Poesias – Charles Baudelaire

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O
jogo

O amor da mentira
À moça de servir…
Sonho parisiense
O sol
O cisne
As velhinhas
O crepúsculo da tarde
Dança macabra
Sempre hei de recordar…
Brumas e chuvas
O crepúsculo da manhã
O vinho do assassino
O vinho dos trapeiros
O vinho do solitário
A destruição
Mulheres malditas
Beatriz
Uma mártir
As duas boas irmãs
Alegoria
Uma viagem citara
A negação de são pedro
Abel e caim
A morte dos amantes
A morte dos artistas
O sonho de um curioso
O fim da jornada
A viagem
Epígrafe (um livro condenado)
Madrigal triste
O rebelde
Recolhimento
As queixas de um ícaro
O exame da meia-noite
O admoestador
Bem longe daqui
O abismo
A tampa
O cachimbo da paz
A lua ofendida
A prece de um pagão
O crepúsculo romântico
Mulheres malditas (delfina e hipólita)
A que está sempre alegre
Lesbos – poemas condenados
O letes
As jóias
O repuxo

 

A alma do vinho

A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
“Homem, ó desherdado amigo, eu te compús,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!

Bem sei quanto custa, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,

Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À guela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.

Não ouves retinir a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febrís?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:

Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo que os tendões enrija ao lutador.

Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!”

A beleza

De um sonho escultural tenho a beleza rara,
E o meu seio, — jardim onde cultivo a dor,
Faz despertar no Poeta um vivo e intenso amor,
Com a eterna mudez do marmor’ de Carrara

Sou esfinge subtil no Azul a dominar,
Da brancura do cisne e com a neve fria;
Detesto o movimento, e estremeço a harmonia;
Nunca soube o que é rir, nem sei o que é chorar.

O Poeta, se me vê nas atitudes fátuas
Que pareço copiar das mais nobres estátuas,
Consome noite e dia em estudos ingentes..

Tenho, p’ra fascinar o meu dócil amante,
Espelhos de cristal, que tornaram deslumbrante
A própria imperfeição: — os meus olhos ardentes!

A cabeleira

Ó tosão que até a nuca encrespa-se em cachoeira!
Ó cachos! Ó perfume que o ócio faz intenso!
Êxtase! Para encher à noite a alcova inteira
Das lembranças que dormem nessa cabeleira,
Quero agitá-la no ar como se agita um lenço!

Uma Ásia voluptuosa e uma África escaldante,
Todo um mundo longínquo, ausente, quase morto,
Revive em teus recessos, bosque trescalante!
Se espíritos vagueiam na harmonia errante,
O meu, amor! Em teu perfume flui absorto.

Adiante irei, lá, onde a vida a latejar,
Se abisma longamente sob a luz dos astros;
Revoltas tranças, sede a vaga a me arrastar!
Dentro de ti guardas um sonho, negro mar,
De velas, remadores, flâmulas e mastros:

Um porto em febre onde minha alma há de beber
A grandes goles o perfume, o som e a cor;
Lá, onde as naus, contra as ondas de ouro a se bater,
Abrem seus vastos braços para receber
A glória de um céu puro e de infinito ardor.

Mergulharei a fonte bêbada e amorosa
Nesse sombrio oceano onde o outro está encerrado;
E minha alma sutil que sobre as ondas goza
Saberá voz achar, ó concha preguiçosa!
Infinito balouço do ócio embalsamado!

Coma azul, pavilhão de trevas distendidas,
Do céu profundo dai-me a esférica amplidão;
Na trama espessa dessas mechas retorcidas
Embriago-me febril de essências confundidas
Talvez de óleo de coco, almíscar e alcatrão.

Por muito tempo! Sempre! Em tua crina ondeante
Cultivarei a pérola, a safira e o jade,
Para que meu desejo em teus ouvidos cante!
Pois não és o oásis onde sonho, o odre abundante
Onde sedento bebo o vinho da saudade?

A fonte de sangue

Sinto por vezes que meu sangue corre em fluxos,
Assim qual uma fonte em rítmicos soluços.
Eu bem que o escuto numa súplica perdida,
Mas me tateio em vão em busca da ferida.

Pela cidade vai, como entre espessos buxos,
As lajes transformando em ilhas e repuxos,
Matando a sede em cada boca ressequida
E a paisagem deixando em púrpura tingida.

Muitas vezes pedi a um vinho caviloso
Aplacar por um dia o horror que me domina;
O vinho aguça o ouvido e os olhos ilumina!

Busquei então no amor um sono descuidoso;
Mas o amor para mim é um leito de suplício
Que a sede há de saciar a essas nifas do vício!

A giganta

No tempo em que a Natura, augusta, fecundanta,
Seres descomunais dava {a terra mesquinha,
Eu quisera viver junto d’uma giganta,
Como um gatinho manso aos pés d’uma rainha!

Gosta de assistir-lhe ao desenvolvimento
Do corpo e da razão, aos seus jogos terríveis;
E ver se no seu peito havia o sentimento
Que faz nublar de pranto as pupilas sensíveis

Percorrer-lhe a vontade as formas gloriosas,
Escalar-lhe, febril, as colunas grandiosas;
E às vezes, no verão, quando no ardente solo

Eu visse deitar, numa quebreira estranha estranha,
Dormir serenamente à sombra do seu colo,
Como um pequeno burgo ao sopé da montanha!

A morte dos probres

A morte é que consola e que nos faz viver
É o alvo desta vida e a única esperança
Que, como um elixir, nos dá fé e confiança,
E forças para andar até o anoitecer.

Em meio à tempestade e à neve a se desfazer,
E a luz que em nosso lívido horizonte avança,
E a pusada que um livro diz como se alcança,
E onde se pode descansar e adormecer.

E um arcanjo que tem nos dedos imantados
O sono eterno e o dom dos sonhos extasiados,
E arruma o leito para os nus e os desvalidos;

E dos deuses a glória e o místico celeiro
E a sacola do pobre e o seu lar verdadeiro
O pórtico que se abre aos Céus desconhecidos!

A musa enferma

A morte é que consola e que nos faz viver
É o alvo desta vida e a única esperança
Que, como um elixir, nos dá fé e confiança,
E forças para andar até o anoitecer.

Em meio à tempestade e à neve a se desfazer,
E a luz que em nosso lívido horizonte avança,
E a pusada que um livro diz como se alcança,
E onde se pode descansar e adormecer.

E um arcanjo que tem nos dedos imantados
O sono eterno e o dom dos sonhos extasiados,
E arruma o leito para os nus e os desvalidos;

E dos deuses a glória e o místico celeiro
E a sacola do pobre e o seu lar verdadeiro
O pórtico que se abre aos Céus desconhecidos!

A musa venal

Ó musa de minha alma, amante dos palácios,
Terás, quando janeiro desatar seus ventos,
No tédio negro dos crepúsculos nevoentos,
Uma brasa que esquente os teus dois pés violáceos?

Aquecerás teus níveos ombros sonolentos
Na luz noturna que os postigos deixam coar?
Sem um níquel na bolsa e seco o paladar,
Colherás o ouro dos cerúleos firmamentos?

Tens que, para ganhar o pão de cada dia,
Esse turíbulo agitar nas sacristia,
Entoar esse Te Deum que nada têm de novo,

Ou, bufão em jejum, exibir teus encantos
E teu riso molhado de invisíveis prantos
Para desopilar o fígado do povo.

A musa doente

O que tens essa manhã, ó musa de ar magoado?
Teus olhos estão cheios de visões noturnas,
E vejo que em teu rosto afloram lado a lado
A loucura e a aflição, frias e taciturnas.

Teria o duende róseo ou o súcubo esverdeado
Te ungido com o medo e o mel de suas urnas?
O sonho mau, de um punho déspota e obcecado,
Nas águas te afogou de um mítico Minturnas ?

Quisera eu que, vertendo o odor da exuberância,
O pensamento fosse em ti uma constância
E que o sangue cristão te fluísse na cadência

Das velhas sílabas de uníssona freqüência,
Quando reinavam Febo, o criador das cantigas,
E o grande Pã, senhor do campo e das espigas.

A serpente que dança

Que eu te amo ver, lânguida amante,
Do corpo que excele
Como um tecido vacilante,
Transluzir a pele!

Sobre o teu cabelo profundo
De acre, perfumado,
mar odorante e vagabundo,
Moreno e azulado,

Como um navio que desponta,
Ao vento matutino
Em sonho minha alma se apronta,
Para um céu sem destino.

Nos teus olhos ninguém lobriga
Doçura ou martírio,
São jóias frias que são liga
De ouro e letargírio.

Ao ver teu corpo que balança,
Bela de exaustão,
Dir-se-ia serpente que dança
Em torno de um bastão.

Todos os ócios com certeza
Tua fronte movem
Que passeia com a moleza
De elefante jovem,

E o teu corpo se alonga e pende
Tal nave se mágoas,
Que as margens deixa e após estende
Suas vergas na água.

Onda crescida da fusão
De gelos frementes
Se a água de tua boca então
Alcança os teus dentes,

Bebo uma taça rubra e cheia
Muita amarga e calma,
Um líquido céu que semeia
Astros em minha alma!

A teodoro de banville

Por tal modo agarraste a Deusa pela crina,
Com ar dominador, num gesto sacudido
Que se alguém presenceia o caso acontecido
Poderia julgar-te um rufião de esquina.

Com o límpido olhar, — precoce e ardente vista,
Audaz, vais expandido o orgulho de arquitecto
Em nobres produções, de traço tão correcto,
Que deixam futurar um prodigioso artista.

O nosso sangue, Poeta, esvai-se dia a dia!…
Acaso, do Centauro, a túnica sombria,
— Qie e, fúnebres caudais as velas transformava —

Três vezes se tingiu com as barbas subtis
D’aqueles infernais, monstruosos, répteis,
Que Hércules, em crença, a rir, estrangulava?

A uma dama crioula

No país perfumado, a um sol de fogo e pena,
Conheci sob dossel de árvores purpurado,
E de palmas de onde o ócio ao nosso olhar acena,
Uma dama crioula e de encanto ignorado.

De tez pálida e quente, a mágica morena
Tem no seu colo um ar, sempre o mais requintado;
Vai como a caçadora e é imponente e serena,
Seu sorriso é tranqüilo e seu olhar confiado.

A uma passante

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

A vida anterior

Muito tempo habitei sob pórticos altos
Que ardendo aos sóis do mar em fogos caprichosos,
Com seus grandes pilares retos, majestosos,
Tinham, de noite, um ar de grutas de basaltos.

