Ricardo Reis – Resumo
Ricardo Reis é cultor dos clássicos gregos e latinos. Seu paganismo deriva da lição dos escritores da antiguidade, mas mostra uma grande influência de Alberto Caieiro no que diz respeito ao apego à natureza e a vida rústica. A sua poesia difere, e muito, da poesia de Caieiro, pois tem uma sintaxe latinizante (grandes inversões, enorme liberdade na ordem das palavras, regências desusadas) e um vocabulário menos usual e raro, e quase sempre rebuscado ao latim.
A sua poesia trata dos assuntos que dizem respeito à brevidade da vida, da importância e necessidade de aproveitar o presente, já que é a única realidade que temos perante a morte. Essa é uma característica Hedonista (ou seja, voltada ao prazer da vida humana) ou Epicurista (decorrente da filosofia de Epicuro), é associada a uma postura estoica, que propoe a austeridade da fruição dos prazeres, pois seremos tanto mais felizes quanto menores forem as nossas necessidades.
Notavelmente, Ricardo Reis tem o seu estilo literário baseado em Horácio (um poeta latino do século I a.C), e os seus poemas possuem um grande rigor na construção, sem rimas e de métricas perfeitas.
A Abelha
A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,
Não mudou desde Cecrops.
Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.
Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós – ó tempo, ó alma, ó vida, ó
morte! –
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.
A Cada Qual
A cada qual, como a ‘statura, é dada
A justiça: uns faz altos
O fado, outros felizes.
Nada é prêmio: sucede o que acontece.
Nada, Lídia, devemos
Ao fado, senão tê-lo.
A flor que és
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor!
Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perere
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
A Nada Imploram
A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
No abafo subterrâneo
Da úmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
Te ergue qual eras, hoje
Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
Não lembra. A ode grava,
Anônimo, um sorriso.
A palidez do dia
A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
Dos troncos de ramos Secos.
O frio leve treme.
Desterrado da pátria antiqüíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
Aqueço-me trêmulo
A outro sol do que este.
O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole
O que alumiava os passos lentos e graves
De Aristóteles falando.
Mas Epicuro melhor
Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Sereno e vendo a vida
À distância a que está.
Acima da verdade
Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,
Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.
Aguardo
Aguardo, equânime, o que não conheço –
Meu futuro e o de tudo.
No fim tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.
Anjos ou Deuses
Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,
A visão perturbada de que acima
De nos e compelindo-nos
Agem outras presenças.
Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem,
Os coage e obriga
E eles não nos percebem,
Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem
E nós não desejamos.
Antes de Nós
Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.
Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.
Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.
Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?
Ao Longe
Ao longe os montes têm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.
Hoje, Neera, não nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
Não esperamos nada
E ternos frio ao sol.
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece
Aos Deuses
Aos Deuses
Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
E o ser feliz oprime
Porque é um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
Têm prazer ou dores.
Aqui
Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ninguém nos tolher
O passo, nem vedarem
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres.
Bem sei, é flava, que inda
Nos tolhe a vida o corpo,
E não temos a mão
Onde temos a alma;
Bem sei que mesmo aqui
Se nos gasta esta carne
Que os deuses concederam
Ao estado antes de Averno.
Mas aqui não nos prendem
Mais coisas do que a vida,
Mãos alheias não tomam
Do nosso braço, ou passos
Humanos se atravessam
Pelo nosso caminho.
Não nos sentimos presos
Senão com pensarmos nisso,
Por isso não pensemos
E deixemo-nos crer
Na inteira liberdade
Que é a ilusão que agora
Nos torna iguais dos deuses.
Aqui, dizeis
Aqui, dizeis, na cova a que me abeiro,
Não ‘stá quem eu amei. Olhar nem riso
Se escondem nesta leira.
Ah, mas olhos e boca aqui se escondem!
Mãos apertei, não alma, e aqui jazem.
Homem, um corpo choro!
Aqui, neste misérrimo desterro
Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz em suma – quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.
As Rosas
As Rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
Atrás não torna
Atrás não torna, nem, como Orfeu, volve
Sua face, Saturno.
Sua severa fronte reconhece
Só o lugar do futuro.
Não temos mais decerto que o instante
Em que o pensamos certo.
Não o pensemos, pois, mas o façamos
Certo sem pensamento.
Azuis os Montes
Azuis os montes que estão longe param.
De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Débil como uma haste de papoila
Me suporta o momento. Nada quero.
Que pesa o escrúpulo do pensamento
Na balança da vida?
