Schiller

I

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Tíbio o sol entre as nuvens do ocidente,

Já lá se inclina ao mar. Grave e solene

Vai a hora da tarde! O oeste passa

Mudo nos troncos da alameda antiga,

ue à voz da Primavera os gomos brota:

O oeste passa mudo, e cruza o átrio

Pontiagudo do templo, edificado

Por mãos duras de avós, em monumento

De uma herança de fé que nos legaram,

A nós seus netos, homens de alto esforço,

Que nos rimos da herança, e que insultamos

A Cruz e o templo e a crença de outras eras;

Nós, homens fortes, servos de tiranos,

Que sabemos tão bem rojar seus ferros

Sem nos queixar, menosprezando a Pátria

E a liberdade, e o combater por ela.

Eu não! – eu rujo escravo; eu creio e espero

No Deus das almas generosas, puras,

E os déspotas maldigo. Entendimento

Bronco, lançado em século fundido

Na servidão de gozo ataviada,

Creio que Deus é Deus e os homens livres!

II

Oh, sim! – rude amador de antigos sonhos,

Irei pedir aos túmulos dos velhos

Religioso entusiasmo; e canto novo

Hei-de tecer, que os homens do futuro

Entenderão; um canto escarnecido

elos filhos dest’ época mesquinha.

Em que vim peregrino a ver o mundo,

E chegar a meu termo, e reclinar-me

À branda sombra de cipreste amigo.

III

Passa o vento os do pórtico da igreja

Esculpidos umbrais: correndo as naves

Sussurrou, sussurrou entre as colunas

De gótico lavor: no órgão do coro

Veio, enfim, murmurar e esvaecer-se.

IV

Mas porque sou o vento? Está deserto,

Silencioso ainda o sacro templo:

Nenhuma voz humana ainda recorda

Os hinos do Senhor. A natureza

Foi a primeira em celebrar seu nome

Neste dia de luto e de saudade!

Trevas da quarta-feira, eu vos saúdo!

Negras paredes, mudos monumentos

De todas essas orações de mágoa,

De gratidão, de susto ou de esperança.

Depositadas ante vós nos dias

De fervorosa crença, a vós que enluta

A solidão e o dó, venho eu saudar-vos.

A loucura da Cruz não morreu toda (1)

Após dezoito séculos! Quem chore

Do sofrimento o Herói existe ainda.

Eu chorarei – que as lágrimas são dó homem –

Pelo Amigo do povo, assassinado

Por tiranos, e hipócritas, e turbas

Envilecidas, bárbaras, e servas.

V

Tu, Anjo do Senhor, que acendes o estro;

Que no espaço entre o abismo e os céus vagueias,

Donde mergulhas no oceano a vista;

Tu que do trovador à mente arrojas

Quanto há nos céus esperançoso e belo,

Quanto há no abismo tenebroso e triste,

Quanto há nos mares majestoso e vago,

Hoje te invoco! – oh, vem! –, lança em minha alma

A harmonia celeste e o fogo e o génio,

Que dêem vida e vigor a um carme pio.

VI

A noite escura desce: o Sol de todo

Nos mares se atufou. A luz dos mortos,

Dos brandões o clarão, fulgura ao longe

No cruzeiro somente e em volta da ara:

E pelas naves começou ruído

De compassado andar. Fiéis acodem

À morada de Deus, a ouvir queixumes

Do vate de Sião. Em breve os monges,

Suspirosas canções aos Céus erguendo,

Sua voz unirão à voz desse órgão,

E os sons e os ecos reboarão no templo.

Mudo o coro depois, neste recinto

Dentro em bem pouco reinará silêncio,

O silêncio dos túmulos, e as trevas

Cobrirão por esta área a luz escassa

Despedida das lâmpadas. que pendem

Ante os altares, bruxuleando frouxas.

Imagem da existência! Enquanto passam

Os dias infantis, as paixões tuas,

Homem, qual então és, são débeis todas.

Cresceste: ei-las torrente, em cujo dorso

Sobrenadam a dor e o pranto e o longo

Gemido do remorso, a qual lançar-se

Vai com rouco estridor no antro da morte,

Lá, onde é tudo horror, silêncio, noite.

