposo de rainhas, vestido de
cauda, brilhantes no cabelo.
Era intensa a luz do sol, mas o povo afluía, na rua, dominado pela
irresistível curiosidade de assistir à passagem da família
imperial.
Uns queriam ver o próprio monarca, outros, que o conheciam, não
ocultavam o desejo de “reparar bem” na herdeira do trono, outros
nada mais queriam senão lançar os olhos à imperatriz.
O trecho entre o morro de São Bento e a Secretaria da Marinha estava
repleto de curiosos – operários do Arsenal, ganhadores, catraieiros,
no meio dos quais sobressaíam altos chapéus de forma de um ou
outro personagem desconhecido que também se abalava a ver o embarque.
De vez em quando parava um carro e o povo abria alas, num movimento de exército
em revista. Chegavam Ministros e diplomatas cujos nomes corriam de boca em
boca.
Eram já onze horas da manhã e nada do imperador, nem sinal
do augusto viajante.
A essa hora precisamente uma carruagem estacou no portão do Arsenal
e logo apeou o secretário do Banco Industrial; em seguida apearam duas
senhoras: D. Branca e Adelaide.
Furtado ouviu uma voz no meio do povo: – Mulherão! e, teso, erecto,
numa pose de verdadeiro diplomata, disse qualquer coisa ao porteiro e entrou.
As duas senhoras iam na frente com o ar compungido, silenciosas, lado a lado.
Quase no mesmo instante o povo agitou-se e mais de duas mil cabeças
volveram-se para o extremo oposto da rua. Vozes exclamaram: – É ele!
é ele!
Houve, então, uma balbúrdia, um atropelo, uma ânsia fenomenal.
Cometas estrugiram ao longe e ouviu-se um estrépito de cavalhada em
correria.
Com efeito, era o imperador que chegava. A multidão abriu caminho,
tal as águas do mar vermelho para deixar passar os hebreus, e uma exclamação
uníssona, estrepitosa e límpida, vibrou no espaço:
– Viva Sua Majestade o Imperador do Brasil!
– Vi… ôôôô!
Dentro no Arsenal, uma música militar rompeu o hino com entusiasmo
belicoso enquanto os vivas continuavam, fora. – Vi… ôôô!
Vi… ôôô!… sucessivamente.
O carro imperial estacou, seguido de outros carros, e o velho monarca, cumprimentando
à direita e à esquerda, surgiu trêmulo, incrivelmente
pálido, os olhos fundos, a barba longa como a de um profeta da antigüidade.
Compunha-se a comitiva de S. M. Imperiais, conde e condessa d’Eu, príncipes
D. Antônio, D. Luís e do Grão-Pará, visconde da
Mata, visconde de Santa Quitéria, um general, um almirante, o desembargador
Lousada e a esposa, e outras pessoas de distinção.
O povo cercou o monarca e quis beijar-lhe a mão antes dele entrar
no Arsenal; mas o velho, todo trêmulo, com os olhos úmidos, partido
de saudade, balbuciou fitando os que o rodeavam:
– Não, aqui não: o sol está muito quente!
– Viva Sua Majestade a Imperatriz! – berrou uma voz.
E todas as cabeças se descobriram e todas as bocas exclamaram – –
Vi…. ôôô! num entusiasmo ardente e apaixonado.
Vozes de comando estrondeavam no recinto da praça; uma guarda de honra
do batalhão naval fazia as continências ao monarca. E ele, muito
amável, muito cheio de cortesias ao lado da Sra. D. Teresa, a mãe
dos brasileiros, ia-se multiplicando em cumprimentos para aqui, para ali,
curvado ao peso dos anos e da traiçoeira enfermidade que o minava.
Uma onda acompanhou-o vitoriando-o, aclamando-o de chapéu no ar, aos
gritos de Viva Sua Majestade o Imperador! Viva Sua Majestade a Imperatriz!
Viva Sua Alteza a Sra. D. Isabel! Viva o Sr. Conde d’Eu!
E a música repetia o hino nacional uma vez, duas vezes, três
vezes, confundindo-se com o alvoroço da multidão.
Por fim um silêncio medroso caiu aos pouquinhos, amortecendo o entusiasmo
e transformando-o num vago pigarrear abafado e tímido.
A galeota resfolegava e dentro dela já se moviam homens pressurosos,
na sofreguidão de evitar o arrocho e de se garantirem um lugar cômodo.