As ondas, refletindo os céus imaginosos,
Iam, solenemente, em místicos assaltos,
Misturando os acordes ricos dos seus saltos
Às tintas do sol-poente em meus olhos ociosos.

Foi aí que vivi nas volúpias mais calmas,
Circundado de azul, de vagas, de esplendores,
De escravos todos nus impregnados de odores,

Refrescando-me a fronte ao embalo das palmas,
E cujo único intento era o de aprofundar
O mal que me fazia aos poucos definhar.

Amo a recordação daqueles tempos nus

Amo a recordação daqueles tempos nus
Quando Febo esculpia as estátuas na luz.
Ligeiros, Macho e fêmea, fiéis ao som da lira,
Ali brincavam sem angústia e sem mentira,
E, sob o meigo céu que lhes dourava a espinha,
Exibiam a origem de uma nobre linha.
Cibele , então fecunda em frutos generosos,
Nos filhos seus não via encargos onerosos:
Qual loba fértil em anônimas ternuras,
Aleitava o universo com as tetas duras.
Robusto e esbelto, tinha o homem por sua lei
Gabar-se das belezas que o sagravam rei,
Sementes puras e ainda virgens de feridas,
Cuja macia tez convidava às mordidas!

Quando se empenha o Poeta em conceber agora
Essas grandezas raras que ardiam outrora,
No palco em que a nudez humana luz sem brio
Sente ele n’alma um tenebroso calafrio
Ante esse horrendo quadro de bestiais ultrajes.
Ó quanto monstro a deplorar os próprios trajes!
Ó troncos cômicos, figuras de espantalhos!
Ó corpos magros, flácidos, inflados, falhos,
Que o deus utilitário, frio e sem cansaço,
Desde a infância cingiu em suas gases de aço!
E vós, mulheres, mais seráficas que os círios,
Que a orgia ceva e rói, vós, virgens como lírios,
Que herdaram de Eva o vício da perpetuidade
E todos os horrores da fecundidade!

Possuímos, é verdade, impérios corrompidos,
Com velhos povos de esplendores esquecidos:
Semblantes roídos pelos cancros da emoção,
E por assim dizer belezas de evasão;
Tais inventos, porém, das musas mais tardias
Jamais impedirão que as gerações doentias
Rendam à juventude uma homenagem grave
– À juventude, de ar singelo e fronte suave,
De olhar translúcido como água de corrente,
E que se entorna sobre tudo, negligente,
Tal qual o azul do céu, os pássaros e as flores,
Seus perfumes, seus cantos, seus doces calores.

As litânias de satã

Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,

Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,

E que, vencido, sempre te ergues mais brutal,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que vês tudo, ó rei das coisas subterrâneas,

Charlatão familiar das humanas insânias,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que, mesmo ao leproso, ao paria infame, ao réu

Ensinas pelo amor às delícias do Céu,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que da morte, tua velha e forte amante,

Engendraste a Esperança, – a louca fascinante!

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que dás ao proscrito esse alto e calmo olhar

Que faz ao pé da forca o povo desvairar,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que sabes onde é que em terras invejosas

O Deus ciumento esconde as pedras preciosas.

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu cuja larga mão oculta os precipícios,

Ao sonâmbulo a errar na orla dos edifícios,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que, magicamente, abrandas como mel

Os velhos ossos do ébrio moído num tropel,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu, que ao homem que é fraco e sofre deste o alvitre

De poder misturar ao enxofre o salitre,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que pões tua marca, ó cúmplice sutil,

Sobre a fronte do Creso implacável e vil,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Tu que, abrindo a alma e o olhar das raparigas a ambos

Dás o culto da chaga e o amor pelos molambos,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Do exilado bordão, lanterna do inventor,

Confessor do enforcado e do conspirador,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Pai adotivo que és dos que, furioso, o Mestre

O deus Padre, expulsou do paraíso terrestre

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!

Benção

Quando, por uma lei das supremas potências,
O Poeta se apresenta à platéia entediada,
Sua mãe, estarrecida e prenhe de insolências,
Pragueja contra Deus, que dela então se apiada:

“Ah! Tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar esse aleijão sem graça!
Maldita a noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!

Pois que entre todas neste mundo fui eleita
Para ser o desgosto de meu triste esposo,
E ao fogo arremessar não posso, qual se deita
Uma carta de amor, esse monstro asqueroso,

Eu farei recair teu ódio que me afronta
Sobre o instrumento vil de tuas maldições,
E este mau ramo hei de torcer de ponta a ponta,
Para que aí não vingue um só de teus botões!”

Ela rumina assim todo o ódio que a envenena,
E, por nada entender dos desígnios eternos,
Ela própria prepara ao fundo da Geena
A pira consagrada aos delitos maternos.

Sob a auréola, porém, de um anjo vigilante,
Inebria-se ao sol o infante deserdado,
E em tudo o que ele come ou bebe a cada instante
Há um gosto de ambrosia e néctar encarnado.

Às nuvens ele fala, aos ventos desafia
E a via-sacra entre canções percorre em festa;
O Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.

Os que ele quer amar o observam com receio,
Ou então, por desprezo à sua estranha paz,
Buscam quem saiba acometê-lo em pleno seio,
E empenham-se em sangrar a fera que ele traz.

Ao pão e ao vinho que lhe servem de repasto
Eis que misturam cinza e pútridos bagaços;
Hipócritas, dizem-lhe o tato ser nefasto,
E se arrependem pó haver cruzado os passos.

Sua mulher nas praças perambula aos gritos:
“Pois se tão bela sou que ele deseja amar-me,
farei tal qual os ídolos dos velhos ritos,
e assim, como eles, quero inteira redourar-me;

E aqui, de joelhos, me embebedarei de incenso,
De nardo e mirra, de iguarias e licores,
Para saber se desse amante tão intenso
Posso usurpar sorrindo os cândidos louvores.

E ao fatigar-me dessas ímpias fantasias,
Sobre ele pousarei a tíbia e férrea mão;
E minhas unhas, como as garras das Harpias,
Hão de abrir um caminho até seu coração.

Como ave tenra que estremece e que palpita,
Ao seio hei de arrancar-lhe o rubro coração,
E, dando rédea à minha besta favorita,
Por terra o deitarei sem dó nem compaixão!”

Ao céu, de onde ele vê de um trono a incandescência,
O Poeta ergue sereno as suas mãos piedosas,
E o fulgurante brilho de sua vidência
Ofusca-lhe o perfil das multidões furiosas:

“Bendito vós, Senhor, que dais o sofrimento,
esse óleo puro que nos purga as imundícias
como o melhor, o mais divino sacramento
e que prepara os fortes às santas delícias!

Eu sei que reservais um lugar para o Poeta
Nas radiantes fileiras das santas Legiões,
E que o convidareis à comunhão secreta
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.

Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.

Mas nem as jóias que em Palmira reluziam,
As pérolas do mar, o mais raro diamante,
Engastados por vós, ofuscar poderiam
Este belo diadema etéreo e cintilante;

Pois que ela apenas será feita de luz pura,
Arrancada à matriz dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, radiantes de ventura,
Nada mais são que espelhos turvos e cativos!”.

Ciganos em viagem

A tribo que prevê a sina dos viventes
Levantou arraiaes hoje de madrugada;
Nos carros, as mulher’, c’o a torva filharada
Às costas ou sugando os mamilos pendentes;

Ao lado dos carrões, na pedregosa estrada,
Vão os homens a pé, com armas reluzentes,
Erguendo para o céu uns olhos indolentes
Onde já fulgurou muita ilusão amada.

Na buraca onde está encurralado, o grilo,
Quando os sente passar, redrobra o meigo trilo;
Cibela, com amor, traja um verde mais puro,

Faz da rocha um caudal, e um vergel do deserto,
Para assim receber esses p’ra quem ‘stá aberto
O império familiar das trevas do futuro!

Correspondências

A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

D. João nos infernos

Quando D. João baixou ao pélago sombrio,
E pagou a Caronte o óbulo supremo,
Um mendigo soez, de olhar sereno e frio,
Com pulso rijo e forte agarrou cada remo.

Mostrando os peitos nus, as túnicas rasgadas,
Criaturas feminis, convulsas, flagelantes,
Como um longo cordão de ovelhsa imoladas,
Seguiam atrás d’ele, em choro, soluçantes

Esganarelo, a rir, pediu lhe o seu dinheiro,
Ao passo que D. Luis, com a trêmula mão,
Mostrava, a toda a grei d’aquele cativeiro,
O filho que zombou das cans do ancião

A casta e magra Elvira, a tremer no seu luto,
Junto do esposo infiel, amante d’uma hora,
Par’cia-lhe pedir, — derradeiro tributo,
A evocação ideal dos sorrisos de outrora..

Governava o timão da barca celebrada
Um gigante de pedra, em bélica armadura;
Mas o discreto herói, curvado sobre a espada,
Alheio a tudo o mais, só via a singradura!

Elevação

Por sobre os pantanais, os vales orvalhados,
As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares,
Para além do íngneo sol e do éter que há nos ares,
Para além dos confins dos tetos estrelados,

Flutuas, meu espírito, ágil peregrino,
E, como um nadador que nas águas afunda,
Sulcas alegremente a imensidão profunda
Com um lascivo e fluido gozo masculino.

Vai mais, vai mais além do lodo repelente,
Vai te purificar onde o ar se faz mais fino,
E bebe, qual licor translúcido e divino,
O puro fogo que enche o espaço transparente.

Depois do tédio e dos desgostos e das penas
Que gravam com seu peso a vida dolorosa,
Feliz daquele a quem uma asa vigorosa
Pode lançar às várzeas claras e serenas;

Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz,
De manhã rumo aos céus liberto se distende,
Que paira sobre a vida e sem esforço entende
A linguagem da flor e das coisas sem voz!

Esterilidade

Ao vê-la caminhar em trajo vaporosos,
Parece que desliza em voluptuosa dança,
Como aqueles reptis da Índia, majestosos,
Que um faquir faz mover em torno d’uma lança.

Como um vasto areal, ou como um céu ardente,
Como as vagas do mar em seu fragor insano,
— Assim ela caminha, a passo, indiferente,
Insensível à dor, ao sofrimento humano.

Seus olhos teem a luz dos cristais rebrilhantes,
E o seu todo estranho onde, a par, se lobriga
O anjo inviolado e a muda esfinge antiga,

Onde tudo é fulgor, ouro, metais, diamantes
Vê-se resplandecer a fria majestade
Da mulher infecunda — essa inutilidade!