Como os campos, e vário, e como eles,
Exterior a mim, me entrego, filho
Ignorado do Caos e da Noite
Às férias em que existo.
Bocas Roxas
Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.
Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas
Breve o Dia
Breve o dia, breve o ano, breve tudo.
Não tarda nada sermos.
Isto, pensado, me de a mente absorve
Todos mais pensamentos.
O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,
Que, inda que mágoa, é vida
Cada Coisa
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colh&iaciacute;amos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
Cada dia sem gozo não foi teu
Cada dia sem gozo não foi teu
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.
Não pesa que amas, bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do sol ido na água
De um charco, se te é grato.
Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!
Cada Um
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
Cancioneiro
Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
‘Stou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
(10-8-1929)
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sôbre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gôzo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
(5-9-1933)
Momento imperceptível,
Que coisa fôste, que há
Já em mim qualquer coisa
Que nunca passará?
Sei que, passados anos,
O que isto é lembrarei,
Sem saber já o que era,
Que até já o não sei.
Mas, nada só que fôsse,
Fica dêle um ficar
Que será suave ainda
Quando eu o não lembrar.
(18-9-1933)
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
(19-9-1933)
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
(20-9-1933)
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente
Por a alma não ter raízes
De viver de ver sòmente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem
O resto é só terra e céu.
Tenho dó das estrêlas
Luzindo há tanto tempo,
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
(20-9-1933)
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente
Por a alma não ter raízes
De viver de ver sòmente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem
O resto é só terra e céu.
Tenho dó das estrêlas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas
De tôdas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?
De um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?
Disperso… E a hora como um leque fecha-se…
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar…
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se…
E, abrindo as asas sôbre Renovar,
A êrma sombra do vôo começado
Pestaneja no campo abandonado…
O Menino da Sua Mãe
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
– Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome o mantivera:
“O menino de sua mãe”.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Êle é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece,
O menino da sua mãe.
Como
Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.
Coroai-me
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade,
De rosas —
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
Cristo Não a Ti, Cristo, odeio ou menosprezo
Cristo Não a Ti, Cristo, odeio ou menosprezo
Que aos outros deuses que te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.
No Panteão faltavas. Pois que vieste
No Panteão o teu lugar ocupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.
Teu vulto triste e comovido sobre
A ‘steril dor da humanidade antiga
Sim, nova pulcritude
Trouxe ao antigo Panteão incerto.
Mas que os teus crentes te não ergam sobre
outros, antigos deuses que dataram
Por filhos de Saturno
De mais perto da origem igual das coisas.
E melhores memórias recolheram
Do primitivo caos e da Noite
Onde os deuses não são
Mais que as estrelas súbditas do Fado.
Tu não és mais que um deus a mais no eterno
Não a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.
Panteão que preside
À nossa vida incerta.
Nem maior nem menor que os novos deuses,
Tua sombria forma dolorida
Trouxe algo que faltava
Ao número dos divos.
Por isso reina a par de outros no Olimpo,
Ou pela triste terra se quiseres
Vai enxugar o pranto
Dos humanos que sofrem.
Não venham, porém, ‘stultos teus cultores
Em teu nome vedar o eterno culto
Das presenças maiores
Ou parceiras da tua.
A esses, sim, do âmago eu odeio
Do crente peito, e a esses eu não sigo,
Supersticiosos leigos
Na ciência dos deuses.
Ah, aumentai, não combatendo nunca.
Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando
Cada vez maior força
P’lo número maior.
Basta os males que o Fado as Parcas fez
Por seu intuito natural fazerem.
Nós homens nos façamos
Unidos pelos deuses.
Cuidas, índio
Cuidas, ínvio, que cumpres, apertando
Teus infecundos, trabalhosos dias
Em feixes de hirta lenha,
Sem ilusão a vida.
A tua lenha é só peso que levas
Para onde não tens fogo que te aqueça,
Nem sofrem peso aos ombros
As sombras que seremos.
Para folgar não folgas; e, se leoas,
Antes legues o exemplo, que riquezas,
De como a vida basta
Curta, nem também dura.
Pouco usamos do pouco que mal temos.
A obra cansa, o ouro não é nosso.
De nós a mesma fama
Ri-se, que a não veremos
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes, de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal —
O barco escuro no soturno rio,
E os novos abraços da frieza stígia
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.
Da Lâmpada
Da lâmpada noturna
A chama estremece
E o quarto alto ondeia.
Os deuses concedem
Aos seus calmos crentes
Que nunca lhes trema
A chama da vida
Perturbando o aspecto
Do que está em roda,
Mas firme e esguiada
Como preciosa
E antiga pedra,
Guarde a sua calma
Beleza contínua.
