Rui Barbosa
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Senhor ANATOLE FRANCE:
Minha coragem seria inconcebível, se eu tivesse tido a liberdade de escolha, ao aceitar a missão de vos dirigir a palavra em francês diante deste auditório. A língua dos negócios, de que tive de me servir por força do ofício, durante uma carreira diplomática de alguns meses, num meio muito eminente, decerto, mas não dos mais exigentes em matéria de arte, não é exatamente o instrumento literário de que eu precisaria aqui, para falar-vos dos sentimentos dos meus colegas e dos nossos compatriotas a vosso respeito, num círculo de homens de letras, no qual, aliás, só estou pela excessiva complacência, ou por um capricho da gentileza dos que me cercam. Bem mais fácil, sem dúvida, é enveredar momentaneamente na diplomacia, do que invadir esse domínio dos eleitos, onde exerceis, Senhor ANATOLE FRANCE, a autoridade formidável de um modelo sem mácula.
Na correspondência de FREDERICO, o GRANDE, e VOLTAIRE, que se está agora a publicar na Alemanha, vê-se que o monarca prussiano, escrevendo versos franceses para cortejar o poeta de Cirey, desculpava-se, um dia, dessa presunção, dizendo-lhe: “Respondo-vos gaguejando numa língua que somente aos deuses e aos Voltaires é dado falar.” Esta língua de VOLTAIRE que escreveis tão naturalmente quanto um homem do século dele, com um gosto não menor, e com mais colorido, é uma delícia ouvi-la, quando canta sob a pena dos mestres, é um prazer exercitá-la em conversa, mas é um pavor de enregelar ter alguém de nela se exprimir em público, do alto de uma cadeira presidencial, com as responsabilidades de uma academia e o encargo de receber o príncipe da prosa francesa.
Acadêmico embora, fostes algures um pouco severo a respeito das academias, em vossos louvores aos nativos das ilhas de Fidji, onde é costume, nas famílias, matar os pais, quando velhos, a fim de pôr cobro a essa tendência ou hábito que faz com que os velhos se aferrem às próprias idéias. Na vossa opinião, assim fazendo, eles facilitam a evolução, ao passo que nós retardamos-lhe a marcha, ao criar as academias. Não ousaria afirmar-vos, Senhor ANATOLE FRANCE, que a provação que neste momento sofreis não seja uma expiação dessa pequena maledicência. Poder-se-ia suspeitar de uma engenhosa vingança acadêmica, disfarçando atrás das flores a idéia extravagante de enviar como orador, ao mais amável dos céticos, um desses velhos tenazes, que não seria poupado por aqueles bons fidjianos, e ao mais elegante joalheiro da prosa francesa um mau escrevinhador do vosso belo idioma.
Já bem longe me vejo, com este alongado preâmbulo, das regras do bom gosto e da conveniência. Mas não é culpa minha, se a elas falto, consciente de a elas faltar. Certamente, Senhor ANATOLE FRANCE, haveis de levar em conta as minhas dificuldades, aceitando esta confissão da minha fraqueza, este ato de obediência e de humildade, como a primeira das minhas homenagens.
Vossa rápida passagem por aqui não nos concede senão algumas horas de vossa presença entre nós. Deste modo, só nos podemos aproveitar de alguns momentos para receber-vos como hóspede sob este teto modesto, que não vos lembrará a cúpula nem a filha de Richelieu, e não teria merecido a reprovação de Jacques Tournebroche ou a apologia de Jérôme Coignard. Felizmente para todos, não me incumbe apresentar-vos ao público, nem dizer-lhe, a vosso respeito, o que quer que seja de novo. Isto de modo algum seria possível. Sois, de todo em todo, dos nossos, dos mais conhecidos e mais íntimos de nossa sociedade. Em vossa excursão às margens do Prata, onde ides revelar à curiosidade sul-americana alguns veios preciosos da mina de Rabelais, entrevistos por um minerador finamente entendido, estareis no meio de uma civilização luxuriante e cheia de porvir. Mas em parte alguma, naquela nova Europa, onde é dos mais altos o nível intelectual, encontrareis uma cultura à qual vossa celebridade e vossos escritos sejam mais familiares do que aos nossos intelectuais.