Da vida tua instantes florescentes

Foram dois, e não mais: as cãs e rugas,

Logo, rebate de teu fim te deram.

Tu foste apenas som, que, o ar ferindo,

Murmurou, esqueceu, passou no espaço.

E a casa do Senhor ergueu-se. O ferro

Cortou a penedia; e o canto enorme

Polido alveja ali no espesso pano

Do muro colossal, que era após era,

Como onda e onda ao desdobrar na areia,

Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado.

O ulmo e o choupo no cair rangeram

Sob o machado: a trave afeiçoou-se;

Lá no cimo pousou: restruge ao longe

De martelos fragor, e eis ergue o templo,

Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas.

Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento

Se esvai, como da cerva a leve pista

No pó se apaga ao respirar da tarde,

Do seio dessa terra em que és estranho,

Sair fazes as moles seculares,

Que por ti, mono, falem; dás na ideia

Eterna duração às obras tuas.

Tua alma é imortal, e a prova a deste!

VII

Anoiteceu. Nos claustros ressoando

As pisadas dos monges ouço: eis entram;

Eis se curvaram paru o chão, beijando

O pavimento, a pedra. Oh, sim, beijai-a!

Igual vos cobrirá a cinza um dia,

Talvez em breve – e a mim. Consolo ao morto

É a pedra do túmulo. Sê-lo-ia

Mais, se do justo só a herança fora;

Mas também ao malvado é dada a campa.

E o criminoso dormirá quieto

Entre os bons soterrado? Oh, não! Enquanto

No templo ondeiam silenciosas turbas,

Exultarão do abismo os moradores,

Vendo o hipócrita vil, mais ímpio que eles,

Que escarnece do Eterno, e a si se engana;

Vendo o que julga que orações apagam

Vícios é crimes. e o motejo e o riso

Dado em resposta às lágrimas do pobre;

Vendo os que nunca ao infeliz disseram

De consolo palavra ou de esperança.

Sim: malvados também hão-de pisar-lhes

Os frios restos que separa a terra,

Um punhado de terra, a qual os ossos

Destes há-de cobrir em tempo breve,

Como cobriu os seus; qual vai sumindo

No segredo da campa a humana raça.

VIII

Eis que a turba rareia. Ermam bem poucos

Do templo na amplidão: só lá no escuro

De afumada capela o justo as preces

Ergue pio ao Senhor, as preces puras

De um coração que espera, e não mentidas

De lábios de impostor, que engana os homens

Com seu meneio hipócrita, calando

Na alma lodosa da blasfémia o grito.

Então exultarão os bons, e o ímpio,

Que passou, tremerá. Enfim, de vivos,

Da voz, do respirar o som confuso

Vem confundir-se no ferver das praças,

E pela galilé só ruge o vento.

Em trevas não, ficou silenciosas

O sagrado recinto: os candeeiros,

No gelado ambiente ardendo a custo,

Espalham débeis raios, que reflectem

Das pedras pela alvura; o negro mocho,

Companheiro do morto, hórrido pio

Solta lã da cornija: pelas fendas

Dos sepulcros desliza fumo espesso;

Ondeia pela nave, e esvai-se. Longo

Suspirar não se ouviu? Olhai!, lá se erguem,

Sacudindo o sudário, em peso os morros!

Mortos, quem vos chamou? O som da tuba

Ainda do Josafat não fere os vales.

Dormi, dormi: deixai passar as eras…

IX

Mas foi uma visão: foi como cena

D’ imaginar febril. Criou-se, acaso

Do poeta na mente, ou desvendou-lhe

A mão de Deus o íntimo ver da alma,

Que devassa a existência misteriosa

Do mundo dos espíritos? Quem sabe?

Dos vivos já deserta, a igreja torva

Repovoou-se, para mim ao menos,

Dos extintos, que ao pé das santas aras

Leito comum na sonolência extrema

Buscaram. O terror, que arreda o homem

Do limiar do tempo às horas mortas,

Não vem de crença vã. Se fulgem astros,

Se a luz da Lua estira a sombra eterna

Da cruz gigante (que campeia erguida

No vértice do tímpano, ou no cimo

Do coruchéu do campanário) ao longo

Dos inclinados tectos, afastai-vos!