Da Nossa Semelhança
Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.
Altivamente donos de nós-mesmos,
Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para, esquecer o estio.
Não de outra forma mais apoquentada
Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.
Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos.
De Apolo
De Apolo o carro rodou pra fora
Da vista. A poeira que levantara
Ficou enchendo de leve névoa
o horizonte;
A flauta calma de Pã, descendo
Seu tom agudo no ar pausado,
Deu mais tristezas ao moribundo
Dia suave.
Cálida e loura, núbil e triste,
Tu, mondadeira dos prados quentes,
Ficas ouvindo, com os teus passos
Mais arrastados,
A flauta antiga do deus durando
Com o ar que cresce pra vento leve,
E sei que pensas na deusa clara
Nada dos mares,
E que vão ondas lá muito adentro
Do que o teu seio sente cansado
Enquanto a flauta sorrindo chora
Palidamente.
De Novo Traz
De novo traz as aparentes novas
Flores o verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais dele o infecundo abismo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
À clara luz superna
A presença vivida.
Não mais; e a prole a que, pensando, dera
A vida da razão, em vão o chama,
Que as nove chaves fecham,
Da Estige irreversível.
O que foi como um deus entre os que cantam,
O que do Olimpo as vozes, que chamavam,
‘Scutando ouviu, e, ouvindo,
Entendeu, hoje é nada.
Tecei embora as, que teceis, Grinaldas.
Quem coroais, não coroando a ele?
Votivas as deponde,
Fúnebres sem ter culto.
Fique, porém, livre da leiva e do Orco,
A fama; e tu, que Ulisses erigira,
Tu, em teus sete montes,
Orgulha-te materna,
Igual, desde ele às sete que contendem
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
Ou heptápila Tebas
Ogígia mãe de Píndaro.
Deixemos, Lídia
Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.
Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.
Vê como Ceres é a mesma sempre
E como os louros campos intumesce
E os cala prás avenas
Dos agrados de Pã.
Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
As ninfas não sossegam
Na sua dança eterna.
E como as heniadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
E atrasam o deus Pã.
Na atenção à sua flauta.
Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
Quer sob o ouro de Apolo
Ou a prata de Diana.
Quer troe Júpiter nos céus toldados.
Quer apedreje com as suas ondas
Netuno as planas praias
E os erguidos rochedos.
Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.
Por isso as esqueçamos
Como se não houvessem.
Colhendo flores ou ouvindo as fontes
A vida passa como se temêssemos.
Não nos vale pensarmos
No futuro sabido
Que aos nossos olhos tirará Apolo
E nos porá longe de Ceres e onde
Nenhum Pã cace à flauta
Nenhuma branca ninfa.
Só as horas serenas reservando
Por nossas, companheiros na malícia
De ir imitando os deuses
Até sentir-lhe a calma.
Venha depois com as suas cãs caídas
A velhice, que os deuses concederam
Que esta hora por ser sua
Não sofra de Saturno
Mas seja o templo onde sejamos deuses
Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios
Nem precisam de crentes
Os que de si o foram.
Dia Após Dia
Dia após dia a mesma vida é a mesma.
O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
Quer o ‘speremos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
Forma alheio e invencível
Do que Quero
Do que quero renego, se o querê-lo
Me pesa na vontade. Nada que haja
Vale que lhe concedamos
Uma atenção que doa.
Meu balde exponho à chuva, por ter água.
Minha vontade, assim, ao mundo exponho,
Recebo o que me é dado,
E o que falta não quero.
O que me é dado quero
Depois de dado, grato.
Nem quero mais que o dado
Ou que o tido desejo.
Do Ritual do Grau de Mestre do átrio na Ordem Templária de Portugal
Conta a Lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Êle tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Êle dela é ignorado.
Ela para êle é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada
Êle buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, êle vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que êle mesmo era
A Princesa que dormia.
Domina ou Cala
Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido
É tão suave
É tão suave a fuga deste dia,
Lídia, que não parece, que vivemos.
Sem dúvida que os deuses
Nos são gratos esta hora,
Em paga nobre desta fé que temos
Na exilada verdade dos seus corpos
Nos dão o alto prêmio
De nos deixarem ser
Convivas lúcidos da sua calma,
Herdeiros um momento do seu jeito
De viver toda a vida
Dentro dum só momento,
Dum só momento, Lídia, em que afastados
Das terrenas angústias recebemos
Olímpicas delícias
Dentro das nossas almas.
