Prosas Bárbaras

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Eça de Queiroz

Na primeira fase da vida literária de Eça de Queirós
Notas marginais Sinfonia de abertura O Macbeth Poetas do mal A ladainha da
dor Os mortos As misérias: 1. entre a neve Farsas Ao acaso O Miantonomah
Misticismo humorístico Lisboa Uma carta Da pintura em Portugal O lume
Mefistófeles Onfália Benoiton Memórias de uma forca Apêndice:
Inês de Castro A morte de Jesus.

NA PRIMEIRA FASE DA VIDA LITERÁRIA DE EÇA DE QUEIRÓS
I

Julgaram os Editores das «Prosas Bárbaras» ser necessário
explicar como elas se

escreveram e denominaram.

Fui talvez a testemunha mais próxima da redacção dos
escritos agora reunidos em volume, e, por esse tempo, o mais inseparável
companheiro do autor. Esta «Introdução» é
pois uma página da sua biografia. Tento esboçar nela a figura
do homem e a do escritor tais como as conheci, ao formarem-se as criações
deste livro que circunstâncias e que espíritos principalmente
influenciaram a aliás extraordinária originalidade do génio
de Eça de Queirós.

Quando nos encontrámos, já estavam publicados alguns dos seus
«Folhetins» na «Gazeta de Portugal», que fora fundada
por António Augusto Teixeira de Vasconcelos (em Novembro de 1862),
4 anos antes da aparição do primeiro deles, e terminou (Janeiro
de 1868), pouco mais de um ano depois da publicação do último,
sendo em rivalidade com a «Revolução de Setembro»,
dirigida por Rodrigues Sampaio o mais brilhante periódico do
tempo. A «Gazeta de Portugal» publicava, além das do seu
fundador, frequentes produções de António Feliciano de
Castilho, José Castilho, Mendes Leal, Rebelo da Silva, Camilo Castelo
Branco, Júlio César Machado, Tomás Ribeiro, Zacarias
d’Aça, Graça Barreto, Silveira da Mota, Cunha Rivara
quase todos os consagrados de então. Os «NOVOS» que aqui
escreviam, ficavam, por este facto, para logo consagrados também. Aí
primeiro apareceram no «Folhetim», triunfantemente, Mateus de
Magalhães, Pinheiro Chagas, Osório de Vasconcelos e Xavier da
Cunha («Olímpio de Freitas»). Todos estes escritores se
continuavam uns aos outros, sem contrastes nem revoluções, apenas
levemente desenvolvendo fórmulas aceites e classificadas pelos aplausos
de um público hereditariamente satisfeito.

Em 1866 a «Gazeta de Portugal» entrara porém em decadência;
começava a viver de expedientes. Desde Dezembro de 1865 diminuiu o
formato. A 14 de Julho de 1866, José da Silva Mendes Leal, poeta, dramaturgo,
romancista, historiador, estadista, orador, diplomata para muitos
«mestre» e legítimo sucessor de Almeida Garrett
despedira-se da direcção literária que até então,
pelo menos nominalmente, exercera. Os colaboradores literários mais
assíduos, mais genuinamente representantes do gosto geral, eram 16
então, no «Folhetim da «Gazeta de Portugal», Santos
Nazaré e Luís Quirino Chaves. Por essa época Teixeira
de Vasconcelos publicou aí o seu romance «A Ermida de Castromino»,
seguido porém, desde os primeiros dias de 1866, por «O Diamante
do Comendador» do visconde Ponson du Terrail…

Repentinamente (em Março de 1866), começaram a aparecer uns
«Folhetins» assinados «Eça de Queirós».

Ninguém conhecia a pessoa designada por estes apelidos que, por algum
tempo, se supôs serem um pseudónimo.

Os «Folhetins» de Eça de Queirós foram todavia
notados: mas como novidade extravagante e burlesca. Geral hilaridade
os acolheu desde a própria Redacção da «Gazeta
de Portugal», até aos centros intelectuais reconhecidos do país,
e até à parte mais grave, culta e influente do público.
Para este, uma ou outra frase os arrumou logo no que então se chamava
«a Escola Coimbra» centro literário e filosófico
que se supunha dedicado a escrever de modo sistematicamente ininteligível.
Citavam-se, como modelos de cómico inconsciente, as cenas, as imagens,
os epítetos desses «Folhetins»,. lidas entre gargalhadas
no Café Martinho, nas livrarias Silva, Rodrigues e Bertrand, no Grémio
Literário, em alguns salões poéticos e políticos
e noutros centros representativos do tempo. O Severo o Severo dos
Anjos principal e célebre noticiarista da «Gazeta de
Portugal», entalando o monóculo ao canto do olho direito, inventava
quotidianamente, sobre o Eça de Queirós e os seus «Folhetins»,
epigramas em geral adoptados; e o Teixeira de Vasconcelos, exagerando, com
intenção mordaz, o seu natural gaguejar, concluía:
Tem muito talento este rapaz; mas é pena que estudasse em Coimbra,
que haja nos seus contos, sempre dois cadáveres amando-se num banco
do Rossio, e que só escre…va…va…va em francês[1] .

Pouco tempo depois de publicado o último desses «Folhetins»
em Dezembro de 1867 já ninguém pensava no autor
deles. Que importava às Academias, ao Café Martinho, ao Grémio
«suposto» literário, e aos centros políticos, a
aparição de um novo escritor com um novo estilo? Eram ministros…
não sei quem; discutia-se no Parlamento e na imprensa… não
sei quê; os negócios iam andando; os namoriscos e a maledicência
seguiam o seu curso abundante; a arte, serena e comedida, não sacudia
os que dormitavam.., e nada mais era de interesse, em Portugal, para as classes
cultas.

II Eu era, por 1866, estudante em Lisboa e muito novo. Circunstâncias
que é inútil referir me faziam frequentar a Redacção
da «Gazeta de Portugal», no nº 26 da Travessa da Parreirinha,
perto do Teatro de S. Carlos.

Uma noite, junto da mesa onde escrevia o Severo, vi uma figura muito magra,
muito esguia, muito encurvada, de pescoço muita alto, cabeça
pequena e aguda que se mostrava inteiramente desenhada a preta intenso e amarelo
desmaiado.

Cobria-a uma sobrecasaca preta abotoada até ao mento, uma gravata
alta e preta, umas calças pretas. Tinha as faces lívidas e magríssimas,
o cabelo corredio muito preto, de que se destacava uma madeixa triangular,
ondulante, na testa pálida que parecia estreita, sobre olhos cobertos
por lunetas fumadas, de aros muito grossos e muito negros. Um bigode farto,
e também muito preto, caía aos lados da boca larga e entreaberta
onde brilhavam dentes brancos. As mãos longas, de dedos finíssimos
e cor de marfim velho, na extremidade de dois magros e longuíssimos
braços, faziam gestos desusados com uma badine muito delgada e um chapéu
de copa alta e cónica, mas de feltro baço, como os chapéus
do século XVI nos retratos do duque de Alba, de Filipe II de Espanha,
ou de Henrique III de França.

Era o Eça de Queirós.

Contava o quer que fosse a um tempo trágico e cómico, nervosamente,
dando a espaços gargalhadas ricanements, como se diria em francês
curtas, e sinistras.

O Severo, de monóculo fincado no olho direito, a larga máscara
gorda, amarela, irónica, dilatada, escutava-o, rindo em notas agudas.

Saí do Escritório da «Gazeta de Portugal» com
o Eça de Queirós, jantámos, passámos toda a noite
Juntos, e desde então, por anos, não nos separámos quase.

O Eça de Queirós terminava em 1866 o curso de Direito na Universidade
de Coimbra, e viera para Lisboa onde seu pai era magistrado. Por tradições
de família, e como consequência natural dos seus estudos, deveria
seguir, ele também, a . magistratura oficial, ou, pelo menos, fazer-se
advogado. Suponho que neste intuito frequentou algum tempo um escritório
em Lisboa.

Mas a Arte tomava-o já a esse tempo fundamente, e ia-se-lhe o tempo
a ler, a cismar, a idear, a cogitar os aspectos subtis das coisas.

Eça de Queirós morava em casa da família, ao Rossio,
no quarto andar do prédio nº 26. O seu quarto pequeno,
com uma mesa ao centro e uma estante de poucos livros dava para a
Rua do Príncipe. Aí foram, em parte, escritos os «Folhetins»
das «Prosas Bárbaras».

III Havíamo-nos criado um mundo como que à parte da realidade.

Quando por algum tempo nos separávamos durante o dia, reuníamo-nos
logo, às horas de jantar, ou depois, num qualquer restaurante pouco
frequentado, cerca da Rua Larga de S.

Roque ou do Chiado.

À sobremesa o café abria-nos as regiões visionárias
por onde viajávamos: o Eça de Queirós bebia-o com atenção
concentrada e reverente, curvado de alto sobre a chávena, para onde
cada feição, principalmente o nariz comprido e adunco, como
que se pro1ongava aguçada. A uma primeira chávena seguia-se
uma segunda e uma terceira; e íamos exaltados para minha casa continuar
a beber café, às vezes até madrugada.

Nestas circunstâncias foram criados, por Eça de Queirós,
muitos dos contas agora reunidos em volume.

Eu morava no primeiro andar da casa nº 19 da então Travessa
do Guarda-Mor, em pleno Bairro Alto.

No meu quarto de estudante[2] havia um grande armário cheio de livros,
cavado na espessura da parede, uma mesa central sobre que se escrevia, e uma
secretária de feitio estranho. dada a meu pai por Almeida Garrett,
usada por este para escrever de pé, que sugeriu a Eça de Queirós
a forma da mesa onde, anos depois, em Paris, quase sempre trabalhava. Uma
larga janela de sacada abria para a Rua dos Calafates[3] em frente a prédios
baixos que, por isso, não impediam o acesso do ar, da luz, e a vista
de um espaço largo aberto dando a impressão de canto de vila
provinciana. No mais próximo desses prédios moravam duas raparigas,
muito novas e bonitas, a cantar, entre craveiros e manjericões, costurando
activamente o dia inteiro.

por vezes, para o Eça de Queirós e outros líricos fantasistas
que me visitavam, pontos de partida de longas variações, em
verso e prosa, sobre o que o mesmo Queirós, corrigindo Goethe, chamava
o «efémero feminino» [4].

Certas noites, entrava o Eça de Queirós já tarde, no
meu quarto, com uns rolo de papel na mão, dizendo: Sou eu,
sim, amigo.

E aludindo aos corvos, milhafres, gaviões que, com tanta frequência,
fantasticamente, apareciam nos seus contos, acrescentava: Sou eu e
os meus abutres: vimos cear, devorando cadáveres! Muitas coisas preocupavam
o Eça de Queirós, quando trabalhava: Durante tempos só
pôde escrever em certo almaço, que ele próprio ia comprar
a uma pequena loja de chá e papel selado, no nº 41 da Rua Larga
de S. Roque.

Havia de sempre entrar no meu quarto com o pé direito, suspendendo-se
por isso, no último momento, recuando o agourento pé esquerdo,
quando já este inoportunamente se adiantasse e fazendo hesitante e
confuso, ao passar enfim a soleira da porta, um ruído de inexplicável
trepidação. Aterravam-no correntes de ar, e andava continuamente
a fechar a janela, ou as portas, a mudar a posição da cadeira
onde se sentava, murmurando em voz cava: É a pneumonia, a congestão
pulmonar fulminante a morte, menino! A luz do candeeiro de petróleo
que eu usava, feria-lhe a vista; de modo que, a fim de concentrar a claridade
sobre o papel em que escrevia, ou sobre o livro em leitura, prolongava, do
seu lado, o abat-jour, com longas tiras de papel. Não podia suportar
poeira nas mãos e erguia-se amiúde da mesa para interrompendo
a composição, mas recitando em voz alta as frases já
escritas vir, cuidadosamente, lavar as pontas dos dedos. Fumava cigarros
sem cessar, enquanto compunha, inclinado sobre o papel que olhava muito de
perto. E, uma vez embebido nas suas criações, não falava,
não escutava, não atendia a coisa alguma embrulhando
o cigarro, indo lavar as mãos ou fechar a porta, passeando pela casa,
muito curvo, dando passadas altas e largas, fazendo gestos de dialogar com
alguém invisível, resfolegando ruidosamente, abrindo muito os
olhos, elevando e baixando nervosamente as sobrancelhas, as pálpebras,
e as rugas horizontais da testa, onde ondulava, convulsa, a sua madeixa corredia,
negra e triangular.

Escrevia com extrema facilidade e, nesta época, emendava muito pouco:
as imagens, os epítetos ocorriam-lhe abundantes, tumultuosamente, e
ele redigia rápido, insensível a repetições de
palavras e rimas ou a desequilíbrio de períodos, sem exigên-cias
criticas de forma, aceitando, comovido o que tão espontaneamente, tão
sinceramente lhe ocorria.

Quando, nessas noites, ele me lia alguns dos seus contos, a figura e a voz
com pletavam4he as fantásticas criações: erguia-se quase
nos bicos dos pés, de uma magreza esquelética, lívido
na penumbra das projecções do candeeiro os olhos
esburacados por sombras ao fundo das órbitas, sob as lunetas fumadas
de aro preto, o pescoço inverosimilmente prolongado, as faces cavadas,
o nariz afilado, os braços lineares, intermináveis. Então,
com gestos de aparição e espanto, a voz lúgubre, sentimental
enfaticamente patética, ou gargalhando sinistramente
declamava.

Alta noite, quando a excitação do trabalho e do café
nos havia quase alucinado, saíamos pelas ruas desertas do Bairro Alto
ou estendíamos as nossas explorações à
Mouraria, à Alfama, em volta da Sé e pelas encostas mouriscas
e fadistas do Castelo de S.

Jorge, a examinar a fisionomia fantástica, e quase humana, das casas
antigas, algumas ainda então, nesses bairros, mais ou menos medievais.

«As casas sem luz escreveu Eça de Queirós então
têm o aspecto calmo e sinistro dos rostos idiotas.» De
uma vez, quase de madrugada, seguindo no Bairro Alto a Rua de S. Boaventura,
divisámos ao longe, junto do Pátio do Conde de Soure, uma fila
de homens agigantados, segurando como que longas e grossas lanças,
cujos ferros se perdiam talvez na atmosfera mal alumiada e cujos contos se
esfumavam na massa confusa do que parecia ser nuvens rasteiras… Estes homens
apareciam-nos apenas esboçados por grandes massas de sombra e luz…
De alguns saíam barbas hirsutas… Estavam imóveis… Tivemos
a impressão de um quadro sobrenatural..

Aproximámo-nos… Eram varredores municipais que esperavam, encostados
às vassouras, a hora de se dispersarem pela cidade.

Nas noites mais serenas nas noites de luar saíamos
da cidade e íamos pelos campos e pelos montes, ou ao longo das margens
do Tejo, conversando, improvisando,. até nascer o Sol.

De ordinário, nas noites de composição e conversa mais
absorventes, ou em seguida às nossas divagações pari
patéticas, o Eça de Queirós dormia em minha casa.

E havia, para ele, ritos determinados no modo de dispor a roupa que despia,
antes de se deitar, colocando os punhos sobre uma mesa pela ordem por que
os tinha usado, no braço direito e esquerdo respectivamente, e dispondo
as botas à porta; para que o meu criado as limpasse, de manhã,
sem nos acordar; também, pelo mesmo método, ordenadamente
emparelhadas.

E ao meter-se na cama, para explicar os seus movimentos supersticiosos,
murmurava, persignando-se: É preciso obedecer com fé
e sem exame às leis subtis das coisas: ninguém sabe exactamente,
menino, de que possa depender o curso dos acontecimentos; e o mistério
complicado dos Fados.

Na época em que publicaram os «Folhetins» da «Gazeta
de Portugal», eram poucos os amigos que frequentavam a minha casa. O
mais assíduo era, por esse tempo além de Eça
de Queirós, o Salomão Saragga que, quando aparecia,
nos explicava com veemência, prolixamente, simultaneamente, a construção
de carruagens, o livro do Profeta Isaías, a fabricação
de tecidos com desperdício de lã, os Historiadores de Israel
e as origens do Cristianismo.

De tempos a tempos, o Eça de Queirós dizia-me: Estamo-nos
tornando impressos. Basta de ler e imaginar. Precisamos de um banho de vida
prática. É-nos indispensável o acto humano inverosímil,
se for passível, a aventura, a lenda em acção,
o herói palpável: vamos pois cear com o capitão João
de Sá o João de Sá Nogueira, d’Artagnan
de África em Lisboa com licença registada.

E íamos, com efeito, encontrar este nosso amigo, oficial do Ultramar,
que à ceia nos contava durante o bacalhau com batatas, o meio
bife, e o Colares, as pitorescas aventuras das suas viagens pelos
sertões de Angola.

IV Havendo eu pertencido à primeira geração afectada
pelos escritos de Eça de Queirós, as recordações
do meu sentir de então possuem talvez algum valor histórico.

Os anos de 1866 e 1867 são datas capitais na história da educação
do meu espírito. A predominante paixão pela música ligara-me
a Augusto Machado, que estudava então piano e harmonia com dois dos
melhores mestres da especialidade em Lisboa.

Nesta cidade floresciam, por esse tempo, a par da ópera italiana
e da zarzuela, o «pot-pourri» e as «variações».
A sensibilidade pública alimentava-se de inumeráveis «rêveries»
musicais. O grau supremo do patético geralmente conhecido atingia-se
com os «nocturnos» de Ravina e Döhler. Os arranjos operáticos
de Thalberg e Liszt eram o ideal raras vezes alcançado. Nas salas cantavam-se
romanzas de Cara pana e árias teatrais. A suprema forma de arte era,
para Lisboa, a ópera italiana. Meyerbeer autor de óperas
italianas passava por ser o mais genial representante da profunda
mas obscura arte alemã.

Ora em 1867 Augusto Machado, ao voltar de Paris, onde cursara piano, harmonia
e composição com Alberto de Lavignac e outros, trazia, como
repertório de estudo, OS «prelúdios» e «fugas»
de Bach; as «sonatas» de Mozart e Beethoven, as obras de Mendelssohn,
Schumann e Chopin.

Os «Folhetins» de Eça de Queirós fizeram-me uma
impressão só comparável, em profundidade e consequências
subjectivas, à que justamente pela mesma época, me fazia a descoberta
das obras dos grandes criadores da música moderna.

Esses «Folhetins» foram-me uma revelação
não tanto nos assuntos e na intenção, como no poder de
realização artística: enfim encontravam formas e cores
intensas de expressão, factos, antes, na Literatura Portuguesa, insuficientissimamente
revelados.

Pelos pontos de vista, pelo estilo, esses folhetins eram, ainda no ano de
1866, uma quase inteira novidade para os leitores da língua portuguesa;
como haviam sido, para todo o Sul da Europa, à aparição
do Romantismo francês nos primeiros anos do século XIX, as mesmas
ideias e estilos semelhantes.

Nesses primeiros escritos Eça de Queirós era, na verdade,
o que geralmente se denomina um «romântico». Ele próprio
– dizia da época imediatamente anterior: «Naqueles tempos o Romantismo
estava nas nossas almas. Fazíamos devotamente oração
diante do busto de Shakespeare.» E, então mesmo, achava ser preferível,
«à saúde vulgar e inútil que se goza no clima tépido
que habitam Racine e Scribe… a doença magnífica» que
leva ao «hospital romântico…» [5] Com efeito, por uns
dois séculos, pareceu gozar-se nas regiões mais evidentes da
Literatura, uma inalterável saúde: só certos factos do
espírito perfeitamente determinados só as ideias e os
sentimentos susceptíveis de clara determinação
eram nessa Literatura expressos. Os meios de expressão usados, os vocábulos
e os seus grupamentos, os géneros literários tudo parecia
claramente, definitivamente assente, segundo normas antigas e, por isso, venerandas,
num sistema de simetria, de equilíbrio, de ordem, aplicável
sem hesitações, com o mínimo esforço, na mais
segura tranquilidade. Assim viveu na Europa, em geral, a gente culta, do século
XVI ao século XVIII.

Começaram pelos meadas deste, a mostrar-se nos espíritos sinais
inquietadores: além das ideias completamente compreensíveis
e dos sentimentos inteiramente claros, outras ideias e outros sentimentos
se impuseram à expressão dos Literatos. Entre as grandes formas
dos afectos, como entre as cores mais vivas, distinguirem-se transições
e meias-tintas. Os homens não pareceram estar sempre, ou exuberantemente
alegres, ou definitivamente tristes. Havia comoções, sentimentos
intermediários ao amor e ao ódio. Entre o preto e o branco descobriram-se
gradações infinitas.

Cada ideia classificada, cada sentimento catalogado antes, começou
então, pouco a pouco, a mostrar-se centro de grandes grupos psicológicos,
de factos espirituais diversamente complexos, susceptíveis de definições
variáveis, expressas por séries simbólicas de clareza
decrescente: uns que podiam ser nitidamente como que linearmente
desenhados, inteiramente descritos, completamente iluminados; outros que só
podiam indeterminadamente sugerir-se, sumariamente indicar-se por vagas massas
de cor, de sombra e de luz; uns que são as ideias e os sentimentos
que todos os homens conscientemente reconhecem como a matéria superficial
da existência; outros mais ou menos inconscientemente dominantes, sem
nome ou descrição que os esgote, prolongando-se pelas profundidades
insondáveis e inexpressíveis das almas.

Do conhecimento destes estados mais subtis e raros do espírito, resultou,
inevitavelmente, a suo cultura intencional; os sistemas nervosos pareceram
desenvolver-se em direcções anormais; e imprevistas, ou mais
apreciáveis vibrações vieram impor-se, criar ou tornar
complexas e mais conscientes as nevroses.

Novas formas de expressão foram necessárias, não só
para os novos estados da consciência, mas porque cada espírito
começou a sentir e a pensar independentemente, reconhecendo dever procurar
por si por isso, quanto possível fora de fórmulas e
regras já feitas os termos que mais exactamente lhe simbolizassem
as concepções pessoais.

Toda esta revelação espiritual este descobrimento
de regiões ignoradas ou indolentes dos espíritos, toda esta
aparição de aspirações, de incertezas, de incoerências
novas, toda esta quebra de moldes, todo este desequilibrar de forças
e simetrias inúmeras afirmações de personalidades
pareceu às gentes cultas, serenas e classicamente imitativas,
um grande achaque mental, ou variadas doenças nervosas que atacassem
a humanidade.

A este estado dos espíritos e da consequente Literatura deu-se, como
é sabido, o nome de Romantismo facto estético, ainda
hoje em busca de suficiente definição, mas que, pelo que deixo
explicado, me parece poder essencialmente definir-se a «procura directa»
de «formas de expressão», para todos os sentimentos e todas
as ideias, por isso, para as «mais intimas ideias» e os «mais
vagos sentimentos» do ser humano.

Muitos pretendem tratar-se apenas de uma doença moral, e que esta
foi, nos fins do século XVIII, a reincidência da epidemia que
devastara a Europa durante o período secular desdenhosamente denominado,
por os saudáveis neo-greco-romanos, a Idade Média, idade escura
dark age dizem os ingleses, época de transição,
que em História há a considerar entre os dois claros períodos
clássicos de suposto equilíbrio e saúde normal.

O Romantismo pareceu ser, geralmente, a ressurreição idealizada
dessa histórica mórbida Idade Média.

É que, durante esta, gradualmente se constituíram as nações
modernas da Europa na sua íntima complexidade sentimental. Nelas as
forças humanas como integral resultado de forças naturais
deram forma aos mais íntimos sentimentos do espírito.
Os povos haviam vivido tradicionalmente mergulhados nas criações
completas das suas artes e das suas religiões: haviam amado, adorado,
temido, trabalhado, lutado, cantado, dançado, cercados por todas as
vibrações inconscientes das suas fantasias; haviam formado com
a interpretação dos aspectos naturais, com os encantamentos,
com os génios, e as fadas de mil religiões tradicionais, os
novos santos milagrosos e cristãos; haviam sentido em cada ser, orgânico
ou mineral, real ou fantasiado, propício ou hostil, influências
humanas, e haviam-se suposto indissoluvelmente solidários com uma natureza
sempre animada, por onde os próprios cadáveres nunca desvitalizados
evoluindo se dispersavam em pulverizações de espíritos
e energias.

Estas manifestações da vida espontânea dos povos durante
a Idade Média, sem dúvida solicitaram, a interpretação
dos Românticos, cuja razão de ser, cuja missão era também,
como já mostrei, ir expressando, até aos mais profundos e subtis,
todos os factos espirituais.

Mas o chamado Romantismo deu-se na Europa dos fins do século XVIII
aos anos de 1830 ou 1850, modificando, durante esse tempo, a Literatura do
remoto Portugal.

Que novidades podia pois ainda apresentar o «romântico»
Eça de Queirós aos «românticos» portugueses
de 1866? É o que vou tentar explicar: O Romantismo tomou, primeiro,
corpo saliente, ao Norte da Europa, e só depois se estendeu ao Sul.
Veio dos países de luz atenuada e névoas visionárias,
indeterminadoras de formos e de cores, para as terras do sol brilhante, atmosfera
límpida, formas vincadas e cores elementares.[6] Nesta descida através
das latitudes, as ideias foram ganhando nitidez, definição,
brilho e correlativamente perdendo meias-tintas, subtil claro-escuro,
indeterminação.

Os sentimentos, transportados com simplificações lúcidas
à superfície dos espíritos, pelos artistas das terras
do Sul, perderam muitos dos nimbos esfumados, muitas das atmosferas de esbatida
atenuada iluminação, que os rodeiam nas regiões profundas
onde eles nascem completos. Enquanto o Norte expressava tudo o que nas ideias
é quase apenas sugerível, o Sul tão-somente aproveitou
o que possa nitidamente descrever-se. Os Românticos das raças
do Sul da Europa começaram a fazer assim, mais uma vez, por uma fatalidade
atávica e climatérica, o que os antepassados cultos de muitos
deles haviam completamente consumado séculos antes, na construção
equilibrada e nítida do Classicismo greco-romano, sobre a atrofia estética
e religiosa de exuberantes regiões da alma humana, pela redução
das misteriosas formações místicas do Oriente, da Hélade
e da Itália, aos moldes retóricos, às esculturas luminosas
mas frias, e às biografias anedóticas dos obscuros politeísmos
heróicos.

Eis porque tantos românticos portugueses em Portugal, no extremo
dos países claros do Meio-Dia[7] só foram superficialmente
românticos.

Nas partes mais profundas, mais obscuras, mais Indetermináveis do
espírito, para além do real, do lógico, do coerente,
do explicável como que para preencher as lacunas deixadas no
completo da totalidade psíquica, pelas definições fragmentárias
do compreensível existem com efeito, infinitamente, as necessidades
misteriosas do contraditório, do sobrenatural, do maravilhoso.

É para as satisfazer que todos os povos criam, fatalmente, formas
estéticas e religiosas, e é delas que todo o homem completo
se sente, por vezes, essencialmente possesso.

Essas formas constituem a «arte» e a «literatura mística
e fantástica».

A França a mais ao norte das nações definidoras
recebeu, em grande parte, a sua «literatura fantástica»
da Alemanha. Da Alemanha, por intervenção da França,
a recebeu Portugal. Teve ela, de 1866 a 1867, em Eça de Queirós,
a seu mais genial representante.

E porque essa Literatura me punha em vibração tantas faculdades
Intimas e latentes, me comoveu ela a mim e comovendo outros espíritos
contemporâneos da minha primeira mocidade, talvez por educação,
e quem sabe se por atavismo, não inteiramente, ou não exclusivamente
filhos das raças e dos climas claros e analíticos do Sul.

V Assim as primeiras influências que actuaram em Eça de Queirós
aquelas que mais evidentemente se reconhecem nas suas primeiras criações
literárias, os escritores de cuja frequentação eu posso
dar testemunho foram principalmente, Henrique Heine, Gerardo de Nerval,
Júlio Michelet, Carlos Baudelaire mais distantemente, ou mais em segunda
mão, Shakespeare, Goethe, Hoffmann, Arnim, Põe, e, envolvendo
tudo poderosamente, Vítor Hugo.

A maior influência nesse período sobre Eça de Queirós
a de Heine foi também considerável sobre alguns
– dos seus mais ilustres contemporâneos e amigos: vê-se nas poesias,
mais tarde reunidas por Antero de Quental sob o nome de «Primaveras
Românticas», e no que este diz da sua própria obra, nas
páginas autobiográficas que estão publicadas[8]; vê-se
também nas poesias primeiro- escritas para o «Século XIX»,
de Penafiel, de 1864 a 1865, e depois coligidas, com o título de «Lira
Meridional», por António de Azevedo Castelo Branco.

Eça de Queirós não sabia alemão e as obras de
Heine adquirem nas traduções francesas algumas feitas
pelo próprio autor, outras por este em colaboração com
Gerardo de Nerval um carácter novo.

Heine é para mim um dos maiores escritores das línguas germânicas.
Traduzi-lo é, sem dúvida, empobrecê-lo: foi ele quem disse
que «um verso traduzido é um raio de lua…

empalhado». Mas as qualidades musicais de som e ritmo de vaga indeterminação
que as suas obras perdem, ao passar para o francês, são substituídas
por outras: a singeleza patética como que se torna mais dolorosa à
claridade nítida da nova língua; o humorismo, a um tempo irónico
e ingénuo, como que se faz mais subtil nas formas do espírito
latino; os versos, passados a prosa de ritmos incertos e sem rima, como que
adquirem uma indeterminação, um vago especial que faz lembrar
versículos bíblicos[9]. Recordo-me da impressão nova
que me fizeram as poesias de Heine que eu decorara no Colégio
Alemão[10] , onde fui educado quando Eça de Queirós
mas deu a conhecer em francês; e de uma noite em que ele me declamou
enfaticamente, quase com lágrimas, traduzindo-as para a sua prosa fantástica
de então, as páginas dos «Reisebilder» onde Heine
a quem a música sempre sugeria formas e cores literárias
definidas conta as transformações por que a seus olhos
passara, num concerto, Paganini, tornado, pela evocação do sobrenatural
rabeca, em galã cortejante do século XVIII, assassino por ciúmes,
forçado, monge solitário junto ao mar e sob as abóbadas
de catedrais, génio planetário entre as harmonias apoteóticas
das esferas, por fim vulto espectral, curvo, humilde e grotesco, agradecendo
os aplausos dos auditórios. Em muitas páginas das «Prosas
Bárbaras» se encontra a influência desta lenda fantástica
de Paganini. O conto «A Ladainha da Dor», que, em parte, tem o
próprio Paganini por assunto, é directamente inspirado por Heine
e por Berlioz[11]. «As Notas Marginais» parecem estâncias
do autor do «Lyscher Intermezzo», do «Traumbilder»,
do «Nordsee».

Gerardo de Nerval foi, como se sabe, um dos iniciadores directos da França
no Romantismo germânico. Foi ele o primeiro tradutor francês do
«Fausto» de Goethe, e, como já disse, colaborador, na tradução
francesa, de algumas das obras de Heine.

É evidente nas páginas das «Prosas Bárbaras»
a influência dos próprios escritos originais de Gerardo de Nerval,
principalmente a dos misteriosos e fantásticos sonetos que começam:
Je suis le ténebreux, le veuf, l’inconsolé, Le Prince
d’Aquitaine à la tour abolie…

Ma seule étoile est morte, et mon Luth constellé Porte le
soleil noir de la mélancolie!…[12] Júlio Michelet, pela originalidade,
pelo poder evocador do seu estilo, pelo dom de criar vida íntima e
fantástica, pela ressurreição mitográfica e profunda
sobretudo, nos 8 primeiros volumes da sua «História de França»
da Idade Média, da Renascença e da Reforma e,
na «Sorcière», pela materialização sentimental
e pela explicação, a um tempo natural e visionária, da
vasta lenda do Diabo foi um dos país artísticos do primeiro
Eça de Queirós.

H. Heine judeu alemão que aliás alguns críticos
chegam a considerar um espírito francês Gerardo de Nerval e Júlio
Michelet representam, em França, profundas influências germânicas.
Foi na forma vaga, íntima e completa das suas obras, que o «Romantismo
fantástico» principalmente impressionou Eça de Queirós.

Por toda a parte, nos escritos das «Prosas Bárbaras»,
se encontram os mitos, as cores e formas do maravilhoso popular germânico,
os aspectos evocadores da natureza teu tónica, as personalidades da
História da Lenda do Norte da Europa localizando, a cada passo, as
fantasias do romântico português: são as Nixes, as Willis,
os Elfos, as Ondinas, «as velhas mitologias do Reno», «as
monjas dos conventos da Alemanha a quem o Diabo escreve», «o abade
de Helenbach», «as abadessas de Vecker a quem o Diabo faz sonetos»,
«as mães melodramáticas dos Burgraves», «os
pastores de Helyberg», «o abade de Tritheim vendendo a alma pelo
segredo da circulação do sangue», que passam de
contínuo nas narrações; e «as encruzilhadas da
Alemanha», «as encruzilhadas da Floresta Negra», «as
florestas da Turíngia», as alturas de Borxberg, onde a 30 de
Abril se encanta a assembleia de Valpurgis, as catedrais da Alemanha, o Reno,
o mar do Norte, que é o «Nordsee» dos ciclos poéticos
de Reine, «a Alemanha onde nasce a flor do absinto», onde se ouvem
as velhas baladas da Turíngia e a guitarra de Inspruck[13], onde «a
poesia popular foi a invisível que levou pela mão os trovadores….
às lareiras dos senhorios feudais…», «às brancas
castelãs onde vão os Minnersingers errantes», onde se
celebram as «quermesses de Leipzig» e se bebe a «cerveja
de Heidelberg», onde Alberto Dürer desenhou a sua «Melancolia».
onde correm as caçadas fantásticas do «Freischütz»
e passam os imperadores do Santo Império, Fausto, Mefistófeles,
Margarida, Lutero… Spohr, Weber…

O conhecimento directo das poesias de Carlos Baudelaire e a sua influência
considerável em Eça de Queirós[14], só se deu
de uma maneira importante, depois da dos autores que acabo de mencionar. A
edição em volume das «Fleurs du Mal» só tarde
lhe chegou às mãos.

Recordo-me, na falta dela, de passarmos muitas noites na Biblioteca do Grémio
Literário, procurando, em colecções antigas de revistas
francesas, as poesias que Baudelaire aí havia pela primeira vez publicado.

Carlos Baudeknire foi um escritor essencialmente francês. Frio, impassível,
ocorrecto de maneiras e toilettes, preocupado com a realização
de uma certa simetria de forma, o mistério, o fantástico, foi,
por ele, apenas intelectualmente sentido. Penetrou, sem dúvida, em
profundas, tenebrosas e inexploradas regiões do espírito; mas
para principalmente revelar o que nelas é capaz de expressão
1ucidameme estranha. Nele o delírio é sempre crítico.
a nevrose intensa, mas metodizada: as suas poesias, como se sabe, foram primeiro
substancial mente redigidas em prosa. Cria na arte o frisson nouveau que Vítor
Hugo celebra, mas compõe-no rigorosamente segundo as melhores formas
da sábia língua francesa, com sintaxe

directa e rimas ricas, pé a pé. vibração a vibração[15] .

São, porém, estas qualidades especiais que tornam decisiva
a influência de Carlos Baudelaire sobre Eça de Queirós,
mais tarde, no período de transição, quando pouco a pouco
impressionado pelo Realismo e por Gustavo Flaubert, ele justamente denominou
já então crítica a colecção de escritos
prosas bárbaras.

Exerceu-se no mesmo sentido a influência das obras de Edgar Allan
Pöe, que Eça de Queirós ainda então ignorante
de inglês, só conhecia pelas traduções
francesas do mesmo Baudelaire. A nitidez fria com que o escritor americano
determinou o nevrosismo das «Histórias Extraordinárias»,
acentua-se ainda mais privado, em todo o caso, da indeterminação
literária e flutuante da língua inglesa nas formas lógicas
e lapidares de um dos mais claros escritores da França.

Indico apenas, como já disse, as influências dominantes; mas
o trato íntimo com quase todos os grandes românticos franceses
Musset, Gautier, Mallefille, Villiers de L’lsle Adam
é sensível neste primeiro período da vida literária
de Eça de Queirós.

As influências portuguesas importantes que podem distinguir-se, são
pouco numerosas e superficiais: quase somente as da- poesia lírica
popular[16] , e as de alguns seus companheiros de Coimbra João
de Deus, Antero de Quental, porventura Gomes Leal[17] .

Foi aliás o conto de Eça de Queirós, «O Milhafre»,
que sugeriu a Antero de Quental uma das suas mais interessantes poesias[18] .

A linguagem viva, isto é, falada, dos portugueses que Eça
de Queirós encontrou em evolução, era de longa data já
em parte formada por galicismos; por isso a acção reconhecível
na sua forma literária é a língua francesa. Foi por meio
de muitas das formas sintáxicas desta, e quase se pode dizer, do seu
vocabulário, que ele modelou o que quando a sua obra começou
a ser apreciada, deu a impressão de uma como que nova língua
portuguesa.

Mas esta «Introdução» às Prosas Bárbaras
tão-somente tem por fim explicá-las rapidamente; não
criticá-las: não lhe cumpre por isso mostrar que diferenças
profundas há entre o fantástico alemão e o fantástico
do escritor português, entre o humorismo subtil de Heine e a ironia
poderosamente vincada de Eça de Queirós, entre a fantasia ingénua,
tranquila e vaga. dos homens do Norte e a imaginação veemente,
exuberante, e imprevista do criador meridional; não tem enfim que provar
como todas as influências notadas se sentem apenas à superfície
da obra do grande artista, essencialmente original, que escreveu, na sua primeira
mocidade, as extraordinárias páginas reunidas neste livro.

VI Na intenção de Eça de Queirós os «Folhetim»
da «Gazeta de Portugal» apesar da sua desconexão
episódica, formavam série, obedeciam a um pensamento,
constituíam um corpo, uma obra sistemática, cujos capítulos,
separados por lacunas que nunca foram preenchidas, podem, cronologicamente,
reunir-se nos seguintes dois grupos: A Sinfonia de Abertura(1)……………………………….1866
……………..Outubro 7 Macbeth…………………………………………………
1866 ……………..Outubro 14 Poetas do Mal (1)………………………………………1866
……………..Outubro 21 A Ladainha da Dor ……………………………………1866……………..
Outubro 28 Os Mortos ……………………………………………..1866
…………….. Novembro 4 As Misérias: I Entre a Neve………………………
1866 ……………..Novembro 13 Farsas (1)…………………………………………………1866……………..
Novembro 18 Ao Acaso (2) ……………………………………………1866
……………..Novembro 27 O «Miantonomah» ……………………………………1866
……………..Dezembro 2 Misticismo Humorístico……………………………..
1866 ……………..Dezembro 23 (1) Não incluídos na primeira
edição.

(2) Com o título “A Península” na primeira edição
B O Milhafre (1)……………………………………………1867 ……………..Outubro
6 Lisboa (2)…………………………………………………1867
………………Outubro 13 O Senhor Diabo (3)……………………………………..1867
……………..Outubro 20 Uma Carta (a Carlos Mayer) ……………………….1867………………Novembro
3 Da Pintura em Portugal ………………………………1867……………..
Novembro 10 O Lume ………………………………………………….1867……………..
Novembro 17 Mefistófeles (J. Petit)(4)……………………………….1867……………..
Dezembro 1 Onfália Benoiton (5) ……………………………………1867
……………..Dezembro 15 Memórias de uma Forca ……………………………..1867……………..
Dezembro 22 (1) Tem uma epígrafe e primeira parte omitidas na primeira
edição.

(2) Tem uma “pequena” introdução omitida na primeira
edição.

(3) Tem uma introdução omitida na primeira edição.

(4) Tem uma parte crítica relativa ao baixo Júlio Petit, então
cantando em S, Carlos, de Lisboa, omitida na primeira edição.

(5) Não incluído na primeira edição.

O primeiro «Folhetim» em data Março de 1866
as «Notas Marginais», tendo por epígrafe as frases
interrompidas de uma trova à Bernardim Ribeiro, e influenciado, como
já mostrei, pela tradução francesa das poesias de Heine,
foi inserido, na «Gazeta de Portugal», fora do seu lugar.

Porque os «Folhetins» têm uma introdução
formal uma «Sinfonia de Abertura», que se publica a 7
de Outubro de 1866 e continuam, quase sem interrupção,
semanalmente, aos domingos, até 23 de Dezembro do mesmo ano. Uma longa
ausência de Lisboa interrompe a publicação: dos primeiros
dias de Janeiro a 1 de Agosto de 1867, Eça de Queirós reside
no Alentejo, onde funda e redige o «Distrito de Évora»,
periódico político, literário e noticioso. Os «Folhetins»
da «Gazeta de Portugal» recomeçam no dia 6 de Outubro,
e prosseguem até 22 de Dezembro do mesmo ano de 1867.

A «Sinfonia de Abertura»[19] prepara, com efeito, o espírito
para a ideia que os diferentes trechos depois vão desenvolvendo. Neles
a fantasia livremente, irregularmente, fragmentariamente esboça,
sugere, deixa entrever, faz sentir essa ideia, em- episódios, em alegorias
fantásticas e como que musicalmente vagas.

Trata-se, na «Sinfonia de Abertura», das imagens dos Deuses,
«desde os templos de Elora onde eles andavam ferozes por entre
os elefantes até à cruz de Jesus, onde um rouxinol veio
pousar cantando de amor» […] «desde a matéria negra e
informe, até às serenidades vivas para além das nuvens,
das estrelas e dos caminhos lácteos».

Nestas viagem ideais os Deuses têm uma companheira que Intimam ente
estabelece a sua comunicação com os homens, a Arte.

Da história visionária desta na longa peregrinação
divina a «Sinfonia de Abertura», faz-nos ouvir
adagio ou vivace, piano ou forte algum trechos maravilhosamente instrumentados…

«Quando» os povos na Caldeia, no Egipto. na Grécia
«plantavam tendas debaixo das estrelas»…, e, mais tarde,
em céus de profundo misticismo cristão, nas regiões transcendentes,
prodigiosamente luminosas, «onde as próprias estrelas são»
apenas, «gotas de sombra…»[20] 20 Entrevêem-se, flutuando
as imagens, as diferentes Artes: A Arquitectura «que se abriu em transparência
e transfigurações, como se quisesse ser, no espaço, a
morada suspensa do espírito».

A Música enfim «liberta dos contornos, dos coloridos, e das
gravidades, dissipando-se nos amolecimentos divinos…» «…no
terror da Natureza, onde o Diabo era visível… a alma alemã
tinha todo a sorte de penumbras, de desfalecimentos, de pálidos silêncios
que se exalavam divinamente no canto…» Esvai-se «aquela melopeia
grega esfarrapada pela aspereza do latim dos versículos…» «Aparece
Lutero, a alma alemã… que desfalecia naquelas melancolias imensas
que Alberto Dürer revelou…» Mas «a Música, que é
a alma, o espiritualismo, o vapor da Arte, sumiu-se com a aproximação
do Renascença que vinha cheia das rebeliões da carne…

Até que outra vez «se produziu, na nossa época, como
a Grécia produziu a Escultura, como a Europa gótica produziu
a Arquitectura…» Chega-se assim aos tempos modernos: «A alma
começou a entrever cimos luminosos, por entre os astros, que se chamavam
Homero, Ésquilo, Dante, Miguel Angelo, Rabelais, Cervantes e Shakespeare.
A alma queria subir aqueles escarpamentos divinos para colher a flor do ideal.»[21] 21 A melancolia dó cor cio Romantismo…

«O tipo em quem se resumem todos os sofrimentos, todas as desesperanças,
as melancolias, as incertezas, as aspirações. os lirismos desta
época pálida e doentia: Fausto, Manfredo, Lara, Antony, Werther,
Rolla, D. Juan…» que saem então de «toda umamocidade
pálida e nervosa», de «toda uma Primavera….» «O
indefinido da alma de D. Juan revelado pela arte eis aí a Música…»,
«aquela vaga Ofélia que se chama Música…», «uma
voz Inesperada em que se entendem os desconsolados…»[22] Constituiu-se
enfim a música moderna: «A Alemanha… a loura Alemanha de ideal
seriedade, luminosa, um tanto nuvem, cheia de vapores e de constelações…
A Alemanha que pensa com o doce ruído inefável», forma
a sua «Música que é o vapor da Arte…» E, ao lado
dela, a «Música italiana.., tendo o quer que seja de palpável..,
de ondeante como seda invisível».

Tal é, muito vagamente, a significação sentimental
da «Sinfonia de Abertura».

Os escritos coligidos neste volume são assim, em prosa, os «Cantos
Fragmentários» de um imenso «Poema Fantástico»:
O Universo é um infinito de almas. As coisas têm sentimentos
humanos que se disseminam, sem se alterarem, com a dissociação
de todas as morres. Os que morrem vão difundir-se nas coisas sem nas
decomposições inteiramente aniquilarem a personalidade, passando
por formas inferiores no homem, e por formas purificadas na Natureza. Na alma
é que se concebe, ria, o mal: o corpo, a matéria, essencialmente
inalterável, volta sempre à pureza natural. Com sucessivos ideais,
e sucessivas e profundas comoções, o homem gera, para rodo o
sempre, deuses que o dominam, que vivem de uma vida sentimental e independente,
mas que fogem, uns ante os outros, para desvairados destinos, que se asilam,
errantes, em todos os grandes centros de vida misteriosa da Criação,
que sé fazem sedução sob a forma, ainda angélica
e já irónica, do Diabo, que se dispersam na Natureza transformadora.

Com este vago tema geral, o «Poema» em prosa de Eça de
Queirós propunha-se ser a expressão das mais profundas regiões
do sonho, da visão, do indeterminável, do substrato fantástico
que se encontra sob a realidade evidente; queria tornar Sonoras as capacidades
de vibração musical que formam a intimidade de todos os seres
todas as vibrações impossíveis de completamente
reduzir aos sons calculados de uma escala musical; era a fantasia
tocando, um momento apenas, o mundo da realidade, para logo se afastar dele,
voando, exilada pela incompreensão, pela insensibilidade, pela determinação
nítida e clara das forças sensatas do espírito. E assim,
após os belos deuses de mármore, que se escondem fugitivos nas
florestas ainda enevoadas dos sonhos de religiões anteriores, os anjos
sublimados ou réprobos do cristianismo a própria ironia
espiritualista de Satanás, o própria pálida e doce figura
de Jesus vão igualmente perder-se e ser esquecidos: morreu
a fantasia. São fúteis todas as ilusões.

Reina o cálculo demonstrável[23] .

Heine também já contara o exílio dos antigos Deuses[24],
e Michelet[25] recorda o brado, «Le grand Pan est mort!»[26] que
se ouviu pelo vasto mundo ao aparecer de novas crenças.

O que caracteriza este momento da vida literária de Eça de
Queirós é a sincera comoção do criar fantástico,
sem excluir inteiramente, já então, a ironiaque mais
tarde é o inseparável instrumento de trabalho do seu espírito
fornecedora de tão delicadas velaturas, ou de toques tão
vivos e reais a todas as suas obras. Consegue assim idear um inundo imaginário,
um cenário de alegorias; sabe que esse mundo é ilusório,
que só parece povoado por metáforas e enternece-se,
e comove-se, e comunica essa ternura e essa comoção. como se
as produzissem realidades, sentindo e fazendo sentir, ao mesmo tempo. inexplicavelmente.
que com efeito existe uma profunda realidade, vagamente simbolizada por todas
essas imagens [27] .

Como quer que episodicamente fale de assuntos inteiramente reais
da América do Norte, de Lisboa, da vida de estudante de Coimbra
é sempre o mesmo substrato visionário da realidade para que
o seu espírito procura expressão.

Esta situação especial do espírito de muitos artistas
não foi ainda, parece-me, suficientemente estudada pela crítica
e pela filosofia da arte.

VII Eça de Queirós tinha, por aquele tempo, igual exuberância
e originalidade de fantasia em verso; e sentia muitas vezes a necessidade
de metrificar quase o mesmo género de necessidade de som e
ritmo que o fazia com frequência cantarolar, em voz baixa, pequenas
frases musicais, sempre erradas, sempre fora de tom, mas sempre impregnadas
das mais patéticas inflexões[28] .

Os versos que compunha eram de um enorme relevo pela originalidade da concepção,
dos epítetos e das imagem, e conservavam ainda a fluência romântica,
apaixonada, fantástica, dos primeiros escritos, quando já ele
a havia quase inteiramente eliminado da sua prosa realista.

Mas teve sempre grande dificuldade em compreender e sentir os processos
técnicos da metrificação.

Datam exactamente do mesmo período dos escritos coligidos no presente
volume as linhas seguintes, que deviam, na intenção do autor,
ser versos alexandrinos[29]:

Ó Satã tenebroso, trágico fulminado, Tu vencerás
em mim o íntimo Deus bom Não com as armas bíblicas com
que bateste os astros, Mas vindo unicamente vestido à Benoiton! Mas
é de pouco depois a seguinte admirável poesia, mais tarde publicada
com a assinatura de C. Fradique Mendes[30] :

SERENATA DE SATÃ ÀS ESTRELAS

Nas noites triviais e desoladas,

Como vos quero, místicas estrelas!.

Lúcidas, antigas camaradas…

Gotas de luz no frio ar nevadas, Pudesse a minha boca inda bebê-las!
Não vos conheço já. Por onde eu ando!…

Sois vós místicos pregos duma cruz, Que Cristo estais no Céu
crucificando? Quem triste pelo ar vos foi soltando Profundos, soluçantes
ais de luz! Ó viagem nas nuvens desmanchadas! Doces serões do
Céu entre as estrelas! Hoje só ais, ou lágrimas caladas…

Ai! sementes de luz mal semeadas, Ave do Céu, pudesse eu ir comê-las!
Triste, triste loucura, ó flor’s da cruz, Quando vos eu dizia
soluçando: Afastai-vos de mim cardos de luz! Pudesse
eu ter agora os pés bem nus, Inda por entre vós i-los rasgando.

…………………………………………………….

Hoje estou velho, e só, e corcovado; Causa-me espanto a sombra duma
estola; Enche-me o peito um tédio desolado: E corro o mundo todo, esfomeado,
Aos abutres do céu pedindo esmola.

Eu sou Satã o triste, o derrubado! Mas vós estrelas sois o
musgo velho Das paredes do Céu desabitado, E a poeira que se ergue
ao ar calado, Quando eu bato com o pé no Evangelho! O Céu é
cemitério trivial: Vós sois o pó dos deuses sepultados;
Deuses, magros esboços do ideal! Só com rasgar-se a folha de
um missal, Vós caís mortos, hirtos, gangrenados.

Eu sou expulso, roto, escarnecido; Mas a vós já ninguém
vos quer as leis Oh! velho Deus, oh! Cristo dolorido! Lembrai-vos que sois
pó enegrecido E cedo em negro pó vos tomareis.[31] Dois episódios
mostrarão o seu então quase permanente desejo de improvisação
poética.

Uma noite no Verão de 1867 ou 1868, depois de cear» o Eça
de Queirós, o Salomão Saragga e eu fomos de passeio, conversando,
até Belém.

A noite estava muito quente. Havia uma grande claridade de lua cheia.

Seriam umas duas horas de madrugada quando chegámos à praia
da Torre.

Quase varado na areia, havia um barco. Metemo-nos dentro. A maré
enchente fez-nos flutuar.

Aí continuámos a nossa conversação até
que o dia apareceu e o Sol se levantou por detrás da casaria e dos
altos de Lisboa.

Desembarcámos então e dirigimo-nos para Belém, com
fome, em busca de uma. taberna ou restaurante. Queríamos almoçar
ali mesmo; continuando, à beira do rio, a nossa discussão.

Mas conhecíamos os nossos três apetites, e verificámos,
reunindo todo o dinheiro, que ele apenas pagaria um insuficiente repasto.

Que fazer? Tenho uma ideia disse o Eça de Queirós,
fazendo o resto consagrado de bater na testa. Tenho uma ideia venial
acrescentou, erguendo tremulamente os braços ao céu:
Sigam-me.

E negro, linear, curvo, agitando a badine na mão como se esgrimisse,
com passos largos e rítmicos que pareciam saltar obstáculos
invisíveis, a sombra da figura esguia e imensa projectada pelos raios
horizontais do sol-nascente, Eça de Queirós adiantou-se em direcção
à calçada que leva de Belém à Ajuda.

Salomão Saragga e eu íamos atrás, famélicos,
murmurando.

Seriam quase 5 horas da manhã.

Junto da Igreja da Memória o Eça de Queirós dirigiu-se
a uma casa baixa, de janelas cerradas, e bateu.

Os habitantes da casa estavam ainda evidentemente no melhor dos seus sonos.

O Eça de Queirós explicou-nos: Mora aqui o Mancília,
a quem vamos «dar um tiro». Só ele nos pode salvar neste
deserto.

E continuou a bater durante minutos.

Por fim ouviu-se falar dentro da casa. Alguém abriu a porta resmungando,
e vimos diante de nós uma cara larga, um bigode castanho, e uns olhos,
entre terríveis e risonhos, sob uma grande trunfa de caracóis
desordenados. Era o Lourenço Malheiro.

Menino contou o Eça de Queirós estamos
esfomeados após muitas horas de incalculável criação
romântica. Jurámos não morrer antes de produzirmos três
obras de génio. Dá-nos entretanto dinheiro para almoçar.
Mas olha lá… Comunicámos toda a noite, espectralmente, no
Restelo, com as armadas portuguesas que dali foram ao descobrimento da Índia
e do Brasil: dá-nos pois dinheiros antigos e sugestivos sequins,
dobrões, florins, ducados, escudos, peças, ou, quando menos,
pintos…

O Malheiro foi dentro e trouxe três moedas de cinco tostões.

Ouvirás falar da tua generosa dádiva, Mancília
disse a Eça de Queirós, apertando-lhe as mãos
com comoção e solenidade.

Voltámos a Belém.

E, enquanto na cozinha da taberna, onde bebiam marinheiros e uma guitarra
gemia frases lancinantes do Fado, se preparava a pescada com batatas e a caldeirada
que encomendáramos, o Eça de Queirós e eu, num quarto
do primeiro andar, organizávamos o seguinte problema cuja glosa e solução
seria enviada ao providencial Lourenço Malheiro: Cristo deu-nos o amor,
Robespierre a liberdade; Malheiro deu-nos três pintos: Qual deles deu
a verdade? O Salomão Saragga fez-nos uma sábia dissertação
sobre a prosa rítmica dos livros hebraicos e declarou que, como semita
puro, não pudera jamais fazer versos mas comporia, para o caso
memorável, um salmo penitenciário sobre a vaidade da pescada
cozida e das caldeiradas humanas.

Almoçando, o Eça de Queirós e eu glosámos e
resolvemos o problema em quatro quadras e décimas contadas ali logo,
ao acompanhamento do Fado que continuava a ouvir-se chorar na cozinha do rés-do-chão.

Existem as minhas quadras mas perderam-se as décimas de Eça
de Queirós, que com efeito sobrescritámos para o Lourenço
Malheiro, décimas cheias de graça e fantasia.

De outra vez dois dos nossos amigos o capitão João
de Só e o Zagalo convenceram-nos a irmos com eles a uma espera
de touros.

Na volta, pela madrugada, abancámos a cear numa tasca do Arco do
Cego.

Éramos, a esse tempo, um grupo numerosa. Apareciam amigos, conhecidos,
desconhecidos.

Nós, expansivamente, íamos convidando. Eles iam comendo, bebendo,
desaparecendo.

Quando rompeu o dia e quisemos nós mesmos partir, descobrimos que
havíamos gasta, em bacalhau, iscas de fígado, azeitonas e Colares,
um dinheirão que não tínhamos na algibeira.

Comêramos num pátio onde havia galinhas, e uma. horta com couves
e parreira.

Ao lado, dava para esse pátio uma casa estreita, de janelas sem vidraças,
onde se guardavam frutas, legumes secos e feno. Era madrugada.

O Eça de Queirós e eu, já sonolentos, resolvemos esperar
ali, até à tarde seguinte, que o João de Sá e
o Zagalo nos viessem desempenhar com o dinheiro necessário a pagar
as nossas dividas.

Cerca do meio-dia acordámos sobre os molhos aromáticos do
feno, rodeados por galinhas e pombos familiares. As paredes da casa onde dormíramos
eram caiadas.

Então depois de almoçarmos ainda a crédito
com dois lápis. devorando fruta, principiámos a cobrir
as paredes de um longo poema, difuso, indeterminado, lírico,. humorístico,
tristíssimo e hilariante, misto, como género do «Childe
Harold» e «D. Juan» de Byron, do «Mardoche»
e «Namouna» de Musset, do «Intermezzo» de Heine, e
da «Fobia» de Francisco Palha. Este exercício durou 4 ou
5 horas. Duas das paredes da casa ficaram, até à altura de homens,
cinzentas de versos.

Sinto hoje não haver copiado, e ter completamente esquecido, a parte
do Eça de Queirós nesta colaboração extravagante:
lembro-me nitidamente de que havia nessa parte trechos espantosos pelas imagens
originais, pela fantasia, pela graça, pelo imprevisto.

VIII Ainda dormíamos, um dia que o Eça de Queirós ficara
em minha casa, quando à porta do quarto apareceu uma pequena cabeça
de cabelo muito curto, faces pálidas, feições miúdas,
ligeiro buço sobre os beiços grossos e uns olhos pequenos. piscos,
risonhos e maliciosos. Por cima desta cabeça via-se outra de longo
cabelo negro e crespo, nariz aquilino, olhos grandes, bigode audaciosamente
retorcido, e mais abaixo uma terceira cabeço rosada, de olhos avermelhados,
cabelos aos caracois louros, bigode louríssimo pendente.

Acordámos.

Luís! Manuel! exclamou Eça de Queirós
bocejando.

Chavarro! concluí eu sentando-me na cama.

Eram o conde Luís de Resende, seu irmão Manuel[32] , e o João
de Sousa Canavarro.[33] Chegámos do Pano. Vimos buscá-los
para jantar disse o conde de Resende.

À noite jantámos com efeito no José Manuel, ao Cais
do Sodré um restaurante então célebre, a preço
fixo, onde causávamos devastação e horror, pela quantidade
inverosímil do que comíamos, discutindo toda a sorte de assuntos
ininteligíveis.

Nesse jantar demonstrou-se o vasto ridículo do Romantismo; descreveu-se,
discutiu-se e aprovou-se o Realismo na arte; fez-se a apologia violenta e
clamorosa da frieza, da impassibilidade, da serenidade crítica, da
correcção nas ideias, nas maneiras, no estilo, na toilette
a apoteose de todas as correcções. Terminámos, depois
da meia-noite, abraçando efusivamente o velho Andrews o inglês
que tinha uma lenda misteriosa, e ali jantou, durante anos, despejando por
noite, em silêncio, com método, lentidão e continuidade,
três garrafas de vinho do Porto[34] .

Tempos depois o Eça de Queirós partia em: viagem com o conde
de Resende: «Le comte de Rezende, grand amiral du Portugal et
chevalier de Queirós» diziam os jornais do Cairo.

Assistiram à inauguração do Canal de Suez, visitaram
a Egipto e a Palestina.

Na Primavera de 1869, estávamos uma tarde o Antero de Quental
e eu na casa que então habitávamos a S. Pedro ele Alcântara,
quando entrou o Eça de Queirós, chegado, havia pouco, do Oriente,
mas que ainda não víramos.

Trajava uma longa sobrecasaca aberta de cuja botoeira saía, com coloridos,
um enorme ramo de flores; cobria-lhe o em relevo, um plastron que nos pareceu
imenso, sobre a qual se erguia um colarinho altíssimo, onde a custo
a cabeça oscilava. Os punhos, que botões uniam pelo centro com
ama corrente de ouro, encobriam grande parte das mãos metidas em luvas
cor de palha. Vestia calças claras, arregaçadas alto, mostrando
meias de seda preta com largas pintas amarelas como ouro e Sapatas muito compridos,
ingleses, de polimento. Tinha na cabeça um chapéu alto, de pêlo
de seda brilhantíssimo. E olhava-nos com um monóculo que lhe
estava sempre a cair e que ele, por isso, elevando as sobrancelhas e abrindo
a boca em esgares sarcásticos, amiúde reentalava junto da lacrimal
do olho direito.

Abraçámo-lo com entusiasmo e cobrimo-lo de epigramas.

Contou-nos casos das suas viagens, descreveu-nos tipos, cenas nos bazares
do Cairo, no deserto egípcio os guias, os sheiks, e à
noite, em volta das fogueiras, os camelos, «de expressão humorística,
sorrindo ironicamente», e alongando as cabeças como que para
escutar o narrador, por sobre os ombros dos beduínos atentos, graves
e de pernas encruzadas. Analisou, minuciosamente, as sensações
que lhe dera, no Cairo, o uso do haschisch, e as visões fantásticas
que nos preparava porque de e o conde de Resende haviam-nos trazido
haschisch misturado a geleia, a bolos, e a pastilhas que se fumavam em cachimbos
especiais.

Mas pretendia haver voltado doentíssimo, de uma extrema debilidade,
de uma mórbida impressionabilidade nervosa, e agitava, de contínuo,
um grande lenço perfumado de seda branca, com que limpava a testa e
cofiava a barba, que atirava obre a mesa, interrompendo-se para entalar o
monóculo e exclamar em voz desmaiada: Meu Deus! como me sinto
mal! Vou ter o meu delíquio! meu apopleté! Meninos, depressa,
os meus sais… onde estão os meus sais?!…

E tirava, com efeito, da algibeira, um longo frasco de sais que sofregamente
aspirava.