Sem cessar percorremos toda a gama infinita dos vossos sortilégios, desde As Bodas Coríntias e A Vida Literária, até A Ilha dos Pingüins. Oh! Quanto não gostaria eu de a eles voltar agora em vossa companhia! Mas o tempo urge e me arrasta. Deixemos, pois, O Jardim de Epicuro; Thaïs, com seus piedosos anacoretas do tempo em que se cumpria a palavra do profeta: “Cobrir-se-á o deserto de flores”; Balthasar, de alma simples, que buscava a verdade e descobrira no céu uma estrela nova; e aquele angélico Sylvestre Bonnard, que, ao pé do fogo, não ocupa senão o lugar deixado por Hamilcar, enroscado sobre o coxim de penas, o nariz entre as patas. Recordai-vos do quadro dessa intimidade? “Uma respiração igual soerguia-lhe a pelugem espessa e leve. Ao me aproximar, ele insinuou devagarinho as pupilas de ágata entre as pálpebras semicerradas, que logo depois voltou a fechar, pensando: ‘Não foi nada, é meu amigo’.
E A “Rôtisserie” da Rainha Pédauque? Não é possível lá ir sem voltar, muitas vezes, como freguês da casa. A impiedade, ali, não é contagiosa. É sentida, antes, qual vaga e flutuante sutileza que não envenena os circunstantes, assim como a fumaça de um charuto finíssimo, ao mesmo tempo que lhe dispersa o aroma, dele só deixa marcas nos pulmões dos fumantes. Quem jamais poderá esquecer Jérôme Coignard, o Sr. d’Astarac e a família Tournebroche? O desfecho é triste, como o de todas as coisas humanas. Guarda-se, como um perfume de lembrança, a impressão da última visita. “O ar estava embalsamado pelas ervas e repleto do canto dos grilos. Que bela noite!”
O abade expirara. Para seu editor, ele foi “o espírito mais gentil que jamais floresceu sobre a terra”. Melhor não se definiria o espírito do Senhor ANATOLE FRANCE.
Assentamo-nos sob O Olmo do Passeio Público, naquele banco onde, numa cidade de província, traçava-se a política da região; e, desde então, travamos conhecimento com toda aquela sociedade de funcionários e magistrados, de damas e eclesiásticos, que constitui o vosso romance da História Contemporânea, em O Manequim de Vime, O Anel de Ametista e O Sr. Bergeret em Paris. Jamais lhe falta ciência, observação, interesse. Sua severidade, contudo, é, por vezes, assustadora, mas, quase sempre, de humor amável, embora com um grão de amargura. E, depois, O Estojo de Nácar, e Pierre Nozière, e Crainquebille, e outros. Omito nomes, e dos melhores. Cumpre parar.
Vossa obra daí flui naturalmente; é inesgotável. Dela o pensamento transborda em abundância, como de um vaso de frescor, em onda calma e límpida, azulada por vezes, e opalina, volta e meia cinza e melancólica, ao sabor dos céus e das nuvens que reflete, raramente túrgida, turva jamais.
É de maravilhar a fineza de vossa análise. Vosso escalpelo cintila.
A anatomia que praticais é cheia de surpresas. Manejais vosso microscópio com a destreza dos mais raros investigadores. Nos laboratórios de histologia social não se encontraria, talvez, quem convosco competisse. Nada há na célula, no tecido nervoso, na substância orgânica dos fatos humanos que escape à vossa olhada genial. Por toda a parte é um sem-número de miniaturas assombrosas de verdades parciais e circunscritas.
Dir-se-ia o pormenor, o relevo e a precisão da arte flamenga, mas com a leveza, o sorriso, a luz de vossa atmosfera. E também, às vezes, de longe em longe, sob esteiras luminosas, grandes quadros que, pelo vigor e colorido, se tornam verdadeiras obsessões para a memória do espectador, acompanhando-o fora da galeria e povoando-lhe o sono.