Gênio do mal

Gostavas de tragar o universo inteiro,
Mulher impira e cruel! Teu peito carniceiro,
Para se exercitar no jogo singular,
Por dia um coração precisa devorar.
Os teus olhos, a arder, lembram as gambiarras
Das barracas de feira, e prendem como garras;
Usam com insolência os filtros infernais,
Levando a perdição às almas dos mortais.

Ó monstro surdo e cego, em maldades fecundo!
Engenho salutar, que exaure o sangue do mundo
Tu não sentes pudor? o pejo não te invade?
Nenhum espelho ha que te mostre a verdade?
A grandeza do mal, com que tu folgas tanto.
Nunca, jamais, te fez recuar com espanto
Quando a Natura-mãe, com um fim ignorado,
— Ó mulher infernal, rainha do Pecado! —
Vai recorrer a ti para um génio formar?

Ó grandeza de lama! ó ignomínia sem par

Hino à beleza

Vens do fundo do céu ou do abismo, ó sublime
Beleza? Teu olhar, que é divino e infernal,
Verte confusamente o benefício e o crime,
E por isso se diz que do vinho és rival.

Em teus olhos reténs uma aurora e um ocaso;
Tens mais perfumes que uma noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca um vaso
Que tornam fraco o herói e a criança corajosa.

Sobes do abismo negro ou despencas de um astro?
O Destino servil te segue como um cão;
Semeias a desgraça e o prazer no teu rastro;
Governas tudo e vais sem dar satisfação.

Calcando mortos vais, Beleza, entre remoques;
No teu tesoiro o Horror é uma jóia atraente,
E o Assassínio, entre os teus mais preciosos berloques,
Sobre o teu volume real dança amorosamente.

A mariposa voando ao teu encontro ó vela,
“Bendito este clarão!” diz antes que sucumba.
O namorado arfante enleando a sua bela
Parece um moribundo acariciando a tumba.

Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! monstro horrendo e ingênuo! se de ti
Vêm o olhar, o sorriso, os pés, que abrem a porta
De um Infinito que amo e jamais conheci?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Se és capaz de tornar, – fada aos olhos leves,
Ritmo, perfume, luz! – a vida menos feia,
Menos triste o universo e os instantes mais breves?

Intangível

Quero-te como quero à abóbada nocturna,
O’ vazo de tristeza, ó grande taciturna!
E tanto mais te quero, ó minha bem amada,
Por te ver a fugir, mostrado-te empenhada
Em fazer aumentar, irónica, a distância

Que me separa a mim da celestial estância.
Bem a quero atingir, a abóbada estrelada,
Mas, se julgo alcançar, vejo-a mais afastada!
Pois se eu adoro até – ferro monstro, acredita! –
O teu frio desdem, que te faz mais bonita!

O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatoz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.

O azar

Com peso tal, não me ajeito;
Dá-me, Sísifo, vigor!
Embora eu tenha valor,
A Arte é larga e o Tempo Estreito.

Longe dos mortos lembrados,
A um obscuro cemitério,
Minh’alma , tambor funereo,
Vai rufar trechos magoados.

— Há muitas jóias ocultas
Na terra fria, sepulturas
Onde não chega o alvião;

Muita flor exala a medo
Seus perfumes no degredo
Da profunda solidão

O frasco

Perfumes há que os poros da matéria filtram
E no cristal dir-se-ia até que eles se infiltram.
Ao abrirmos um cofre que nos vem do Oriente
Cujo ferrolho range e emperra asperamente,

Ou numa casa algum poeirento e negro armário,
Onde o acre odor dos tempos dorme solitário,
Talvez se encontre um frasco a recordar o outrora,
Do qual uma alma palpitante se evapora.

Pensamentos dormiam, ninfas moribundas,
A fremir com doçura em meio às trevas fundas,
E as asas distendiam para alçar-se, estriadas
De azul e rosa, ou de ouro arcaico laminadas.

Eis as lembranças inebriantes que se afligem
No ar convulso; fecham-se os olhos; a Vertigem
Subjuga a alma vencida e empurra com a mão
A um vórtice que exala a humana podridão;

Abate-a às bordas de um abismo milenário,
Onde, qual Lázaro rasgando seu sudário,
Se move ao despertar o defunto espectral
De um velho amor malsão, gracioso e sepulcral.

Assim, quando de tudo eu me tornar ausente,
Ao canto de um sinistro armário indiferente,
Quando esquecido eu for, qual frasco desolado,
Caduco, imundo, abjeto, poeirento, rachado,

Serei teu ataúde, amável pestilência,
Testemunho de tua força e virulência,
Veneno angelical, licor que sem perdão
Me rói, ó vida e morte de meu coração!

O gato

Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço;
Guarda essas garras devagar,
E nos teus belos olhos de ágata e aço
Deixa-me aos poucos mergulhar.

Quando meus dedos cobrem de carícias
Tua cabeça e dócil torso,
E minha mão se embriaga nas delícias
De afagar-te o elétrico dorso,

Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo
Como o teu, amável felino,
Qual dardo dilacera e fere fundo,

E, dos pés a cabeça, um fino
Ar sutil, um perfume que envenena
Envolve-lhe a carne morena.

O heautontimorumenos

A J.G.F.

Sem cólera te espancarei,
Como o açougueiro abate a rês,
Como Moisés à rocha fez!
De tuas pálpebras farei,

Para o meu Saara inundar,
Correr as águas do tormento.
O meu desejo ébrio de alento
Sobre o teu pranto irá flutuar

Como um navio no mar alto,
E em meu saciado coração
Os teus soluços ressoarão
Como um tambor que toca o assalto!

Não sou acaso um falso acorde
Nessa divina sinfonia,
Graças à voraz Ironia
Que me sacode e que me morde?

Em minha voz ela é quem grita!
E anda em meu sangue envenenado!
Eu sou o espelho amaldiçoado
Onde a megera se olha aflita.

Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz!

Sou um vampiro a me esvair
– Um desses tais abandonados
Ao risco eterno condenados,
E que não podem mais sorrir!

O inimigo

A juventude não foi mais que um temporal,
Aqui e ali por sóis ardentes trespassado;
As chuvas e os trovões causaram dano tal
Que em meu pomar não resta um fruto sazonado.

Eis que alcancei o outono de meu pensamento,
E agora o ancinho e a pá se fazem necessários
Para outra vez compor o solo lamacento,
Onde profundas covas se abrem como ossários

E quem sabe se as flores que meu sonho ensaia
Não achem nessa gleba aguada como praia
O místico alimento que as farás radiosas/

Ó dor! O tempo faz da vida uma carniça,
E o sombrio Inimigo que nos rói as rosas
No sangue que perdemos se enraíza e viça!

O mau monge

Um convento de antanho em suas arcarias
Desdobra os painéis da mística verdade
Cujo efeito, aquecendo as entranhas mais pias,
Mal temperava o frio de sua austeridade.

Tempo em que tu, ó Cristo, em meses florescias!
Mais de um monge dos teus, hoje na obscuridade,
Pondo-se a trabalhar entre as tumbas sombrias
Glorificava a Morte com simplicidade.

– A minha alma é um sepulcro em que mau cenobita
Por tempo sem início e sem fim anda e habita.
A beleza sumiu deste claustro de abrolhos.

Quando eu irei fazer, ó monge sempre em férias,
Desta farsa que eu sou, de tão triste misérias,
Ação para o meu braço e amor para os meus olhos?

O monge maldito

Os devotos painéis dos antigos conventos,
Reproduzindo a santa imagem da Verdade,
Davam certo conforto aos sóbrios monumentos,
Tornavam menos fria aquela austeridade.

Olhos fitos em Deus, nos santos mandamentos,
Mais de um monge alcançou palma de santidade,
A’ Morte consagrando obras e pensamentos
Numa vida de paz, de labor, de humildade.

Minh’alma é um coval onde, monge maldito,
Desde que existe o mundo, aborrecido, habito,
Sem ter um só painel que possa contemplar…

— O’ monge mandrião! se quer’s viver, contente,
uma vida de paz, não seja indolente;
Caleja-me essas mãos, trabalha! vai cavar!

O relógio

Os chineses vêem as horas pelos olhos dos gatos.
Certo dia, um missionário, passeando no distrito de Nanquim,
notou que havia esquecido o relógio e perguntou as horas a um rapazinho.
Ao primeiro instante, o garoto do Celeste Império hesitou;
depois, pensando melhor, respondeu:
-Vou dizer.
Decorridos alguns momentos, reaparecia, segurando nos braços um gato,
muito gordo; e, fitando o animal, como se usa dizer, no branco do olho,
afirmou sem hesitação:
-Ainda não é exatamnente mmeio dia.
E era verdade.
Por mim, ao inclinar-me para a bela Felina, a de nome tão adequado,
aquela que é ao mesmo tempo a honra do seu sexo, o orgulho do meu
coração e o perfume do meu espírito,
-quer de noite, quer de dia, em plena luz ou na sombraopaca,
no fundo de seus olhos adoráveis
vejo sempre, nitidamente, a hora, sempre a mesma, uma hora vasta, solene,

grande como o espaço, sem divisões de
minutos nem de segundos, uma hora imóvel que não é marcada
nos relógios,
e todavia leve como um suspiro, rápida como um olhar.
E, se algum importuno me viesse interromper enquanto o meu olhar repousa sobre
este delicioso relógio, se algum Gênio descortês
e intolerante, algum Demônio do contratempo me viesse dizer :
-“Que é que estás a mirar com tamanha atenção?
Que buscas nos olhos dessa criatura? Vês acaso neles a hora,
mortal prodígo e vagabundo?”
– eu responderia sem hesitar:-“Sim, vejo a hora: é a Eternidade.”
Pois não é, senhora, que fiz um madrigal verdadeiramente
meritórioe tão cheio de ênfase quanto vós mesma?
Na verdade, tive tanto prazer em bordar esta preciosa galanteria que nã
o vos pedirei nada em troca.

O sino rachado

É doce e amargo, quando a neve cai lá fora,
Ouvir, ao pé do fogo que crepita e esfuma,
Aflorar lentamente as lembranças de outrora
Ao som dos carrilhões que ressoam na bruma.

Bendito o sino de garganta vigorosa
Que, apesar da velhice, alerta e bem disposto,
Fielmente emite sua nota religiosa,
Como um velho soldado atento no seu posto.

Minha alma está rachada, e quando, em agonia,
Quer povoar de canções o azul da noite fria,
Ocorre muita vez que a voz lhe enfraquece

Como o espesso estertor de um corpo que se esquece,
Junto a um lago de sangue e de humanos destroços,
E que sucumbe, inerte, entre imensos esforços.