O imperador do Brasil, com os olhos vagamente nublados, num grande círculo
de homens e senhoras que o queriam ver e beijar, tinha a fisionomia resignada
dos mártires que a lei desterra para longínquos países,
donde não voltam nunca.
Ainda não era chegado o momento das despedidas, hora trágica
dos beijos e das lágrimas. Havia uma ansiedade em todos os olhares;
uma tristeza calada e circunspecta ia dominando os espíritos, empolgando-os
de leve, penetrando os corações vitoriosamente.
A herdeira do trono enxugava os olhos, muito rubros de comoção
e de calor, em contraste com a branca fisionomia do pai. O monarca repousava
numa cadeira que lhe fora oferecida por um velho almirante de rosto escanhoado.
Mas de repente ergueu-se, compungido, e abriu os braços à filha.
Sua Alteza percebeu que o velho ia-se despedir e murmurou:
– Não, meu pai, eu vou a bordo…
– Vais a bordo?… Oh!…
– Sim, vamos todos a bordo…
– Conselheiro – disse então o velho para um homem idoso, fardado de
ministro, que conversava com o príncipe Gastão de Orleans –
um abraço…
– Vossa Majestade permitirá que o acompanhe ao Gironde… – fez o
conselheiro dobrando-se.
– Não quero que se incomodem por minha causa… O tempo é dinheiro…
– Não é incômodo, senhor, é um prazer e uma obrigação…
– Pois bem, vamos, para não demorar o vapor…
A essas palavras do monarca, a onda dos cortesãos agitou-se, trovejou
a voz do oficial que comandava a guarda de honra, tilintaram espadas e uma
fila de homens e senhoras marchou, com solenidade, para a galeota. O cais
estava todo negro de gente que tinha ido ver “o embarque”.
A procissão fez alto à borda d’água, trocaram-se muitos
cumprimentos, D. Isabel levou ainda uma vez o lenço aos olhos, o conde
abaixou a cabeça, de lado, para ouvir um general que o importunava
com perguntas; uma menina de seis anos, vestida de branco ofereceu ao imperador
um buquê de flores artificiais, com dizeres em ouro numa larga fita
verde, e, ao som do hino, os imperiais turistas embarcaram.
Lanchas apitavam, cruzando-se na baía, defronte do Arsenal. Uma tristeza
enorme avassalou todos os corações naquele momento, e quando
a galeota fez-se ao largo e o último adeus flutuou na asa de um lenço
– palpitante, como um coração espedaçado – milhares de
silhuetas brancas emergiram da onda negra dos que ficavam… E uma aclamação
geral, clamorosa e dorida, vibrou na luz intensa, pelos cais, pelas embarcações,
mar adentro, como uma celeuma de vencidos…
Adelaide chorou sem saber de quê; encheram-se-lhe d’água os
olhos; quis falar e faltou-lhe a voz: era como se nunca mais pudesse contemplar
aquela insinuante fisionomia do velho, meiga e boa, que ninguém ousava
desrespeitar.
Estavam à sombra de uma árvore, ela, D. Branca e Furtado; dali
é que tinham visto tudo – os menores movimentos do imperador e da família
imperial até a hora do embarque.
Os olhos da esposa de Evaristo iam e vinham, de um lado para outro, e pouco
a pouco foram-se umedecendo, pouco a pouco foram tomando uma expressão
comovida e inquieta que o secretário logo percebeu.
D. Branca esticava o pescoço, erguia-se na pontinha dos pés,
a mão enluvada no ombro do marido, equilibrando-se. Nada lhe escapou
à indiscreta curiosidade: viu o desembargador Lousada e a mulher, os
príncipes, a princesa, o monarca e a imperatriz e, por fim, o visconde,
o Santa Quitéria enfronhado na sua casaca solene, de braço com
uma ilustre dama que ela não pôde reconhecer. O banqueiro levava
ao peito um crachá faiscante, uma grande comenda que a todos causava
admiração. – Mas de braço com uma mulher! Qh, a esposa
de Furtado arriou os calcanhares, estremeceu de ciúme, como se lhe
houvessem roubado a mais querida jóia, trincou o lábio num assomo
de desespero, e abanou-se com fúria.
– Vocês não estão sentindo calor! – disse para Adelaide
e o secretário.
– Muitíssimo! – exclamou Furtado.