Quanta realidade, que poder, que vida nessas criações inesquecíveis! Para vós, às vezes, isto nada mais é que um golpe de varinha de condão, milagres obtidos sem esforço, flores de gozo intelectual, que se diriam nascidas espontaneamente. Até vossas composições ligeiras são jóias. Vosso pincel tem evocações que só vos custam um instante.
Sucede-nos encontrá-las súbito, vez por outra, no meio de uma confusão de estranhezas e paradoxos, como coisas vivas. Não nos resta senão perdoar todos os pecados de vossa alma pagã como a dos cristãos do Renascimento, quando se vê jorrarem de vossa paleta esses prodígios de inspiração criadora. Jamais pude esquecer aquele velho hirsuto e rijo que, n’O Poço de Santa Clara, após fitar o céu, através da folhagem, a sorrir descansou, em Fra Mino, um olhar ingênuo. “Nos sulcos profundos de seu rosto, os olhos azuis e límpidos brilhavam como a água de uma fonte entre o córtice dos carvalhos.” Que é que falta a esta aparição para que ela nos fale? Algo haverá mais empolgante na pintura, mais acabado na expressão, mais poderoso na plástica?
Seria o bastante para encher uma tela magnífica na oficina de um mestre da Itália. E, contudo, para vós isto não passou de um breve episódio, questão de alguns vocábulos. Esta é a glória da palavra humana: pintar continuamente, instantaneamente, onde quer que se detenha, assim como o sol, cujos quadros não caberiam nos museus, por isso mesmo que são inumeráveis e fugidios em sua inenarrável beleza.
Mas (não me queirais mal se vo-lo digo) pode-se não sentir a mesma admiração e as mesmas simpatias pelas induções, pelas generalizações, pelas sínteses filosóficas de algumas personagens de vossos maravilhosos romances. Não o digo da vossa filosofia; pois não é pequena a distância que vai da bonomia otimista do abade Jérôme Coignard à acerba misantropia do Sr. Bergeret, n’O Manequim de Vime.
Prefiro a indulgência risonha desse abade, grande pecador, mas coração cheio de bondade, “cujas palavras zelosamente recolhestes”, ao longo de seus dias povoados de idéias e de sonho. Ele “esparzia sem solenidade os tesouros de sua inteligência”; e se, ao longo de toda a vida, discorreu sutilmente sobre o bem e o mal, santa e bela é sua morte, pelo perdão e a humildade que, expirando, tem nos lábios. A leve ironia que se espalha sobre toda a sua vida, e ainda lhe colore o fim, de modo algum se assemelha ao pessimismo acerbo, que define a vida em nosso planeta como uma “lepra”. “Meu dicionário está coalhado de erros”, dizia o Sr. Bergeret. “Amélia carrega uma alma infamante num corpo embrutecido. Eis por que pouco se pode esperar que uma nova eternidade crie, enfim, a ciência e a beleza.” O Sr. Bergeret situara as extremidades do eixo de nosso destino no seu dicionário e na sua mulher. Nem um nem a outra correspondeu ao próprio mérito. Mas isto não provaria nem a universalidade do mal, nem a eternidade da injustiça. Ao redor do infortúnio e do sofrimento, que tão grande papel desempenham no quinhão de cada um, há uma irradiação de júbilo que envolve as coisas e as almas, dando-nos a saborear a alegria de viver.
A isto ninguém se pode furtar, vendo a magnificência do universo, encontrando a bondade, experimentando o amor, sentindo-se acarinhado pela doçura ambiente das coisas. Viver é bom a quem crê, a quem espera, a quem faz o bem, a quem se apaixona pela beleza nas obras dos seus grandes intérpretes, entre os quais, Senhor ANATOLE FRANCE, sois um dos mais requintados e sedutores.
Se o Sr. Bergeret vos tivesse lido, não lamentaria as falhas do seu dicionário, do qual não tivestes necessidade para compor obras-primas de estilo e linguagem impecáveis. A angústia de seu infortúnio doméstico velou-lhe o senso da realidade circunstante, naquele honesto país de França, onde as taras da política, da civilização, da ordem social não conseguiram matar o amor, a fidelidade e a honra.