Afastai-vos daqui, onde se passam

A meia-noite insólitos mistérios;

Daqui, onde desperta a voz do arcanjo

Os dormentes da morte; onde reúne

O que foi forte e o que foi fraco, o pobre

E o opulento, o orgulhoso e o humilde,

O bom e o mau, o ignorante e o sábio,

Quantos, enfim, depositar vieram

!unto do altar o que era seu no mundo,

Um corpo nu, e corrompido e inerte.

X

E seguia a visão. Cria ainda achar-me,

Alta noite, na igreja solitária

Entre os mortos, que, erectos sobre as campas,

Eram á pouco um fumo que ondeava

Pelas fisgas do vasto pavimento.

Olhei. Do erguido tecto o pano espesso

Rareava; rareava-me ante os olhos,

Como ténue cendal; mais ténue ainda,

Como o vapor de Outono em quarto d’alva,

Que se libra no espaço antes que desça

A consolar as plantas conglobado

Em matutino orvalho. O firmamento

Era profundo e amplo. Envolto em glória,

Sobre vagas de nuvens, rodeado

Das legiões do Céu, o Ancião dos dias,

O Santo, o Deus descia. Ao sumo aceno

Parava o tempo, a imensidade, a vida

Dos mundos a escutar. Era esta a hora

Do julgamento desses que se alçavam,

À voz de cima, sobre as sepulturas?

XI

Era ainda a visão. Do templo em meio

Do anjo da morte a espada flamejante

Crepitando bateu. Bem como insectos,

Que à flor de pego pantanoso e triste

Se balouçavam – quando a tempestade

Veio as asas molhar nas águas turvas,

Que marulhando sussurraram – surgem

Volteando, zumbindo em dança doida,

E, lassos, vão pousar em longas filas

Nas margens do paul, de um lado e de outro;

Tal o murmúrio e a agitação incerta

Ciciava das sombras remoinhando

Ante o sopro de Deus. As melodias

Dos coros celestiais, longínquas, frouxas,

Com frémito infernal se misturavam

Em caos de dor e júbilo.

Dos mortos

Parava, enfim, o vórtice enredado;

E os grupos vagos em distintas turmas

Se enfileiravam de uma parle e de outra.

Depois, o gládio do anjo entre os dois bandos

Ficou, única luz, que se estirava

Desde o cruzeiro ao pórtico, e feria

De reflexo vermelho os largos panos

Das paredes de mármore, bem como

Mar de sangue, onde inertes flutuassem

De humanos vultos indecisas formas.

XII

E seguia a visão. Do templo à esquerda,

Mestas as faces, inclinada afronte,

Da noite as larvas tinham sobre o solo

Fito o espantado olhar, e as dilatadas

Baças pupilas lhes tingia o susto.

Mas, como zona lúcida de estrelas,

Nessa atmosfera crassa e afogueada

Pela espada rubente, refulgiam

Da direita os espíritos, banhado

De inenarrável placidez seu gesto.

Era inteiro o silêncio, e no silêncio

Uma voz ressoou: «Eleitos, vinde!

Ide, precitos!» Vacilava a Terra,

E ajoelhando eu me curvei tremendo.

XIII

Quando me ergui e olhei, no céu profundo

Um rastilho de luz pura e serena

Se ia embebendo nesses mares de orbes

Infinitos, perdidos no infinito,

A que chamamos o universo. Um hino

De saudade e de amor, quase inaudível,

Parecia romper desde as alturas

De tempo a tempo. Vinha como envolto

Nas lufadas do vento, até perder-se

Em sossego mortal.

O curvo tecto

Do templo, então, se condensou de novo,

E para a Terra o meu olhar volveu-se.

Da direita os espíritos radiosos

Já não estavam lá. Chispando a espaços,

Qual o ferro na incude, a espada do anjo

O mortiço rubor mandava. apenas,

D’aurora boreal quando se extingue.

XIV

Prosseguia a visão. Da esquerda às sombras

Ansiava o seio a dor: tinham no gesto

Impressa a maldição, que lhes secara

Eternamente a seiva da esperança.