E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras
Como quem guarda a c’roa da vitória
Estes fanados louros de um só dia
Guardemos para termos,
No futuro enrugado,
Perene à nossa vista a certa prova
De que um momento os deuses nos amaram
E nos deram uma hora
Não nossa, mas do Olimpo
Eros e Psique
…E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que nos foram dadas
no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que
opostas, a mesma
verdade.
Estás só. Ninguém o sabe
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada ‘speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
Este seu escasso campo
Este, seu ‘scasso campo ora lavrando,
Ora solene, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, goza incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Per que concílios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as ervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica,
Filhos, diversa e sua
Feliz Aquele
Feliz aquele a quem a vida grata
Concedeu que dos deuses se lembrasse
E visse como eles
Estas terrenas coisas onde mora
Um reflexo mortal da imortal vida.
Feliz, que quando a hora tributária
Transpor seu átrio por que a Parca corte
O fio fiado até ao fim,
Gozar poderá o alto prêmio
De errar no Averno grato abrigo
Da convivência.
Mas aquele que quer Cristo antepor
Aos mais antigos Deuses que no Olimpo
Seguiram a Saturno –
O seu blasfemo ser abandonado
Na fria expiação – até que os Deuses
De quem se esqueceu deles se recordem –
Erra, sombra inquieta, incertamente,
Nem a viúva lhe põe na boca
O óbolo a Caronte grato,
E sobre o seu corpo insepulto
Não deita terra o viandante
Felizes
Felizes, cujos corpos sob as árvores
Jazem na úmida terra,
Que nunca mais sofrem o sol, ou sabem
Das doenças da lua.
Verta Eolo a caverna inteira sobre
O orbe esfarrapado,
Lance Netuno, em cheias mãos, ao alto
As ondas estoirando.
Tudo lhe é nada, e o próprio pegureiro
Que passa, finda a tarde,
Sob a árvore onde jaz quem foi a sombra
Imperfeita de um deus,
Não sabe que os seus passos vão cobrindo
O que podia ser,
Se a vida fosse sempre vida, a glória
De uma beleza eterna
Flores
Flores que colho, ou deixo,
Vosso destino é o mesmo.
Via que sigo, chegas
Não sei aonde eu chego.
Nada somos que valha,
Somo-lo mais que em vão
Frutos
Frutos, dão-os as árvores que vivem,
Não a iludida mente, que só se orna
Das flores lívidas
Do íntimo abismo.
Quantos reinos nos seres e nas cousas
Te não talhaste imaginário! Quantos,
Com a charrua,
Sonhos, cidades!
Ah, não consegues contra o adverso muito
Criar mais que propósitos frustrados!
Abdica e sê
Rei de ti mesmo.
Gozo Sonhado
Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Nós o que nos supomos nos fazemos,
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois, meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me consumo.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso,
O Fado cumpre-se. Porém eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que de meu me é dado.
Inglória
Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.
Quantos, se pensam, não se reconhecem
Os que se conheceram!
A cada hora se muda não só a hora
Mas o que se crê nela, e a vida passa
Entre viver e ser.
Já Sobre a Fronte
Já sobre a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
Meus olhos brilham menos.
Já não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
Traíras-me comigo.
Lenta, Descansa
Lenta, descansa a onda que a maré deixa.
Pesada cede. Tudo é sossegado.
Só o que é de homem se ouve.
Cresce a vinda da lua.
Nesta hora, Lídia ou Neera Ou Cloe,
Qualquer de vós me é estranha, que me inclino
Para o segredo dito
Pelo silêncio incerto.
Tomo nas mãos, como caveira, ou chave
De supérfluo sepulcro, o meu destino,
E ignaro o aborreço
Sem coração que o sinta.
Lídia
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que quer que estejamos.
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos,
Tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso
Melhor Destino
Melhor destino que o de conhecer-se
Não frui quem mente frui. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
Se não houver em mim poder que vença
As Parcas três e as moles do futuro,
Já me dêem os deuses o poder de sabê-lo;
E a beleza, incriável por meu sestro,
Eu goze externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte seca.
Meu Gesto
Meu gesto que destrói
A mole das formigas,
Tomá-lo-ão elas por de um ser divino;
Mas eu não sou divino para mim.
Assim talvez os deuses
Para si o não sejam,
E só de serem do que nós maiores
Tirem o serem deuses para nós.
Seja qual for o certo,
Mesmo para com esses
Que cremos serem deuses, não sejamos
Inteiros numa fé talvez sem causa.