– Muito – respondeu Adelaide.
– Oh, eu estou sufocada! Se houvesse água por aqui…
– Arranja-se – tranqüilizou o marido. – Queres?
– Quero, sim, tem paciência…
E quando ele afastou-se muito cavalheiro, para trazer água:
– Viste o Santa Quitéria? – perguntou D. Branca à amiga.
– Não.
– Que pena! Pois ia de braço…
– Com quem?
– Com uma velha, com uma mulher horrivelmente feia…
– Sim.
O Santa Quitéria, um visconde, um homem tão elegante!
– É para você ver o que são os homens.
– Não, que há homem de muito bom gosto! Eu não creio
que o visconde esteja cego…
– Exigências de ocasião, coitado! ele até acha quase
todas as mulheres feias… Pelo menos já o ouvi dizer.
– E, mas lá ia com unia coruja!
Adelaide achou graça no epíteto e, sem desviar os olhos da
onda de gente que se aglomerava no cais, respondeu com um sorriso em que se
lia toda a tristeza de uma alma ingênua. Não podia esquecer o
imperador com a sua longa barba muito branca, uma névoa no olhar, inclinado
para frente, caminhando devagar, como quem já está marchando
para a sepultura… Tinha os olhos úmidos ainda e ficava-lhe dentro
d’alma uma piedade imensa, uma ternura por aquele velho tão diferente
do que ela imaginava…
Um servente aproximou-se com uma bandeja e água para as duas senhoras.
Furtado vinha com um riso de profunda ironia nos lábios.
– Este mundo! este mundo!…
– Que é? – perguntou D. Branca olhando o secretário.
– Adivinha, se és capaz!
– Eu não…
E Furtado cruzou os braços em atitude de misteriosa surpresa.
– Fizeste mal em o deixar ir.
– Disse que era tarde, que você vinha cansado…
– E que novidades trouxe ele?
– Que a família imperial chegou a Cannes. Os médicos receitaram
duchas, estricnina e aplicação do gelo ao imperador.
– Já sei: o tratamento hidroterápico…
– Isso.
– Todos vão bem?
– Todos; o Velho mesmo tem esperança de se restabelecer.
– Coitado! Sempre muito amável, o visconde!
– Amabilíssimo! Perguntou pelo Raul, pela Julinha, pelos Holanda…
até pelo Condicional!…
Furtado já encontrara a mulher no val dos lençóis, e,
enquanto se despia) ela lhe ia dizendo tudo.
A noite estava fresca: eram os primeiros dias do inverno que aproximava eriçando
a cabeleira das árvores.
Evaristo e a mulher tinham visto, da janela, entrar e sair o visconde. O
bacharel não se conteve: – armou o punho indignado:
– Corja!
E recolheu cheio de ódio, tempestuoso, numa das suas explosões
mal contidas de jacobino incendiário. – “Neste país devia
haver uma forca, um cadafalso em cada esquina!”
Quanto a Adelaide, continuava a abrir-lhe os olhos:
– “Vamo-nos daqui, Evaristo… Mudemo-nos de uma vez… Abandonemos
este Rio de Janeiro, que é um inferno… uma tentação!”
Furtado não a esquecera, apesar da discórdia que reinava entre
as duas famílias. Era o primeiro a querer que ela se mudasse, que o
bacharel fosse morar em outra casa, longe de Botafogo, mas não do Rio
de Janeiro…
Adelaide cativava-o ainda irresistivelmente. Nas horas em que os dois casais
se reuniam para almoçar ou jantar, ele sentia afluir-lhe do coração
todo o sangue das veias numa pletora sensual, num gozo abstrato e mudo, que
o desnorteava; e ela, como se lhe percebesse as secretas maquinações
e a intensidade do calor afetivo, nem o olhava sequer…
As refeições eram rápidas agora – rápidas e frias
como o cumprimento de um dever penoso. Trocavam-se glacialmente os – bons
dias! – e quase não se falava mais, quase não se dizia outra
coisa.
O bacharel era homem de resoluções momentâneas e inesperadas;
opunha-se a qualquer idéia da esposa, mas acabava sempre concordando
com ela, e o seu fiat era um decreto irrevogável.