O vampiro

Tu que, como uma punhalada,
Entraste em meu coração triste;
Tu que, forte como manada
De demônios, louca surgiste,

Para no espírito humilhado
Encontrar o leito e o ascendente;
– Infame a que eu estou atado
Tal como o forçado à corrente,

Como ao baralho o jogador,
Como à garrafa o borrachão,
Como os vermes a podridão,
– Maldita sejas, como for!

Implorei ao punhal veloz
Que me concedesse a alforria,
Disse após ao veneno atroz
Que me amparasse a covardia.

Ah! pobre! o veneno e o punhal
isseram-me de ar zombeteiro:
“Ninguém te livrará afinal
De teu maldito cativeiro.

Ah! imbecil – de teu retiro
Se te livrássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!”

Perfume exótico

Quando eu a dormitar, num íntimo abandono,
Respiro o doce olor do teu colo abrasante,
Vejo desenrolar paisagem deslumbrante
Na auréola de luz d’um triste sol de outono;

Um éden terreal, uma indolente ilha
Com plantas tropicais e frutos saborosos;
Onde há homens gentis, fortes e vigorosos,
E mulher’s cujo olhar honesto maravilha.

Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas;
Vejo um porto ideal cheio de caravelas
Vindas de percorrer países estrangeiros;

E o perfume sutil do verde tamarindo,
Que circula no ar e que eu vou exaurindo,
Vem juntar0se em minh’alma à voz dos marinheiros.

Remorso póstumo

Quando fores dormir, ó bela tenebrosa
Em fundo de uma cripta em mármore lavrada
Quando tiveres só por alcova e morada
O vazio abismal de carneira chuvosa;

Quando a pedra, a oprimir tua fronte medrosa
E teus flancos a arfar de exaustão encantada,
Mudar teu coração numa furna calada
Amarrando-te os pés na rota aventurosa,

A tumba, confidente do sonho infinito
(Pois toda a vida a tumba há de entender o poeta),
Pela noite imortal de que o sono é prescrito,

Te dirá: “De que serve, hetaira incompleta,
Não teres conhecido o que choram os mortos?”
E os vermes te roerão assim como os remorsos.

Sed non satiata

Ó deidade fatal, anjo das frias trevas,
Pomo de tentação, lindo corpo cigano,
Com perfumes de musgo e de tabaco havano,
Ó fausto feminil que em teus filtros me enlevas!

Ao vinho de Constança, e ao ópio embriagante,
Eu prefiro o elixir da tua boca terna;
E no teu ígnio olhar, refrescante cisterna,
Mata a sede febril a minha dor crucidante.

Nos olhos infernais, espelhos da tua alma,
Monstro sem coração! a chama viva acalma;
Repara que eu não sou um Estígio incansável…

Nem me é dado, ai de mim! megera libertina,
Para quebrar-te a força e a luxúria indomável,
No teu leito sensual tornar-me Proserpina!

Porias o universo…

Porias o universo inteiro em teu bordel,
Mulher impura! O tédio é que te torna cruel.
Para teus dentes neste jogo exercitar,
A cada dia um coração tens que sangrar.
Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos
E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,
Exibem arrogantes uma vã nobreza,
Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.

Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo!
Salutar instrumento, vampiro do mundo,
Como não te envergonhas ou não vês sequer
Murchar no espelho teu fascínio de mulher?
A grandeza do mal de que crês saber tanto
Não te obriga jamais a vacilar de espanto
Quando a mãe natureza, em desígnios velados,
Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados
– A ti, vil animal – , para um gênio forjar?

Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!

Envolta em ondulante…

Envolta em ondulante traje nacarado,
Até quando caminha dir-se-á que ela dança,
Como esses longos répteis que um jogral sagrado
Agita em espirais no vértice da lança.

Como a tépida areia ou o azul do deserto,
Insensíveis os dois à desventura humana,
Como a trama das ondas no ermo mar aberto,
Ela se move indiferente e soberana.

Em seu polido olhar há minerais radiantes.
E nessa têmpera insólitas quimeras,
Entre anjo indecifrado e esfinge de outras eras,

Em que tudo é só luz, metal, ouro e diamantes,
Esplende para sempre, em seu frívolo império,
A fria majestade da mulher estéril.

Duellum

Dois inimigos se enfrentaram; suas armas
O ar tingiram de sangue e de ébrios esplendores.
Estes metais em duelo ecoam como alarmas
Da juventude exposta a impúberes amores.

Foram-se os gládios! Como a nossa juventude,
Querida! Mas as unhas e os dentes afiados
Logo vingam a espada e a adaga falsa e rude.
Ó corações em fúria e pelo amor magoados!

Na ravina apinhada de onças e leopardos
Rolam os heróis, um a outro abraçado,
E sua pele há de fazer florir os cardos.

– Pois este abismo é o inferno por tantos povoado!
Nele rolemos sem remorso, cruel parceira,
A fim de que o ódio nos aqueça a vida inteira!

O possesso

Cobriu-se o sol de negro véu. Como ele, ó Lua
De minha vida, veste o luto da agonia;
Dorme ou fuma à vontade; sê muda e sombria,
E no abismo do Tédio esplêndida flutua;

Eu te amo assim! Se agora queres, todavia,
Como um astro a emergir da penumbra que o acua,
Pavonear-te no palco onde a Loucura atua,
Pois bem! Punhal sutil em teu estojo esfria!

Acende essa pupila no halo dos clarões!
Acende a cupidez no olhar dos grosseirões!
Em ti tudo é prazer, morboso ou petulante;

Seja o que for, escura noite ou rubra aurora;
Uma por uma, as fibras do meu corpo arfante
Gritam: Ó Belzebu, meu coração te adora!

Estes versos te dou…

Estes versos te dou para que, se algum dia,
Feliz chegar meu nome às épocas futuras
E lá fizer sonhar as humanas criaturas,
Nau que um esplêndido aquilão ampara e guia,

Tua memória, irmã das fábulas obscuras,
Canse o leitor com pertinaz monotonia,
E presa por grilhão de mística energia
Suspensa permaneça em minhas rimas puras;

Maldita que, do céu infindo ao mais profundo
Abismo, a mim somente escutas neste mundo!
– Ó tu que, como sombra de existência fátua,

Pisas de leve, sem que aqui jamais te afronte
Nenhum mortal que te suponha amarga, estátua
De olhos de jade, grande anjo de brônzea fronte!

Toda ela

O Demônio em meu quarto salta
Esta manhã para me ver
E, tentando apanhar-me em falta,
Diz-me: “Eu só queria saber,

Entre todas as coisas raras
De que é pródigo seu feitiço,
Entre as jóias negras ou claras
Que ao corpo lhe dão tanto viço,

Qual a mais sublime.”- ó minha alma!
Respondeste ao Tinhoso então:
“Porque Ela é um bálsamo que acalma,
Não pode haver predileção.

E como tudo me extasia,
Não sei se nela algo me enfara.
Ela deslumbra como o Dia
E como a Noite nos ampara.

Seu corpo esplêndido é regido
Por harmonias tão concordes
Que nunca pôde o humano ouvido
Escolher um dentre os acordes.

Ó mística transmutação
Que os sentidos num só resume!
Seu hálito faz a canção
E sua voz faz o perfume!”

O archote vivo

Diante de mim caminham olhos luminosos,
Que um Anjo sábio fez sem dúvida imantados;
São meus irmãos, eu sei, estes irmãos piedosos,
Que aos olhos me arrojam fogos constelados.

Salvando-me do risco ou de qualquer agravo,
Rumo à Beleza eles me guiam sempre altivo;
Meus servos são e deles sou também escravo;
Todo meu ser se roja ante este archote vivo.

Olhos graciosos, cintilais da luz que emana
Dos círios místicos a arder no dia a pino;
O sol não lhes extingue a misteriosa chama;

Eles louvam a Morte, e vós entoais um Hino;
Ides a celebrar de minha alma o arrebol,
Astros cuja luz nunca há de apagar o sol!

Confissão

Uma vez, uma só, graciosa e doce amante,
Teu suave braço sobre o meu
Pousou (no fundo em trevas de minha alma, o instante
Que então vivemos não morreu);

Era bem tarde; qual efígie luminosa,
A lua cheia se exibia,
Enquanto a noite, como um rio, majestosa,
Sobre Paris em calma fluía.

E junto às casas, por debaixo dos portais,
Gatos furtivos se moviam,
O ouvido alerta, ou, como sombras fraternais,
A passo lento nos seguiam.

Súbito, em meio àquela intimidade franca
Nascida a luz ainda escassa,
De ti, rico instrumento ao qual nunca se arranca
Senão a mais vibrante graça,

De ti, alegre e clara como uma fanfarra
Imersa na manhã radiante,
Uma nota queixosa, uma nota bizarra
No ar oscilou toda hesitante

Qual menino franzino e macilento e imundo,
A quem os pais, por pejo ou medo,
Longo tempo escondessem aos olhos do mundo,
Como se esconde um vil segredo.

Anjo infeliz, ela trauteava a nota aguda
“Aqui na Terra é tudo engano,
E mesmo que a si próprio alguém sempre se iluda,
Revela-se o egoísmo humano;

Ser bela é ofício cujo preço se conhece,
É o espetáculo banal
Da bailarina louca e fria que fenece
Com um sorriso maquinal;

Semear nos corações é sucumbir ao pranto;
Finda-se o amor, vem a saudade,
Até que o Esquecimento os arremesse a um canto
E os lance enfim à Eternidade!”

Muita vez evoquei esta lua encantada,
Este silêncio noite afora,
E esta medonha confidência sussurrada
Ao coração que a escuta agora.

Harmonia da tarde

Chegado é o tempo em que, vibrando o caule virgem,
Cada flor se evapora igual a um incensório;
Sons e perfumes pulsam no ar quase incorpóreo;
Melancólica valsa e lânguida vertigem!

Cada flor se evapora igual a um incensório;
Fremem violinos como fibras que se afligem;
Melancólica valsa lânguida vertigem!
É triste e belo o céu como um grande oratório.

Freme violinos como fibras que se afligem,
Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório!
É triste e belo o céu como um grande oratório;
O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem.

Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório
Recolhem do passado as ilusões que o fingem!
O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem…
Fulge a tua lembrança em mim qual ostensório!

O veneno

Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio
Com seu luxo prodigioso,
E engendra mais de um pórtico miraculoso
No ouro de um vapor purpúreo,
Como um sol que se põe no ocaso nebuloso.