Ficará para sempre o prazer delicado de ler os livros de Eça
de Queirós; mas perdeu-se o prazer, ainda talvez maior, de o ouvir,
quando ele conversava, quando ele contava, quando ele representava algum personagem
que quisesse imitar ou a que quisesse dar vida. Parecia, com o seu forte e
inesperado poder de expressão, de imagem, de réplica, de graça,
o representante de uma raça especial diversa da portuguesa, ou de qualquer
outra, falando, em Portugal, uma língua nova.

Ouvimo-lo toda aquela tarde, jantámos com ele não
o podíamos largar.

As ideias estéticas de Eça de Queirós haviam-se, a
esse tempo, modificado e entrado numa fase de transição.

Citava especialmente a «Salambô» e a «Tentação
de Santo Antão»[35] de Gustavo Flaubert.

Preocupava-se com a perfeição da forma, com a realização
da cor verbal, segundo este último literato. Lia também a «Vida
de Jesus, o «São Paulo», de Ernesto Renan, e as «Memórias
de Judas», de F. Petruccelli della Gattina.

Foi sob estas influências que com as impressões locais
da sua recente viagem à Palestina começou, em Lisboa,
a escrever a «Morte de Jesus», publicada em folhetins, na «Revolução
de Setembro», de 13 de Abril a 8 de Julho de 1870.

Mas escrevera desta obra, além do que se publicou uns capítulos
que ele me leu, e depois sem dúvida destruiu ou se perderam.

IX Entre os «Folhetins» da «Gazeta de Portugal»
e a «Morte de Jesus» na «Revolução de Setembro»,
medeiam quase 3 anos.

Passou mais tempo ainda. A evolução crítica do espírita
de Eça de Queirós continuava.

Um dia veio mostrar-nos, ao Antero de Quental e a mim, o primeiro esboço,
muito desenvolvido tão extenso que levou várias noites
a ler de um romance intitulado «História de Um Lindo
Corpo».

Foi, julgo eu, a sua primeira tentativa na chamada Literatura Naturalista
ou Realista. A ideia fundamental da obra era, até certo ponto, se bem
me recordo, a do «Affaire Clémenceau», de Alexandre Dumas
filho; mas a execução, já, em grande parte, devida à
influência dos processos da «Madame Bovary» e da «Educação
Sentimental» de Gustavo Flaubert.

Pouco depois em 1871 Eça de Queirós descrevia,
suma das Conferências Democráticas do Casino, o Realismo na Arte,
expondo as ideias praticadas por Flaubert e Courbet, e teoricamente descritas,
por Proudhon, no livro «Do Principio da Arte e do Seu Destino Social».

O fim da Arte foi, doutrinalmente, desde então, para Eça de
Queirós, a reprodução exacta da Natureza, da realidade,
impessoal, impassível. A intervenção da ironia[36] representa
a forma superior, a única forma admissível da opinião
do artista se manifestar, e a correcção necessária para
qualquer excesso de sentimento.

Foi por este tempo que eu lhe aconselhei a reunião em volume dos
antigos «Contos Fantásticos» da «Gazeta de Portugal»
e lhe reli, se não me engano, «As Memórias de Uma Forca»,
de que se havia quase esquecido[37] .

Ao ouvir a sua obra primitiva, Eça de Queirós soltava gargalhadas
sarcásticos, gritos de indignação contra as imagens,
os assuntos, o estilo: não compreendia como pudesse ter escrito assim,
tão pessoalmente, tão apaixonadamente, tão vagamente,
com tanto desleixo berrava ele na criação das
imagens. na construção da frase e no emprego dos vocábulos.

Mas depois de uma longa discussão concluiu dizendo-me: Tens
talvez razão, com eleito está claro, tens razão
Talvez se deva republicar. isso em livro. E acrescentou muito grave:
Mas sob o titulo crítico e severo de «Prosas Bárbaras».

Não pertence a esta «Introdução» descrever
as subsequentes fases do desenvolvimento estético e da obra literária
de Eça de Queirós, e eu devo resistir à tentação
de demonstrar aqui como ele foi um dos artistas mais eminentes da Literatura
portuguesa de todos os tempos e de todas as Literaturas, nos últimos
anos do século XIX.

Juntarei ainda, apenas, uma última recordação.

Eu lamentara sempre que Eça de Queirós houvesse abandonado
o mundo de criações fantásticas onde a sua imaginação
tão maravilhosamente vivera algum tempo.

Um dia, no Verão de 1891, estava o Eça de Queirós em
minha casa por esse tempo, em Vaucresson, numa clareira da floresta
de Saint-Cloud, não longe de Paris.

Então, passeando sob as árvores do maciço de alto furte
que rodeio os lagos românticos de Saint-Cucufas, contou-me ele: «Saberás,
porventura com satisfação, que estou seguindo o teu antigo conselho:
enevoei-me outra vez, totalmente, no fantástico quase naquele
velho fantástico da Gazeta de Portugal, feito agora com menos abutres,
e em prosa talvez menos barbara que a desses longínquos tempos: estou
escrevendo a vida diabólico e milagrosa de S.

Frei Gil. E por sinal dir-to-ei agora aqui. quando justamente nos
achamos sob os arvoredos que a nossa riquíssima língua
portuguesa me parece deficiente em cores com que se pintem selvas; e também
te confiarei que. tendo metido, por minhas próprias mãos, o
santo bruxo numa floresta, não sei como o hei-de tirar de lá.»
Sintra, Setembro de 1903.

Jaime Batalha Reis.

NOTAS MARGINAIS ……………….. deste lado do rio ………………..
o namorado, E a moça dos olhos pretos ……………….. do outro
lado.

Mas o rio era profundo, Não se podiam juntar.

Nunca o Sol encontra a Lua.

Tal andava aquele par.

……………….. flores … à água iam dar: ……………..
os beijos Ficavam todos no ar.

A moça ……………………….

Disse adeus ao namorado: E foi …………………………..

……… bandas do povoado.

Ele ficou amarelo, Como a vela de um altar.

Mas se o rio ………………..

Não se podiam juntar.

Anoiteceu ………………………

Por ali andou penando.

E por fim lançou-se ao rio, E o rio …………………………..

……………………………………..

……………………………………..

Mas as flores foram prender-se Nas suas mãos cor de cera.

Na margem do papel marcado, onde se viam ainda estes restos de uma velha
cantiga, alguém escreveu estas notas desordenadas e bizarras.

I Ó doce cantiga dos namorados da beira do rio, tu és uma
verdade sempre nova! Ainda hoje o triste anda penando nas águas escuras;
e os teus olhos, ó serena rapariga, são eternamente falsos!
Não era assim que eu pensava no tempo daqueles nossos amores, ó
nome que eu não escrevo!, daqueles amores tão doces, como a
suavidade das nossas noites de Outono tão coloridos e vagos
como aquelas nuvens, que sempre no ar andávamos formando e.

desmanchando! II Ó voluptuosidade!, tu és a imagem do oceano
nos teus caprichos. Ora te embalas docemente dourada com os últimos
raios do Sol; depois dormes tranquila aos calores silenciosos: por fim agitas-te
cheia de tempestades.

III E quando eu te via, não via mais as flores, nem as pombas, nem
as estrelas: mas quando pensava em ti, via-te delicada como todas as flores,
voluptuosa como todas as pombas, luminosa como todas as estrelas.

IV Ás vezes, solitário e silencioso, via passar na sombra,
diante de mim, como uma legião de inspirações rapsódicas,
os teus olhos húmidos, como violetas debaixo de água
depois os teus braços da cor do mármore depois os teus
cabelos negros e flutuantes…

Enfim sobre um fundo maravilhoso tu aparecias superiormente serena, perfeita
e luminosa! V De cada um dos teus desejos nascia uma flor.

E os meus suspiros, como a aragem serena da tarde, embalavam docemente aquelas
flores virginais.

E as flores cresciam, cresciam até se tornarem magnólias grandes
o vento tomava-as preguiçosamente pela haste e elas,
inclinando os seus rostos pálidos, contavam-lhe os perfumes de mais
segredo.

E as magnólias iam crescendo até se tornarem numa árvore
imensa. Então o vento enroscavase pelo tronco, pendurava-se nos ramos
e espalmava-se nas folhas sonoras.

E então a árvore estremecia, como num sonho agitado
depois adormecia e dava em redor uma sombra serena e Consoladora.

VI Quando te vejo, despertam no meu pobre coração as melodias
e as doces melancolias de amor, como na Primavera se reanimam as aves e desabrocham
as violetas.

Quando me falas, tudo se alumia com constelações apaixonadas,
e parece que passam dentro de mim todos os aromas das magnólias.

Mas se me dizes que me queres muito, sinto que vem logo um estranho Inverno
descorar-me as faces, desfolhar-me a alma de todas as emoções
e cobrir de geada todos os loucos desejos.

Oh!, nunca me digas que me queres muito! VII Tua irmã é carinhosa,
e doce, e meiga, e casta, e consoladora..

Tu és altiva, e inquieta, e desdenhosa.

Tua irmã!… Mas se ela não tem o timbre suave da tua voz,
o luminoso fulgor dos teus olhos, a cor mimosa dos teus cabelos! Mas se ninguém
tem a santa, a purificadora brancura da tua fronte! VIII Os teus olhos negros
são como duas flores do mal. Os seus olhos azuis são como duas
doces elegias.

E a flor do loto, a apaixonada e inteligente flor do loto, somente se abre
à doçura imensa da Lua! IX Oh!, minha bem-amada!, eu já
vi os teus olhos brilharem dolorosamente, como duas estrelas negras da melancolia:
tinhas tu então rasgado um véu cor de papoula; que te cobra.

X Tu estavas na igreja, curvada, e perdida nas tuas orações
como uma fidalga espanhola.

Tinhas um olhar velado e piedoso um olhar que só dizia
Jesus! Mas nos lábios tinhas um colorido aveludado e luminoso, como
o das flores vermelhas metidas na água; e na linha de sombra dos teus
lábios corria um sorriso, que só dizia Amor! Talvez
um dia ainda te encontre na igreja. Somente, então. os teus lábios
estarão descorados como a fadiga e tímidos como o arrependimento.
Somente então os teus olhos estarão fixos como os dos esfomeados;
e terão aquela luz desejosa e ávida que têm as estrelas.

XI Foi debaixo das árvores. Voavam as pombas brancas. Das lágrimas
das folhas nasciam as violetas. Os castanheiros, grandes e concentrados, ouviam
subir a seiva.

Foi lá que me disseste aquelas palavras, que me pareceram uma blasfémia
que te vinha do coração. Eu fiquei hirto e nulo. como um sacerdote
esbofeteado pelo seu Deus! XII Eu tinha todo o corpo coberto de lágrimas,
e ela compunha as pregas do seu vestido! As vezes o grande mar embala-se preguiçoso,
enquanto as ondas pequenas as pobres ondas soluçam
e choram sobre a areia.

XIII Houve um tempo em que andavam exiladas dos lugares humanos as estátuas,
que tinham feito a legenda da beleza antiga. Eram de mármore pálido,
e a sua nudez era. doce, melodiosa e velada.

Outrora, no tempo dos idílios divinos, quando ainda vivia o grande
Pã, e havia deuses debaixo das estrelas elas viviam entre os jogos,
as coreias, e todas as flores do bem: brancas, como as espumas iónias;
serenas, como a lua de Delos; melodiosas, como a voz das sereias.

Agora andavam perseguidas, e errantes pelas florestas sonoras, e envolvidas
na consolação imensa, que sai do canto das aves e da humidade
das plantas.

As vezes um cavaleiro, batalhador escuro, que voltava das cidades de ouro
e de coral, encontrava uma das brancas peregrinas, como uma aparição
de languidez e de tristeza, evocada pela música das ramagens. E se
ele por acaso deixava mergulhar nos seus olhos os raios brancos e aveludados
dos olhos de mármore, ao outro dia os caminheiros, os que vão
de noite cantando à mole claridade das estrelas, encontravam, junto
das grandes árvores pensadoras, um corpo inanimado e lívido,
como aquelas crianças das legendas, a quem as bruxas chupam o sangue!
Esta história é de há seiscentos anos, e de ontem à
noite.

XIV Por fim, tu eras simplesmente uma alma preguiçosa e uma pele
macia.

Todos os teus pensamentos se moviam numa comédia bizarra e solta.

Abafavas burguesmente a música do teu corpo em xales pesados e largas
saias; e a seda dos teus vestidos tinha um frémito indefinido de sarabanda
e de cachucha.

XV Eu andava perdido pela floresta escura e sonora. As estrelas, como grandes
olhos curiosos, espreitavam através da folhagem. Eu era o tenebroso,
o inconsolável, o viúvo.

Errava pela floresta e a espaços cantava uma canção
vagamente triste como o sussurro dos ciprestes depois dizia palavras
iradas e ásperas como os cardos e mais adiante uma oração
indefinida enchia-me todo o coração, e saia-me pelos lábios,
como uma açucena branca, que se abre dentro de um copo e que o enche.

E por cima de mim, ó meus amigos!, ó minha bem-amada!, os
ramos estendiam-se para os mil e mil pontos do infinito, como para mostrar
às cantigas, às iras e as orações todos os caminhos
do céu.

XVI Tu pensavas que o teu amor me envolvia molemente como um largo vestido
de seda, todo forrado de arminhos.

E um dia, ó minha bem-amada de cabelos cor de amora., vieste despir-mo
de golpe, com um rosto colorido de risos.

Mas o vestido estava colado ao corpo vinte vezes colado ao corpo;
e tão rapidamente o tiraste, que me rasgou pedaços de carne,
e levou-me jorros de sangue, e arrancou-me os cabelos, e deixou-me, ó
minha bem-amada de braços de aço!, como uma forma longa, vermelha
e indefinida! XVII Quando te amava, e pensava em ti, via-te soberba como o
mundo, e eras para mim a terra, o céu e o mar. Agora vejo que tinha
razão; porque és tão vária como o céu,
tão. fria como o mar, tão dissoluta como a terra.

XVIII Eu abri aquele coração, que era delicado, pequeno e
feminino. Descobri lá dentro vagamente uma floresta medonha, que se
debatia e rugia, como uma multidão de doidos sinistros, todos vestidos
de ramos e de folhas; na sombra andavam os olhos redondos e famintos dos lobos:
por cima da folhagem mugidora esvoaçava, balouçada por ventos
imensos, uma confusão de sombras, que uivavam e se arrepelavam, e rasgavam
com os ossos dos cotovelos as carnes moles, e lambiam o sangue que escorria
das órbitas sem olhos, e davam beijos selvagens, enroscadas e desfalecidas
em voluptuosidades mais mórbidas do que os orvalhos da Lua.

Depois fixei o coração da minha bem-amada, e vi-o outra vez
delicado, pequeno e feminino e tão feminino, tão pequeno
e tão delicado que lhe dei um beijo! XIX Eu ia para baixo dos arvoredos,
para junto dos rios, e olhava para as nuvens.

Tudo me parecia despovoado, e apenas como a sombra de uma vida distante.

Outrora, ó lendas de encantos e de amores!, ó rondas aéreas
das fixes por entre a música dos canaviais!, ó ondinas húmidas!,
ó danças nebulosas das willis! ó espíritos gentis
e vaporosos, que andáveis nos aromas das violetas!, ó elfos
pequenos. que adormecíeis dentro do cálice dos lírios
brancos, embalados como num berço!, Ó doces e enganadoras criaturas
que povoáveis e alumiáveis tudo como estrelas românticas!
Os rios, o céu e os arvoredos encobriam-vos, ó invisíveis!,
mas como um tecido fino, que deixa passar todos os aromas e todas as cores.

E agora os rios, o céu e os arvoredos estão desertos.

Os arvoredos só contam, como velhos palradores, histórias
de gigantes, loucas legendas de combates, e feitiços, e as aventuras
das filhas da folhagem.

O céu tem apenas nuvens, que eram lentas e pesadas como os pensamentos
sérios de um crânio imenso.

Os rios vão sempre cantando, e fugindo, como os amores da mulher.

XX Andamos todos sofrendo. Passamos lentos, desconsolados, e alumiados pelo
sol negro da melancolia. Nem largos risos, nem bênçãos
fecundas. A esperança fugiu para além das estrelas, das nuvens
e dos caminhos lácteos. Nos corações nascem amores imensos
e loucos.

E tudo porque um dia nasceu uma criança estranha, que foi alimentada
com um leite mórbido como a Lua, e envolta numa túnica lívida
como a morte! XXI Onde estará ela agora a minha bem-amada,
aquela Criança de olhar profundo? Era naquelas almofadas que ela se
recostava: era por ali que ela passava, e as flores do tapete, sob a pressão
dos seus pés, viviam e perfumavam.

A pé!, a pé!. meus desejos! Acordai, acordai, e ide buscar-ma!
Acendei todas as estrelas, e ide procurá-la pelos caminhos escuros!
Desgrenhai os cabelos verdes das florestas! Assoprai a espuma das ondas! Dispersai
as multidões! Quebrai os encantos!.

Ide procurá-la pelos astros! Despedaçai as tendas aéreas,
onde vivem os sonhos! Ide, ide, ó meus desejos todos! Eu ficarei esperando,
solitário e silencioso, como um pombal donde fugiram todas as pombas.

XXII «Perdi a minha bem-amada, e todo o céu está negro,
e não há estrelas que me consolem! Só resta morrer.»
E o corpo diz à alma: «Adeus para sempre! Ó exilada divina,
tu vais morrer!, ó flor dos sonhos, tu vais desfazer-te com todos os
teus aromas! Lembras-te, filha, como eu velava por ti! Eu andava pálido
e triste quando tu sofrias; e, quando te alegravas, andava corado e vestido
de risos. As vezes tu deixavas-me e subias serenamente a torre esguia de marfim,
onde habita o ideal; e eu, em baixo, esperava sem olhar, sem voz e sem movimento;
e quando descias iluminada e séria, eu escondia-te voluptuosamente
tu, santa, tu, purificada! E agora vais morrer; e nunca mais te verei,
ó minha vaporosa filha! Eu vou andar errante perdido no mundo, por
entre a matéria enorme. Vou andar nas árvores e nos astros,
nas escamas dos peixes e na luz dos cometas; nas rosas e nos olhos das mulheres
lascivas.

Vou talvez cobrir as maiores tristezas vivas, ser a folhagem dos ciprestes,
e o farrapo dos mendigos! E tu vais sumir-te, ó alma doce e dolorosa!.

E a alma diz ao corpo: «Não chores. Devia ser assim. Tu és
são e forte: eu sou delicada, indefinida, dolente. Adeus; e perdoa-me.
Fui desdenhosa contigo. Queria ver-te frio e mudo. Queria que fugisses daquelas
molezas, que são feitas da voz perdida das sereias. As vezes queria,
na minha ideal seriedade, que te desfizesses em orvalho e pó. para
eu poder ir fundir-me na minha imensa alma de luz. Mandava todos os meus desejos
para aquele paraíso de sombras, onde anda a alma de Ofélia.

E quantas vezes. ó meu corpo bem-amado, eu não seduzi os teus
olhos a que seguissem as viagens imensas das estrelas! Então não
sabia ainda que havia de cair e desfazer-me, como uma gota de água!
Adeus! Em breve não te lembrarás mais de mim.

Há-de nascer-te uma outra filha, e depois outra, e outra. E tu hás-de
estreitá-las apertadamente. ou ela se chame alma como eu ou
então se chame aroma ou então se chame Som.

Adeus! Escuta. Se nas tuas peregrinações através da
matéria encontrares os átomos daquela que eu tanto amem, não
te juntes com eles; porque se vos juntardes no cálice de uma flor,
a flor há-de mirrar-se; se for na luz de uma estrela, a estrela há-de
apagar-se: se for nas águas, o mar há-de gelar-se….

SINFONIA DA ABERTURA VIAGENS DOS DEUSES A SUA COMPANHEIRA LUTERO
RENASCENÇA A ALMA GERAÇÃO NERVOSA
A MÚSICA D. JUAN AS ÓPERAS OS ITALIANOS E OS
ALEMÃES O QUADRILÁTERO Eu ontem pensava nas viagens imensas
que os deuses têm feito desde o tempo de Elora, onde andavam ferozes
por entre os elefantes sagrados, até à cruz de Jesus, onde um
rouxinol veio pousar cantando de amor e de angústias de amor. Foram
desde a matéria negra e enorme até às serenidades vivas,
para além das nuvens, das estrelas e dos caminhos lácteos.

Esta coorte imensa dos deuses vinda do fim do Oriente teve sempre uma companheira
cheia de servilidades e de amores a Arte.

Ao princípio, na Índia, quando eles andavam pesados de matéria
entre as fatalidades violentas, ela abria-lhes nas montanhas templos onde
corriam rebanhos de touros. Depois no Egipto, quando eles choravam de desejos
lascivos, e se desfaziam em águas espumantes de fecundações,
ela edificava-lhes arquitecturas lívidas e frias como os horizontes
do Nilo; e por entre as esfinges que dormem com os olhos abertos às
poeiras, pirâmides onde escrevia num misterioso encruzilhamento de linhas
os velhos segredos do fatalismo.

Depois na Grécia, quando eles plantaram tendas debaixo das estrelas,
e fizeram os Olimpos todos sonoros de risos, ela ergueu na luz os templos
harmoniosos e serenos e formou com os doces esplendores do mármore
os corpos melodiosos que fizeram a lenda da beleza antiga: e assim, com aquelas
atitudes ideais, escreveu a «Ilíada» da harmonia, da graça
e da luz. Por fim, quando eles subiram para as regiões onde as estrelas
são gotas de sombra, ela fez os templos góticos, deu à
pedra todas as aspirações do espiritualismo, à pedra,
que se abriu em transparências e transfigurações, como
se quisesse ser no espaço a morada suspensa dos espíritos.

Depois na imagem pintada tirava ao seio, aos braços, à carne
toda a vitalidade, para a colocar no olhar, que assim mais forte e mais vivo
pudesse chegar lá a cima até aos meus deuses queridos.

Por fim, com a sua ideal seriedade, libertou-se dos contornos, e dos coloridos,
e das gravidades, dissipou-se nos amolecimentos divinos, e apaixonada e lírica
dispersou-se em sons; e assim nasceu a música.

Então pôde livremente unir-se lá em cima aos companheiros
da sua trabalhosa odisseia.

Esta transfiguração da Arte foi na Alemanha. Quando veio Lutero.
Nesses tempos a alma alemã, que estava na lei católica como
numa solidão lívida, desfalecia naquelas melancolias imensas
que Alberto Dürer revelou.

Nem ao menos se podia refugiar na grande Natureza sonora, e embalar-se nas
consolações vivas, cheias de mel, de frescura e de sóis.
A Igreja condenava os arvoredos, as devezas, as eflorescências, as verduras
todas aquelas vidas, verdes, louras e esplêndidas, como as formas
do mal em que o Diabo era visível. Naquele tempo de terror, o carvalho
era um espectro, e a flor uma maculação. E a alma, para ficar
pura, devia passar na vida sem ouvir a voz docemente profunda da velha Natureza
voz que o catolicismo dizia terrível como a das antigas sereias.

Assim a alma alemã tinha toda a sorte de penumbras, de desfalecimentos,
de pálidos silêncios, que se exalaram divinamente no canto..

Lutero concorreu para este alívio divino e livre da alma germânica,
libertando a música.

A meiga consoladora tivera sempre até aí uma atitude hierática:
havia só salmos, cânticos e versículos segundo o rito
litúrgico: era a velha melopeia grega esfarrapada pelas asperezas do
latim dos versículos.

Palestrina, Allegri, Pergolesi foram apenas reveladores de madrigais seráficos
e de subtilezas eucarísticas. Ela estava envolta no dogma, vestida
de latim, embaraçada de dificuldades, presa, como uma estátua,
nas escuridades do santuário.

Lutero tomou aquela bela e fria estátua, despiu-a do latim, desprendeu-a
das subtilezas, desligou-lhe os braços descamados, tirou-a do santuário,
levou-a para o ar livre para as largas palpitações.
E a estátua delicada, rosada, meiga, consoladora, tomou pela mão
a triste Alemanha e levou-a como a Beatriz mística pela orla das moradas
santas.

Foi o momento de lirismo e de paixão da Reforma. Aqueles braços
que se tinham erguido por entre as constelações caíram
logo como asas molhadas. A música teve um momento o rosto aceso nas
iluminações divinas, mas ficou de novo fria, hierática
mármore pálido.

A música que é a alma, o espiritualismo, o vapor da Arte sumiu-se
com a aproximação da Renascença, que vinha cheia de rebeliões
da carne.

A Reforma tinha sido feita em nome do idealismo, em nome da alma escarnecida:
a Europa tinha-se esquecido da alma, da pureza, das castidades, do olhar da
Virgem cor de violeta; ela caminhava nas púrpuras e nas fulgurações,
seguida das pombas lascivas, com as brancas nudezas cobertas de veludos, escutando
os contos da rainha de Navana, acompanhando em serenata profana as cantigas
de Ariosto, entre os mármores frescos e os seios macios, desfalecida
nas molezas da carne.

O magro Martinho Lutero veio bradar em nome da alma, contra as púrpuras
daquele pálido paganismo.

E a Europa assustou-se: os papas tomaram atitudes severas e lívidas;
e voltou-se a Deus como no tempo de Dante. Foi momentâneo este puritanismo
da velha Europa. O sensualismo tinha visto pela primeira vez a Igreja, sua
velha inimiga, tremer, e encaminhou-se feroz com as vinganças da carne.

A Renascença vinha depois daquelas lívidas castidades góticas,
dos jejuns transparentes, das faces maceradas, daquelas chagas roxas de Cristo.
Vinha com toda a sorte de livres palpitações e de rebeliões
soberbas. Vinha cheia da Natureza e em nome dela; sentiam-se-lhe as sonoridades
e os acres cheiros das florestas, e as vivas humidades dos mares. A carne
ia aparecendo, tremenda, João de Leyde ressonava de noite, cansado
de gulas, entre as suas catorze mulheres: começava a surgir o ventre
imenso de Gargântua: sentiam-se fumegar as bodas de Gamacho; e para
as bandas do Norte já se ouvia o riso do velho Falstaff.

A atmosfera da Renascença, pesada de aromas fortes e de sensualidade,
das vaporações da languidez, não podia conservar a vitalidade
àquela vaga Ofélia, que se chama a música.

A época da música ainda não tinha vindo: a Arte é
como a vegetação só cresce, só tem coloridos
e sombras e repousos dadas certas circunstâncias de vitalidade: mas
dadas essas condições, ela nasce espontaneamente, e vem então
cheia da alma dessa época, da sua inteligência, da sua fé,
das suas tristezas, das suas desesperanças. A música, toda alma,
não achou essas condições na Renascença, toda
carne. A nossa época é que devia produzir a música como
a Grécia produziu a escultura, como a Europa gótica a arquitectura
e a era das monarquias e das academias a tragédia raciniana..

Com efeito, nunca, como neste tempo, as profundidades da alma, cavadas e
alargadas pelas revoluções, estiveram tão fundas e tão
ilimitadas. Durante a lei católica e os embrutecimentos monárquicos,
a alma movia-se lenta como o mar, unida, calma, pesada, opaca e coberta de
brumas. De repente as revoluções passaram pela noite sacudindo
os seus fachos severos, donde saltavam constelações. A alma
alumiou-se entre repelões brutais: iluminaram-se longes surpreendentes:
houve um desencadeamento de brados, de vontades, de violências: daquela
claridade viva saíam desejos, sentimentos, paixões, amores,
imaginações, epopeias nos livres turbilhões. Toda a sombra
se ia retirando da alma, em amontoações rápidas e cobardes,
com o ruído distante de um desabamento de bastilhas. Era uma ressurreição
mais cheia de seiva e de violência que a vida flamejante das constelações,
que a vida desvairada dos mares. Saíam daquelas profundidades santas,
como evaporações de luz, as criticas, as histórias, as
filosofias, as medicinas, as químicas, as imaginações,
os dramas, toda uma vegetação divina.

A alma começou a entrever cimos luminosos, erguidos por entre os
astros, que se chamavam Homero, Ésquilo, Dante, Miguel Angelo, Rabelais,
Cervantes e Shakespeare. A alma queria subir àqueles escarpamentos
divinos, para colher a pequena flor do ideal. Fia via moverem-se ali mil figuras,
voluptuosas e sinistras. disformes. irónicas, apaixonadas, ciosas e
lívidas: e nas claridades e nos círculos de um vento divino
subirem por entre as irradiações dos astros, os tremores das
tormentas, os gritos das andorinhas e os luares silenciosos, subirem gritos,
lágrimas, soluços, risos, cantos, suspiros, bênçãos
e imprecações. A alma via aquela vida flamejante acesa no espaço
Como uma Jerusalém humana erguida na luz, ao sopro dos fortes peitos.
E queria subir à montanha sagrada e andar por entre aquelas imaginações
que sofrem, que sangram, que deliram, que são Romeu, Hamlet, D. Quixote,
Orestes, Prometeu, Francesca de Rimini e Ofélia! Era um Patmos estranho
aquilo, um promontório do pensamento, donde se avistava um mar, ora
embalando-se sereno nos silêncios alumiados, ora dando-se lascivo aos
beijos do vento, ora indolente e melodioso, depois cheio de iras, de esguedelhamentos,
de farrapos lívidos de água, de trágicos soluços
do abismo.

Os que não se aventuravam naquela passagem ficavam sossegadamente
na sua fé ordinária, na sua virtude, na sua sonolência;
mas os que as atravessavam entravam nos sofrimentos infinitos: quase que ficavam
fora da medida humana: o que quer que fosse de ilimitado entrava neles, com
bruscos desvairamentos. O homem sente-se como possuído pelo demónio
Legião.

Sente as inquietações descoradas, os abati mentos dolorosos,
os amores infinitos, as ambições nevrálgicas, as imaginações
lívidas, toda uma amontoação apocalíptica de estranhas
vitalidades interiores. Vai pálido. Quem é ele? É aquele
que sofre. E o infinito que ele tem em si tortura-o como a presença
de Deus torturava as sibilas antigas.

E depois, ao mesmo tempo, viu-se que os prometimentos das revoluções
tinham mentido.

Tinham-se visto tantos derrubamentos, tantas forças desvanecidas,
tantos direitos divinos assoprados, tantas fulgurações de Sodomas
apagadas, que não se acreditava que ainda pela sombra pudesse estar
de pé. e actuante, alguma antiga fatalidade. Pensava-se que a miséria,
que a fome, que o erro, que a mentira, que as bruxas e as negruras históricas
tinham fugido.

como um fumo: mas aqueles lobos trágicos ainda andavam pela noite
mordendo as almas.

O mal passava ainda, nas suas façanhas fulgurantes enredando nos
vícios e nas tentações, fixando no homem o seu olhar
fúnebre através das transparências doentias da noite,
batalhando com as almas e fazendo-lhes a chaga incurável do pecado.
E então, como que nasceu uma convicção tenebrosa: a impossibilidade
do libertamento..

Erguiam-se os braços magros e suplicantes: olhava-se pela Terra,
a ver se não viria alguém da parte da Natureza, um monte, uma
floresta, um mar, um vulcão, que tomasse o homem pela mão e
lhe dissesse com a bonomia dos monstros: Vem, eu te protejo.

Nada.

Nasceram então tristezas vagas como o luar, profundas como a noite.
A Terra ficou como se o lençol de Cristo tivesse sacudido sobre ela
os seus suores e as suas frialdades. Luzia um grande Sol, mas negro, o Sol
da melancolia. Nem largos risos, nem bênçãos fecundas.
A mocidade, pálida e nervosa, sofria, ajoelhava, torcia os braços,
e um dia morria, e ia como uma vaga forma húmida errar no céu
dos fracos. Vagavam as coortes dos pálidos, dos nocturnos, dos desgrenhados,
de todos os errantes da melancolia.

Embalde se perdiam nas violências do mal, e entre os braços
nus e os reflexos dos vinhos, riam e bebiam, descantavam à viola, deixando
os gemidos aos ventos e os soluços às ondas: por vezes a alma
justa passava, como uma Ísis velada, lançando-lhes uma olhar
severo, e toda a repugnância daquela vida estéril e perdida lhes
refluía aos dentes como um soluço de tédio.

Houve um momento em que a Terra moderna foi como o antigo vale de lágrimas
da imitação: as almas queriam voar para o cimo onde está
o ideal, sereno, branco, consolador e purificador.

Debalde. Como aquele saltimbanco esfarrapado e lívido que queria
fustigar o tecto de lona com os seus cabelos soltos, e que caía sempre
nas poeiras entre os esgares da populaça. os novos também queriam
soltar-se, em impulsos nervosos, rasgar o azul, rolar pelas estrelas, e caíam
ofegantes, suados, lacrimosos e desolados 38 .

Então apareceu o tipo soberano, em que se resumem todos os sofrimentos,
todas as desesperanças, as melancolias, as incertezas, as penumbras,
as aspirações, os lirismos desta época pálida
e doentia. Esse tipo chama-se Fausto, Manfredo, Lara, Antony, Werther, Rolla,
D. Juan.

Molière e Hoffmann ambos fizeram um D. Juan. O conto de Hoffmann
é a revelação do poema de Mozart. A maneira diversa por
que foi concebida a grande figura de D. Juan pelo poeta e pelo músico
revela os profundos dilaceramentos modernos.

O D. Juan de Molière é ateu, incrédulo, aceita os nervos
como religião e a devoção como uma ironia.

Tem paixões e arroubamentos, contanto que não lhe amarrotem
as rendas do seu colar.

Derrama-se em astúcias e respeitos para burlar o Sr. Dimanche, e
um dia que seu pai lhe vem falar da honra, recomenda-lhe que tome primeiro
uma atitude de púlpito.

Encoleriza-se com Elvira, que quer que ele ame, e com Esganarelo, que quer
que ele creia.

Convida o comendador por descrença, e quando se ouvem os passos sinistros
na escadaria, e a estátua lhe estende a mão, morre nas convulsões
de medo católico.

O D. Juan de Mozart este tem uma lista de três mil namoradas: e todavia
vai pelo mundo, angustiado e inconsolável, procurando a esperada do
seu coração, como um sacerdote perdido que anda perguntando
pelo seu Deus. Vai pelos povoados, por entre as arquitecturas e por entre
as florestas, pela Espanha, por Florença e por Berlim, suspendendo
as escadas de sedas a todos os balcões, e os seus desejos divinos aos
lábios da noite.

Ele embala nos seus braços moles de languidez as trigueiras, as louras,
as joviais, as melancólicas, as castas, as fortes, as impuras, as nocturnas,
as luminosas e as esfarrapadas.

Depois soluça baixo como numa penitência.

Voam em redor dele figuras transparentes mais delicadas do que as virgens
de 38 No texto da Gazeta de Portugal, «deslocados».. ouro fino
de um livro de legendas e ele envolve nos braços aquelas sombras de
corpos flutuantes, bebe-lhes toda a vida em beijos infinitos. Ele encontra
Elvira: ama-a, como se as asas com que há-de subir ao infinito nascessem
nos ombros dela. A alcova tem uma sombra augusta e nupcial; as luzes esmorecem;
da guitarra sai aquela música mole, e indefinida, e queixosa, semelhante
a um luar sonoro. Ela, com os cabelos soltos como os raios dispersos de um
grande Sol negro, com um divino movimento lascivo, como se a embalassem os
braços de um deus, deixa, no colo de D. Juan, virem como uma onda,
sobre os seus seios nus, as suaves preguiças.

E ele sofre e torce os braços nas suas dores mudas.

Lá fora estão os loucos companheiros, que hão ir logo
em cavalgada nocturna, cantando sob a moleza dos astros. E ele soluça
nas suas dores mudas.

Ao longe estão na sombra os seus palácios cheios de fulgurações,
de sinfonias, de cantos, de radiosas violências flamejantes, como no
fundo de uma glória. E ele foge com as suas dores mudas.

O que tem? Não perguntaram? Tem a nostalgia do infinito.

O indefinido daquela alma revelada pela Arte eis ai a música.

Por isso ela é a voz espontânea de todos aqueles que, como
D. Juan, andam curvados, esfomeados de ideal, nocturnos, empalidecidos pela
Lua.

Todas as tristezas deste tempo encontram na música o respiradouro
do livre azul ideal e vivo: e nas horas da dor, vão ali respirar aquele
ar, onde derramadas as consolações divinas 39 , Assim a música
aparece neste século como uma voz inesperada em que se entendem os
desconsolados. E os desconsolados foram toda uma mocidade pálida e
nervosa, toda uma Primavera sagrada! Poucos foram os fortes, os serenos, de
largos risos sonoros e de seios de heróis.

As almas tinham tomado as qualidades da noite, o vago, o silêncio,
a tristeza e o esvaecimento! A música saía espontaneamente destas
dores que se queriam exalar, como outrora saiu do choro rítmico de
Rama todo o divino poema da Índia.

A loura Alemanha de ideal seriedade, luminosa, um tanto nuvem, cheia de
vapores e de constelações, devia sobretudo adoptar a música
como a pilha cheia de vozes, há tanto tempo esperada pelo seu Coração
mudo.

A música que é o vapor da arte é a maneira de pensar
da alma alemã, que os seus instintos sagrados levam para as livres
claridades e para os esvaecimentos.

A Alemanha pensa com um doce ruído inefável.

A música italiana, essa tem o quer que seja de palpável, de
luminoso, de ondeante, como seda invisível: sente-se que por pouco
que se condensasse, as mãos encontrariam como que um tecido de sol,
uma moleza viva que se poderia vestir.

A música italiana sai profundamente da Natureza, como a alemã
sai profundamente da alma; de resto a alma, a Natureza, são duas maneiras
de ser de Deus.

A música dos maestros do Sul é sobretudo voluptuosa: parece
sair dos movimentos melodiosos de um corpo feminino e lascivo que estremece
de desejos surdos sob os veludos, que se torce nas sedas, em desfalecimentos
e sobressaltos. As heroínas dos seus poemas musicais, Lucia, Norma,
Lucrécia, Traviata, são um coro lírico que canta todas
as voluptuosidades adúlteras, todos os desvairamentos. Mesmo Bellini,
o meigo Bellini, contemplativo, dolorosamente queixoso, delicadamente lânguido,
não pode arrancar a sua Itália do coração, e derrama
pela partitura da Norma todas as fulgurações do desejo, todas
as imolações apaixonadas, todos os arrependimentos desvairados
e soberbos.

39 De acordo com o texto da Gazeta de Portugal..

E agora Mozart encontra D. Juan, o de lábios africanos, vindo de
Espanha, dos calores silenciosos, dos seios rijos, dos beijos flamejantes;
quem escreve o libreto de D.

Juan e Lorenzo de Ponte, um meigo doido de Veneza, jogador. duelista, neto
de Lovelace, com largos horizontes e largas cantigas e o peito cheio da religião
da carne e do Sol.

Mozart mesmo tinha estado na Itália e amava a alma luminosa do doce
Rafael; e apesar de tudo, quando anima D. Juan. não sente o coração
e o talento da sua branca Alemanha? Não estão naquela criação
todas as esperanças, todas as religiões, todos os amores, todos
os idealismos, todas as desesperanças da pátria? É isto
que Goethe, o olímpico, sentiu profundamente, quando disse que Mozart
era o único músico capaz de compreender Fausto e de sentir Margarida.

E todavia a Alemanha e a Itália têm o mesmo delicado sentimento
do grande tipo, que simbolizava na vida o tempo moderno. É por ele
que se levantam no Norte e no Sul as vozes que o revelam no amor, no ciúme,
na severidade, e na melancolia. Em toda a obra musical, sempre aquela figura
se ergue, trágica e desgrenhada. É ele que tem ciúmes
em Otelo: que se desespera em Fidélio: que quer ser livre em Guilherme
Tell: que cisma ao luar em Freischütz: são as suas recordações
que cantam na Lucia, na Traviata, na Sonâmbula: é ele que cisma
com o Oriente em Semíramis: que desvaira em Roberto, o Diabo; que sonha
aventuras no Hernâni: e que sofre de amor e de venturas de amor no D.
Juan, do divino Mozart.

Assim estas escolas outrora hostis vão-se fundindo, a Alemanha dando
o seu iluminismo e a Itália a sua paixão.

E assim a Arte vai sendo a primeira a unir as pátrias pela reconciliação
das almas.

Ainda há pouco, nos lugares sagrados em que o monge Lorenzo enterrou
Julieta, se estendia brutalmente o feroz quadrilátero austríaco;
é necessário que os antigos ódios históricos se
vão esvaindo como o fumo das pólvoras; que os uivos das batalhas
expirem nos lábios da Alemanha, cheia dei idealismo, que é a
formosura da alma, e nos lábios da Itália, cheia de formosura,
que é o idealismo do corpo. Como em Shakespeare o amor reconciliou
as famílias, possa, no mundo moderno, a Arte reconciliar as pátrias.

E possamos nós todos, os que estamos neste canto da velha terra portuguesa,
com alma serena sob o céu claro, possamos ver, no dia das glórias
e das fraternidades, o Romeu italiano, apaixonado e melodioso, estender a
mão de irmão, por cima dos montes, àquela eterna e doce
Margarida que se chama a Alemanha!.

O MACBETH AS DUAS ALMAS TRÁGICAS SHAKESPEARE PÃ
POR QUEM NOS SOFREMOS A VOZ SEM VERBO VERDI A ITÁLIA
MÚSICA POLÍTICA O PEQUENO MACBETH REY-BALLA OS DEUSES
E OS TIRANOS Foi no tempo de Filipe II, trágico mocho do Catolicismo,
que Shakespeare criou o seu drama épico de Macbeth.

É desde então, que aquela figura, que exala noite e humidade,
erra pelo enorme céu negro, vivida no meio das tempestades, alumiada
e crescida por um estranho reflexo de saques e de incêndios, enquanto
os abutres, os corvos, os milhafres, os gaviões, as corujas voam em
círculos sobre a sua trágica cabeça esguedelhada.

As outras imaginações nocturnas do poeta, que se chamam Hamlet,
Lear, Otelo e pisam com pé trágico o solo augusto da epopeia,
todas têm junto de si o doce corpo de uma mulher para lhes embalar no
seio as angústias tenebrosas, como num leito misterioso; para lhes
fazer subir por vezes ao rosto a serenidade augusta do bem.

Nós vemos hoje essas formas femininas andarem impalpavelmente, nas
respirações de luz, em redor daquelas terríveis cariátides
do mal: elas derramam-se sobre aquelas almas nocturnas, como umas auroras
vivas cheias de meiguices, de orva-lhos, de claridades, de fecundos descansos,
purificadoras e transfiguradoras.

Assim Ofélia, húmida dos musgos da água, segue o seu
dolente e lacrimoso Hamlet; Desdémona derrama o seu perdão,
como um óleo santo, sobre a agonia flamejante de Otelo e Cordélia
estira os seus braços como asas de bênção e com
gestos de coroação, ampara a cabeça desvairada do velho
rei Lear. Macbeth, esse vai seguido na sombra pelos seus negros vassalos,
os incêndios, as pestes, os derrubamentos.

Macbeth é o mal-fantasma. Ele não é daqueles lobos
que andam, pela noite da história, dilacerando as liberdades e as pátrias.
Não.

É uma energia inconsciente e fatal. Um pouco mais mergulhado na sombra,
seria o igual de Satã. Quando a sua coroa reluz na escuridão
parece que ai constelações devem seguir aquele reflexo terrível,
curiosas de saber que sombria aventura vai ele tentar contra o Homem. Porque
é certo que ele provoca a atenção do infinito, e tem
misteriosas afinidades na noite.

Ele atravessa todo aquele drama como um espectro.

Quando as ondinas saíam fora da água, a namorar os moços
formosos debaixo dos plátanos, denunciavam-se, as pobres, porque a
orla do seu vestido estava sempre ensopada de água.

Macbeth é assim: debalde se cobre de púrpuras; e se assenta
aos banquetes; e fala de manobras de guerra com os seus capitães tenebrosos;
e se queixa que lhe foge o sono, para parecer humano: os que se aproximam
dele empalidecem, por-que a extremidade do seu manto tem uma orla sulfurosa.

Ele ouve a predição das soberanias flamejantes da boca esverdeada
das feiticeiras, que se dão lascivas aos beijos do vento, por cima
das folhagens, e se somem nos esvaecimentos tenebrosos, riscando a noite de
sangue. Ao atravessar pelas horas negras os seus terraços entrevê
o luzir dos punhais: não pode sentar-se aos banquetes resplandecentes,
entre os risos sonoros, sem ver diante de si, com a lividez dos que fizeram
a viagem maldita, o espectro de Banquo donde se exalam os castigos. Por fim,
quando toda a Escócia sangra, porque passou Macbeth esmagando as cidades,
assolando os campos, enegrecendo o céu com o fumo luto dos
incêndios, não são os exércitos que o vencem: a
Natureza ouviu as queixas humanas. os brados de justiça que saíam
dos. postes, das queimadas, das forcas, dos cemitérios; ouviu a alegria
estridente dos abutres, dos corvos e dos milhafres, e destaca então
uma floresta, que vai com ruído trágico esmagar o homem sinistro.
Neste castigo Shakespeare é maior que esquilo. esquilo, quando vê
Prometeu pregado no Cáucaso, olha desvairado, e vendo lá em
cima a serenidade de mármore dos deuses de nomes sonoros, vem, pálido,
ajoelhar junto daquele rochedo ideal e santo torno um altar, e apenas, sufocado,
pode fazer um gesto suplicante ao velho mar, para que mande as suas oceânides
consolar o vencido enorme.

Shakespeare porém quando vê Macbeth matar os reis, matar o
povo, matar os homens históricos, derrubar os capacetes heráldicos,
matar os instintos, matar os Macduffs, matar as crianças de olhar divino,
as mulheres de seios fecundos, matar a pátria, corre desvairado, toma
uma floresta e vem esmagar a feroz criatura sob um desabamento da santa Natureza:
e aquele castigo passa com o ruído terrível do carro da justiça.

Este Adão do mal tem uma Eva monstruosa Lady Macbeth. Lady
Macbeth é a serenidade do mal. Ela, com a sua atitude soberana e bárbara,
tem a vaga semelhança de uma Juno homérica. Tem em si todas
as grandiosas rigidezas, todas as frias austeridades da Natureza do Norte.

Ela é a energia selvagem, que de longe conduz as batalhas. Ela passa
no drama como sacerdotisa do mal, predestinada e serena: até às
vezes parece flutuar, no seu olhar frio, não sei que fúnebre
resignação: as cóleras e os castigos têm
quase piedade daquela trágica mulher estéril. Ela não
tem o amor, não tem a compaixão. não tem a consolação,
não tem a melancolia, não tem a maternidade. Alguém,
feroz e desconhecido, lhe tirou aqueles amolecimentos onde há lágrimas,
para lhe poder conservar a atitude hirta e rígida do mal.

Lady Macbeth é como unia estátua do crime, feita de mármores
e de bronzes, e erguida ao longe numa lividez silenciosa, tendo por pedestal
a noite. De vez em quando concebe, com lascivos estremecimentos de alma, as
opressões e as violências, e vem então lenta, deixa cair
da sua mão estendida as agonias e as destruições, acende
com um olhar as sinistras queimadas pela planície, e volta para os
lados da noite e da humidade e arrastando o seu manto, que faz a cada passo
como uma onda negra e húmida de sangue, que a segue.

E no entanto, quando ela passa, o olhar perde-se na contemplação
perigosa daquele busto forte, daqueles braços de aço, daquela
testa que tem reflexos de opala, daqueles cabelos poderosos de um negro flamejante,
daquele seio de forma bárbara. E então abre-se na alma, como
uma grande flor do mal, um desejo, negro e reluzente.

Aquele olhar atrai como uma profundidade cheia de ecos, de vapores húmidos,
e de mugidos de águas. E a alma, esquecida da justiça e do bem
e dos pudores da piedade, quer atravessar as brumas do mal que cercam aquela
mulher, e palpar os brocados luzentes e recamados que a vestem, destrançar-lhe
os cabelos pelas moles sombras e dissolver-se naquele olhar negro como uma
flor se dissolve num vinho forte. O coração ri-se dos gemidos
da Escócia e do último highlander, que morre contemplativo tocando
as árias da sua montanha na última cabana, e lastima unicamente
Macbeth porque tem para matar só um Duncan! Sufoca o peito
a negra lembrança de um desfalecimento lascivo, naqueles braços
de mármore pálido, salpicados de sangue. A contemplação
daquela terrível Lady Macbeth no drama de Shakespeare deixa o corpo
frouxo e trémulo como se sobre ele se estendesse a nudez de uma deusa.

Foram estas duas figuras tenebrosas que Verdi quis revelar no seu poema
musical de «Macbeth».

Há, sem dúvida, na obra imensa de Shakespeare, criações
que devem dar a sua alma, a sua vida, a sua paixão, a esta música
moderna, vestida de sensualidades pesadas,. coberta com veludos de pregas
moles e silenciosas. Porque em Shakespeare há tudo: há os corpos
disformes feitos de lodo; os corpos transparentes feitos de pulverizações
de luz, os corpos luminosos feitos de argilas ideais: há almas tio
puras como músicas de constelações, tão terríveis
como as fulgurações do desespero, tão voluptuosas como
os beijos vermelhos do sol: ele semeou ali, com mio augusta, as energias,
o amor, as enervações, os ciúmes, as angústias,
as melancolias, a dúvida, a paternidade, a cobardia eu sei?…
Há toda a sorte de vestidos, sedas, farrapos, luxos, púrpuras,
sudários; umas cabeças têm coroas flamejantes, outras
cabeças têm coroas de violetas: aquelas criações
têm nos lábios o lirismo, a ode, a imprecação,
a sátira, a chocarrice: há arquitecturas, tormentas aflitas,
arvoredos sagrados, luares e aparições: assim caminha enorme
aquela obra, tentando a grande aventura da imortalidade! Para dar a vida e
o sopro ideal a esta criação imensa, é necessário
que venha a arquitectura, a decoração, todos os coloridos, os
vestuários, o lirismo, e sobretudo, a melodia e a orquestra.

A música deve ser a voz de tudo aquilo que ali está silencioso
sem ter a faculdade de se exprimir, e nós termos a possibilidade de
o compreender: das estrelas, das pedras, das nuvens, das flores; de tudo o
que, desde as ervas molhadas até às vias-lácteas, fala
muito indefinidamente e com vibrações muito sobrenaturais, para
que o nosso êxtase as possa escutar. Quando Julieta suspira ao seu balcão,
desejando que o corpo do seu Romeu, depois de morto, seja dividido em pequenas
estrelinhas, para que todas as mulheres se namorem da noite, em roda dela,
as flores, as vegetações, aquelas moles divindades fluas, que
se chamam as nuvens, o arfar brando do seio da noite que cria as aragens,
a floresta divina de que nós apenas vemos as pontas das raízes
que são as estrelas: tudo se balança naquela evaporação
de amor, que exala a alma da lânguida mulher, luminosa na escuridão
do seu jardim, como um diamante no seio de uma negra: e toda a Natureza está
cheia de confidências, de murmurações e de coros. Diante
dos pudores, das indefinidas meiguices, das sentimentalidades da alma de Ofélia;
diante dos pensamentos de Hamlet, incertos e revoltosos como as ondas, como
os ventos, como as nuvens que no ar se formam e se desmancham, o lirismo do
celeste William empalidece como um herói derrubado: e então
a música vem, na sua ideal serenidade, dolorosa e branca, revelar todas
aquelas vibrações celestes.

E estas imaginações radiosas dos poetas devem entrar antes
nos poemas musicais, do que as figuras históricas.

São aquelas criações maravilhosas que nos enlevam,
que nos fazem sofrer, que nos transfiguram a alma.

Que importa que agonize Maria Stuart, e a doce Maria Antonieta, e Beatriz
de Cenci, e a idílica Inês de Castro? Nós vemos estes
desaparecimenos de astros, com os olhos enxutos, atentos à justiça
de bronze da história: e, se nos interrogam sobre aquelas fatalidades,
mostramos lá em cima o grande azul constelado.

Mas que Julieta sé definhe e que lance chorosa o seu amor fulgurante
pelo espaço, para alumiar a fuga de Romeu até Mântua;
que Desdémona diga a «canção do salgueiro»
onde se morre de amor; que apareça entre os lutos reais o enterro virginal
de Ofélia, nos vamos desgrenhados e aflitos, perguntando por que caminhos
misteriosos sobe lá cima até à radiosa bondade divina
o coro suplicante das lágrimas.

No entanto parece que as imaginações terríveis e ferozes
dos poetas não podem ser nobremente transportadas para a música:
e quando os maestros querem subir aqueles escarpamentos divinos, caem sem
fôlego junto da montanha sagrada: e só recobram a paixão,
a alma, o lirismo, o sopro divino, diante das criações femininas,
lúcidas figuras feitas de cheiros suaves onde habita a alma dos deuses,
e de pétalas macias., e de vapores de luz.

Sem falar em Gounod que não compreendeu a grande figura de Fausto,
mas pôs. divinas vibrações nos lábios de Margarida,
o grande Rossini não pôde erguer-se até à região
onde desvaira a alma de Otelo, e ficou-se a chorar um choro celeste com Desdémona,
debaixo do salgueiro.

Assim também Verdi, o luminoso Verdi, não compreendeu aquelas
trevas que Shakespeare derramou na alma de Macbeth.

Verdi, o músico querido dos Mexicanos, dos Americanos, dos Russos
e de nós outros os Portugueses, é realmente o único compositor
italiano verdadeiramente sério que ficou, depois do desgraçado
Donizetti; Rossini retirou-se da arte.

Verdi tem um talento vigoroso, apaixonado mesmo, mas falta-lhe o lume santo,
o desvairamento ideal, o Deus, aquele sopro de que fala a Bíblia. A
sua música é profundamente materialista: é uma melopeia
enérgica e estridente: é uma melodia colorida e pesada: há
mesmo o quer que seja de rígido e de metálico naquela sonoridade
sensual: ele sabe excitar as sensibilidades materiais, mas não consegue
arrancar a alma do seu vestido de carne e levá-la, nua e possuída
do infinito, pelas regiões das surpresas radiosas.

Todo o entusiasmo que Verdi tem alimentado na Itália provêm
do momento grave em que se revelou.

Nesse tempo a Itália revolvia o poema convulsivo da sua reconstituição:
os Italianos, que tinham adormecido naquela rede tecida com os raios do sol
que se chama a preguiça, começavam a erguer-se e a experimentar
os seus músculos frouxos e amolecidos de amor e de sonhos. Nesse momento
Verdi foi pela Itália com um canto poderoso, em que os libertamentos
batiam as asas. Aquela música apaixonada, ardente e vermelha, enrijava
as enervações e couraçava as energias: e a Itália
seguia com idolatria o poeta, que lhe soprava na alma com o amor das epopeias
o amor das liberdades.

No Norte, quando a Alemanha, no tempo de Napoleão, começou
a pensar no seu passado, como no deus por que havia de bradar no dia das batalhas,
aparece uma música nacional, a de Spohr e Weber, que canta as velhas
poesias da Alemanha, melodias feitas quase dos cantos populares que diziam
outrora à tarde, nas encruzilhadas da Floresta Negra, rapsodos errantes:
e quando a grande pátria, ouvindo as caçadas de Samosel pelas
florestas da Turíngia, os estremecimentos dos elfos vaporosos pelos
prados hircínios, e todas as velhas mitologias do Rena, vivendo, sofrendo,
voando, sussurrando num livre canto, ergueu-se terrível; entoou também,
ela, o velho canto de Lutero couraçado de ferro e atirando para longe
a sua roca de Margarida, ficou, severa e iluminada, esperando junto do Rena,
tendo a um lado o espectro da honra e a outro lado o fantasma da justiça.

Verdi ou instintivamente ou intencionalmente fez em. parte, no Sul, o que
tinham feito os poetas do Norte: nem todos aqueles entusiasmos foram fecundos:
as duas pátrias sangram ainda: e as flautas tristes do Norte, e as
guitarras gemedoras do Sul só sabem aquele choro lento e doloroso de
Roma quando perdeu a esposada da sua alma: e não é verdade que
a esposada dos povos é a liberdade? Pobre Itália! Pobre Alemanha!
Deus as envolva num olhar de bênção e de repouso, neste
tempo em que estamos, que é a véspera das agonias! Mas voltando
ao «Macbeth», é certo que Verdi fez daquela figura desvairada
um herói italiano, melodioso e mau. Por toda aquela ópera anda
errante um terror transparente e mole. Será porque a música,
a meiga errante do espiritualismo, não pode compreender aquelas duas
almas pavorosas saídas da noite e pesadas de matéria? Não
sei. O certo é que aquela ópera parece uma transfiguração
do velho Macbeth: parece que o velho herói lívido entrou neste
tempo moderno, amoleceu-se em voluptuosidades, perdeu-se em melancolias, teve
as febres silenciosas da alma e assim, frouxo, doente, descorado, vem com
Lady Macbeth contar a sua velha legenda trágica sobre uma cena. resplandecente.
Com efeito aquela ópera faz saudades do drama de Shakespeare: era ali
que Macbeth erguia o seu rosto eriçado de barbas, e invocava Hécate
de três cabeças: era por aquele terraço onde mugia o vento
que eles atravessavam esguedelhados e convulsivos para a câmara de Duncan.

E assim enquanto aquelas figuras líricas se adiantam para a orquestra
de poderosos alentos com as gargantas túmidas de melodias gemedoras
e violentas, a alma pode deixar o seu querido corpo, e ir para cima dos mares
e dos continentes, para os descampados da Escócia, ver passar aquelas
sombras unidas de Macbeth e de Lady Macbeth, que, segundo as legendas, passam
de noite nos clarões das tempestades uivando manobras de batalha.

E depois pode a alma voltar, para ouvir aquela confusão de ruídos
coloridos e apaixonados, de melodias pesadas que murmuram, que estremecem,
que gemem e que gritam, e que se vão desvanecendo em volta do corpo
e cobrindo-o como uma onda.

Enquanto se canta «Macbeth». a alma pode andar longe pelo país
das quimeras.

De resto a cantora Rey-Balla encarna magistralmente a Lady Macbeth italiana
de Verdi. Não é aquela mulher bárbara de trágicos
sonambulismos. É uma heroína lívida, magra, nervosa,
viperina, rancorosa, cheia de movimentos metálicos e ásperos
e de frequentes iras nevrálgicas. É a verdadeira Lady que Verdi
entreviu, semelhante às heroínas da sua velha Itália
dos mascarados, dos duelos, dos envenenamentos e dos adultérios com
máscara de veludo.

As grandes figuras históricas vão-se: os Tiranos vão-se:
os Deuses vão-se, vai-se a Arte.

Agora os Deuses e os Tiranos andam lá em cima pela imensidade negra;
os Deuses arrastando-se na poeira luminosa; os Tiranos levados serenamente
por um vento do infinito. serenos com as mãos sobre a espada. Às
vezes encontram-se lá em cima, e vão,. por entre as ténebras
da noite, contando as suas antigas façanhas flamejantes; e os olhares
dos Deuses e os sorrisos dos Tiranos riscam a noite de sangue. Por vezes uivam
comandos de batalha, e fazem as ilimitações todas sonoras e
oscilantes como unia floresta, e as suas respirações cansadas
dobram os fantasmas do vento. E depois os Reis, conchegando as suas púrpuras
rotas e desbotadas, e os Deuses segurando os seus diademas de falsas estrelas,
apontam sobre a terra negra, adormecida em baixo, o lugares onde eles passaram
nas glórias e nos triunfos, e só se vêem nesses lugares
cinzas, fumos que sobem, evaporações de sangue, virgindades
perdidas, cúpulas pesadas de igrejas, vapores de lágrimas perdidas,
amontoações trágicas de sombra.

E quando assim estão, começa a noite a tornar-se pálida
e triste como uma noiva lasciva que sente vir o dia, e todo o céu começa
a estremecer formidável de auroras: então aqueles espectros
passam com olhos dolorosos, e vão transfigurados pela dor e feridos
pela luz, desvanecendo-se nos esvaimentos misteriosos: em baixo nas cidades,
nas vilas, nos povoados, acorda sereno, cantando a alvorada do trabalho
o povo imenso!.

POETAS DO MAL OS GRANDES ABORRECIMENTOS SEM REFÚGIO TÉDIO
PÖE, FLORES D0 MAL, SALAMBÔ O EGOÍSMO Conhecem Põe,
Baudelaire e Flaubert? Estes homens só vêem o mal; os corpos
magros despedaçados e podres. as vegetações líricas
que luzem como no fundo de um sonho asiático, as nuvens ferozes onde
vagueiam os danados do amor, os orvalhos caídos das frias esterilidades
da lua, os uivos horríveis das almas que têm medo, os ventos
que torcem os corpos dos enforcados, as pestes, as covardias do desespero
todas as flores do mal esplêndidas e negras.

Na alma humana só encontram pecados teimosos e arrependimentos covardes.

Se por acaso contemplam um dia o esvaecimento da luz, sereno e severo como
a alma de um herói, julgam ver, na catedral de vapores acesa sobre
o mar, um sacerdote Deus, tomado de trágicas iras, arremessando
pelo espaço os santos símbolos! Vêem-no rasgar pelas nuvens
a sua alba flamejante: vêem-no lançar a hóstia
que é o Sol às águas soluçantes: pensam
ver o ar, pesado de lirismo, vergar ao sopro da sua respiração
indignada: é ele que faz a noite com a negra irradiação
do seu olhar: é ele que dispersa pelo ar, como um milhafre dispersa
as penas de uma pomba, as folhas rasgadas do missal e é um pedaço
do livro santo que flutua, onde nós julgamos ver um astro.