Como se vê, em noite estiva e negra,

Cintilar sobre as águas a ardentia,

Dumas frontes às outras vagueavam

Cerúleos lumes no esquadrão dos mortos,

E ao estalar das lousas, grito imenso

Subterrâneo, abafado e delirante,

Inefável compêndio de agonias,

Misturado se ouviu com rir do Inferno,

E a visão se desfez. Era ermo o templo:

E despertei do pesadelo em trevas.

XV

Era loucura ou sonho? Entre as tristezas

E os terrores e angústias, que resume

Neste dia e lugar a avita crença,

Irresistível força arrebatou-me

Da sepultura a devassar segredos,

Para dizer: »Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

A justiça de Deus visita os mortos,

Embora a cruz da redenção proteja

A pedra tumular; embora a hóstia

Do sacrifício o sacerdote eleve

Sobre as vizinhas aras. Quando a igreja

Rodeiam trevas, solidão e medos,

Que a resguardam coas asas acurvadas

Da vista do que vive, a mão do Eterno

Separa o joio ao bom grão e arroja

Para os abismos a ruim semente.

XVI

Não! – não foi sonho vão, vago delírio

De imaginar ardente. Eu fui levado,

Galgando além do tempo, às tardas horas,

Em que se passam cenas de mistério,

Para dizer: «Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

Vejo ainda o que vi: da sepultura

Ainda o hálito frio me enregela

O suor do pavor na fronte; o sangue

Hesita imoto nas inertes veias;

E embora os lábios murmurar não ousem,

Ainda, incessante, me repete na alma

Íntima voz: «Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

XVII

Mas troa a voz do monge, e, enfim, desperto

O coração bateu. Eia, retumbem

Pelos ecos do templo os sons dos salmos.

Que em dia de aflição ignoto vate

Teceu (2), banhado em dor. Talvez foi ele

O primeiro cantor que em várias cordas,

À sombra das palmeiras da Idumeia,

Soube entoar melodioso um hino.

Deus inspirava então os trovadores

Do seu povo querido, e a Palestina,

Rica dos meigos dons da natureza.

Tinha o ceptro, também, do entusiasmo.

Virgem o génio ainda, o estro puro

Louvava Deus somente, à luz da aurora,

E ao esconder-se o Sol entre as montanhas

De Bethoron (3). Agora o génio é morto

Para o Senhor, e os cantos dissolutos

De lodoso folguedo os ares rompem,

Ou sussurram por paços de tiranos,

Asselados de pútrida lisonja,

Por preço vil, como o cantor que os tece.

XVIII

O SALMO (4)

Quando é grande o meu Deus!… Té onde chega

O seu poder imenso!

Ele abaixou os céus. desceu, calcando

Um nevoeiro denso.

Dos querubins nas asas radiosas

Librando-se, voou;

E sobre turbilhões de rijo vento

O mundo rodeou.

Ante o olhar do Senhor vacila a Terra,

E os mares assustados

Bramem ao longe, e os montes lançam fumo,

Da sua mão tocados.

Se pensou no universo, ei-lo patente

Ante a face do eterno:

Se o quis, o firmamento os seios abre,

Abre os seios o Inferno.

Dos olhos do Senhor, homem, se podes.

Esconde-te um momento:

Vê onde encontrarás lugar que fique

Da sua vista isento:

Sobe aos Céus, transpõe mares, busca o abismo,

Lá teu Deus hás-de achar;

Ele te guiará, e a dextra sua

Lá te há-de sustentar:

Desce à sombra da noite, e no seu manto

Envolver-te procura…

Mas as trevas para ele não são trevas,

Nem é a noite escura.

No dia do furor, em vão buscaras

Fugir ante o Deus forte,

Quando do arco tremendo, irado, impele

Seta em que pousa a morte.

Mas o que o teme dormirá tranquilo

No dia extremo seu,

Quando na campa se rasgar da vida

Das ilusões o véu.

XIX

Calou-se o monge: sepulcral silêncio

À sua voz seguiu-se. Uma toada

De órgão rompeu do coro (5). Assemelhava

O suspiro saudoso, e os ais de filha,

Que chora solitária o pai, que dorme

Seu último, profundo e eterno sono.