O ópio dilata o que contornos não tem mais,
Aprofunda o ilimitado,
Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado,
E de prazeres sensuais
Enche a alma para além do que conter lhe é dado.

Mas nada disso vale o veneno que escorre
De teu verde olhar perverso,
Laguna onde minha alma se mira ao inverso…
E meu sonho logo acorre
Para saciar-se nesse abismo em fel imerso.

Nada disso se iguala ao prodígio sombrio
Da tua saliva forte,
Que a alma me impele ao esquecimento num transporte,
E, carreando o desvario,
Desfalecida a arrasta até os umbrais da morte!

O convite à viagem

Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,

Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
– Os sangüíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Conversa

És como um céu de outono, róseo e luminoso!
Mas a tristeza em mim é qual o mar que avança
E deixa, ao refluir, sobre meu lábio umbroso
O amargo travo de uma cáustica lembrança.

– Sobre meu peito corre inútil a tua mão;
O que ela toca, amiga, é um sítio devastado
Pelas garras e os dentes das mulheres. Não
Busques meu coração, por elas devorado.

Ele é um palácio que a balbúrdia fez sombrio;
Ali se bebe e mata, ali se brinda ao duelo!
– Nada um perfume em torno de teu colo esguio!…

Assim o queres, ó Beleza, atroz flagelo!
Com teus olhos de fogo, acesos como festas,
Calcina o que escapou à última das bestas!

A uma madona

A ti, Madona e amante, eu quero consagrar,
Na mais funda miséria, um subterrâneo altar,
E nos confins mais tenebrosos de meu peito,
Bem longe do prazer mundano e do despeito,
Cavar um nicho de ouro e azul todo esmaltado,
Onde terás, Estátua, o que te for do agrado.
Com Versos que esculpi no mais puro metal,
Armados sabiamente em rimas de cristal,
Porei em tua fronte um imenso Diadema;
E o pródigo de Ciúme, ó Madona suprema,
Hei de saber talhar-te, ao gosto mais sombrio,
Um rijo e espesso Manto, ambíguo no feitio,
Que, qual uma guarita, há de ocultar-te o encanto,
E em vez de Pérolas, as gotas de meu Pranto!
Teu vestido será meu Desejo a fremir,
Meu Desejo ondulante, a descer e a subir,
Que nos cumes se agita e nos vales estanca,
E com beijos te reveste a nudez rósea e branca.
Farei de meu Respeito esplêndidos Calçados
De cetim, por teus pés divinos humilhados,
Que, ao envolvê-los em macio e doce abraço,
Tal qual um molde fiel lhes guarde o breve traço.
Se não posso, já que me é pouca a pena ingrata,
Por Escabelo dar-te uma Lua de prata,
Então porei sob teus pés a cruel Serpente,
Para que calques e escarneças inclemente,
Rainha vitoriosa e fértil em perdões,
Este monstro ébrio de ódio e gosma dos pulmões.
Verás meus Pensamentos, firmes como os Círios
Diante do altar em flor da Rainha dos Lírios,
Crivando o teto azul de estrelas e de flamas,
A contemplar-te com pupilas sempre em chamas;
E como tudo em mim te quer de amor intenso,
Tudo será Benjoim, Mira, Olíbano, Incenso,
E sempre rumo a ti, nos píncaros pousada,
Em Vapor subirá minha alma atormentada.

Enfim, para concluir teu papel de Maria,
E para misturar o amor à grosseria,
Negra volúpia! Dos Pecados capitais,
Algoz cheio do horror, farei sete Punhais
Bem aguçados e, jogral sem emoção,
Fazendo de alvo o teu secreto coração,
Hei de cravá-los todos, a meu gosto e jeito,
Em teu arfante, soluçante e ardente peito!

Sisima

Imaginai Diana em galante roupagem,
Percorrendo florestas e sarçais rasteiros,
Cabelo e colo ao vento, em júbilo selvagem,
Soberba, a desafiar os hábeis cavaleiros!

Já nÃo viste Théroigne, amante da carnagem,
Insuflando ao ataque um bando de arruaceiros,
A face e o olhar febril, conforme a personagem,
Galgando, sabre em punho, o trono dos herdeiros?

Tal é a Sisina! Mas a doce combatente
Revela uma alma tão feroz quanto indulgente;
Seu destemor, vizinho à pólvora e aos tambores,

Sabe poupar a vida a quem de pé implora,
E sempre o coração, pulsando entre fulgores,
Ante quem o merece eis que se mostra e chora.

Os faróis

Rubens, rio do olvido, jardim da preguiça,
Divã de carne tenra onde amar é proibido,
Mas onde a vida flui e eternamente viça,
Como o ar no céu e o mar dentro do mar contido;

Da Vinci, espelho tão sombrio quão profundo,
Onde anjos cândidos, sorrindo com carinho
Submersos em mistério, irradiam-se ao fundo
Dos gelos e pinhais que lhes selam o ninho;

Rembrandt, triste hospital repleto de lamentos,
Por um só crucifixo imenso decorado,
Onde a oração é um pranto em meio aos excrementos,
E por um sol de inverno súbito cruzado;

Miguel Ângelo, espaço ambíguo em que vagueiam
Cristo e Hércules, e onde se erguem dos ossários
Fantasmas colossais que à tíbia luz se arqueiam
E cujos dedos hirtos rasgam seus sudários;

Impudências de fauno, iras de boxeador,
Tu que de graça aureolaste os desgraçados,
Coração orgulhoso, homem fraco e sem cor,
Puget, imperador soturno dos forçados;

Watteau, um carnaval de corações ilustres,
Quais borboletas a pulsar por entre os lírios,
Cenários leves inflamados pelos lustres
Que à insânia incitam este baile de delírios;

Goya, lúgubre sonho de obscuras vertigens,
De fetos cuja carne cresta os sabás,
De velhas ao espelho e seminuas virgens,
Que a meia ajustam e seduzem Satanás;

Delacroix, lago onde anjos maus banham-se em sangue,
Na orla de um bosque cujas cores não se apagam
E onde entranhas fanfarras, sob um céu exangue,
Como um sopro de Weber entre os ramos vagam;

Essas blasfêmias e lamentos indistintos,
Esses Te Deum, essas desgraças, esses ais
São como um eco a percorrerem mil labirintos,
E um ópio sacrossanto aos corações mortais!

É um grito expresso por milhões de sentinelas,
Uma ordem dada por milhões de porta-vozes;
É um farol a clarear milhões de cidadelas,
Um caçador a uivar entre animais ferozes!

Sem dúvida, Senhor, jamais o homem vos dera
Testemunho melhor de sua dignidade
Do que esse atroz soluço que erra de era em era
E vem morrer aos pés de vossa eternidade!

A musa venal

Ó musa de minha alma, amante dos palácios,
Terás, quando janeiro desatar seus ventos,
No tédio negro dos crepúsculos nevoentos,
Uma brasa que esquente os teus dois pés violáceos?

Aquecerás teus níveos ombros sonolentos
Na luz noturna que os postigos deixam coar?
Sem um níquel na bolsa e seco o paladar,
Colherás o ouro dos cerúleos firmamentos?

Tens que, para ganhar o pão de cada dia,
Esse turíbulo agitar nas sacristia,
Entoar esse Te Deum que nada têm de novo,

Ou, bufão em jejum, exibir teus encantos
E teu riso molhado de invisíveis prantos
Para desopilar o fígado do povo.

Castigo do orgulho

Nos esplêndidos tempos em que a Teologia
Viçava no apogeu da seiva e da energia,
Conta-se que um doutor, dentre os mais eminentes,
Após dobrar os corações indiferentes,
Os arrojou nas mais escuras profundezas;
Após franquear às celestiais e altas grandezas
Caminhos dele próprio até desconhecidos,
Só pelas almas puras talvez percorridos,
Como quem alto foi demais, cheio de pânico,
Gritou, possuído então de um orgulho satânico:
“Jesus, ó meu Jesus! Te ergui à etérea altura!
Mas se, ao contrário, eu te golpeasse na armadura,
Tua vergonha igualaria atua glória,
E não serias mais que um feto sem história!”
Sua razão de pronto a pó se reduziu.
A flama deste sol de negro se tingiu;
O caos se lhe instalou então na inteligência,
Templo antes vivo, pleno de ordem e opulência,
Sob cujos tetos tanto fausto resplendia
E nele floresceram a noite e a agonia,
Qual numa furna cuja boca jaz selada.
Desde então semelhante aos animais da estrada,
Quando ia ao campo sem saber sequer quem era,
Sem distinguir entre o verão e a primavera,
Imundo, ocioso e feio como coisa usada,
Fazia riso e a diversão da meninada.

A máscara

A Ernest Cristophe, estatuário

Contempla esse perfil de graças florentinas;
Na sóbria ondulação do corpo musculoso
Excedem Força e Proporção, irmãs divinas.
Essa mulher, fração de um ser miraculoso,
Divinamente forte, amavelmente pobre,
Criada foi para no leito arder em gozo,
Saciando os ócios de um pontífice ou de um nobre.

– Repara-lhe o sorriso fino e voluptuoso
onde a vaidade aflora e em êxtase perdura;
Esse lânguido olhar oblíquo e desdenhoso,
Esse rosto sutil, na gaze da moldura,
Cujos traços nos dizem com ar vitorioso:
“A Volúpia me chama e o Amor cinge-me a testa!”
Ao ser que esplende assim com lúbrica realeza
Vê que encanto febril a formosura empresta!
Chega mais próximo e circunda-lhe a beleza.

Ó que blasfêmia da arte! Ó que assombro fatal!
A divina mulher, que ao prazer nos enlaça,
Lá no alto se transmuda em monstro bifrontal!

– Não! É uma máscara, uma sórdida trapaça,
Essa face torcida e de esquisito aspecto,
E, repara, também crispada ferozmente,
A cabeça concreta, o rosto circunspecto
Oculto por detrás do semblante que mente.
Ó mísera beleza! O magnífico rio
De teu pranto deságua ao pá de meus abrolhos;
Teu embuste me embriaga, e minha alma sacio
Nessas ondas que a Dor faz jorrar de teus olhos!

Mas por que chora enfim a beleza absoluta
Que a seus pés tem o ser humano submetido,
Que misterioso mal lhe rói o flanco em luta?

– Ela chora, insensata, por haver vivido!
E por viver ainda! E o que ela mais deplora,
O que a faz ajoelhar-se em frêmito feroz,
É que amanhã há de estar viva como agora!
Amanhã e depois e sempre! – como nós!