Nada Fica
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Não a Ti, Cristo, odeio ou te não quero
Não a Ti, Cristo, odeio ou te não quero.
Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles, mas mais novo apenas.
Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço,
Que te querem acima dos outros teus iguais deuses.
Quero-te onde tu stás, nem mais alto
Nem mais baixo que eles, tu apenas.
Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia
Como tu, um a mais no Panteão e no culto,
Nada mais, nem mais alto nem mais puro
Porque para tudo havia deuses, menos tu.
Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida
É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,
E só sendo múltiplos como eles
‘Staremos com a verdade e sós.
Não Canto
Não canto a noite porque no meu canto
O sol que canto acabara em noite.
Não ignoro o que esqueço.
Canto por esquecê-lo.
Pudesse eu suspender, inda que em sonho,
O Apolíneo curso, e conhecer-me,
Inda que louco, gêmeo
De uma hora imperecível!
Não Consentem
Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha conosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, às luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco.
Não queiras
Não queiras, Lídia, edificar no spaço
Que figuras futuro, ou prometer-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não ‘sperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ela de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?
Não quero recordar nem conhecer-me
Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.
Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.
Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.
Não quero, Cloe, teu amor, que oprime
Não quero, Cloe, teu amor, que oprime
Porque me exige amor. Quero ser livre.
A ‘sperança é um dever do sentimento.
Não sei de quem recordo meu passado
Não sei de quem recordo meu passado
Que outrem fui quando o fui, nem me conheço
Como sentindo com minha alma aquela
Alma que a sentir lembro.
De dia a outro nos desamparamos.
Nada de verdadeiro a nós nos une
Somos quem somos, e quem fomos foi
Coisa vista por dentro.
Não Sei se é Amor que Tens
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?
Não só quem nos odeia ou nos inveja
Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses
Não Só Vinho
Não só vinho, mas nele o olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a dita
É ignara. Quem, lembrando
Ou prevendo, sorrira?
Dos brutos, não a vida, senão a alma,
Consigamos, pensando; recolhidos
No impalpável destino
Que não ‘spera nem lembra.
Com mão mortal elevo à mortal boca
Em frágil taça o passageiro vinho,
Baços os olhos feitos
Para deixar de ver
Não Tenhas
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio
Negue-me
Negue-me tudo a sorte, menos vê-la,
Que eu, estóico sem dureza,
Na sentença gravada do Destino
Quero gozar as letras
Nem da Erva
Nem da serva humilde se o Destino esquece.
Saiba a lei o que vive.
De sua natureza murcham rosas
E prazeres se acabam.
Quem nos conhece, amigo, tais quais fomos?
Nem nós os conhecemos.
Ninguém a Outro Ama
Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas
Ninguém, na vasta selva virgem
Ninguém, na vasta selva virgem
Do mundo inumerável, finalmente
Vê o Deus que conhece.
Só o que a brisa traz se ouve na brisa
O que pensamos, seja amor ou deuses,
Passa, porque passamos
No Breve Número
No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
Apresso, e breve acabo.
Dado em declive deixo, e invito apresso
O moribundo passo
No Ciclo Eterno
No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me infiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.
No Magno Dia
No magno dia até os sons são claros.
Pelo repouso do amplo campo tardam.
Múrmura, a brisa cala.
Quisera, como os sons, viver das coisas
Mas não ser delas, conseqüência alada
Em que o real vai longe
No mundo, Só comigo, me deixaram
No mundo, Só comigo, me deixaram
Os deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim, o trigo baixa ao vento, e, quando
O vento cessa, ergue-se
Nos Altos Ramos
Nos altos ramos de árvores frondosas
O vento faz um rumor frio e alto,
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito. Assim no mundo, acima do que sinto,
Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido — nem a alma
Com que penso sozinho
Nunca
Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria.
Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és.
Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto.
Sê teu filho
O Deus Pã
O Deus Pã não morreu,
Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres
Cedo ou tarde vereis
por lá aparecer
O deus Pã, o imortal.
Não matou outros deuses
O triste deus cristão.
Cristo é um deus a mais,
Talvez um que faltava.
Pã continua a ciar
Os sons da sua flauta
Aos ouvidos de Ceres
Recumbente nos campos.
Os deuses são os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por nós,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar o dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propósito casual.
O Mar Jaz
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Eolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Netuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?
O que Sentimos
O que sentimos, não o que é sentido,
É o que temos.
Claro, o inverno triste
Como à sorte o acolhamos.
Haja inverno na terra, não na mente.
E, amor a amor, ou livro a livro, amemos
Nossa caveira breve.