Melodias depois soltou mais doces.

O severo instrumento: e ergueu-se o canto,

O doloroso canto do profeta,

Da pátria sobre o fado. Ele, que o vira,

Sentado entre ruínas, contemplando

Seu avito esplendor, seu mal presente,

A queda lhe chorou. Lá na alta noite,

Modulando o Nébel (6), via-se o vate

Nos derribados pórticos, abrigo

Do imundo stélio (7) e gemedora poupa.

Extasiado – e a lua cintilando

Na sua calva fronte, onde pesavam

Anos e anos de dor. Ao venerando

Nas encovadas faces fundos regos

Tinham aberto as lágrimas. Ao longe,

Nas margens do Cédron, a rã grasnando (8)

Quebrava a paz dos túmulos. Que túmulo

Era Sião! – o vasto cemitério

Dos fortes de Israel. Mais venturosos

Que seus irmãos, morreram pela pátria;

A pátria os sepultou dentro em seu seio.

Eles, em Babilónia, aos punhos ferros,

Passam de escravos miseranda vida,

Que Deus pesou seus crimes, e. ao pesá-los,

A dextra lhe vergou. Não mais no templo

A nuvem repousara, e os céus de bronze

Dos profetas aos rogos se amostravam.

O vate de Anatoth (9) a voz soltara

Entre o povo infiel, de Eloha em nome (10):

Ameaças, promessas, tudo inútil;

De bronze os corações não se dobraram.

Vibrou-se a maldição. Bem como um sonho,

Jerusalém passou: sua grandeza

Somente existe em derrocadas pedras.

O vate de Anatoth, sobre seus restos,

Com triste canto deplorou a pátria.

Hino de morte alçou: da noite as larvas

O som lhe ouviram: ‘squálido esqueleto,

Rangendo os ossos, dentre a hera e musgos

Do pórtico do templo erguia um pouco,

Alvejando, a caveira. Era-lhe alívio

Do sagrado cantor a voz suave

Desferida ao luar, triste, no meio

Da vasta solidão que o circundava.

O profeta gemeu: não era o estro,

Ou o vívido júbilo que outrora

Inspirara Moisés (11): o sentimento

Foi sim pungente de silêncio e morte,

Que da pátria lhe fez sobre o cadáver

A elegia da noite erguer e o pranto

Derramar da esperança e da saudade.

XX

A LAMENTAÇÃO (12)

Como assim jaz e solitária e queda

Esta cidade outrora populosa!

Qual viúva, ficou e tributária

A senhora das gentes.

Chorou durante a noite; em pranto as faces,

Sozinha, entregue á dor, nas penas suas

Ninguém a consolou: os mais queridos

Contrários se tornaram.

Ermas as praças de Sião e as ruas,

Cobre-as a verde relva: os sacerdotes

Gemem; as virgens pálidas suspiram

Envoltas na amargura.

Dos filhos de Israel nas cavas faces

Está pintada a macilenta fome;

Mendigos vão pedir, pedir a estranhos,

Um pão de infâmia eivado.

O trémulo ancião, de longe, os olhos

Volve a Jerusalém, dela fugindo:

Vê-a, suspira, cai, e em breve expira

Com seu nome nos lábios.

Que horror! – ímpias as mães os tenros filhos

Despedaçaram: bárbaras quais tigres,

Os sanguinosos membros palpitantes

No ventre sepultaram.

Deus, compassivo olhar volve a nós tristes:

Cessa de Te vingar! Vê-nos escravos,

Servos de servos em país estranho.

Tem dó de nossos males!

Acaso serás Tu sempre inflexível?

Esqueceste de todo a nação tua?

O pranto dos Hebreus não Te comove?

És surdo a seus lamentos?

XXI

Doce era a voz do velho: o som do Nablo

Sonoro: o céu sereno: clara a Terra

Pelo brando fulgor do astro da noite:

E o profeta parou. Erguidos tinha

Os olhos paru o céu, onde buscava

Um raio de esperança e de conforto:

E ele calara já, e ainda os ecos,

Entre as ruínas sussurrando, ao longe

Iam os sons levar de seus queixumes.