Nosso último presidente, o principal fundador desta Academia, cujo nome, em Paris, tivestes a bondade de pronunciar com apreço, foi gerado, ao que nos parece, sob o signo do sofrimento. Dir-se-ia nascido para a dor. Sua mulher, contudo, dela o preservou, fazendo-lhe de seu carinho e devoção um abrigo tranqüilo, que o cercou de afeição por toda a vida. Era também um filólogo e praticava a filosofia. Mas consolou-se de não ter sequer podido começar nosso dicionário, escrevendo livros que o substituirão vantajosamente, para aqueles que desejarem beber nosso idioma numa fonte palpitante de vida.
Vossa obra literária tem-se ocupado muito de política. Era bem natural que com isso granjeasse inimigos. Da política, todo o mal que dela se diga não encherá as medidas da realidade. Quanto a mim, sou um de seus detratores convictos. Mas não vos indisporei com as pessoas espirituosas que entre nós combatem, falando-lhes das opiniões heterodoxas de vossas personagens.
Não se lhes deve revelar que esses senhores vêem no sufrágio universal uma armadilha para néscios, e, no governo popular, um sistema de ficções e de expedientes. Não direi que estejais errado. Mas o nosso amigo abade Coignard não seria tão intransigente em relação a certas coisas, se não tivesse o hábito vulgar da rôtisserie. Por isso é que ele sustenta que “os ministros merecem consideração apenas pelo seu trajo e carruagem”. Por isso é que ele gaba a sabedoria da velha de Siracusa, cuja experiência ensinava que o mais detestável dos tiranos é sempre melhor que seu sucessor. Por isso é que, após Dubois e Fleury, ele teme o governo de Jean Hibou. Por isso é que ele pensa que “os governos despóticos não passam de invólucro dos povos imbecis”. Estou certo, Senhor ANATOLE FRANCE, de que só expusestes as teorias escandalosas desse estranho abade como quem expõe erros fatais, inspirados a um sacerdote transviado pelo espírito de sedição.
Não obstante, em seu íntimo, tinha esse abade de província o estofo de um perfeito político. Por este lado, e também pelo do espírito, trazia em si um DE RETZ e um TALLEYRAND de boa cepa. A Igreja foi sempre fértil em diplomatas consumados e em conhecedores de homens. É por isto, julgo eu, que o gentil oráculo da “Rôtisserie” da Rainha Pédauque deixou em suas conversações coisas dignas do breviário de um estadista. Teve ele, de modo penetrante, a intuição dessa ciência, no que ela tem de mais fino, de mais íntimo e de mais real: o sentimento da necessária inferioridade das personalidades governantes. “Um governo que, saindo da medíocre e comum honestidade, escandaliza os povos, deve ser deposto”, diz-nos ele. São palavras de ouro, e foi pena ver extinguir-se num canto ignoto a alma de que naturalmente transbordavam, “na graça e na paz”, conselhos tão salutares às instituições conservadoras.
Ele era a tolerância mesma e a transação em pessoa. Vale dizer que nascera político. “De boa vontade absolvo os patifes”, confessava ele singelamente, “e nem sequer às pessoas honestas tenho rancor.”
Eis, enfim, a pérola das lições de coisas na arte de ser polido, que certamente não é, oh, não!, aqueloutra, eminentemente política, de adular: “Informado de que um de seus cônegos estava à morte, o bispo de Séez foi visitá-lo em seu quarto e encontrou-o moribundo. — Ah!, diz o cônego, perdoe-me Vossa Grandeza por morrer na sua frente.
— Morra, morra! Não se incomode — respondeu bondosamente S. Exa.” Mas deixemos de lado tal assunto. Vós o embelezastes; mas não é um assunto agradável.
