Lima Barreto
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Poucas vezes se há visto nos meios literários do Brasil, uma estréia como a do Senhor Monteiro Lobato. As águias provincianas se queixam de que o Rio de Janeiro não lhes dá importância e que os homens do Rio só se preocupam com coisas do Rio e da gente dele. É um engano. O Rio de Janeiro é muito fino para não dar importância a uns sabichões de aldeia que, por terem lido alguns autores, julgam que ele não os lê também; mas, quando um estudioso, um artista, um escritor, surja onde ele surgir no Brasil, aparece no Rio, sem esses espinhos de ouriço, todo o carioca independente e autônomo de espírito está disposto a aplaudi-lo e dar-lhe o apoio da sua admiração. Não se trata aqui da barulheira da imprensa, pois essa não o faz, senão para aqueles que lhe convém, tanto assim que sistematicamente esquece autores e nomes que, com os homens dela, todo o dia e hora lidam.
O Senhor Monteiro Lobato com o seu livro Urupês veio demonstrar isso. Não há quem não o tenha lido aqui e não há quem o não admire. Não foi preciso barulho de jornais para o seu livro ser lido. Há um contágio para as boas obras que se impõem por simpatia.
O que é de admirar em tal autor, e em tal obra, é que ambos tenham surgido em São Paulo, tão formalista, tão regrado que parecia não admitir nem um nem a outra.
Não digo que, aqui, não haja uma escola delambida de literatura, com uma retórica trapalhona de descrições de luares com palavras em “ll” e de tardes de trovoadas com vocábulos com “rr” dobrados: mas São Paulo, com as suas elegâncias ultra-européias, parecia-me ter pela literatura, senão o critério da delambida que acabo de citar, mas um outro mais exagerado.
O sucesso de Monteiro Lobato, lá, retumbante e justo, fez-me mudar de opinião.
A sua roça, as suas paisagens não são coisas de moça prendada, de menina de boa família, de pintura de discípulo ou discípula da Academia Julien; é da grande arte dos nervosos, dos criadores, daqueles cujas emoções e pensamentos saltam logo do cérebro para o papel ou para a tela. Ele começa com o pincel, pensando em todas as regras do desenho e da pintura, mas bem depressa deixa uma e outra coisa, pega a espátula, os dedos e tudo o que ele viu e sentiu sai de um só jato, repentinamente, rapidamente.
O seu livro é uma maravilha nesse sentido, mas o é também em outro, quando nos mostra o pensador dos nossos problemas sociais, quando nos revela, ao pintar a desgraça das nossas gentes roceiras, a sua grande simpatia por elas. Ele não as embeleza, ele não as falsifica; fá-las tal e qual.
Eu quereria muito me alongar sobre este seu livro de contos, Urupês, mas não posso agora. Dar-me-ia ele motivo para discorrer sobre o que penso dos problemas que ele agita; mas, são tantos que me emaranho no meu próprio pensamento e tenho medo de fazer uma coisa confusa, a menos que não faça com pausa e tempo. Vale a pena esperar.
Entretanto, eu não poderia deixar de referir-me ao seu estranho livro, quando me vejo obrigado a dar notícia de um opúsculo seu que me enviou. Trata-se do “Problema Vital”, uma coleção de artigos, publicados por ele, no Estado de S. Paulo, referentes à questão do saneamento do interior do Brasil.
Trabalhos de jovens médicos como os doutores Artur Neiva, Carlos Chagas, Belisário Pena e outros, vieram demonstrar que a população roceira do nosso país era vítima desde muito de várias moléstias que a alquebravam fisicamente. Todas elas têm uns nomes rebarbativos que me custam muito a escrever; mas Monteiro Lobato os sabe de cor e salteado e, como ele, hoje muita gente. Conhecias, as moléstias, pelos seus nomes vulgares; papeira, opilação, febres e o mais difícil que tinha na memória era – bócio. Isto, porém, não vem ao caso e não é o importante da questão.
Os identificadores de tais endemias julgam ser necessário um trabalho sistemático para o saneamento dessas regiões afastadas e não são só estas. Aqui, mesmo, nos arredores do Rio de Janeiro, o doutor Belisário Pena achou duzentos e cinqüenta mil habitantes atacados de maleitas, etc. Residi, durante a minha meninice e adolescência, na Ilha do Governador, onde meu pai era administrador das Colônias de Alienados. Pelo meu testemunho, julgo que o doutor Pena tem razão. Lá todos sofriam de febres e logo que fomos, para lá, creio que em 1890 ou 1891, não havia dia em que não houvesse, na nossa casa, um de cama, tremendo com a sezão e delirando de febre. A mim, foram precisas até injeções de quinino.
Por esse lado, julgo que ele e os seus auxiliares não falsificam o estado de saúde de nossas populações campestres. Têm toda a razão. O que não concordo com eles, é com o remédio que oferecem. Pelo que leio em seus trabalhos, pelo que a minha experiência pessoal pode me ensinar, me parece que há mais nisso uma questão de higiene domiciliar e de regime alimentar.
A nossa tradicional cabana de sapê e paredes de taipa é condenada e a alimentação dos roceiros é insuficiente, além do mau vestuário e do abandono do calçado.
A cabana de sapê tem origem muito profundamente no nosso tipo de propriedade agrícola – a fazenda. Nascida sob o influxo do regime do trabalho escravo, ela se vai eternizando, sem se modificar, nas suas linhas gerais. Mesmo em terras ultimamente desbravadas e servidas por estradas de ferro, como nessa zona da Noroeste, que Monteiro Lobato deve conhecer melhor do que eu, a fazenda é a forma com que surge a propriedade territorial no Brasil. Ela passa de pais a filhos; é vendida integralmente e quase nunca, ou nunca, se divide. O interesse de seu proprietário é tê-la intacta, para não desvalorizar as suas terras. Deve ter uma parte de matas virgens, outra parte de capoeira, outra de pastagens, tantos alqueires de pés de café, casa de moradia, de colonos, currais, etc.
Para isso, todos aqueles agregados ou coisa que valha, que são admitidos a habitar no latifúndio, têm uma posse precária das terras que usufruem; e, não sei se está isto nas leis, mas nos costumes está, não podem construir casa de telha, para não adquirirem nenhum direito de locação mais estável.
Onde está o remédio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e modos de fazer desaparecer a “fazenda”.
Construir casas de telhas, para os seus colonos e agregados. Será bom? Examinemos. Os proprietários de latifúndios, tendo mais despesas com os seus miseráveis trabalhadores, esfolarão mais os seus clientes, tirando-lhes ainda mais dos seus míseros salários do que tiravam antigamente. Onde tal coisa irá repercutir? Na alimentação, no vestuário. Estamos, portanto, na mesma.
Em suma, para não me alongar. O problema, conquanto não se possa desprezar a parte médica propriamente dita, é de natureza econômica e social. Precisamos combater o regime capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrícola, dar “a propriedade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e não ao doutor vagabundo e parasita,, que vive na “Casa Grande” ou no Rio ou em São Paulo. Já é tempo de fazermos isto e é isto que eu chamaria o “Problema Vital”.
Bagatelas, 22-2-1918
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