XXII

Choro piedoso, o choro consagrado

Às desditas dos seus. Honra ao profeta:

Oh, margens do Jordão, país formoso

Que fostes e não sois, também suspiro

Condoído vos dou. Assim fenecem

Impérios, reinos, solidões tornados!…

Não: Nenhum deste morto: o peregrino

Pára em Palmira e pensa. O braço do homem

A sacudiu à Terra, e fez dormissem

O seu último sono os filhos dela –

E ele o veio dormir pouco mais longe…

Mas se chega a Sião treme, enxergando

Seus lacerados restos. Pelas pedras,

Aqui e ali dispersas, ainda escrita

Parece ver-se uma inscrição de agouros,

Bem como aquela que alertou um ímpio (13),

Quando, no meio de ruidosa festa,

Blasfemava dos Céus, e mão ignota

O dia extremo lhe apontou dos crimes.

A maldição do Eterno está vibrada

Sobre Jerusalém! Quanto é terrível

A vingança de Deus! O Israelita,

Sem pátria e sem abrigo, vagabundo,

Ódio dos homens, neste mundo arrasta

Urna existência mais cruel que a morte,

E que vem terminar a morte e inferno.

Desgraçada nação! Aquele solo

Onde manava o mel, onde o carvalho,

O cedro e a palma o verde ou claro ou torvo,

Tão grato à vista, em bosques misturavam;

Onde o lírio e a cecém nos prados tinham

Crescimento espontâneo entre as roseiras,

Hoje, campo de lágrimas, só cria

Humilde musgo de escalvados cerros (14).

XXIII

Ide vós a Mambré (15). Lá, bem no meio

De um vale, outrora de verdura ameno,

Erguia-se um carvalho majestoso.

Debaixo de seus ramos largos dias

Abraão repousou. Na Primavera

Vinham os moços adornar-lhe o tronco (16)

De capelas cheirosas de boninas,

E coreias gentis traçar-lhe em roda.

Nasceu com o orbe a planta venerável,

Viu passar gerações, julgou seu dia

Final fosse o do mundo, e quando airosa

Por entre as densas nuvens se elevava,

Mandou o Nume aos aquilões rugissem.

Ei-la por terra! As folhas, pouco a pouco,

Murcharam-se caindo, e o rei dos bosques

Serviu de pasto aos tragadores vermes.

Deus estendeu a mão: no mesmo instante

A vinha se mirrou: junto aos ribeiros

Da Palestina os plátanos frondosos

Não mais cresceram, como dantes, belos:

O armento, em vez de relva, achou nos prados

Somente ingratas, espinhosas urzes.

No Gólgota plantada, a Cruz clamara (17)

«Justiça!» A tal clamor hórrido espectro

No Moriá surgiu (18). Era seu nome

Assolação. E, despregando um grito,

Caiu com longo som de um povo a campa.

Assim a herança de Judá, outrora

Grata ao Senhor, existe só nos ecos

Do tempo que já foi, e que há passado

Como hora de prazer entre desditas.

………………………………………….

XXIV

Minha pátria onde existe?

É lá somente!

Oh, lembrança da Pátria acabrunhada

Um suspiro também tu me hás pedido;

Um suspiro arrancado aos seios d’alma

Pela ofuscada glória, e pelos crimes

Dos homens que ora são, e pelo opróbrio

Da mais ilustre das nações da Terra!

A minha triste pátria era tão bela,

E forte, e virtuosa!, e ora o guerreiro

E o sábio e o homem bom acolá dormem,

Acolá, nos sepulcros esquecidos,

Que a seus netos infames nada contam

Da antiga honra e pudor e eternos feitos.

O escravo português agrilhoado

Carcomir-se lhes deixa junto às lousas

Os decepados troncos desse arbusto,

Por mãos deles plantado à liberdade,

E por tiranos derribado em breve,

Quando pátrias virtudes se acabaram,

Como um sonho da infância!…

O vil escravo,

Imerso em vícios, em bruteza e infâmia,

Não erguerá os macerados olhos

Para esses troncos, que destroem vermes

Sobre as cinzas de heróis, e, aceso em pejo,

Não surgirá jamais? Não há na Terra

Coração português que mande um brado

De maldição atroz, que vá cravar-se

Na vigília e no sono dos tiranos,

E envenenar-lhes o prazer por noites

De vil prostituição, e em seus banquetes

De embriaguez lançar fel e amarguras?