Política, moral, filosofia, tudo o que sofre o influxo de vossa pena recebe a marca de vossa originalidade. Foi ela que juncou de flores de elegância as páginas de vossos livros. Eis como a incompatibilidade de vossa distinção natural com o vulgo atrai-vos ao paradoxo, um desses refinamentos de artista, que se debulham cintilantes entre os vossos dedos, insuperáveis na magia literária. No esplendor de nossas regiões tropicais, na família excêntrica das orquídeas, que povoam de fantasia a sombra silenciosa de nossas florestas, também encontramos a aristocracia do paradoxo fragrante, o reino florido do absurdo, sob formas estranhas, de uma invenção imprevista e fascinante. Erudito, humanista, colecionador de alfarrábios, amais a raridade desses esmaltes, desses camafeus, dessas gemas exóticas. Não vo-lo censuro.
É, muita vez, pecado de voluptuoso sabor. As naturezas grosseiras dele não são capazes.
Em vós não busco o moralista ou o sociólogo. É, antes, sobre a arte imortal que vós reinais. Não quer isto dizer que as vossas especulações científicas discrepem da ordem ou da moral.
Simplesmente, não pertencem estas à sua alçada. Da altura de vossa obra têm-se a visão de todos os problemas que interessam à inteligência humana; e, ainda que não vos proponhais resolvê-los, ou vossas soluções nos desagradem, vossas denegações, vossas heresias, até vossas reticências são das que elevam o debate e estimulam o pensamento. Mas esta não é, certamente, a esfera de vossa vocação.
Uma esplêndida, uma radiosa floração de arte, um inefável desabrochar de formas irrepreensíveis, nisso é que consiste a vossa obra, finamente delicada. Neste domínio da beleza terrestre, não se destronam, de seu Olimpo, os deuses dos gentios. Muito bem se dá FÍDIAS em companhia de MIGUEL ÂNGELO.
Demais, até sob os mais rebeldes movimentos da vossa incredulidade, abrem-se clareiras de uma doce luz, que sorriem à alma dos crentes, traços de inocência, de bondade ou de expiação nas quedas mais sombrias. Estais lembrado daquele religioso das tebaidas do vale do Nilo, possuído “do orgulho, da luxúria e da dúvida”? Renegou a DEUS e ao céu, enlaçando com os braços o corpo moribundo de Thaïs.
Mas, ao se fecharem para sempre as pálpebras da inditosa, enquanto as virgens entoavam o cântico sagrado, a face do monge fizera-se negra e disforme como seu coração. “Tão hediondo se tornara ele que, ao passar a mão no rosto, sentiu-lhe a fealdade.” Em vossa História Cômica, vós mesmo resumistes a moralidade neste gemido final de Félicie Nanteuil: “Que bem me importa ser uma grande artista, se não sou feliz?”
Aliás, se vossa obra está embebida de ironia, não menos o está de piedade: ao lado da ironia “doce e benevolente”, que “nos torna a vida amável”, a piedade que, chorando, “no-la torna sagrada”. Com essa filosofia temperada de comiseração e bom humor, homem algum logrará ser perverso.
Em vossa produção ondulante e diversa, entre tantas figuras animadas pelo vosso hálito, bem difícil seria reconhecer a que melhor desenha vossa imagem interior. Permitir-me-eis, no entanto, a temeridade de uma conjectura? É num Jérôme Coignard, esse Proteu espirituoso tal como vós, que se poderia ver trasladada, as mais das vezes, vossa silhueta íntima, ou o reflexo daquele disco sereno, cuja débil luz irisa-vos docemente os escritos em matizes harmoniosos. Esse discreteador sutil, tão hábil em borboletear sobre as coisas quanto em aprofundá-las, esse professor de negligência e de ditos oportunos, de extravagância e de razão, cuja língua, de vez em quando, fala como o Eclesiastes, dizia, de uma feita, a seu caro aluno Tournebroche: “Nada surpreende a, audácia do meu pensamento. Mas preste bem atenção, meu filho, ao que lhe vou dizer. As verdades descobertas pela inteligência permanecem estéreis. Somente o coração é capaz de fecundar os próprios sonhos. Ele verte a vida em tudo o que ama. Pelo sentimento é que se lançam sobre a terra as sementes do bem. Longe anda a razão de ter tamanha virtude. E eu lhe confesso que, até aqui, fui por demais racional na crítica das leis e dos costumes. Por isto vai esta crítica cair sem frutos e secar, qual árvore crestada pela geada de abril. Cumpre, para servir aos homens, deitar fora toda a razão, como bagagem que estorva, e elevar-se nas asas do entusiasmo. Quem pensa jamais alçará vôo.” As Opiniões deste sábio terminam pela vibração desse hino ao coração e ao entusiasmo. Eis aí como vosso ceticismo se arremessa ao ideal, apoiando-se nas mais poderosas forças da vida. Não será esta, ao menos aqui, a filosofia mais humanamente verdadeira?