Estes homens com as suas violências radiosas, com os seus ideais desesperos,
com as suas ironias, os seus espiritualismos estão no meio destes espíritos
modernos da arte, baixos, alinhados, esbranquiçados e lisos como uma
catedral gótica entre as casas caiadas de uma vila. Eles abafam nestas
atmosferas pesadas com o fumo das indústrias.

A Natureza está vazia: as florestas meneiam a sua cabeça louca
e frouxa; o céu tem o calmo olhar dos idiotas; os rios vão sempre
fugindo e cantando como os amores das mulheres. Eles não podem derramar
a alma nas bondades errantes que a Natureza tem; a Natureza mesmo quase que
já não existe; perdida como está entre as edificações,
as granjas, as indústrias, as fábricas, os estaleiros, os circos
parece uma pouca de erva passando esmigalhada entre os dedos de um
homem! Eles não têm ao menos o grande refúgio do amor.

Passam é verdade junto deles mulheres de seios de âmbar, sérias
entre os veludos silenciosos: quando elas assim passam a alma dos poetas anda
humilde e perdida pelas lamas como um fumo que o vento abate: é o vento
do materialismo que assim as verga; se a alma se eleva para ir buscar a flor
de bênção ao interior daquele belo corpo feminino, se
lhe vai pousar nos olhos negros e macios, se entra radiosa, como para um noivado
santo, se escorrega até ao coração, sai logo aflita,
dizendo: não vale a pena deixar esta lama para subir àquela
alma.

Assim o amor não os pode tentar: e a glória também
não: eles vêem que hoje os grandes espíritos sobem sempre
para os pedestais em que hão-de aparecer estátuas do
futuro como um truão sobe para o tablado entre os brados
inertes, os uivos, as imprecações da multidão
que vai passando para os esfriamentos do túmulo.

Mas podem refugiar-se na antiga poesia, no doce Virgílio, nos êxtases
de Catulo, nas sentimentalidades de Petrarca em toda aquela doçura
untuosa, serena, fresca, consoladora: não podem: hoje aquelas santas
colinas humildes foram invadidas pela multidão dos críticos,
dos realistas, dos esquadrinhadores multidão esfomeada de materialidades,
que anda revolvendo o terreno para lhe explicar as camadas, que destrói
todas aquelas meigas flores do bem para lhes contar as pétalas. que
descascam as árvores sagradas donde caíam os versos para Ovídio
para lhes estudar as fibras e os.

filamentos.

Então aqueles homens são tomados de uma doença horrível
que doença? O tédio.

O tédio estende silenciosamente a sua rede em volta da alma.

A pobre alma estava cheia de auroras, de frutos, cantando nas madrugadas:
vêm até ela as bondades condescendentes do Sol; acendem-se constelações
dentro do peito; o interior fecundo e vermelho do coração anda
cheio de corpos de mulheres: tudo se transfigura: o choro é um coro
de rouxinóis: a ira, a palpitação de asas de uma ave
soberba. Os nossos olhos têm reflexos distantes de paraísos desconhecidos:
os braços têm gestos soberbos que falam aos astros, e se se queixa
uma planta e se suspira uma onda, nós estendemo-los com um gesto de
consolação e de amparo; às vezes, nasce também
na alma a melancolia, mas então a melancolia é a voluptuosidade
da tristeza.

Então vem o tédio passo a passo: escurece. Espalha-se uma
moleza errante; calam-se os coros interiores: aparecem os desesperos lentos,
as angústias frias: os braços caem nos desconsolos como as asas
de um pássaro ferido: as antigas alegrias, as bondades, as energias,
as coragens, apodrecem e vão-se em pó, e vê-se então
a alma, nua, gelada, rígida, opaca, má, como quando se retiram
os panos bordados e radiosos de um altar aparece o pau duro, tosco, escuro
e carunchoso: somente debaixo dessa madeira do altar está às
vezes a imagem do Cristo morto: na alma há também um Cristo
morto a fé.

Então aqueles tristes vão procurar uma região nova
e apaixonada e lírica onde não ouçam a voz rouca do materialismo.
Assim outrora os monges iam para os desertos da Nítria para não
ouvir suspirar pelo céu ainda orvalhado pelo mel do Hibla a alma errante
do paganismo. Porque eles pensam que, assim como o ocaso do Sol é feito
por um Deus terrível que despedaça as relíquias santas,
o ocaso da arte é feito pelo materialismo que despedaça as sociedades.

Então como vão para uma ideia nova, desordenada e bizarra,
aparecem vestidos com uma forma nova, desordenada e bizarra: eles sabem que
as mutações arcádicas estão gastas: que as velhas
árvores donde se dependuravam liras clássicas estão secas:
que os caminhos trilhados pelas togas brancas de pregas hieráticas
Levam ao deserto.

Assim esta revolução na arte feita pela banda Baudelaire não
é, como diz a crítica ordi-nária, hemistíquios,
prosas, rimas e medições que se alteram: é todo o poema
divino das sociedades modernas que se vai aos farrapos. As formas novas são
ó sintoma da sua dissolução.

Os espíritos não podem respirar o ar moderno pesado de materialismos:
sufocam, sofrem, gemem; e então, como o aborrecido que cantou Henri
Heine, pedem os ciúmes., as violências escuras, os rasgões
da carne, os roubos, os beijos entre lábios tintos de sangue.

Então aparecem estes livros «As Novas Histórias
Extraordinárias», «As Piores do Mal», «Salambô»,
etc. O primeiro é de Edgar Põe; entre aquelas páginas
passa o demónio da perversidade, ora hirto e lívido como os
ciprestes, ora galhofeiro, jovial, ruidoso, às cambalhotas, mostrando
os rasgões do fato, às risadas mostrando a podridão dos
dentes, sinistro e debochado como um palhaço das esquinas.

Pöe não tem o vago iluminismo de Hoffmann, nem a fria imaginação
de Darwin.

Põe diz a realidade dos terrores e das visões, a realidade.
O seu livro é a epopeia desvairada do sistema nervoso.

O outro é Baudelalre; Baudelaire é o viajante terrível
que vai através do mal da carne, como, guardadas as proporções,
Dante vai através do mal da alma. Baudelaire vai aos rios e toma os
cadáveres dos afogados inchados e roxos que dormem no colchão
da areia, cobertos com os farrapos lívidos da água; vai pelos
túmulos erguendo os sudários. e mostrando o mole apodrecimento
das carnes; vai apanhar o sangue coalhado e pinta o rosto com ele, e vem assim,
terrível, escancarar a boca entre as rimas e as molezas da forma; vai
às alcovas húmidas buscar as mulheres descarnadas e lívidas
que roem os cotovelos de desejos e traz aquela coorte medonha, e vem por entre
as ceias ruidosas, os cristais, as mulheres luminosas, as grandes pregas harmoniosas
das sedas e atira confusamente aquele feixe de formas soltas, deslocadas,
rotas e gangrenadas sobre os seios cor de âmbar e sobre as palidezas
suaves, sobre os sentimentos tépidos, sobre as mios macias.

Flaubert escreveu a «Salambô». Aquela alma, depois de
ter criado em «Madame Bovary» a imagem desoladora de uma harmonia,
de uma perfeição, presa nos braços gordos e toscos do
materialismo, refugiou o seu desalento nas sombras do mundo antigo. E toda
a antiguidade está em «Salambô». Mathô é
a carne ardente e feroz, cheia da força do sol, da terra de África.

Spendius é a astúcia serena e fria da Grécia. Amílcar
é a alma austera das antigas repúblicas.

Salambô é a lascividade mística da Síria. Schaabarim
é a alma desolada dos sacerdotes politeístas vergando ao peso
de seis mil deuses. Hanan é a fúnebre corrupção
de Cartago. O exército de mercenários é o resto do mundo:
ali estão os lusitanos enormes, os gauleses brancos abundantes de palavras,
os líbios perversos: e todo o mundo bárbaro, terrível,
obscuro, imundo, lento, coberto de lepras.

Já vêem que estes poetas não respeitam o egoísmo
humano, o gordo egoísmo humano, sonolento, entre as almofadas, cercado
de jornalistas, de críticos, de poetas que limes esfregam os pés
com os aromas profanos, cantando: «Tu és forte, e sábio,
e previdente, e profundo, e belo, e sereno!» E entanto ele flácido
de preguiças vê passar as Imaginações saídas
dos romances, dos poemas, dos dramas modernos, pequenas, límpidas,
castas, piegas, viperinas, burguesas. Então vêm aqueles poetas,
atiram-lhe de encontro às paredes do cérebro as suas estranhezas,
as suas ferocidades, as suas violências, dão-lhe as frialdades
do medo, os calores da angústia, os suores do túmulo, e ele
vai-se, pisado, abalado, lívido, deslocado e coxeando.

São poetas livres, despedaçam as fórmulas, amaldiçoam
os industrialismos.

Não têm aquela melancolia cheia de lúcidos reflexos
de astros, de Byron e de Musset a menina Byron. Estes, quando se vêem
repelidos pelo materialismo crescente, erguem-se soluçantes e bons,
e mostram a alma coberta de lágrimas, vergada como se sobre ela caíssem
as tristezas de um deus. Os outros não: combatem a carne com a carne;
cantam a podridão; aqueles, Byron, Musset, Vigny, refugiados na Bíblia,
mostra-vam a beleza daquilo que o egoísmo humano despreza; estes, Pöe,
Baudelaire, Flaubert, mostram o horror daquilo que ele adora.

Às vezes também dizem as adorações do materialismo,
mas do materialismo transfigurado, envolto no vapor subtil como se sobre ele
se lançasse o vestido claro e lúcido de um Deus.

Mas a grande verdade, etc..

A LADAINHA DA DOR Ao Sr. A. A. Teixeira de Vasconcelos «O pintor Lyser
voltou da Boémia com a sua doidice elegíaca. Pedi-lhe o retrato
de Paganini como tu querias, mas ele disse-me em segredo que fora o Diabo
que lhe guiara a mão naqueles traços, e que ia conservar uma
lembrança do Diabo, seu velho amigo. Tem esse cartão numa pasta
entre um desenho do velho Cláudio Loreno e um retrato de Dante.

«Ontem, ao cair da tarde, estávamos ambos sentados junto da
janela. O ar entrava todo emaranhado nos cordões verdes das trepadeiras;
nós estávamos calados e abandonados à doçura divina
das coisas.

«O pobre Lyser, com os seus grandes cabelos caídos, tomou o
retrato de Paganini e desenhou em volta toda a sorte de entrelaçamentos
de folhagens, de penumbras delicadas, de dissipações de nuvens:
e entre aquelas eflorescências escreveu os nomes de Dante, de Hamlet,
de Romeu e de Sancho Pança, dizendo com a sua voz dolente:
Paganini tinha alguma coisa de todos estes homens. E derramou-se em
palavras sobre o espírito do músico onde havia materialismos
de rei bárbaro e doçuras de apóstolos.

Depois, no cimo do cartão, desenhou a figura de Ofélia levada
pela corrente, e um morcego; com as asas dobradas, e olhando tristemente,
de entre as canas debruçadas sobre o rio, o corpo branco sumir-se levado
serenamente como no seu elemento, e os grandes cabelos louros emaranhados
nos musgos da água: e por baixo escreveu: Duvida Ofélia do meu
amor, da verdade luminosa das estrelas, dos coloridos das folhas, da luz branca
e séria do sol. E depois, com a voz séria: Paganini
sobretudo era um morcego.

«É assim aquele pobre Lyser com a sua triste loucura. Sabes
que lhe morreu a irmã? No dia do enterro, Lyser acompanhou o corpo
com a sua rabeca debaixo do braço e fustigando com o arco as ervas
molhadas. O dia estava nublado. Minha pobre irmã disse
ele que nem pode levar presa no seu lindo vestido uma réstia
de sol. Sabes a religião que Lyser tem pelo sol.

Passa dias inteiros deitado entre as frescuras dos caminhos, sob a grande
luz sonora do sol.

Nessa noite em que a irmã foi enterrada, ele foi sentar-se junto
da cova tocando as velhas árias de Lully, e de vez em quando compunha
as dobras de um xale que tinha lançado sobre a sepultura. Assim esteve
perdido numa saudade mais doce que a lua, e mais profunda que a noite. Como
o céu estava nublado, ele dizia, de vez em quando à cova:
Não tenhas pena, cá fora nem estrelas há.

«Foram-no buscar de madrugada, e ele vinha lento, dependurando-se
do fato do coveiro como uma criança, para ouvir os uivos dos cães
e o chiar dos carros.

«Dias depois voltou ao cemitério e o coveiro não o deixou
entrar o pobre Lyser ficou junto das grades com os olhos cheios de lágrimas.
uma coisa de pressa que tenho a dizer a minha irmã
dizia ele com a voz passada de suplicações. O coveiro estava
dentro falando com uma mulher de cabelos cor de vinho; e como a quisesse prender
num abraço bárbaro e rijo, a rapariga, ao fugir-lhe, caiu sobre
uma sepultura toda coberta de violetas; o coveiro ergueu-a, sacudiu-lhe a
terra dos vestidos, e deu com o pé rude na terra da sepultura resmungando:
Malditos tropeços! O músico Berlioz ao voltar das bandas
moles da Itália e das ilhas da Grécia de lívidos escarpamentos
sem serenidades idílicas e sem mirtos recebeu nas ruínas
das Sorveiras, junto de Nizza, onde trabalhava na sua sinfonia de «Harold»
toda cheia de mar, esta carta vinda de França..

«Por fim, veio abrir a grade enferrujado ao pobre Lyser e com uma
grande voz: Vá, que já não são horas de
entrar sem licença. Lyser sumiu-se entre os ciprestes, debruçou-se
sobre a cova e escreveu na brancura da pedra: Luísa, se lá em
cima encontrares a estrela Vésper, pergunta-lhe de que tintas se faz
o cor-de-rosa da tarde e os reflexos de roxo-pálido; preciso sabê-lo:
ontem dei o teu xale branco a uma pobre: dize-me se queres que te traga alguns
dos teus vestidos: olha, se passares de noite por estas alamedas não
te aproximes da casa do coveiro, vive lá uma má mulher.

«Dias depois chamou-me e disse-me Sabe? começo a acreditar
que minha irmã morreu. Por isso, peço-lhe uma coisa, que quando
tiver alguma camélia não a esmague, talvez seja feita do seio,
da pobre rapariga. E afastou-se, arrastando os seus sapatos como se
estivessem pesados de água: mas de repente voltando-se e com a voz
cheia de suplicações: Nem as violetas, talvez sejam
feitas dos olhos dela. Então tomou-me pela manga e levou-me
para entre árvores onde havia o sol, o coro das colmeias, os cheiros
de feno e os coloridos frescos dos frutos: ele ia com a face toda tomada pela
cor quente e fecunda da vida: Não sabe? dizia-me o
pobre Lyser com a sua voz lenta e doce como um escorrer de mel: não
sabe? Muita rapariga que dizia as cantigas das eiras e dançava debaixo
dos plátanos morre nos frios de Fevereiro. Há-de ter visto,
por esse tempo, os pobres namorados que andam chorando sobre ás covas
com às cabelos caldos. Então aqueles corpos das raparigas desfazem-se.

Alguém que sabe e que vê aproveita aquelas formas e aqueles
coloridos; da pele do seio, fazem-se pétalas de camélia, dos
olhos tristes fazem-se violetas, da cor dos lábios fazem-se Os rainúnculos,
dos hálitos perdidos fazem-se os cheiros bons, e do olhar, da meiguice,
do desejo delas faz-se a Primavera, o doce ar das madrugadas de Maio. De modo
que de noite as flores que estão nos vasos na sombra das alcovas conversam
das suas existências passadas; falam das danças ruidosas à
guitarra; daquela manhã em que a ponta do seio veio espreitar pela
abertura do vestido os olhos do namorado; daquela tarde em que a face se vestiu
de corde- rosa para receber a visita de um bigode louro; daquela noite em
que as pálpebras castas acudiram aos olhos, que estavam perdidos e
quase a dizer sim; e se uma noite espreitar as flores que estão nos
castos paraísos das alcovas, há-de vê-las sair dos vasos,
entrelaçarem as formas e os coloridos e fazerem na sombra a vaga semelhança
de um corpo feminino.

«É assim o pintor Lyser. Fez-se noite naquela alma, e, por
isso, ela tem todas as qualidades da noite, o sombrio, o vago, o negro, o
azul, o lânguido, o estrelado.

«Agora deseja morrer e ser enterrado numa paisagem casta, assoalhada,
murmurosa,. para se julgar protegido e coberto pela alma errante do seu amigo
Gáudio Loreno.

«Quando a luz do sol se retira, prende-se, como um manto de seda que
se arrasta entre ervas secas e ramagens, ao dorso de uma onda, ao cimo ruidoso
de uma árvore, à proa de uma barca de pesca; assim aquele espírito
ao retirar-se daquele corpo se prende ainda a tudo o que na vida é
superior, e elevado, e meigo, ao amor, à melancolia, à compaixão,
à arte.

«Quando cheguei do Báltico soube que Paganini se retirara de
França: tive a respeito dele grandes conversações com
o rabequista Sica, que pensa em fazer para o Verão unia peregrinação
pela Síria.

«Estávamos horas debaixo das tílias, falando do quimérico
espírito de Paganini, até que as estrelas apareciam, contemplativas
e augustas. Sica contou-me toda a legenda idílica e bárbara
de Paganinh os seus amores em Verona, aquela cantora empoada, de mãos
macias e sentimentos velados e grandes sedas, e aquele abade de fivelas luzentes,
com quem ela ia debaixo dos veludos silenciosos, num entrelaçamento
de braços, em doce e azulada viagem pelo país de Citera. Depois
contou-me toda a sua trabalhosa. odisseia das prisões e dos degredos:
aquelas noites em que ele, poderoso e solitário, entrava na confidência
dos negros soluços do mar: noites dolorosas das lágrimas, em
que aquele trágico homem estava, enroscado nas palhas do seu cárcere,
vendo ao longe o mar Mediterrâneo amolecido por aquela moleza que escorre
dos astros, e da voluptuo-sidade da noite desconhecida e fecunda.

«Dizia-me Sica que Paganini lhe contava, que sempre às horas
escuras via as fivelas do abade luzirem na noite e dizia Paganini:
Às vezes o remorso é bondoso, encarna-se em coisas que têm
uma vida, uma carnação, um sangue, uma moleza, que se podem
abrandar, a quem se pode suplicar; mas aquelas fivelas metálicas, inertes,
rígidas, eram um remorso frio, surdo, inflexível, faziam-me
subir ao rosto o suor do antigo Josafá.

«Dizia também Paganini, que uma das suas grandes torturas no
cárcere fora assistir pela visão à decomposição
fria do corpo da pobre cantora Marietta.

«Ele via aquele corpo sem óleos, nem sacramentos, debaixo das
terras limosas e das crescências túmidas de seiva, esverdear-se
entre as ossadas.

«Via de noite perto de si aquela terrível decomposição
das carnes, aquelas brancuras inertes, aquelas moles curvas sugadas pela terra..
Via, aterrado, os cardos, as papoulas, as gramíneas, os ciprestes serenos
comerem a sua bem-amada fria, muda, esverdeada e inchada! «Então
ali tomou o ódio da Natureza: ele atravessava sempre as frescas fecundidades,
as searas, todas as verdes formas da vida., os campos e as granjas, com um
horror judaico e místico. Só perdoava ao mar: e às vezes,
depois, na Dinamarca, ia para junto das águas do mar do Norte, tocar
na rabeca as velhas cantigas escandinavas e as baladas rúnicas; e desejava
muitas vezes que depois de morto o seu corpo pudesse nadar durante a Eternidade
nos verdes embalos da água.

«Foram terríveis todos aqueles anos de prisão.

«O rabequista Sica contou-me depois todas as viagens de Paganini com
os estudantes da nova Alemanha, indo pelos burgos, pelos povoados, pelas cabanas
de lareiras sonolentas, cantando às estrelas e dizendo, na sua rabeca,
sob a lucidez do céu do Norte, as velhas baladas da Turíngia.

«Contou-me o amor da duquesa de Weimar por Paganini; e como uma noite
de concerto em duas cordas da rabeca ele disse o diálogo misterioso
de duas vozes que se falavam debaixo do arvoredo, depois entre as sedas de
cortinas ao fresco ar de um balcão, e depois ainda na terra debaixo
das raízes dos ciprestes, e, por flui, indefinidas, ténues,
luminosas, entre o encruzamento sagrado dos raios dos astros.

«Era uma alusão desconhecida que encheu de lágrimas
a duquesa de Weimar.

«Aquele homem ultimamente tinha o peito cheio de mortos. Dele retirara-se
o elemento humano; já não tinha a compaixão, o riso,
o amor, a indignação, a paternidade, a emoção.

«Lento, com os seus cabelos caídos, lívido, com as terríveis
rugas da face semelhantes aos ff de uma rabeca, com as mios transparentes,
cheias de agilidade, e de deslocações com os seus grandes casacos
escuros de pregas hieráticas, atravessava os povoados, os silêncios,
as cenas resplandecentes, poderoso e solitário, procurando aos pés,
sempre, uma cova onde não se esfolhassem árvores, onde não
nascessem ervas, sem saber que na noite, na humidade, nas choças, nas
pedreiras, nas estradas, nas costas, há uma raça que sofre,
e que há beiços lívidos da fome, e que há febres
silenciosas, e amores desertos, e suores de angústia, e apodrecimentos
de honras, e uivos de almas aflitas, e lentos e frios esvaecimentos de pudores
e de belezas.

«Sica contou-me também o grande poder musical de Paganini e
a sua atitude nos concertos cheia de abaixamentos e servilidades; e contou-me
também, meu amigo,. aquela noite gloriosa e flamejante em que se tocava
a tua sinfonia de Romeu e Julieta, e cm que ele veio, entre os aplausos e
as vozes de coroação, ajoelhar e beijar-te as mãos, dizendo
com os olhos cheios de água Tu serás Beethoven! «Ultimamente,
como sabes, tinha uma doença de garganta que o emudeceu; trazia então
um livro branco em que escrevia o que pensava nas conversações
da noite; aquela doença não o vergou mais; ele tinha já
o silêncio estoicismo da alma, e refugiou-se na mudez estoicismo do
corpo.

«Passava então com o rabequista Sica horas inteiras tocando
rabeca ou guitarra.

Ultimamente preocupava-o muito o ter de deixar a sua rabeca só, depois
de morrer; e escrevia no seu livro: Quando eu estiver para morrer pensar que
a hei-de deixar aqui, entre estas mulheres de aço, estes jornalistas
lívidos e os agiotas calvos, no meio desta multidão esfomeada
de materialidades! que se há-de encher de pó a um canto, ela,
cheia de alma e de legenda! «No entanto ele acreditava que no dia em
que morresse a sua rabeca havia de estalar e os pedaços apodrecidos
na terra ir-se-iam confundir com o corpo dele nos átomos das árvores,
ou das estrelas, ou das águas; e escrevia então: Que felicidade
poder ter a mesma folhagem, dar a mesma luz, lançar a mesma espuma.

«Ultimamente, porém, olhava para a rabeca com um ar triste
e descrente; às vezes tomava a guitarra e ia tocar nela para junto
da rabeca, com um gesto de carícias brandas, com um lento correr de
dedos como se estivesse vestindo as cordas com a harmonia viva que tirava
da alma; ele queria pôr todos os seus interiores divinos naquele gemer
de guitarra, para fazer morrer de ciúmes a sua velha rabeca abandonada.

«Por esse tempo, um dia que ele estava com Sica, escreveu assim: Já
me não fio na minha rabeca; acredito que ela não há-de
lamentai a minha morte; não morre, não! Há-de dar-se
ao primeiro que a tomar nos braços; há-de dar-se com sufocações
lascivas, e dizer-lhe os mesmos segredos místicos, voluptuosos e iluminados
que me dizia a mim: que importa à rabeca que o pobre músico
apodreça debaixo da terra? Ele escrevia isto com os olhos molhados
de água.

«Ultimamente o músico Sica necessitou ir à costa nor.
manda, porque tinha lá seu pai, velho marinheiro, morrendo junto das
águas; e quando voltou coberto de lutos e soluços, disseramlhe
que Paganini tinha partido para o Sul e o sr. Georges Harrys todo corado de
saúde para as bandas do Hanover. Adeus, não te demores em Nizza,
acaba depressa a tua sinfonia do Harold e recomenda-me ao nosso velho amigo
o Mar.» Tempo depois o homem que tinha mandado esta carta recebeu
estoutra de Berlioz.

«Estou ainda todo frio das visões desta noite. Sabes que moro
nas Sorveiras, que são umas ruínas junto do mar, pedras bem
conhecidas por toda a populaça do ar: abrigam-se ali, como numa pousada,
os viajantes sombrios da atmosfera, que são as chuvas esguedelhadas,
os ventos uivadores, os granizos que escarnecem, as moles brumas e os nevoeiros.
Em redor estão espalhados os casebres dos pescadores todos conchegados
como as ovelhas quando anda temporal no monte; a costa é terrível
e no entanto às vezes o mar tem serenidades só semelhantes ao
calmo olhar de um idiota.

«Este povo trigueiro de pescadores sai logo de madrugada para os embalos
da água nas suas lanchas esguias, carunchosas, todas cheias de legenda
e do cheiro das pescas: logo na alvorada se sente em baixo, junto da voz da
maresia, aquelas cantigas fortes de deitar redes, robustas como calabres,
e sãs como o sol. É uma bela vida! Durante o Verão, nas
sestas silenciosas do mar todos andam na pesca, os velhos, as crianças
rotas, resplandecentes e sujas, e as mães de forte seio essas belas
mulheres da costa da Itália que eram tão desejadas pelos marinheiros
gregos e fenícios, duros e. calvos, que tinham visto Mileto e Abido
e Corinto.

«Agora que o Outono começa, esta pobre gente deixa as redes
rasgarem-se ao vento, e vai para o interior dos povoados juntar-se nos campos
à pobre gente curvada que lavra e que semeia.

«Ontem fui, numa barca de pescador, até ao ponto em que o Var
desagua. Sabes que é neste tempo que as pombas emigram para o Sul;
reúnem-se em bandos gemedores e vão por cima do Mediterrâneo
fazendo nódoas brancas pelo ar azulado. Quando voltei, o Sol descia:
o barco vinha levado de um modo silencioso e casto pelos serenos embalos ondulosos.
o mar tinha uma serenidade olímpica.

«Eu tinha-me abandonado às molezas da tarde, e todo estirado
à popa via o céu cobrir-se de uma cor rosada, como de um rubor
de castidade. As estrelas começavam a aparecer; donde vinham elas?
E donde é que vem a noite de tão longe que vem suada de luz?
Eu via-as tremer e pensava que elas deviam ter frio e medo, lá em cima,
nas solidões, sem deuses. Àquelas horas também aparecem
as ondinas na água; quem sabe se as estrelas são mulheres de
um elemento desconhecido, que vêm de noite em sereias sagradas celebrando
um rito elegíaco? Quem sabe se são árvores agitadas por
um vento, que deixam cair estes negros frutos, a melancolia, o amor, a sensualidade?
«Depois ri-me destas imaginações; mas no meio do Mediterrâneo,
ao anoitecer, num barco de pesca, vendo ao longe as linhas moles da costa
de Itália, e sobre os montes os fogos dos pastores, não podia
ver as estrelas como nas verdades e nos positivismos modernos e esqueci Arago,
Berthelot e o velho Laplace.

«E depois pensava como desejava morrer, que era nos braços
da bem-amada; sol da minha natureza, sem dores mordentes, sem febres silenciosas,
e ir assim entre as fulgurações do desejo e os deslumbramentos
da alma e os beijos vermelhos e transfiguradores e os entrelaçamentos
divinos sob o seu olhar santo, ir num lento desmaio da carne para a frialdade
da terra e ali sentir-me lentamente dissipar pelas humidades fecundas, pelas
seivas brancas, pelas espumas das nascentes, pelas raízes das florescências!
«Ora quando assim vínhamos, vi na linha escura e áspera
da costa uma massa sonora de arvoredo e por entre a sombra uma luz elegíaca.

« Que luz é aquela, meu velho? disse eu da popa.

«O pescador suspendeu as rijas ondulações dos remos,
que ficaram direitos, escorrendo, todos esverdeados dos musgos da água.

« Aquela luz, senhor, é da casa das Serenas; a estas
horas está ali abandonado um pobre homem que morreu lá ontem.
Tinha chegado aqui há pouco, e era mais amarelo que a cera.

do altar; até na costa diziam os velhos que ele se vendera ao Diabo;
Deus me perdoe por falar assim nisto, de noite, em cima das águas.
Ah! senhor, diziam que tocava na sua rabeca maldita que nem o Céu…
Chamavam-lhe Paganini.

«E o pescador meteu os remos na água, cantando com um embalo
da voz: Altra volta gieri bele Blanch’e rossa com’un fiore Ma
ora nó. Non san piu biele Consumatc dal’amore.

«E depois voltando-se e com a voz ensurdecida pelo clamor das marés:
«E os padres agora não lhe querem cantar as suas ladainhas
e enterrá-lo em terra santa. Se fosse meu parente e tal sucedesse ia
para o fundo do mar: debaixo da água anda muito corpo de patrões
e pilotos: eles não morreram, não; andam ainda vivos; e quando
um pobre homem que tem mulher e filhos deita as suas redes, em dia de vento,.
quando o peixe anda arredio, eles costumam afugentar a pescaria com ramos
de coral para as bandas da rede!… O pescador falava assim lentamente
com a voz pesada da religião das legendas.

«Eu levava os olhos rasos de água e pensava que nunca tinha
ouvido tocar o triste Paganini: sempre que ele deu os seus concertos, não
sei que frias necessidades me prendiam longe da França.

«Entrei nas Sorveiras com o peito cheio de friezas e de mortalidades.
Quis trabalhar mas sentia-me dissolvido na pesada materialidade das coisas.

«Tomaram-me uns moles cansaços e fiquei sem pensamento, sem
desejos, inerte e silencioso como um pombal donde fugiram todas as pombas.
Sentia apenas o miar dos gatos lascivos e os uivas dos cães que andam
de noite na praia esfomeados. O mar estava pesado de gemidos sob a noite lenta
e mística.

«Ora quando assim estava ouvi distante, como vindo dos lugares hieráticos
das nuvens e das vias-lácteas, o gemido de uma rabeca. Quem
é que, àquelas horas, numa costa áspera de ventos imensos,
quando os pescadores dormem nas frialdades da cinza da lareira enrodilhados
nos farrapos dos mantéus, tocava assim rabeca junto do mar? «Fui
amedrontado ao meu antigo baldo gótico e olhei pelas transparências
doentias da noite.

Nada. As ondas choravam o seu choro místico e as estrelas estavam
na sua imobilidade donde se exalam religiões. Cerrei as portadas e
voltei com o peito sacudido por um soluço de medo para junto do braseiro:
então ouvi de novo aquele som triste da rabeca estender-se lentamente
pelo mar como uma névoa sonora. Fiquei todo tomado de tremores e de
frios: e ouvi então distintamente com os ouvidos da carne a música
de uma rabeca acompanhada surdamente pelo mar.

«Ao princípio foi uma melodia de fresca serenata, que a água
acompanhava com um marulho húmido e alegre: e ao mesmo tempo ao longe
havia o gemer rítmico do vento.

«Então durante uns momentos eu ouvi unia música estranha
da rabeca, acompanhada pelo mar, onde havia gemidos, dilacerações.
e vozes pesadas de lágrimas, e melodias trágicas com dores da
Natureza, e sempre por entre os sons alegres e meigos uma tristeza surda e
lenta corria como a água corre lodosa entre os juncos, os canaviais
e as eflorescências.

«Havia vozes de rabeca aflitas e bárbaras: e às vezes
dois mugidos sinistros do mar pareciam presos por uma melodia da rabeca, delgada,
ténue, clara, como um fio de som. Eu não te sei dizer o que
era aquela música sobrenatural, elegíaca, selvagem, trágica,
suave, e escarnecedora.

«Por fim de repente toda aquela orquestra poderosa se calou, como
um bando de abutres e aves de noite gritando aflitas, com trágicas
palpitações de asas, que vêm pousar num silêncio,
sobre um rochedo das águas. Então senti, de entre aquela amontoação
apocalíptica de harmonias, desprender-se solitária a voz da
rabeca, e vir de leve tocar junto do meu balcão com meiguice, com moleza,
com dissipação de lágrimas as variações
do Carnaval de Veneza.

«Ninguém me pode tirar do coração que foi a alma
de Paganini que deixou o seu corpo na natureza solitária das Serenas,
e veio dizer o adeus da música ao seu velho amigo.

«Adeus, meu meigo artista: sofre e transfigura-te pela dor: eu aqui
estou cheio de saudade da nossa doce França, junto das águas
tristes do Mediterrâneo.

«Creio que depois da noite de ontem, nunca mais terei o riso sonoro
e são. Adeus: dei os teus recados ao Mar, que te manda como voz de
saudação o terrível temporal que agora vai na costa.».

O homem a quem esta carta foi escrita era um meigo artista, um pintor como
Lantara, e assim descuidado, vivendo na boémia errante das misérias,
das jovialidades e das Primaveras: mas a alma não se maculou com os
contactos do corpo: no meio daquelas loucuras esteve sempre como uma pomba
adormecida. Aquele pobre rapaz vivia numa trapeira, onde trabalhava sem sol,
naquelas alturas silenciosas e castas onde vivem e crescem as flores do bem:
depois enlouqueceu e foi recolhido a um hospital: e ali era sagradamente velado
por uma enfermeira doce, delicada e branca como uma Virgem de ouro fino de
uru livro de legendas: o pintor, que, como o seu amigo Lyser, ainda depois
de doido desenhava, pediu um dia à enfermeira a sua touca engomada
e lisa, e com um lápis desenhou ali, como um agradecimento de alma,
toda a sorte de delicadas imaginações asas abertas,
coroas de folhagens, atidas que vinham beijar um pé branco, coroações
de caridades.

Uma noite a enfermeira ouviu um gemido, e veio encontrar o pobre pintor
com as mãos postas diante de um retábulo alumiado; a doce rapariga
cuidou no seu coração que ele se encomendava à Virgem;
escutou: o pobre rapaz doido estava rezando ao seu velho amigo Cláudio
Loreno; quando sentiu a enfermeira, voltou-se, e disse-lhe quase a chorar:
Deixo o meu corpo aos rios, às árvores, às abelhas,
aos montes, às searas, a toda a Mãe-Natureza. Depois
curvou-se, beijou a orla do vestido da enfermeira e ficou-se enroscado no
chão, nas últimas frialdades.

A enfermeira pousou a luz do retábulo junto do corpo, tirou a toalha
da Virgem e estendeu-a sobre a face pálida do triste, transfigurada
nas últimas formosuras.

Ao outro dia de madrugada, quatro homens que riam das farsas da taberna,
e cantavam más cantigas, levaram aquele branco corpo à vala
dos pobres..

OS MORTOS A sua carne sofreu, empalideceu nos medos, coloriu-se com as febres,
engelhou-se nos frios; mas agora anda, repousada e sã pelas frescas
vegetações, pelos frutos coloridos, na luz selvagem e vital
do sol, nos átomos da noite constelada e suave.

Os que morreram nos apodrecimentos das febres desfizeram-se nas terras fecundas
sob as eflorescências limosas, foram sugados pelas raízes e,
confundidos com a seiva, vêm outra vez para o sol, sob forma de frutos,
de corolas, de ramagens ondulosas.

Os que morrem sobre as águas do mar desfazem-se entre os verdes embalos,
entre as areias, os corais, as conchas, as foliações dos rochedos,
e vêm depois, sob a forma de ondas, embalar-se serenos ao sol, ou de
noite estirarem-se ao peso da moleza que escorre dos astros, ou de madrugada,
cantando com barbaridades de rainhas e doçuras de santas, acalentarem
o povo dos pescadores silencioso e trigueiro.

Os que morrem sobre os montes, como os pastores contemplativos, são
consumidos pelo sol; e andam dissipados pela luz hierática das estrelas,
pelos vapores moles das nuvens, pelas auroras; são os átomos
da luz, serenos, fecundos, consoladores e purificadores.

Assim os mortos são felizes.

Nós outros. andamos ruidosos e nocturnos, gordos ou empalidecidos,
esfomeados de materialidades, calcando as Margaridas, perdidos nos deslumbramentos
da carne; celebramos as religiões, esboçamos deuses, riscamos
sociedades no ar; e, nervosos, desconsolados, derrubadores, no meio desta
forte vitalidade como um lavrador que suspende a enxada e se fica,
todo amarelo, a pensar na velhice sem pão e sem lume nós
estamos sempre a sustar as nossas alegrias alumiadas e sonoras para pensarmos
aterrados nos esfriamentos lúgubres do túmulo.

E no entretanto, os mortos, que são os pais, as irmãs, as
bem-amadas, as mães, estão pela Natureza, pelos montes, pelas
águas, pelos astros serenos e imaculados. E porque tememos
a morte? Que instinto tenebroso ou sagrado nos faz amar tanto esta forma humana,
estes cabelos, estes olhos, estes braços enrodilhados de músculos?
As árvores, as eflorescências, as ervas, as folhas, são
também formas da vida, santas e cheias de Deus. Por toda a parte, pelas
famílias das constelações, pelos planetas, pelas árvores,
pelos lívidos interiores da terra, pelas águas, pelos vapores,
pelas plantações fecundas escorre a seiva, o átomo santo,
a alma universal! Por toda a parte há atracções, amores,
antagonismos, fibras, repulsões, polarizações, alegrias,
estiolações, pólenes, alma, movimento vida. Porque
há-de então ser esta forma que tem braços e cabelos,
e não aquela que tem ramos e folhagens? A vitalidade é a mesma,
cheia dos mesmos instintos negros, sagrados, luminosos, bestiais, divinos.

Por isso os mortos são felizes porque andam longe da forma humana,
onde há o mal, pela grande Natureza santa, onde só há
o bem, na pureza, na serenidade, na fecundidade, na

força.

Bem-aventurados os que vão para debaixo do chão, porque vão
para uma transfiguração sagrada. Mal caem sobre eles as últimas
pazadas de terra e o canto dos Ontem foi o dia dos mortos, os mortos são
felizes. Enquanto nas dolentes celebrações da Igreja, ao pé
dos altares luzentes, diante de Jesus roxo e descarnado, os tristes e os simples
rezam pelos seus queridos mortos, eles andam dispersos pela grande Natureza,
pelas florestas esguedelhadas, pelas espessuras sonoras, pelas uberdades da
seiva, pelos sulcos fecundos, por todas as verduras de acre cheiro.. padres,
bárbaro e dolente, se perde com o fumo dos círios, o corpo fica
só na plenidão da noite e do silêncio perante a grande
vegetação esfomeada; ele vai dar-se ali como pasto às
bocas sinistras das raízes: ele amolece entre as humidades da terra
e desfaz-se em podridões: então as raízes começam
a sugar e a. comer: a podridão transforma-se em seiva; a seiva sobe
pelos troncos, estende-se pelos ramos, palpita selvajamente dentro da árvore,
engrossa, fecunda, arredonda-se nas exuberâncias dos gomos, e abre-se
depois em folhagens, em florescências e em frutos: e o corpo transformado
vê outra vez o sol, as grandes poeiras, e sente os orvalhos, e ouve
as cantigas dos pastores, e vive sereno, repousado, na floresta imensa.

E no entanto junto daquele corpo, que sofreu a metem. psicose do bem, tinha
sido enterrado outro, num caixão de chumbo, entre pedra e cal, hirto
e embalsamado: entre a enorme palpitação difusa, enquanto em
redor vai a lenta transformação e fecundação da
semente onde já estão no germe as folhas, os troncos, os frutos,
as flores, os ramos que mais tarde o vento atormentará; entre as raízes
fortes e retorcidas dos arbustos, entre os calores da seiva, entre as uberdades
e as voluptuosidades da terra desconhecidos, serenos e fecundos, o cadáver
embalsamado ali está, inteiro, hirto, rijo, frio, lívido. Ele
inveja os átomos livres e soltos, que sobem e vão e descem no
encruzamento das vitalidades, que se deslocam e escorrem, como grãos
de um saco, desde as constelações. e os cometas, até
às espumas castas das fontes: ali, sequestrado à Natureza, não
se pode dissolver na eterna matéria forte: ele não tornará
a ver o sol, as noites amolecidas de orvalho, os soluços lascivos do
mar: que estranha fatalidade pesava sobre ele que nem a morte o libertou?
Oh! possamos nós todos ter sempre em vida a religião do sol,
da beleza e da harmonia: movermo-nos na atmosfera serena do bem e da liberdade;
ter a alma limpa e transparente, sem sombras de deuses e de reis; sentir o
enlaçamento divino dos braços da bem-amada, e depois, ó
santa Natureza, toma os nossos corpos para fazer deles árvores cheias
de sombra e ramos resplandecentes.

E ao menos durante a vida convivamos com a Natureza; quando entramos numa
floresta parece que a luz do sol, que escorre abundante e fecunda, nos enche
todo o interior, despertando ali, como faz nas madrugadas de Maio, os coros
de pássaros: e depois há um repouso sagrado como se todas as
iras, e as amarguras, e os desalentos, e os terrores, se curvassem na mesma
humildade, ao elevar-se na alma uma hóstia misteriosa.

Durante o dia há nas florestas uma santa celebração:
as árvores estão graves como sacerdotes: as flores incensam:
a luz do sol é a alva flamejante e serena que a floresta veste: e ela
murmura um canto dolente e acre, acompanhado pelos pássaros religiosos,
e de entre as ramagens eleva-se uma paz viva, fecunda e consoladora, como
uma vaga hóstia: e, ao fim da missa, as árvores, balançando
os ramos, parecem lançar ao povo curvado das plantas, das ervas, e
das relvas, a sua bênção soberba.

Ora, quando nós passamos entre estas celebrações tristes,
humildes, purificados, de entre a folhagem que se aninha inquieta no seio
do vento, sai, para nós, toda a sorte de vozes, de saudações
e de confidências.

São os nossos queridos mortos que nos falam, e então toda
a matéria tende a elevar-se, a desfazer-se em vapores e orvalhos, a
ir pousar, com suavidade e cansaços, nos seios da folhagem, que já
foram seios amados.

E depois a Natureza tem imensos perdões e reconciliações
formidáveis; todos os ódios trágicos, todos os corações
ferozes se fundem divinamente na promiscuidade dos orvalhos, das seivas e
das espumas: ela não escolhe; tudo lhe é bom; as raízes
das rosas pastam a podridão dos tiranos; e dos homens que na terra
ensanguentaram, dilaceraram, profanaram, faz carvalhos austeros e cedros religiosos..

Ela é mais doce que as religiões: ainda nas Escrituras Judas
atraiçoa Jesus, e nó entanto há muito tempo que os dois
corpos o do homem luminoso e o do homem escuro andam enlaçados
e dissolvidos nas mesmas auroras e nas mesmas corolas.

Ela acolhe indiferente todos os ritos, todas as religiões: as mesmas
oliveiras que na Grécia encobriam, ondulosas, as coreias nuas e os
ritos de Baco, cheios de sufocações lascivas, encobriram depois;
agitadas por um vento feroz, sob a luz irada das constelações,
o pobre Jesus, gemendo, arrastando-se na rocha e nas silvas, suando. sangue,
bradando aflito na noite das Agonias.

As horas em que acabo estas linhas vai o dia a declinar: agora longe daqui,
nos campos, lembra-me que anda o semeador erguido sobre os sulcos, roto e
sereno, espalhando o grão com gesto augusto: e parece-me vê-lo
daqui entre as transparências mórbidas do anoitecer distribuindo
a vida: são os corpos dos seus avós, que ele assim espalha pelos
sulcos fecundantes: são eles que se tornaram searas e que lhe hão-de
encher o celeiro; e são eles que lhe dão a comer a sua carne
e a beber o seu sangue.

Sagradas transfigurações! Assim, é na Natureza que
devemos ir procurar as consolações, estremecer com os amores
mortos, chorar no seio das maternidades passadas. É na Natureza que
se deve procurar a religião: não é nas hóstias
místicas que anda o corpo de Jesus nas flores das laranjeiras..

AS MISÉRIAS 1. ENTRE A NEVE A Anselmo de Andrade O lenhador, pela
madrugada, ergueu-se da enxerga e acendeu a candeia.

Junto da lareira, engelhado nos frios, cavado de magrezas, dormia um rapaz
enrodilhado nos farrapos de uma manta. O pobre lenhador desfalecia de febre:
até ao anoitecer da véspera andara pelo negro mato, e depois
nem teve um magro caldo junto das sonolências da lareira.

Iam grandes neves pelos montes, e o triste tinha filhos pequenos, que à
noite quando rezavam, todos arrepiados e magros, em redor da mãe, sufocavam
no choro da fome: por isso àquelas horas, por entre nevoeiros moles,
ele ia pelos montes, pelas colinas, pelos pinheirais, rachar, cortar e desramar,
aos ásperos ventos, na grande neve silenciosa.

O rapaz dormia com os pés inteiriçados e todos brancos da
lama seca; tinha os grandes cabelos espalhados, e branco tinha o peito. A
um canto sobre esteiras bolorentas, cobertas com o saiote da mãe, as
duas crianças dormiam com os cotovelos arroxeados dissolvidas
no sono dos frios e das fomes; o lenhador tirou a jaleca que levava para os
montes, embrulhoulhes os pés duros, pesados dos longos esfriamentos,
e com a candeia foi debruçar-se sobre a enxerga onde dormia a mulher;
ela tinha o corpo colado ao fraco calor da enxerga como a um seio amado: os
braços, caídos e frouxos como os de uma mulher estéril;
os seus cabelos negros espalhavam-se tristemente pela enxerga como um luto;
e a manta esburacada modelava a forma casta e fecunda dos seus peitos.

Então o lenhador tomou o machado negro e o feixe rijo das cordas,
cobriu-se com o capuz de saragoça e foi-se lento, esfomeado e magro,
pelos grandes caminhos, duros, lívidos e cobertos de neve.

O seu casebre ficava perdido ao pé dos montes, longe dos povoados,
entre umas poucas de árvores que erguiam para o ar os seus braços
negros, descamados, nus e suplicantes.

Ali vivia aquela família húmida dos frios, emagrecida das
fomes, diante da neve e dos invernos, com os peitos cheios da religião
do Sol, das searas e das fecundidades sonoras e alumiadas como coisas
flamejantes e divinas, que estão tão longe como Deus, inacessíveis,
na poeira da luz, entre os paraísos. O pai ia todos os dias para os
grandes montes lidar entre a ramaria; a mulher em casa cosia os farrapos ao
pé da lareira sem lume, e ao anoitecer ia para junto da porta desconjuntada
dos ventos, gretada dos frios, ver se, pelos atalhos enevoados, via chegar
o marido, lento, curvado sob os grandes feixes de lenha.

O lenhador caminhava para as bandas dos montes.

A madrugada pesava com as névoas, as frialdades e as chuvas desfeitas.

A neve caía, leve. A alma aconchegava-se dentro do seu querido corpo
como num vestido santo, amedrontado pela dureza sobrenatural das coisas.
Porque toda aquela Natureza tinha estranhas barbaridades.

Os caminhos tinham o chão duro, nevado, opaco.

A manhã vinha escura, lenta e lacrimosa como uma viúva à
hora dos enterros: e à pouca luz ténue, os pedaços de
gelo pendurados dos cardos e das urzes tinham o aspecto frio e podre de farrapos
de mortalha: sobre as árvores imóveis, os pássaros quietos
e. cheios eriçavam as plumagens aos ventos frios.

As nuvens dissolviam-se pelo ar, cheias de orvalhos estéreis.

O lenhador caminhava frio, rasgando-se nas silvas, cheio da chuva das árvores,
pálido como os choupos, roxo, desconsolado e sereno.

Ia lento. Pensava nos lavradores, que àquelas horas, nas terras quentes,
saem, assobiando, sob a manhã religiosa e alumiada, entre as ervas
claras, ao resplandecimento fecundo dos orvalhos, guiando pelos sulcos, enquanto
as andorinhas gritam alegres e gloriosas, os bois fortes, lentos e bons. Ele
tinha a mulher e os filhos esfomeados no casebre; desfazia-se em lides e em
suores, e em cansaços, e nem sempre aquelas faces amadas se enchiam
das cores da vida; aquela pobre gente estava sempre amarela; era o frio, era
a fome; nem uma manta nova, nem uma pouca de lã: o bom Deus lá
em cima parece que está tão bem agasalhado ao calor dos seus
paraísos e das suas estrelas que não se lembra da pobre gente
dos campos e dos montes que se arrepia de frio. E havia gente que via sempre
os filhos bem quentes e bem corados! Assim pensava o triste, caminhando, pesado,
molhado e todo cheio de coisas dolorosas e mórbidas. A neve vinha descendo
como um imenso desprendimento de lãs.

E ele pensava que podia ser um abastado dos campos, e ver à noite
em volta da sua lareira flamejante e serena toda a multidão dura dos
ceifadores e dos semeadores, com os cabelos caídos, entre os bons risos,
em redor da grande tigela de caldo, ao estalido das castanhas, na atitude
dos bons e dos simples.

A neve ia caindo direita e vaga: e ouvia-se o rumor indefinido como de um
mar, laborioso como de uma colmeia das multidões doentias dos
pinheiros.

O pobre lenhador olhava em redor as grandes neves extensas, enoveladas nas
pedras, esfarrapadas pelos cardos, opacas e estéreis: ele olhava; e
às vezes um corvo passando silencioso e nocturno vinha bater o ar em
redor dele com a selvagem palpitação de asas.

Começava a espalhar-se o dia. Ele sentia-se só entre aquela
Natureza inimiga e bárbara; e por vezes o braço enfraquecido
da febre vergava sob o machado e as cordas húmidas.

Ele ia entrando pelo pinheiral indolente. O pinheiral era cerrado, e a noite
estava ainda no encruzamento das ramagens lívidas. A neve que caía
sobre os ramos desfazia-se em orvalhos ao calor da seiva.

As árvores estavam como tomadas de um susto religioso.

Quando saiu do pinheiral, em caminho para os montes, ele ia a recordar quando
ia para as escamisadas numa aldeia do Sul, e sob a luz apaixonada e melódica
das constelações cantava à viola junto da doce rapariga
de testa santa e de cabelos cor de amora; e ele, o perdido, amolecia o olhar
a esfregá-lo, pela abertura do lenço. sobre a brancura do colo
dela! Hoje, àquelas horas, pensava ele, aquela pobre mulher gemia na
sua alma vendo os filhos, sem um bocado de pão, andarem pelo casebre
húmido, rotos, dependurando-se- lhe das saias gemendo: «Mãe!,
mãe!» E os olhos do pobre tremiam-lhe nas águas do choro.

O lenhador apertou o machado e entrou na floresta.

Os velhos carvalhos violentos e proféticos, os choupos desfalecidos,
os castanheiros ruidosos, os olmos grotescos, as ramagens e os silvados erriçados
onde o vento brada aflito, todas aquelas verduras vivas e sãs que cantam
ao sol no empoeiramento da luz crua, toda aquela sombria Diana esguedelhada
que se chama a floresta, dormia sob as opressões da neve, triste, silenciosa
estóica e soberba.

O lenhador com o machado erguido ia por entre a floresta; ele conhecia aquelas
estranhas atitudes, aqueles escarpamentos de neve, as faces pensadoras dos
rochedos,. todo o emaranhamento de ramos de folhas donde caem gotas como um
eco de chuvas passadas, e todavia ao endireitar-se contra um velho carvalho
empalideceu como diante de uma profanação.

O seu coração simples e bom não compreendia, mas sentia
aquelas vidas imóveis, silenciosas e sonoras que são árvores,
ramagens, arbustos, eflorescências; ele tinha compaixão dos gemidos
dos troncos, das cascas esmigalhadas, das fibras dilaceradas, e sentia que
sacrificava ali à fome dos filhos vidas imensas de árvores.

O lenhador atirou o machado negro contra o tronco do carvalho e toda a árvore
imensa ficou tomada de vibrações dolorosas; e as suas ramagens
estenderam-se caídas, sem vida e sem força, estenderam-se pelo
tronco como para se verem morrer sem gemidos, num silêncio soberbo e
selvagem.

O Sol veio lívido, mole, desfalecido. Sem serenidade, sem ascensão
flamejante e sagrada.

Névoas arrastadas, escurezas, esvaecimentos lúgubres de nuvens.

Começavam a esvoaçar os pássaros, piando tristemente.
Toda a floresta chovia abundante e sonora.

E o lenhador, com o peito erguido, os cabelos desmanchados, vermelho, trespassado
de chuvas, feroz, com o machado erguido nas mãos, com justos e trágicos
encarniçamentos, lutava contra os troncos, contra os ramos, contra
a inchação das raízes, contra as duras cortiças
e os filamentos tenazes; e enchia o chão de ramagens negras, de braços
mortos de árvores, caídos e inertes como armaduras vencidas.

Aquelas árvores que tanto tempo levaram a formar-se e a enrijar,
e a acostumar-se aos ventos tumultuosos, e a saber agarrar as clinas da chuva,
e a enlaçar as moles nudezas das névoas e dos vapores, aquelas
árvores cheias das mordeduras de Novembro, cheias de legenda e do cheiro
das tormentas, encolhiam os ramos num estremecimento medroso quando o machado
reluzia lugubremente no ar.

Ele tinha a camisa solta, a jaleca esfarrapada: os socos imensos faziam
covas na neve; e, esfomeado, terrível, ia a grandes passos pela floresta,
rasgando os silvados, com respirações imensas, esmigalhando
as raízes, envolto em estilhas, em fibras partidas, com gestos trágicos,
afastando com o machado o voo dos corvos; e todo cheio dos filhos, torturava
as árvores com golpes flamejantes, gritando-lhes: «Covardes!»
Assim lidou sob a neve, e o vento, e a chuva, e a humidade, e a febre, e as
névoas, e a dor, até ao anoitecer.

Tinha já um monte de ramagens e de lenhas: enfeixou-o nas cordas.,
duras como os seus braços; encravou no meio o machado: o feixe enorme
estava encostado a um escarpamento de neve: as duas pontas da corda por onde
ele o havia de erguer pendiam negras e húmidas: ele curvou-se todo
para tomar o feixe sobre as costas largas; mas quando o ia a erguer, lento
e cansado, sentiu os músculos afrouxarem, as mãos esfriarem,
subiu-lhe um desfalecimento, e caiu com os cabelos suados e colados à
testa, e os dedos inteiriçados esburacaram a neve.

Assim esteve perdido na moleza do esvaecimento, até que abriu os
olhos vagarosos, e ficouse encostado ao feixe, e cheio de tremuras e de silêncios.

Vinha-se derramando a noite, desciam as neblinas: todo o ar estava tomado
de uma palidez opaca e severa: caia uma chuva desfeita e vaporizada: todo
o chão estava pesado de neve.

Ao pé do lenhador estava estendido um grande tronco morto, sem raízes,
sem ramagem, sem seiva, engelhado e mordido da neve; por um lado começavam
a desfazê-lo os apodrecimentos.

Em redor erguiam-se as multidões de árvores, cobertas de neve,
adelgaçadas entre as transparências do nevoeiro, tristes e nocturnas
como monges brancos.

Ao fundo abria-se uma clareira que deixava ver ao longe a grande luz, que
se ia,. serena e tímida.

O lenhador tinha o pescoço nu aos contactos da neve todo
o peito dolorido e ensopado de chuvas; ele agarrou as cordas do feixe e, enrijando
os músculos, com a face cheia, as fontes inchadas, as grandes veias
saídas como cordagens, e as pernas hirtas, violentou o corpo para se
erguer mas caiu sobre a neve, amolecido, sufocado, e coberto das friezas
húmidas da febre.

Então ficou-se a olhar o tronco esfolhado, nu, coberto de neve e
a pensar que o seu corpo ia ali finar-se e dissipar-se entre as podridões
dos troncos.

E toda a sua carne foi tomada por uma vibração terrível.
Tinham-lhe lembrado os filhos, e a mulher, e o pobre pastor que lhe sacudia,
quando ele entrava, a neve dos cabelos e as silvas da jaleca.

A neve caia triste. Àquelas horas ela esperava junto da porta a ver
se o via ao longe chegar curvado debaixo dos seus feixes, pelos caminhos brancos
e limpos.

Ela estaria com uma mão sobre a umbreira, e com a outra agasalhando
as crianças nas dobras da saia contra os frios da noite.

E ele estava ali, só, esmagado, sob a neve implacável.

E quando o não vissem vir! E ele procurava na memória se já
alguma vez teria ficado de noite pelos montes. Nunca.

Se o não vissem chegar iriam todos chorando e bradando, com a candeia
acobertada do vento, procurá-lo pelas urzes sinistras.

Às vezes tomava-o o desvairamento, e via grandes figuras de sombra
subirem pelos troncos, como um fumo terrível, e sempre aquele enovelamento
de semelhanças humanas subia até se perder nas transparências
lívidas do ar.

A neve caía como escorrida das nuvens.

E ele pensava, triste, que a mulher e os filhos saberiam a sua morte na
neve sob o encruzamento irado das folhagens, e todas as mordeduras da ventania,
silencioso e solitário como um lobo! Então aquele corpo, pisado
pela neve, entre as roupas molhadas, enodoado, dissolvido nas molezas da névoa,
inteiriçou-se; com os olhos flamejantes, os dentes irados, tomado de
risos, esfarrapado dos cardos, endireitou-se, e sufocado, esguedelhado, hirto,
lívido, deu um grito na noite.

Houve um levantamento assustado de pássaros por toda a ramagem escura.
E veio um vento e levou nas suas espirais violentas um enovelamento de folhas.
E toda a luz do dia se sumiu na clareira. Ninguém havia pelo monte.
Estava só. Só. Nem pastores, nem vaqueiros, nem caminheiros
perdidos. Só. E iam-se os pássaros, iam-se as folhas, ia-se
a luz. Ele ficava só Então, vendo em redor a floresta solitária
e negra, a amontoação irada das sombras, o esvaecimento lívido
dos últimos ramos, as atitudes tenebrosas, as corcovas nocturnas das
raízes, sentindo ao longe o uivo dos lobos e por cima da cabeça
o esvoaçar dos corvos, estirou-se de bruços e bradou, na noite,
sob a neve e o ruído dos ramos: «Jesus!» E toda a floresta
ficou silenciosa, indiferente, soberba; os corvos voaram gritando; ele caiu
fraco, desalentado, roto, agonizante, macerado; e de cima o grande céu,
o céu justo, o céu sereno, o céu sagrado, o céu
consolador cuspia neve sobre aquela carne miserável.

E ficou inerte. A neve caia desfeita e branca. Estava estirado. Via por
cima a grande imobilidade da floresta, os nevoeiros que deixavam cair farrapos
que lhe vinham roçar o rosto, e a sombra espectral do feixe de lenha.

Ele sentia o corpo pesado com as dores do frio, e na testa e nos olhos sentia
abrasamentos mordentes: e nas costas uma chaga imensa, que tivesse terríveis
ardores. ao contacto da neve, sob o peso do corpo.

As vezes soluçava. E quando assim estava viu grandes sombras que
lhe esvoaçavam sobre a cabeça e fugiam bradando aflitas, com
um terrível ruído de asas, esbranquiçadas da neve, apavoradas
e ferozes.

Eram os corvos. Tremeu todo. Ele entrevia-os já quando eles viessem
pousar-lhes sobre o peito, e curvados, batendo as asas, meio suspensos, enterrar-lhe
os bicos negros na pobre carne.

Então moveu dolorosamente o braço entorpecido e apalpou em
redor; encontrou um ramo solto, negro, espinhoso; lançou-o contra as
sombras negras dos corvos; mas ele tinha a mão quase inanimada pelo
frio, e o ramo debilmente arremessado veio-lhe cair sobre a face, e rasgou-lhe
a carne com os espinhos: mas então as mãos inertes não
tiveram força para o tirar.

E pôs-se a chorar. Os corvos voavam terríveis; ele enterrava
o pé na neve e atirava-a para o ar, como para os apedrejar. Os corvos
desciam.

A neve caía e já lhe cobria as pernas hirtas. Ele então,
vendo a floresta que o ensopava de água, o chão que lhe coalhava
a vida, o vento que o transia, a neve que o enterrava, os corvos que vinham
comê-lo, todas as hostilidades selvagens das coisas, encheu-se de cóleras,
e, silencioso, feroz, com os olhos luzentes na noite, deitou rijamente a cabeça
sobre o feixe e pôs-se a morrer.

Então veio repentinamente um vento tumultuoso: e pareceu ao pobre
lenhador sentir naquele vento o som de um choro e uma voz bradando aflita.

O vento era imenso e poderoso: dispersou os corvos: eles balançavam-se
nas asas entre os redemoinhos do sopro feroz.

A neve caía. Os corvos, assustados pelo vento que viera, pairavam
sobre os últimos ramos.

A neve caía. E os braços do lenhador já estavam cobertos,
e todo o peito. Os corvos fugiam: e todo o bando aparecia como uma sombra
indecisa e pesada.

A neve caia. E estava coberta a garganta do homem, e estava coberta a boca.

Os corvos iam-se sumindo nas transparências da noite.