Não! Bem como um cadáver já corrupto,

A Nação se dissolve: e em seu letargo

O povo, envolto na miséria, dorme.

XXV

Oh, talvez. como o vate, ainda algum dia

Terei de erguer à Pátria hino de morte,

Sobre seus mudos restos vagueando!

Sobre seus restos? Nunca! Eterno, escuta

Minhas preces e lágrimas: sé em breve,

Qual jaz Sião, jazer deve Ulisseia;

Se o anjo do extermínio há-de riscá-la

Do meio das nações, que dentre os vivos

Risque também meu nome, e não me deixe

Na Terra vaguear, órfão de pátria.

XXVI

Cessou da noite a grão solenidade

Consagrada à tristeza e a memorandas

Recordações: os monges se prostraram,

A face unida à pedra. A mim, a todos,

Correm dos alhos lágrimas suaves

De compunção. Ateu, entra no templo:

Não temas esse Deus, que os lábios negam

E o coração confessa. A corda do arco

Da vingança, em que a morte se debruça,

Frouxa está; Deus é bom: entra no templo.

Tu, para quem a morte ou vida é forma,

Forma somente de mais puro barro,

Que nada crês, e em nada esperas, olha,

Olha o conforto do cristão. Se o cálix

Da amargura a provar os Céus lhe deram,

Ele se consolou: bálsamo santo

Piedosa fé no coração lhe verte.

«Deus compaixão terá!» Eis seu gemido:

Porque a esperança lhe sussurra em torno:

«Aqui, ou lá… a Providência é justa.»

Ateu, a quem o mal fizera escravo,

Teu futuro qual é? Quais são teus sonhos?

No dia da aflição emudeceste

Ante o espectro do mal. E a quem alçaras

O gemente clamor? Ao mar, que as ondas

Não altera por ti? Ao ar, que some

Pela sua amplidão as queixas tuas?

Aos rochedos alpestres, que não sentem,

Nem sentir podem teu gemido inútil?

Tua dor, teu prazer, existem, passam,

Sem porvir, sem passado e sem sentido.

Nas angústias da vida, o teu consolo

O suicídio é só, que te promete

Rica messe de gozo, a paz do nada!

E ai de ti, se buscaste, enfim, repouso,

No limiar da morte indo assentar-te!

Ali grita uma voz no último instante

Do passamento: a voz aterradora

Da consciência é ela. E hás-de escutá-la

Mau grado teu: e tremerás em sustos,

Desesperado aos Céus erguendo os olhos

Irados, de través, amortecidos;

Aos Céus, cujo caminho a Eternidade

Coa vagarosa mão te vai cerrando,

Para guiar-te à solidão das dores,

Onde maldigas teu primeiro alento,

Onde maldigas teu extremo arranco,

Onde maldigas a existência e a morte.

XXVII

Calou tudo no templo: o céu é puro,A tempestade ameaçadora dorme.

No espaço imenso os astros cintilantes

O rei da criação louvam com hinos,

Não ouvidos por nós nas profundezas

Do nosso abismo. E aos cantos do universo,

Ante milhões de estrelas, que recamam

O firmamento, ajuntará seu canto

Mesquinho trovador? Que vale uma haspa

Mortal no meio da harmonia etérea,

No concerto da noite? Oh, no silêncio,

Eu pequenino verme irei sentar-me

Aos pés da Cruz nas trevas do meu nada.

Assim se apaga a lâmpada nocturna

Ao despontar do Sol o alvor primeiro:

Por entre a escuridão deu claridade;

Mas do dia ao nascer, que já rutila,

As torrentes de luz vertendo ao longe,

Da lâmpada o clarão sumiu-se, inútil,

Nesse fúlgido mar, que inunda a Terra.

Fonte: www.biblio.com.br

 

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