Eu te amo como…

Eu te amo como se ama a abóbada noturna,
Ó taça de tristeza, ó grande taciturna,
E mais ainda te adoro quando mais te ausentas
E quanto mais pareces, no ermo que ornamentas,
Multiplicar irônica as celestes léguas
Que me separam das imensidões sem tréguas.

Ao assalto me lanço e agito-me na liça,
Como um coro de vermes junto a uma carniça,
E adoro, ó fera desumana e pertinaz,
Até essa algidez que mais bela te faz!

De profundis clamavi

Imploro-te piedade,a Ti, razão de amor,
Do fundo abismo onde minha alma jaz sepulta.
É uma cálida terra em plúmbea névoa oculta,
Onde nadam na noite a blasfêmia e o terror;

Por seis meses um morno sol dissolve a bruma,
E durante outros seis a noite cobre o solo;
É um país bem mais nu do que o desnudo pólo
– Nem bestas, nem regatos, nem floresta alguma!

Não há no mundo horror que comparar se possa
À luz perversa desse sol que o gelo acossa
E à noite imensa que no velho Caos se abriu;

Invejo a sorte do animal mais vil,
Capaz de mergulhar num sono que o enregela,
Enquanto o Dédalo do tempo se enovela.

Certa noite bem junto…

Certa noite bem junto a uma horrenda judia,
Como ao longo de um morto outro morto estendido,
Pus-me a pensar ao pé deste corpo vendido
Na beleza infeliz que aos olhos me fugia.

Eu lhe evocava a esplêndida altivez nativa,
O olhar de intensa luz e de graças armado,
O cabelo a servir-lhe de elmo perfumado
E cuja súbita lembrança o amor se aviva.

Pois com fervor teu nobre corpo eu beijaria
E dos réus frescos pés às tuas negras tranças
Abriria o tesouro das carícias mansas,

Se uma noite, ao rolar de uma lágrima esguia,
Pudesses, tu, que apenas esse fel destilas,
Ofuscar o esplendor de tuas frias pupilas.

O gato

Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço;
Guarda essas garras devagar,
E nos teus belos olhos de ágata e aço
Deixa-me aos poucos mergulhar.

Quando meus dedos cobrem de carícias
Tua cabeça e dócil torso,
E minha mão se embriaga nas delícias
De afagar-te o elétrico dorso,

Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo
Como o teu, amável felino,
Qual dardo dilacera e fere fundo,

E, dos pés a cabeça, um fino
Ar sutil, um perfume que envenena
Envolve-lhe a carne morena.

A varanda

Mãe das recordações, amante das amantes,
Tu, todo o meu prazer! Tu, todo o meu dever!
Hás de lembrar-te das carícias incessantes,
Da doçura do lar à luz do entardecer,
Mãe das recordações, amante das amantes!

As tardes à lareira, ao calor do carvão,
E as tardes na varanda, entre róseos matizes.
Quão doce era o seu seio e meigo coração!
Dissemo-nos os dois as coisas mais felizes
Nas tardes à lareira, ao calor do carvão!

Quão soberbo era o sol nas tardes douradas!
Que profundo era o espaço e como a alma era langue!
Curvado sobre ti, rainha das amadas,
Eu julgava aspirar o aroma de teu sangue.
Quão soberbo era o sol nessas tardes douradas!

A noite se adensava igual a uma clausura,
E no escuro os meus olhos viam-te as pupilas;
Teu hálito eu sorvia, ó veneno, ó doçura!
E dormiam teus pés em minhas mãos tranqüilas.
A noite se adensava igual a uma clausura.

Sei a arte de evocar as horas mais ditosas,
E revivo o passado imerso em teu regaço.
Para que procurar belezas voluptuosas
Se as encontro em teu corpo e em teu cálido abraço?
Sei a arte de evocar as horas mais ditosas.

Juras de amor, perfumes, beijos infinitos,
De um fundo abismo onde não chegam nossas sondas
Voltareis, como o sol retorna aos céus benditos
Depois de mergulhar nas mais profundas ondas?
– Juras de amor, perfumes, beijos infinitos!

Um fantasma

I – AS TREVAS

Nos porões de tristeza impenetrável
Onde o Destino um dia me esqueceu;
Onde jamais um róseo raio ardeu,
Só com a noite, hospedeira intratável,

Sou qual pintor que um Deus, por diversão,
Na treva faz mover os seus pincéis,
Ou cozinheiro de apetites cruéis
Que assa e devora o próprio coração.

Súbito brilha e faz-se ali presente
Fantasma esplêndido e de graça extrema
Em oriental postura evanescente.

Ao atingir a perfeição suprema,
Nela percebo a bela visitante:
Ei-la! Negra e contudo fulgurante.

II – O PERFUME

Leitor, tens já por vezes respirado
Com embriaguez e lenta gostosura
O grão de incenso que enche uma clausura,
Ou de um saquinho de almíscar entranhado?

Sutil e estranho encanto transfigura
Em nosso agora a imagem do passado.
Assim o amante sobre o corpo amado
À flor mais rara colhe o que perdura.

Da cabeleira espessa como crina,
Turíbulo de alcova, ébria almofada,
Vinha uma essência rútila e indomada,

E das vestes, veludo ou musselina,
Que sua tenra idade penetrava,
Um perfume de pêlos evolava.

III – A MOLDURA

Como à tela se ajusta uma moldura
– Não importa do artista a sutileza – ,
Isolando-o da imensa natureza,
Um não-sei-quê de mágica textura,

Assim jóias, metais e douradura
Ajustavam-se à sua irreal beleza;
Nada ofuscava-lhe a integral clareza,
E tudo lhe era como cercadura.

Dir-se-ia muita vez que ela supunha
Tudo existir para adorá-la e expunha
Sua nudez com gozo e encantamento

Às carícias do linho e do cetim,
E, suave ou brusca, a cada movimento
Mostrava a graça ingênua do sagüim.

IV – O RETRATO

A Doença e a Morte tornam cinza todo
Aquele fogo que por nós ardeu.
Dos olhos a me olhar daquele modo,
Da boca onde meu ser se dissolveu,

Dos beijos sempre fiéis a uma ordem dada,
Dos êxtases mais vivos que fulgores,
Que resta? É horrível, ó minha alma! Nada
Mais que um pálido esboço de três cores

Que se extingue, como eu, na solitude,
E que o Tempo, sem pressa e em toda a parte,
Vai roçando com asa amarga e rude…

Negro assassino da Vida e da Arte,
Jamais hás de matar-me na memória
A que foi meu prazer e minha glória!

Semper eadem

“De onde te vem, responde, essa tristeza infinda
Que galga, como o mar, o negro e nu rochedo?”
– Quando no coração nossa colheita finda,
viver é um mal. Ninguém ignora este segredo.

Uma dor muito simples, nada misteriosa,
A todos familiar, como tua alegria.
Nada queiras saber, minha bela curiosa!
E, embora a voz te seja afável, silencia!

Cala-te tola! alma de tudo embevecida!
Boca de riso ingênuo! Ainda mais que a Vida,
A Morte nos enlaça em seus sutis idílios.

Deixa-me o coração confiar no que suponho,
Dentro em teus olhos mergulhar como num sonho,
E dormir longo tempo à sombra de teus cílios!

Que dirás esta noite…

Que dirás esta noite, ó alma abandonada,
Que dirás, coração, deserto e murcho outrora,
À muito bela, à muito boa, à muito amada,
Cujos olhos te fazem reflorir agora?

– Que nosso orgulho apenas cante em seu louvor:
Nada se iguala à sua doce autoridade,
À carne estérea deu-lhe um Anjo seu frescor,
E seu olhar nos banha em branda claridade.

Seja na noite ou na mais funda solidão,
Seja na rua ou na difusa multidão,
Seu fantasma se agita no ar como uma flama.

Às vezes diz: “Sou bela, e ordeno como dona:
Pelo amor que me tens, o Belo apenas ama;
Sou teu Anjo guardião, sou Musa e sou Madona.”

Reversibilidade

Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça,
Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça?

Ó Anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se senhor?
Ó Anjo da bondade, já viste o rancor?

Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios?

Ó Anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora no saciou a gula triste?
Ó Anjo da beleza, as rugas já não viste?

Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões!

A aurora espiritual

Entre os devassos, quando a branca e rubra aurora
Faz mútua sociedade com o Ideal roedor,
Por obra e graça de um mistério vingador
Na entorpecida besta fera um anjo aflora.

Dos céus espirituais o azul inacessível,
Para o homem que padece e sonha em paroxismo,
Se entreabre e se aprofunda em fascinante abismo.
Assim, graciosa Deusa, lúcida e sensível,

Sobre os despojos fumegantes das orgias
Tua imagem mais clara, mais rósea, mais cheia,
Ante meus olhos pasmos sem cessar volteia.

O sol crestou nos castiçais as chamas frias;
Assim, triunfante, o teu fantasma se parece,
Alma radiosa, ao sol que eterno resplandece!

Céu nublado

Dir-se-ia teu olhar coberto de uma bruma;
Teu olhar misterioso(é azul, verde ou se esfuma?)
Às vezes terno e sonhador, às vezes cruel,
Reflete a palidez e a indolência do céu.

Lembras os dias brancos, mornos e velados,
Que em prantos põem os corações enfeitiçados,
Quando, desperto por torção desconhecida,
Os nervos tensos zombam da alma adormecida.

Não raro imitas essas cores vaporosas
Que fulguram aos sóis das estações brumosas…
Como resplendes, horizonte assim molhado
Quando a flama do sol aquece o céu nublado!

Ó mulher perigosa, ó climas sedutores!
Hei de adorar a tua neve e os teus rigores?
E como arrancarei do inverno em que me enterro
Mais agudo prazer que os do gelo e do ferro?

A bela nau

Eu te quero contar, lânguida feiticeira,
Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!
Quero pintar tua beleza,
Na qual a infância se conjuga à madureza.

Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,
És como a bela nau que rumo às ondas larga,
Cheio de véus soltos ao vento,
Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento.

Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço,
Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço;
A um tempo só triunfante e mansa,
Prossegues teu caminho, majestosa criança.

Eu te quero contar, lânguida feiticeira,
Tudo o que te orna e te faz bela por inteira!
Quero pintar tua beleza,
Na qual a infância se conjuga à madureza.

Teu colo que arfa sob o traje fluido e vário,
Teu colo vitorioso é como um belo armário,
Cujos claros gomos convexos
Como os broqueis capturam rútilos reflexos;

Provocantes broqueis de agudas pontas rosas!
Armários cheios de iguarias tão preciosas:
Vinhos, perfumes e licores
Que o coração e a mente inundam de torpores!