Adelaide dera-lhe a maior prova que uma mulher pode dar ao marido de não
estar em via de aumentar a espécie humana, e ele resignara-se. Vendo-a,
porém, definhar, emagrecer, e estranhando-lhe certos hábitos,
como o de acordar alta noite, sobressaltada, o de não comer com o mesmo
apetite de quando tudo andava em ordem naquela casa, e, principalmente, o
de amofinar à mais leve contrariedade, chorando às vezes, como
uma criança, quando ele lhe fazia qualquer censura – vendo-a nesse
estado de desequilíbrio nervoso, pensou em chamar médico.
– Por amor de Deus, Evaristo, não faça tal coisa! – rogou Adelaide.
– Por quê? Não andas doente? Não te queixas tanto?
– Pelo amor de Deus! O que eu quero é ir-me embora do Rio de Janeiro,
ainda que seja para um deserto! Arranquem-me daqui, tirem-me deste inferno
– é o que eu quero…
Evaristo, meio intrigado com aquela relutância da esposa, com aquela
idéia fixa de deixar o Rio de Janeiro – ela, que a princípio
tanto encanto achava nele – refletiu, tornou a refletir, sacrificando, nesse
duro trabalho mental, as guias do bigode, que lhe não era muito farto,
e optou pelo regresso a Coqueiros. Adelaide queria, não é assim?
Fiat voluntas… Em primeiro lugar estava ela, sua mulher, depois o Rio de
Janeiro.
Franqueza, franqueza… ele também se dera muito mal no Rio. Hipocrisia,
hipocrisia e mais hipocrisia era o que a gente encontrava. O próprio
Luís Furtado e a própria Sra. D. Branca o que eram, senão
uns hipócritas? O visconde, o desembargador, o Condicional, o Pessegueiro…
tudo uma corja de hipócritas! Adelaide tinha muita razão, muitíssima
razão.
E sempre agitado, esfarelando o bigode, tomou o primeiro jornal que lhe caiu
nas vistas.
– Que dia é hoje?
– Primeiro de maio.
– Ah… Bem; no dia dez temos vapor para o norte…
– Estás resolvido, então?…
– Mais que resolvido. Não podemos continuar nesta terra… tu, porque
andas com a saúde arruinada, eu, porque tenho arruinado o espírito…
De um lado o corpo, doutro lado a alma. O Rio é muito bom, sim senhores,
mas para quem tem flexível a espinha dorsal e o caráter. Preparemos
a trouxa!
Adelaide ficou olhando o marido, com um risinho seco e incrédulo à
flor dos lábios, a mão no queixo, a cabeça inclinada
numa pose de modelo vivo.
– Por que me olhas com esses olhos tão admirados? – perguntou o bacharel
agarrado ao Comércio do Rio.
– Por nada…
– Já disse: preparemos a trouxa. Amanhã vou me despedir do
Banco e telegrafar ao Rocha.
Adelaide continuava a olhar Evaristo, sem o compreender, sem compreender
toda aquela precipitação.
– Não me venhas com histórias… – tornou ele.
– Mas…
– Que mas o quê! Para longe deste inferno! para longe desta porqueira!
Vive-se melhor, mais barato e mais honradamente na obscuridade da província,
criando galinhas ou plantando jerimuns. Estou farto de aturar a pedantocracia
de Botafogo e do Sr. Luís Furtado. Um bacharel em direito vive em qualquer
parte do mundo: vou advogar, vou esperar a República no sertão!
– O que eu quero dizer é que não te precipites, Evaristo. Façamos
as coisas com jeito, sem desgostar a ninguém. Olha que devemos favores
ao Sr. Furtado, à D. Branca…
– Adeus, minhas encomendas! – disse o bacharel erguendo-se e atirando o jornal
para o lado. – Quem te afirmou o contrário? É verdade que devo
muitos favores àquele bigorrilha, inclusive os duzentos mil réis
que me emprestou já lá vai um ano; mas porque mos não
cobrou? Negócio é negócio. Agora, daí não
segue-se que lhe devo beijar as mãos como um cachorrinho de grisette.
– Evaristo!
– Digo e torno a dizer: não sou um cachorrinho de grisette para andar
beijando as mãos a fidalgos!
– Fala baixo!
– Estou falando mais baixo do que costumo…
E encerrou-se a discussão entre Evaristo de Holanda e a mulher naquela
tarde melancólica demais, ao crepúsculo.