A neve caía, indomável e estéril. A testa do pobre
estava coberta, e apenas se moviam ainda, lentamente, ao vento, os seus grandes
cabelos escuros.

A neve riscava a noite de branco. Ao longe uivavam os lobos.

E a neve descia. As sombras dos corvos sumiram-se para além das ramas
negras.

Os cabelos desapareceram. Só ficou a neve!.

FARSAS A LADRA OS HOMENS DOS CÃES A FILHA DO CARCEREIRO
O PESCADOR O BECO ONDE MORA O REI LEAR OS DENTES PODRES A BEBEDEIRA
DO COVEIRO O POBRE SÁBIO A FORMA O SALTIMBANCO O POETA
LÍRICO Aquele pobre moço tinha uma bem-amada, e nas brancuras
tépidas da tarde passeavam entre os castanheiros enlaçados,
como nas velhas estampas alemãs.

Quando ele a via não via as pombas, nem as estrelas, nem
as ervas: mas quando pensava nela via-a luminosa como todas as estrelas, lasciva
como todas as pombas, mais fresca que todas as ervas. Ela tinha dois olhos
negros como duas flores do mal. E ele dizia-lhe às vezes: eu queria
ser a terra em que tu hás-de estar morta branca e fria para
te envolver toda num beijo fecundo. Ora, uma madrugada, ela ergueu-se do leito
todo quente dos embalos lascivos, roubou-lhe uma bolsa de dinheiro, o relógio,
um anel e fugiu.

O pobre moço foi para um hospital, com uma doidice elegíaca.

Um dia foi deitar-se para entre as ervas claras, entre o cheiro dos fenos
e das seivas, ao sol sonoro, e pôs-se a morrer enquanto os pássaros
cantavam gloriosos, e ao longe uma flauta entre os milhos tocava uma cantiga
das ceifas.

A mulher morreu na enfermaria da cadeia, no apodrecimento da febre, calva
e com chagas.

* * * Conheci um rapaz mirrado, engelhado, com grandes olhos profundos,
que dormia pelos portais, pelos adros, pelas encruzilhadas, e nos pedregulhos
junto do rio.

No Inverno, nas geadas, nos luares nevados, nas neblinas, o miserável
dormia com os cães sobre os lajedos: os cães conheciam a sua
manta esfarrapada e podre, e quando a não viam nos grandes frios mordentes,
uivavam.

Ele deitava-se entre os cães, punha a nuca sobre os pedregulhos,
e dissolvia-se num sono mole e doentio: ele conhecia os cães mais felpudos,
os mais gordos, e os que não cheiravam mal. As vezes deixavam-no dormir
numa estrebaria.

* * * A pobre rapariga tinha seis anos: era filha do carcereiro. Era loura,
com grandes olhos lúcidos.

Desde a madrugada ia pelos pátios, pelas enxovias, pelas gradarias,
leve como uma seda e sã como um sol.

Levava braçadas de ervas aos presos e clematites.

Na cadeia chamavam-lhe a Cotovia. Tinha pombas.

Tinha um riso transparente e bom, e quando os miseráveis sujos e
chorosos iam para os degredos ela cantarolava entre eles, serena e
gloriosa. Cresceu. A mãe era lavadeira e morreu no rio, entre os musgos
e os canaviais. O pai teve um mal e ficou entrevado.

Vieram os Invernos. Ela lidava. Cuidava dos irmãos pequenos. Lavava
ao sol..

Costurava à lareira sonolenta.

De madrugada ia atirar grãos e migalhas às pombas: depois
vinha dar ao pai engelhado, triste, doloroso, as sopas e o caldo.

Um dia entrou na cadeia um bêbedo, um covarde, um assassino, que tinha
espancado o pai.

Era um lindo rapaz, branco com um corpo delgado. A rapariga viu-o, e fugiu
com ele de noite embrulhada num cobertor.

Todo o dia seguinte, as crianças não comeram. O pai gritou,
chorou e arrastou-se até à lareira.

Ninguém. As pombas voavam à tarde inquietas, fugitivas e medrosas.
O pai ficou toda a noite ao pé da lareira a roer um bocado de pão
duro. No outro dia ainda as crianças ficaram sem comer. Todas as pombas
fugiram. O pai arrastou-se até o casebre; e esfomeado, batia de encontro
à porta. Por fim vieram. Passados dias. Havia pela vizinhança
um cheiro de podridão.

As crianças tinham morrido; o pai tinha morrido. Tinha sido a fome,
a mingua, a sede, o frio.

A que fugiu é hoje velha. Embebeda-se com aguardente: e quando na
taberna as esfarrapadas e os miseráveis lhe falam nesta história,
ela diz com voz rouca: Ai que noite aquela, filhas! Ele tinha um modo
de dar beijos! * * * Havia um casamento. A noiva era divinamente linda, triste,
séria, casta, religiosa; tinha a alma delicada e fina como a alma das
virgens das legendas. Amava um rapaz, novo, forte, sério, inteligente,
formoso. Ela tinha a religião da beleza, da harmonia e das árvores
cheias de sol: mas o bem-amado era pobre. Velha história. Casou com
um homem rico. A mãe era pobre e tinha irmãos. Necessidades
frias, mordentes. Nessa noite havia pela sala sonora grandes sedas, e cintilações
de pedrarias, e as penas dos leques coloridas e devassas.

Estava ali a gente pálida, que anda nos veludos, de mãos macias
e sentimentos macios. O marido era gordo. Entre a orquestra poderosa havia
uma flauta que chorava.

Ela, àquela hora, sob o peso das luzes e as molezas das respirações,
pensava nas alamedas onde os rouxinóis dão a réplica
aos poetas. A meia-noite o marido levou-a para a alcova. O marido tinha comido
muito e anotava. Ela tinha uns grandes cabelos negros. Cabelos do Sul.

O Diabo gostava destes cabelos, no tempo dos seus amores.

Mas a rapariga tinha também uns olhos azuis de uma serenidade elegíaca.
Ficaram sós.

Ela estava encostada à cama, quase escondida nos cortinados, com
frio, e uma vibração dolorosa da alma. O marido prendeu-a nos
braços e deu-lhe um rijo beijo Ela, triste, deu um grito. Ele tinha
os dentes podres e a boca com maus cheiros.

* * * Um coveiro tinha amigos a cear. Cearam. Beberam. Havia um vinho mordente
e duro da taberna.

As estrelas estavam frias. Saíram para o cemitério inconsolável.
Cambaleavam ferozes.

Amontoaram a ramaria de um cipreste e acenderam uma fogueira. Cantavam à
viola e dançavam como saltimbancos.

Um deles gritou: Mulheres! Venham mulheres! Há-de-as
haver por aí disse com largos risos o coveiro.

E todos começaram procurando uma cova onde estivesse fresco e são
um corpo de. mulher: tinha sido enterrada uma rapariga naquela madrugada.
Vinha atrás do caixão um rapaz todo amarelo, com grandes cabelos
caídos. Tiraram a terra. Apareceu o caixão. Ela tinha o vestido
despregado no seio e via-se a carne branca.

Archotes! Archotes! Trouxeram ramos acesos.

Quem há-de ser o primeiro? Que ela está a preceito!
Desceu um, bêbedo, desapertado, galhofeiro e obsceno. Estendeu a mão
dura e meteu-a pela abertura despregada do vestido entre os seios da morta.

Deu um grito. Tinha sido mordido. Era um bicho das covas. O bicho era o
último amante daquele corpo branco; o bicho das covas tinha ciúmes.

* * * O velho Jerónimo morreu. Era pescador na costa. Um lobo-do-mar.
Ninguém como ele para velejar com temporal e vento de travessia nas
brumas de Novembro, entre as penedias, esmagando as espumas. Morreu.

Tinha mãe e dois filhos.

Ela consertava as redes ao sol enquanto os filhos dormiam na areia.

O Jerónimo tinha as mãos duras, o pescoço bestial,
o peito largo, cheio do Sol e do mar. O Sol era o seu Deus. Deixou dito que
o não enterrassem em cemitérios, debaixo das ervas, entre os
germes das florescências, as raízes e as terras limosas.

Deixou dito que o atirassem ao mar. Ao outro dia os filhos saíram
na barca cheirosa dos mares e dos musgos, com o corpo do pai embrulhado em
redes. Uma grande luz de sol escorria pelo mar. Havia uma calmaria sonora
e contente. A velha rezava à popa.

* * * Num beco morava uma mulher perdida. Tinha o pai velho, estonteado
e comido das magrezas.

Ele é que abria a porta aos homens nocturnos.

Às vezes não o deixava comer. E arrepelava-lhe os cabelos.
Um dia entrou um homem bêbedo; ela estava com os vestidos desmanchados,
os peitos caídos, sobre a cama, assobiando. O velho aquecia-se à
lareira. O homem disse com um grande riso: Vamos nós embebedar
o velho! Valeu! E fizeram-no beber aguardente. O velho teve agonias.

Eles torciam-se em obscenidades bárbaras. De manhã o velho,
com as forças esmigalhadas, os músculos dissolvidos, não
pôde acender o lume.

Caiu miseravelmente ao pé da lareira. A filha deu-lhe com umas cordas,
o homem deu-lhe com o pé rijo e bestial. O velho soluçava.

A mulher esperou, calada, fria e metálica até que a noite
veio.

Mandou-lhe então buscar azeite a uma venda vizinha.

O velho foi. A filha fechou a porta. O velho, ao voltar, chorou, rezou,
suplicou de joelhos com as mãos postas.

Nada. A filha dentro cantava, toda lasciva, com as pernas nuas. O beco era
solitário e viúvo.

Veio o frio, a geada. O velho estirado à porta gemia. Toda a noite
a filha na cama bem quente e sonolenta! De madrugada uns carreteiros levantaram
o velho transido, lívido e gangrenado..

Ao sol desse dia, arrastou a mulher pelas poeiras umas grandes sedas contentes
e soberbas.

* * * Ele caminhava pelas ruas, com os cabelos desmanchados, magro, angélico.

Conhecia todos os livros santos e todas as Escrituras. E os livros sânscritos
e os velhos letrados da China; e os poemas divinos e doces da Índia
e da luminosa Grécia; e as histórias hieráticas e frias
da Pérsia. Era pobre, miserável. Andava com um longo casaco
esfarrapado, roído do frio e o peito cheio de religiões e de
teogonias. Não tinha casa. As vezes dormia debaixo dos pinheiros, pelos
montes. Prenderam-no.

Mas que mal fiz eu? dizia ele com a sua voz lenta e olhar
iluminado.

Condenaram-no por vadio. Ele não sabia nada. Ninguém o defendeu.

Uma velha que por vezes lhe dava um bocado de pão foi dizer, toda
triste: Perdoe-lhe, senhor juiz.

Os sargentos repeliram a velha.

Entre as alocuções das leis e as palavras dolentes e as togas
negras, ele pensava nos países sagrados onde nasce a religiosa flor
do lótus.

Levaram-no para uma enxovia. Assim esteve anos. Nos frios, na humidade,
solitário, sem livros, sem consolações, sem vozes. Chorava.
E tinha uma suave teima.

Queria que todos os dias a velha lhe levasse flores. Um dia morreu, na enxerga,
ao anoitecer, sem o Sol, sem os ventos, sem o grande ar, na humidade, sereno,
desfolhando rainúnculos.

* * * Quando tinha dezoito anos tinha um corpo robusto e melódico.
Os cabelos eram como os grandes raios quentes de um sol negro. Tinha grandes
braços fortes e magnéticos. O olhar tinha, como um mar, grandes
ondas de luz, ou dolorosas, ou iradas, ou lascivas. O pescoço túmido
e forte tinha brancuras soberbas e rijezas cínicas. E a voz era como
saída dos cristais e dos metais sonoros.

E a forma do seio dava o sabor das noites conjugais e a esperança
das maternidades. Mas era pobre.

Tinha, ao andar, ondeamentos de sereia, musicais e castos. Mas era pobre.

Quem a acolhesse no leito de noiva teria contentamentos inefáveis
e filhos sãos e belos. Mas era pobre. E ela era casta e religiosa.

Assim esteve virgem, apaixonada, orgulhosa até que aquela beleza
se foi lentamente, como finda um cântico sagrado. E ela era de feito
o cântico sagrado da forma da carne.

Outrora, quando ela passava, aquela forma escultural e a brancura lilial
da sua pele arrastavam toda a multidão filistina. Mas era pobre. Não
casou. E não se deu.

Agora, velha, engelhada, lenta, com vestígios lúgubres e um
chapéu desbotado, passa, virginal, cheia de solitárias impurezas,
arrefecida, oleosa, beata, e com um cão felpudo no colo.

* * *.

O saltimbanco era são, forte, com grandes cabelos e uns olhos negros
elegíacos.

Uma velha rica desejou aquele corpo elástico, a pele cor de mármore
e os beiços grossos.

Ora o saltimbanco tinha uma mulher bem-amada e filhos pequenos. De noite,
eles deitavam-se entre os farrapos reluzentes, com as nucas sobre um velho
tambor, cobertos de estrelas. A velha sabia que aqueles corpos tinham frio
e fome: tentou o saltimbanco com cintilações de dinheiro. O
saltimbanco vem todo irado para junto da mulher, e apertam-se, amados, sujos
e resplandecentes.

Mas o tambor e a flauta dos saltimbacos não chamavam a gente do povoado.
Veio o frio: sem lume! Veio a fome: sem pão! A velha tentou o saltimbanco
com cintilações de dinheiro; o saltimbanco, veio todo curvado,
abraçar os filhos todos rotos, amarelos, esfomeados e chorosos.

E então a mulher foi encontrar o saltimbanco a lavar-se, a preparar
umas roupas brancas e a esfregar o peito com folhas.

Onde vais? Ele disse, a chorar: via a fome, o frio, a magreza, a
lareira apagada, os trapos sujos, ia para o leito aveludado e quente da velha.

Ela teve um riso doloroso.

Não vás.

Queria ir ela: ir, sob a névoa, com os peitos nus, para as encruzilhadas,
agarrar os homens, os nocturnos, e ali mesmo sobre a erva e o chão
duro, torcer-se aos beijos sujos e entre as sufocações
pedir-lhes um bocado de pão.

Ele chorava, arrepelado.

Tu! E limpava-lhe, com beijos sagrados, a orla das saias: e arrastava-se
pelo casebre com os joelhos roxos.

Ela queria ir.

Sou eu que vou: deixa-me ir disse o saltimbanco com a carne
tomada de febres e os olhos reluzentes.

E apertavam-se com um amor angélico. E ela então, chorando,
começou a penteá-lo, a lavá-lo, a compor-lhe as pregas,
a enfeitá-lo enquanto Deus dormia.

* * * Ele tinha sido um poeta dos bons tempos, arcádico, laureado
nos outeiros: tinha composto uma tragédia clássica. Depois envelheceu
e empobreceu. Vivia de fazer versos para anos, de escrever cartas para as
costureiras e para os lacaios, de redigir cartazes de touros e de fazer cantigas
impuras.

Tinha um filho.

Ele esperava que o filho o amparasse na velhice. Mas o pobre rapaz teve
uma febre mordente e ficou idiota. O pai cozinhava, limpava a casa e lidava
com as rimas e com os sonetos para ganhar o pão: e nem sempre havia
pão na trapeira. Passavam semanas comendo favas. As vezes tinha o pobre
poeta lírico encomendas de cantigas obscenas, de epitalâmios
ou de versos para namoradas: e então sentado, enquanto, com os olhos
arregalados, o filho gritava: «Pão!, pão!, pai»
ele dizia: «Tem paciência, filho; amanhã creio
que havemos de comer.» E escrevia, pensando e medindo com os dedos:
Dizeis, ó bela Márcia.

Que deixei de te adorar: Tem asas o Deus Frecheiro: Pois não é
para esvoaçar? * * * Tristes histórias! Sofrer, chorar, ter
fome e frio, e morrer à míngua, e ter noites de agonia
o que é que isto prova? Nada, nada, meus senhores.

Words! Words! Words!, dizia o nostálgico Hamlet..

AO ACASO Ainda ontem eu pensava que nós outros os peninsulares nem
sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas
tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia de espantos e servilidades:
e que este velho canto da Terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido
pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira, épica!
Ah!, foi há muito tempo.

Era naqueles tempos em que a Itália rodeava os papas severos; e olhavam
para o céu as Virgens do Dominiquino. Por esse tempo ia pela Europa
uma transformação social. Na Alemanha, Lutero entrava em Worms,
com um canto batalhador, em nome do espírito, da alma. O papado ia
morrer. Era necessário que todo o Sul se aliasse na cruzada católica.

Toda a revolta de Lutero foi tomada ao principio por um daqueles lentos
suspiros alemães, que se perdiam no coro profano, luminoso, embalador
e forte do Sul.

Viu-se depois que era a voz imensa da alma do Norte, toda uma humanidade
austera e vital, que se movia, que vinha falar, pensar, examinar, revelar,
sob o peso das teocracias romanas, dos papados, dos imperadores, das tiranias,
dos sacerdócios.

Todo o Sul católico estremeceu; aquela revolta vinha imprevista e
rápida; um dia a imperceptível e vasta humanidade, quando fosse
uma madrugada para as suas adorações, podia encontrar a velha
Roma deserta, e ao longe o catolicismo dissipando-se com um som hierático
de salmos e um colorido vermelho de fogueiras.

Era necessário salvar o Sul.

A Itália tinha-se familiarizado com o cristianismo; tinha-se acostumado
às santas macerações de Jesus, à transparência
ascética das Virgens; os renunciamentos e os medos católicos
já a não vergavam para o pó. Ela, cheia de sol e de sons
e de forças, começava a olhar a Natureza, as grandes fecundidades.
as vitalidades poderosas, as melodias moventes da carne.

Os velhos deuses da Grécia tinham-se refugiado na alma italiana;
ao princípio andavam no fundo, como recordação leve,
transfigurados pela dor, encolhidos, soluçantes, miseráveis:
depois lentamente foram aparecendo, espalhou-se um cheiro de ambrósia
e um som de idílio; e os seus corpos são como astros, ocuparam
por fim toda a alma italiana com coreias, derramações de néctares,
palpitações de luz, divinos resplandecimentos de vida.

A Itália tinha-se afastado de Dante e das visões devoradoras
do infinito; e os poucos que se curvavam sobre a Divina Comédia, não
era para ver os castigos e os paraísos, mas para sentir as palpitações,
que lá tinham ficado, da alma de Florença.

A Itália seguia Petrarca: mas em Petrarca havia ainda uma religião
e um misticismo o amor: e a Laura dos Sonetos, como a Virgem mística,
prendia nas humilhações religiosas todos os cavaleiros do Sul.
A Itália então deixou Petrarca e rodeou Ariosto, o aventureiro,
o jovial, o descrente, cavaleiro e escarnecedor.

Foi então que se ouviu aquela voz do Norte.

Todas as coortes católicas andavam dispersas, galhofeiras e namoradas,
rindo com o Aretino, escarnecendo brutalmente com o poeta Pulei, guiadas por
Lorenzo de Médicis e pelo cardeal Bembo, cantando às estrelas,
adorando as Violantes, rindo de Fra Angelico, aclamando Ticiano, cobertas
das sedas de Veneza, com o peito cheio da religião do Sol, da música
e das noite profanas.

Foi então que se ouviu a voz do Norte, o canto de Lutero. Todos os
católicos correram instintivamente, rodearam os papas severos, Adriano
VI, Clemente VIII, cantaram os salmos e as missas de Marcelo, cheias dos renunciamentos
ascéticos, e. foram seguindo o Tasso, que voltava, apaixonado e religioso,
para Dante e para Deus.

E o papado continuou caminhando, sereno e terrível, deixando as sombras
das masmorras de Galileno e de Campanella, e mais longe o fumo das fogueiras
de Vanini e de Giordano Bruno.

Tal era a luta do Norte e do Sul.

Ora durante essa luta das regiões e das pátrias, a Península,
encolhida nas suas montanhas, cobertas de sol, violenta, sinistro cavaleiro
de Deus, armava as caravelas e os galeões para as bandas desconhecidas
das ilhas, dos continentes das Índias, dos cabos temerosos. Nós
outros, os peninsulares, aparecíamos às outras nações
como velhos lobos-do-mar, sempre em viagens, trigueiros, rijos como calabres,
sãos como o Sol, ensurdecidos pelo clamor das marés, cheios
de legendas e do cheiro das viagens, sobre os tombadilhos, e perdidos, ao
longe, perdidos nas brumas terríveis.

De vez em quando desembarcava este povo, bradando que tinha descoberto um
mundo, que lá tinham ficado infinitas multidões, negras, bestiais
e nuas sob a bênção dos padres: ali mesmo sobre a areia,
ao rumor das maresias, escrevia a história trágica da sua viagem,
e uma madrugada, tomados das saudades do mar, partiam de novo, radiosos e
bons, para a banda das Índias.

Era assim. Todos os anos, aquela multidão imensa de aventureiros
embarcava nos galeões, entre os salmos e os coros, e eles iam silenciosos
e flamejantes, por entre as sonoras ilimitações, os ventos aflitos
e os tremores da água para os nevoeiros inexplorados.

Iam, em demanda de mundos, levando Deus dentro do peito, sob as constelações
augustas, entre as tempestades, os rochedos e as correntes, de pé nos
tombadilhos, descobertos às temperaturas, rodeando um Cristo, cantando
os salmos ao coro dos furacões, todos reluzentes de armaduras e de
divisas de amor, com a alma cheia de altivezas de batalhadores e de doçuras
de apóstolos.

Iam como numa glória e em nome de Deus! E quando encontravam as hostilidades
e os encrespamentos irados do elemento, as opressões infinitas dos
ventos e das águas. erguiam as mãos como para uma excomunhão,
e bradavam soberbos àqueles sopros e àquelas maresias os versículos
do Evangelho Segundo S. João.

Era assim. Ora aqueles homens marinheiros e batalhadores eram historiadores
e poetas.

Escreviam os seus feitos.

Escreviam-nos entre os assaltos e as tempestades, no convés das caravelas,
nos cabos tormentosos, nas florestas sagradas da Índia sob as imobilidades
cruas da luz: escreviam cobertos das espumas, enegrecidos pelos fumos, trémulos
das iras das batalhas. Por isso enchiam as suas crónicas e os seus
poemas de uma estranha prodigalidade de força e de vida. E os seus
diários de bordo tinham muitas vezes a simplicidade épica de
Homero.

Mas eles também tinham amores, ciúmes, paternidades, paixões,
lirismos interiores, e as saudades da pátria nasciam naquelas almas
como grandes açucenas que se abrem dentro de um vaso e que o enchem.

De noite, nos tombadilhos, embrulhados nos seus mantos esburacados, deitados
entre as cordagens, aos embalos das marés, enquanto os pilotos silenciosos
seguem com os olhos as viagens imensas das estrelas, e todo o mar enorme se
amolece como um seio cansado, eles contavam em voz baixa, com as cabeças
juntas, as histórias de amores, os torneios, as aventuras, as serenatas
e a vida da pátria.

No meio daquela vida trágica da aventura eles tinham a alma cheia
de amores, de legendas, de saudades, cheia da pátria.

E escreviam poemas, cantatas, sonetos, farsas, comédias e elegias.

E para vestirem o sentimento fecundo, forte, cheio do Sol e do mar tomavam
a. forma popular.

Estavam longe da Europa, das plásticas da Itália, dos renascimentos
gregos e romanos, das antigas formas rituais, das educações
clássicas.

Não conheciam isto.

Mas lembravam-se sempre das cantigas da pátria, das endechas heróicas,
dos romances populares, que eles tinham ouvido pelos campos, com que os velhos
embalavam, que se cantam de noite às estrelas por Sevilha e por Granada
e que os mendigos diziam pelas velhas pontes dos Godos e dos Árabes.
Porque o povo na Península tinha uma poesia, sua exclusivamente, que
cantava nos trabalhos, com que adormecia os filhos, em que escarnecia os alcaides
e celebrava os heróis.

Fazia daquela poesia um uso sagrado: era a sua consolação,
o grande leito misterioso onde adormecia as tristezas: era ali que procurava
confortos, recompensas e as ideias da pátria.

No Norte, a poesia popular foi a Invisível que levou pela mão
os trovadores, filhos das glebas, até às lareiras dos senhores
feudais: foi o primeiro suspiro de amor que os pobres poetas da populaça.
místicos e sensuais, soltavam para as brancas castelãs que entreviam
nos torneios, cobertas de pedrarias: ou passando de noite, brancas, às
estrelas, pelos altos terraços; ou entre as árvores, ao entardecer,
quando as ogivas cheias do sol oblíquo estão flamejantes como
mitras.

E as castelãs abriam os braços para os poetas tristes, indolentes
e cheios do Paraíso. Admirável influência da poesia, que
produziu pelo amor um renascimento social! Mas a poesia da Península
era unicamente do povo: era a epopeia austera do Cid, exterminador de mouros,
e de Bernardo dei Carpio, exterminador de bárbaros. Na Península
o povo estava sob uma condição especial; tinha uma importância
no estado forte, fecunda e soberba: a Península tinha passado os primeiros
anos da sua constituição nas lutas terríveis do forte
Maomet e do Cristo místico; ora o popular da Península não
era um servo, era um cristão: consagrado pelos baptismos, era uma força
individual, que impelia e dissolvia o elemento mourisco, sensual e poderoso.

Ora, foi sob a forma popular que aqueles batalhadores e poetas, que vão
hoje tomando a vaga atitude da legenda, escreveram os seus poemas, as suas
cantatas, as suas comédias e os seus sonetos.

Então toda a literatura peninsular tem uma originalidade profunda,
independente de formas e ritos: a arte, o drama, a poesia saem das tradições
populares, do clima, do Sol, de todas as vitalidades meridionais; isto quando
pelo resto da Europa todas as nacionalidades esqueciam as suas tradições,
a sua história, a sua velha alma, para se envolverem nas formas antigas.
Era a Renascença. Então aparece o teatro espanhol original,
cavalheiresco, enérgico, apaixonado, cheio de selvagens palpitações,
de lances de religião: onde a cruz é uma personagem; onde falam
lacaios, heróis, santos, ventos, galeões: todas as formas da
vida confundidas; o riso, o choro, a ironia, a sátira, o madrigal:
tal é a impressão geral.

Depois uma pintura mística e sensual: não é a espiritualização
da alma, é antes a imortalização da carne: inspirada
daquele misticismo espanhol, que sob a influência da Natureza, do clima,
da política, da raça, parece mais cheio das trágicas
iras de Jeová do que das doçuras de Jesus.

Depois uma música, como a do Dies Irae, obra dos terríveis
dominicanos: um poema de morte; uma das maiores agonias da alma: música
ascética e flamejante, onde a Natureza aparece, trágica e desgrenhada
figura.

Uma arte onde se torcem todas as chamas do Inferno e todas as pedrarias
dos paraísos católicos, que parece uma luta trágica e
cómica da vida e da morte: uma Igreja. cheia de renunciamentos místicos,
mas onde o misticismos parece mais um desespero de não poder saciar-se
dos bens do mundo do que uma aspiração a poder fartar a alma
nas contemplações diversas: uma defesa do catolicismo trágica
e apaixonada: um amor sublime pelos despotismos e pelos sacerdócios:
confusão dos imperadores com os santos e das coroas de metal com as
coroas de luz: uma vida super abundante: ascetismos ferozes e onde o sentimento
mais aparente e o rancor.

Ao mesmo tempo uma austeridade monástica em tempo de guerra: caravelas
que partem, sem rumo, sob as indicações das estrelas: quase,
por vezes, uma reconciliação aparente do maometanismo e do cristianismo:
uma paixão avara pelo dinheiro; o elemento da intriga que quer entrar
na política, vindo substituir o elemento da força: combates
cavalheirescos com a Europa vizinha: depois um sol ardente: um sangue exigente:
uma carnação soberba: ao longe a América e as Índias
como um paraíso de ouro, de metais e de soberanias.

Tal é o aspecto mais geral da Espanha. nas vésperas da Renascença.

É dramática aquela vida.

Não admira por isso que a forma suprema da sua arte fosse
o drama.

Em Portugal não é este rigorosamente o fundo do génio:
há mais serenidade na força: o carácter português
é mais parecido com o carácter italiano: os nossos sábios,
os nossos viajantes, os nossos descobridores tinham mais a lucidez do tempo
de Dante: as navegações são prudentes: por isso Portugal
não resistiu nada à influência italiana. O renascimento
da Antiguidade. a serenidade plástica, a frieza clássica aclimatam-se
na Espanha mas com dor e com luta: foi necessário que a Espanha já
não acreditasse na sua epopeia cavalheiresca e que Cervantes começasse
a fazer trotar pelos caminhos o magro D. Quixote.

Em Portugal não: o génio antigo aclimatou-se: transformou-se
mesmo: perdeu o elemento vital e fecundo e ficou-lhe o elemento retórico.

Ó Arcádia! Ó moços pastoris e burgueses! Ó
clássicos!.

O MIANTONOMAH Há duzentos anos uns poucos de calvinistas exilados
fretaram um barco na Holanda húmida e úbere, e sob o equinócio
e os grandes ventos, miseráveis, austeros, levando uma Bíblia,
partiram para as bandas da América.

Duzentos anos depois, estes homens que tinham ido solitários, num
barco apodrecido das maresias, derramaram uma esquadra épica pelo mediterrâneo,
pelo Pacífico, pelo mar das Índias, pelo Atlântico, pelos
mares do Norte.

Aquela colónia de desterrados, que choravam de frio, esfomeados,
rotos, que dormiam às humidades do ar numa capa esfarrapada, é
hoje a América do Norte os Estados Unidos.

América do Norte significa trabalho, fé, heroísmo,
indústria, capital, força e matéria.

Ultimamente via eu o Miantonomah, sinistro e negro caçador de esquadras:
é toda a imagem da América frio, sereno, contente, material,
e cheio de fogos, de estrondos, de maquinismos, de forças e de fulminações.

É o que amedronta naquele navio a frieza na força.

Ele representa a consciência soberba da força e da indústria.
e os grandes orgulhos do cálculo: despreza as iras e as hostilidades
dos elementos: ele tem de atravessar o Pacífico, o oceano Índico,
o Mediterrâneo, os grandes desvairamentos da água, os ventos
imensos, os equinócios, as trombas, as correntes, os rochedos bruscamente
aparecidos, os nevoeiros infames, os magnetismos, as electricidades, toda
a vil populaça das tempestades: então todos os navios se preparam
cordagens, velames, mastreações, complicações
e resistências de forças, toda a combinação astuciosa
de lonas e calabres que transforma as hostilidades em auxílios; ele,
o Miantonomah, contenta-se com uma tábua rasa.

Em tempo de luta precavêem-se os almirantes e os cabos de guerra:
um formigueiro de morteiros, de bombas, de obuses: metralhas, machadas, o
arsenal reluzente das abordagens; a ele basta-lhe uma muralha de ferro.

O vento é temido: nas vastas solidões azuis ele é o
lobo sinistro que anda rondando e uivando, à caça dos navios:
ele acalenta o mar, massa inerte e salgada; ele faz com a água estranhas
núpcias ferozes; extermina, cantando com alegrias bárbaras;
esfarrapa as nuvens, persegue e esguedelha as chuvas, assobiando contente:
em alguns mares do Norte, quando ele sopra as estrelas têm maior tremor:
mas o grande horror do vento é que ataca com o peso, com a violência,
com a força, com a compressão combinada e defende-se com o esvaecimento.

O Miantonomah é assim: ataca serenamente, com violências enormes,
com fulminações trágicas, e defende-se com a impassibilidade
e quase com o esvaecimento.

Na luta das esquadras, no meio das descargas, das trovoadas flamejantes,
entre semelhanças abrasadas, os terríveis pendões do
fogo, e os fantasmas do fumo, e as efervescências da água ele
passa, solta a sua fulminação enorme, despedaça, esmigalha,
dispersa e continua lento, frio, impassível, mudo, tenebroso, coberto
de ferro.

Ele não receia o mar: os outros navios erguem amuradas imensas para
conter o encrespamento da onda: forram-nas de cobre, erriçam-nas de
pregaria. O Miantonomah não: ele julga a demência do mar um prejuízo;
corta a amurada e fica com o convés raso, ao rés da água:
satisfaz a velha curiosidade da vaga: e por misericórdia dá-lhe
hospitalidade: e para que o mar tenha alguma coisa a desfazer, a triturar,
a roer dá-lhe por compaixão uma varanda de hastes de ferro enferrujado,
e pedaços de corda podre. E o mar entra, desesperado, mugindo.

e lambe o chão do navio americano: em baixo nas. camas, agasalhados
e preguiçosos, os marinheiros dizem: «Lá anda o mar a
varrer e a lavar o tombadilho.» E com efeito o velho oceano dos dilúvios
faz humildemente o serviço dos últimos grumetes.

Em cima, na superfície da água, há o vento, as espumas,
os nevoeiros, as chuvas, as trombas; ele, aborrecido, afasta-se deste bando
miserável e vai investigar o fundo das águas, as vegetações
fantásticas, a região dos corais, as cavernas enceládicas,
as purezas infinitas da transparência, todo aquele antigo ideal feroz
de que os velhos mareantes falavam benzendo-se com terror religioso: com a
quilha de ferro enorme ele brutaliza aquelas virgindades do mar: em baixo
a tripulação nada sabe das tempestades: em vão ruge o
mar e torce-se; e desencadeia o jogo fulminante das ondas, e espanca o convés
do navio com o ruído de mil carros de batalha; os marinheiros em baixo
riem, cantam, baloiçam-se, pulem os aços dos maquinismos, cachimbam,
lêem a Bíblia serenos.

Como não há mastreação, nem velame, nem cordagens,
nem toda a amontoação confusa de calabres e de lonas o tombadilho
aberto é cheio de ar e de luz: e durante as viagens, é uma pousada
das algas, das conchas, das aves do mar e dos granizos.

Dentro são as máquinas, as forças, os motores trabalham
solitários com vozes, impaciências, preguiças, friamente;
como as fatalidades da matéria. Ao atravessar os espaços obscuros
vêse o frio luzir dos aços e os cobres luminosos; depois são
as fogueiras flamejantes, que dão a vida aos maquinismos vermelhas
como corações sobrenaturais: o ar é descido por máquinas
de respiração, pulmões terríveis; e um vento geral,
fecundo, benéfico, escorre constantemente por todo o negro bojo: fazem-se
assim livremente temperaturas: frios mordentes, calores pesados e frescuras
das manhãs do Sul: nas suas viagens pelo mundo aquele navio desmente
quando quer os climas e as temperaturas: os marinheiros passam silenciosos,
limpos, rosados, graves: alguns lêem.

Ora, sobre aquele negro navio, sobre os maquinismos frios, aquelas forças
pavorosas, aquelas fogueiras terríveis, no convés entre as negras
torres, ao livre ar, ao livre sol, alegre, glorioso, gordo, esvoaçando
na sua gaiola canta um canario.

Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte.

Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente,
perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças,
de cintilações.

Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital: adoração
exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida;
exageração de meios; violenta predominação do
individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos
estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento
avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios;
preocupação exclusiva do útil e do económico;
doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o
pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes;
uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível
da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas,
colonizações, exportações colossais, forças
extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras
terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos,
de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio
pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar:
depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa. Assim entrevemos
a América, ao longe, como uma estação entre a Europa
e a Ásia, aberta ao Atlântico e ao Pacífico, com uma bela
costa de navegação cheia de enseadas, molhada de grandes lagos,
com os seus grandes rios que escorrem entre as terras, as culturas, as fábricas,
as plantações, os engenhos, levados pomposamente pelo Mississipi
para o golfo do México: e depois uma Natureza vigorosa, fecunda, eleita,
desaparecendo entre as indústrias, os fumos das fábricas, as
construções, os maquinismos, todas as complicações
mercantis da América como uma pouca de erva de uma campina
fértil que desaparece sob uma amontoação.

nervosa de homens.

A vida da América do Norte é quase um paroxismo.

Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante.
Mas será vital, fecundo, cheio de futuro? Todos os dias dizem à
Europa: «Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal
liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal
económico.» Mas a América consagra a doutrina egoísta
e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia
e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas
tradições democráticas e as ideias gerais para se perder
no movimento das indústrias e das mercancias; alia-se com a Rússia;
a raça saxónia vai desconhecendo os grandes lados do seu destino,
enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações
mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina
o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande
figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente,
nos arredores de Goetring. Isto dizem muitos.

Uma das inferioridades da América é a falta de ciências
filosóficas, de ciências históricas e de ciências
sociais.

A nação que não tem sábios, grandes críticos,
analisadores, filósofos, reconstruidores, ásperos buscadores
do ideal, não pode pesar muito no mundo político, como não
pode pesar muito no mundo moral.

Enquanto a superioridade foi daqueles que batalhavam, que lançavam
grandes massas de cavalarias, que apareciam reluzentes entre as metralhas,
o Oriente dominou, trigueiro e resplandecente. Quando a superioridade foi
daqueles que pensavam, que descobriam sistemas, civilizações,
que estudavam a Terra, os astros, o homem, e faziam a geologia, a astronomia,
a filosofia, o Oriente caiu, miserável e rasteiro.

Há, sobretudo, na América um profundo desleixo nas ciências
históricas.

Inferioridade. As ciências históricas são a base fecunda
das ciências sociais.

É a superioridade da Europa: sob a mesma aparência de febre
industrial há uma geração forte, grave, ideal, que está
construindo a nova humanidade sobre o direito, a razão e a justiça.

O nosso mundo europeu é também uma estranha amontoação
de contrastes e de destinos; é uma época esta anormal em que
se encontram todas as eflorescências fecundas e todas as velhas podridões;
políticas superficiais; grandes fanatismos: e ao mesmo tempo um desafogo
das livres consciências, expurgação dos velhos ritos,
e a alma moderna ligada na sua moral e na sua justiça às almas
primitivas com exclusão da Idade Média; políticas pacificas
e transigentes, e um espírito de guerra surdo, aceso e flamejante:
territórios violentos e conquistados, e a aniquilação
pela política, pela história e pela filosofia dos conquistadores
e dos heróis: nem são as influências monárquicas,
nem é o individualismo; nem é o humanitarismo, nem são
os políticos egoístas, não é a importância
das individualidades, nem a importância dos territórios; é
uma confusão horrível de mundos, e, em cima, triunfal e soberba,
está a indústria, entre as músicas dos metais, as arquitecturas
das Bolsas, reluzente, cintilante, colorida, sonora, enquanto no vento passa
o seu sonho eterno que são fortunas, impérios, festas, empresas,
parques, serralhos.

Ora em baixo, sob a confusão, sereno, fecundo, forte, justo, bom,
livre, move-se em germe um novo mundo económico.

Este germe é que a América não tem, creio eu. Mas vê-se
que todos a apontam como o ideal económico que é necessário
que os pensadores meditem, e todos os que no vazio fecundo das filosofias
riscam as sociedades.

Ora toda a América económica se explica por esta palavra
feudalismo industrial..

Diz-se, na América há um constante aumento de tráfico,
de receitas, de riquezas: não há aumento; há deslocação,
deslocação em proveito da alta finança com detrimento
das pequenas indústrias produtoras.

Logo que na ordem económica não haja um balanço exacto
de forças, de produção, de salários, de trabalhos,
de benefícios, de impostos, haverá uma aristocracia financeira,
que cresce, reluz, engorda, incha, e ao mesmo tempo uma democracia de produtores
que emagrece, definha e dissipa-se nos proletariados: e como o equilíbrio
não cessa, não cessam estas terríveis desuniformidades.

Mas o grande mal da predominância exclusiva da indústria é
este: o trabalho pela repugnância que excita, pela absorção
completa de toda a vitalidade física, pela aniquilação
e quebrantamento da seiva material, pela liberdade em que deixa as faculdades
de concepção por isso mesmo sobreexcita o espírito,
estende os ideais, abre grandes vazios na alma, complica as precisões,
torna insuportável a pobreza: nas grandes democracias industriais onde
as posições são obtidas pela perseverança, conquistadas
pela habilidade, onde há mil motores a ambição,
a inveja, a esperança, o desejo, o cérebro aquece-se, espiritualiza-se,
cria sonhos, ambições, necessidades impossíveis; o querer
chegar torna-se uma verdadeira doença de alma: exageram-se os meios:
e toda a seiva moral se altera e se deforma.

É o que vai acontecendo na América: debaixo da frieza aparente,
move-se todo um mundo terrível de desejos, de desesperanças,
de vontades violentas, de aspirações nevrálgicas.

Depois, como no meio das indústrias ruidosas e absorvedoras muitas
amarguras ficam por adoçar, muitas angústias por serenar, muitas
fomes por matar, muitas ignorâncias por alumiar, tudo isso se ergue
terrível no meio da febre da vida social, e toma-a mais perigosa. Londres
dá hoje o aspecto desta luta.

De maneira que o trabalho incessante, enorme, irrita e exagera o desejo
das riquezas; aferventa o cérebro, sobreexcita a sensibilidade, a população
cresce, a concorrência é áspera, as necessidades descomedidas,
infinitas as complicações económicas, e aí está
sempre entre riscos a vida social. Entre riscos, porque vem a luta dos interesses,
a guerra das classes, o assalto das propriedades e por fim as revoluções
políticas.

E todavia a liberdade da América parece tão serena, tão
confiada, tão assente, tão satisfeita! No entanto há
muita força fecunda nos Estados Unidos! Ainda há pouco deram
o exemplo glorioso de uma nação que deixa os seus positivismos,
a sua indústria, os seus egoísmos, o seu profundo interesse,
e arma exércitos, esquadras, dissipa milhões, e vai bater-se
por uma ideia, por uma abstracção, por um princípio,
pela justiça.

O Sul quis corrigir a liberdade pela escravatura; desune-se; o escravo que
trabalhe, que cultive, que produza, que sue, que morra sob a força
metálica, baça e sinistra do clima e do Sol. Pois bem. A América
do Norte quer a liberdade, o amor das raças, e bate-se pela liberdade,
pela legalidade, pela união, pelo princípio, pela metafísica!
E dispersa os exércitos da Virgínia! Eram estas as coisas que
me lembravam há dias, no Tejo, estando a ver o Miantonomah, navio dos
Estados Unidos em viagem pelo Sul, comandante Beaumont, fundeado no nosso
Tejo..

MISTICISMO HUMORÍSTICO Voltei. É agora que as toutinegras
emigram. Andei pelos campos neste ar desfalecido do Inverno outonal.

Agora o azul está indolentemente belo. Tem quase uma irónica
serenidade. E o azul intenso, frio, triunfante. Tem a luz, a beleza, a força,
a inefabilidade. Agora a luz enternecida dos campos arrasta-se pelas grandes
águas quietas e pálidas, onde o vento revolve e espalha a agonia
das folhas.

Quando voltava, vi uma casa pequena, esbranquiçada, escondida entre
as bênçãos indolentes das árvores. Tinha a serena
quietação de quem tem ouvido segredos extáticos e era
triste e religiosa como a entrada amarelecida de um convento católico.
Havia uma corrente de água delgada que fazia claras murmurações,
e era como o acompanhamento, natural e melódico, de uma écloga
latina. Entre as árvores estava um banco solitário onde o musgo
se dependurava.

Nas plantas, nas clematites, nas trepadeiras que o cercavam, havia um murmúrio
como de vozes distantes que contam felicidades perdidas. A pedra escura e
molhada do banco tinha a tristeza das pedras do cemitério à
luz consoladora, purificadora e branca que cai dos céus outonais.

Agora, ali sobre aquele banco dorme estirada a grande luz do Sol, e à
noite o luar, porque já não há naquela casa namorados
contemplativos, que venham de noite ou à sesta despertar para se poderem
sentar aqueles dormentes de luz.

Aquela casa abandonada faz lembrar amores místicos: e quando se vê
à luz dolente do escurecer, faz subir do coração como
um sabor de beijos antigos e esquecidos.

As árvores erguiam em atitudes violentas e proféticas os seus
braços nus, engelhados, suplicantes para o frio azul, esperando no
entorpecimento a fermentação violenta das seivas.

Os ramos frios e nítidos deixavam passar indiferentes, sem as suspender,
sem as acariciar, as moles nudezas das nuvens.

Toda a Natureza no tempo dos frios está impassível e sonolenta.

Passei por um cemitério. Andava um coveiro abrindo covas. Tinha um
rosto inerte e animal. A luz dissipava-se. E uma estrela, que se chama Vénus,
luzia metálica, ardende, desejosa, lancinante, num fundo sinistro de
ramagens.

O coveiro é um semeador. Semeia corpos. Somente não tem esperança
nem o amor das colheitas. Quem ceifará aquela plantação
crescida? Quem sabe se os corpos que se atiram a vala, sementes fúnebres,
se abrem, lá em cima, em searas divinas de que nós apenas vemos
a ponta das raízes que são as estrelas? Mas não. A alma
morre. O corpo revive e dissipa-se na matéria enorme.

E na alma que estão as más vontades, os negros remorsos, as
lacerações do mal: o corpo desce livre, novo e são para
as uberdades limosas das covas.

Quando chega o último frio, ódios, amores, tristezas, invejas,
melancolias, desejos, todos cansados das lutas e da vida, dizem à Natureza
como gladiadores vencidos: «Os que vão morrer saúdam-te!»
E morrem. A vida e o seu suplício é absorvida na insensibilidade
da Natureza, no silêncio perpétuo, na força fatal e cega.
E a matéria vai pelos ares, pelas planícies, amolece-se nas
sombras, vivifica-se nos raios claros, e rochedo, floresta, torrente, fluido,
vapor, ruído, movimento, estremecimento confuso do corpo de Cíbele:
e a matéria sente a vida universal, a palpitação do átomo
debaixo da forma, sente-se banhada pelas claridades suaves e pelos cheiros
dos fenos, sente-se impelida para a luz magnética dos astros e dilacerada
nos ásperos movimentos da terra. A matéria tem a consciência
augusta da sua vitalidade. E assim, sob a tua. impassibilidade, há
uma angústia imensa, uma vida ardente, impiedosa. uma alma terrível,
ó formidável Natureza! A noite descia: caía de cima uma
claridade láctea: pesava um austero e lento silêncio: a larga
brancura celeste era gloriosa; os pastores desciam com os rebanhos lentos,
balando; havia pelo ar uma bondade indefinida, uma virtude fluida: eu lembrava-me
dos Elísios olímpicos e mitológicos onde, na claridade,
passam as sombras heróicas, serenas, brancas, leves, levadas por um
vento divino. Claridades sem sol! Eu ia, escutando os passos da doce noite
que vinha caminhando. Ia-me afundando no tédio como um navio roto numa
maré do equinócio. Enchiam-me a alma crepúsculos brancos.
Entrei no grande arvoredo negro. Àquelas horas, os linfáticos,
os inocentes, os místicos, encontram nos arvoredos languidezas e elevações
ascéticas. Mas eu tremia entre a ramaria inquieta como um mar, misteriosa
como um firmamento tremia como um homem medroso que visse erguer-se
um mono. Toda aquela negra decoração de ramos torcidos, de folhagens
lívidas, de silêncios, enchia-me de um terror profundo e trivial.
A luz dissipada e transfiguradora do ocaso dava aos troncos um estranho aspecto
de lutadores, vindos do sangue e dos incêndios: os sinos distantes eram
como vozes indefinidas de miséria e de dor.

Passava um vento incessante e perseguidor. Os mochos voavam, e as aguas
sonoras eram como vozes vingativas e trágicas. A Lua entorpecida passava
por detrás da estacada de ramos. O vento era rouco e lento como um
canto católico de ofícios. E o grasnar lento e arrastado dos
corvos parecia uma ladainha bárbara de padres. As árvores doentias
rangiam ao vento hibernal, o ar estava diáfano, lácteo e mortuário.
As estrelas que apareciam tinham o olhar lancinante.

Cheguei à estalagem. Em baixo na lareira um magro fogo lambia as
fuligens. A luz do meu quarto tinha a lividez dos círios, e o espelho
tinha reflexos pálidos, como de sombras mitológicas que passassem.
Ouviam-se os lobos.

Lembravam-me então as outras noites, claras, doces, lentas, em que
o céu derrama sonolências; então também eu ia por
entre as árvores e ouvia ondas sonoras de cantigas, que o vento fazia
retinir através da bruma, entre o acre cheiro das eflorescências.

Aquelas vozes claras eram doces, santas, saídas de cristais, como
veladas por um luar.

Eram como claridades sonoras de estrelas. Era uma multidão de formas
divinas que assim cantavam, divindades feéricas, willis, nixes, peris,
fadas, que passavam ligeiras sem despertar os ramos adormecidos. Aquelas nudezas
celestes, filhas do fogo, flores do mal, ondas do ar, entrelaçavam-se,
dançando nas obscuridades, que as cintilações estelares
franjavam de palidezas. No meio dos nevoeiros humanos elas faziam resplandecer
diante dos olhos as visões paradisíacas, as criaturas siderais
de lânguidos misticismos. Elas iam naqueles enlaçamentos, brancas
e louras, cheias de lirismo, com os pés vermelhos e magoados de terem
pisado auroras, iam, pousando nos jacintos, nos mirtos, nas rosas bárbaras
cheias de sangue radioso, iam rolando sobre a brancura soluçante dos
lírios e a sua voz triste subia por entre o azul lácteo para
a Lua chorosa.

Quando assim estava no quarto da estalagem, inerte como uma múmia,
pensando nestas coisas, vi repentinamente através das vidraças
a Lua aparecer-me.

Mas não era aquela pura e imaculada Lua cor de opala que
derrama brancuras, como se através do azul caíssem lírios.
Era uma Lua metálica, fria, hostil, material como uma moeda de ouro
nova.

Ela aparecia-me mortuária e lívida como uma sombra finada,
que se ergue às grades de um adro. E o seu olhar, lancinante e rápido,
estava cheio das minhas agonias..

Ora nessa estalagem encontrei um amigo, antigo camarada, que se tinha feito
saltimbanco.

Fez bem. Cansado dos pedantes, dos burgueses, dos ventres mercantis, dos
imbecis afogados em gordura, fez-se saltimbanco e vive entre os palhaços.
Faz farsas coberto de farrapos luzentes, engole espadas, dança farto
de vinho como um Sileno.

Dorme numa capa esfarrapada, com a nuca sobre um tambor, à frescura
das estrelas e sob a bondade dos luares.

Às vezes tem frio e fome e gela nuns calções feitos
de veludilho e de galões de ouro. Anda errante de vila em vila e a
populaça da lama admira-o cingido do seu diadema de metal luzente.
Dança sobre a corda, e os seus gestos e as suas musculaturas fazem
soluçar de desejos as gitanas e as feiticeiras. Que lhe importam as
grandezas e as materialidades felizes? Ele tem a multidão extática
e enlevada nos giros dos seus sapatos, e tem uma bem-amada de tranças
tão compridas como os ramos de um chorão e aneladas e fortes
como negros penachos de voluptuosidade, e a sua testa tem um reflexo de luar,
de mármore e de espelho: e tem um belo seio de formas bárbaras.

Ele pula à noite, no circo aluminado, enquanto as toutinegras cantam
nos canaviais. Ele faz girar vinte punhais de cobre em volta da cabeça
num circulo puro e sonoro. E a multidão, um dia, vendo aquele diadema
terrível e faiscante, e o saltibanco impassível, grave, enfarinhado
sob aquela coroa de luz, tomá-lo-á por um ídolo e fá-lo-á
igual aos deuses! Ele, o meu saltimbaco. tem a alma de ouro e o coração
de diamante e ri-se, ri-se, quando o vento soa como flauta do Inverno,
e ao concerto das corujas e das ondas as estrelas dançam.

A miséria anda-lhe cavando a sepultura. Um dia, abandonado da bem-amada,
morrerá sem pão, sem luz, sem calor. sem orações
e sem sol. E não sofrerá mais. Viu durante a vida todo um povo
curvado, aplaudindo, debaixo dos seus borzeguins. Os tambores e os clarinetes
tocarão o dia melhor do saltimbanco, o dia em que morrer: tocarão
o seu melhor dia os ferrinhos, os timbales, os clarinetes e os tambores! Todas
estas coisas se parecem com sonhos. Mas o que é o sonho? O que são
as visões? São as atitudes, fantásticas e desmanchadas,
que a sombra dá às verdades. Já pensava assim o poeta
Li Tai-Pé. que escrevia sobre as coisas santas da China, entre porcelanas
e lacas, ao sopro dos nenúfares. vestido de sedas amarelas, perfumado
de charão doce. contemplativo, branco diante de um vaso de
margaridas!.

O MILHAFRE Meus amigos. A literatura em Portugal está a agonizar:
morre burguesmente e insipidamente: nem ao menos tem os efeitos de luz extravagantes
de todos os ocasos celestes.

É uma doidice o querer pensar, criar e criticar, nesta terra onde
nascem as laranjeiras, como diz a cantiga de Mignon. Se ainda houvessem cabelos,
seria muito preferível ser fabricante de caixinhas de banha.

Seria mesmo talvez melhor a profissão de poeta lírico, se
não fosse uma profissão perigosa.

Ainda há pouco, um pediu em casamento não sei que doce açucena,
moradora na Baixa; o pai dela interrompeu a história dos idílios
sacrossantos e municipais para perguntar ao namorado gentil qual era a sua
profissão. «Sou poeta lírico, respondeu ele, e vivo do
meu estado.» O velho ergueu-se de golpe, tomou uma bengala e espancou
o poeta lírico, laureado em três cançonetas exóticas.

Todavia, é com verdadeira alegria que me acho neste canto que a política
me deixa. Faço deste canto de boa vontade o lugar de espectáculo
para assistir às últimas agonias do pensamento em Portugal.
Trata-se de cair bem, meus amigos, como os antigos gladiadores: «Oh
egoísmo mundano, os que vão morrer saúdam-te!»
E depois, meus caros amigos, eu acho admirável a sociedade moderna,
a sua política perfeita, a sua indústria magnífica, a
sua agiotagem providencial, o seu luxo simpático, a sua retórica
florida, a sua arte económica, os seus sonhos de oiro, mas persisto
em invejar aqueles que como o antigo Daniel podem contemplar as estrelas,
enquanto os bichos sociais se devoram na sombra.

Seja-me permitida uma pequenina fábula.

Um dia um homem entrou numa casa arruinada. No portal havia um nicho com
um santo de pedra, que lia uma Bíblia, também de pedra, Em redor,
na beira dos telhados, nas fendas das pedras, no canto do nicho, havia ervas
molhadas e verdes, e ninhos de andorinhas. O santo tinha sempre as suas pálpebras
de pedra descidas sobre o livro sagrado, Passavam as cavalgadas, os enterros
silenciosos, os noivados, os cortejos, a pompa dos regimentos, e o santo lia
atentamente o seu livro de pedra.

Vinham defronte dançar saltimbancos, passavam as frescas serenatas,
vinham dos montes rebanhos e ceifeiras; o santo tinha os seus olhos de pedra
sobre as páginas inertes. As devotas, lentas e desfalecidas, beijavam-lhe
os pés nus, os homens severos saudavam-no, as crianças olhavam-no
com os seus grandes olhos inanimados, os cães ladravam-lhe à
calva: o santo, curvado, seguia o espírito de Deus por entre as letras
do livro.

Passavam os fardos, os mercadores crestados pela indústria, os poetas
lânguidos que desfalecem nas cançonetas, os histriões
que cantam nos tablados, mulheres mais preciosas que o âmbar, os sábios,
os mendigos, as virtuosas e as melodramáticas: e o santo lia
o seu livro profético.

Ora as torres gloriosas, as bandeiras, os ciprestes ais de folhagem
os homens, perguntavam entre si: «Que lê tão
atentamente aquele santo, que nem sequer nos olha?» E os enxurros, que
passam rosnando, diziam: «Que lê tão devotamente
aquele santo, que nem sequer nos escuta?» Ora o santo lia assim. De
noite, quando as bandeiras caem de sono, quando os homens estão cheios
de comida e de inércia a Lua, que ao nascer é material
e metálica como uma moeda de ouro nova, depois, na suavidade do azul,
é tão pura, tão imaculada,. tão consoladora, como
uma chaga de Cristo por onde se lhe visse a alma. A essas horas, uma criança,
tão pobre e tão esfarrapada como o antigo pastor S. João,
vinha deitar-se junto do nicho do santo. E então, o santo afastava
um pouco o livro, e toda a noite ficava cobrindo, com a grande luz dos seus
olhos, aquela criança miserável, adormecida sobre as lajes.

Depois os planetas, a Lua, a noite seguiam a sua viagem imensa para o oeste,
e a leste começava uma claridade: eram as hesitações
da luz do dia, medrosa por ter de descer às misérias dos homens.

As bandeiras ainda estavam desfalecidas, sonhavam as árvores, a cidade
dormia como outrora Sodoma. Acordavam então as. andorinhas. Esvoaçavam
gloriosas, gritando, e vinham sofregamente, em tumulto, pousar no nicho.

As andorinhas estavam nas intimidades e nas confidências do santo.

Ora o vento, que passava pelos campos e pelas eiras, vem cheio de grãos
e de sementes: a chuva cai lúcida e fresca. O santo aparava a chuva
nas pregas da capa, e os grãos nas páginas do livro. E as andorinhas,
quando vinham para o nicho, bebiam na capa do santo e comiam sobre a Bíblia
de Deus. E, enquanto comiam e bebiam, gritavam, batiam com as asas nas barbas
do santo, beijavam-se na sua boca, aninhavam-se-lhe entre os braços,
cobriam-no todo; e o sol, quando chegava, ficava maravilhado de ver aquele
pobre santo de pedra, que ele não conhecia do Paraíso, com os
pés entre as ervas verdes, rindo, sereno, sob a luz imensa, e todo
vestido de asas! O homem entrou na casa arruinada e foi, através de
pedras esverdeadas, de grandes humidades que escorriam, de madeiros apodrecidos,
de muralhas leprosas de musgo, de escadarias miseráveis, até
uma sala enorme, escura e trágica, e tão alta, que involuntariamente
o olhar procurava as constelações naquela sombra.

No fundo da sala havia um grande crucifixo de madeira. Sobre a cabeça
macerada do Cristo, as traves podres do tecto abriam uma larga fenda. Por
ali vinha a chuva escorrer-lhe nos cabelos como o antigo suor do Jardim das
Oliveiras, vinham os granizos magoá-lo como as pedras da paixão,
vinha o Sol alumiá-lo como a tocha de Judas, e a Lua vinha, também,
torná-lo mais lívido, como naquela noite em que ele, depois
de ter visto a gente soluçante descer para Jerusalém, sentiu
pousar na sua cruz um rouxinol, que toda a noite cantou.

Sobre a cabeça e sobre os braços do Cristo, havia teias de
aranha; em baixo os ratos roíamlhe a cruz.

Então o homem sentiu que aquele seio constelado, e aquela boca donde
saiu a revelação do amor, do perdão, e da alma, tinham
o pó, a podridão, a caliça e os bichos; e que, se um
dia Cristo, vendo o homem aflito e miserável, lhe tinha arrancado da
alma o mal, não era muito que o homem, encontrando Cristo abandonado,
profanado e roído, lhe limpasse da cabeça as aranhas. Mas, quando
ia a limpar a imagem, viu, sobre a cruz, junto da mão pregada, um milhafre
enorme. O homem, com as mãos, quis arredar o milhafre.

E a ave, então, com a antiga voz dos animais da Bíblia, do
Apocalipse e dos livros dos profetas, disse surdamente: «Homem, deixa
a cruz sossegada!» Através das fendas viam-se os astros sagrados.
E o milhafre, batendo as asas, dizia: «Deixa a cruz, deixa! Não
tenhas medo que apodreça. Lá em cima luzem agora estrelas, sóis,
planetas, cintilações, carbúnculos. É o pó
dos Deuses mortos. Todos se finaram, histriões ensanguentados, e a
sua farsa acabou em desterros.

«Morreram velhos, expulsos, esfomeados e nus..

«Este ficou, solitário, alumiando. Ele perdoou enquanto os
outros lutaram, ele amou enquanto os outros choraram: por isso fica enquanto
os outros passam. Deixa.

Esta cruz, que é de madeira, vale tanto como as que lá em
cima fazem os raios dos astros, ou no silêncio dos mirtos dois olhares
bem-amados.