O Rastro Breve
O rastro breve que das ervas moles
Ergue o pé findo, o eco que oco coa,
A sombra que se adumbra,
O branco que a nau larga —
Nem maior nem melhor deixa a alma às almas,
O ido aos indos.A lembrança esquece,
Mortos, inda morremos.
Lídia, somos só nossos
O Ritmo Antigo
O ritmo antigo que há em pés descalços,
Esse ritmo das ninfas repetido,
Quando sob o arvoredo
Batem o som da dança,
Vós na alva praia relembrai, fazendo,
Que ‘scura a ‘spuma deixa; vós, infantes,
Que inda não tendes cura
De ter cura, responde
Ruidosa a roda, enquanto arqueia Apolo
Como um ramo alto, a curva azul que doura,
E a perene maré
Flui, enchente ou vazante.
O Sono é Bom
O sono é bom pois despertamos dele
Para saber que é bom. Se a morte é sono
Despertaremos dela;
Se não, e não é sono,
Conquanto em nós é nosso a refusemos
Enquanto em nossos corpos condenados
Dura, do carcereiro,
A licença indecisa.
Lídia, a vida mais vil antes que a morte,
Que desconheço, quero; e as flores colho
Que te entrego, votivas
De um pequeno destino
Olho
Olho os campos, Neera,
Campos, campos, e sofro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira ante-sinto
Que serei não sentindo,
Ou só quanto o que ignoro
Me incógnito ministre.
E menos ao instante
Choro, que a mim futuro,
Súbdito ausente e nulo
Do universal destino.
Os Deuses e os Messias
Os deuses e os Messias que são deuses
Passam, e os sonhos vãos que são Messias.
A terra muda dura. Nem deuses, nem Messias, nem idéias
Que trazem rosas. Minhas são se as tenho.
Se as tenho, que mais quero?
Os Deuses
Os deuses desterrados.
Os irmãos de Saturno,
Às vezes, no crepúsculo
Vêm espreitar a vida.
Vêm então ter conosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
É a presença deles,
Deuses que o destroná-los
Tornou espirituais,
De matéria vencida,
Longínqua e inativa.
Vêm, inúteis forças,
Solicitar em nós
As dores e os cansaços,
Que nos tiram da mão,
Como a um bêbedo mole,
A taça da alegria.
Vêm fazer-nos crer,
Despeitadas ruínas
De primitivas forças,
Que o mundo é mais extenso
Que o que se vê e palpa,
Para que ofendamos
A Júpiter e a Apolo.
Assim até à beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepúsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.
E o poente tem cores
Da dor dom deus longínquo,
E ouve-se soluçar
Para além das esferas…
Assim choram os deuses
Ouvi contar que outrora
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na
Cidade E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas…
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif’rentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece…
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem qu’rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
Para os Deuses
Para os deuses as coisas são mais coisas.
Não mais longe eles vêem, mas mais claro
Na certa Natureza
E a contornada vida…
Não no vago que mal vêem
Orla misteriosamente os seres,
Mas nos detalhes claros
Estão seus olhos.
A Natureza é só uma superfície.
Na sua superfície ela é profunda
E tudo contém muito
Se os olhos bem olharem.
Aprende, pois, tu, das cristãs angústias,
Ó traidor à multíplice presença
Dos deuses, a não teres
Véus nos olhos nem na alma
Para ser grande, sê inteiro: nada
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
Pesa o Decreto
Pesa o decreto atroz do fim certeiro.
Pesa a sentença igual do juiz ignoto
Em cada cerviz néscia. É entrudo e riem.
Felizes, porque neles pensa e sente
A vida, que não eles!
Se a ciência é vida, sábio é só o néscio.
Quão pouca diferença a mente interna
Do homem da dos brutos! Sus! Deixai
Brincar os moribundos!
De rosas, inda que de falsas teçam
Capelas veras. Breve e vão é o tempo
Que lhes é dado, e por misericórdia
Breve nem vão sentido.
Pois que nada que dure, ou que, durando
Pois que nada que dure, ou que, durando,
Valha, neste confuso mundo obramos,
E o mesmo útil para nós perdemos
Conosco, cedo, cedo.
O prazer do momento anteponhamos
À absurda cura do futuro, cuja
Certeza única é o mal presente
Com que o seu bem compramos.
Amanhã não existe. Meu somente
É o momento, eu só quem existe
Neste instante, que pode o derradeiro
Ser de quem finjo ser?
Ponho na Altiva
Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E as suas leis, o verso;
Que, quanto é alto e régio o pensamento,
Súbita a frase o busca
E o ‘scravo ritmo o serve
Prazer
Prazer, Mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Corno um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.