Mas a vossa filosofia não é, propriamente, a vossa força. Vossa força, o império de vossa vocação, consiste no encanto e na nobreza dessa arte inimitável, imarcescível, de que hoje, em França, mais do que ninguém, de tendes o segredo miraculoso. É aí que se encontra a essência do vosso pensamento, numa transparência luminosa como o leito verde de nossas praias, sob as vagas dormentes. Até os que mais se afastam de vossas idéias morais deslumbram-se com a amplidão, a pureza, a harmonia de vossa forma, cuja medida e correção evocamnos, amiúde, os mármores imaculados. Ora, a forma, na idealidade de suas linhas, é quase sempre o que resta do pensamento, como a ânfora antiga de uma essência perdida. Muitas vezes vossas obras elevam-nos à sensação da beleza perfeita, que não é de todo em todo a verdade e o bem, mas deles é um elemento adorável. Feito simplesmente de claridade e de espírito, vosso estilo, fluido cristal tocado sempre de um raio de sol, expande-se e move-se, na língua de RABELAIS e de MONTAIGNE, de VOLTAIRE e de PASCAL, de SÉVIGNÉ e de RENAN, com o desembaraço de vossos grandes predecessores, desses imperecíveis maiores. Mestre da expressão literária, árbitro da graça e do bom gosto, fazeis jus, entre todos, às homenagens dos letrados.
Tais homenagens a Academia Brasileira vem prestar-vos comovida, rendida que está aos encantos desse sedutor, a quem lhe é dado, hoje, apertar a mão e ouvir a palavra.
Também fazemos questão de vos agradecer vivamente vossa alta benevolência para com a intelectualidade brasileira, presidindo, em Paris, a sessão consagrada à memória de nosso ilustre e pranteado mestre MACHADO DE ASSIS.
Com a mais sincera efusão de alma e o reconhecimento mais profundo, vimos ainda exprimir-vos quão sensíveis somos à honra de vossa visita. Sensibiliza-nos ela como uma distinção real. Esta casa toda irradia felicidade. Por muito tempo lembrar-se-á dela seu teto humilde.
Vossa presença aqui deixa-nos sentir vivo, ao nosso lado, o esplendor solar daquela grande França, que foi a mãe intelectual de todos nós, povos desta raça, e a respeito da qual se pôde escrever sem excesso de apologia: “Enquanto ela existir, daí provirá luz.” O que é dizer tudo.
Ocioso seria insistir neste ponto, a fim de vos traduzir, uma vez mais, a admiração e o enlevo de quantos, neste país, habituaram-se a seguirvos.
Vemos em vós, neste momento, a encarnação mesma desse gênio latino, cuja glória enaltecestes outro dia; cujas asas, estendendose para as bandas do porvir, abrigam a parte mais gloriosa do vosso continente, e, do nosso, a mais extensa. Se acaso um dia voltardes a este clima, que, bem o sentis, não é hostil, ouvireis, então, vozes mais dignas de vós: as de nossos escritores, de nossos oradores, de nossos poetas. Mas se os nossos votos não vierem a ser atendidos, se jamais voltardes ao nosso país, esperamos que, ao menos, narrando um dia, na Europa, as maravilhas de nossa natureza, a isso possais acrescentar algumas palavras de fiel testemunho a respeito de nossa civilização.
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