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A Palavra
Navegador de bruma e de incerteza,
Humilde me convoco e visto audácia
E te procuro em mares de silêncio
Onde, precisa e límpida, resides.
Frágil, sempre me perco, pois retenho
Em minhas mãos desconcertados rumos
E vagos instrumentos de procura
Que, de longínquos, pouco me auxiliam.
Por ver que és claridade e superfície,
Desprendo-me do ouro do meu sangue
E da ferrugem simples dos meus ossos,
E te aguardo com loucos estandartes
Coloridos por festas e batalhas.
Aí, reúno a argúcia dos meus dedos
E a precisão astuta dos meus olhos
E fabrico estas rosas de alumínio
Que, por serem metal, negam-se flores
Mas, por não serem rosas, são mais belas
Por conta do artifício que as inventa.
Às vezes permaneces insolúvel
Além da chuva que reveste o tempo
E que alimenta o musgo das paredes
Onde, serena e lúcida, te inscreves.
Inútil procurar-te neste instante,
Pois muito mais que um peixe és arredia
Em cardumes escapas pelos dedos
Deixando apenas uma promessa leve
De que a manhã não tarda e que na vida
Vale mais o sabor de reconquista.
Então, te vejo como sempre foste,
Além de peixe e mais que saltimbanco,
Forma imprecisa que ninguém distingue
Mas que a tudo resiste e se apresenta
Tanto mais pura quanto mais esquiva.
De longe, olho teu sonho inusitado
E dividido em faces, mais te cerco
E se não te domino então contemplo
Teus pés de visgo, tua vogal de espuma,
E sei que és mais que astúcia e movimento,
Aérea estátua de silêncio e bruma
As Dádivas do Amante
Deu-lhe a mais limpa manhã
Que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
E mais não podia dar.
Deu-lhe o azul que o céu possuía
Deu-lhe o verde da ramagem,
Deu-lhe o sol do meio dia
E uma colina selvagem.
Deu-lhe a lembrança passada
E a que ainda estava por vir,
Deu-lhe a bruma dissipada
Que conseguira reunir.
Deu-lhe o exato momento
Em que uma rosa floriu
Nascida do próprio vento;
Ela ainda mais exigiu.
Deu-lhe uns restos de luar
E um amanhecer violento
Que ardia dentro do mar.
Deu-lhe o frio esquecimento
E mais não podia dar.
A Solidão e o Seu Desgaste
Freqüentador da solidão, às vezes
Jogava ao ar um desespero ou outro,
Mas guardava os menores objetos
Onde a vida morava e o amor nascia.
Era uma carga enorme e sem sentido,
Um silêncio magoado e impermeável…
A solidão povoada de instrumentos,
Roubando espaço à andeja liberdade.
Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele
Passeia pelos campos e os despreza
E porque sabe com certeza clara,
O princípio e o fim da coisa amada,
Guarda pouco da vida e o que retém
É só pelo impossível de eximir-se
A Solidão e Sua Porta
Quando mais nada resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(Nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório
Desmantelo Azul
Então pintei de azul os meus sapatos
Por não poder de azul pintar as ruas
Depois vesti meus gestos insensatos
E colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir de nós o azul ausente
E aprisionar o azul nas coisas gratas
Enfim, nós derramamos simplesmente
Azul sobre os vestidos e as gravatas
E afogados em nós nem nos lembramos
Que no excesso que havia em nosso espaço
Pudesse haver de azul também cansaço
E perdidos no azul nos contemplamos
E vimos que entre nascia um sul
Vertiginosamente azul: azul.
Marinha
Tu nasceste no mundo do sargaço
da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
dormem peixes de prata em teu regaço.
Descobri tua origem, teu espaço,
pelas canções marinhas que semeias.
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso teu olhar é triste e baço.
Mas teu segredo é meu, ó, não me digas
onde é tua pousada, onde é teu porto,
e onde moram sereias tão amigas.
Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
pois não entenderá essas cantigas
que trouxeste do fundo do mar morto.
Memórias do Boi Serapião
A Aloísio Magalhães e José Meira
Este campo,
vasto e cinzento,
não tem começo nem fim,
nem de leve desconfia
das coisas que vão em mim.