Prefiro Rosas
Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.
Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,
Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?
Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva
Quando, Lídia
Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes
Quanta Tristeza
Quanta tristeza e amargura afoga
Em confusão a ‘streita vida!
Quanto Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo!
Feliz ou o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anônimo, e entra
Na morte como em casa;
Ou o sábio que, perdido
Na ciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que ergue
Braços que se desfazem
A um céu inexistente
Quanto faças, supremamente faze
Quanto faças, supremamente faze.
Mais vale, se a memória é quanto temos,
Lembrar muito que pouco.
E se o muito no pouco te é possível,
Mais ampla liberdade de lembrança
Te tornará teu dono
Quão Breve
Quão breve tempo é a mais longa vida
E a juventude nela! Ah!, Cloe, Cloe,
Se não amo nem bebo,
Nem sem querer não penso,
Pesa-me a lei inimplorável, dói-me
A hora invita, o tempo que não cessa,
E aos ouvidos me sobe
Dos juncos o ruído
Na oculta margem onde os lírios frios
Da ínfera leiva crescem, e a corrente
Não sabe onde é o dia,
Sussurro gemebundo
Quem diz ao dia, dura! e à treva, acaba!
Quem diz ao dia, dura! e à treva, acaba!
E a si não diz, não digas!
Sentinelas absurdas, vigilamos,
Ínscios dos contendentes.
Uns sob o frio, outros no ar brando, guardam
O posto e a insciência sua.
Quer Pouco
Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos
Quero dos Deuses
Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre — sem dita nem desdita,
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.
A quem deuses concedem
Nada, tem liberdade.
Quero Ignorado
Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.
Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida. Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada ‘spera
Tudo que vem é grato
Rasteja Mole
Rasteja mole pelos campos ermos
O vento sossegado.
Mais parece tremer de um tremor próprio,
Que do vento, o que é erva.
E se as nuvens no céu, brancas e altas,
Se movem, mais parecem
Que gira a terra rápida e elas passam,
Por muito altas, lentas.
Aqui neste sossego dilatado
Me esquecerei de tudo,
Nem hóspede será do que conheço
A vida que deslembro.
Assim meus dias seu decurso falso
Gozarão verdadeiro
Sábio
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.
Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.
Saudoso
Saudoso já deste verão que veio,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei de errar, sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra.
Se a Cada Coisa
Se a cada coisa que há um deus compete,
Por que não haverá de mim um deus?
Por que o não serei eu?
É em mim que o deus anima
Porque eu sinto.
O mundo externo claramente vejo
Coisas, homens, sem alma
Se Recordo
Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.
Segue o teu destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Seguro Assento
Seguro Assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.
Sereno Aguarda
Sereno aguarda o fim que pouco tarda.
Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.
Quanto pensas emprega
Em não muito pensares.
Ao nauta o mar obscuro é a rota clara.
Tu, na confusa solidão da vida,
A ti mesmo te elege
(Não sabes de outro) o porto
Severo Narro
Severo narro.
Quanto sinto, penso.
Palavras são idéias.
Múrmuro, o rio passa, e o que não passa,
Que é nosso, não do rio.
Assim quisesse o verso: meu e alheio
E por mim mesmo lido.
Sim
Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser
Só Esta Liberdade
Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.
Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possuído
Convencimento antigo
De que é divina e livre a sua vida.
Nós, imitando os deuses,
Tão pouco livres como eles no Olimpo,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses saberão agradecer-nos
O sermos tão como eles.
Só o Ter
Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.
De todo o esforço seguremos quedas
As mãos, brincando, pra que nos não tome
Do pulso, e nos arraste.
E vivamos assim,
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,
Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas carícias
Dos instantes volúveis.
Pouco tão pouco pesará nos braços
Com que, exilados das supernas luzes,
‘Scolherrnos do que fomos
O melhor pra lembrar
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
vultos solenes de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal
Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços do horror estígio,
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.
Sob a leve tutela
Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.
Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.
Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade
Sofro, Lídia
Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.
Solene Passa
Solene passa sobre a fértil terra
A branca, inútil nuvem fugidia,
Que um negro instante de entre os campos ergue
Um sopro arrefecido.
Tal me alta na alma a lenta idéia voa
E me enegrece a mente, mas já torno,
Como a si mesmo o mesmo campo, ao dia
Da imperfeita vida.