Adelaide não dormiu, pensando na brusca resolução do
marido e em mil e tantas coisas fúteis que aos olhos de uma mulher
inexperiente como ela, e como ela supersticiosa, adquirem estranhas proporções.
Mas no meio de todas essas coisas erguia-se o vulto de um homem, que não
era o Holanda, que absolutamente não se parecia com aquele que ali
estava a seu lado, na cama, e de novo um extraordinário medo apoderava-se
dela, um pavor inexplicável, uma covardia criminosa, que a obrigava
a abrir e fechar os olhos intermitentemente… Era o vulto do secretário…
“a tentação”, chamando-a para o mistério do
gozo e para a desonra, num apelo fidalgo de cavalheiro do Amor, num requinte
donjuanesco de volúpia mundana… Sim, era ele, era. Luís Furtado
acenando-lhe com a felicidade efêmera de um instante, ajoelhando-se-lhe
aos pés e suplicando um beijo, uma palavra de amor, um movimento de
simpatia… E ela, inconscientemente, fechava os olhos para o ver melhor,
e naquele sonhar acordada, ia-se-lhe a alma, num vôo rápido e
traiçoeiro para o marido de D. Branca… Depois voltava ao corpo donde
saíra, e logo a jovem esposa do bacharel abria os olhos, trêmula
de medo, arrependida como se houvesse praticado uma ação má.
Naquela noite, mais do que em todas as outras, Adelaide pensou no secretário.
– Amá-lo-ia?… Não, porque adorava o marido. Talvez acabasse
amando-o… Mas o futuro é tão incerto, são tão
incertas as previsões humanas!… Certo é que a imagem dele
não a deixava, por mais que a repelisse.
Amanheceu o dia soberbo de luz. Evaristo tornou a falar na viagem para o
norte. Adelaide disse-lhe que sim, que ia tratando de arrumar as coisas, e
fez um gesto de enfado.
O bacharel vestiu-se, cantarolando de bom humor, e desceu para a refeição.
– Bom dia.
– Bom dia.
Repetiram-se os habituais cumprimentos da manhã.
Mais do que nunca o almoço correu frio. D. Branca estava de olhos
duros e passava os pratos com um gesto de visível apatia. Furtado aludiu,
em frases lacônicas, ao último telegrama de Cannes:
– Sua Majestade continuava no uso das duchas, – publicado nos jornais matutinos.
Leu alto, para que todos ouvissem, inclusive o bacharel, que fingiu não
dar atenção.
Adelaide petiscava de leve as migalhas de arroz e os bocadinhos de fritada,
baixando os olhos com cerimoniosa discrição.
Evaristo, por sua vez, guardou o mais profundo recolhimento, não aludindo
sequer à projetada viagem. Ia falar ao amigo no Banco e lá mesmo
ajustar suas contas.
– Vamos? – disse o secretário tomando o chapéu e palitando
os dentes.
– Vamos – respondeu friamente Evaristo.
E saíram como de costume, agora menos comunicativos.
Adelaide acompanhou o marido à escada e, logo que este desapareceu
embaixo, porta fora, recolheu ao segundo andar, numa crise de nervos. Não
havia decorrido uma hora depois do almoço, quando D. Branca ouviu gritos
finos de mulher no alto do sobrado.
– É Adelaide, minha gente! – disse arregalando os olhos para o Antônio
que correra.
Os gritos aumentavam, numa progressão assustadora.
– É ela! é ela! – repetiu a esposa de Furtado investindo para
o corredor.
A ama, com a Julinha nos braços, abalou também dos fundos da
casa, e ela e D. Branca e o Antônio acudiram precipitadamente, aos encontrões.
O fâmulo do secretário não esperou pela patroa: galgou
os degraus dois a dois, três a três, numa elasticidade felina
de músculos, e, sem guardar conveniências, enveredou pelos aposentos
do bacharel. D. Branca foi encontrá-lo sobrepujando Adelaide que se
debatia no leito numa agitação de todo o corpo, os olhos desvairados,
a face muito pálida, em convulsões histéricas.
– Mas o que foi? o que foi?! – perguntava, assombrada, a esposa do secretário.
Ninguém sabia explicar, ninguém sabia dizer o que aquilo era.
– O doutor, minha senhora, o doutor! – aconselhava o Antônio, agarrado
aos pulsos da doente.