«Deixa as aranhas, o pó, a caliça, os bichos, a neve,
a geada, o apodrecimento. Ele pode bem dar às aranhas o seu corpo de
madeira, pois que vos deu a vós o seu corpo de carne a vós,
que pregais com o mesmo riso e o mesmo esquecimento os morcegos no alto das
janelas e o Cristo no alto dos montes; a vós, que lhe vindes limpar
os cabelos de madeira, depois de lhe ter arrancado os cabelos vivos; a vós,
que quereis lavar as nódoas que ele tem no peito, e não vedes
as imundícies que tendes na alma. Tudo o que ele criou, o amor, o ideal,
o perdão, a fé, o pudor, a religião, Deus, todo aquele
evangelho da vida nova anda pelo mundo, tão degradado, tão coberto
de bichos, tão imundo como o seio desta imagem antiga. A matéria,
o impudor, o apetite rude, o ódio, o aviltamento, o tráfico,
a miséria e a penalidade, andam sujando a tua alma, ó homem!
como as aranhas andam sujando a cabeça deste Cristo! E não reparais,
e não vedes, sobre os espíritos, sobre os corações,
sobre as consciências, o pó, a caliça, o caruncho, os
ratos e os vermes! «Sim, é verdade: tudo é magnífico
e são, e banhado de sol. As cidades são cheias e caiadas, só
as consciências é que têm nódoas; as praças
estão limpas de iluminações, só os corações
é que estão escuros; os cais estão arejados, só
os espíritos é que sufocam; os corpos estão sãos,
cobertos de estofos, frescos e resplandecentes, só as almas é
que andam nuas, miseráveis e leprosas. De resto, tendes o riso, a farsa,
os paraísos artificiais, as arcas venais, e também o esfriamento
do túmulo! Oh! amigos íntimos dos vermes, como vós cuidais
do corpo, e o lavais, e o amaciais, e o engordais para a pastagem
escura das covas! «Homem, que fizeste tu da alma? Ao princípio
não era conhecida, depois foi vendida, depois foi apupada; tu, modernamente,
julgaste melhor matá-la mas não certamente de cansaço
com viagens a Deus! Deste-la a despedaçar à negra matilha do
mal. Em compensação, guardaste o corpo: para esse uma religião,
um asilo forte como o Sol, os sete selos da lei e a escolta dos regimentos.
Esse é o sagrado, o imaculado, o pontifical, o vitorioso. Proibição
a Deus de lhe tocar. Para ele palácios, cortejos, serralhos, estofos,
pedrarias, o sol e a iluminação dos astros. Para ele a inviolabilidade:
Não matarás! «Começaram então as cruzes
a ficar desertas, os cepos a encher-se de musgo, as forcas a apodrecer nos
caminhos. Nós, os milhafres, e os nossos camaradas, os abutres, para
quem já não havia corpos nos despenhadeiros, ladrões
arroxeados pela corda, afogados disformes, deixámos os grandes montes
e os rios, as vastas tradições do sangue, e viemos, para viver,
aceitar, com os capões, a domesticidade nos parques resplandecentes,
ou andámo-nos mostrando aos imbecis, pelas feiras, numa gaiola! E as
aves da noite, depois de terem visto a natureza imensa, as aflições
do vento, as núpcias do mar, de terem lutado nas tempestades e insultado
as estrelas, vêm, modestamente, comer bichinhos no saguão dos
burgueses! Eu, que tinha estado entre a força, quis, ao menos, ficar
entre a graça; e, depois de ter vivido na noite de Deus, quis, ao menos,
morrer na madrugada de Jesus! E, entretanto, a alma morre esmagada e solitária,
e a grande vida moderna, a vida do sol, da música, dos metais, vai,
entre fulgurações, pisando e cuspindo naquela coisa miserável.
E ainda está quente o sangue de Jesus! «Homem, que fizeste tu
do pensamento? «Anda expulso, perseguido e sublime, como um Deus antigo.
Cravaste-lhe no seio as sete dores. Coube-lhe a dor e o escárnio. É
necessário que, nas cidades, os pensadores e os artistas extáticos
sofram e sangrem: os triunfos dos homens da matéria são como
os. dos antigos imperadores só são completos, quando
passam entre torturas. E quem havia de soluçar sobre a cena moderna
da paixão, senão os que têm alma? «Amam, sufocam,
caem, agonizam, e, entretanto, vai passando a coorte dos vitoriosos e dos
reluzentes, e as suas bolsas riem-se daqueles corações, como
os botões de ouro das suas camisas apupam a luz dos astros.

«E os que quiserem viver e tiverem a alma grande, bela e heróica,
têm de se baixar à estatura burguesa e mercantil dos cérebros
modernos. Os deuses olímpicos, se não se deixassem ajuizadamente
finar nas florestas antigas, teriam de se empregar nas secretarias. O soberbo
pavão de Juno viveria num pomar dos arrabaldes. Homero seria localista.
Os cavaleiros andantes roubariam lenços nos ajuntamentos, e o trágico
São Jerónimo seria presidente duma junta de paróquia.
Deste modo tu aceitas a arte, o pensamento, a alma. Não, arte, não
te vás; a vida moderna dar-te-á uma libré resplandecente;
vem, música, tu que criaste a Alemanha, far-me-ás uma contradança;
vem, arquitectura, tu que deste hospitalidade a Deus, far-me-ás uma
estufa; vem, escultura, tu que fizeste o povo dos deuses, o bela escultura!
vem fazer-me um gavetão.

Oh! tristes domesticidades do ideal!» Houve um silêncio. Havia
na sala um ar místico, como para concepção dum deus.

O milhafre esvoaçava. Ouvia-se o chorar duma flauta. E o olhar do
Cristo errava, contemplativo e atento, entre as estrelas inumeráveis,
enquanto na escuridão, aos seus pés, os ratos lhe roíam
a cruz.

«Vai-te, disse o milhafre. Os ratos roem a cruz, eu estou velho: a
antiga geração das aves da noite vai-se. Os pregos já
se despregam, a cruz apodrece. E quando ela se desfizer, atirarei o seu pó
à grande natureza, ao elevar da Lua, que vale o elevar da hóstia.
Irei, oh meu Deus! para além dos sóis e dos caminhos lácteos,
onde as constelações são gotas de sombra, certo
eu que sou da vasta terra, o selvagem dos prados, a respiração
dos antros, eu que sou a palpitação dos montes certo
de que, se os homens não deram a cruz aos Cristos, não lha dará
também a natureza. E eu, que roí as ossadas verdes, tendo visto
sempre Este que fez o bem, que amou, que perdoou, pregado numa cruz, irei
também, entre os sóis meio doidos, eu, que devastei, e matei,
e escorri de sangue, crucificar-me num astro!» Assim falou, lentamente,
aquele milhafre filosófico e letrado, enquanto as violas gemiam, e
os pobres tremiam de frio; assim falava, de cima duma cruz, numa sala legendária,
longe das maravilhas dos Cains burgueses, nestes tempos livres, sensatos,
verdadeiros, magníficos, em que, como se não podem pôr
certas verdades na boca dos homens, têm de se dependurar do bico dos
milhafres..

LISBOA Et nunc et semper (Divisa dos príncipes de Este) As geografias
antigas, dizem: «Lisboa, cidade antiga rica e forte: ali o ar é
melhor que em qualquer sítio da Espanha. Está sobre sete montanhas
à beira do Tejo. Long.

9., lat. 38..» O ar é na verdade bom. Lisboa tem ainda meiguices
primitivas de luz e de frescura: apesar dos asfaltos, das fábricas,
dos gasómetros, dos cais, dos alcatrões, ainda aqui as primaveras
escutam os versos que o vento faz: sobre os seus telhados ainda se beijam
as pombas: ainda no silêncio, o ar escorre pelas cantarias, como o sangue
ideal da melancolia. E Deus ainda não é um poeta impopular.

Lisboa que faz? Antigamente a cidade, urbs, era o lugar que pensava e que
falava, que tinha o verbo e a luz.

Roma criou a justiça, Atenas idealizou a carne, Jerusalém
crucificou a alma. Por isso Roma caiu, e os porcos enlameiam os restos de
Atenas, e os cães uivam no silêncio de Jerusalém.

Os seus olhos olharam muito para a verdade e cegaram: os seus ouvidos escutaram
muito o pensamento e ensurdeceram: as suas mãos esculpiram muito o
ideal e tolheram-se.

Pensar é sofrer; alumiar é lutar. A noite, ao sucumbir, luta
com a madrugada, e deixa-lhe a chaga incurável do Sol: dela escorre
a luz. As superstições, os preconceitos, os erros, os prejuízos,
as fatalidades, lutam com a alma e deixam-lhe a ferida insanável do
ideal: dela escorre a verdade. Esta ferida dá a febre, o cansaço,
o desespero, a convulsão. Paris tem esta antiga e trágica ferida
que teve Atenas, Babilónia e Jerusalém.

Sofre porque pensa. Os pés têm a intimidade da lama, as asas
têm a camaradagem da luz.

Todo o pé quer ser asa.

Daí ambições, desalentos, lutas obscuras, perdições,
descrenças. fulgurações do mal, impurezas, traições,
invejas, injúrias, torturas a congestão do espírito!
São estas as dores imensas, as nódoas do pensamento, as manchas
do Sol.

Lisboa não tem estes defeitos da luz: é serena, imperturbável,
silenciosa. Quer a sua inviolabilidade, evita as feridas terríveis.
Tem a sensatez, a prudência, a economia, o medo.

Não quer alumiar, para não lutar, não quer pensar,
para não sofrer. Não quer criar, pensar, apostolar, criticar.
Escuta e aplaude toda a voz, ou sejam as imprecações sagradas
de Danton, ou os versos do poeta Nero. As ondas que solucem, as florestas
que se lamentem, ela tem o riso radioso e sereno.

Sente-se abundante, gorda, coberta de luz. Sente-se protegida, livre, caiada
e fresca; não tem de catar as suas misérias, nem de amparar
o pau das forcas, por isso comenta Sancho Pança.

Não tem de construir a catedral de ideias, nem de compor a sinfonia
da alma, por isso escuta os melros nas várzeas e reza as ave-marias.
Paris, Londres, Nova Iorque, Berlim, suam e trabalham, em espírito.
Ela não tem que semear: por isso, ressona ao Sol.

Às vezes, porém, comete o mal, enterrando ideias. Aonde? Na
escuridão, no silêncio, no desprezo. Lisboa é um pouco
coveiro de almas! Como Roma, ela tem as sete colinas, como Atenas, tem um
céu tão transparente que poderia viver nela o povo dos deuses.
Como Tiro, é aventureira do mar. Como Jerusalém, crucifica os
que lhe querem dar uma alma. Todavia Lisboa o que faz? Come..

Come, ao cair da tarde, sem testemunhas impiedosas, quando sabe que os astros
vêm longe, que as asas sonham com o vento, que os olhos das flores se
fecham de sono.

Deus não vê da sua varanda de sol, e então, para esta
velha cidade, heróica e legendária, que nos seus velhos dias
tomou o pecado da gula, o abdómen é uma realidade livre! Até
ali, durante o dia, os seus cabelos caíam como ramos de salgueiros,
as suas faces estavam amortalhadas, dos seus olhos chovia dor; ainda não
tinha comido! Depois, à noite, quando sai do alimento como de uma vitória,
os olhares são gritos de luz, os cabelos plumas gloriosas, o peito
arca de ideias; comeu! Lisboa nem cria, nem inicia; vai.

Em religião nem tem a devoção dos monges, nem a impiedade
irónica: é simples: antigamente fazia ir um Cristo crucificado,
erguendo os braços suplicantes, no préstito dos enforcados:
hoje choraria pela Mãe Dolorosa, depois de ter erguido uma estátua
a Voltaire: dependuraria ao pescoço singelamente, com as contas de
um rosário, a sua antiga viola de Alfama.

Em política copia Sancho Pança.

Não tem a coragem que se dedica, nem o medo soluçante: parece
ter justamente o heroísmo de uma espada embainhada: na campanha da
Europa, todavia, com os seus uniformes negros, espantava a velha guarda: tem
a religião sensual do Sol, do calor e do sono: e verdade. No Beresina,
apupava as neves! Nem tem a febre das especulações e das indústrias,
nem o amor das contemplações e dos sonhos: tem um trabalho cheio
de sestas: em Abril suspende a enxada para ver voltar as andorinhas.

No vício é tímida: copia desjeitosamente as babilónias
distantes: aproveita o fogo de Sodoma para aquecer os pés; apara as
unhas ao Diabo; é o banho tépido dos pecados mortais.

Adoradora, em arquitectura, da linha recta dos palácios de cristal,
sectária, em escultura, dos biscuits de Sèvres, namorada, em
poesia, do visconde d’Arlincourt, no teatro quer a mágica: tem
sede e fome daquele ideal: quer as montanhas transparentes, os palácios
de missanga, nudezas celestes, noivas de coral, arquitecturas de luz e de
sons, papéis colados, vermelhão e ourelo, mulheres despidas,
pedraria, e ouro, ouro, ouro, e ainda ouro, e mulheres despidas, e mais ouro!
Lisboa quer sobre uma cena resplandecente ver as formas estranhas que toma
o sonho de imbecilidade: quer a mágica: em verdade, a mágica
é o espectro solar do idiotismo! Vem a noite. Lisboa toma a impassibilidade
das penedias.

As casas sem luz têm o aspecto calmo e sinistro dos rostos idiotas.
A iluminação é um coro de gás, bocejando. Das
encruzilhadas das ruas solitárias, de todo este deserto de cantarias
e de vidraças, exala-se uma sonolência fluida, um hálito
de tédio. Lisboa de noite é tão silenciosa que quase
se sente o crescer da erva que a há-de cobrir no dia das ruínas.

É tão triste que a noite parece um arrependimento da vida!
Nas belas moradas, nos casebres, nas trapeiras, em cambraia, em farrapos,
em palhas, por toda a parte, há um vasto sono inerte e vegetal.

Que fazem entretanto os errantes da noite, a família Vicio, a gente
crepuscular, os herdeiros terríveis de Lovelace e de D. Juan Tenório?
Compram na penumbra doméstica o amor fuliginoso das cozinheiras, comem
melancolicamente mexilhões nas tabernas; os mais pobres encostam-se
às esquinas esfarrapados, e doentes, cariátides sonolentas do
tédio!.

E nas casas? Ai, nos andares resplandecentes, onde as mãos são
macias e macios os sentimentos, estão, concentradas e sérias,
formas vestidas de luto, como os viúvos, ou vestidas de branco, como
as monjas. E suaves são as falas e o andar cheio de ondulações,
como o nadar das sereias, e as danças severas como a celebração
de um rito: e suaves são as pétalas, e as músicas chorosas
e as luzes, aves de claridade presas, que palpitam e querem o livre azul:
mas sobre a alma e os cornos, e os adornos, derrama-se a tristeza dos viúvos
e a frialdade das monjas. E isto são as festas! Mas acima, nos andares
modestos, ressonam aquelas famílias, vulgares e ásperas, que
nascem com a alma cheia de frio, que vivem entre a beleza, a graça,
a paixão, como insectos entre os cabelos de uma santa, e morrem solitárias,
invejosas, com os corações cheios de revolta porque não
amaram, com os pés cheios de musgo porque não caminharam! Depois,
mais em cima, nos últimos andares, é a gente do trabalho: operários
severos, doces raparigas com alma de pássaro, gargantas onde, como
nas veigas de Israel, todo o dia se canta, e também a gente estúpida
e metálica que tem a brutalidade do trabalho, com a rudeza do coração,
índoles ásperas, olhos invejosos, mãos avaras, peitos
vazios, que a essas horas da noite, com os cabelos caídos, vêem
a vida tão nua, tão apertada.

tão brutal, tão suja como a sua trapeira! E depois mais acima,
debaixo dos telhados, os mendigos, os esfomeados, os miseráveis, a
essas horas com grandes olhos aterrados, se catam, ou moem as côdeas,
ou gemem de dor, ou morrem entre a caliça e as aranhas, ou se remendam,
cantando impuramente! E por cima como na jerarquia da dor, das tristezas do
pobre, só estão as chagas de Cristo, o grande azul, sereno,
transparente, cheio de universos, esconde por detrás da gradaria dos
astros o Mistério e a Graça! A essas horas, ó miséria
das cidades!, longe dos conservatórios e das academias e das mágicas,
pelos prados e pelas várzeas representam-se as verdes comédias
da Natureza: os rouxinóis dão a réplica às veigas
melodiosas, as fontes choram pelas desgraças de um melro amoroso, os
olmos têm atitudes grotescas de palhaços, e o céu, como
amante trágico, criva-se de punhaladas de luz! Em Lisboa a vida é
lenta. Tem as raras palpitações de um peito desmaiado. Não
há ambições explosivas; não há ruas 40
resplandecentes cheias de tropéis de cavalgadas, de tempestades de
ouro, de veludos lascivos: não há amores melodramáticos:
não há as luminosas eflorescências das almas namoradas
da arte: não há as festas feéricas, e as convulsões
dos cérebros industriais.

Há escassez da vida; um frio senso prático. A preocupação
exclusiva do útil. Uma seriedade enfática. E a adoração
burguesa e serena da moeda de cinco tostões da moeda de cinco
tostões, branca. perfeita, celeste, pura, imaculada, consoladora, purificadora!
O luxo dos vestuários é reflectido. E pausado! E calculado!
Um outro luxo há, mais doido: esse, quando é novo muge, resplandece,
deixa-se balançar em grandes pregas desfalecidas um pouco baixamente,
de camaradagem com a lama: mais tarde, depois das ostentações
e dos amores, envergonha-se e vai-se mascarar às tinturarias: nos seus
velhos dias anda, miserável, pedindo esmola, por casa das adelas! A
Lisboa material tem feições morais. Há sítios
que dão, aos que os pisam, uma 40 No texto da Gazeta de Portugal, «ruínas»..
individualidade. O lajedo e a cantaria consagram espíritos. Encostar-se
no Chiado! isto significa ter a fina flor da graça, a vivacidade
conceituosa e costumes despedaçados.

Estar no Martinho revela inspiração, divindade interior,
lirismo e política crítica. Ó Lisboa, tu não tens
caracteres, tens esquinas! Lisboa tem compaixões celestes: agrupa-se
em coro de lágrimas para ver a morte de um cão: mas afasta-se
logo, assobiando, se começa a agonia de uma alma. Tem também
uma curiosidade tímida e fácil: senta-se nos passeios, pelo
Estio, entre o pó, olimpicamente, como os deuses entre a luz, e fica
atenta, concentrada, suspensa, idiota a ver caminhar seis mil pernas!
Um dia Paris aborreceu-se e expulsou os reis, outro dia aborreceu-se e acolheu
os imperadores. As vezes Lisboa aborrece-se e entra na política
como homens que entram no banho são pisados pela maresia, são
feridos pelas areias, esfriados pela neblina e vêm, contentes e transidos,
enxugar-se ao sol! Lisboa toma atitudes, clama, conjura nas esquinas, e bondosamente
afastada pela policia, e vem, toda gloriosa e feliz pelas tiranias derrubadas,
reler a cartilha!

Uma das maiores alegrias de Lisboa é sujar-se! Nos tempos mitológicos,
às vezes, uma deusa fazia-se mulher, esposa e mãe, fiava na
roca de ébano incrustada de lápis e dobrava as lãs vermelhas
de Mileto. Vinha porém um dia no ano em que a mulher ia no Olimpo ser
deusa. Deixava esposo, filhos, lares, parentes; debalde lhe pediam que não
fosse, temendo que ela, mulher e deusa, não se acostumasse na volta
às lâmpadas de gineceu, ela que ia ser alumiada pelos astros
do Olimpo. Debalde: chegado o momento, nada impedia a esposa de ser divindade:
via-se aquele

corpo casto, argila ideal, azular-se e, transparência viva, perder-se
na luz.

Lisboa é assim. Vem um dia em que ela quer voltar ao seu elemento
primitivo, e ninguém a pode impedir de ser lama: é o Entrudo.

Suja-se então livremente, faz tempestades nojentas, naqueles dias
o seu tédio é feito de prodígio e de imundície,
e é um sol dos escoadouros! Transfigura-se. E como a deusa deixava,
na Antiguidade, os filhos e os lares, para ir ser luz.

Lisboa esquece as funções do seu tédio, a religião
da moeda de ouro, o sacerdócio da economia, as atitudes enfáticas
do seu pudor, para se dar livremente à lama! Lisboa é a hospedaria
do vento. O antigo Euro paga a hospedagem atirando a poeira às ruas,
às praças, às avenidas, aos cais, à cara de Lisboa!
Sublime adulação: suja-a! Lisboa respeita a limpeza, mas adora
a lama. Colisão! Lisboa, cidade inspirada, corta magnificamente o embaraço,
lavando-se no lodo do Tejo! Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito,
Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa
que criou? O fado.

Fatum era um deus no Olimpo; nestes bairros é uma comédia.
Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros.
Está mobilada com uma enxerga. A cena final é no hospital e
na enxovia.

O pano de fundo é uma mortalha! Todos os dias, quando o Sol se vai
nas águas lavar dos olhares dos homens, quando os corpos estão
em flor, e passam os olhos pretos, de que Deus é avaro, e a malediciência
se abre como uma túlipa, e os risos são clarões, e a
vida se balouça cheia. de sonhos, de lustres de olhares, de beijos
cor de sol, de camélias e de pomadas, passam na rua umas carruagens
lentas, com grandes arabescos dourados: são coches; as suas armas são
caveiras; vão ali os mortos. Aqueles vão apodrecer e ser ossadas
verdes.

Morreu um homem pensa tristemente a alma.

Aaah diz tristemente o coro dos corpos, cobertos de pano,
de seda, de cassa, de burel, de farrapos, Morreu pensa a alma
, sofreu, comeu. digeriu, pobre corpo! Um corpo bem lavado, bem engordado,
bem macio! As saias verdes e curtas são bonitas diz
o coro: os pés pequenos, valem os grandes corações.

Logo a terra encherá aquela boca que teve risos e beijos,
e aquelas mãos que apertavam outras mãos esfriarão na
humidade.

Há olhos que são um mar, tudo têm: tempestades
e sal. Abençoados os que lá se afogam.

Os bichos da cova hão-de-lhe roer a cara; os olhos, aqueles
olhos cheios de luz que vestiram tantas vezes uma alma bem-amada, serão
comidos: ficarão dois buracos: ali aninham-se os bichos: é uma
multidão: donde caiam lágrimas para a ternura, nas horas luminosas,
hão-de escorregar umas formas viscosas, negras, que roem e incham
os vermes! Não são lindos os vestidos que modelam o
seio? Não são lindas as comédias em que os maridos velhos
morrem de ciúme? Não são lindos os cristais que às
luzes parecem flores do Paraíso? Daqui a um mês aquele
homem é uma ossada verde. Quando nasceu bateram-lhe.

O amor emagreceu-o, o vinho secou-o, os agiotas torturaram-no, agora os
bichos comem-no.

E eis ai um homem! Que vida! Doces são as violetas, os seios
são tépidos.

Oh!, goivos debruçai-vos. pombas dos cemitérios pousai.
estrelas descei, Sol alarga-te. erva espessa-te, vinde feitos pétalas
mortas; vem com o teu xaile, libertina; com a tua estola. padre; com a tua
bolsa, agiota; cobri-lhe a cova, cobri-lha bem, resguardai-o, agasalhai-o
porque faz bem frio, na cova, ao pé dos bichos! E entretanto
as carruagens, lentas, passam, com a sua caveira cor de ouro: «Anda
cocheiro: é um freguês que vai para a cova: a passo! Alto de
S. João! A Eternidade toma-te à hora!» E enquanto o pobre
morto vai, que dizem os que o viram partir, soluçando? Os filhos dizem:
«Tinha de ser…» A esposa diz: «Vestida de luto!…»
O agiota: «Não foi mau freguês.» Os médicos:
«É um caso interessante…» Os que o levam para a cova:
«Era pesado, o maroto!» O coveiro canta: O preto que vem d’Angola
Traz a bordo fava-rica.

Tu, pobre mulher chorosa, amaste aquele homem: vestiste-o com os teus cabelos,
alimentaste-o com o teu hálito, coroaste-o com o teu olhar, divinizaste-o
com o teu desejo; ele era formoso, e são, e forte, e apaixonado: mas
se passares por ao pé dele agora, ó pobre mulher chorosa, põe
bem a mão no nariz! Fica-te em paz, Lisboa! És Baixa e magnífica.
Os que te quiserem abençoar terão. de se curvar um pouco para
a lama: mas consola-te, se alguém te quiser amaldiçoar terá
de se aproximar bastante de Deus! Tu dorme, digere, ressona, soluça
e cachimba. E se algumas lágrimas em ti caírem, vai-as enxugar
depressa ao sol! Fica-te em paz! Os que têm alma não querem a
luz dos teus olhos; podes consumi-la a contemplar o céu e os universos;
por causa do teu olhar sempre erguido para lá, ninguém terá
ciúmes do céu! Os que têm coração não
querem as carícias das tuas mãos: podes emagrecê-las a
rezar a Jesus; por causa das tuas mãos sempre erguidas para ele, ninguém
terá ciúmes de Deus! Tu tens a beleza, a força, a luz,
a graça, a plástica, a água resplandecente. a linha magnífica.

resigna-te. ó Lisboa querida. o clara cidade bem-amada. ó
vasta graça silenciosa, resigna-te. o doce Lisboa, coroada de céu,
resigna-te a não ter alma!.

O SENHOR DIABO Conhecem o Diabo? Não serei eu quem lhes conte a vida
dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste,
grotesca e suave! O Diabo é a figura mais dramática da História
da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal.

Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que
ensanguentam o corpo. E todavia, em certos momentos da história, o
Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade,
a fecundidade, a força, a lei.

É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem
as fundas rebeliões da Natureza.

Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva,
e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No
século XVI é o maior zelador da colheita dos dizíamos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso
e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha: consulta Aristóteles
e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo, e Bruto que apunhalou
César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez a nostalgia
do Céu! Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lucifer, o que leva
a luz, revolta-se contra Jeová, e comanda uma grande batalha entre
as nuvens.

Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Job, tortura Sara e em
Babilónia é jogador, palhaço, difamador, libertino e
carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas
húmidas da Gália e embarca expedições olímpicas
nos navios do imperador Constlncio4 Cheio de medo diante dos olhos tristes
de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.

Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia
ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny,
espicaçava os olhos a S.

Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à
portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela
de Savonarola.

Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia
atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da
Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentado na relva, sobre a sela
do seu cavalo.

Intentava processos contra a Virgem: e era o pontífice da missa negra,
depois de ter inspirado os juizes de Sócrates. Nos seus velhos dias,
ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado
da guia.

E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento,
apupou-o.

Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos
e Voltaire criva-o de epigramas.

O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos, escreve
as suas memórias, e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos
seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então
Ceranger escreve-lhe o epitáfio.

Como está provado que eu sou redondamente inapto para escrever Revistas,
dizer finamente das Modas, e falar da literatura contemporânea herdeira
honesta do defunto sr. Prudhomme, é justo, ao menos, que de vez em
quando conte uma história amorosa, uma daquelas histórias femininas
e macias, que nos serões de Trieste faziam adormecer nas suas cadeiras
douradas as senhoras arquiduquesas de Áustria..

O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas.
Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite,
S. Tomás revelou o seu destino.

Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância
jovial. Jogo Dique escreveu sobre a sua eloquência e Jacques I de Inglaterra
fez a corografia dos seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua
tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas.

O seu sepulcro é a Natureza.

O Diabo amou muito.

Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi
querido, na Antiguidade, da mãe de César, e na Meia Idade foi
amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador.
Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações.
Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza.

Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha.

Feminae in illius amore delectantur, diz tragicamente o abade César
de Helenbach. No século XII, tentava com olhares cheios de sol as mies
melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia grande miséria
sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos
highlanders e pagava-lhes com o dinheiro falso que fabricava em companhia
de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do
rei João, de Luís XI, de Henrique II, com o mesmo cobre de que
se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos.

Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo,
nas terras do Norte.

Ó mulheres! vós todas que tendes dentro do peito o mal que
nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as
rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir esta história
florida! Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto.

A casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do
senhor arcebispo de Ulm.

Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras,
de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim.
As plantas limpavam piedosamente, com as suas mãos de folhas, o sangue
das chagas, as pombas, com o calor do seu colo, aqueciam os pés doloridos.
No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Heidelberg, os vinhos
de Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo, sonolento
e mau.

E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre
o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre
pulava um desejo.

E todo o dia fiava.

Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso
e tímido.

Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro.

Ela, sentada junto do crucifixo, cobria os pés de Jesus com os seus
grandes cabelos louros.

As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra a cabeça
da imagem.

Parecia que toda a alma de Cristo ali estava consolando, em cima,
sob forma de planta, amando, em baixo, sob forma de mulher.

Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar
procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela,
séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado.

Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros de luz,
contar o que tinham visto: era um encanto!.

Se tu soubesses! dizia um olhar. A alma dela é
imaculada.

Se tu visses! dizia o outro. O coração
dele é sereno, forte. e vermelho.

É consolador, aquele peito onde há estrelas!…

É purificador, aquele seio onde há bênçãos!
E olhavam ambos, silenciosos, extáticos, perfeitos. E a cidade vivia,
as árvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa de
caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas, os santos
liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas, as amendoeiras
tinham flor, e o Reno cantigas de ceifeiras.

E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava as
almas.

Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos, o
ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou dos
reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua estriga.
Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos.

Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra de Inspruck
que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta cantar: Os
teus olhos, bem-amada, São duas noites cerradas.

Mas os lábios são de luz Lá se cantam alvoradas.

Os teus selos, minha graça, São duas portas de cera, Fora
a minha boca um sol Como ele as derretera) Os teus lábios, flor de
carne, São portas do Paraíso: E o banquinho de S. Pedro É
no teu dente do siso.

Queria ter uma camisa De um tecido bem fiado, Feita de todos os ais Que
o teu peito já tem dado.

Quando nos formos casar Canta missa o rouxinol.

E o teu vestido de noiva Será tecido de sol! A bênção
nos deitará Algum antigo carvalho! E por enfeites de boda Teremos gotas
de orvalhos! E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez
de mármore.

Tinha os olhos negros como os dois sóis legendários do país
do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa ao
peito tio corpete uma flor vermelha de cacto..

Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas
que fizeram na Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente como
se ferisse os pés no lajedo.

Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos
saía um cheiro de ambrósia. A testa era triste e serena como
as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia
na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade
dos néctares olímpicos.

O homem da palidez de mármore veio até junto da varanda, e,
entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente: A
gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços
de homem vão, como dois peregrinos corados de sol, em doce romaria
de amor, das suas mãos ao seu colo? E olhando para Jusel, que desfolhava
uma margarida, cantou lentamente, com grandes risadas frias e metálicas:
Quem depena um rouxinol E rasga uma triste flor, Mostra que dentro do peito
Só tem farrapos de amor.

E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desoladores, como
blasfémias de luz. Maria tinha levado a sua roca e só havia
na varanda as. aves,, as. flores, e Jesus! A toutinegra voou
disse jovialmente.

E indo para Jusel: E que talvez sentisse a vizinhança do
abutre. Que diz o Bacharel? Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida.

No meu tempo, senhor Suspiro disse o homem dos olhos negros,
cruzando lentamente os braços já havia aqui duas espadas,
a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis
vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres.

Vejam isto! É um coração com gibão e gorra.
Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos
vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros
que dizem bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem os braços
fortes. Os lábios vermelhos de desejo gostam das armas vermelhas de
sangue. É minha a dama, senhor Bacharel! Jusel tinha descido as suas
grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas
da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu
peito.

O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rijamente a mão.

Bacharel Ternura disse há aqui perto um lugar
onde os goivos nascem expressamente para os inocentes que morrem. Se tens
alguns bens a deixar, recomendo-te este excelente Rabil. Era o pajem.
E necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde
que findou a guerra. Vou-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração
à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer,
bem embalsamado em lama, na ponta da espada! Tu és formoso, amado,
branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. E uma farsa bem feita
ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza!
Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos
adeuses. Enquanto aos sacramentos, são inúteis: eu me encarrego
de te purificar pelo fogo. Rabil, toca na guitarra o rondó de defuntos:
anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em
duelo secreto, armas honradas! E batendo heroicamente nos copos da espada:
Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força?.

Ali! respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda das plantas
e das pombas, alumiado pelo sol que descia, branco entre a folhagem, agonizante
entre as palpitações das asas.

Ah! disse cavamente o homem da flor de cacto. A
mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de laco e de
Marte? Eram os meus irmãos disse lentamente o pajem,
hirto como uma figura de pedra.

Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite! Cheira-me
aqui às terras de Jerusalém! E sumiram-se debaixo das arcarias
e das pilastras, sinistros, soluçando.

Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria
estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem.
Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado ao pilar, suspirava para
aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água, que sobe em
repuxo, suspira murmurosamente para o azul.

Maria disse suspiradamente: Vem.

Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem.
O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos
dobravam-se, um para o outro, como se estivessem aproximando os braços
de um Deus.

As folhagens escuras que envolviam o Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças
louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras
um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros
cativos e dizia, com a voz humilde dos corações primitivos:
Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho
receios infinitos.

És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou.
Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel: ouvia-se um coro que
cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança
nebulosa de espíritos. E diziam uns: «Aquele coro é de
mortos: são os amantes infelizes que choram no coração
daquela mulher.» Outros diziam: «São as tristezas dos minnesingers
errantes que ali soluçam.» Outros diziam: «Sim, aquele
coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali
do exílio.» E então eu adiantei-me e disse: «Sim,
sim, aquele coro é de mortos, são os desejos que ela teve por
mim, que se lembram e que gemem.» Que sonho tão mau, tão
mau! Porque estás tu dizia ela todos os dias
encostado ao pilar, com as mãos quase postas? Estou a ler as
cartas de luz que os teus olhos me escrevem.

Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite.

Quais são os meus olhos? quais são os teus olhos?
dizia Jusel. Nem eu sei! E ficaram calados. Ela sentia os
desejos que se desprendiam dos olhos dele, virem, como pássaros feridos
que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente.

E inclinando o corpo: Conheces meu pai? disse ela.

Não. Que importa? Ai, se tu soubesses!…

Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há-de gostar
deste meu amor, sempre aos teus pés como um cão. Es uma santa.
Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter
a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo.

Esta paixão. toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses
podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são
uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se
me não quisesses deixava-me andar esfarrapado. Por eu. entrar no teu
coração, não tires nada dela, não? Tens lá
a fé de Jesus, e a saudade de tua mãe: deixa estar: damo-nos
todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um
céu constelado. O que quero eu de ti? As tuas penas. Quando chorares
vem a mim. Farei a alma em farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu?
Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta,
que te prende o cabelo. Será a nossa estola.

E com a ponta da agulheta, de pé junto da imagem, afastando os ramos,
transfigurado e celeste, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois
nomes enlaçadas J. e M.

É o nosso noivado disse ele. O céu
atira-nos os astros, confeitos de luz.

Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés.
As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão,
lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este
segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas,
às plantas, aos pássaros, às florescências; porque,
vês tu? as flores, as constelações, a graça, as
pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência,
de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de
amor que eu te escrevia! E ajoelhados, extáticos, calados, eles sentiam
misturar-se ao seu coração, às suas confidências,
aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça.

E as suas almas falavam cheias de mistério.

Vês tu? dizia a alma dela. Quando te vejo,
parece que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração;
quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se
estende, abrange o céu e os universos, e encerra por toda a parte Deus!
O meu coração suspirava a alma dele
é uma concha. O teu amor é o mar.

Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida nesse mar. Mas se
tu me expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor
do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre
o sussurro do meu amor! Olha dizia a alma dela eu
sou como um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de
maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim
de paixão é relva para tu pisares! Sabes tu?
dizia a alma dele. No céu há uma floresta invisível
de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as
estrelas- Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te.
Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente,
se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo
vir descendo quando cairás tu nos meus braços?…

E a alma dela dizia: «Cala-te.» Não falavam.

E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam deslumbradas,
inefáveis, ternas; confundidas, tinham o céu por elemento, os
seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança
a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam
tudo o que do mundo sobe de justo, de perfeito, de casto, as orações,
os prantos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas
para Deus passar por cima! E então à porta da varanda
houve uma risada metálica. imensa e sonora. Eles ergueram-se resplandecentes,
puros, vestidos de graça. À porta estava o pai de Maria, hirto,
gordo, sinistro.

Atrás, o homem de palidez de mármore balançava vaidosamente
a pluma escarlate da gorra.

O pajem ria, fazendo uma claridade na sombra.

O pai foi lentamente para Jusel e disse, com escárnio: Onde
queres ser enforcado, vilão? Pai, pai! E Maria, aflita,
com uma convulsão de lágrimas, enlaçava o corpo do velho.
Não.

E meu marido, casámos as almas! Olhe, ali está. Veja. Ali,
na imagem!…

O quê?….

Ali, no peito; veja. Os nossos nomes enlaçados como numa
escritura. Veja. É meu marido.

Só me quer bem. Mas veja. Sobre o peito de Jesus, no lugar do coração.

Mesmo sobre o coração. E ele, o doce Jesus, deixou que lhe
fizessem mais esta ferida! O velho olhava as letras enlaçadas como
uns esponsais divinos que se, tinham refugiado no seio de Cristo.

Raspa, meu velho, que isso é marfim! gritou o homem
dos olhos negros.

O velho foi para a imagem com a faca do cinturão. Tremia. Ia arrancar
as raízes daquele amor, até ao peito imaculado de Jesus! E então
a imagem, sob o justo e incorruptível olhar da luz, despregou uma das
suas mãos feridas, e cobriu sobre o peito as letras desposadas.

E ele, Rabil! gritou o homem da flor de cacto.

O velho soluçava.

E então o homem pálido, que tocava na guitarra de Inspruck,
onde os pastores de Helyberg enroscam heras, veio tristemente junto da imagem,
enlaçou os braços dos namorados, como se vê nas velhas
estampas alemãs, e disse ao pai: Abençoa-os, velho!
E saiu, batendo rijamente nos copos da espada.

Mas quem é?… disse o velho apavorado.

Mais baixo! disse o pajem da ânfora de Mileto. E
o Senhor Diabo!… Mil desejos, meus noivos! Pelas horas da madrugada, na
estrada de Necker, onde as cerejeiras luzem, o homem dos grandes cabelos negros
dizia ao pajem branco como os Apolos de mármore: Estou velho.
Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas.

Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá
dentro, no peito, um rumor de perdão.

Gostava daquela rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo
do céu! Já não estou para aventuras de amor! A bela Impéria
diz que eu me vendi a Deus! A bela Impéria! disse o
pajem. As mulheres! vaidades, vaidades! As mulheres belas foram-se
com os deuses belos. Hoje os homens são místicos, frades, santos,
namorados, trovadores! As mulheres são feias, avaras, magras, burguesas,
vestidas de burel, finadas de cilícios, com uma pouca de alma incómoda,
e uma carne tão diáfana, que se vê através o lodo
primitivo! Misérias! Ai Atenas! Corinto! Mileto! Tenedos! Abidos!
Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo,
e de dor.

A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo
mundo e a aparecer muito a tinta. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo.
Se eu no fim da vida tinha de me entreter perdoando e consolando para
não morrer de tédio! Fica-te em paz, mundo! Sê infame,
lamacento, podre, vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu,
impostor! E todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não
viste? Aquele, para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos
antigos tempos, o homem não começa a gozar um bem, sem primeiro
rasgar a carne a um Deus! E esta a minha última aventura. Vou para
o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente a
morrer.

Também os diabos se vão! Adeus, Sati! Adeus,
Ganimedes! E o homem e o pajem separam-se na noite.

A poucos passos o homem encontrou um cruzeiro de pedra.

Estás também deserto disse, olhando para a
cruz.

Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que
eu! Sofreste calado.

E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada, afinou
a. guitarra e cantou no silêncio: Quem vos desfolhou estrelas, Dos arvoredos
da luz? E com uma grande risada melancólica: Chegará o Outono
ao Diabo? Virá o Inverno a Jesus?.

UMA CARTA A Carlos Mayer Meu caro Mayer: naqueles tempos, segundo a fórmula
do Evangelho, o romantismo estava nas nossas almas. Fazíamos devotamente
oração diante do busto de Shakespeare.

Lembras-te do teu quarto da Rua do Forno, creio eu, no último andar,
quase nas confidências humorísticas das estrelas? O busto de
Shakespeare, que era o nosso calvário da arte, estava ali, ao pé
de uma medalha do Dante, e da Inocência de Greuze! Lembra-me também
uma gravura do Juízo Final e dois esboços holandeses. Sobre
a estante, por cima de Voltaire, de Diderot, de Rousseau, de Mirabeau e de
alguns volumes da Enciclopénia num quadro, a figura de Napoleão,
sobre uns rochedos enfáticos via os prantos do mar e o voo das gaivotas.
Tinhas também uma colecção de minerais e duas caveiras
polidas e lavadas que riam serenamente. O meu quarto, no Salvador, era mais
austero. Na parede, estava pintada a carvão uma grande cruz. Em redor,
estavam escritos versículos da Bíblia e dísticos da Imitação.
Mas, como eu andasse nesse tempo constipado, P., um pagão, fez raspar
toda aquela decoração ascética, dizendo que o misticismo
proibia o sol, o calor, os bens tépidos, a dilatação
da molécula venturosa, a flanela e os melaços, coisas só
próprias de César, e que, assim, eu perpetuaria aquela doença
que era o ponto de reunião de todos os radículos atmosféricos,
que o nusticismo em fresca exalava defluxos, e que o ateísmo era para
mim uma necessidade higiénica. T. aconselhou, então, que se
forrassem as paredes com pele humana: um outro achou ostentosa a pele humana
e disse, beatificamente, que, como mais modesta e mais duradoura, lhe parecia
preferível a pele catedrática. Outro instou para que se forrasse
o quarto com as folhas dos compêndios: eu opus-me asperamente a isso,
dando as mesmas dolorosas razões que daria um preso se lhe quisessem
forrar as paredes da enxovia com um tecido feito dos seus próprios
remorsos! Tirou-se à sorte. Destinou a sorte que se forrassem as paredes
com pele humana.

Dispersámo-nos lentos e tristes para ir assassinar gente! Reunia-se
ali um concílio formidável.

O mais implacável era A. Que ideias e que camisas! Foi ele que, um
dia, na aula de Direito Canónico, profetizou, com gestos trágicos,
a destruição de Babilónia! Vinha também S., todo
armado; entrava ordinariamente pela janela, galhardamente, como Almaviva,
estendia sobre os tímidos a grande sombra protectora dos seus bigodes,
e pela noite alta saía à caça dos lobos. Perseguia debalde
um bando de lobos errantes que, segundo ele, deviam ter acampado na humidade
melodiosa do Salgueiral. Vinha também M., de sinistras ironias: um
dia, no Buçaco, encontra um homem de suíças apostólicas,
corre para ele e aperta-o entre as mãos robustas, com o gesto de quem
esmaga um insecto. «O que faz?» bradava o homem. «Estou
a catá-lo; o senhor, entre esta floresta, faz-me o efeito de uma pulga
entre as barbas de Moisés!» E continuou a esmagá-lo.

No teu quarto celebrava-se a arte. Era o Hotel Rambouillet do romantismo.

Ali, muitas vezes, sentado sobre a Mecânica Celeste de Laplace, tu
me mostraste, misteriosamente, um sistema solar que tinhas criado e que tinhas
fechado dentro de um frasco. Os universos eram glóbulos de água.
Um dia um cão entornou aquele firmamento.

Que tardes! Da varanda via-se a serenidade virgiliana dos prados e do rio.
Líamos: eu declamava Hamlet, tu tocavas na tua rabeca a mórbida
Lucia! Muitas vezes, entre um. concílio revolucionário, tu lias
em pé sobre a mesa, dramaticamente, os lambes de Barbier. Os lambes
de quem o clássico A. dizia gravemente terem um defeito: serem
sublimes! Celebrávamos cerimónias de um culto desconhecido diante
do busto de Shakespeare.

Dávamos grandes batalhas! Combates cruéis! Ainda a seriedade
estremece! Eram dois bandos. De um lado os pagãos, os clássicos,
os positivistas; do outro os bárbaros, os românticos, os místicos.

As balas eram nomes: arremessáveis, de bando a bando, sanguinolentamente,
os nomes dos grotescos de cada seita. Um romântico feria um clássico,
gritando-lhe com gesto terrível: Domingos dos Reis Quita! O clássico
cambaleava, mas respondia vingativo: Gilbert de Pixérécourt!
Deves-te lembrar que uma vez um clássico traiçoeiro atirou desapiedadamente
ao peito de um adversário romântico este nome mortal: visconde
d’Arlincourt! O romântico levou dolorosamente a mão ao
coração e caiu inanimado.

Quando o levantámos não era um cadáver, mas era um
convertido.

Desertou para as fileiras clássicas, por não querer pertencer
a um bando que tinha suspensa eternamente sobre si esta vergonha de Dâmocles:
o visconde d’Arlincourt! Lembras-te decerto que nós fomos os
Sansões dos Filisteus clássicos: não os derrotámos
com a mesma queixada, mas apunhalámo-los, um a um, com nomes de clássicos
portugueses. Um dia debandaram, atordoados, enquanto que nós do topo
da escada gritávamos sem quartel: Sã de Miranda! Garção!
Semedo! Quita! Sepúlveda! Ruas! Já cansados, sem armas, atirávamos-lhes
estes nomes como pedras! Lembras-te dos ensaios dos Amigos Íntimos?
Havia uma palavra que eu não conseguia pronunciar bem: era
solidariedade. Na noite da representação tomei o partido de
a cantar, separando as sílabas como notas de música. Era na
casa dos adereços do teatro que nós discutíamos com T.
a superioridade da arte grega. A pregar uma cortina, arredando bastidores,
proclamávamos o Moisés e o Pensieroso com grave detrimento da
Vénus de Milo a grande Afrodite. Depois das representações,
havia ceias semelhantes às bodas de Gamacho! Uma noite saímos
todos, de mantos, com coroas de louro, simbolizando a geração
dos Petrarcas e cantando um coro lacrimoso.

Tinha havido na Rua de… uma reunião, e as famílias, ao sair,
dispersavam com gritos de aves assustadas, ao ver aquela multidão de
fantasmas coroados, que recitavam um soneto amoroso, oferecido a Deus em nome
dos discípulos de Petrarca! Aquela época foi uma pequena Restauração,
tanta era a vida, a seiva espiritual, a vaga convulsão melodiosa da
alma. Adorávamos o teatro. O teatro era a paixão, a luta, a
dor, o coração arrancado, e gemendo, sangrando, rolando sobre
uma cena resplandecente. O nosso teatro era Shakespeare e Hugo, e
os cómicos espanhóis sombrios e magníficos do século
XVI.

Admitíamos também a sátira no teatro, mas a sátira
sanguinolenta. Juvenal dialogado, a brutalidade sublime de Rabelais, o largo
riso gaulês, toda a lama de Marcial, com todo o sangue de Tácito,
para pintar a casa macia do egoísmo humano.

Tínhamos um hemiciclo de poetas. Colocados sob um ponto de vista
exclusivo, só era admitido à nossa comunhão o
que derivasse da força, do rugido da Natureza, da palpitação
selvagem da vida e da paixão.

Tínhamos, ao mesmo tempo, ocultamente, um idealismo doentio e dissolvente.
O nosso grande compositor era Beethoven; e, todavia, eu, desgraçado
de mim, adorava Mozart em segredo. E eu suspeito-te, amigo, de teres nesse
tempo condescendido com Novalis e Luís Tieck.

Para nós, e com grandes pancadas contritas sobre o peito o digo
Portugal não tinha direito de cidade na região da arte e da
alma. Aceitávamo-lo como país de acção..

Um dos maiores poetas de Portugal, para nós, era Vasco da Gama! Tínhamos
um sistema de nações-almas e nações-braços.
Assim, para nos, a maior epopeia portuguesa era a exploração
do mar. As suas rimas eram conquistas. As cenas dos seus dramas escorriam
de sangue junto das muralhas de Diu.

Literariamente, Portugal, na nossa opinião, era simplesmente o pretexto
para o Bosque/o Histórico do senhor padre Figueiredo. Do passado apenas
acreditávamos em João de Barros e Camões. Garrett tinha-se
separado de nós, tomando pelo atalho que leva a Deus, e legando à
geração presente a pouca alma que ela ainda tem.

Os contemporâneos, ai!, não os conhecíamos. Hoje eu,
e creio que tu, conhecemos bem os nobres espíritos que se obstinam
em pensar no meio deste deserto de almas, uns junto da história, outros
junto do verso, alguns amparando a critica, outros reanimando o drama e o
romance.

Mas, naquela época de espontaneidade, só víamos o que
era verdadeiramente e incontestavelmente sol! Discutíamos largamente
a Natureza, e eu lembro-me de te ouvir falar, diante daquela luz que cai desfeita
em tristeza no Penedo da Saudade, acerca da formação das nebulosas,
e, partindo dai, descrever o homem e Deus, até à procissão
da véspera.

Havia entre nós todas as teorias e todas as seitas: havia republicanos
bárbaros e republicamos poéticos; havia místicos que
praticavam as éclogas de Virgílio; havia materialistas sentimentais
e melancólicos que proclamavam a matéria com uma meiga languidez
nos olhos, e falavam da força vital quase de joelhos, com as mãos
amorosamente postas; havia pagãos que lamentavam as suas penas de amor,
castamente, sob a névoa luminosa dos astros. Tudo havia, e também
a serena amizade incorruptível, o fecundo amor do dever e a ingenuidade
risonha de tudo o que desperta.

Diante da anatomia das ideias havia uma coragem magnífica, e na vida
real eram todos contemplativos, melancólicos e tímidos. E tu
sabes qual era o grande espírito, hoje longe de nós, que explicava
Proudhon, com a serena familiaridade dos sábios, e nas aulas dizia,
com voz tímida, referindo-se aos jurisconsultos antigos: «O Senhor
Pegas…

Sua Senhoria o digno Paiva e Pona… O nobre cavalheiro Cujácio…,
etc.» Tremia diante daqueles comentadores como diante de ídolos
misteriosos; e imaginava abrandá-los, dandolhes venerações.

Tal era aquele concílio. A força severa do espírito
precisa destas precursoras explosões de vida. Hoje pouco resta desses
camaradas. Separados ou distantes, todavia, sempre que um levanta o braço,
reúnem-se todos em volta, como os huguenotes em redor do penacho de
Henrique IV.

Todos se perderam. Uns estão bem longe, para além do mar.
Outros sofrem os tédios da vida oficial. Outros vivem nas castas serenidades
do lar. Outros apodrecem debaixo da erva, e o que nos amávamos neles
a alma dissipou-se, e o que víamos o corpo
anda em redor de nós, nas metempsicoses, no ar, nas plantas
e nas pedras; mas nós não compreendemos ainda o seu silêncio,
como eles já não percebem o nosso ruído! Ora quem nesse
tempo me tivesse falado dos séculos clássicos de Augusto e de
Péricles fazia-me uma injúria pessoal; e hoje em presença
desta doença desoladora dos espíritos, destas chagas luminosas
e incuráveis que as almas têm, eu estou quase pronto a ir declarar,
com a vela na mão, como os antigos convertidos, que o pensamento tem
tido apenas três épocas: Péricles, Augusto e Luís
XIV. É o ciclo dos três tiranos! E embora se lastime que as ideias
nasçam com os escravos, eu acho magnífico e verdadeiro que aquelas
datas gloriosas sejam o jazigo de tudo quanto a alma humana tem criado. Contiteor.
Salve, Aristóteles! Mas o mal é que em volta daquelas épocas,
que são cimos luminosos, em baixo,. nos crepúsculos constelados,
move-se uma população infecta, disforme e revolucionária.
Ali há o crime, a paixão, a luta, a dor, o sangue, o amor, o
ciúme, a morte e a dúvida todas as meiastintas do mal!
Quem desce daqueles cimos, que são glória, luz e verdade, onde
habitam as almas nobres de Horácio, de La Harpe, de Boileau, de Reis
Quita, de Garção, de Caminha e companhia, quem desce àqueles
fundos perversos topa com figuras gigantescas e horríveis, Shakespeare,
o humano, Dante, o sobrenatural, Rabelais, o escarnecedor, Isaías,
o profeta, Juvenal, o vingador, Ésquilo, o fatal. Aquelas figuras devastam.

E é um encontro pior que o da Floresta Misteriosa, no começo
da Divina Comédia. Adeus, as serenidades idílicas dos tempos
de Péricles e de Augusto! Adeus, as claras águas da alegria
nos olhos! Adeus, as tépidas branduras e os descansos arcádicos!
Aqueles poetas terríveis arrastam-nos, deslumbram-nos de ideal, esmagam-nos
de paixão; dão-nos punhaladas de luz! Tudo arremessam sobre
a pobre alma, o amor, a melancolia, a paixão, o ciúme, o misticismo,
a ironia, o desespero, a dúvida! Além disso, não respeitam
a felicidade corporal do egoísmo humano: atrevem-se a dar o terrível
espectáculo da dor! O rei Lear mostra desapiedadamente os seus olhos
arrancados e o seu coração caído na lama, pisado pelos
filhos, cuspido pelos lacaios, apupado pela populaça! Aqueles poetas
abrem na alma longes surpreendentes. Quem os lê sente entrar em si.

bruscamente, o infinito! Sofre, como as sacerdotisas antigas sofriam com
a presença de Deus! E entretanto os que se deixaram ficar na luz branda,
em companhia dos espíritos inofensivos de Racine, de Horácio,
de Virgílio, de todos os clássicos, vivem contente e sossegadamente
na sua fé ordinária, na sua virtude, na sua sonolência
higiénica! É que esses inofensivos fazem um ruído que
embala, põem um abat-jour ao ideal, trazem a paixão açaimada
e põem caio na face da dor.

Mas os que desceram para regiões românticas ficaram com a alma
doente, febril, ansiada, nostálgica. Ai está como se explica
toda esta geração moderna, contemplativa e doente! Porque
digamos a verdade hoje a vida do pensamento é um vasto hospital
de almas. E os gemidos que saem dos leitos são os dramas, os poemas,
os romances modernos. Hoje, incontestavelmente, pensar é sofrer. A
enfermeira, que se chama Democracia, consegue curar a poucos. Os poetas clássicos,
esses, não obrigam a pensar: são a simplicidade, a frieza, a
narrativa, a superfície, a afectação, a convenção
tudo menos a alma, com a sua tragicomédia de dores e de dúvidas!
Nós, meu amigo, somos uma geração desiludida por três
revoluções, amolecida por uma invenção horrível
a musica, tomada da dúvida religiosa, geração
que vê esvaecer-se Cristo, a quem tanto tempo amou, e não vê
chegar a liberdade, por quem há tanto tempo espera.

Quais podem ser as obras desta geração? Criações
febris, convulsões cerebrais, idealistas e doentias. todo um pesadelo
moral. Por isso, temos tido toda a série de figuras melodramáticas,
desde Fausto até Mr. de Camors.

Qual vale mais, esta doença magnífica, ou a saúde vulgar
e inútil que se goza no clima tépido que vai desde Racine até
Scribe? Eu prefiro corajosamente o hospital, sobretudo quando a primeira febre
se chama Julieta e a última Margarida! Os outros, os saudáveis,
os doutrinários da arte, os petrificadores da paixão, os sacerdotes
da tradição e do magister dixit, não pertencem á
arte pura, pertencem aos arquivos. São documentos históricos.
São momentos sociais vistos através da arte.

Racine explica Luís XIV. E como na história livre e pura se
não pode conceber Luís XIV, na arte pura e livre não
se pode admitir Racine. Toda a nossa Arcádia explica os remos de D.
João V, e de D. José I, e de D. Maria I. Por essa literatura
se podem. conhecer todos os sentimentos monárquicos do tempo, o espírito
cortesão, a influência clerical, a sujeição de
antecâmaras, as subtilezas morais, a serenidade enfática, a majestade
teatral, toda essa soma de falsos sentimentos e de falsos costumes que era
o Antigo Regime. E aquela literatura falsa, ridícula sendo
excelente como documento, é grotesca como arte.

Na arte só têm importância os que criam almas, e não
os que reproduzem costumes.

A arte é a história da alma. Queremos ver o homem: não
o homem dominado pela sociedade, entorpecido pelos costumes, deformado pelas
instituições, transformado pela cidade mas o homem livre,
colocado na livre Natureza, entre as livres paixões. A arte é
simplesmente a representação dos caracteres tais quais eles
seriam abandonados à sua vontade inteligente e livre, sem as
redes sociais. Aí está o que dá a Shakespeare a supremacia
na arte. Foi o maior criador de almas. Revelou a Natureza espontânea:
soltou as paixões em liberdade e mostrou a sua livre acção.
É aí que se pode estudar o homem. É o que faz também
a grandeza de certos tipos capitais de Balzac, o Barão Hulot, Goriot,
Grandet. Realizam o seu destino, longe da associação humana,
sob a livre lógica das paixões.

No entanto, às vezes, os que reflectem o seu tempo, criam: e é
quando não revelam só o carácter de um momento, um estado
convencional e passageiro, mas traduzem e explicam toda a alma de um povo.
E o que faz a grandeza de João de Barros.

Historiador, revelou o génio de Portugal. o espírito aventureiro
misturado de exaltação religiosa, o heroísmo supersticioso.
Camões, o filho da Renascença e das imitações
latinas, não tem este espírito épico de João de
Barros, que às vezes, numa página, constrói toda a antiga
alma heróica da pátria.

Ultimamente, o espiritualismo entrou na sua fase retórica; e os poetas
modernos de França, Mallarmé, Dierx. Sully-Prudhomme. Catulle
Mendés. Heredia, Boyier Ricardi, L’lsle-Adam. etc., fabricam
maldições ao mundo e à matéria, com a mesma sábia
reflexão e estudo com que os poetas de 1810 fabricavam madrigais. Uma
certa escola, saída de Charles Baudelaire, afecta amores pelo mal:
como os histriões medrosos põem vermelhão na face, para
encobrir a palidez. eles tingem a alma de perversidade negra para encobrir
o desfalecimento.

Há pouco falei de Mr. de Camors. Ainda um livro nostálgico.
Ainda Manfredo e D. Juan sob uma forma remoçada e teatral.

Mr. de Camors é um místico. Tem todos os desfalecimentos de
alma, todos os desmaios do desejo dos heróis poéticos de 1830.

Traz só de mais um aparato o materialismo. Mascara-se
de impassibilidade: mas quando? Justamente quando. pela posição
política, pelo resplandecimento financeiro, pela força dos hábitos
e das ligações ele tem uma vida compassada e material
em que a alma adormece. E como a alma adormece, calam-se os seus gemidos.
Mas quando desperta, ou seja pelo amor, ou pela vergonha, ou pela paixão,
ou pelo dever. ou pela paternidade. ou pelo remorso, começa logo, a
pobre alma, chorando aflita, torturando-se e pedindo com as mãos postas
às estrelas um refúgio sereno.

Aqui. em Portugal. também há uma grande doença. Falaria
nisso agora. se não estivesse fatigado de escrever.

Mas é a pior das doenças: é a doença que afecta
ares lânguidos: que compõe, ao morrer, a voluptuosidade do olhar:
que, quando já sente o frio da morte, suspira correctamente: «Adeus.»
O que significa esta carta desordenada, em que me deixei ir. contra os meus
hábitos impassivelmente silenciosos. a falar vagamente em literatura!
Nada, senão que num dia de tristeza e de frio eu quis fazer uma romaria
saudosa àqueles tempos distantes. em que nós vivíamos
numa noite de ideais e de desejos. alumiados pelos astros Shakespeare,
Dante, Rabelais, S. João, Goethe e Cervantes, e tendo sempre na alma
aquela ternura luminosa que vinha de uma aurora serena, clara, imensa,
purificadora e consoladora: Jesus Cristo! Teu Eça de Queirós
DA PINTURA EM PORTUGAL Quando penso na relação da arte plástica
em Portugal com toda imensa criação das escolas da Alemanha,
de França, de Itália e de Espanha, tenho a recordação
instintiva e estranha de um escultor de madeira nos tempos góticos.
O artista esculpe o pau, cria um entrelaçamento de figuras, de virgens
ascéticas, de diabos satíricos, de monges grotescos, de rosáceas
e de folhagens, enquanto a obra toma relevo, se destaca, se anima, toda cheia
de ideias, de sentimentos, de crenças quase um cântico
de madeira , as lascas e as aparas de pau caem no chão, imperceptíveis,
chatas, desprezíveis e inúteis. As obras de arte em Portugal
são estas lascas e estas aparas que restam da construção
do pensamento na arte.

Portugal, na história, é sobretudo um país de luta,
de força, de acção material. Na Europa, o Sul representa
o corpo, a parte animal do homem, a sua maneira de ser exterior, como o Norte
representa o vago sentimento íntimo e espiritual a alma. O
corpo tem estas manifestações principais a percepção
pelos sentidos, a acção vital, a exaltação nervosa
e o sono.

A alma manifesta-se pela ideia nítida e precisa, e pela vaga imaginação.
No Norte, que é a alma, a França representa a ideia nítida,
a razão ágil, e a Alemanha representa a imaginação
e o sonho. No Sul, que é o corpo, a Itália e a Grécia
são a percepção exterior pelos sentidos, que se traduz
sempre. numa raça inteligente, pelo culto da forma; a Espanha é
a exaltação nervosa; a Turquia é o sono animal; Portugal
é a vigorosa acção vital, o movimento espontâneo,
a decisão violenta do sangue.

A Europa é assim um grande corpo simbólico em que cada pátria
é uma forte qualidade física ou uma ambição inteligente
da alma. O desequilíbrio destas forças chama-se na ciência
doença, e na história guerra.

Todas estas qualidades têm um período de decadência e
de exageração; assim, há um momento na Alemanha em que
o espiritualismo se converte no iluminismo; há um momento em que na
França o excesso das ideias produz a febre cerebral; a transbordação
doentia de teorias, a precisão do raciocínio, produz a estéril
escolástica, assim o sono da Turquia tem um período que se torna
imbecilidade; na Itália vem um dia em que o culto da forma se transforma
num materialismo sem dignidade; a exaltação física da
Espanha exagera-se e torna-se epilepsia política e revolucionária;
a acção vital de Portugal começa a ser, por uma exageração
de violência, um espasmo ininteligente, semelhante ao adormecimento
que toma um braço robusto depois de um prodígio de força.
E este o estado a que chegámos hoje entre nós.

Ora, no passado, a França, que e a razão, cria as escolas
filosóficas, esboça informemente o seu espírito critico
em Rebelais, e resume-o, aperfeiçoado, em Voltaire.