Quando vais, sacudindo no ar a saia larga,
És como a bela nau que rumo às ondas larga,
Cheia de véus soltos ao vento,
Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento.

As nobres pernas, sob os folhos que se amassam,
Os maus desejos atormentam e espicaçam,
Quais duas bruxas que, ao acaso,
Um negro filtro vão mexendo em fundo vaso.

Teus barcos, que aos titãs enfrentam nas porfias,
São sólidos rivais das víboras sombrias,
Feitos para o fatal abraço
E para o amante eternizar em teu regaço.

Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço,
Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço;
A um tempo só triunfante e mansa,
Prossegues teu caminho, majestosa criança.

O irreparável

I

Como abafar este Remorso interminável,
Que vive, se enrosca e se agita,
E se nutre de nós como um verme insaciável,
Qual do carvalho o parasita?
Como abafar este Remorso inexorável?

Em que filtro, em que vinho, em que amarga tisana
Afogar tal praga inimiga,
Gulosa e predatória como uma mundana,
Paciente como uma formiga?
Em que filtro? – em que vinho? – em que amarga tisana?

Ah, dize, ó feiticeira! Dize, se és capaz,
A esta alma que o tormento assola,
Como a de quem, em meio aos que agonizam, jaz
E o casco do cavalo esfola,
Ó bela feiticeira! Ah, dize, se és capaz,

Ao moribundo a quem o lobo já fareja
E a gula do corvo amortalha,
A este soldado que, batido, ainda peleja
Por uma tumba e uma medalha;
O moribundo a quem o lobo já fareja!

Como clarear um céu ao sol indiferente,
Rasga-lhe as trevas em cortejo,
Mais densas do que o breu, sem aurora e sem poente,
Sem astro ou fúnebre lampejo?
Como clarear um céu ao sol indiferente?

A esperança que luz nos vidros da Estalagem
Desfez-se em meio ao torvelinho!
Sem raios nem luar, onde achar-se hospedagem
Aos mártires de um mau caminho?
Satã tudo extinguiu nos vidros da estalagem!

Amável feiticeira, adoras os danados?
Conhece o que nunca é salvo?
Conheces do Remorso os dardos aguçados?
Que o coração nos fazem de alvo?
Amável feiticeira, adora os danados?

O Irreparável rói com a presa maldita
Nossa lama, indigno monumento,
E muita vez ataca, assim côo a térmita,
O prédio por seu fundamento.
O irreparável rói com a presa maldita;

II

– Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal
Que inflamava a orquestra sonora,
Uma fada acender no horizonte infernal
Uma miraculosa aurora;
Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal,

Um Ser feito somente de ouro, gaze e luz
Que o enorme Satã vencera;
Porém meu coração, que êxtase algum seduz,
É como um teatro onde se espera,
Em vão e para sempre, o Ser de asas de luz!

Canto de outono

I

Em breve iremos mergulhar nas trevas frias;
Adeus, radiosa luz das estações ligeiras!
Ouço tombar no pátio em vibrações sombrias
A lenha que ressoa à espera das lareiras.

Em meu ser outra vez se hospedará o inverno:
Ódio, arrepio, horror, labor duro e pesado,
E, como o sol a arder em seu glacial inferno,
Meu coração é um bloco rubro e enregelado.

Tremo ao ouvir tombar cada feixe de lenha;
Não faz eco mais surdo a forca que se alteia.
Minha alma se compara à torre que despenha
Aos pés do aríete incansável que a golpeia.

Parece-me, ao sabor de sons em abandono,
Que alhures um caixão se prega a toda pressa.
Para que? – Ontem era o verão; eis o outono!
Rumor estranho de quem parte e não regressa…

II

Amo em teu longo olhar a luz esverdeada,
Doce amiga, mas hoje amarga-me um pesa,
E nem o teu amor, o lar, a alcova, nada
Vale mais do que o sol raiando sobre o mar.

Mas ama-me assim mesmo e cheia de ternura,
Sê mãe para o perverso, o ingrato em todo caso;
Sê, amante ou irmã, a efêmera doçura
De um outono glorioso ou a de um sol no ocaso.

Breve é a missão! A tumba espera, ávida,à frente!
Ah, deixa-me, a cabeça em teus joelhos pousada,
Degustar, recordando o estio claro e ardente,
Deste fim de estação a suave luz dourada!

Canção da sesta

Embora os cílios traiçoeiros
Te dêem esse ar esquisito,
Decerto a um anjo interdito,
Ó maga de olhos faceiros,

Eu te amo, minha selvagem,
Minha frívola paixão!
Com a mesa devoção
Que ama o padre sua imagem.

O deserto e o arvoredo
Perfumam-te as tranças rudes,
E tens na fronte atitudes
De mistério e de segredo.

Qual turíbulo envolvente,
Teu corpo esparge perfumes;
Da noite o encanto resumes,
Ninfa tenebrosa e ardente.

Não há poção mais bendita
Do que teu ócio, ó delícia,
E conheces a carícia
Que os defuntos ressuscita!

Por teu dorso e por teus seios
Teus quadris morrem de amores
E aos coxins causas rubores
Com teus lânguidos meneios.

Se urge às vezes ser domada
Tua raiva misteriosa,
Tu me cravas, respeitosa,
Além do beijo, a dentada.

Morena, tu me aniquilas
Com teu riso de acre efeito,
E depois banhas-me o peito
No luar de tuas pupilas.

A teus pés de talhe fino,
Pés graciosos de cetim,
Ponho tudo o que há em mim,
O meu gênio e o meu destino.

Por ti minha alma se cura,
Só por ti, que és luz e cor!
Fulguração de calor
Em minha Sibéria escura!

Louvores à minha francisca

Versos compostos para uma modista erudita e devota

Em novas cordas te canto,
Ó corça de álacre encanto
Que se diverte em meu pranto.

Envolve o corpo de flores,
Ó mulher que aos pecadores
Perdoa as culpas e as dores!

Como a um Lestes benfazejo,
À boca te sorvo um beijo,
Pois que és imã do desejo.

Quando da tormenta da orgia
Meus caminhos confundia,
Eis que vieste, Deusa, um dia,

Bendita estrela dos mares,
Nos naufrágios, nos pesares…
A alma elevo a teus altares!

Límpida e fresca nascente,
Fluxo de eterno presente,
Restituiu-me a voz ausente!

O que era impuro queimaste;
O que era áspero alisaste;
O que era frágil firmaste.

Na minha fome, taverna,
Na minha noite, lanterna,
Sempre reta me governa.

À força mais força soma,
Doce banho cujo aroma
Suavíssimo vem à tona!

Cinge-me toda a cintura,
Casta insígnia que fulgura
Em seráfica tintura;

Taça que em gemas faísca,
Salso pão, dádiva prisca,
Divino vinho, Francisca!

A alma do outro mundo

Como os anjos de ruivo olhar,
À tua alcova hei de voltar
E junto a ti, silente vulto,
Deslizarei na sombra oculto;

Dar-te-ei na pele escura e nua
Beijos mais frios do que a lua
E qual serpente em náusea fossa
Te afagarei o quanto possa.

Ao despontar o dia incerto,
O meu lugar verás deserto,
E em tudo o frio há de se pôr.

Como os demais pela virtude,
Em tua vida e juventude
Quero reinar pelo pavor.

Tristezas da lua

Divaga em meio à noite a lua preguiçosa;
Como uma bela, entre coxins e devaneios,
Que afaga com a mão discreta e vaporosa,
Antes de adormecer, o contorno dos seios.

No dorso de cetim das tenras avalanchas,
Morrendo, ela se entrega a longos estertores,
E os olhos vai pousando sobre as níveas manchas
Que no azul desabrocham como estranhas flores.

Se às vezes neste globo, ébria de ócio e prazer,
Deixa ela uma furtiva lágrima escorrer,
Um poeta caridoso, ao sono pouco afeito,

No côncavo das mãos toma essa gota rala,
De irisados reflexos como um grão de opala,
E bem longe do sol a acolhe no seu peito.

Os mochos

Sob os negros teixos que habitam,
Alinham-se os mochos em fila.
Como a dos deuses, a pupila
Lhes arde em fogo. Eles meditam.

E imóveis permanecerão
Até o momento agonizante
Em que, tangendo o sol rasante,
As trevas tudo engolfarão.

Sua atitude aos sábios ensina
Que aqui lhe cabe como sina
Temer o caos e o movimento;

Bêbado de uma sombra fútil,
O homem maldiz o atrevimento
De haver ousado um passo inútil.

A música

A música me arrasta às vezes como o mar!
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;

O peito para frente e os pulmões enfunados
Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;

Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões

No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!

Uma gravura fantástica

Este espectro invulgar tem apenas por traje,
A ornar-lhe a fronte nua qual grotesco ultraje,
Um medonho diadema herdado ao carnaval.
Sem espora ou chicote, ele instiga o animal,
Como ele a um tempo apocalíptico e esquelético,
A espumar pelas ventas como um epiléptico.
Cavalgam ambos rumo às cúpulas do espaço,
Calcando o azul do céu com temerário passo.
O cavaleiro brande um sabre que resplende
Sobre as turbas sem nome que o corcel ofende,
E a sós percorre, como um rei que o lar visite,
O imenso e frio cemitério sem limite,
Onde repousa, à luz de um sol pálido e terno,
Quanto povo existiu, desde o antigo ao moderno.

Tonel do ódio

O Ódio é o tonel das pálidas Denaides frias;
Por mais que da Vingança o braço rubro e forte
Derrame-lhe às entranhas ermas e sombrias
Baldes cheios de sangue e lágrimas da morte,

O Diabo lhe abre furos nunca imaginados,
Que verteriam séculos de esforço e suor,
Mesmo que à vida ela trouxesse os condenados
Para o corpo infligir-lhes castigo maior.

O Ódio é um ébrio perdido ao fundo da taverna,
Que sente sua sede emergir do licor
E ali multiplicar-se qual hidra de Lerna.

– Mas quem bebe feliz verá seu vencedor,
E ao Ódio resta apenas a amarga certeza
De saber que jamais dormirá sob a mesa.

Spleen 1

Pluviôse, contra toda a cidade irritado,
De sua urna verte um frio tenebroso
Sobre os que moram sós no cemitério ao lado,
E entorna a morte no subúrbio nebuloso.

Meu gato em busca de onde estar aconchegado
Agita inquieto o corpo flácido e asqueroso;
A alma de um velho poeta erra pelo telhado,
Com a lúgubre voz de um fantasma brumoso.