A primeira idéia de D. Branca foi pedir socorro da janela, alarmar
a vizinhança, salvar a sua responsabilidade, mesmo porque não
tinha àquela hora quem fosse chamar o médico ou prevenir a Evaristo.
O Antônio era indispensável, a ama não saía à
rua, e ela, D. Branca, estava em trajos muito caseiros para se apresentar
a qualquer estranho. Que falta que fazia o Raul!
A ama, sem largar a Julinha, desceu em procura do vidro de éter.
– Depressa, rapariga, depressa! – bradava a mulher do secretário,
atônita no meio da casa.
Felizmente Adelaide arriou os braços, como extenuada, e os gritos
foram-lhe morrendo pouco a pouco, dolorosos e cansados, na garganta.
– Oh meu Deus, que aflição me faz isso! – imprecava D. Branca.
– Não é nada, minha senhora, não é nada… –
dizia o Antônio numa voz conciliadora. – E bom desabotoar-lhe a roupa…
Foi um ataque…
– Espera, Antônio, espera, que eu já desabotôo.. . Não
saias daqui.. traze um copo com água.
O copeiro obedeceu, enquanto ela ia afrouxando a roupa de Adelaide.
Veio o éter, veio a água, fizeram-se fricções,
chamaram muitas vezes pelo nome da doente, a ver se ela acordava, cobriram-na
com um lençol desde os pés até o pescoço, colocaram-lhe
a cabeça nos travesseiros; mas a esposa do bacharel não dava
sinal de vida.
– O coração está batendo? – perguntou inquieta, a ama.
D. Branca encostou o ouvido no peito de Adelaide.
– Está, sim… está batendo devagarinho.
– E agora? – quis saber o Antônio, pronto a retirar-se.
– Agora – ordenou D. Branca – toma um tílburi e vai, vai, correndo,
avisar ao marido dela, no Banco Industrial. – Sabes onde é?
– Sei, sim senhora.
– Pois vai.
O criado atirou-se pelas escadas, mais veloz que um andarilho.
D. Branca ficou à beira do leito, muito nervosa, cheia de desapontamento,
velando a enferma.
Adelaide parecia dormir, numa imobilidade de cadáver, os olhos fechados,
a boca entreaberta, mal respirando.
A esposa do secretário esfregava-lhe a testa e os pulsos, dando-lhe
a cheirar éter, enxugando-lhe o suor que porejava do rosto. De instante
a instante mandava um olhar ao espelho do toucador. – Estava tão pálida!
Afina, Adelaide abriu os olhos com um largo suspiro que fê-la estremecer
toda.
– Quer beber um pouquinho d’água? – inquiriu Branca.
A esposa de Evaristo não respondeu; olhou-a, com os olhos muito lânguidos,
muito mortos, encarando, em seguida, a ama, que estava em pé a seu
lado. Mas a mulher do secretário derramou algumas gotas de éter
num copo e deu-lhe a beber o calmante.
– Que horas são? – perguntou Adelaide numa voz débil que lhe
saía do fundo do peito com outro suspiro de alívio.
– Vai para as duas… Descanse, que o Sr. Evaristo não pode tardar…
Com efeito, o bacharel não tardou. Para isso é que havia tílburis
na praça e boleeiros de encomenda. Subiu a escada num vôo.
Adelaide estava melhor, muito melhor, e já se sentava na cama; recebeu-o
com lágrimas, atirando-se a ele.
– Mas que foi?… que foi? – perguntava, aflito, o marido.
A esposa do secretário explicou tudo; uma crise de nervos, um desequilíbrio…
má digestão, talvez.
– Uma crise? Mas não chamaram médico?
Adelaide continuava a soluçar com a cabeça no ombro de Evaristo.
– Como chamar médico, Sr. Evaristo, se não havia por quem?…
– E o Antônio?
– O Antônio foi avisá-lo ao Banco… ora, o Antônio!
– Deixavam-te morrer, minha mulher, deixavam-te expirar à míngua!
– disse o bacharel transbordando ironia. – Onde há dinheiro falta piedade…
Mil vezes a Cidade Nova!
– Que quer o senhor dizer com isso? – perguntou D. Branca, ofendida.
– Que quero dizer com isto? Nada, excelentíssima, absolutamente nada.
– O senhor ofende-nos, a mim e ao Lulu…
– Eu, ofendê4a? – tornou Evaristo com um sorriso de escárnio.