Deve conhecer, apenas
(porque são pecados nossos)
o pó que cega meus olhos
e a sede que rói meus ossos.
No verão, quando não há
capim na terra
e milho no paiol
solenemente mastigo
areias, pedras e sol.
Às vezes, nas longas tardes
do quieto mês de dezembro
vou a uma serra que sei
e as coisas da infância lembro:
instante azul em meus olhos
vazios de luz e fé
contemplando a festa rude
que a infância dos bichos é …
No lugar onde eu nasci
havia um rio ligeiro
e um campo verde e mais verde
de um janeiro a outro janeiro
havia um homem deitado
na rede azul do terraço
e as filhas dentro do rio
diminuindo o mormaço.
Não tinha as coisas daqui:
homens secos e compridos
e estas mulheres que guardam
o sol na cor dos vestidos
nem estas crianças feitas
de farinha e jerimum
e a grande sede que mora
no abismo de cada um.
Havia este céu de sempre
e, além disto, pouco mais
que as ondas nas superfícies
dos verdes canaviais.
Mas, os homens que moravam
na língua do litoral
falavam se desmanchando
das terras gordas e grossas
daquele canavial
e raras vezes guardavam
suas lembranças mofinas
as fumaças que sujavam
os claros céus que cobriam
as chaminés das usinas.
Às vezes, entre iguarias,
um comentário isolado:
a crônica triste e curta
de um engenho assassinado.
Mas logo à mesa voltavam
que a fome bem pouco espera
e os seus olhos descansavam
em porcelanas da China
e cristais da Baviera.
Naquelas terras da mata
bem poucos amigos fiz,
ou porque não me quiseram
ou então porque eu não quis.
Lembro apenas um boi triste
num lençol de margaridas
que era o encanto do menino
que alegre o tangia para
as colinas coloridas.
Um dia, naquelas terras
foi encontrado um boi morto
e os outros logo disseram
que o seu dono era o homem torto
que em vez de contar as coisas
daqueles canaviais
vivia de mexericos
“entre estas índias de leste
e as Índias Ocidentais”.
.A verde flora da mata
(que é azul por ser da infância)
habita: os meus olhos com
serenidade e constância.
Este campo,
vasto e cinzento,
é onde às vezes me escondo
e envolto nestas lembranças
durmo o meu sono redondo,
que o que há de bom por aqui
na terra do não chover
é que não se espera a morte
pois se está sempre a morrer:
Em cada poço que seca
em cada árvore morta
em cada sol que penetra
na frincha de cada porta
em cada passo avançado
no leito de cada rio
por todo tempo em que fica
despido, seco, vazio.
Quando o sol doer nas coisas
da terra e no céu azul
e os homens forem em busca
dos verdes mares do sul.
só eu ficarei aqui
para morrer por completo,
para dar a carne à terra
e ao sol meu branco esqueleto,
nem ao menos tentarei
voltar ao canavial,
pra depois me dividir
entre a fábrica de couro
e o terrível matadouro municipal.
E pensar que já houve um tempo
em que estes homens compridos
falavam de nós assim:
o meu boi morreu
que será de mim?
Este campo,
vasto e cinzento,
não tem entrar nem sair
e nem de longe imagina
as coisas que estão por vir,
e enquanto o tempo não vem
nem chega o milho ao paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.
De Livro Geral. Rio de Janeiro: Livraria São Rio, 1959
Para Fazer Um Soneto
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
E espere um instante ocasional
Neste curto intervalo Deus prepara
E lhe oferta a palavra inicial
Ai, adote uma atitude avara
Se você preferir a cor local
Não use mais que o sol da sua cara
E um pedaço de fundo de quintal
Se não procure o cinza e esta vagueza
Das lembranças da infância, e não se apresse
Antes, deixe levá-lo a correnteza
Mas ao chegar ao ponto em que se tece
Dentro da escuridão a vã certeza
Ponha tudo de lado e então comece.
Retrato Campestre
Havia na planície um passarinho,
Um pé de milho e uma mulher sentada.
E era só. Nenhum deles tinha nada
com o homem deitado no caminho.