Súbdito Inútil
Súbdito inútil de astros dominantes,
Passageiros como eu, vivo uma vida
Que não quero nem amo,
Minha porque sou ela,
No ergástulo de ser quem sou, contudo,
De em mim pensar me livro, olhando no alto
Os astros que dominam
Submissos de os ver brilhar.
Vastidão vã que finge de infinito
(Como se o infinito se pudesse ver!)
Dá-me ela a liberdade?
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada
Tão Cedo
Tão cedo tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada
Temo, Lídia
Temo, Lídia, o destino. Nada é certo.
Em qualquer hora pode suceder-nos
O que nos tudo mude.
Fora do conhecido é estranho o passo
Que próprio damos. Graves numes guardam
As lindas do que é uso.
Não somos deuses; cegos, receemos,
E a parca dada vida anteponhamos
À novidade, abismo
Tênue
Tênue, como se de Éolo a esquecessem,
A brisa da manhã titila o campo,
E há começo do sol.
Não desejemos, Lídia, nesta hora
Mais sol do que ela, nem mais alta brisa
Que a que é pequena e existe
Tirem-me os Deuses
Tirem-me os deuses
Em seu arbítrio
Superior e urdido às escondidas
O Amor, glória e riqueza.
Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A consciência lúcida e solene
Das coisas e dos seres.
Pouco me importa
Amor ou glória,
A riqueza é um metal, a glória é um eco
E o amor uma sombra.
Mas a concisa
Atenção dada
Às formas e às maneiras dos objetos
Tem abrigo seguro.
Seus fundamentos
São todo o mundo,
Seu amor é o plácido Universo,
Sua riqueza a vida.
A sua glória
É a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objetos.
O resto passa,
E teme a morte.
Só nada teme ou sofre a visão clara
E inútil do Universo.
Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver.
Tomamos a Vila Depois de um Internso Borbardeamento
A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda suaUm comboio que ignora.
A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
– Dos que bóiam nas banheiras –
À beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro…
E o da criança loura?
Tuas, Não Minhas
Tuas, não minhas, teço estas grinaldas,
Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu não vejo.
Se não pesar na vida melhor gozo
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos uníssonos à sorte
Que houver, até que chegue
A hora do barqueiro.
Tudo que Cessa
Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa
Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
Fenece, e vai com ele
Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.
Tudo
Tudo, desde ermos astros afastados
A nós, nos dá o mundo
E a tudo, alheios, nos acrescentamos,
Pensando e interpretando.
A próxima erva a que não chega basta,
O que há é o melhor.
Uma Após Uma
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva ‘spuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o ‘spaço
Do ar entre as nuvens ‘scassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconseqüente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
Uns
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
o dia, porque és ele
Vem sentar-te
comigo, Lídia, à beira do rio
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quise’ssemos, trocar beijos e abrac,os e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o o’bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à
beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Vive sem Horas
Vive sem horas. Quanto mede pesa,
E quanto pensas mede.
Num fluido incerto nexo, como o rio
Cujas ondas são ele,
Assim teus dias vê, e se te vires
Passar, como a outrem, cala
Vivem em nós inúmeros
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu ‘screvo
Vós que, Crentes
Vós que, crentes em Cristos e Marias,
Turvais da minha fonte as claras águas
Só para me dizerdes
Que há águas de outra espécie
Banhando prados com melhores horas
Dessas outras regiões pra que falar-me
Se estas águas e prados
São de aqui e me agradam?
Esta realidade os deuses deram
E para bem real a deram externa.
Que serão os meus sonhos
Mais que a obra dos deuses?
Deixai-me a Realidade do momento
E os meus deuses tranqüilos e imediatos
Que não moram no Vago
Mas nos campos e rios.
Deixai-me a vida ir-se pagãmente
Acompanhada pelas avenas tênues
Com que os juncos das margens
Se confessam de Pã.
Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde é meu culto
E a visível presença
os meus próximos deuses.
Inúteis procos do melhor que a vida,
Deixai a vida aos crentes mais antigos
Que a Cristo e a sua cruz
E Maria chorando.
Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e Vênus, e Urano antigo
E os trovões, com o interesse
De irem da mão de Jove
Vossa Formosa
Vossa formosa juventude Ieda,
Vossa felicidade pensativa,
Vosso modo de olhar a quem vos olha,
Vosso não conhecer-vos
Tudo quanto vós sois, que vos semelha
À vida universal que vos esquece
Dá carinho de amor a quem vos ama
Por serdes não lembrando
Quanta igual mocidade a eterna praia
De Cronos, pai injusto da justiça,
Ondas, quebrou, deixando à só memória
Um branco som de ‘spuma.
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