– Sim, senhor: ofende-nos, tanto mais quanto nunca o maltratamos… sua senhora
sempre foi muito bem tratada em nossa casa.
– Perdão, eu não vim discutir.
– Não vem discutir, mas vem ofender a quem nunca o ofendeu… Isto
mesmo hei de dizer ao Lulu…
E a orgulhosa D. Branca Furtado, num assomo de cólera, que nada tinha
de nobreza, embarafustou, resmungando, escadas abaixo.
– Pro diabo que a carregue! – explodiu Evaristo.
Adelaide não teve tempo de lhe tapar a boca. A frase saiu inteira,
completa, dos lábios do jacobino.
– Ao dinheiro oponho eu a dignidade, morra, embora, na miséria! –
continuou, afagando os cabelos da esposa.
E seguiu-se uma cena muda de carinhos entre os dois.
O próprio bacharel tinha lágrimas nos olhos.
VII
Naquele mesmo dia Evaristo de Holanda mudou-se para um hotel no Campo da
Aclamação. – “Bastava de fidalgos…” Não quis
levar os trastes, porque – dizia ele – não lhe pertenciam; recolheu
apenas os baús que trouxera do norte, um ou outro objeto que comprara
depois, inclusive um grande quadro de Tiradentes e os livros, meia dúzia
de volumes encadernados.
Quando às seis horas o carro parou à porta de Furtado, a vizinhança
toda chegou à janela. O desembargador Lousada, com o indefectível
gorro, a mulher e a filha também apareceram, D. Sinhá, branca
de pó-de-arroz, falava tão alto que se ouvia dos extremos da
rua. – Só nessas ocasiões aquele trecho do bairro animava-se
um pouco; o mais simples episódio, um incidente qualquer fora do comum
dava às casas aspecto novo de quarteirão em festa, excitando
a curiosidade dos moradores, transmitindo-lhes aos nervos uma sensação
especial de alegria, de bom humor e de íntima aliança entre
o corpo e o espírito. Era necessário que um sopro de escândalo
varresse a atmosfera estagnada dos brasões e do preconceito fidalgo
para que o longínquo recanto de Botafogo sentisse um calor de vida,
um frêmito de existência animal nas artérias.
Bastava o rodar de uma carruagem: todo o mundo esquecia obrigações
para satisfazer uma necessidade imperiosa do espírito e do olhar. As
varandas enchiam-se, mil cabeças surgiam como peixes à tona
d’água. Era a avidez do escândalo, a eterna bisbilhotice de operários
e ociosos, de homens e mulheres, acordando para a faina do dizia-se, para
a mistificação do boato.
Um carro à porta dos Furtado! Ainda se fosse o do visconde… mas
não – não era o cupê do Santa Quitéria… Talvez
alguma visita de cerimônia… Entretanto – coisa notável! – as
janelas do primeiro andar estavam fechadas e não havia ninguém
na varanda do secretário!
A filha do desembargador cravava os olhos na alta frontaria do sobrado:
– “Ninguém”!
E aquele “misterioso” veículo de segunda ordem, atrelado
com animais de ínfima espécie, causava arrepios de curiosidade
– era como um ponto de interrogação erguido a fidalgos e burgueses
no meio de uma rua sombria.
Luís Furtado passeava de um lado para o outro, na sala de jantar.
Incomodava-o a brusca retirada do amigo, não obstante as insinuações
odiosas da mulher. D. Branca enchera-lhe os ouvidos: que fora desacatada pelo
bacharel, que o marido “da Sra. D. Adelaide” era um grosseirão;
que antes nunca os tivesse admitido em sua casa; que o culpado era ele, Furtado,
homem de muitas facilidades e de pouca experiência…
O secretário ouvia tudo com uma resignação de carneiro
imolado, sem proferir palavra, sem a mais leve queixa. Não foi pedir
explicações ao amigo: esperou os acontecimentos com a mesma
calma de homem que sabe ajuizar dos homens e crê numa fatalidade que
a tudo resiste e tudo domina na ordem moral e nas relações sociais.
O Evaristo era um pancada, ele o sabia melhor que ninguém: para que
provocá-lo? Esperava, até que o bacharel se resolvesse a um
acordo, a uma conciliação honrosa para ambos. Nenhum dos dois
tinha a lucrar com um rompimento escandaloso e menos digno de cavalheiros
que se prezam. Imaginava Adelaide sucumbida, os olhos em pranto, o coração
intumescido de desgosto – pobre senhora! – às voltas com um homem de
gênio pirrônico e macambúzio, sem o necessário equilíbrio
para a vida doméstica – exagerando tudo, revoltando-se contra todos.