A Alemanha, que é a imaginação, cria a musica, a arquitectura
espiritualista, a pintura cheia de comoção religiosa de Alberto
Dürer, e a escola dramática e pungente de Rembrandt. A Itália,
que é a percepção dos sentidos, a forma, produz a magnífica
pintura materialista, que durante quinhentos anos teve por inspiração
a beleza do corpo pressentida por Giotto, imperfeita e desgraciosa com Verrocchio
e Cailagno e outros, monótona ainda nas figuras de Perugino e de Ghirlandaio,
aperfeiçoada por Antonello de Massina, que revela o colorido, e depois
ainda por Leonardo da Vinci, que dá o segredo da luz e dos claros-escuros,
chega gloriosamente a um período superior com Correggio e com Ticiano,
cercado dos venezianos. A Espanha nervosa e inquieta produz D. Quixote, os
poetas dramáticos, o Dies Irae, o estranho romance de Lazarillo de
Tormes, que fez escola, e os pintores torturados, misticamente materialistas.
A Turquia não podia produzir nada porque dormia. Portugal, que é
a acção vital, não podia criar nada porque lutava.

E lutou corajosamente. A sua constituição foi difícil,
entre a Espanha inquieta e a África traiçoeira. Depois veio
a época dramática das conquistas. Apertados no seu pedaço
de terra, estes homens iam através dos mares inexplorados, em nome
de Cristo, supersticiosos e heróicos, terríveis como batalhadores,
serenos como apóstolos, desfazendo os temporais com as palavras do
Evangelho, iam, conquistavam as ilhas, os países, os bárbaros,
os continentes, os cabos temerosos, e depois, ensanguentados e miseráveis,
rezavam na praia, devotadamente, de joelhos, diante de uma cruz de pau! A
sua vida era lutar, orar, morrer; não tinham o amor, o riso, o descanso;
estavam quase fora do elemento humano e das serenas alegrias do pensamento.

As suas epopeias eram os diários de bordo: a sua escultura era a
armação dos galeões. Como pintavam eles? Com sangue:
nas muralhas. E a sua única música, deles, heróis do
Sul, sem os frescos amores, sem os olhares celestes, era, sob o céu,
o gemido do mar. E por vezes também o grito das aves sinistras: e então
o piloto, que seguia atento, no galeão silencioso, a viagem das estrelas
dizia: «De joelhos, companheiros, é a alma de mestre que passa!»
E todos, de joelhos, rezavam tristemente, na noite, pela alma dos pilotos
mortos na viagem das Índias! João de Barros foi o que contou
estes combates épicos aos homens, e era digno de os contar a Deus!
Assim Portugal, no passado, foi estéril na arte: não falo de
arquitectura.

E no presente é grotesco.

Não quero falar no drama de que apenas existe hoje uma aparência
inconsistente e banal, nem da poesia que, ou é tristemente arcádica,
ou colorida com sentimentalidades retóricas e todas individuais; não
quero de modo algum falar da arquitectura, que consiste entre nós na
uniforme perfeição da linha recta; nem da escultura, que em
Portugal se limita a ser uma suportável estatuária oficial;
nem da música, porque apenas temos as dos rouxinóis; mas quero
falar levemente de pintura, que tem um fingimento de vida! A arte estuda o
homem. Não como ele existe sob as transformações de que
cobre a vida social e momentânea, mas como ele deve ser na Natureza,
na pura verdade do corpo e da alma. A literatura e a música estudam
a alma sem a sociedade, com toda a liberdade das paixões, toda a fermentação
e explosão cerebral, toda a tirania do sangue, toda a fatalidade do
carácter.

E todo o livro que não estudar assim o mistério humano, será
uma cópia de um costume, a repercussão de uma influência
momentânea, a expressão de uma ordem de caracteres superficiais,
mas não será uma obra ideal. Um exemplo: a epopeia humana de
Shakespeare. Ali, o que surpreende radiosamente não são os diálogos
enfáticos dos cavalheiros e das damas, as jovialidades dos jograis,
os conceitos covardes dos cortesãos, tudo isso que reflecte magnificamente
os costumes, as feições, os sentimentos efémeros do século
XVI.

O que apaixona, o que esmaga o espírito de revolução
e de luz, são as dores do rei Lear, o ciúme de Otelo, as hesitações
nostálgicas de Hamlet, a fatalidade do mal em Macbeth, toda essa real
história da alma, essa consciência viva da humanidade, com todas
as suas dores, misérias e magnificências, onde aparece sempre
sofrendo e gemendo a trágica visão da Natureza! Assim, na mesma
obra, tudo que é feição momen-tânea do tempo fica
inútil e imperceptível, entre os magníficos estudos do
homem e as inesperadas revelações da Natureza como uma
pouca de erva seca entre a forte fermentação da seiva vegetal!
Ora, se a literatura e a música estudam a alma, a pintura e a escultura
estudam o corpo. Não o corpo como ele é na vida moderna, emagrecido
pelo cansaço, com as. grandes deformidades e curvaturas do trabalho,
estancado e torturado pela fermentação violenta das ideias,
com os músculos amolecidos pela vida cerebral, com a pele mórbida,
e deformado pelo vestuário, mas o corpo direito rítmico, puro,
harmonioso e são, perfeito em toda a pureza da forma.

Assim, o que se admira na pintura, o que é ideal, não são
as figuras da arte bizantina, descamadas, hirtas e monótonas; não
são os quadros primitivos, das catedrais, cheios de uma legião
de figuras tristes e maceradas, com todas as consumpções do
corpo e todos os renunciamentos da vida, não são os corpos diáfanos
de Fra Angelico, aparecendo com túnicas resplandecentes, num fundo
tenebroso: não são as formas desproporcionais com que Alberto
Dürer veste as almas que dramatizam a sua criação: não
são as atitudes penosas, as fealdades vulgares, a grossura bestial
dos músculos nos primeiros pintores da Renascença: o que se
admira é a pintura perfeita de Ticiano e dos venezianos, onde a forma
tem a beleza ideal e serena dos antigos deuses de mármore, mas animada
por uma voluptuosidade delicada, por uma energia inteligente e por uma fisionomia
de estrutura que tem o que quer que seja de aristocrático e de cristão!
O que se admira sobretudo é o tipo da forma ideal da escola de Florença
que teve os três cimos da arte: Leonardo da Vinci, que dava ao corpo
uma inteligência delicada, Miguel Ângelo, que lhe dava uma sublimidade
violenta, e Rafael, que lhe dava uma doçura infinita, o que quer que
seja da imortalidade serena do Paraíso pagão, aquela suavidade
luminosa, aquele equilíbrio perfeito de todas as maneiras da alma que
mais tarde Mozart teve na musica e Goethe na poesia.

Nesta pintura a expressão moral não tem ascendente: há,
como na arte grega, o equilíbrio perfeito e rítmico da alma
e da forma.

Miguel Ângelo, todavia, começa na Capela Sixtina a revelar
na pintura os dramas da alma que hão-de ser o carácter da escola
de Rembrandt e dos flamengos Van Ostade, Gerard Dow, etc., e depois. mais
tarde, serão a pintura francesa de 1830, de Delacroix, de Delaroche
e de Ary Scheffer.

Por consequência o ideal na pintura é o corpo perfeito e a
bela nudez animal. Foi esse durante quinhentos anos o estudo das escolas da
Itália! Foi esse o mistério religioso da Grécia! É
essa também a beleza da escola de Flandres, pequeno país católico
do Sul, perdido nos nevoeiros espiritualistas da Alemanha. Aí, as escolas
de que saíram Tarberg e Metzu fazem o estudo do corpo; mas, como pintavam
a existência do seu tempo, não o puderam nunca libertar das deformações
da vida mecânica e prática. A perfeição foi alcançada
pela escola de Rubens, apesar da violência bestial, da sensualidade
monstruosa, do esplendor brutal da carnação, das decorações
do vestuário, das atitudes sanguíneas e carnais dos seus tipos,
que parecem representar uma geração nascida para engordar e
para roncar! Murillo, mesmo, católico e exaltado, dá às
suas Virgens a forma sã e melodiosa, o olhar vital, os cabelos deslumbrantes,
os lábios sanguíneos, e todo aquele cântico de carne que
é o ideal italiano. O seu São João é uma criança
robusta e perfeita, que um dia, se crescer, poderá ser Apoio! Em presença
deste ideal da arte, realizado na Itália, com a serenidade inteligente
daquela raça, e em Flandres, com a animalidade daquele país
de pastagens, vê-se que importância poderão ter na arte
a pintura dos costumes, os quadros domésticos, a representação
por meio de formas das pequenas comédias ou dramas da vida real, os
desenhos de género, as aguarelas, a estatuária oficial e a paisagem.
A mesma impor-tância que tem a imagem colorida de um figurino diante
da Jocunda de Leonardo da Vinci ou uma figura grotesca de biscuit em presença
do Antinous.

Em 1830, em França, a pintura tornou-se dramática. Delacroix,
Delaroche, Ary.

Scheffer, Ingres, abandonaram a idealização do homem material,
pela pintura do homem espiritual. Representaram com formas, com atitudes e
com coloridos todos os dramas interiores do espírito, todos os fragmentos
do homem ideal. Foi a pintura da alma. Os quadros são epopeias, sátiras,
idílios ou dramas. Não se compreendiam então, quase,
os pintores anatomistas da Renascença, admiradores pagãos dos
músculos e da energia animal. O seu fim era, como o das antigas escolas
germânicas, o estudo da pessoa espiritual, com as profundidades do carácter,
com os sonhos intensos, com a poesia pungente do sentimento.

Isto era o tempo em que o tipo dominante na arte, e na poesia sobretudo,
era o homem de paixões espiritualistas, nostálgico, nervoso,
cheio de lirismo, lacrimoso pelas dores humanas, fraco, com todas as revoltas
do espírito e do coração no meio de uma geração
prática. Este tipo, que aparece em todo o teatro de Victor Hugo, em
Alexandre Dumas, nas elegias de Musset, nos livros mórbidos de Vigny,
de Mallefille, de Morice, de Sand, é simplesmente o filho popular da
revolução, que, vendo-se livre das servilidades e tendo pela
primeira vez, no mundo real, o direito de falar e de pensar, faz a história
pomposa e declamatória das suas pequenas tristezas do coração
e da carne. Este tipo é uma degeneração de Fausto, o
verdadeiro idealista, o homem desiludido da ciência, da vida, da arte,
da filosofia e até da matéria, que no fim se refugia num estoicismo
melancólico, tendo todavia sempre vivo no fundo do coração
o mundo incorporal das curiosidades infinitas e dos desejos nevrálgicos.

Era este tipo que os pintores franceses de 1830 tinham em vista, ainda mesmo
nas obras religiosas e nas criações históricas. Os Cristos
de Delaroche e de Ary Scheffer têm a alma de Fausto, no olhar e na expressão.
Imagine-se por isto quanto se estava longe do centro luminoso da arte italiana,
do sentimento da vida física, da contemplação harmoniosa
da beleza corporal, activa, viva e sã! Este espiritualismo ainda não
cessou de ser inspiração doentia e íntima da arte moderna.

Na época gloriosa da Renascença não se conhecia a paisagem:
era ela, simplesmente, uma decoração, um fundo onde se perdia
a degradação da luz. A arte é a verdade natural da alma
e do corpo, sem a influência da vida real. A Natureza é verdadeira
por si, existe na pureza da sua força e apenas pode ser copiada radiosamente.

Mas em questões de cópia, a fotografia é sempre preferível
à pintura, pelo realismo correcto e pela verdade geométrica.
A idealização da Natureza, ou como vegetação,
ou como atmosfera, ou como água, seria uma transformação
grotesca. Demais, o processo do colorido não pode reproduzir toda a
cor vital, animada, luminosa da Natureza orgânica. A paisagem hoje é
ainda um resultado da pintura espiritualista. Cláudio Loreno, Lantara
e os paisagistas modernos revelam, por meio de perspectivas e de horizontes,
todo o estado ideal do seu pequenino coração: querem que as
arvores digam as suas contemplações, e a água o seu choro
interior. Quando Lantara pintava os grandes luares silenciosos alumiando as
clareiras, queria revelar a sua tristeza vasta e feliz, todo o indefinido
da alma.

Esta pintura, assim, aceita-se junto da grande arte plástica como
os idílios vegetais de La Fontaine se admitem, por condescendência,
ao pé das fortes almas da epopeia shakespeariana.

Estou fatigado de escrever, senão dizia o motivo por que hoje temos
o culto da pintura dramática e não compreendemos a pintura plástica
da Renascença: mas eu quero dizer ainda como a pintura portuguesa é
a apara inútil de toda a imensa criação artística.

A pintura portuguesa não tem o grande fim ideal da arte, o estudo
da beleza nua; não tem sequer o sentimento dramático; não
é mesmo imitativa: nem mesmo é cópia estéril!
A pintura portuguesa, quando pinta o corpo, faz-lhe a caricatura; quando quer
reproduzir a vida, desentranha-lhe a farsa idiota; quando quer imitar a Natureza,
fá-la. grotesca e absurda.

Não pertence ao numero de tentativas inexperientes, em que se pressente
todavia uma futura atitude artística, cheia de poder e de vida; não
é também uma decadência onde através das degradações
e dos defeitos do gosto, da verdade, da beleza, se descobrem ainda os caracteres
superiores que fizeram o período de florescência. O que é,
não tem nome.

Nas outras escolas, quando a arte se transvia nos maus caminhos e se afasta
da idealização do corpo e do culto da verdade transfigurada
em beleza, ao menos compensam os seus erros pela correcção do
desenho e da forma, pela delicadeza, transparência e realidade do colorido
e pela escolha inteligente e original das ideias.

Em Portugal, o desenho é grotesco. não tem o elemento natural
e verdadeiro; é flutuante, tem a confusão obscura da linha,
é aproximativo, não e real, na pintura portuguesa um rosto é
quase um rosto! O colorido é fantástico e gratuito. não
há a luz, a meia-tinta, a transparência, a claridade difusa,
a opacidade forte e colorido na sombra há grandes estendais
de tinta! A carnação de uma face costuma ser um medalhão
de escarlate, quando a fisionomia é sanguínea, de amarelo, quando
é linfática, há a confusão das cores desmentindo
as realidades e as reses, há animais nestes quadros que têm os
coloridos visionários de flores de legenda; o colorido, nesta arte,
é sempre opaco, morto, pesado e baço; os quadros são
apenas produções da paleta suja.

Não há ideias, há cópias estéreis que
o desenho torna desconhecidas e o colorido fantásticas; estuda-se a
imobilidade da natureza-morta, desenha-se a atitude banal de um boi a pastar
ou uma mulher arrastando grandes folhos, no asfalto de uma rua, e julga-se
ser isto uma criação e uma ideia! Desconhecem o Belo, estragam
o Suportável, são péssimos no Péssimo! Termino.
Possa esta geração moderna de artistas, compenetrando-se da
religião da Arte, estudar, pensar, viver da grande vida espiritual
no refúgio e na concepção do Belo.

Nós, os que criticamos, temos por única recompensa destes
ásperos e dolorosos sacrifícios à verdade a glorificação
dos que criam: e quem estas linhas escreve quereria bem, ó meus amigos,
artistas e pensadores, apertar-vos a mão, no dia dos triunfos, lembrando-vos
que se já houve uma raça de homens que deram a este país
a força, que é o ideal do corpo, haja agora uma geração
nova que lhe dê o ideal, que é a força da alma..

O LUME Agora, no Inverno, no campo, as noites são ásperas
e hostis. Toda a Natureza está impassível e entorpecida, esperando
a fermentação violenta das seivas. As árvores erguem
os braços nus, miseráveis e suplicantes. E as águas,
que no Outono estavam quietas e pálidas, e que em Maio faziam claras
murmurações, tão melódicas como o ritmo de um
idílio latino, têm agora vozes vingativas e más. O vento
é rouco e lento como um canto católico de ofícios: as
chuvas caem de cima, como escárnios triunfantes e ruidosos.

Às vezes vem a Lua não aquela imaculada Lua cor de
opala, donde se exala um nevoeiro magnético que faz a alma docemente
doente, mas uma Lua metálica, fria e lívida, como a face dos
corpos finados nas legendas católicas.

Então o homem sente a sua pequenina e inútil alma afundar-se
no tédio, silenciosamente, como um navio roto numa calmaria, e vai
por instinto dar-se à intimidade consoladora da lareira, das brasas
e do fogo. E enquanto a força vital se dissolve numa sonolência
fluida, ele sente aos seus pés uma pequena voz, alegre, inquieta, clara,
que lhe fala como num êxtase profano: «Sou eu», diz a voz,
«eu, o teu velho camarada, o bom lume. Sou eu, o teu velho Deus misterioso.
Eu que te quero bem, e que te dei o que há em ti de grande e justo
a família e o trabalho. A minha história é triste,
luminosa e terrível, imunda e meiga. Eu fui o teu companheiro das noites
da Índia, o consolador e o purificador; eu fui o Moloch das regiões
da velha África, ensanguentado e trágico: e sou agora o escravo
a quem tu mandas mover as máquinas.

Sempre escondido e silencioso, ocupando a um canto o mais pequeno espaço
da casa, eu venho todo jovial e radioso quando tu me chamas, e fico, nas tuas
horas negras de dor e de miséria, calado ao pé de ti, lambendo-te
os pés como um cão. Na Índia, lembras-te?, durante noites
primitivas, eu fui o teu bom Agni que te alumiava, que espantava os chacais
e as onças, e protegia, como um templo, os teus amores religiosos e
simples. Escondia-me nas pedras e nos paus secos: assim para onde tu fosses,
ou solitário ou em bando, encontravas-me sempre aos teus pés,
bom e humilde. Foi ao pé de mim que tu criaste a trindade humana da
família.

Era ao pé de mim que tu descansavas dos teus bárbaros trabalhos,
no princípio, quando a vasta Natureza te combatia. E eu era o amigo
único, o aliado radioso. Eu tive a confidência dos teus primeiros
beijos. E eu sabia as tuas dores e os teus medos.

Tinhas em redor de ti a hostilidade dispersa: a grande floresta tenebrosa,
que depois foi para ti berço, lenha, morada, navio, defesa e forca,
era então a tua sepultura iminente. Quando saías de ao pé
de mim, da tua cabana ajoelhada ao sol, encontravas-te só, entre os
seres implacáveis, o mar que te ladrava, a vegetação
espinhosa que te mordia, a chuva que te paralisava, a neve que te dava sudários.
Tudo, sob a pressão doentia do Sol, era para ti força inimiga
ou forma resplandecente do mal. E só quando voltavas, encontravas o
teu bom lume que te enxugava, que te alumiava, que te dava o pão, a
força e a fé. Eu e a mulher, a minha companheira celeste e silenciosa,
ficávamos em casa, esperando os teus cansaços. Ela fiava, limpava
o chão da cabana, tirava a água fresca e adormecia o filho no
seio branco como num leito espiritual: eu estava quieto e atento, combatendo
a sombra e a noite, vencendo a humidade traiçoeira, fazendo um dossel
de vida e de luz para o teu sono, dando à cabana a serenidade tépida,
e às tuas fadigas um paraíso de sossego, de silêncio e
de calor.

Em volta de mim, criou-se a família. Eu era o purificador da tua
natureza. Era o.

Deus presente e bom, que fecunda as almas, fortalece os braços e
ampara na hora das dores.

Eu tenho ainda por ti aquele amor servil e adulador, que se glorifica quando
abdica, que tem um êxtase quando se dá a uma humilhação.
Quando te afastas, quando me deixas, fico triste, amorteço-me, toda
esta grande alma de chama, que te quer tão bem, se definha, e apenas
ficam as brasas, ainda quentes, ainda vermelhas, mas já inertes e cheias
de negro justamente como o corpo de um amor abandonado.

‘Mas quando vens para mim, quando me estendes a mão, como para
um afago, quando me revolves, desperto, revivo, canto salmos de luz, requebro-me
como uma mulher que se abandona, tenho vivacidades que são gritos de
fogo, tenho cintilações que são beijos; e como numa rapariga
para quem o inconstante bem-amado volta, toda a tristeza se desfaz em rir,
eu mais infeliz, que não tenho o riso, aurora sonora dos lábios,
toda a minha dor e o meu abatimento se vai somente em fumo! Por ti tenho feito
mal. Fui eu que matei Giordano Bruno, João Huss, tantos santos, e tantos
mártires, e tantos alucinados de Deus! Fui eu que queimei, nas cidades
misteriosas de África, as crianças e as virgens no altar de
Moloch.

Por ti, eu que sou a paz, fui a devastação. Estou fatigado.
Durante os tempos tenho sido o camarada, o amigo, o servo, o vigia, o cão,
o confidente, o pão, o calor, a vida não queiras que
eu seja o carrasco! Podia ir contigo, insensivelmente, lareira, se era o teu
amor que me assoprava, incêndio, se era a tua cólera
no tempo em que tu eras uma força inconsciente e fatal. Mas hoje és
uma consciência. Contigo só me aliarei para ser fé, consolação
e paz.

Sendo paz e fé, é que eu te tenho consolado das servidões
dolorosas.

No tempo das catedrais, quando tu nada tinhas, nem o amor, nem o pão
livre, nem a voz, nem o sono, nem a esperança, eu dei-te o que mais
agrada ao escravo o direito de mandar. Em volta de mim, a família
ajoelhava à tua voz, rezava ao teu olhar, erguia a hóstia do
amor 41 ao teu coração. Eras servo e tinhas estas grandezas:
era eu que tas dava: como? Pela fé, pela paz, pela consolação,
pela união. Para ti, eu tenho representado a essência humana.
Eu tenho advogado a causa da vida.

A minha irradiação lenta e amorosa dissipou o misticismo.
Eu sou o bem. A família e o trabalho, a educação, esta
trindade misteriosa da vida, tudo está em mim.

Toda a felicidade humana canta, ama, ora, no círculo da minha luz.
Tudo para além é sombra sombra na parede, e sombra na
alma. Procuras o ideal na religião, na conquista, na arte; debalde:
trabalhas, adoeces, morres, apodreces: vida inútil! Os únicos
momentos verdadeiros e sãos foram aqueles em que estiveste ao pé
de mim, olhando castamente a mulher, ensinando a ler a criança. Então
realizaste o ideal, o símbolo Deus, que as religiões
esboçam e as criticas dissipam.

Lembras-te da Índia? Ali tinhas uma cabana, a tua mulher, branca
e mais doce que a lã dos novilhos, e o filho, encarnação
misteriosa do amor das almas, e a minha doce presença. Trabalhavas,
aqueciaste, amavas, dormias. A alma vivia em ti no estado de pressentimento.
Tinhas apenas do ser interior o bastante para um dia, mais tarde, dirigires
a bela e serena educação do teu filho.

Depois disso, tens tido uma vida lengendária de lutas, de criações,
de religiões, de conquistas, de descobertas, de ideais.

O que aumentaste em ti? Nada: apenas a tristeza, o desfalecimento, a dor
e o mal.

41 No texto da Gazeta de Notícias, «amo»..

Eras puro e são, estás mórbido e enfraquecido. Eras
forte, estás raquítico. Eras sereno, estás torturado.
O teu bom riso é uma triste ironia: o teu largo olhar é uma
áspera desconfiança.

Tinhas por inimiga a Natureza. Venceste-la? Não. Absorveste-la. E
tudo o que ela tinha de terrível e de doloroso, tudo hoje tu tens:
a independência desesperada do mar, o mistério doentio da floresta,
o choro aflito das águas, a inquietação do vento, a barbaridade
das feras, a escuridão supersticiosa dos astros, tudo hoje está
em ti, com surdas irritações, com rebeliões formidáveis.
Aí está. De cada vez que te afastaste de mim, do sossego do
meu calor, voltaste trazendo uma chaga.

Foste criar o misticismo, vieste com a nostalgia incurável. Quiseste
criar os Direitos do Homem, trouxeste um mal divino chamado Liberdade, que
vai sempre fugindo de ti, e só às vezes se volta de repente,
para te borrifar de sangue! Quiseste ir construir a adoração
do corpo e da matéria exclusiva, trouxeste o elemento dissolvente da
força e o egoísmo brutal.

Não tens dado um passo de mais para o bem. As tuas obras ai estão
imensas, acumuladas, contraditórias e inúteis. Tens uma complicação
infinita de asas que te impede o voo.

A mim, abandonaste-me.

Eu não me apaguei. Durante as revoluções e as lutas,
andei errante, miserável, sobrecarregado de infâmias, e, para
viver, vendendo-me ao carrasco! Mas conservei sempre a minha chama, casta
e familiar, para o dia em que quisesses vir, tristemente, enxugar-te ao meu
calor do sangue dos teus irmãos.

Vem para junto de mim. Eu sou completo. Correspondo a todos os teus instintos
luminosos, ou sagrados, ou materiais, ou lascivos. Eu dou-te o pão,
o calor, a fortaleza, dou-te as visões que são a poesia do movimento
na alma, dou-te a sensualidade sonolenta que exala amor, dou-te a serenidade
que dispõe para a contemplação e a força que prepara
para o trabalho. Eu sou a cura, inteligente e boa, do mal natural. Eu alumio-te
nas vigílias dolorosas. Quando estás entorpecido na doença,
eu, pequenino e encolhido, tremo ao pé de ti. Quando morres e a tua
alma vai partir, eu alumio-lhe o caminho de Deus. Eu cerco Cristo nos altares,
para que tu o vejas bem. Quando andas no mar, eu sou junto das praias o grito
de luz que te chama.

E o que fazes tu em paga deste amor que se dá, que cria e que purifica?
Esmagas-me.

Fazes-me o escravo das máquinas. A mim que embalava as almas, fazes-me
mover os aços.

Embalo que era amor, movimento que é força: os dois termos
da tua vida pureza e putrefacção! Eu que vivia, alumiava,
criava em liberdade, estou encadeado e martirizado na tarefa brutal das indústrias.
Fazes-me o motor da tua miséria. Nas fábricas, as criaturas
doentias, as crianças estioladas, as mulheres definhadas e soluçantes.
Fazes-me mover a vapor estas misérias. Sou o colaborador dos teus martírios.
Tu, homem, tomas o fogo. o ser sagrado, por ajudante de execuções!
Dás-me por salário a infâmia. Fazes de mim explosão.

Obrigas-me a devastar na guerra! Eu que sou a pureza, o trabalho, a família,
a paixão casta: levas-me a ser o mal, a viuvez, o pranto e a dor! Tenho
um cortejo de ambulâncias e de macas, eu que era o firmamento dos berços!
Não! Maldita seja a árvore que consentir em ser forca e o fogo
que consentir em ser explosão.

Não quero que na minha vegetação de luz haja um orvalho
de sangue. Não quero que o vento, ao embalar-me, faça soltar
os gritos e os choros que se tivessem aninhado em mim. Tu, homem, sê
piedoso e justo. Eu alumio o mais que posso as igrejas, mas parece-me que
tu não vês bem a Cristo. Não, deixa-me ser a pureza, a
graça, a família, a intimidade casta e o bem.

Peço-te. rojando-me como um mendigo. Oh!, homem. oh!. meu velho camarada
das choupanas da Índia!, não me faças ser explosão,
morte e devastação, para que eu no dia de pureza e de castidade,
quando estiver alumiando e. aquecendo os beijos. as orações
e os berços não sinta entre as minhas chamas bailarem
espectros!».

MEFISTÓFELES No Fausto de Charles Gounod a figura dramática
e sintética é Mefistófeles.

Em volta dele, Fausto canta artificialmente como um lírico histrião
de óperas; Margarida sente as primeiras rebeliões nervosas do
desejo; Siebel estremece com a nascente seiva do amor, como o antigo Querubim;
os batalhões góticos têm instrumentações
triunfantes; a alma legendária do rei de Tule canta na sua torre que
molha a espuma do mar; o povo celebra as quermesses, e os judeus dizem a música
da avareza: mas só Mefistófeles vive! E a sua grande figura
angulosa, nervosa, elástica, incisiva, atravessa o drama com os seus
lirismos nostálgicos, as suas sensualidades tristes, os seus misticismos
artificiais glorificando a força brutal do dinheiro, escarne-cendo
as castidades expirantes, empurrando o Fausto espiritualista para a violência
lasciva, combatendo a serena inspiração do Cristo, negociando
em almas, e abatendo toda a penosa construção da honra, do dever,
do perdão, do amor, da purificação com o riso
trágico do mal! Aquela ópera é uma simples aventura do
antigo Diabo.

Nela, o Fausto não é o sábio que penetrou a medicina,
a física, a lógica, a dialéctica, a dogmática,
a teologia, a metafísica, para quem os seis mil anos do passado são
apenas o prefácio do saber humano, que procura o X terrível
da equação dos. astros, e que ao ruído que faz a sua
alma buscando através da Natureza o Deus fugitivo, o Mistério,
só consegue despertar os dormentes do seu coração, os
desejos, os beijos luminosos, e as languidezas silenciosas: não é
o homem que se enoja das vazias realidades da vida e da paixão, e que
se recolhe num estoicismo trágico, tendo todavia, sempre, dentro do
peito, o coro soluçante e rebelde dos desejos infinitos e das ásperas
curiosidades, até que enfim, mais sereno e transfigurado, vai ao fundo
do mundo antigo buscar o corpo sublime de Helena e tem dela, que é
o ideal da forma antiga, um filho, Eufórion, que é o ideal do
espírito moderno.

Não. Na ópera, Fausto é simplesmente um daqueles ambiciosos
grotescos, que contratavam por escrito com o velho Diabo, nos claustros malditos,
e lhe compravam a realização de um desejo por uma pequena coisa
desprezível, menos valiosa que o dinheiro e que os estofos, uma coisa
inútil e estéril, que se lhe atirava desabridamente
e que era simplesmente a alma! As legendas estão cheias destas negociações.

Cornélio Agripa vende a alma pelos segredos da filosofia; o abade
de Tritheim, pelo segredo da circulação do sangue; Falstaff
vende a alma, numa Sexta-Feira Santa, à noite, quando estavam fechadas
as tabernas de Londres, por uma garrafa de vinho de Espanha e uma perna de
capão. Luís Gaufridi, pelo poder de exaltar nervosamente as
mulheres. Um lacaio do Marais, pela felicidade aos dados. Ricardo Dugdale,
um namorador do condado de Landshire, por uma lição de dança!
Todos estes! Fausto vende desprendidamente a alma pelo amor vulgar de uma
rapariga clara e loura, que tinha um modo celeste de fiar, cantando! O Diabo
cumpria escrupulosamente o contrato: havia para estas negociações
uma jurisprudência dogmática. Sujeitava-se mesmo a acompanhar
o contratador, como uma inspiração visível, como um camarada
de perigos, para lhe facilitar a ampla realização do desejo.
Seguia Agripa sob a forma de um escudeiro, vestido de negro, com o nome de
«Sujeito». Seguia Fausto, vestido de escarlate, com o nome de
«Mefistófeles». Nada mais.

Margarida não é, na ópera de Gounod, como em Goethe,
o símbolo da alma alemã, simples, casta, sofredora, daquela
alma alemã que, como na Melancolia de Alberto Dürer, quando a
matéria, a tirania, a desesperança a oprimem, só sabe,
resignadamente, dobrar as suas asas; aquela alma alemã que exala toda
a sua imensa dor em frescas cantigas religiosamente humanas, que tem todas
as simplicidades, todas as inteligências, todos os deveres, que quando
olha para a terra é para amar, quando olha para o céu é
para orar, quando olha para si é para morrer. Não. A Margarida
da música sábia de Gounod é uma alma lírica, nebulosa,
nostálgica, sensual, para quem o amor é um magnetismo suave,
a oração uma luta com o mal, a morte um libertamento romântico
da vida insuficiente e vazia. Este Fausto tem na alma um lirismo teatral,
esta Margarida um paraíso artificial.

Mas ele, o bom Mefistófeles, tem uma vida real e poderosa. E ele
a antiga criatura terrível e grotesca, vaidosa, infame e trágica.
É o antigo Satanás das legendas. E ele o mesmo a quem
os Sevérios ouviram dizer que antes queria devorar uma alma do que
voltar, entre purificações, para os seus antigos camaradas,
os astros, sidera lucida! E ele, o eterno inspirador dos heréticos
e dos impostores, ele que ensinava os oráculos aos crocodilos de Arsinoé,
e aos carvalhos proféticos de Dodona, e que dava a Manés, o
homem ímpio, a ascética palidez dos monges, como dá a
Fausto, velho e tépido, o resplandecente magnetismo do olhar. Ele,
que segundo as tradições judaicas, inventou os enfeites e as
jóias para ferir os castos instintos da mulher e que atirava
os corais ao regaço das mulheres de Brabante, como mostra a Margarida
a cor traiçoeira e hipócrita das pérolas. E ele o mesmo
que em Babilónia tomava as atitudes hieráticas de um Deus, e
fugia do olhar de Daniel como na quermesse de Leipzig toma a voz sinistra
e rouca do dinheiro, e cai torturado e cobarde diante da serena aparição
das cruzes das espadas.

É ele o antigo Diabo que dava aos monges da Tebaida o mal da acedia,
como dá à pobre Margarida o mal do amor. Tortura os monges do
Ocidente; dá-lhes as chagas e as dores de Job, envolve-os nas visões
magníficas do mal.

As virgens diáfanas fazem, no silêncio da noite, as mil orações
da prostração: os monges passam os anos em jejuns dolorosos.
Debalde! Se se deitam na neve a neve toma um calor vital e lascivo
que os definha: se bebem a água fria e purificadora das fontes
a água dá-lhes ao corpo a palpitação dos vastos
apetites. Se querem rezar no silêncio, ouvem os risos ambrosíacos
dos deuses sensuais, e o gemer desfalecido dos bandolins. Também a
pobre Margarida, se queria fiar castamente e chorar o velho rei de Tule, sentia
a melodia da carne cantar-lhe baixo: «Vê como Fausto, o cavaleiro
do veludo, é branco, e belo, e são, e forte!» Os monges
de Alexandria andavam de noite, pelos cor redores solitários e sonoros,
com as cruzes alçadas, cantando, para o afastar, os versículos
do Evangelho, e regando com água santa as lajes do claustro: assim
o gentil Siebel asperge, tristemente, as flores maculadas de Maio.

E ao mesmo tempo este Diabo terrível, que andava disperso nos elementos,
de tal sorte que o vento era a sua tosse, ele que era o carrasco da Inquisição,
a fera dramática das almas, ele que redigiu a sentença de Cristo,
que acendeu as fogueiras das feiticeiras, que celebrava o sabbat, onde à
luz de uma lâmpada sem óleo pregava o sermão dos sete
pecados, ele que tinha por filhos Menino, Roberto de Normandia, Atila e os
Hunos, era ao mesmo tempo jovial, grotesco, bailarino, poeta, jogador e palhaço.
Bebia gloriosamente o vinho das missas do Papa. Tinha uma taberna no Inferno,
onde se comiam, com molho de beata, as almas dos usurários. Dava serenatas
às patrícias de Veneza.

Fazia sonetos correctos e académicos às abadessas de Vecker.
Vestia-se de veludos e de sedas, emprestava dinheiro aos estudantes das universidades
livre se assinava-se «Belzebu, cozinheiro do Inferno». Os trovadores
cantaram esta legenda faceta das farsas de Satã..

Tomou tanta familiaridade com o homem que Lutero sujou-o de tinta, e Rabelais
deu-lhe piparotes. Na Alemanha, na noite de 30 de Abril, dava um sarau magnífico
nas alturas de Borx- Belg. Era a noite de Walpurgis. Havia a grande dança
das nudezas. Nas noites claras as estrelas assistiam, com a impassibilidade
de vestais.

Assim é a figura complexa de Mefistófeles. Durante a ópera
de Ch. de Gounod, esta individualidade sinistra deixa escorrer sobre o drama
dos amores e dos arrependimentos o seu desprezo resplandecente e ruidoso,
como aquelas figuras de Satã que nas catedrais da Alemanha deixam cair
do último coruchéu uma risada de pedra, que nos nichos, nas
esculturas, nas rosáceas, nos fustes, nos baixos-relevos, em todas
as figuras de santos, de virgens e de anjos vai gelar as aspirações
ideais e os sentimentos do céu.

Toda aquela música da ópera que envolve Mefistófeles
é a vaga melodia sombria do mal. Tem o escárnio, tem a violência,
tem as trevas, a jovialidade e o medo. Range, ri, treme, devasta, insulta
e vence.

Júlio Petit realiza admiravelmente esta figura que se prende à
tragédia, à farsa, à fatalidade, à filosofia,
ao dogma e à legenda. Nele, o gesto é a voz, o riso, o terror,
o aniquilamento, o orgulho. a perversidade tudo. A sua interpretação
é o poema do movimento. A sua figura, imitada da do Mefistófeles
de Ary Scheffer, tem o anguloso, o esguio, o hirto, o adunco do Diabo das
legendas. Cada gesto é toda a longa história de Satã,
durante a sombria aventura que ele tentou contra o espírito.

Quando, no prólogo, contrata a venda da alma do Fausto lírico
e idiota é cortesão, fluente, insinuante, flexível,
como o antigo Satã quando discutia com Alberto Magno as condições
da sua venda: e envolve o Fausto fraco e desfalecido de desejos com as visões
da vida e com as palpitações da natureza sensual, como o Satã
prendia as hesitações de Alberto com a visão serena e
luminosa do segredo das coisas.

Na quermesse, no primeiro acto, tem a familiaridade jovial do Diabo no século
XVI, quando viajava na Flandres, e dançava na corda diante da populaça,
e lia a buena-dicha, com grandes risadas sinistras, às damas corpulentas
de Brabante. Na canção do ouro, é violento, áspero.
apaixonado, rancoroso, como as antigas cronicas monásticas contam que
era o Diabo, quando dizia a Savonarola, na sua cela do convento dos Dominiquinos,
em Florença, o poder das suas armaduras e das sua legiões flamejantes.

Durante o coro místico, em que os soldados o esmagam com a cruz das
espadas, Júlio Petit faz com alguns gestos o drama da vida infeliz
do Diabo, perante a serena superioridade do cristianismo: ao princípio,
medroso e traiçoeiro, depois, cheio de desesperação,
mordendo a sua espada de aparato, como o Satã de Milton, vencido, arranha
raivosamente a sua armadura, por fim abatido, esmagado, deixando-se cair no
chão, inerte, às últimas notas triunfantes do coro cristão
como simbolizando o aniquilamento de Satã sob a serena legião
vitoriosa dos espíritos siderais.

No Jardim, Júlio Petit é o Diabo cheio de desprezo pelas delicadezas
femininas, inquieto pela timidez mística e toda alemã de Fausto,
guiando asperamente aquela alma, que vai fazendo, passo a passo, a sua entrada
no mal.

O último gesto magnífico é o empurrão que atira
Fausto para o seio de Margarida, gesto cheio de desprezo, como o de um Diabo
que atira uma coisa, para ele imunda, a alma de um homem, para outra coisa
imunda também, o seio de uma mulher. Dante descreve gestos semelhantes.
Assim nos quadros místicos do século XVI se pinta Satã,
atirando as almas para a sombra tenebrosa, onde se perde a esperança.

Defronte da igreja, no quarto acto, na cena magnética da possessão,
Júlio Petit faz com o canto e com o gesto a história terrível
daquela batalha que durante a Meia Idade a Natureza deu à religião.
O Diabo é o aliado da Natureza; auxilia o pecado, combate o.

arrependimento. Quando ele se coloca defronte da igreja, com a capa caída,
semelhando duas asas negras dobradas, faz lembrar aquela visão de Santo
António, que numa noite de tempestade, no deserto da Nítria,
viu, através do êxtase, no infinito apocalíptico, os dois
grandes braços de Satã, abertos diante do céu, a impedirem,
sinistros, a subida soluçante das almas.

Criação magnífica esta de Mefistófeles, que
ficará gravada na história da arte, como, guardadas as proporções
e as condições de duração, ficaram as realidades
que Rembrandt pressentiu no mundo sobrenatural! E se é certo que o
Diabo morreu, e que já lhe fizeram o epitáfio, e que as suas
imagens são estátuas que o homem lhe ergue, e que, depois de
morto, teve para dizer a sua beleza Milton, e para dizer a sua tragédia
Dante, se é certo que se foi juntar, no vasto cemitério azul
onde os sepulcros são astros, aos finados enormes, que foram os deuses
da Índia, do Egipto e da Grécia, se é certo que é
por ele morto que o mar geme e que as florestas rezam, se é certo que
ele se deitou na serenidade eterna, deixando o homem por herdeiro, se é
certo que ele morreu, o bom Diabo é também verdade que
esta criação de Mefistófeles, por este artista
é uma ressurreição, e que todas as noites o velho Satã
vem, como no tempo dos seus amores vestido de escarlate, contar sobre uma
cena resplandecente, entre as instrumentações esplêndidas
a sua velha legenda da tentação! Mas por desgraça
as criações do canto e do teatro morrem e esquecem, tão
depressa como os diabos das religiões. E a condenação
de tudo o que é forma desaparecer. Só ficam as puras
idealizações da alma e da Natureza.

Quem se lembra hoje da Malibran, da Sontag, de Talma, de Frederick Lemaire
e da Dorval? E todavia ainda Shakespeane dá a sua alma, como uma eucaristia
da arte, a todas as gerações moças, primaveras sagradas
e fecundas.

Quem se lembra hoje de Siva, de Brama, de Visnu, de Indra, de Typhon, de
Osínis, de Bel, de Moloch e dos Olímpicos gregos, de nomes sonoros,
e de toda a imensa legião dos esboços de Deus? E todavia, um
ficou, o elemento espiritual e ideal, aquele que preside sereno à
tragicomédia da alma!.

ONFÁLIA BENOITON Quem se lembra hoje da história de Onfália
Benoiton, uma mulher nervosa, e de Estêvão Basco, um homem vencido
e esquecido, e que todavia foi um homem? As canas que contam essa história
de martírios reais e de falsas glorificações, tenho eu
a alegria mefistofélica e bárbara de as copiar aqui.

A primeira carta assinada unicamente por uma letra Z. é
o documento incisivo e lúcido da Srª Onfália Benoiton.
É assim: «A Srª Onfália Benoiton, meu caro, é
descendente das belezas gregas. Mesma materialidade de forma correcta e fria.
Somente as mulheres gregas eram musas, cantavam nos festins ao modo jónio,
coroadas de mirtos; discutiam com os sábios e com os filósofos,
celebravam com as túnicas soltas as Elêusis de Baco, edificavam
cidades, eram os modelos da arte e a inspiração dos tiranos.
E a Srª Onfália Benoiton, com os seus vestuários onde há
uma provocação especuladora, as suas atitudes masculinas, os
penteados disformes que lhe dão uma aparência de animalidade
audaz, com a sua pele colorida, acumulações da sua vida de fadiga
trivial e de aparato sonolento, lembra uma daquelas Vénus de corpos
harmónicos, que depois de ter atravessado este exílio moderno,
a velhice, a miséria, e o vício imbecil se vestisse
de roupas bárbaras e grotescas, para parecer ainda, de longe, à
luz soluçante do gás, um ídolo material aos idiotas!
A Srª Onfália Benoiton é um pouco magra e nervosa. E um
corpo alto, coberto de estofos, pedestal de um crânio vazio. As suas
formas, dignas talvez do biscuit, sem contorno inteligente e espiritual, não
conseguem encobrir o lodo primitivo. Nenhuma ideia nas atitudes e nos gestos:
só a retórica da futilidade. Tem uma graça oficial; compõe
um olhar com o mesmo trabalho compassado e métrico com que um poeta
arcádico cinzela um verso. Tem sempre a pele admiravelmente colorida:
tem o segredo do rosado da face casta e transparente.

Desenha as sobrancelhas com a delicadeza de um artista chinês. Põe
em redor do olhar uma cor de sépia ligeira semelhando a fadiga, invejável
para uma imagem de Impéria ou de Vinon.

A sua fisionomia bela e trivial tem a vaga intenção das aves
de rapina. Toma umas atitudes de tédio e de indolência, semelhantes
às que têm os viciosos de absinto.

Caminha com o seio erguido, com a pompa de quem arrasta atrás de
si toda a atmosfera e o ar de todos os peitos. Dança com os movimentos
melodiosos que teria Juno se tivesse passado dois séculos a frequentar
os casinos. Tem uma bela fragilidade muscular, um ap2tite vasto e um amor
cálido das bebidas. As indústrias têm maculado aquele
corpo: o gás amoleceu-lhe o olhar, os espartilhos de Birmingham desvaneceram-lhe
o modo feminino. Pelo materialismo idiota é muito inferior aos ídolos
egípcios, pela originalidade risível do vestuário superior
às caricaturas chinesas.

É toda a síntese do nosso tempo: é a entrevista grotesca
dos erros modernos. O olhar metálico é o símbolo do dinheiro.
A boca é nervosa e móbil, os dentes acerados e de um branco
morto: é a difamação, a intriga, a palavra fútil
que corrói as construções da alma.

A mão delgada, flexível, magra, adunca, significa a agiotagem,
o materialismo avaro e covarde.

Onfália Benoiton é a tragicomédia da afectação
e da vaidade. Para modelar a sua alma seria necessário inventar uma
lama. Colocada inferiormente, prende-se a todas as. ideias oficiais, aristocracia,
realeza, elegância, moda, com a mesma insistência violenta e vaidosa
com o que o pó se prende ao veludo.

Tem uma maneira insultante e vã de fazer os seus vestuários
de tal sorte que o seu chignon parece uma carranca feita ao céu,
e as suas caudas beijos dados à lama. A sua existência é
pintar-se, fazer-se, trocar friamente recepções e diálogos,
transfigurar o vestuário numa celebração misteriosa,
decorar a comédia das modas, passear ostentosamente, errar pelas óperas,
pelos casinos, pelos saltimbancos, dançar, envolver-se no combate da
beleza e da seda, dar-se à fadiga dissolvente do lucro. Eu pôr-lhe-ia
por epitáfio: Aqui jaz o ruído de um bocejo.

Tem todos os prejuízos do seu tempo. Tem o espírito das pequenas
maquinações femininas, das ironias dolorosas, dos escárnios
inteligentes. Adora os romances dramáticos de sangue, pelo mesmo motivo
por que as damas romanas aplaudiam a morte dos gladiadores. Todos os dias
as suas belezas lhe dizem: “Oh Cesareia, os que vão morrer saúdam-te!”
Prefere Leotard a Shakespeare isto contém um carácter.

Copia o modo de falar das actrizes. Há só uma coisa que a
distrai de admirar os saltimbancos, é ter de pensar na libré
dos lacaios.

Para ela a Natureza é uma decoração; a alma uma impertinência
dos pobres; o cemitério uma infâmia de Deus.

Assim vive na comédia do luxo, radiosa, contente, idiota, desfolhando
o corpo, pensando nos vestuários, criando enfeites, até que
Deus, por entre as névoas do cemitério, lhe mostre o último
figurino, o supremo adorno sinistro a mortalha à Benoiton!»42
A segunda carta, escrita por A., o melhor de nós todos, espírito
criador e lógico, fala largamente do escritor Estêvão
Basco: «Estive ontem», dizia a carta de A., «com Estêvão
Basco. É uma alma justa e sã, mas tímida e apaixonada,
forte para o sacrifício, cheia de nobres morais latinas, mas idealista
e nervosa, tendo assim toda a antiga virtude estóica com muitos dos
dolorosos erros modernos.

Este homem, antes que os seus livros fossem comentados e estudados, antes
de ser a voz alta e sensata para que correm todos os espíritos novos,
como para a lição visível das almas, antes de ter o seu
jornal incisivo, livre, cheio de pensamentos e de revelações
teve uma existência de miséria, numa trapeira, sem sol,
sem repouso, sem amizades purificadoras. Sentiu, uma a uma, as sete dores
que a vida costuma cravar nas almas possuídas do ideal.

Criança, tinha sofrido todas as tristezas incisivas da escola, espécie
de prólogo chorado sobre a tragicomédia humana: mais tarde,
nos positivismos da família, tinha sentido aquela luta

íntima do ideal e do real, que deixa no espírito eternas feridas,
que sangram e que alumiam.

Depois, tinha vivido, escuramente, no pequeno jornalismo, caricatura fluida
da vida cerebral, e ali tinha sofrido a intriga, a difamação,
o escárnio e a fome. Muito tempo o seu corpo chorou pelo calor e pelo
repouso, como a sua alma chorava pelo ideal e pela fé.

Hoje entre esta geração sonolenta, nocturna, inútil
e fraca, homens entorpecidos pela retórica, pelos textos, pelas regras,
que petrificam as livres palpitações do ser, que passam um traço
negro sobre o ideal, que são os fechos da Bíblia humana, que
são os 42 Este tipo, felizmente, não existe em Portugal. Podemos
aplaudir-nos desta inocência relativa.

Existe sobretudo em Nova Iorque, Paris, Londres e Sampetersburgo. É
o último resultado das civilizações violentas. Aqui está
traçado arrebatadamente, à maneira das pinturas de Goya. No
entanto existe, idiota e inofensivo, e sobretudo inofensivo.. sacristães
da arte e os glorificadores de toda a víscera morta ele, Estêvão
Basco, é o único que, voltado contemplativamente para as augustas
claridades da ciência da arte, concentrado como um solitário
antigo, vivendo pelo verdadeiro e pelo belo, vai lentamente, com dores resistentes,
levando os entendimentos para o útil, para o justo, para o verdadeiro
e para o racional.

Leu-me os seus estudos sobre a história e sobre a arte. E um livro
poderoso e cheio de vida.

Combate os petrificadores conservadores da história, cujo intento
é imobilizar nos arquivos as atitudes superficiais dos reis e das cortes.
Ele quer que a história seja a reconstrução da alma do
passado, uma ressurreição humana. Não podem bastar à
consciência crescente do homem as crónicas escassas e concisas
de batalhas de diplomacias, de aparatos e de vingança.

Estêvão Basco pensa que, há muito, na história
se tem afastado sempre para os últimos planos a grande figura do povo:
e é ele, a sua alma ambiciosa e progressiva, as suas livres palpitações,
as suas transfigurações e as suas misérias, que a história
deve surpreender.

através das literaturas e da arte. Sob este ponto de vista ele aceita
na arte todas as escolas, ou manifestações de uma tendência
espiritual, ou expressão de um estado de animalidade e de materialismo,
ou resultado de uma doença idealista e nervosa (1830) logo
que eles representem fielmente a sua época e sejam os documentos das
almas extintas. Lerás em breve este livro eloquente: provam-se as últimas
folhas.

Mas o que fará a sua voz, cheia de equidade que lhe enche o peito.
neste tempo de instintos animais e de consciências fluidas? Felizmente,
a sua alma tem ficado pura. e isolada na torre de marfim do ideal, no meio
desta vida moderna, e as sacerdotisas do luxo e todos os errantes da ambição.
E ele afasta-se sempre de todo este movimento sonoro e coberto de luz, onde
há o vago rir descorado, a retórica da graça e a largura
das saias e das consciências, para ir pensar, só, no silêncio
da alma, na família, na maternidade, no sossego, e naquela união
do homem e da mulher, limitada e divina em que ambos estendem a alma
sobre o mundo, para Deus passar por cima! Não te lembras daquelas estampas
alemãs em que os pares silenciosos. que parecem ter a loucura elegíaca
do amor, enquanto a quermesse ruge nos primeiros planos, se afastam e se perdem
no fundo indefinido da folhagem para se irem sentar à sombra
do cruzeiro? Assim é ele. Estêvão Basco todavia, na sua
serenidade superior.

não faz a sátira do luxo e da meiga farsa dos estofos e das
pedrarias. Ele, o grande obreiro desperto das ideias, apenas se ri alegremente
dos dormentes do luxo. Síbaris nunca conseguiu mais do que provocar
o riso protector de Esparta.

Para ele, não vale nada, como sintoma, este triunfo estéril
e momentâneo do luxo.

Segundo ele, o luxo audacioso, violento. bárbaro, idiota, é
apenas um pequeno desmentido grosseiro. dado à alma, tão risível
como a vaidade de um sportman que quisesse raspar Deus da Bíblia.

Dizia-me ele que as saias das mulheres não podem. como receiam os
juvenais da caricatura, ser o prólogo de uma decadência. Os sintomas
das transformações espirituais não podem partir dos jornais
de modas. Graças a Deus, um figurino ainda não é o cartaz
de uma revolução. Existe sim um luxo animal, um apodrecimento
calculado de tudo o que é Justiça e Beleza mas isto
é apenas uma doença da forma. A serenidade justa da alma nada
tem com as pequenas borbulhas que vêm à pele. São furúnculos
que se curam pela supuração. A bela saúde vital permanece
na sua pureza e na sua força. E segundo Estêvão Basco
nada pode haver mais risível e mais inofensivo do que as tiranias que
se vestem à militar, ou as decadências que se vestem à
Benoiton.

E todavia Estêvão Basco odeia aquelas mulheres, sem electricidade
e sem magnetismo, inertes e materiais, pendidas na fadiga trivial do aparato.
que foram. anuladas pelo luxo, cobertas da cabeça aos pés por
um vestuário epitáfio da graça.

Receio mais as tabuinhas do seu leque, disse-me ele, do que as grandes tábuas
do esquife.

Porque enfim, morrer é dissolver, é transformar-se: e transformar-se
é ainda viver, ter seiva, força, sol e consciência. Mas
prender-se a uma daquelas mulheres é assistir em roda de si à
queda dolorosa e ao desvanecimento dos nossos sentimentos, das nossas ambições
espirituais, das nossas ideias, das nossas criações. O seu amor
é como uma mortalha: colada ao corpo, deixa ainda pressentir que a
forma existe, e manifesta que a alma se dissipou.

Diante destas mulheres, disse ele, sinto que em lugar do coração
se me vem colocar um pedaço de cérebro. Evito-as. Não
quero dar aos meus olhos o hábito da nódoa. Não quero
que elas me esfarrapem a alma para fazer mortalhas às suas consciências.
Assim diz. Realmente naquele olhar cheio de Natureza não fazem falta
os rostos pintados. Naquela alma povoada de Deus, não fazem falta os
figurinos.»43 A terceira cana que eu abro para copiar, já triste,
é de Jacques. um pobre artista, escultor medíocre, imitador
dos gregos, que diz descaradamente os factos desta história miserável:
«Estamos ainda surpreendidos. meu amigo, pelo desenlace desta farsa
humana.

Estêvão Basco tinha conhecido numa igreja Onfália Benoiton.
Cantava-se o Requiem de Mozart. Era um ofício clerical em dia de mortos.
Tinha sido dominado por aquela beleza escultural e nervosa, toda coberta de
preto. Depois encontraram-se numa daquelas festas em que sempre me pareceu
que as camélias. flores do tédio, olham idiotamente, sem alma,
para as inquietações soluçantes do gás. Estêvão
Basco. numa sala distante da multidão magnética das mulheres,
fazia a sátira dos penteados disformes, das caudas e das cintas modernas
onde pendem argolas. Estava com o escritor Sérgio, com o antiquário
Salinas, com Sarça o cinzelador. Onfália Benoiton. que tinha
escutado, pediu-lhe que lhe escrevesse uma palavra na vara branca do leque.

Estêvão escreveu: Oh, Satã tenebroso, trágico
fulminado, Tu vencerás em mim o íntimo Deus bom, Não
com as armas bíblicas com que bateste outros: Mas vindo unicamente
vestido à Benoiton! Onfália levou-o pelo braço para as
iluminações feéricas. para a acção eléctrica
dos espelhos.

para a claridade magnética dos ombros nus, transformou-o com as suas
exalações lânguidas, com as irradiações
doentias do olhar, com aquela essência nervosa dos seus cabelos falsos,
que deviam ser mais macios ao contacto que a pura plumagem da cabeça
das rolas. Onfália Benoiton, com aquela voz abafada e velada que ela
tem às vezes, que parece que lhe estão dando beijos no coração,
disse a Estêvão Basco que lhe limpasse o vestido, enlameado nas
ruas do jardim. Estêvão limpou o pó, a humidade e a lama!
Desde então, Estevão Basco tirou lentamente da alma, uma a uma,
as santas ideias castas, a Justiça, a Beleza, a Razão, a Honra,
para dar lugar à imagem coberta de sedas e de cabelos mortos de Onfália
Benoiton.

Estêvão, com o seu trabalho severo e robusto, dava o pão
a três irmãs puríssimas e a sua mãe, velha, doente,
triste, meia desvanecida em Deus.

As doces raparigas, meigas e delicadas, como as mais lindas virgens de ouro
fino 43 Este tipo infelizmente não existe em Portugal. Devemos lamentar
esta inferioridade absoluta.

Existe em Paris, em Berlim, na Itália, na Irlanda. É a última
salvação das decadências. Aqui está traçado
transparentemente. à maneira de Ary Scheffer. No entanto existe, sublime
e criador sobretudo criador.. que se pintavam nos livros de legendas,
tinham vestidos de cassa. e todo o dia trabalhavam nos seus castos paraísos.
cheias das vozes dos canários. Ele passeava sempre com elas, nas alamedas
silenciosas, como os antigos sábios das gravuras flamengas. Desde então
Estêvão Basco nunca mais passeou nas alamedas. Desamparou a casa,
a família e a alcova cheia da celebração do estudo. Perdido
entre as despesas do luxo deixou ao abandono a mãe e as três
irmãs. Não havia dinheiro em casa.

Elas, as tristes silenciosas, bordavam, costuravam, vendiam ramos aos floristas.

No Inverno não havia lume. Nem sempre havia pão. Roxas de
frio, esfomeadas, cosiam e choravam. Foram viver para uma trapeira, batida
do vento e da chuva. Ali morreu a mãe, aquela doce alma dolorosa, numa
tarde, ao escurecer. O Sol talvez, ao ir-se, levou aquela alma por engano,
como uma pureza e uma virtude da sua luz. Ninguém tão amante,
tão triste e tão casta. Foi enterrada no cemitério, entre
a erva comum, com uma cruz. Talvez agora sobre aquela cruz cantem rouxinóis.

As raparigas tinham cabelos magníficos, indomáveis e compridos:
venderam os seus cabelos.

Estêvão, com Onfália Benoiton, errava pelas óperas.
pelos casinos, pelas salas, entre as sedas, os tules e as festas. Renegou
as fortes e sãs amizades do estudo e da ciência. O seu jornal
acabou desamparado e espoliado. Fez contratos terríveis com os editores
para livros futuros de critica e de moral. Mas não escrevia, não
pensava. não vivia pelo espírito.

Enfim casou com Onfália Benoiton. Tiveram dois anos. carnais e contentes.
Por fim, ele tinha assinado letras, foi penhorado nas mobílias. Voltou
ao pequeno jornalismo. Criou uma folha de difamação. Insultava
a tanto por linha. Veio-lhe à alma a esterilidade. Embranqueceram-lhe
os cabelos. Onfália Benoiton andava de noite com um vestido de chita.
Estêvão, esmagado, desesperado, vendeu-se de corpo e de alma
a um jogador terrível Mincoso. Roubou.

Voltaram os magnetismos do luxo. Onfália namorou-se do cinzelador
Sarça, espírito frio e retórico. Depois deu-se ao tenor
Vidalleti.

Estêvão soube. Tinha um materialismo sem dignidade. Comprou-lhe
a fidelidade com vestidos.

Estêvão dava o vestido: ela cedia o homem. Voltou a miséria.
A casa de jogo foi dispersa pela polícia. Veio a fome. Estêvão
escrevia cantigas obscenas para um editor de almanaques imbecis e infames.
Um dia encontrou Onfália com um saltimbanco. O saltimbanco atirou-lhe
dinheiro. Estêvão contou-o e saiu assobiando.

Um dia encontrou a irmã que era florista e tinha casado com um homem
trigueiro do trabalho, alma sã e vivificadora como o Sol. Estêvão
pediu-lhe para pão. “Tu não me desprezas ao menos, não
é verdade?”, disse ele. A irmã olhou-o tristemente. “Não
é verdade que me não desprezas?” “Muitíssimo”,
disse ela. Onfália Benoiton fugiu com o jogador Mincoso. Estêvão
foi viver para uma trapeira, com um coveiro e com um palhaço. Adoeceu.
Durante a febre o coveiro cosia os seus botões, cantando o ofício
dos mortos: o palhaço para estudar os saltos pulava por cima da enxerga
de Estêvão. Ele tinha então uma amante, corista de um
casino.

Ela ia todos os dias dar-lhe um caldo. O coveiro e o saltimbanco às
vezes não vinham à trapeira durante dias. Uma dessas vezes a
corista não veio. Estêvão tinha sede. Chamou. A água
estava em cima de um vão do telhado, numa bilha. Ele chorava de febre,
de sede e de tristeza. Anoiteceu.

No pátio da casa havia uma laranjeira. De noite, no silêncio,
ele ouviu cantar um rouxinol. Teve a visão da sua vida de estudo e
de serenidade. Chorava de sede. Ergueu-se tremendo e arrastou-se: no primeiro
degrau da escada do vão, caiu. O sangue caía-lhe da testa e
entravalhe na boca, com as lágrimas. Ao outro dia estava quase a expirar.

Melhorou todavia. Andou pedindo de porta em porta, com os antigos orgulhos.
que lhe dessem o pão do trabalho. Ninguém lhe deu nada.

Um dia encontrou um dos antigos camaradas das festas, a cavalo com outros.
O. camarada do luxo veio para ele e atirando-lhe o chapéu ao chão,
com a ponta do chicote: “Estás calvo, pobre homem”, disse,
rindo. “Tens tu fome?” “És bem curioso”,
disse Estêvão voltando as costas, sereno. E foi-se, assobiando.