O vento veio e pôs em desalinho
a cabeleira da mulher sentada
e despertou o homem lá na estrada
e fez canto nascer no passarinho.
O homem levantou-se e veio, olhando
a cabeleira da mulher voando
na calma da planície desolada.
Mas logo regressou ao seu caminho
deixando atrás um quieto passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.
Retrato do Pintor Reinaldo Fonseca
Mas tanta cor não cabe neste espaço
e arrebenta os limites que a circundam
as meninas de luto que aqui dormem
dentro do próprio sono se equilibram
Em tuas mão manchadas de ternura,
pousam brancos pássaros. por isso
falas atrás da sombra, e à luz mais forte
ruminas teu silêncio inquebrantável
Se o que possui o céu de puro e simples
algum dia cair sobre o teus ombros
imperturbável, pintarás um anjo
E nunca mais palavras além da sombra
que o que restar de ti será somente
o profundo silêncio inquebrantável
Soneto
O quanto perco em luz conquisto em sombra.
E é de recusa ao sol que me sustento.
Às estrelas, prefiro o que se esconde
nos crepúsculos graves dos conventos.
Humildemente envolvo-me na sombra
que veste, à noite, os cegos monumentos
isolados nas praças esquecidas
e vazios de luz e movimento.
Não sei se entendes: em teus olhos nasce
a noite côncava e profunda, enquanto
clara manhã revive em tua face.
Daí amar teus olhos mais que o corpo
com esse escuro e amargo desespero
com que haverei de amar depois de morto
Soneto A Fotografia
Libertar-se ligeiro da moldura
é o desejo da face, onde, o desgosto
emigrado do poço de água impura,
vai se aninhar na hora do sol posto.
Do lugar da prisão vem a tortura,
pois vê, do seu retângulo, teu rosto
e acorrentado na parede escura,
não pode engravidar-te para agosto.
Guarda ainda no olhar instante e viagem:
o instante em que foi presa pela imagem
e o roteiro que fez em mundo alheio.
E eterna inveja do seu sósia ausente
que, embora prisioneiro da corrente,
habita num subúrbio do teu seio.
Poema extraído do livro A Vertigem Lúcida
Soneto ao Recanto
Num recanto sem data e sem ternura,
E mais, sem pretensão a ser recanto,
Descobri em teu corpo o amargo canto
De que despenca para a desventura.
Há nos recantos sempre uma segura
Desvantagem de unir o desencanto
E é por isso talvez que não me espanto
De ali perder teu corpo e a ventura.
De viver entre atento e descuidado,
Mirando o pardo tédio que descansa
Nos subúrbios do amor desmantelado.
E só para ganhar mais espessura
Eu resolvi fazer esta lembrança
De um recanto sem data e sem ternura
Soneto da Busca
Eu quase te busquei entre os bambus
para o encontro campestre de janeiro
porém, arisca que és, logo supus
que há muito já compunhas fevereiro.
Dispersei-me na curva como a luz
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também, meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.
Avançada no tempo, te perdeste
sobre o verde capim, atrás do arbusto
que nasceu para esconder de mim teu busto.
Avançada no tempo, te esqueceste
como esqueço o caminho onde não vou
e a face que na rua não passou.
Sonesto das Definições
Não falarei de coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito,
à música das cores e do vento.
Multiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.
Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos, mas raros.
Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.
Soneto das Metamorfoses
Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.
Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.
E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.
Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.
Soneto Oco
Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.
De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.
Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.
Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.
Soneto Para Greta Garbo
Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já não sabe por que chora
Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio por que sabe
que o silêncio se oculta e se evapora
Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria
Mas vê nascer da sombra outra alegria
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via
Soneto Superficial Para Madame
Madame, em vosso claro olhar, e leve,
navegam coloridas geografias,
azul de litoral, paredes frias,
vontade de fazer o que não deve
ser feito, por ser coisa de outros dias
vivida num instante muito breve,
quando extraímos sal, areia e neve
de vossas mãos, singularmente esguias.
Que eternos somos, dúvida não tenho,
nem posso abandonar minha planície
sem saber se em vós há o que em vós venho
buscar. E embora em nós tudo nos chame,
jamais navegarei a superfície
de vosso claro e leve olhar, Madame.
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