Como ela havia de estar sofrendo, aquela pomba sem fel!
E o secretário do Banco Industrial forrava-se de uma tranqüilidade
assombrosa para não dar a perceber a D. Branca o pesar, o grande pesar
que lhe causavam a história do ataque e a narrativa do episódio
com o bacharel na presença de Adelaide.
Ela, coitada, ela também sentia muito, a jovem esposa de Evaristo;
habituara-se àquele viver, àquela existência em comum
com os Furtado e doía-lhe, agora, como um punhal que lhe enfiassem
nas carnes tenras, o abandono de todas as comodidades, a separação
brusca das duas famílias tão intimamente unidas no princípio,
quando ela chegara ao Rio de Janeiro… E por quê? Por nada, por coisíssima
alguma, por um simples capricho, por uma fatalidade!
Evaristo desceu ao lado da mulher, guiando-a na escada, todo cauteloso, carregando-a
quase.
– Não te despedes?… – lembrou ela.
– Eu?!
E com uma ironia na voz:
– Queres me debicar…
Adelaide não insistiu: foi-se deixando levar até embaixo, à
porta da rua, como uma convalescente.
O boleeiro abriu, com um movimento estabanado, a portinhola do carro e ela
entrou. Foi como se entrasse numa prisão para nunca mais sair; tudo
escureceu ao redor dela, como se lhe tapassem a vista com um pano negro; faltava-lhe
o ar, faltava-lhe a lucidez do espírito, fugia-lhe a clarividência
das coisas, fugia-lhe tudo! Apenas um objeto perdurava na sua imaginação;
– triste esfinge na aridez de um deserto – a figura do secretário,
mais do que nunca tentadora, numa auréola deslumbrante que o divinizava,
olhando-a, todo voltado para ela, todo dela…
E um golfão de lágrimas, uma torrente de pérolas brotou
caudalosa de seus olhos meigos, ensopando o lencinho de rendas que lhe dera
Evaristo no seu último aniversário.
– São os Holanda, são os Holanda! – repetiu, espevitada, a
filha do desembargador.
E a vizinhança toda repetiu baixinho:
– São os Holanda…
Furtado, quando soube que o amigo abalara, não sentiu menos que Adelaide
a rudez do golpe, e, instintivamente, revoltou-se contra a mulher, contra
a asa-negra de D. Branca, origem do desespero que lhe ia no fundo d’alma.
Guardou, porém, esse desespero no mais íntimo do coração,
trancou-o a sete chaves lá onde ninguém o pudesse desvendar,
forte como um herói vencido, e apelou para a Fatalidade…
Mas o destino é caprichoso e não quis que o secretário
tomasse a pôr os olhos insaciáveis na miragem que o fizera sonhar
noites inteiras, dias inteiros, na ânsia de um gozo novo.
Embalde esperou, embalde correu lugares aonde nunca o conduzira a sede de
aventuras: ninguém lhe dava notícias do bacharel. Para onde
teria ele ido? Como explicar o eclipse total daquela mulher numa cidade como
o Rio de Janeiro, em que toda a gente se encontrava por mais que se quisesse
ocultar? De que ia viver Evaristo, agora, sem um amigo que lhe desse a mão?
De que ia viver a pobre Adelaide numa época tenebrosa de empréstimos
forçados e de gerais clamores, quando o próprio Banco Industrial
não oferecia segurança?
E enquanto por um lado apiedava-se do amigo, quase arrependido de o ter deixado
ir embora sem rumo certo no mare magnum da vida, por outro lado reconstruía
mentalmente o episódio do Jardim Botânico, em que fora protagonista
a esposa do bacharel, e sentia extraordinária volúpia cada vez
que se lembrava daquele beijo de fogo, mais precioso que todas as riquezas
do mundo e cujo calor como que lhe ficara impregnado na boca para todo o sempre…
Ela o repelira brandamente, cheia de dignidade, cheia de pudor, fiel ao homem
que escolhera para esposo; mas nisso é que estava o sabor esquisito
e fidalgo que lhe ainda permanecia, por um efeito da imaginação,
nos lábios trêmulos…
FIM
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