A corista levou-o para o teatro. Ganhava ali o pão. fazendo de urso
numa mágica.

Caíram-lhe os dentes. Andava roto, com a barba crescida, lívido,
e um casaco preto. diáfano, lustroso, colado à magreza do corpo.

Conheceu então uma linda rapariga. de treze anos, clara e loura,
que pedia na rua.

Estêvão deu-lhe um lugar na trapeira. Tomou-lhe um lugar puro
e todo paterno. Para se embrutecer começou a beber aguardente. Tinha
a vista debilitada, trazia uns óculos escuros; tinha feridas nos ouvidos
e trazia-os cheios de algodão. Vivia fazendo cantigas grosseiras, para
o velho editor dos almanaques. A rapariguinha adoeceu. Era a fome, a miséria
e a febre.

Ele velava junto dela, triste, chorando, e compondo os versos imundos.

À rapariga piorava. Tremia de frio na enxerga. Ele procurava aquecê-la
com o hálito: a pobre miserável, que tinha ainda a sensibilidade
e o olfacto, fugia com o rosto, porque o hálito era mau. A rapariga
morreu.

Nesse dia ele tinha bebido longamente na taverna. Quando subiu à
trapeira. e viu a triste, inerte, fria e hirta, deu com a ponta do pé
no corpo inanimado, gritando: “Pouch!, coisa morta!” Passado pouco
tempo voltou-lhe a consciência da vida. Caiu numa tristeza dolorosa.
Veio-lhe uma saudade profunda da rapariga, morta na trapeira. Ia vê-la
ao cemitério, à vala dos pobres onde ela estava. Como ela não
gostava que ele bebesse, e ele se lembrava das lágrimas dela, não
voltou às tavernas de noite.

Ia levar rosas e rainúnculos ao cemitério, ao lugar onde ela
apodrecia debaixo da erva. Era necessário tirá-lo com violência.
Chorava pela fome que ela tinha tido, pelo frio com que ele tinha estremecido.

Ficava junto do muro do cemitério, de noite, ajoelhado. perdido numa
saudade imensa como a noite e mais doce que a Lua.

Dormia pelos adros e pelos portais. Tinha um companheiro, um cão,
com quem se embrulhava na mesma manta. O cão morreu. Ele adoeceu e
foi recolhido ao hospital.

Ali não era o escritor Estêvão Basco, era o nº
27 da sala de Santo Amaro. Uma madrugada, teve um estremecimento e morreu.
Ao outro dia de tarde foi levado para a vala dos pobres.

numa tumba da Misericórdia.».

MEMÓRIAS DE UMA FORCA Foi por um modo sobrenatural que eu tive conhecimento
deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da
sua história. Esta forca intentava escrever as suas trágicas
Memórias. Deviam ser profundos documentos sobre a vida. Árvore,
ninguém sabia tão bem o mistério da natureza; forca,
ninguém conhecia melhor o homem. Nenhum tão espontâneo
e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda a não
ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca apodreceu
e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos completos são estes que
copio resumo das suas dores, vaga aparência de gritos instintivos.
Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de sangue e de melancolia!
É tempo de sabermos, enfim, qual é a opinião que a vasta
natureza, montes, árvores e águas, fazem do homem imperceptível.
Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que
guardo avaramente, e que são as Memórias de um Átomo
e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.

Fá-lo-ei se a vasta matéria que reparte a vida do corpo o
consentir, do que duvido, felizmente.

Diz assim o fragmento que eu copio e que é simplesmente o
prólogo das Memórias: «Sou duma antiga família
de carvalhos, raça austera e forte que já na Antiguidade
deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família
hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota
tenebrosa das índias, contos de lanças para os alucinados das
Cruzadas, e vigas para os tectos simples e perfumados que abrigaram Savonarola,
Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras
e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana.
Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição
religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista.
Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não
tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva
e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No Verão,
enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se
ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boémios, cuspia
a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite,
enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral.
Quando vinha o Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para
a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!
«Por isso nós os seus filhos, não fomos felizes na vida
vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços:
ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela
chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de
vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos
ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós,
para ir ser tábua de esquife! Eu, o mais lastimável,
vim a ser forca! «Desde pequeno fui triste e compassivo. Tinha grandes
intimidades na floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação
salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o
a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de nós, doces raparigas
lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da vegetação.
Agasalhava todos os pássaros na véspera dos temporais. Era eu
quem asilava a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida,
mordida, retalhada pelo vento! Eu abria-lhe as ramagens e as folhas, e escondia-a
ali, ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Então
a pobre chuva, que o via longe, assobiando lascivo, deixava-se escorregar
silenciosamente pelo tronco, gota por gota, para o vento a. não perceber;
e ia, de rastos, por entre a erva, acolherse à vasta mãe Água!
Tive por esse tempo uma amizade com um rouxinol, que vinha conversar comigo
durante as longas horas consteladas do silêncio. O pobre rouxinol tinha
uma pena de amor! Tinha vivido num país distante, onde os noivados
têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo chorava
em suspiros líricos. E tão mística pena era que me disseram
que o triste, de dor e de desesperança, se deixara cair na água!
Pobre rouxinol! Ninguém tão amante, tão viúvo
e tão casto! Dorme na sepultura errante da água, entre o lodo
de todos. Eu queria proteger todos os que vivem. E quando as raparigas do
campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia sempre as minhas ramagens,
como dedos, para apontar à pobre alma aflita de lágrimas todos
os caminhos do Céu! «Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade distante!
«Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles
homens metálicos que fazem o tráfico da vegetação,
veio arrancar-me à árvore. Não sabia eu o que me queriam.

Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois começaram
a caminhar, enquanto ao lado um homem cantava no silêncio da noite.
Eu ia ferido e desfalecido. Via as estrelas com os seus olhares lancinantes
e frios. Sentia-me separar da grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido
e arrastado das árvores. Eram vozes amigas que me chamavam! «Por
cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia-me desfalecer, num torpor vegetal,
como se estivesse sendo dissipado na passividade das coisas. Adormeci. Ao
amanhecer, íamos entrando numa cidade. As janelas olhavam-me com olhos
ensanguentados e cheios dum sol irado. Eu só conhecia as cidades pelas
histórias que delas contavam as andorinhas, nos serões sonoros
da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas via os fumos
e um ar opaco. Ouvia o rumor áspero e desafinado, onde havia soluços,
risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos
metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um
pátio infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então
a compreender que uma grande imundície cobre a alma do homem, porque
ele se esconde tanto das vistas do Sol! «Uns homens vieram, que me deram
desprezivelmente com os pés. Eu estava num estado de torpor e de materialidade,
que nem sentia as saudades da pátria vegetal. Ao outro dia, um homem
veio para mim e deu-me golpes de machado. Não senti mais nada. Quando
voltei a mim, ia outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava
os bois, cantando.

Senti lentamente renascer a consciência e a vitalidade. Parecia-me
que eu estava transformado numa outra vida orgânica. Não sentia
a magnética fermentação da seiva, a energia vital dos
filamentos e a superfície viva das cascas. Em redor do carro iam outros
homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e compassiva da Lua, tive uma
saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de toda a grande
alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu sentia que ia para
uma vida real, de serviço e de trabalho. Mas qual? Tinha ouvido falar
das árvores, que vão ser lenha, aquecem e criam, e, tomando
entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus
braços de chamas para se desprender da terra: essas dissipam-se na
augusta transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a
intimidade das estrelas e do azul, viver na serenidade branca e altiva dos
imortais, e sentir os passos de Deus! «Eu tinha ouvido falar das que
vão ser vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem
na penumbra amorosa a doce força dos beijos e dos risos; são
amadas, vestidas, lavadas; encostam-se a elas os corpos dolorosos dos Cristos,
são os pedestais da paixão humana, têm a alegria imensa
e orgulhosa dos que protegem; e risos. das crianças, ais namorados,
confidências, suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar
as murmurações da água, o estremecimento das folhas,
as cantigas dos ventos toda essa graça escorre sobre elas,
que já gozaram a luz da matéria, como uma imensa e bondosa luz
da alma.

«Eu tinha ouvido falar também das árvores de bom destino,
que vão ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as
legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas águas, através
do infinito, entre surpresas radiosas como almas arrancadas do corpo
que fazem pela primeira vez a viagem do Céu! «Que iria eu ser?…
Chegámos. Tive então a visão real do meu destino.
Eu ia ser forca! «Fiquei inerte, dissolvida na aflição.
Ergueram-me. Deixaram-me só, tenebrosa, num campo.

Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida. O meu destino era matar.
Os homens, cujas mãos andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de
pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um cúmplice! Eu
ia ser a eterna companheira das agonias. Presos a mim, iam balouçar-se
os cadáveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas! «Eu
ia dar esses negros frutos: os mortos! «O meu orvalho seria de sangue.
Ia escutar para sempre, eu a companheira dos pássaros, doces tenores
errantes, as agonias soluçantes, os gemidos de sufocação!
As almas ao partir, rasgar-se-iam nos meus pregos. Eu, a árvore do
silêncio e do mistério religioso, eu, cheia de augusta alegria
orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora,
havia de mostrar-me às nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas
puros e justos, eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a podridão,
de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadáver pelo
pescoço, para os corvos o esfarraparem! «E isto ia ser! Fiquei
hirta e impassível como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem
morrer.

«Era a aflição. Eu via ao longe a cidade coberta de
névoa.

«Veio o sol. Em roda de mim começou a juntar-se o povo. Depois,
através dum desfalecimento, senti o ruído de músicas
tristes, o rumor pesado dos batalhões, e os cantos dolentes dos padres.
Entre dois círios, vinha um homem lívido. Então, confusamente,
como nas aparências inconscientes do sonho, senti um estremecimento,
uma grande vibração eléctrica, depois a melodia monstruosa
e arrastada do canto católico dos mortos! «Voltou-me a consciência.

«Estava só. O povo dispersava-se e descia para os povoados.
Ninguém! A voz dos padres descia lentamente, como a última água
duma maré. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de
mim, hirto, esguio, com a cabeça caída e deslocada, estava o
enforcado! Arrepiei-me! «Eu sentia o frio e a lenta ascensão
da podridão. Ia ficar ali, de noite, só, naquele descampado
sinistro, tendo nos braços aquele cadáver! Ninguém! «O
sol ia-se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadáver? Tinha passado
já? Tinha-se dissipado na luz, nos vapores, nas vibrações?
Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadáver,
a corda rangia.

«Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. Não
podia ficar ali só. O vento levarme- ia, atirando-me, aos pedaços,
para a antiga pátria das folhas. Não. O vento era brando: quase
somente a respiração da sombra! Tinha vindo então o tempo
em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada às feras
humanas? Os carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com
justiça, vir o machado e as cordas buscar os ramos criados pela seiva,
pela água e pelo sol, trabalho suado da natureza,. forma resplandecente
da intenção de Deus, e levá-los para as impiedades, para
os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes onde apodrecem
os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das religiões,
já não serviam senão para executar as penalidades humanas?
Serviam só para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e
os condenados se torcem? Não podia ser.

«Pesava sobre a natureza uma fatalidade infame. As almas dos mortos,
que sabem o segredo e compreendem a vegetação, achariam grotesco
que as árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta
com os braços estendidos, para abençoar a terra e a água,
fossem arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o braço
da forca para abençoar os carrascos! «E depois de sustentarem
os ramos de verdura que são os fios misteriosos, mergulhados no azul,
por onde Deus prende a terra fossem sustentar as cordas da forca, que
são as fitas infames, por onde o homem se prende à podridão!
Não! se as raízes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos
faziam estalar de riso a sepultura! «Assim falava eu na solidão.
A noite vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava-se ao vento.

Comecei a sentir palpitações de asas. Voavam sombras por cima
de mim.

Eram os corvos. Pousaram. Eu sentia o roçar das suas penas imundas;
afiavam os bicos no meu corpo; penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.

«Um pousou no cadáver e pôs-se a roer-lhe a face! Solucei
dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma árvore
das florestas a quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos
corvos, e para que os homens dependurassem de mim os cadáveres, como
vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! soluçava
eu ainda eu não quero ser relíquia de tortura: eu alimentava,
não quero aniquilar: era a amiga do semeador, não quero ser
a aliada do coveiro! Eu não posso e não sei ser a Justiça.
A vegetação tem uma augusta ignorância: a ignorância
do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são
os mesmos corpos invioláveis, para a grande natureza sublime e compassiva.
Ó meu Deus, liberta-me deste mal humano tão aguçado e
tão grande, que se traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza,
e ainda te vai ferir, a ti, no Céu! Oh! Deus, o céu azul, todas
as manhãs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza imaterial
e fluida da brancura, a transfiguração pela luz, toda a bondade,
toda a graça, toda a saúde: não queiras que,
em compensação, eu lhe mostre, amanhã, ao seu primeiro
olhar, este cadáver esfarrapado! «Mas Deus dormia, entre os seus
paraísos de luz. Vivi três anos nestas angústias.

«Enforquei um homem um pensador, um político, filho
do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal, combatente da
Luz. Foi vencido, foi enforcado.

«Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com
ela. O seu crime era o amor, que Platão chama mistério, e Jesus
chamou lei. O código puniu a fatalidade magnética da atracção
das almas, e corrigiu Deus com a forca! «Enforquei também um
ladrão. Este homem era também operário. Tinha mulher,
filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve trabalho, nem
lume, nem pão. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi enforcado
ao Sol-posto. Os corvos não vieram. O corpo foi para a terra limpo,
puro e são. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar
de mais, como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

«Enforquei vinte. Os corvos conheciam-me. A natureza via a minha dor
íntima; não me desprezou; o Sol alumiava-me com glorificação,
as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole nudez, o vento falava-me e contava
a vida da floresta, que eu tinha deixado, a vegetação saudava-me
com meigas inclinações da folhagem: Deus mandava-me o orvalho,
frescura que prometia o perdão natural..

«Envelheci. Vieram as rugas escuras. A grande vegetação,
que me sentia esfriar, mandou-me os seus vestidos de hera. Os corvos não
voltaram: não voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade
da natureza divina. As eflorescências, que tinham fugido de mim, deixando-me
só no solo áspero, começaram a voltar, a nascer, em roda
de mim, como amigas verdes e esperançosas. A natureza parecia consolar-me.
Eu sentia chegar a podridão. Um dia de névoas e de ventos, deixei-me
cair tristemente no chão, entre a relva e a humidade, e pusme silenciosamente
a morrer.

«Os musgos e as relvas cobriam-me, e eu comecei a sentir-me dissolver
na matéria enorme, com uma doçura inefável.

«O corpo esfria-me: eu tenho a consciência da minha transformação
lenta de podridão em terra. Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo-me
já pelas raízes. Os átomos fogem para toda a vasta natureza,
para a luz, para a verdura. Mal ouço o rumor humano. Ó antiga
Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu
corpo! Vejo ainda indistintamente a aparência humana, como uma confusão
de ideias, de desejos, de desalentos, entre os quais passam, diafanamente,
bailando, cadáveres! Mal te vejo, ó mal humano! No meio da vasta
felicidade difusa do azul, tu és, apenas, como um fio de sangue! As
eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar-me! Não
é verdade que ainda lá em baixo, no poente, os abutres fazem
o inventário do corpo humano? ó matéria, absorve-me!
Adeus! para nunca mais, terra infame e augusta! Eu vejo já os astros
correrem como lágrimas pela face do céu. Quem chora assim? Eu
sinto-me desfeita na vida formidável da terra! ó mundo escuro,
de lama e de ouro, que és um astro no infinito adeus! adeus!
deixo-te herdeiro da minha corda podre!» Assim era a história
testamentária da forca abandonada e morta! Oh meu Deus, se os seus
átomos fossem agrupar-se e solidificar-se para fazerem o maquinismo
da arma chassepot?….

APÊNDICE INÊS DE CASTRO (fragmentos) D. Pedro Como ela é
bela! Que mulher, que olhos! Por ela daria este castelo e a ameia.

Ela é como um lírio entre os abrolhos! Como eu a amo! Que
mulher! Que meia! Casar com ela? Porque não? Inês Não
nasceu no curral de um abegão: O sangue que roseia a sua tez Vem das
veias do duque de Aragão.

Ora afirmam os livros de juízo Que Adão, depois de feito,
ao acordar Achou lá nos jardins do Paraíso Os duques de Aragão
a passear.

Mas para o Papá, que escândalo daninho.

Como ele vai arrepelar a pele! E quantos pontapés ao escabelo Lá
nos paços reais de São Martinho! Pior! Se eu teimo neste meigo
trilho, O mundo verá desastre sem igual: Afonso IV, rei de Portugal,
Com o ceptro de ouro espancando o filho! (pausa) E se eu deixar que o meu
coração rompa Os preconceitos? Se eu fugir com ela E me acolher
a terras de Castela.

Ganhando a minha vida a ensinar trompa? Perdê-la… não! Que
preço tem a vida Sem o sorriso dos seus olhos doces? Sem o seu riso,
o seu falar de sereia? Dou a coroa real por bem perdida.

Só por a ver sentada, a fazer meia.

Foi-se. Acabou-se. O meu amor profundo Será fiel às juras
que jurámos.

Que me pertença Inês, e com mil demos Acabe o Reino e que rebente
o Mundo!.

………………………………………………………

D. Pedro Agora, juntos, por detrás do velho muro, Dom Pedro e Dona
Inês jantando.

Não se vê, mas há um aio venerando Que os serve em baixela
de ouro puro.

Já o cheiro se espalha. não o sentes? De um chorumento caldo
de galinha.

Que foi cuidado pelas mãos ingentes Da que depois de morta foi rainha?
Segue a rica vitela da Lafões.

No covilhete vêm as azeitonas, Com a batatinha bem assada e loura.

A salada é de alface e de cenoura; E sobre o arroz negrejam salpicões.

Lá vem o peru. Admirai o peru! Surge ao lado a divina cabidela: E
pela gana com que vai sob’ela, Bem se vê que Dom Pedro há-de
ser Cru.

Em seguida se ostenta uma lampreia Guisada; e, logo atrás, a bela
lula.

Misturam carne e peixe? Mas o Senhor Infante já tem bula.

Depois a açorda de alho. Que delícia Quando comida à
beira do Mondego! O leitãozinho assado com perícia E o presunto
sublime de Lamego.

Mas eis que os doces entram com arranco.

O desejado arroz com a canela; O pastel de Tentúgal, a morcela, O
bolo podre e o manjarzinho branco.

Tudo se some na real goela.

Fica limpa a travessa e o covilhete.

Sem que o Infante, ao seu colete, Desaperte a fivela…

Não se conta na crónica os vinhos Que se esgotaram no jantar
real! Corramos sobre o caso honesta venda, Por se tratar de um rei de Portugal..

Depois o Infante, todo recostado, Saboreou com um sorriso farto e aberto,
Café que ainda não fora descoberto E charuto que depois foi
inventado…

………………………………………………………

Estavam eles dois postos em sossego, Cedendo do amor a doce lei, Quando
lá em Lisboa o velho Rei, Soube do que ia cá pelo Mondego.

Enverga logo o seu real pelote, Manda fazer a mala à camareira E
grita: dai-me ca um bom chicote, Que eu vou a Coimbra ver a maroteira! Catrapuz,
catrapuz, Sobe o seu ginete, Passa por Queluz, Entra em Alcochete.

Pela estrada branca Que no pé se estira, Chega a Vila Franca, Que
chamam de Xira.

E o Infante e Inês tão descuidados, Com os dedos sobre a mesa
entrelaçados.

Num castelo além, Num cerro, O Rei diz contente: Cá está
Santarém! E o Infante e Inês, com a alma em festa, Trocando beijos
no calor da sesta.

Já rompe a manhã.

Cada um o note, Quando El-Rei a trote, Chega à Golegã.

Numa hospedaria El-Rei se acolheu, Que a noite o colheu Em plena Leiria.

De novo a cavalo.

Depois ele deixa A estrada real; E, adeus Pombal,.

Penetra em Condeixa.

E o Infante e Inês, em doce enleio, Rindo, partem ambos a bolacha
pelo meio.

O termo está perto, Avista telha, E erro ou certo, Está Formoselha.

Dom Afonso timbra, No seu galopar, Galope fremente, Poeira no ar, Pra frente,
pra frente, Lá está Coimbra! À quinta chegou, As rédeas
largou; Corcel desmontou.

No pomar parou, Subtil espreitou.

E agora é que são elas, meus senhores, Que um luto vai cobrir
esses amores! Dom Afonso entra.

O Infante, Inês…

É tempo: vou chamar o assassino.

Rente ao muro, Devagarinho, No manto escuro Todo embuçado, Do colarinho
Té ao joelho, Vem o daninho, Vem o malvado, Pêro Coelho.

Toma Inês, no entanto, um menino.

E outro menino.

Tão enlevada, Que até nem ouve, Sob a latada, A tosse seca,
Do assassino.

Mas, súbito, Coelho,.

Aceso em furor, Arroja a capa, Larga o chapéu, Ergue o punhal, Despede
um salto! Horror, horror, horror!…

Caminhante! Na página fronteira Tu vês D. Pedro, o Cru, forte
e sem medos, Ceando! Pedro pra quem o coração humano Depois
de assado já não tem segredos..

A MORTE DE JESUS Por estranhos acasos encontrei este velho manuscrito copiado,
num latim bárbaro, do antigo papiro primitivo. Não o traduzo
textualmente: seria incompreensível, irritaria os nossos hábitos
críticos, psicológicos! Transporto para a linguagem moderna,
complexa, dúctil, sábia, o estreito dizer antigo.

Assim ordenado, este documento, que não encerra coisas novas, põe,
todavia, em relevo muitos estados de espírito, muitas situações
civis de uma pessoa excepcional, que tem notavelmente merecido nestes últimos
tempos a atenção da história e da crítica 44 Jerusalém,
Mediterranean Hotel, no Acra, 1 de Dezembro de 1869.

Dies irae, dies illa…

I Eu sou o mais velho da geração desse homem: aqui vivo, afastado
da cruel Jerusalém, em Betlem, junto desse poço que tem uma
água tio fresca e consoladora que David a lamentava no desterro.

Os outros onde estão? Onde estais vós. Tomás, Mateus,
Simão, Pedro, João? Onde estais vós? Judas de Karioth
sei que morreu obscuro e sossegado no campo de Haceldama; Pôncio Pilatos
esta em Espanha, retirado e pobre, ele o velho amigo de Tibério. Antipas,
Herodíade, andam na aflição dos desterros; Hanan morreu,
mas a sua memória e a sua doutrina ainda governam o Templo. Onde estão
os mais: Nicodemus, José, Maria de Cleofas, a santa mulher, Gamaliel,
o sábio doutor? Uns estão no vale de Josafá, outros no
vale de Hinon, todos esquecidos. Tanto a memória do homem é
como a onda fugitiva e pérfida! É por isso, para que se não
perca a lembrança daquele homem, justo e bom, que eu procuro dizer
com simplicidade e verdade tudo quanto vi e compreendi da sua vida; tão
breve pelos dias, tão longa pelas dores.

Quando o conheci em Jerusalém, pela festa da Páscoa, era eu
moço. A minha vida passavase toda no Templo. O Templo, reconstrução
de Herodes, o Grande, estava então novo e resplandecente: ainda se
trabalhava nos pórticos exteriores. Ali era o centro de Jerusalém:
ali se orava, se celebrava, se tratavam as questões civis, se julgavam
os 44 Este trabalho de Eça de Queirós, escrito por ocasião
da sua viagem ao Egipto e à Palestina em 1869, foi publicado em 1870
na Revolução de Setembro, ficando, todavia, incompleto.

O meu nome é Eliziel, e fui capitão da polícia do Templo:
estou velho e inclinado para a sepultura: e antes de me deitarem para a Eternidade
sob uma pedra lisa, em Josafá, ou nas mortuárias de Siloeh,
quero contar o que sei e o que vi de um homem excelente, que na minha mocidade
esteve, pelos acasos providenciais da simpatia, intimamente ligado à
minha vida. Nestes últimos tempos, sobretudo, a sua Imagem vive activa
e poderosa no meu cérebro; e quando, pelo findar da tarde, a esta luz
magoada que então habita no céu da Judeia, eu me vou sentar
junto ao branco túmulo de Raquel olhando as muralhas de Jerusalém
e a velha Suo, cheia de claridade, e as ruínas de David, é nele
que penso e nesses tempos distantes em que eu tinha a força,
a barba escura, o andar ágil e firme, e a esperança fácil..
condenados, se estabeleciam as escolas rabínicas da Lei, se discutiam
os éditos de Roma, o procedimento dos legados imperiais e dos procuradores,
se curavam os doentes, se tramavam as sedições. Os romanos não
podiam entrar no templo: no átrio da primeira galeria havia inscrições
em grego e em latim que vedavam aos gentios, aos pagãos e aos samaritanos
penetrar além. No entanto nós víamos sempre os romanos
nos terraços da Torre Antónia, que domina o recinto do Templo,
observarem, rirem, dormirem ao sol, ou pela tarde jogarem a barra, exercitarem-se
em lutas.

A mim, como oficial da polícia do Templo, competia-me abrir, fechar
as portas, impedir que se entrasse no santuário com bastões
ou armas, que se sujassem as lajes dos terraços com lama, que se passasse
com fardos, ou que viessem orar junto às colunas do santuário
os que estavam tocados de impureza.

Eu era escrupuloso e atento e desgostava-me (e muitas vezes o disse) que
o serviço do culto autorizasse factos indignos da santidade da Lei,
e da consagração do lugar, porque, no recinto do Templo, vinham
estabelecer-se toda a sorte de vendedores e de bazares: vinham ali vender
os animais para os sacrifícios, os estofos, os véus, as faixas
de Tiro, trocava-se a moeda, negociava-se o azeite: e, como o Templo era o
centro vital de Jerusalém, havia ali toda a semelhança de uma
feira: pregões, fardos, arcas; e mais parecia o mercado pagão
de Cesareia, do que o interior da casa de Deus.

Outra coisa me irritava ali, singularmente: eram os fariseus, os escribas,
e os doutores da Lei; não os estimo: entre eles só vi acrimónias,
ódios, disputas estéreis.

Nunca compreendi o orgulho dos doutores nem mesmo o seu desprezo pela sabedoria
grega: meu pai cultivava as letras helénicas, e tinha-me dado um conhecimento
daquela ciência, incorrendo assim na ira dos doutores fariseus, que
envolvem na mesma maldição o que cria porcos, e o que ensina
a seu filho a ciência grega. Meu pai tinha viajado no Egipto, em Alexandria,
e aí se tinha ligado com um sábio, Filou, judeu pela mie, grego
pela alma, de quem os mestres das sinagogas diziam o maior mal.

Desde então tinha-se tomado de afeição pela ciência
grega, e, velho, entretinha-se a fazer passar ao meu espírito as grandes
doutrinas daquelas gentes. Ora o ódio dos escribas pela ciência
helénica indignava-me. Demais, eles são repulsivos e grosseiros.

Os fariseus, especialmente, são ásperos, desdenhosos, maus,
respeitando mais as minuciosidades do culto, do que o espírito da Lei.
Em tudo cheios de artifício e de vaidade: se entram na sinagoga, querem
o melhor lugar, o mais largo, e todos os vêem batendo no peito sob a
amplidão do manto: se vão pela rua ou pelo campo, prostram-se
ruidosamente a orar, se vêem o olhar do homem: se dão uma esmola,
contam-na como virtude, apregoam-na como exemplo: e sempre argumentando, vociferando,
enchendo o santuário de disputas e de invectivas! Se numa ceia, algum
dos convivas faz a ablução sobre a testa, com a mão longa,
em lugar de a fazer só com dois dedos, amaldiçoam-no, clamam
pelas iras de Jeová e levantam-se escandalizados: nunca ninguém
os vê consolar uma viúva, ou ajudar um velho a andar: os pobres,
os abandonados, são para eles como os que estão tocados da peste:
caminham com os olhos fechados para não verem as mulheres, e com os
pés nus para se ferirem nas pedras: mas por baixo do seu zelo, são
cheios de apetites, como um homem sanguíneo! Quanto é melhor
que estes o alto sacerdócio, que é todo da seita dos saduceus
e dos boetozins: há ai mais sinceridade, e mais elemento humano: são
homens pacatos e faustosos, que intrigam com Roma, não têm zelos
nem devoç6es irritantes, amam o sossego, as lindas casas de campo junto
a Silo ou para além de Bezeta, os moles estofos de Sídon, ou
as belas mulheres de Idumeia.

Mas o que na vida do Templo me indignava superiormente, era o vê-lo
tornado um lugar de comércio, de venda e de troca de moeda. E foi por
este ódio aos mercadores do Templo, que além disso me tornavam
a polícia difícil e fatigante, que eu conheci o. homem inefável,
por quem os meus olhos ainda se humedecem.

Um dia, entrava eu na Galeria de Salomão, que é a que tem
três ordens de colunas, o tecto de cedro lavrado, e olho para o Monte
das Oliveiras. Era na festa da Páscoa e na multidão dos peregrinos.
Um soldado da milícia do Templo tinha-me dito que, contra os avisos,
dois mercadores de pombas e de carneiros tenros tinham-se vindo encruzar nas
suas esteiras junto das colunatas, com as reses enfeitadas de escarlate, e
os cestos de aves brancas. Eu ia, cheio de cólera, para os condenar,
quando vi em redor uma confusa gente dominada pelo forte ruído de uma
voz: defronte dos mercadores, havia um homem de pé, que lhes falava.
Era alto, magro, fraco: tinha os cabelos louros, pendentes, separados ao meio,
cabelos de homem de Galileia: mesmo, percebi logo, pelo acento e pela pronúncia,
que ele era galileu: naquele momento o seu rosto era irritado e severo: tinha
o gesto largo ao modo dos que pregam nas sinagogas, tinhas as feições
inflamadas os olhos cheios de uma luz indignada: a sua estatura erguida pela
cólera, enobrecida pela justiça das suas palavras, cheia do
seu pensamento, fazia-o parecer mais que um homem.

Os mercadores, assustados, recolhiam os cestos, dobravam as esteiras, arrastavam
as reses: as pombas esvoaçavam.

Ide! disse-lhes ele então vós fazeis
da casa da oração uma caverna de ladrões.

E com a mão violenta empurrou-os largamente, para além das
colunas. Eles iam, tomados de temor. Os homens em redor tinham uma aprovação
simpática para o de Galileia: alguns riam, havia crianças assustadas
que gritavam. Eu olhava, admirado.

Quem é este? perguntei a João, um galileu,
que estava junto dele, e que eu conhecia de o ter encontrado no átrio
da casa de Hanan.

Não o conheces tu? É Jesus de Nazaré, profeta
de Galileia! II Durante a minha vida do Templo eu tinha visto muitos videntes,
muitos profetas: vinham da Galileia, da Judeia, de todo o pais que vai até
Jopé. Não direi o que penso da intenção profética
e da crença messiânica. Só direi que os profetas que no
meu tempo vieram e eram lapidados às portas de Jerusalém eram
bons; eram uma voz colectiva, a esperança, a consolação
e o alívio.

O povo era profundamente infeliz: os saduceus afogados nos seus repousos,
os fariseus perdidos nas suas devoções, os escribas e doutores
absorvidos nas suas escolas, não viam o estado das almas. Além
de tudo, estavam longe do povo, numa separação desdenhosa e
enfática. Eu estava profundamente ligado ao povo pela raça e
pelo instinto. Já na vida estreita e toda comum de Jerusalém,
já nas conversações dos átrios do Templo, já
nas minhas demoras em Bethel, em Efraim, em Galileia, eu via, compreendia,
sabia o povo. Infeliz, desprezado, eternamente escravo, esmagado pelo tributo
da dominação e pelo dízimo, refugiava-se, maltratado
da terra, na esperança de um libertador, de um Messias. O Judeu é
dado a preocupações divinas e a sua verdadeira pátria
é em Deus.

Uma série de homens fortes e piedosos eram os intérpretes
deste desejo ideal, eram a voz daquela melancolia e eram os amigos do pobre,
os ásperos juizes do rico, os consoladores austeros.

O povo, sufocado pela sua paixão interior, sentia-se aliviado e consolado,
quando um profeta falava. Os profetas confirmavam a vinda do Messias, diziam-lhe
a figura e as acções, a piedade e a paixão, esfarrapavam
os seus vestidos, iam viver no deserto: daí a exaltação
tornava-se um estado natural e humano, as almas cresciam em desejo e. vontade.
De sorte que todos os anos apareciam videntes e inspirados, que o Sanedrim
mandava lapidar à Porta Esterquilinária. Mas lamentavam-no,
porque o povo segue sempre todo o movimento que seja original, amigo do pobre,
anunciador da boa nova: Schammaï, Hillel, Jesus de Sirach, que tiveram
altos pensamentos de pureza e de justiça, viveram ignorados da Judeia
e da Galileia porque não saiam do meio simples e infeliz, porque não
pregavam em nome da esperança religiosa, não tinham a paixão
messiânica. Eram espíritos sábios e justos, e não
videntes possuídos de fé.

Ora nesse tempo à esperança do Messias era activa. Clamavam
por ele a Deus, jejuavam, oravam, para não morrerem antes da vinda
dele; tinham desalentos, esperavam avidamente os sinais místicos, e
as almas falavam baixo, porque vinha o Senhor! Eu mesmo tinha visto muitos
profetas, muitos mestres Inovadores; não conhecia João Baptista,
que vivia no deserto do Jordão, mas sabia que ele também pregava
um renascimento, e que, tendo escandalizado a olímpica Herodíade,
se definhava numa prisão de Antipas.

No entanto nunca nenhum desses homens me dera uma sensação
feliz como esse Jesus de Nazaré. Os seus olhos cheios de infinito,
a sua voz poderosa e serena, a justiça das suas palavras deixaram-me
numa vaga e imprevista perturbação como quando se olha para
o céu, que se supõe escuro, e de repente se vê uma estrela
imortalmente luminosa.

Nessa tarde, como eu caminhasse pela encosta de Suo para o lado do horto
de Salomão, com Simeon, escriba do Templo, perguntei-lhe se conhecia
Jesus de Nazaré, que pregava na Galileia. Simeon disse-me, com um riso:
Que sabes tu que possa vir de bom de Nazaré? Realmente toda
a Galileia é muito desprezada pelos de Jerusalém. Fomos conversando
nesta apreciação; Simeon dizia-me que os galileus eram fracos,
femininos, imbecis; que eram ignorantes e pouco ortodoxos: que o sangue estava
neles muito misturado: que tinham muito de Samaritano: que a sua pronúncia
era viciosa: que eram grotescos a falar, insuficientes a pensar: e que idiotismo
galileu era um provérbio de Jerusalém. Eu respondia que a gente
de Galileia me parecia simples e delicada: que quem vive numa Natureza tão
humana, tão cheia de águas, tão auxiliada das sombras,
não podia deixar de ter qualidades finas, e harmoniosas; os galileus
eram trabalhadores e sóbrios: e que Isaías tinha dito: «Ó
terra de Zabulon, e terra de Neftali, caminho do mar, Galileia dos gentios,
o povo que caminhava na sombra viu uma grande luz!» Ora, Simeon
dizia eu estas palavras de Isaías indicam que em Galileia
pode nascer um profeta! Íamos assim largamente conversando, quando
chegámos ao horto de Salomão: a natural beleza, as árvores,
as vinhas, a perspectiva suave e recolhida dos vales de Jerusalém,
a silenciosa espessura. a fresca serenidade, os bandos de pombas que vêm
beber aos velhos reservatórios de Salomão, fazem daquele lugar
um retiro bom para espíritos sábios, para aqueles que têm
no coração uma ideia, ou que são habitados por uma esperança:
ali se reúnem assimmuitos de Jerusalém! Naquele dia andava ali,
absorvido, grave e vagaroso, o sábio Gamaliel. Gamaliel era o maior
do Templo: se os outros eram o poder, a intriga, a riqueza, a tradição
ele era a ciência: se os outros eram a lei ele era a
justiça. Eu, preocupado pelo Nazareno, perguntei a Gamaliel se conhecia
aquele homem severo.

Pelo que sei dele disse Gamaliel penso que é
um justo.

Guardei com amor esta palavra: ela correspondia à atracção
suave e piedosa que eu sentia pelo severo mestre da Galileia. Ao voltar a
Jerusalém pensava nele: via-o Irritado e augusto: imaginei-o cheio
da cólera do justo e da rebelião do oprimido: o que. ele pregava
decerto era a condenação do rico. e a humilhação
do fariseu. Era o que tu precisavas, Jerusalém, dizia eu, era um profeta
amado e seguido, que fosse a alma de uma infinita desgraça que se vinga,
que erguesse o povo, aniquilasse os sacerdócios corrompidos, expulsasse
o Romano, que reconstituísse nas almas a velha Israel, nas instituições
a velha Judeia, que fosse o homem forte e puro, e o continuador dos Macabeus.
Produzira a Galileia esta alma terrível?. Ou será Elias ressuscitado
de entre os mortos? Assim pensava, encaminhando-me, pela noite pesada, para
a casa de Hanan.

Hanan era o grande-sacerdote, ainda que na realidade e nas coisas do Templo
o fosse seu genro Caifás; mas ele era o espírito, a direcção,
o conselho, a iniciativa de toda a vida sacerdotal do Templo, Era velho, sabedor
das tradições, astuto, possuía enormes riquezas, conspirava
contra Roma, era concentrado e soberbo.

Num dos largos pátios cobertos de sua casa em Bezeta era um costume
reunirem-se em volta de um grande fogo, quando o frio entristecia Jerusalém,
os oficiais do Templo: às vezes vinham escribas, doutores, sacerdotes
afáveis. Aquele grupo, sempre igual, era como uma consciência
um pouco mordente do Templo. As vezes, quando não estava algum austero
doutor fariseu, pedia-se a um soldado expedicionário que entrasse para
junto do lume, dava-se-lhe do vinho de Sídon e das colinas do Líbano
e pedia-se-lhe que cantasse alguma das cantigas latinas do bairro de Suburra.
Alguns velhos sacerdotes riam nas suas barbas brancas. Nessa noite, quando
eu atravessava o átrio de Hanan, cruzei-me com aquele galileu, João,
que eu tinha visto junto a Jesus de Nazaré, na Galeria de Salomão.
Ele costumava vir ali ver uma velha, guardadora dos cães, que era de
Cafarnaum, na Galileia. Chamei-o, tomei-lhe as mãos, falei-lhe afavelmente
em Jesus de Nazaré: eu enfim compreendia bem aquele que, por um imprevisto
interesse, pela elevação da sua palavra, pela beleza do seu
aspecto, habitava já no meu peito, como um amigo da antiga mocidade!
III João disse-me vagamente todo o passado de Jesus, em palavras simples,
mas penetradas de fé e de desejo.

Eu reconstruí então em espírito a vida obscura de Jesus;
vi-o, pela intuição, em Nazaré, educado por aquela doce
paisagem da Galileia, sob a influência do Carmelo, das serras do Tabor
e das terras patriarcais.

Eu tinha ali viajado, e muitas vezes me tinha sentado num rochedo nas alturas
de Nazaré. Se algum lugar há no mundo em que o homem sinta a
estreiteza da vida civil, a instabilidade dos interesses, o contingente e
fugitivo das afeições e dos desejos, é ali, naquele vasto
e sossegado horizonte, em que parece que o céu exerce mais profundamente
a sua atracção infinita sobre a alma cativa.

Que pomares, que prados, que humanas águas, que aldeias delicadamente
adormecidas entre as figueiras e as vinhas! E eu via Jesus, imaginando, esperando
naquele húmido paraíso da Galileia e nas suas montanhas queridas,
de belas formas amorosas! Via-o com os seus primeiros amigos, já possuído
da ideia do seu Deus, entrando a falar nas sinagogas, correndo as aldeias,
ajudando as pescas, dormindo nos largos terraços sob a luz das estrelas
tão belas, tio expressivas como na velha Caldeia; chamando os que encontrava
para que o amassem, acariciando os fracos, e dando-se a si e ao Deus interior
que o habitava, em alimento às almas infelizes.

Os de Jerusalém, que nunca saíram das suas estreitas e duras
ruas, e apenas têm visto da Natureza as suas colinas calvas e os seus
vales cheios de mortos, riem quando se lhes fala na Natureza do Norte, na
fecundidade da Samaria e da Galileia e na. excelência daquela gente.

Pois se Jerusalém tem de ser erguida das suas choradas humilhações,
será por alguém. vindo do lado das aldeias e dos lagos da Galileia!
Esta Jerusalém áspera, seca, toda de pedra e de indiferença,
só fará espíritos estreitos, fariseus argumentadores,
escribas e lapidadores de homens. O sangue de Judas Galaunete, de Hillel,
do filho de Sirach, de Gamaliel, de todos os homens justos do nosso tempo
é parente da seiva das árvores da Galileia. Uma elevação
ideal sai daquelas sombras e do rumor daquelas águas. Jerusalém
será a lei, a autoridade, a sabedoria, a habilidade, a astúcia;
mas a Galileia será a virtude e o sacrifício.

Ali não há cidades: há as pequenas aldeias sírias
que eu amo, onde as mulheres têm o seio pacífico, os homens a
força serena, e até os pequenos burros têm um olhar doce,
em que parece habitar uma resignação humana. Tudo é fecundo,
bem cultivado: a abundância impede a hostilidade ao imposto, a avareza,
a economia áspera, qualidades de Jerusalém. Ah! lâminas
douradas do Templo, túmulos gregos dos Herodes, com relevos de folhagens,
como eu vos dera por um dos pequenos regatos azulados, que dormem e sonham
na espessura amada das searas de Chorazim! Porque não conheço
melhor alegria, do que andar pelas estradas de Galileia vêem-se os casais
escurecidos pela sombra das figueiras, das vinhas; os pomares de nogueiras,
de romãzeiras estreladas de vermelho: vai-se numa fresca espessura
povoada de aves gloriosas! Quando se está fatigado senta-se a gente
diante de uma porta, à sombra de um cedro, bebese o vinho de Safed,
olham-se as formas lânguidas das montanhas, conversa-se com as mulheres
que vêm da fonte, todas frescas, cantando os cantos do tempo de Salomão!
E não se encontram fariseus, nem escribas, nem saduceus, nem herodianos!
Era ali que Jesus vivia, falando pelos campos, pelos casais e nas sinagogas:
ali devia ser escutado: não tinha sábios da Lei para o contradizer
e para o injuriar, e podia-se penetrar do encanto de dizer a verdade aos simples!
O que João me contava da doce vida do lago de Tiberíade enchia-me
de uma afeição inefável pelo doce mestre. Eu conheço
bem o lago de Tiberíade, todo o país de Genezareth: muitas alvoradas
andei pelas suas aldeias e pelos caminhos das suas vilas! Ai! Magdala, Chorazim,
Betsaida, margens do lago, lugares que eu choro, hoje velho, seco, pálido
das saudades pela força do meu peito e pela altura da minha esperança!
O arvoredos sonoros de Genezareth, todos cortados de água, onde os
meus pés faziam erguer as rolas! O caminho estreito do rochedo, cheio
de musgos! O rio salgado, que nasces ao pé do lago e logo no lago cais,
e que eu tantas vezes comparei ao meu ser fugitivo! O margem do lago, cheia
de tamarindos, onde a água, tão azul como os olhos das mulheres
de Tiro, vem terminar sem ondas, sem aflições, nas ervas verde-negras!
O Galileia, se as ideias moças, que trago mortas dentro do meu peito,
as pudesse sepultar fora de mim, escolheria a tua relva, ó terra de
Neftali! Jesus e os seus amigos viviam ao pé do lago, da vida de pescadores:
aquele clima é tão doce, tão afável, que o homem
pouco pensa no seu corpo: assim, de dia pescavam, de noite dormiam na areia,
sob as estrelas; ao rumor da água. Jesus pescava, ou falava numa barca,
no sossegado embalar da água, aos seus companheiros de rede: assentava-se
às. vezes sobre- as colinas, que são de uma viva liberdade de
ar e de luz, e cercado dos simples pescadores, de mulheres, de crianças,
pregava-se a si, ensinava o seu coração, falava das esperanças
do reino de Deus. Ele amava tudo o que era delicado, as mulheres, as crianças,
os lírios, as aves: a sua palavra era assim tão suave como os
olhos das crianças, tão pacífica como o caminhar dos
regatos: ele pedia apenas que o amassem, e não tinha razões
inflamadas de profeta. Ele era o centro de todo o amor na verde Galileia:
dava a esperança às almas: dizia a vinda do Senhor, o fim das
lágrimas, as glórias do pobre..

O Céu é dos simples dizia ele. Os
que choram serão consolados; os miseráveis possuirão
a Terra; tendes fome e sede de justiça? Vinde a mim, sereis saciados.
Sede pacíficos, sede puros. Se vos perseguirem no reino da Terra, abrir-se-vosá
o reino do Céu. Segui-me, segui-me.

E seguiam-no: abandonavam os campos, as hortas, os barcos, os casais: as
crianças amavam-no: as mulheres iam presas da luz imortal dos seus
olhos: todos queriam errar com ele pelo país de Genezareth, comendo
os frutos casuais dos pomares, bebendo como as reses

no fio dos regatos.

Ele explicava Deus de um modo novo: ninguém o conhecia melhor: ele
era a consciência viva de Deus. O seu Deus não era Jeová,
amigo de Israel, inimigo dos homens: não era o ser solitário,
tenebroso, irritável: o seu Deus era o pai, o consolador, o purificador,
o eternamente sereno, o eternamente justo.

O Mestre pregava a fraternidade entre os homens, o perdão, a caridade,
a humildade, a grandeza, a poderosa virtude do sacrifício.

Se vos ferirem, oferecei-vos; se vos odiarem, amai; se vos perseguirem,
oral! Que mérito há em amar os que nos amam? Uma coisa que singularmente
me tocava no ensino que João me repetia, era a condenação
dos usos do Templo, dos zelos devotos dos fariseus: com efeito, para que são
tantas purificações, tantos cilícios, tantos usos de
piedade? Para que hão-de os fariseus trazer nas suas túnicas
as tiras de papiro, que são o sinal da devoção, e para
que dão a esmola, de pé, nas escadarias do Templo, gritando
e elevando a moeda? Quando tu deres a esmola dizia o Mestre
de Nazaré que a tua mão esquerda não saiba o
que fez a direita.

E esta palavra enchia-me o coração. E alegrava-me o saber
que ele não era como os mais profetas, não se retirava para
o deserto, não se emagrecia em jejuns não rasgava os seus vestidos,
não se feria nas rochas agudas; vivia como um simples e como um pobre
e se procurara às vezes os lugares retirados, e amava as montanhas
é que ai estava mais na fraternidade dos seus, e no coração
de Deus.

João falava-me das mulheres que o seguiam, e eram Joana, mulher de
Khouza, Salomé, Maria de Cleofas e Maria de Magdala, que eu conhecia
do Acra, em Jerusalém.

Maria de Magdala, aí e em Tiberíade, tinha tido uma vida apaixonada
e impura: uma exaltação inexplicável era a essência
daquele ser; tinha espasmos, contracções, entusiasmos perturbados:
julgava acalmar a impetuosidade da sua natureza febril pelo amor dos homens;
ligava-se com os doutores notáveis de então, penetrava em discussões
e explicações da Lei, depois andava cercada de fariseus e envolta
em devoções; mas tinha o amor dos estofos, e todos os dias chorava.
Era uma alma inquieta que buscava alguma coisa: tudo o que fazia era com paixão:
a cultura das plantas raras, a criação das moreias em reservatórios,
a composição de aromáticos, o estudo das ervas, tudo
tratava, ardente e enfastiada. Doente, pobre, foi para Magdala. Aí
viu Jesus. pregando. Seguiu-o. Adorava a doutrina do Mestre, e amava a sua
figura delicada e bela. Mas tinha fortes impaciências, erguia discórdias
com os discípulos, retirava-se ao deserto. Mas voltava, porque a sua
dedicação suave pelo Mestre era maior, e domava a sua tenebrosa
e confusa natureza.

Gostava de derramar perfumes no corpo de Jesus, e de lhe coser à
túnica franjas de Tiro.

Jesus, de resto, aceitava na sua companhia as mulheres transviadas, os publicanos,
todos os pecadores.

Tal era Jesus, segundo João. Eu estava cheio de admiração.
Demais, dizia eu, aquele homem que eu vi no Templo, com as indignações
de Isaías, é pois suave como o céu de Galileia? Realmente,
uma raça tão humana, tão simples, tão abundante,
tão. pacífica poderia dar um profeta irritado? O Mestre
é a mesma doçura dizia-me João.

Donde vinha então aquela cólera, aquele gesto de Messias vingador?
Desde quando é ele assim? perguntava eu a João.

Dizes bem. O Rabi mudou desde que chegou a Jerusalém.

IV Era já manhã e ainda João me contava estas coisas
pacificas, enquanto eu seguia para o Templo. Ia perturbado, sem centro moral,
Ora me vinham desejos de ir à Galileia seguir os passos de Jesus de
Nazaré, ora o meu velho orgulho estreito de homem do Templo me suscitava
hostilidades ou desdéns.

O Templo abria-se, chegavam os fariseus, os devotos, os doutores aproximavam-se
nos seus burros, os sacerdotes nas suas liteiras; encruzavam-se nas suas esteiras
os mercadores; tirava-se a água das piscinas, acendiam-se os purificadores,
desdobravam-se os velários; os pregões anunciavam os debates
civis, as vendas de campos; começavam a instalar-se as escolas rabi
nicas; o ouro tinia nas bancas dos cambiadores; havia risadas; ouvia-se o
balar das reses.

Quando eu estava vigiando os serviços, veio a mim, todo alegre, um
velho camarada do Templo, Josué, que andava há muito pelas vilas
de Galileia para a organização dos soforins nas sinagogas. Era
homem conhecedor das tradições e cheio de experiência
da vida sacerdotal. Perguntei-lhe se conhecia da sua peregrinação
Jesus de Nazaré, filho de Maria de Caná, e os seus companheiros.
Ele era douto, sincero, atento, devia saber explicar-me, melhor do que o simples,
o exaltado João, a essência do Rabi da Galileia.

Disse-me, com efeito, que vira Jesus na sinagoga de Chorazim; que conhecia
a sua vida e a sua doutrina, e que era um homem destinado, mais tarde ou mais
cedo, a ser lapidado às portas de Betel; que pregava toda a sorte de
impiedades; que combatia a Lei, a tradição e os textos; que
falava contrariamente à velha sabedoria judaica, sendo ignorante e
moço; que não respeitava nem os ricos, nem os sacerdotes, nem
os fariseus; que queria distribuir as riquezas pelos pobres; que vivia em
companhia de mendigos e de mulheres perversas; vivia, dormia ao acaso pelos
hortos; não tinha casa nem campo; que se associava com o publicano
e até com o pagão; que não fazia as abluções,
nem sacrificava; e que era um vagabundo dos montes da Galileia, sem autoridade
entre os doutos e entre os ricos.

Eu ouvia calado estas palavras, que eram todo o espírito dos fariseus
e dos doutores. E quando saí do Templo sorri ao átrio de Hanan.

Jesus de Nazaré era-me já simpático e íntimo,
pelo sentimento e pela razão. Mas o que era aquele homem? Era um simples
visionário? Era um contemplador, cheio da melancolia que dão
as espessuras de Galileia, e tomado de um desdém divino? Era um espírito
cheio de sabedoria? Era um continuador de Judas Galaunete? Vinha ele pregar
contra o imposto e contra o dízimo? Era ele hostil a César,
e cheio da tradição dos Macabeus? Era um simples? Era um crente?
Era um especulador frio das esperanças messiânicas? Vinha ele
atacar o espírito do Templo? Encontrei João, conversando no
átrio lajeado com um homem da milícia sacerdotal. Chamei-o para
uma longa galeria escura vagamente estrelada de. lâmpadas…

João disse eu diz o que vem fazer a Jerusalém
o sábio de Nazaré! João olhou-me: Vem à
festa da Páscoa disse ele, lento..

João insisti pelo Messias, e pela liberdade
do Baptista, prisioneiro de Antipas, diz-me a que vem Jesus, a Jerusalém
e ao Templo? Pregar disse lodo.

Compreendi, rapidamente, todos os resultados daquela luta original.

Vai! lhe disse eu exaltado diz-lhe que parta, que
volte para o lago de Tiberíade! Que viva nas suas montanhas, com o
seu Deus, com os que o amam, sossegado, no repouso dos campos. Que vá,
que evite as portas de Jerusalém! Diz-lhe que não venha nunca
encostar-se como profeta à coluna do Templo! Que volte para a Galileia,
que se lembre das pedras que estio à Porta Esterquilinária e
que são para lapidar os profetas! João tinha o espanto nos olhos,
na voz.

Eliziell Eliziel! Que volte, que volte para a Galileia!
E subi rapidamente, pela escadaria de granito verde que levava aos interiores
de Hanan.

O velho sacerdote, debilitado, caduco, dobrado, comia, deitado sobre largas
peles, arroz e mel.

Ao pé. uma escrava síria, de Damasco, cantava. Jesus Bar-Abbás,
defronte, fazia momices.

V No outro dia, casualmente, tive ordem de Caifás para ir à
Galileia, em serviço das sinagogas: a concentração dos
sacerdotes rituais em Jerusalém obriga assim os oficiais do Templo
a sucessivas peregrlnaç8es; porque as sinagogas estio dominadas pelos
escribas e pelos soforins, e por isso agitadas em. perpétuas. intrigas.

Mas esta viagem agradava-me porque me levava a Betsaida, a Chorazim, a todo
o país que fora até aí o centro amado de Jesus.

Em toda a região do lago achei muitos espíritos ou mais simples,
ou mais lúcidos, ou mais amantes, singularmente ocupados na simpatia
e na razão pela pessoa, pela doutrina do Rabi de Nazaré.

Falavam-me longamente da sua doutrina nas sinagogas, das suas palavras nas
colinas: e a figura moral de Jesus acentuava-se, definia-se progressivamente
no meu espírito.

Diziam-me que a voz do Mestre era doce, untuosa, que só o seu som
cativante fazia esquecer as mulheres da roca, os homens da agulha da rede:
falava devagar; a silêncios: as altas verdades, as palavras profundas
apareciam de repente como uma centelha sai de um diamante tocado de uma luz
inesperada. Contava parábolas, histórias; repetia com paciência,
sorrindo: uns estavam deitados, preguiçosos, atentos, outros remendavam
as velas, alguns sentados aos seus pés olhavam pasmados a água.

Ele falava, sossegado, ou afagava uma criança, ou, contando as parábolas.
consertava a sua rede.

Vivia como um simples, junto da vida, sem ter as curiosidades da vida. Tinha
um desdém elevado pelas coisas exteriores.

Não vos inquieteis pelo alimento, ou pelo vestuário
dizia ele. Olhai as aves do céu, não semeiam,
nem ceifam, e o pai dos Céus é quem as alimenta; e não
sois vós mais que as aves que esvoaçam nos campos? Para
que haveis de cuidar dos vossos vestidos? Vede os lírios: não
trabalham, nem fiam: pois eu vos digo que Salomão em toda a sua glória
não estava vestido como nenhum deles na sua simples candura. E o que
Deus faz pelas ervas dos campos que florescem hoje, amanhã secam, não
o fará por vós, homens de pouca fé?.

Por isso os discípulos seguiam-no assim, enlevados naquelas ambições
ideais, sem roupas, sem provisões, sem dinheiro. Naquele pensamento,
o dinheiro era considerado como um fardo, um inimigo, um traidor, que assim
como se toma da ferrugem, dá à alma a esterilidade.

Vendei o que possuís dizia ele dai o dinheiro
em esmolas! Realmente de que servem na Galileia as riquezas? Ali só
há a verde Natureza: o dinheiro não dá mais infinito
ao azul, mais repouso à água; o pobre, o mendigo, é o
rei misterioso daquela glória da folhagem e da luz: para ele se vestem
as açucenas de branco, para ele resplandecem os regatos.

Jesus glorificava o pobre: naquele evangelho da Galileia, o rico é
considerado o inimigo, o pagão, o cruel, o inquieto: ele tem os largos
vestidos fáceis, macios; ele come sobre leitos cobertos de peles; ele
enterra os braços nus nas moedas do cofre: o pobre come escassamente
as ervas mal cozidas dos hortos; remenda, à candeia, a sua túnica,
traz apertada à cintura, tendo sobre ela uma pedra, a moeda de cobre
que é a sua fortuna.

Bem: Deus tomará conta do vestuário do pobre. e da brancura
do lírio, ele velará para que ao homem não falte o pão
e à rola o grão, ele fará no Céu, ao pobre, um
saco, um tesouro de boas obras, de glória, sem temor da ferrugem e
dos ladrões.

O rico irá para a Gena, para o fogo inextinguível: um cuidado
o emagreceu na vida, uma chama o consumirá na existência extra-humana.
O pobre estará junto de Deus, e a sua face será imortal e altiva.

Porque em verdade vos digo ensinava o Mestre que
é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que
entrar um rico no reino de Deus.

Assim falava ele à beira do lago, e, desprendendo os homens dos fatais
cuidados do mundo, era o criador da paz e o consolador da vida. Os tédios
da existência ordinária, a discórdia dos interesses, as
humilhações da vaidade, as invejas, as avarezas, a melancolia
da miséria, a apatia da necessidade, as aflições da obscuridade,
as desconsolações da doença, todos estes antigos demónios
desapareciam, e a velha cabeça humana, obscura, cativa, pesada, podia
enfim sentir, esperar. repousar, encostada ao mais profundo seio humano, que
o pão da terra tem alimentado.

A alma tinha enfim um lugar, o seu lugar, o seu espaço, que era o
reino de Deus.

O reino de Deus era o reino das crianças, dos simples, dos deserdados
da vida, dos que sofrem, e até do samaritano, e até do pagão
e do publicano, e até do que habita Sídon.

Ah! Vós não quereis esperar nas minhas palavras, amar no meu
peito, vós, os fariseus, os saduceus, os escribas, os ricos, os sacerdotes,
os príncipes! vinde vós, pois, os humildes, os repelidos, os
lapidados, os enfermos, os culpados, todos os que eles repelem. todos os que
eles amaldiçoam! Desgraçados de vós, ó ricos,
que estais saciados, porque tereis fome, desgraçados de vós
que rides, porque vos desfareis em lágrimas! Boas palavras que eu amo,
eu, que conheço as ricas existências sacerdotais. Os nossos profetas
já tinham, contra o rico ímpio e duro, cóleras terríveis
em vingança do pobre que é doce e piedoso. Ora o Rabi feria
assim violentamente todo o judaísmo sacerdotal do Templo, porque fazia
dos que ele despreza e domina os preferidos, os bem-amados do esposo, os amigos
de Deus! Que significa na verdade que o fariseu não queira comer com
o samaritano e com o pobre recebedor do imposto? Que quer dizer que os levitas
de Caifa vão lavar à piscina os seus vestidos, se à entrada
do santuário tocaram num mendigo ou num publicano? Mas Jesus, na imortal
ascensão a que obrigava as almas para o ideal divino, já não
somente chamava a si o deserdado, mas chamava o culpado.

O culpado é infeliz dizia merece por isso.
Mais que o justo, o calor do meu seio. O filho pródigo merece mais
amor do que o filho cuidadoso, porque é triste na sua. alma, e todo
em lágrimas.

Havia uma mulher aqui dizia-me o homem bom de Chorazim que
me explicava estas coisas imortais que era repelida, mal vista, amaldiçoada;
as mães honestas não a queriam ver: só os escribas da
sinagoga se aproximavam dela, mas de noite, sob as figueiras do cemitério,
porque de dia, se a viam, tapavam a cara com a túnica; e resmungavam
maldições.

Esta mulher ouviu Jesus, sentiu-se inesperadamente perdoada, viu-se solta
da fatalidade por aquela palavra piedosa, e pela fé purificou-se. É
Maria de Cleofas. Segue Jesus, serve-o: quanto mais se humilha, mais o ama,
e quanto mais se sente amante, mais se sente perdoada.

Os pobres galileus, que nunca tinham ouvido uma tão doce e elevada
palavra, julgavam-se já no Paraíso imortal. Ele ia seguido dos
seus, confundido com todas as alegrias, aparecendo nas bodas, e nas noites
de noivados misturando-se às danças, com a sua lâmpada
na mão; caminhava pelos campos a pé, dizendo as boas palavras,
ou montado num pequeno burro, que os discípulos cobriam com as túnicas;
às vezes ajudava a ceifar, ou, assentando-se ao pé da fonte,
falava às mulheres, escutava os cantares; entrava nos casais, nos hortos;
as crianças vinham, vinham as mulheres: «Rabi, Rabi, diz-nos
a boa nova: és tu o Messias?» Limpavam-lhe os pés, iam
buscar os melhores frutos, os vinhos de Safe, os legumes que nadam em azeite;
as mães mostravam-lhe os filhos de peito que com as suas pequeninas
mãos vermelhas e gordas lhe puxavam as barbas: ele ria, agasalhava-os;
quando ele passava atiravam-lhe ramagens, desejavam-lhe o bom caminho; os
doentes vinham tocar as suas mãos, as viúvas limpavam as suas
lágrimas: ele falava de Deus, endireitava as canas de milho caídas
no caminho. Vinham das aldeias e diziam-lhe: Mestre, tu és
bom.

Bom só é Deus dizia ele, sorrindo.

Mestre, que havemos de fazer para entrar no Paraíso?
Amai os outros, dai aos pobres, segui-me.

E seguiam-no todos, enlevados naquele sonho ideal, o mais belo, o mais doce,
o mais acima da terra que até hoje tem feito o homem.

Então o céu, amigo e compassivo, tocou na lacrimosa terra;
então pela primeira vez o olhar do pobre foi seguro e confiado; pela
primeira vez o estreito sorriso do velho conteve a esperança! VI Mal
sei dizer o que o meu pobre espírito, educado na antiga lição
do cativeiro, sentia ao suave calor humano e feliz daquelas palavras.

Voltei a Jerusalém: passei sobre o Tabor, donde se vê a larga
planície de Esdrelon, amada dos heróis, o branco Hermon, Endor,
e as montanhas de Galaad: descansei em Djeneia, a cidade dos Levitas, toda
escondida entre oliveiras e palmeiras, depois em Detem, onde José foi
vendido por seus irmãos; depois na velha Betúlia, pátria
da forte Judite: vi Shomeron, que foi uma das mais velhas cidades de Israel,
hoje caída, coberta com muralhas e bastiões de Herodes: Siquém,
junto da qual Abraão ergueu a sua tenda, debaixo dos carvalhos de Mora:
Siloeh, onde se fez a partilha do território entre as tribos, e onde
pousou pela primeira vez o tabernáculo, depois da conquista de Canaã.

Depois desviei-me para os lados de Jericó, que estava então
cheio de selvas e de rosas: junto ao Jordão andavam ainda alguns discípulos
de João, cheios de saudade e de desejo: atravessei as lúgubres
colinas de Judá, asilo de profetas, túmulo dos heróis:
uma madrugada entrei, só, em Jerusalém.

Nesse dia logo subi ao Templo. Junto dos pórticos exteriores, onde
trabalhavam. ainda cinzeladores de Cesareia, pedreiros de Samaria, vi, entre
homens da Galileia, a alta figura de Jesus de Nazaré. Estavam parados,
esperando: um homem de Karioth, chamado Judas, curvado diante de um cambiador
de moeda, trocava dracmas, atento.

Parei, comovido, a olhar profundamente o Rabi. Ele estava triste: os braços
caídos, sem vontade, sem gesto; a cabeça desanimada. Tinha nas
feições finas, delicadas, pessoais, uma abstracção,
uma transcendente serenidade. Os olhos cheios de infinito, que pareciam olhar
do uru lugar inacessível, a testa larga, expressiva como a imobilidade
de um céu, assemelhavamse, superficialmente, como o corpo se assemelha
à sombra aos olhos, à testa de Hillel, de jesus de Sirac
e de um outro, que era como eles dado às contemplações,
à abstracção, ao ideal. A boca tinha uma forma tão
pura, tão leve, uma imobilidade tão penetrada de graça,
que parecia que dela só deviam soltar-se ironias aladas: mas o forte
contorno dos lábios, a linha que era como um arco em descanso, tinham
uma gravidade, uma beleza austera, que denunciavam a origem das palavras elevadas,
e faziam sentir o profeta, Parecia-me ver-lhe, na parte inferior do rosto,
uma firmeza, uma expressão de energia, que o tornavam um pouco semelhante
a Judas Galaunete, o poderoso agitador, em quem a acção era
como um sangue vivo. De resto, um ar simples.

Ele olhava os trabalhos dos pórticos, com um desdém sereno.
Nos galileus sentia-se o constrangimento, o isolamento.

Entrei no santuário: nas câmaras dos serviços dois escribas
argumentavam junto da arca do tesouro, com exclamações abundantes.
Interroguei-os; disseram-me que o Rabi de Galileia muitas vezes pregara no
Templo; que curara alguns doentes dos que se lamentam nas galerias da piscina
probática; que argumentara com os escribas, e que em casa de Hanan,
na sala do banho, Gamaliel dissera do Rabi: Ele é bom e justo;
mas não diz coisas novas.

Argumentava-se muito sobre aquela palavra contida e desdenhosa do sábio
Gamaliel, entre os privados de Hanan.

Mas Gamaliel dizia soberbamente o escriba é
um homem alheio a nós; entretém relações com essa
gente da escola de Alexandria; viaja demoradamente em Siquém onde estão
os heréticos, e em Cesareia onde estão os romanos, e dá-se
à cultura helénica, desprezando a Lei.

Homem disse eu em que despreza Gamaliel a Lei, estudando
e sabendo as letras gregas? O escriba riu finamente, como em triunfo:
Pois não diz o Texto e a sua voz era compassada e enfática
«Estudarás a Lei de noite e de dia, e se assim não
fizeres desagradarás ao Eterno?» Ora e traçava
amplamente a capa, tossindo, vitorioso ora Gamaliel só não
desagradará ao Eterno se estudar a sabedoria grega num tempo que não
seja nem a noite nem o dia.

O outro escriba, que era Eliel, de Efraim, aprovou ruidosamente, batendo
no peito.

E sob a sombra pesada do velário saudaram-se, risonhos.

Saí das câmaras levíticas, à hora sétima,
quando há nos terraços do Templo uma vida poderosa. Uns argumentavam,
ou estudavam a Lei, com as folhas de metal diante de si, em movimentos rítmicos;
outros vinham comprar ofertas de pombas e cordeiros: alguns consultavam sobre
questões agrárias; muitos vinham trocar moedas; os serventes
do Templo passavam com as reses a levá-las às piscinas; tocavam
as trompas que anunciavam a hora dos sacrifícios; os doentes cantavam
os salmos; as mulheres levíticas lavavam as vestes brancas nos tanques
exteriores, espertavam as fogueiras purificadoras, ou giravam em volta das
primeiras colunas, batendo em discos de metal.

Eu entrei na Galeria de Salomão. toda sonora de vozes. Jesus, cercado
de galileus, tinha ensinado. Alguns gritavam: «Hosana, ao filho de David!»
porque os pobres, os. doentes e as crianças, vendo que ele era entre
os homens o melhor, o mais terno, o mais consolador, chamavam-lhe o filho
de David; os escribas riam; bocejavam desdenhosos.

Alguns fariseus, tomados de exaltação, queriam a convocação
do Sanedrim. Um velho herodiano, com gestos desolados, lamentava a decadência
da escola profética de Israel.

É um ignorante diziam, com desprezo, vastos doutores.

Ásperos, zelosos, com a cabeça envolvida na ponta do manto,
as barbas eriçadas, insultavamno.

O povo, com o ruído de um arvoredo, falava do Mestre alguns velhos
-diziam: Sim, sim, irmãos, este é um profeta!
É o Cristo! É o Messias! clamavam grandes vozes.

Muitos iam, correndo, prostrar-se diante da Porta da Arca. bradando:
Graças, Senhor, o Messias chegou! Os sacerdotes interrogavam, inquietos.
Os homens espalhavam-se pelo Templo gritando: É o Messias,
é o profeta da Galileia! Os escribas andavam entre a multidão,
explicando, convencendo: Que dizeis? Vós não conheceis
a Lei? A Lei diz que o Messias virá, e que Elias ressuscitará!
Calai-vos! bradavam os escribas. Sois também
galileus? Não sabeis que a Escritura diz que o Messias há-de
ser da geração de David? E não sabeis vós que
este é o filho do carpinteiro José, e de uma mulher da aldeia
de Caná? Não vo-lo têm dito todos os que vêm de
Nazaré? É verdade, é verdade diziam alguns.

E não sabeis continuavam que os Textos dizem
que o Messias nascerá em Betlem, e onde nasceu este? Em Nazaré,
bem o sabeis.

Uma voz, receosa mas irritada, disse: Pois ele nasceu em Betlem!
Em Nazaré! bradaram alguns escribas.

Sim, sim, em Nazaré disse à gente.

É, pois, o Cristo? Ide, homens amaldiçoados, que andais
afastados da Escritura! Os do povo calavam-se, mas desciam rapidamente as
largas escadarias areadas, porque se dizia que Jesus estava curando e ensinando
no Tyrepeon.

VII Fui apressado ao Tyrepeon: Jesus tinha saído a Porta dos Rebanhos,
atravessado o Cédron, subido a Betânia.

Quando eu voltava para Bezeta, veio a mim um homem muito conhecido em Jerusalém,
que era Jesus Bar-Abbás. Era uma figura descamada, torta, arqueada,
cheia de cicatrizes, imunda, rindo sempre, em farrapos. Era uma espécie
de truão de Jerusalém. Tinha gracejos, farsas, deslocações:
espancavam-no, ele ria, estendia uma ponta da túnica, para aparar os
dracmas. Encontrava-se com a sua lâmpada em todos os noivados, gritando
em todos os enterros, com uma pedra em todas as sedições, em
todos os suplícios com uma cântara de posca, para vender aos
soldados. Tinha todos os desastres da miséria, do vício, e era
servil. Os soldados expedicionários espancavam-no, às vezes
prendiam-no, mas o povo cobria-o com uma protecção avara. Era
casado.

Tinha uma voz vibrante, forte para cantar os salmos e imitava os profetas
pregando.

Cheirava miseravelmente a alho.

Jesus Bar-Abbás pediu-me um dracma, e disse-me que nessa noite Simeon,
um rico do Sanedrim, tinha uma ceia para os oficiais do Templo e sacerdotes,
fora das. muralhas, em Betfagé.

Simeon amava as festas, tinha vivido em Roma, era soberbo; contava com o
orgulho que fora amigo do gladiador Esterius.

Bar-Abbás fazia rir Simeon: comia com os seus servos, dormia nos
seus átrios.

Nessa noite fui a casa de Hanan. Nos pátios, João aquecia-se
ao lume, junto da velha de Cafarnaum.

Caifás e Gamaliel estavam com Hanan. Gamaliel dizia versos gregos:
Hanan, repousado, com os olhos cerrados, grave, escutava; Caifás, aquilino,
duro, áspero, tinha uma atitude desdenhosa. Dois escribas, encruzados
no chão, comiam.

Quando o serão ia remoto, repentinamente Caifás mandou-me
a casa de Simeon.

O Sanedrim devia reunir-se ao outro dia pela hora oitava: tinha havido exigências
do legado imperial sobre os vasos do Templo.

Um escravo negro de Hanan seguia-me com uma lanterna; a noite era negra,
quente, mole: ouviam-se apenas uivar os cães.

Em Betfagé, os servos de Simeon conduziram-me ao pomar onde era a
ceia, sob um velário feito à moda grega, suspenso às
ramagens dos cedros. O chão estava coberto de areia vermelha, luzidia.
Largas lâmpadas resplandeciam. Flores de Damasco, rosas de Jericó,
jasmins de Chorazin, e as plantas fortes de Galaad, pendentes dos vasos negros
da Perea como serpentes verdes, penetravam o ar da mole vitalidade que dão
os aromas. No chão estavam ânforas, grossos cântaros envoltos
em palha, jarros cinzelados. Os escravos frígios, com os longos cabelos
reluzentes de óleo, giravam apressados.

Havia ali membros do Sanedrim, escribas, sacerdotes, herodianos, saduceus,
fariseus. Todos eram zelosos devotos, amplos em sacrifícios, alguns
costumavam cobrir-se de cinza. Estavam todos deitados em estrados, cobertos
com lãs de Babilónia.

Alguns eram gordos, fortes, vermelhos. Quase todos tinham a fisionomia áspera,
adunca, eriçada de barbas. Reluziam cabeças calvas.

O vinho dourado, o vinho de Safed, um falerno de Cesareia, o massico dava
uma ampla respiração aos peitos, uma feliz cintilação
aos agudos olhos negros. Havia largas risadas.

Fariseus austeros, que se ferem nas pedras dos caminhos, curvados sobre
os discos de aço brunido, devoravam com um ruído devoto. Outros
tinham olhares ansiosos, e despercebidamente esvaziavam as largas taças
de bronze. Alguns decrépitos, desdentados, tinham sobre a barba fios
de molho. Velhas mãos trémulas e lívidas levantaram as
ânforas! Alguns, estendidos sobre leitos como animais que ruminam, tinham
as túnicas soltas, os braços nus. Cabeças enérgicas,
duras, mostravam uma expressão irritada, fixa, vazia; os velhos tinham
largos risos cínicos. Uns dormiam, outro cantava. Um velho curvado,
frouxo, rouco, lembrava as mulheres, e os fariseus riam. Entre esta multidão
sacerdotal havia um romano. Era Publius Sextus, lugar-tenente do legado imperial;
falava com palavras abundantes, largos gestos. Era pálido, com uma
pequena cabeça enérgica e voluntária; era devasso, servil,
falso, luxuoso, e vinha de Cáprea. Era ali escutado como um profeta
na antiga Israel; falava da Via Ápia, das festas de Roma.

Eu escutava, encostado a uma árvore, na escuridão, concentrado
e triste.

Só em Roma se vive dizia ele. Isto é
pior que o bairro das Esquílias. Não é por vós,
Simeon, que tendes a escola do vosso amigo Ventidius, homem que sabe comer;
mas, na verdade, que nos recebem aqui como Evandro recebeu Hércules,
com farinha cozida e uma esteira espartana.

Mas vós outros, os Romanos, sois glutões e amigos
do vinho! disse Nathaul, um escriba, homem invejoso, com lábios
carnais.

Mas Publius falava de uma ceia em casa de Ático, antes de vir a Óstia
embarcar. com o legado da Síria.

Quereis saber? perguntava.

Dizei, dizei gritavam curiosamente pela mesa.

O chão era de mosaicos gregos. Entre as colunas havia largos
panos tecidos de aço, pesados, à moda de Cartago. Um vapor de
água tépida penetrava os músculos, enlanguescia.

Tínhamos esfregado os braços, o peito, com pedaços
de pele de tigre humedecida de óleo. Os membros estavam ágeis,
fáceis para as danças, para as escravas! Do tecto calam folhas
de rosas húmidas! Todos tinham olhos cintilantes; estendiam-se para
escutar alguns estavam de pé, junto de Publius.

O trinchador dizia ele o trinchador, meus amigos,
era o próprio Tripherius! Tínhamos lebre, gazela, faisão
de Lichtia, cabras da Getúlia, javalis, cordeiros de Tibur, que nunca
tinham comido erva, e tartarugas delicadamente preparadas em molhos da Campânia,
na própria concha, polida. transparente! Moreias do lago Lustrino,
lagostas nadando no azeite de Venafre! As taças eram de âmbar.
Que dizeis vós? Os austeros doutores, os graves herodianos, os fariseus
cevados, oleosos, com os beiços luzidios de molhos, a boca riscada
de vinho, tinham um olhar ávido, guloso, ímpio, para as palavras
de Publius.

Bar-Abbás, entre os escravos, tinha os olhos humedecidos pelo desejo.
Todos admiravam, O romano dizia o fim da ceia e as gaditanas que entravam,
envoltas em tecidos diáfanos, correndo em coreias, em volta dos triclínios,
e aspergiam a cabeça dos saciados com lilases molhados em falerno!
E falava das mulheres romanas do bairro de Suburra; e com uma voz
branda, curvando-se: Que estas mulheres sírias dizia
têm uns olhos escuros que valem centenares de sestércios.

Os outros riam. Falavam baixo, jovialmente, contavam, lembravam, desejavam.

Estas mulheres são castas e cuidadosas, as romanas são
devassas, e tudo ali terminará, como em Sodoma e Nínive! Quem
assim falava era um fariseu, Essen, homem magro, lívido, cavado de
jejuns, com uns olhos tenebrosos, cheio de barba. Não comia, e parecia
constrangido, isolado.

Tinha vindo para amaldiçoar, para lembrar a morte, e o terror de
Jeová! Devassas, dignas do fogo, para vós, devotos e
zelosos! Mas belezas impecáveis, imortais, para quem pode desapertar
a rede de ouro em que elas prendem o seio! São os seus costumes que
as tornam desejadas, que as fazem mais apetitosas que todas as farinhas molhadas
em leite que elas põem na face, e que todos os unguentos de Poppea.

Publius falava, inflamado. descomposto: tinha gestos lascivos; bradava os
nomes das damas romanas: Vede Laupella, uma patrícia! E Medulina!
E Hillia, que se namorou do actor Urbius, e Hippra, que fugiu com o gladiador
Sérgio, e Hipulla, que em plenos jogos megalésios, diante do
povo romano e das legiões, cuspiu na estátua do Pudor! Uma larga
risada sacudia os peitos. Bradavam: Contai, contai! Enchiam as ânforas:
arrepelavam os escravos. De bruços, sobre a mesa, com a cabeça
apoiada nos braços, esperavam voltados para Publius, com olhos perturbados.

Os velhos abriam largamente uma boca escura, sem dentes. Os olhos reluziam.
Havia gritos.

Um escriba da arca do tesouro gaguejava uma cantiga siciliana, com voz áspera,
arrastada. O círculo de cabeças ávidas, duras, curiosas,
destacava violentamente no escuro. Publius exclamava, com palavras tumultuosas:
tinha a túnica clara manchada de vinho; tinha os braços nus.
brancos, femininos: e com largos gestos..

E Túcia, e Túcia gritava eu vi-a um
dia no teatro, quando o actor Bactylo fazia com toda a sorte de lascívias
o papel de Leda, torcer-se no seu lugar, arrancar a rede dos seus selos, e
com os olhos mortalmente lânguidos chamar a altas vozes: «Bactylo,
Bactylo, vem!» Largas risadas. Alguns gritavam, imitando o romano:
Bactylo, Bactylo! Os velhos torciam-se nos seus triclínios, tomados
de riso, de escândalo. Alguns escribas gritavam: «Viva Roma!»
Os fariseus tinham olhos terríveis, uma atenção ávida.

Um cortava violentamente o pau do estrado, mordendo os lábios! Publius
pedia falerno, folhas de louro, insultava a indolência dos escravos,
queria lançar fogo ao velário e dizia: Quem conhece
Cessénia? Ninguém conhece Cessénia? Cessénia tinha
de dote seis milhões de sestércios. Casou com Sertório,
o pobre, com a condição de poder escrever diante do marido os
bilhetes aos amantes, e poder ir deitar-se uma vez cada mês, para quem
entrar, no leito alugado de um lupanar de Suburra! Os escribas riam, esvaziavam
as taças, desafogavam o pescoço das túnicas pesadas,
lançavam para longe as folhas de metal presas à cintura, onde
está escrita a Lei.

Um, ébrio, com os olhos riscados de sangue, pedia o culto de Baal.

Alguns sacerdotes tinham adormecido sobre os triclínios, curvados,
enroscados, imóveis. Os fariseus torciam o braços, falavam de
Tiro.

Publius clamava: Pois que há de melhor que ver uma patrícia,
de longo penteado e saia curta, depois de estar cheia de ostras e lagostas
irritantes, beber de um trago numa enorme taça o falerno consular,
e vir, resvalando sobre o mosaico húmido de vinho, cair sobre o nosso
peito, gritando em grego: «Minha alma, minha vida, ai!» E Publius
arqueava lascivamente os braços, deixando pender a cabeça, a
garganta túmida de suspiros, arquejando! Os escribas, os fariseus estavam
cheios de delírio e de vinho. Riam animalmente.

Soltavam grandes gritos. Alguns rolavam-se no chão: mordiam as almofadas
dos triclínios.

Derramavam o vinho sobre os vestidos, abraçavam os escravos, quebravam
as taças, exaltados. Um jogava a luta com uma árvore, depois
envolvia-a, beijava-a.

Cantavam em grande voz os cantos do tempo de Salomão, dando-lhe expressões
lascivas.

Feriam a cabeça contra os grandes jarros cinzelados. Corriam, inflamados,
como num mistério sagrado. Alguns gabavam-se de devassidões
ocultas. Falavam de dinheiro, de banquetes, de mulheres, de prostituições
sagradas no fundo dos bosques! Publius gritava: Não sabeis,
fariseus, não sabeis a aventura de Lentullus? Não, não!
bradavam alguns penetrados da alegria, do escândalo, de curiosidades
inflamadas.

Lentullus casa com uma virgem patrícia, neta de cônsules:
nove meses depois prepara, segundo o costume, para o filho que vai nascer,
o berço de tartaruga, coberto de estofos e de ramos de loureiro, e
expõe-no às boas palavras dos que passam. Mas toda a nobreza
da Via Ápia rompe em risadas. O filho de Lentullus era a imagem viva
do bufão Euríalo, e tinha, como ele, três verrugas no
queixo.

A risada fazia o ar sonoro. Publius, de pé, manchado, com a túnica
rota, descomposto, gritava: Ouvi, ouvi! Escutavam com um riso inquieto.

E Publius enfático: Os actores dizia os gladiadores,
os bufões, os tocadores de flauta, os truões,. são os
pais de todas as crianças que nascem na nobreza romana! Um velho fariseu,
elevando sacerdotalmente uma ânfora, gritou com uma voz terrível:
Vivam os truões! A multidão sacerdotal bradava, uivava,
cantava, rojava-se pelo chão. Era bestial e imundo.

Aquele ruído parecia-me triste como um cálice de pedra de
sepulcros.

Bar-Abbás, espancado, cambaleava, blasfemando, imundo e jovial.

O vinho começava a domá-los, alguns escorregavam, calam, agitavam-se
como agonizantes, e perdiam os espíritos num sono petrificado. Outros
penetravam na espessura do pomar, buscando as frescuras da erva e da água.
Uns falavam como num delírio grotesco. Dois escribas argumentavam,
frenéticos, hostis. Um forte e vasto fariseu, de bruços sobre
a mesa, o olhar fixo, bestial, rosa monotonamente uma flor.

Simeon ressonava no seu estrado. Publius no chão húmido. Os
escravos deitavam peles sobre os dormentes. Os lampadários extinguiam-se.
Vinha um frio húmido.

Cantavam os galos.

Eu atravessei o pomar, subi a um terraço.

Uma claridade assustada, abatida, aparecia. Eu via ainda reluzirem lâmpadas
nos pequenos bazares que estão sob os cedros do Monte das Oliveiras.
Ouvia-se o rumor grave do Cédron; por vezes o grito de um chacal. Via
Betânia; ali Jesus dormia sereno, puro, impecável.

Voltei aos pórticos da casa, pela rua areada do pomar. Ali havia
um rumor; os escravos, agitados, falavam. Alguns da milícia do Templo
tinham encontrado, no Pórtico de David, nas lajes, uma mulher nos braços
de um homem. Era uma adúltera; a milícia trazia-a a casa de
Simeon, que naquela semana fazia a condenação dos desacatos
ao Templo, em nome do Sanedrim. A milícia tinha sido diligente, apressada,
minuciosa, porque a miserável era mulher de Bar-Abbás, e todos
queriam ver as contorções joviais, o desgosto grotesco do truão!
Mas Bar-Abbás estava prostrado, imóvel, enroscado, no chão.

Fui ao lugar do velário; os doutores, os fariseus acordavam; era
já manhã azul; todos se erguiam, fatigados, sombrios, calados,
hostis; aconchegavam-se nos mantos, lívidos, tomados do frio; procuravam
os cintos das túnicas, amarravam as franjas, apanhavam, limpavam as
lâminas da Lei; sacudiam-se, penetrados do orvalho. Queriam água
clara, fria; os escravos traziam largas conchas de jaspe; bebiam, mergulhando
a cabeça; enchiam as taças; alguns iam estirar-se, de rastos,
junto de um regato, e bebiam com a cabeça entre as ervas. Simeon, absorto,
sonolento, bocejava.

Vinde dizia-lhe eu tendes serviço; vieram
uns da polícia, com uma miserável mulher.

Simeon, trémulo de frio, febril, encolhido no manto, caminhava, arrastando
os coturnos, para o seu pátio civil. Fariseus, doutores, membros do
Sanedrim, seguiam-no.

O pátio era largo, em colunas. Uma lâmpada esmorecia. O cão
acorrentado rosnava.

Os da milícia falavam, riam, partiam um pão escuro, bebiam
em cântaros. A mulher, caída sobre o chio, rota, sonolenta, imbecil,
soluçava. A túnica aberta deixava ver a forma impecável
do seio.

Simeon interrogava.

Vem presa dizia eu, com uma voz forte, que dominava, no
silêncio acharam-na à porta do Templo, no Pórtico
de David. Vede-a. Estava em acto de adultério.

Oh! disseram todos, indignados.

E fariseus, escribas, sacerdotes, recuavam, escondiam a cabeça nos
mantos, estendiam a mão espalmada, esconjurando:.

Lapidada, lapidada disseram, irritados.

Alguns cuspiam-lhe sobre o seio. E saíam apressados,. erguendo os
mantos, para que não tocassem o chão, impuro pelo contacto da
mulher adúltera.

Essen afastou-se, e falou junto ao ouvido de Simeon.

Sim, sim disse Simeon; e voltando-se para os da milícia:
Esta mulher que seja aqui guardada até à hora sexta.

Eu saí. Os soldados romanos abriam, com estrondo metálico,
as portas de Jerusalém. A multidão apressava-se: vinham os vendedores
de legumes das hortas de Betfagé, da Betânia: os camponeses de
Betel traziam os sacos de trigo: passavam solenemente as fileiras de camelos.
Um beduíno de Idumeia conduzia rebanhos: as reses balavam. Do alto
da Torre Antónia vinha um som de trompas: entravam velhos mercadores
sentados em seus burros: um vidente clamava! VIII Eu ia triste: o amanhecer,
a aparição espiritual da aurora, enche de melancolia depois
das noites tomadas de vinho, fartas de carne. Demais nunca os tenebrosos devotos
me tinham despertado, pelo seu artifício, tão altivos desprezos.
Mal dormi, durante o resto da madrugada: à hora quarta, encaminhei-me,
obscuro e inconsolado, para os meus mon6-tonos ofícios do Templo. Alguns
dos fariseus, dos escribas que se tinham rajado nas relvas de Simeon já
argumentavam, ajustavam reses para os sacrifícios.

O dia estava nublado, hostil ao homem. Eu afogava-me na melancolia: pensava
nos prados da Galileia, nas águas do lago, nas espessas folhagens:
Jerusalém, cidade de pedra escura e de negra intriga, pesava-me. Sentia-me
desligado da vida sacerdotal. E dizia: «Se eu fosse um pobre cultivador
das vinhas de Safed, um semeador das planícies de Safed, um semeador
das planícies de Saron!» A multidão provincial enchia
o Templo: havia o ruído de um mercado: a minha irritação
crescia: percebia em volta de mim uma influência material, dura, mesquinha,
sufocante! Ia-me encostar à balaustrada da Galeria de Salomão,
olhava as verduras, as hortas, os cedros do Monte das Oliveiras: mas tinha
de entrar nos santuários, de roçar pelos fariseus, escribas,
por aquelas hierarquias sacerdotais que me amargavam. As colunas enormes e
brancas, as portas esculpidas em bronze irritavam-me: invejava a erva que
cresce junto às pedras dos mortos.

Aquela vida sem fé, sem dignidade, era-me tão odiosa como
me seria odioso o meu corpo se ele se petrificasse, deixando-me a alma livre.
Para qualquer lado que olhasse daquela organização sacerdotal,
só via uma hipocrisia ou uma especulação, ou uma vaidade
ou uma humilhação: os sacerdotes que se prostram à entrada
do santuário, sustentado por dais levitas risonhos, no seu êxtase
enfastiado; os argumentadores vãos, artificiais, vazios; os doentes
que cantam os salmos, mendigam, riem, fazem a ostentação ruidosa
das suas chagas, tudo me dava um tédio obscuro e atormentado.

Sentia em mim cóleras de bárbaro: agradava-me a ideia de desprezar
com um açoute aquele sacerdócio aviltado que vive do Templo,
lhe compreende a vaidade e lhe aceita o lucro.

Quantas vezes eu percebi o sorriso imperceptível dos sacerdotes sacrificadores
diante da piedade simples e crente de pobres galileus e de provinciais ingénuos!
Invejava quase o Romano, o Grego, o mercador de Tiro, que não é
de Jerusalém, nem do Templo, que não habita neste espaço
duro, entre o Acra e o Moriah, cativos e gementes! Que temos nós em
Jerusalém de bom, de justo? Temos uma pátria? Não
E olhava a Torre Antónia, onde os expedicionários,.
com grande ruído, atiravam à barra.

Temos uma religião, uma fé? Não E via
os sacrificados vestindo os pertuais, para degolar a pomba da rocha sagrada,
enfastiados, bocejando das noites mal dormidas na encosta de Sião ou
na rua do Alto Mercado. no leito do cortesão de Cesareia! Temos
nós uma ciência, uma lei elevada, forte, justa? Não!
E olhava aqueles estéreis, consumidos doutores, clamando contra uma
palavra, e argumentando se os papiros devem ser enrolados ou dobrados para
agradar ao Senhor! Até a brancura do Templo, aquelas escadarias novas
polidas, aqueles frisos pálidos e nítidos, me faziam o efeito
do quer que fosse que não tem alma, nem passado, nem legenda! Eu sentia
que o ideal já não habitava Jerusalém! Ambicionava ter
a palavra de Isaías, a ciência de Gamaliel. a popularidade de
Judas Galaunete, e à frente das multidões do Norte, Gaileus
e Samaritanos, gente espontânea e forte, derrubar tudo na escura cidade,
desde o pórtico onde ora o fariseu, até à ameia donde
escarnece o Romano. Estes pensamentos enchiam-me, resultados da noite perturbada.
ou de um estada elevado de consciência, ou enfim da reacção
que em toda a alma honesta aparece um dia, contra o que ela julga, o erro
ou a vaidade.

Ah! Jesus de Nazaré pensava eu é o
único homem que nos poderia salvar, ou como um Messias, ou como um
Macabeu, ou como um simples, que tem a fé e a justiça! Mas terá
ele a acção? Aqueles braços consumidos de se erguerem
em vão para o seu ideal terão o vigor de sustentar a velha espada
da pátria Judeia? Será ele o homem humano, forte, duro? Ou o
seu corpo é apenas o cárcere de uma alma melancólica
e transcendente? O Rabi de Nazaré tem popularidade na Galileia; as
suas máximas largas, onde cabem o pecador e o pagão, chamar-lhe-ão
a Samaria; a Perea é um país de profetas; o povo de Jerusalém
sofre todos os dias a vexação de Roma; todo o país cultivado,
que vai até Jopé, é infeliz, porque o tributo devora
a seara. Poderá Jesus de Nazaré fazer este movimento popular?
Porque a ideia de uma pátria perseguia-me, como uma voz que pede socorro.

Porque não? dizia eu eu surpreendi já
nos seus olhos uma vontade dura: porque há-de ele ser apenas abstracção,
zomba, símbolo? E pensava em falar a Jesus de Nazaré. Estas
ideias aliviaram-me, como inesperadas consolações.

O dia azulava-se, enchia-se de sol imortal. Eu sentia, junto aos pórticos,
onde esperam as reses dos sacrifícios, o profundo mugir dos bois: tinha
a sensação da Natureza verde, de tempos repousados, contentes.

O Templo estava cheio do rumor da multidão civil. Eu descia a larga
escadaria para o Pátio da Balaustrada: vi Jesus de Nazaré junto
do pórtico onde estão as inscrições latinas e
gregas de entrada defesa, cercado de galileus, de povo. Os de Jerusalém
começavam a atender às palavras de Jesus: ainda que penetrados
da educação farisaica, e limitados num espírito estreito
e hostil, achavam verdade, doçura, nas parábolas do Rabi da
Galileia: era o povo do baixo mercado, dos arredores de Betânia, de
Betfagé, do Monte das Oliveiras. Os mercadores, os ricos, mesmo os
mais afastados dos zelos farisaicos, tinham para a palavra do Mestre o riso
áspero, o desdém, ou a indiferença.

O Rabi de Nazaré estava triste. Sentia-se decerto Isolado, sufocado,
naquele mundo hostil, argumentador. Jerusalém devia pesar à
alma delicada e aspiradora do Mestre. Lamentava decerto os seus campos da
Galileia. as solidões consteladas, os pomares de Chorazim. Naquela
alma passava-se uma luta dolorosa entre a fé, a convicção
que o retinham em Jerusalém, e os seus instintos todos suaves, idílicos,
que, com vozes amantes, o estavam levando para os prados da Galileia! A sua
vida até aí tinha sido larga, fácil como a sua túnica,
toda penetrada do amor, da luz paradisíaca do. reino de Deus.

Em Jerusalém a sua vida seria de luta, de intriga, de hostilidade,
de desdém. E onde tinha tomado o doce Mestre do lago a energia, a resistente
fibra, para esses dias amargos? Nos embalos da água, no ar doce das
montanhas da Galileia, na leitura serena da sinagoga de Magdala, no amor humilde
dos seus companheiros? O homem muito amado pode ser forte? A felicidade simpática,
as intimidades femininas, a piedade dos velhos, podem dar a dureza, a altivez,
a atitude indomável? Não, não: em presença daquelas
poderosas hierarquias sacerdotais, da hostilidade minuciosa dos escribas,
das oposições farisaicas, da impassibilidade inimiga de Jerusalém,
a sua alma acostumada a ser amada, rogada, devia fechar-se asperamente no
seu ideal, como em uma concha. O receio da morte era, nele, decerto maior
do que a repugnância que devia fazer à sua alma virginal o escárnio,
a argumentação vingativa, o opróbrio. Viver sempre na
Galileia, pregar o seu coração, dar-se em amor e em verdade
aos infelizes mal-amados e transviados, ter a eterna serenidade do seu idílio
social, que doce futuro, terno, purificado, coberto de luz! E estava ele bem
certo de convencer as almas, de converter as hostilidades? Como seria compreendida
a sua palavra de amor, igualdade. perdão, pobreza., neste mundo todo
egoísta, avaro, hierárquico, agonizador, político? Não
ia ser repelido por um imenso desdém? Ele só pela sua palavra
etérea, pela promessa do reino de Deus, como lutaria com estes sacerdotes
que têm liteiras, milícias, escravos frígios, colunas
de mármore grandes como torres, e um templo edificado como uma eternidade?
E os seus olhos voltavam-se com amargura para as edificações
de Herodes, o Grande! Os galileus tomaram, nas suas feições
e perfil, da melancolia do Mestre: eles, pobres camponeses ignorantes, sentiam-se
esmagados no meio de tantos mármores do Templo, de tanta ciência
de doutores, de tantas forças civis! Jesus ia com passos casuais pelos
terraços do Templo: os seus olhos tinham um vago inefável: os
discípulos mostravam-lhe ou um sacrificador revestido, resplandecente,
ou as altas colunas incrustadas de jaspe, ou as lâminas de ouro do santuário:
ele olhava, infinitamente triste, com um desdém abatido.

Eu estudava junto dele o movimento provável, lógico, das suas
ideias: mas um grande rumor encheu o Templo.

Jesus de Nazaré estava nos altos terraços, donde se domina
todo o baixo recinto do Templo.

Pelos pátios, pelas escadarias, aproximava-se uma multidão
cheia de vozes, de gritos penetrantes.

Adiante, entre alguns da milícia sacerdotal, armados de paus, couraçados
de peles de búfalo, vinha uma mulher, arrastada; escribas, fariseus,
herodianos, inflamados de zelo, cheios das vinganças da lei, vinham
em volta, com largos gestos de c6lera, ásperas imprecações.
Os negros olhos irritados reluziam. A mulher a todo o passo caía, abatia-se,
duramente espancada: tinha fortes cabelos negros desmanchados, os pés
riscados de sangue, a túnica despedaçada, o rosto levemente
aquilino, tomado de aflição.

A multidão dura clamava: todos corriam, curiosos: vinham os vendedores
de pombas, os cambiadores de ouro: os escribas saíam do santuário
vinham os pregoeiros, os demandistas, os que passeiam na rua com fardos, ou
conduzindo gados; os doentes da piscina arrastavamse, os coxos corriam com
grandes deslocações nas suas muletas.

Todos interrogavam, queriam penetrar até aos soldados, aos fariseus,
havia uma curiosidade bárbara: alguns subiam às balaustradas,
e estendendo o manto sobre a cabeça, contra o pesado sol, olhavam avidamente:
as aves de sacrifício assustadas esvoçavam, as reses balavam.
Os sacerdotes revestidos à porta do santuário sobre a tripeça
de bronze olhavam, interrogavam. A multidão enchia as escadarias e
os pátios..

O Rabi de Nazaré estava no terraço, imóvel, sereno,
cercado dos seus galileus: defronte dele havia um espaço batido do
sol: os soldados pararam ali, e a mulher caiu sobre a pedra, sufocada, abandonada,
torcendo os braços. Era alta, escultural, de fortes cabelos, com uma
semelhança pagã.

Então, num grande silêncio, um escriba, que vinha, caminhou
para Jesus, e com a voz austera, altiva, disse: Rabi, sabemos que
és justo e verdadeiro; aqui está uma mulher que foi achada em
adultério nos pórticos do Templo.

Lapidada. lapidada prorrompeu a multidão.

Erguiam-se braços com paus; apareciam rostos Inflamados; sentiam-se
os gritos agudos, arrastados, das mulheres.

Jesus tinha o olhar abstracto; aos seus pés a mulher soluçava.
Os soldados riam.

O escriba falava, com gestos abundantes: Rabi dizia
a lei de Moisés, a nossa lei, diz que a mulher adúltera deve
ser lapidada; mas tu, que a comentas, explica a Lei; o que pensas tu, Rabi?
Jesus olhou o escriba, serenamente.

O Rabi de Nazaré perdoa sempre esses pecados gritou
alguém entre a multidão.

Sentiram-se risos. Um velho, áspero, adunco, gritava: Ele
vive com as mulheres possessas; ele vive com os publicanos! E um fariseu bradou:
É o Salomão das mulheres perdidas.

Toda a multidão riu largamente; mas o escriba mostrava o plilectério
onde anda escrita a Lei, e exclamava: Ouve bem, Rabi, a lei de Moisés
manda-a lapidar.

O povo cruel dizia num clamor: Lapidada, que seja lapidada! Alguns
fariseus gritavam: E o Rabi, e o Rabi de Nazaré! Os sacerdotes,
escandalizados, faziam ver os centuriões da milícia templária.
A multidão era espessa; os mendigos apregoavam posca; os vendedores
de Betfagé mostravam pombas enfeitadas de escarlate; os doentes da
piscina iam entre a gente, mostrando as chagas, dizendo os salmos, pedindo
dracmas; da Torre Antónia cabeças de legionários espreitavam.

Então uma voz aguda, vibrante, amarga, gritou: Essa é
a mulher de Jesus Bar-Abbás.

Uma risada sonora, pesada, tomou o povo os soldados apertavam as costelas;
os sacerdotes, junto às portas da ara, riam nas suas longas barbas,
fazendo oscilar as pesadas mitras cravejadas. Entretanto os fariseus iam entre
os homens, contentes de riso, dizendo: Esse Rabi de Galileia quer
que seja perdoada; é um homem impuro, que despreza a Lei.

Alguns queriam levar o Mestre diante do Sinédrio.

Mas na multidão havia uma oscilação; sentiam-se gritos,
risadas joviais, vozes; o povo afastava-se; e de entre a sua escura espessura
vinha empurrado, repelido, atirado, um homem.

E vozes alegres bradavam: Aí vai Jesus Bar-Abbás,
aí vai! O homem esfarrapado, absorto, assustado, veio estacar, olhando,
nessa áspera inquietação, como um boi espantado, junto
de Jesus..

Era Bar-Abbás.

Viu a mulher soluçando, caída sobre as largas lajes.

E olhava, com os olhos vibrantes, voltava-se, recuava, e tomando, com ambas
as mãos, violentamente, uma ponta da túnica, estendeu-a para
a multidão, gritando: Quem dá para o luto? O povo ria;
bradava: Lapidai-a, lapidai-a! Bar-Abbás dizia: Lapidai-a,
dai-me para o luto! E ria, com grandes contorções, com visagens.
A mulher chorava.

Havia um clamor; o povo pedia a lapidação; os fariseus, os
escribas diziam que o Rabi queria o perdão, o desprezo da Lei.

Fala, Rabi, fala gritavam-lhe de entre a multidão.
Mas Jesus olhava sereno, calado.

Então um escriba, erguendo os braços, convulso, com a voz
mordente, colérica, bradou: Sim, sim, povo de Jerusalém,
o Rabi de Galileia despreza a Lei, quer o perdão da mulher adúltera.

Ergueu-se um clamor inimigo; alguns, zelosos, erguiam paus, pediam a morte.

Mas João, exaltado, tomando o braço ao escriba, bradou-lhe
poderoso, irritado: Quem te disse que o Rabi de Nazaré perdoa
à mulher adúltera? Ele manda lapidá-la.

Havia um silencio. E Jesus, adiantando-se, em toda a nobreza da sua estatura,
para a multidão, com um olhar inflamado de luz, disse: Sim,
lapidai-a, e aquele de vós outros que se julgar sem pecado, que lhe
atire a primeira pedra! A sua voz era forte, côncava, misteriosa, assustava.

A imensa multidão estava calada, absorta; alguns rumores elevaram-se:
os fariseus, os escribas afastavam-se, rosnando. Alguns velhos, choravam:
vozes diziam: o Messias, é o Messias! Todos se dispersavam.
Os largos pátios reluziam ao sol, quase desertos.

Eu afastei os soldados, soltei a mulher: os fariseus, em grupos irritados,
concertavam, à porta do santuário, entre os centuriões
da milícia templária.

Eu que tantas vezes assistira às lapidações de adúlteras,
estava concentrado, absorto: aquela palavra, calda no meio da minha educação
judaica, perturbava toda a organização do mundo interior que
nos habita. Alegrava-me em ver, com uma palavra simples e genial. a hipocrisia
de uma raça ferida na sua essência: tinha admirações
Inesperadas pelo espírito harmonioso do Mestre da Galileia.

Sim, sim dizia eu Jesus de Nazaré, pelo seu
génio simples e justo. pela delicadeza penetrante da sua palavra, pelo
seu ensino sobre a riqueza, sobre os pobres, sobre o perdão, sobre
o culto, e pela influência poderosa do seu ser sobre os homens, está
destinado, talvez, a ser a regeneração de Israel.

Se ele tem apenas o espírito, eu terei por ele a força. Ai
de mim, ignorado. fraco, tímido, mais especulativo que activo, como
poderia eu ser o homem decisivo de uma insurreição? Mas o tédio
da vida presente, uma mocidade ávida de acção, o desdém
irreconciliável pelo Templo, e pela sua gente, o prestigio que em mim
tinha a vida do agitador judas Galaunete, tudo isso, e o desejo de me aproximar
do Mestre da Galileia me levou a procurar Jogo, de Cafarnaum, e a pedir4he.
simplesmente, rapidamente, que me levasse a Jesus de Nazaré.

João disse-me que à noite estivesse junto à Porta dos.

Rebanhos; viria um homem que me diria esta palavra Shalon. que era a saudação
usada do Rabi, que o seguisse. e pela noite alta falaria a Jesus.

Uma trémula inquietação me tomou até ao anoitecer:
o contacto com aquele homem, a gravidade das Ideias que eu lhe levava, o perigo,
tudo me tornava mais perfeito de sentidos, mais abundante de palavras, mais
pronto de fé.

IX À hora terceira da noite, eu descia por entre os pomares que têm
a sua raiz na encosta onde assenta o bairro de Bezeta: era num horto, junto
ao Monte das Oliveiras, que eu ia ver Jesus de Nazaré.

A noite estava cheia de um luar vivo, profundo: havia sombras suaves sob
as largas ramagens: um silêncio doce ocupava a terra. Ouvi apenas um
canto, triste, arrastado alguma pobre mulher embalava O filho, chorava o marido
levado para as legiões de Roma.

O homem que me guiava abriu uma porta. estreita, de vime: entrei num espaço
coberto por folhagem de cedro: sentia-se frescura de água. cheiro de
plantas.

A Lua alumiava, defronte, um espaço aberto, areado, com um banco
de pedra: aí, com os braços cruzados no regaço, a cabeça
apoiada ao muro, o olhar afogado no espaço alumiado, estava Jesus.

Ergueu-se. lentamente, e disse: Paz.

Paz e alegria. Rabi disse eu. Velavas? Velo
sempre. Bem-aventurado o que vela! Ele é como o servo diligente, que
espera acordado ó seu senhor que foi para as bodas: e mal o sente chegar,
corre logo a abrir.

Jesus calou-se, perdendo o olhar no inefável espaço luminoso.

Eu aproximei-me, e com uma voz profunda. convencida, disse: Creio
em ti, Mestre! Jesus olhava, enlevado, transcendente.

Havia um silêncio; eu estava constrangido, e dizia para o chamar às
nossas comuns imaginação: Rabi, o que é necessário,
segundo pensas. para alcançar feliz a vida eterna? Jesus pousou em
mim, demoradamente. os seus olhos severos.

Serves o Templo disse serves a Lei, e não
conheces a Lei; a Lei que diz? A Lei disse eu ensina
que amemos a Deus sobre tudo, e aos outros como a nós.

E eu digo como a Lei.

E olhava-me, penetrantemente: falava como num sonho, ou a alguém
invisível, Não se pode servir bem a dois amos: um deles
se há-de desprezar, outro servir.

Não se adora no mesmo coração a Deus e a Moloch.

Compreendi que o Rabi não tinha confiança em mim: que me julgava
um emissário do Templo para lhe escutar a doutrina, e dar testemunho
Contra ele.

Respondi com uma dignidade dura: Tens para mim palavras desconfiadas,
Rabi. Chama João. Ele sabe que creio em ti, e que não vou dar-vos
testemunhos que o Sanedrim põe por trás das portas dos blasfemadores
da Lei. O meu corpo serve e vive no templo, mas muitas vezes o meu espírito
tem andado contigo, em desejo e em verdade, no teu lago de Tiberíade.
Chama João.

O Rabi considerava-me atento..

O homem disse ele dá testemunho do homem:
só Deus conhece os corações.

Pois bem: tu, que segundo dizem, és hoje o maior vidente
de Israel, tu julga, ou condena minha alma.

Dizia isto grave, firme, áspero. Jesus de Nazaré, com o rosto
esclarecido, disse-me docemente: A fé salva.

E depois de um momento: E quem dizem então os de Jerusalém
que eu sou? Uns, Mestre, dizem que és Elias, ou o Baptista
ressuscitado, outros que és o Messias; os fariseus pensam que és
um blasfemador ambicioso, ou um simples sincero, a maior parte ignora-te:
esta é a verdade.

E tu quem dizes que eu sou’ Eu, digo que és
um homem justo, e uma elevada consciência das coisas divinas.

Digo que és um homem mandado providencialmente, num tempo humilhado
e vil, para erguer as almas, desmascarar as hipocrisias, vingar a pátria!
Penso que se tens de ter uma acção no mundo, essa deve ser insurgires-te
contra a aristocracia do Templo, contra este espírito estreito de Jerusalém,
contra este culto pagão das tradições, contra o fariseu
e contra o romano, ser o consolador, ser o vingador! Homem, em que
espírito estás?! Eu vim a salvar as almas, e não a perdê-las.

E é perdê-las. torná-las justas? É perdê-las,
o combater este sacerdócio rico e indiferente, este culto ensanguentado
e hipócrita? É perdê-las o quebrar-lhes este destino que
as traz escravas, sempre choradas e sempre perdidas, e agora sob o arbítrio
dos favoritos imbecis de Tibério? Essas coisas pequenas não
me pertencem: são do mundo.

Perdoa, Rabi: mas a que vieste então? E tu quem dizes que
és, te pergunto eu agora? Queres ficar eternamente pregando e contemplando
no lago de Tiberíade, e andar errante pelos casais? E pensas que isso
influirá sobre os homens, tanto sequer como uma folha seca? Pensas
fazer uma revolução na Judeia, acariciando as cabeças
loiras das crianças de Chorazim, e contando parábolas, entre
os campos, aos simples e às mulheres? Compreendo que a tua ambição
não seja maior, e que te baste a felicidade de um sonho na fraternidade
dos simples. Mas então para que vieste a Jerusalém? Para que
pregas no Templo? Se tu não és uma iniciativa revolucionária,
o que és então? Que és tu, se não és uma
forte Intensidade de vontade? As máximas que tu pregas são de
Hillel. são de Gamaliel, são de Jesus de Sirach: sei que há
coisas novas no teu ensino, mas o que nelas há de grande é a
tua força de convicção, e a tua fé, e a tua profunda
virtude, e o teu amor do sacrifício, e a tua infinita vontade. De que
te servem então estas qualidades, para que as guardas? Não és
tu judeu? Não é a tua mãe de Caná? Não
podia teu pai ser levado legionário para Roma? De que nos servem essas
parábolas, essas ironias, essas respostas excelentes, se elas não
vão ferir a riqueza do saduceu, a hipocrisia do escriba, a vexação
do romano? Queres abster-te da acção? Imaginas que as prédicas
do Templo e o ensino sobre as montanhas, só pela sua verdade abstracta,
podem combater, vencer um mundo completo, organizado, civil, rico, amado?
imaginas que se pode repetir o milagre das trompas de Jericó? Crês
tu que um mundo inteiro, tribunais, templos, ofícios, mercados, sacerdócios,
escolas, tudo fortemente ligado, se dissipe como uma visão, porque
um homem simpático se ergue num caminho e diz: «Amai-vos uns
aos outros, e sereis amados do vosso Pai celeste!» Não! tal não
será, Rabi! Pela vossa incredulidade! que se tivésseis
a fé tanto eu sei? como um grão de mostarda,
e dissésseis àquele monte: passa-te daí!, o monte passaria!
Oh! geração incrédula, geração incrédula,
até quando estarei entre ti?.

O Rabi dava largos passos, atormentado, doloroso.

Rabi, Rabi, escuta-me. Eu tenho a tua fé, amo o teu reino
de Deus. Mas o teu Deus consola muito em cima, e nós sofremos e choramos
muito baixo na terra.

Jesus estava tomado de incerteza, de amargura. Eu dizia: Escuta,
Rabi: consinto que só pela tua palavra, tu possas realizar o teu reino
de Deus. Mas então deixa esses galileus simples, liga-te aos homens
que têm a força, a ciência e o segredo das coisas humanas:
nós seremos a acção, sê tu o nosso Messias na Judeia.
nada se faz sem um profeta! Como tens tu pensado realizar o teu reino de Deus?
Pela doçura e pela paciência. ou pela força e pela revolta?
Não podes hesitar, se pensas.

Queres fazer um renascimento, com os galileus que te cercam, com os publicanos
infelizes, com os doentes que curas, com os miseráveis que consolas,
com as mulheres que te amam, com as crianças que te sorriem?
Deus esconde muitas coisas aos sábios, que revela às crianças.

Para que pregas então no Templo, contra os fariseus e os
príncipes? Deixa pelo espírito dos simples e crianças
operar-se a regeneração! Na verdade, Rabi, dize-me:
entendes tu que no mundo nada vale, e que só ø teu ideal pode
dar felicidade e sossego? Professas tu o desdém? Só
o desdém dá a paz.

Dá a inércia, o sacrifício e as virtudes passivas.
E se amanhã tu pudesses começar a ver realizado no mundo esse
reino dos pobres, dos simples dos pequenos? Se pelo menos visses uma terra
bem preparada para a tua palavra? Se Visses tudo transformado por uma acção
enérgica, revolucionária, pela nossa acção? Jesus
caminhava, inquieto, o seu olhar vibrava. As minhas palavras davam-lhe inesperadas
perturbações.

Nós víamos o Templo luzir na branca polidez da pedra sob o
Luar: eu dizia-lhe, profundo: Olha, vê o Templo, hoje ali tudo
é intriga, artifício, aparato, riqueza, sangue, hipocrisia,
vaidade: amanhã seria o lugar mais santo da Terra.

Jesus cobria o Templo com um vasto olhar, cheio da fulguração
do seu desejo. Eu tinha-lhe tomado as mãos, dizia-lhe baixo, junto
à face: Ouve: em Jerusalém há descontentes: alguns
membros do Sanedrim estão irritados com a família de Elanan,
com Beotos; Gamaliel não ama o Templo; o baixo povo do mercado detesta
fariseus e escribas, é nosso; a Galileia é nossa, a Perea é
nossa; mandar-se-ão emissários a Jopé: toda a Judeia
se erguerá: tu serás o profeta. Queres? O teu sonho do lago
de Tiberíade será então vivo, real, palpável,
existente sob as nuvens! Queres? A noite era imortalmente bela: havia
uma bondade no ar: o mundo parecia-me possuído de um elemento diverso.

Eu falava confusamente, ora contra os fariseus, ora contra os romanos: e
não conhecia nem a força de Roma, nem o poder sacerdotal, nem
a inércia de um povo egoísta. Uma grande tentação
cativava o espírito do Mestre. Eu dizia-lhe, tomando-lhe as mãos:
Rabi, Rabi, depois do fariseu, será a vez do romano. Tu serás
o maior da Judeia: terás glorificado o pobre, terás humilhado
o rico, terás aniquilado o hipócrita, terás expulso o
romano: serás pela justiça igual a Ezequiel, pela força
igual aos Macabeus: serás como David, terás a Palestina desde
o Jordão até ao mar, e serás o rei de Israel.

Eu falava exaltado: mostrava-lhe Jerusalém e dizia-lhe: Terás
a Palestina até ao mar, serás o rei de Israel!.

Mas Jesus, erguendo a mão, mostrando-me com um gesto elevado e transcendente
o céu cheio da Lua serena, o inefável silêncio, a pura
beleza do elemento, o profundo mistério onde Deus habita, disse-me:
Vai-te: o meu reino não é deste mundo.

Olhei longamente o Rabi, lamentei o seu desdém, sorri da sua palavra:
e calado, concentrado, saí pelo caminho de Betfagé.

Uma claridade aparecia: os galos cantavam. No outro dia, pela hora da tarde,
Jesus, seguido dos seus, subiu para a Galileia! [1] Quando, em 1875, começou
na Revista Ocidental a publicação de O Crime do Padre Amaro,
Teixeira de Vasconcelos escreveu: «Nasceu na Gazeta de Portugal Eça
de Queirós e assustou por diferentes vezes os espíritos serenos
dos pacificas leitores dela. Não passaram sem observações
nossas alguns dos seus realismos exagerados…» Jornal da Noite, 20
de Fevereiro, 1875, Lisboa.

[2] Veja-se Antero de Quental, «In Memoriam» Eça de Queirós,
um Génio Que Era Um Santo», pp.

499-502; J. Batalha Reis, «Anos de Lisboa», idem, 442-445, Porto,
1896.

[3] Hoje, Rua do Diário de Notícias.

[4] In A Correspondência de Fradique Mendes..

[5] Veja-se a «Carta a Carlos Mayer»..

[6] «Na Europa o Sul representa… a maneira de ser exterior, como
o Norte representa o vago sentimento íntimo…» Eça de
Queirós. «Da Pintura em Portugal», Gazeta de Portugal,
10 de Novembro de 1867.

[7] «…Nós… os que estamos neste canto da velha terra portuguesa,
com a alma serena, sob o céu claro…» Eça de Queirós,
«Sinfonia de Abertura», Gazeta de Portugal, 7 de Outubro, 1866.

[8] «Du Heine de deuxième qualité», Antero de
Quental, «Carta a Wilhelm Storck», 14 de Maio, 1887.

[9] Há como se sabe muitas poesias de Heine em verso solto: «Das
Nordsee»; etc.

[10] Colégio do Roeder, na Rua do Prior, Lisboa.

[11] H. Heine, «Reisebilder». «Les nuits florenthines»,
II, pp. 316 e 330 (cito a tradução francesa que Eça de
Queirós conheceu); H. Berlioz, «Les Soirées de l’Orchestre»
16ª, «Paganini», pp. 218-219,2ª ed., Paris,
1854. Depois de contar o episódio que realmente nada tem de fantástico,
Berlioz escreve:«Supposez Théodore Hoffmann à ma place:
quelle touchante et fantastique élégie il eût ecrit sur
ce bizarre incident.» (P. 219.) Foi o que fez Eça de Queirós..

[12] Veja-se «Notas Marginais».

«Luzia um grande Sol, mas negro; o Sol da melancolia…) «Sinfonia
de Abertura», Gazeta de Portugal, 7 de Outubro de 1866.

«Un affreux soleil noir d’où rayonne la nuit!»
A expressão «Sol negro» é hoje, em parte, cientificamente
verdadeira: os raios ultravioláceos da luz solar, podem chamar-se negros,
e não são nem luminosos, nem quentes.

Vítor Hugo, «Les Contemplations, (ce qui dit tu bouche d’ombre).

[13] «La guitarre des monts d’Inspruck…» V. Hugo. «Légende
des Siècles», Eviradnus.

[14] Veja-se «O Milhafre», «Misticismo Humorístico»,
no presente volume, e A Correspondência de Fradique Mendes, «Introdução»,
passim..

[15] «…Baudelaire, Poeta Retórico…» A. Z. (Eça
de Queirós), «Leituras Modernas», Distrito de Évora,
6, Janeiro 1876, p. 2. A Correspondência de Fradique Mendes.

[16] Veja-se as quadras em «O Senhor Diabo», no presente volume.
e Bernardim Ribeiro, Livro das Saudades, romance de Avalor: com as «Notas
Marginais», no presente volume.

[17] Cujas poesias, muito conhecidas desde que foram compostas, só
em 1875 apareceram coligidas em volume.

[18] «O Monge», destruída pelo autor e nunca publicada.

…aux voûtes gothiques Des portiques.

Les vieux de pierre athlétiques Priant tout bas pour les vivants!
A. de Musset, «Prémières Poésies», Stances,
1828..

[19] Gazeta de Portugal, 7 de Outubro de 1866.

[20] «Constelações, gotas de sombra», in «O
Milhafre»..

[21] Veja-se Vítor Hugo, «William Shakespeare»: principalmente,
livre II, «Les Génies.», II.

Veja-se também «Macbeth» no presente volume.

[22] Veja-se uma outra profunda definição de Música
em «Macbeth», no presente vo1ume.

«A Música deve ser a voz de tudo aquilo que ali está
silencioso. sem ter a faculdade de se exprimir e nós termos a possibilidade
de o compreender.» É de notar que «Macbeth» reproduzido
nas Prosas Bárbaras foi escrito em 1866. Entre os compositores de ópera
mencionados nesse escrito de Eça de Queirós, não se acha
citado o Ricardo Wagner, cujas óperas, «Tanhauser» (1845)
e «Lohengrin» (1850), já existiam. É que essas obras
não tinham ainda sido executadas em Lisboa..

[23] «Oh, egoísmo humano, os que vão morrer saúdam-te!»
Eça de Queirós, «O Milhafre», «Introdução»,
Gazeta de Portugal, 6 de Outubro de 1867.

[24] «De l’Allemagne». «Les Dieux en Exil»,
IX partie, pp. 181-242. «La mer du Nord», «Les Dieux de
la Grèce» (cito as traduções francesas que Eça
de Queirós conheceu).

[25] «La Sorcière».

[26] Veja-se XIII de «Notas Marginais».

[27]As visões «são as atitudes fantásticas e
desmanchadas que a sombra dá às verdades»: «Misticismo
Humorístico», no presente volume.

«…à ceux qui ont mis leur foi dons les rêves comme
dans les seulets réalités.» Edgar Allan Pöe, Eureka,
trad. de Ch. Baudelaire que Eça de Queirós conheceu: «…to
those who feel rather than to those think to the dreamers and those
who put faith in the dreams as in the only realities…» Edgar Allan
Pöe, idem, II, p. 117. 1876, New York.

[28] Quando se deu, em Paris, o Hamlet com música de Ambroise Thomas,
Augusto Machado leu-nos ao piano a partitura.

Há nela uma cantiga fantástica popular norueguesa que eu ouvi
mais tarde a Cristina Neilson, que era escandinava, e impressionou francamente
Eça de Queirós.

A poesia dessa canção é uma balada sobre assunto fantástico
do Norte que então preocupava o espírito de Eça de Queirós.

Desde então ouvia-se cantarolar, a meia voz dolorosa e melodramática,
como seguindo as suas visões: «Calme et blonde, dort dans l‘eau
profonde la Willis, au regard du feu…».

[29] «Onfália Benoiton», Gazeta de Portugal, 15 de Dezembro
de 1867.

[30] Os versos citados na Revista Moderna (20, Novembro 1897, p. 324) não
são de Eça de Queirós.

Nunca ele publicou na Revolução de Setembro, em folhetins
como também na Revista Moderna se afirma os primeiros
cantos de um poema, «A Tentação de S. Jerónimo».
Existe, com efeito, de Eça de Queirós, mas inédito, um
poemeto intitulado «A Morte de S. Jerónimo»..

[31] Revolução de Setembro, 29 de Agosto de 1869..

[32] Depois conde de Resende.

[33] Oficial da marinha portuguesa, e desde 1881 cônsul-geral de Portugal
nas ilhas Sandwich.

[34] Veja-se o tom em que Eça de Queirós fala dos seus escritos
no Gazeta de Portugal, ao tempo da viagem ao Egipto, in A Correspondencia
de Fradique Mendes..

[35] Uma revista francesa (Artiste) havia, em 1856, publicada alguns fragmentos
desta obra cuja versão definitiva só apareceu em 1875.

[36] 36 Nem o humorismo, nem a ironia, existem no espírito e na literatura
portuguesa.

Camilo tem a graça, a chalaça, o sarcasmo. Não é
irónico, nem humorista.

Queirós, sim: por isso é tão pouco português
no estilo e nas formas do seu espírito, se bem que o seja nos assuntos
dos seus romances de pois das Prosas Bárbaras.

A ironia, tão essencial e típica parte da sua personalidade,
da sua estética, do seu estilo de seu mestre, Reine
não aparece ainda então (no tempo das Prosas Bárbaras).

[37] Veja-se no presente volume.

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