O bordão se lamenta, e a tíbia acha de lenha
Acompanha em falsete a pêndula roufenha,
Enquanto num baralho, entre ácidos odores,

Herança de uma velha hidrópica e entrevada,
Um valete e uma dama, em sinistra jogada,
Vão lembrando entre si sues defuntos amores.

Spleen 3

Sou como um rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e outros bichos se entedia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Lestes.

Obsessão

Grandes bosques, de vós, como das catedrais,
Sinto pavor; uivais como órgãos; e em meu peito,
Câmara ardente onde retumbam velhos ais,
De vossos De profundis ouço o eco perfeito.

Te odeio, oceano! Teus espasmos e tumultos,
Em si minha alma os tem; e este sorriso amargo
Do homem vencido, imerso em lágrimas e insultos,
Também os ouço quando o mar gargalha ao largo.

Me agradarias tanto, ó noite, sem estrelas
Cuja linguagem é por todos tão falada!
O que procuro é a escuridão, o nu, o nada!

Mas eis que as trevas afinal são como telas,
Onde, jorrando de meus olhos aos milhares,
Vejo a e olharem mortas faces familiares.

Alquimia da dor

Um te ilumina com ardor,
O outro te enluta, Natura!
O que diz a um: Sepultura!
Ao outro diz: Vida e esplendor!

Hermes que oculto me conquistas
E para sempre me intimidas,
Tu me fazes igual a Midas,
O mais triste dos alquimistas;

Por ti do ouro o ferro improviso
E torno inferno o paraíso;
Roubando às nuvens seu sudário,

Um corpo querido amortalho,
E às margens do celeste estuário
Grandes sarcófagos entalho.

O heauntontimoroumenos

A J.G.F.

Sem cólera te espancarei,
Como o açougueiro abate a rês,
Como Moisés à rocha fez!
De tuas pálpebras farei,

Para o meu Saara inundar,
Correr as águas do tormento.
O meu desejo ébrio de alento
Sobre o teu pranto irá flutuar

Como um navio no mar alto,
E em meu saciado coração
Os teus soluços ressoarão
Como um tambor que toca o assalto!

Não sou acaso um falso acorde
Nessa divina sinfonia,
Graças à voraz Ironia
Que me sacode e que me morde?

Em minha voz ela é quem grita!
E anda em meu sangue envenenado!
Eu sou o espelho amaldiçoado
Onde a megera se olha aflita.

Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz!

Sou um vampiro a me esvair
– Um desses tais abandonados
Ao risco eterno condenados,
E que não podem mais sorrir!

Moesta et errabunda

Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola,
Fugindo ao negro oceano da inunda cidade,
Em busca de outro oceano que jamais se estiola,
Profundo, claro, azul, tal como a virgindade?
Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola?
O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos!

Carrega-me vagão! Batel, leva-me embora!
Bem longe! Aqui do nosso pranto faz-se o lodo!
– Será que de Ágata a alma às vezes não importa:
Para além do remorso, do crime, do engodo,
Carrega-me, vagão, batel, leva-me embora?

Como estás longe, paraíso perfumado,
Onde à tristeza e ao ódio o espírito se nega,
Onde tudo o que se ama faz por ser amado,
Onde à pura volúpia o coração se entrega!
Como estás longe, paraíso perfumado!

E o verde paraíso das frágeis meninas,
As fugas as canções, os beijos que roubamos,
Os violinos vibrando por trás das colinas,
Com cântaros de vinho, à tarde, sob os ramos
– E o verde paraíso das frágeis meninas,

O inocente jardim dos prazeres furtivos,
Já estará mais distante do que a Índia e a China?
Evocá-lo se pode em gritos pungitivos,
Ou talvez animá-lo com voz argentina,
O inocente jardim dos prazeres furtivos?

Soneto de outono

teu olhar me diz, claro como cristal:
“Bizarro amante, o que há em mim que mais te excita?”
– Sê bela e cala! O meu coração, que se irrita,
Por tudo, exceto a antiga candura animal,

Não te quer revelar seu segredo infernal,
Embalo cuja mão a um longo sono incita,
Nem a sua negra lenda a ferro e fogo escrita.
Abomino a paixão e a alma me faz mal!

Amemo-nos em paz. Amor, numa guarida,
Tenebroso, emboscado, entesa o arco fatal.
Conheço-lhe os engenhos do velho arsenal:

Crime, horror e loucura! – Ó branca margarida!
Não serás tu, como eu, triste sol outonal,
Ó minha branca, ó minha branca Margarida?

Os gatos

Os amantes febris e os sábios solitários
Amam de modo igual, na idade da razão,
Os doces e orgulhosos gatos da mansão,
Que como eles têm frio e cismam sedentários.

Amigos da volúpia e devotos da ciência,
Buscam eles o horror da treva e dos mistérios;
Tomara-os Érebo por seus corcéis funéreos,
Se a submissão pudera opor-lhes à insolência.

Sonhando eles assumem a nobre atitude
Da esfinge que no além se funde à infinitude,
Como ao sabor de um sonho que jamais termina;

Os rins em mágicas fagulhas se distendem,
E partículas de ouro, como areia fina,
Suas graves pupilas vagamente acendem.

O cachimbo

Sou o cachimbo de um autor.
Vê-se, ao contemplar me semblante
De cafre ou de abissínia errante,
Que muito fuma meu senhor.

Quando ele está cheio de dor,
Sou como a choça fumegante
Onde a comida aguarda o instante
Em que regressa o lenhador.

Sua alma embalo docemente
Na rede azul e movediça
Que em minha boca o fogo atiça.

E entorno um bálsamo envolvente
Que ao coração lhe trás a calma
E lhe dá cura aos males da alma

Sepultura

Se em lúgubre noite de assombro
Um bom cristão, por caridade,
Sepulta ao pé de um velho escombro
Teu corpo inflado de vaidade,

À hora em que as estrelas graves
Fecham seus olhos sonolentos,
A aranha urdirá suas caves,
Como a serpente seus rebentos;

Ouvirás cada ano que passa
Ecoar no teu crânio em desgraça
O uivo dos lobos carniceiros

E das ferozes bruxas hiantes,
A esbórnia das velhas bacantes
E o vil complô dos trapaceiros.

O morto alegre

Na planície em que o lento caracol vagueia,
Quero eu mesmo cavar um buraco bem fundo,
Onde possam meus ossos repousar na areia,
Como a esqualo a dormir no pélago profundo.

Odeio o testamento e a tumba me nauseia;
Ao invés de implorar uma lágrima ao mundo,
Prefiro em vida dar aos corvos como ceia
Os trapos que me pendem do esqueleto imundo.

Ó vermes! Vós a que não chegam luz ou ruído,
Eis que vos toca um morto alegre e destemido;
Filhos da podridão, demiurgos do artifício,

Vinde pois sem remorso ungir-me os membros tortos,
E dizei-me depois se resta algum suplício
A este corpo sem alma e morto dentre os mortos!

Spleen 2

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
– Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
– Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas os raios do sol a se pôr.

Spleen 4

Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;

Quando a terra se torna um calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
As asas tímidas nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;

Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias,
Imita as grades de um lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,

Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com voz recalcitrante.

– Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Enterra-me no crânio uma bandeira preta.

O gosto do nada

Espírito sombrio, outrora afeito à luta,
A Esperança, que um dia te instigou o ardor,
Não te cavalga mais! Deita-te sem pudor,
Cavalo que tropeça e cujo pé reluta.

Conforma-te, minha alma, ao sono que te enluta.

Espírito alquebrado! Ao velho salteador
Já não seduz o amor, nem tampouco a disputa;
Não mais o som da flauta ou do clarim se escuta!
Prazer, dá trégua a um coração desfeito em dor!

Perdeu a doce primavera o seu odor!

O Tempo dia a dia os ossos me desfruta,
Como a neve que um corpo enrija de torpor;
Contemplo do alto a terra esférica e sem cor,
E nem procuro mais o abrigo de uma gruta.

Vais levar-me, avalanche, em tua queda abrupta?

Horror simpático

– Deste céu bizarro e nevoento,
Convulso como o teu destino,
À tua alma que pensamento
Desce? Responde, libertino.

– Insaciavelmente sedento
Do que não vejo e não defino,
Reprovo a Ovídio o seu lamento
Quando se foi do Éden latino.

Céus destroçados e tristonhos,
De vós o meu orgulho é fruto;
Vossas grossas nuvens de luto

São os esquifes de meus sonhos,
E vosso espectro a imagem traz
Do Inferno que à minha alma praz.

O irremediável

I

Uma Idéia, uma Forma, um Ser
Vindo do azul arremessado
No Estige plúmbeo e enlodaçado
Que o olho do Céu não pode ver;

Um Anjo, viajante imprudente
Que ousou amar o que é disforme
Dentro de um pesadelo enorme
A debater-se na corrente

E a lutar, angústias sombrias!
Contra o refluxo mais feroz,
Que como um louco ruge a sós
E faz na treva acrobacias;

Um prisioneiro do bruxedo
Em suas frívolas manobras
Para evitar répteis e cobras,
Tateando a lâmpada e o segredo;

Um réu a descer sem lanterna,
Rente a um abismo cujo odor
Trai a fundura e o frio horror
De uma oscilante escada eterna,

Onde velam monstros horríveis
Cujos fosfóreos olhos fazem
Mais escura a noite em que jazem
E onde eles só ardem visíveis;

Um barco no pólo insulado,
Como num laço de cristal,
Buscando por que onda fatal
Foi neste cárcere atirado;

– Claros emblemas, traços reais
De uma fortuna atroz e vã,
Como a dizer-nos que Satã
Faz sempre bem tudo o que faz!

II

Conversa a dois, clara e sombria,
Espelho que a alma em si procura!
Fonte do Ser, límpida e impura,
Onde pulsa uma estrela fria,

Farol irônico, infernal,
Archote aceso a Satanás,
Consolo e glórias sem iguais
– A consciência dentro do Mal!

Paisagem

Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me junto ao céu, à moda dos astrólogos,
E, vizinho do sino, escutar cismarento,
Os seus hinos marciais, levados pelo vento.
As mãos postas no queixo, eu do alto da mansarda,
Hei de ver a oficina a cantar na hora parda;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
Grandes céus a fazer sonhar a eternidade.

É sempre doce ver que à tarde a bruma vela
A estrela pelo azul e a lâmpada à janela,
Os rios de carvão irem ao firmamento,
Como a Lua, verter seu frouxo encantamento.
Eu hei de ver a primavera, o outono e o estio;
E quando o inverno vier, monótono em seu frio,
Por tudo fecharei cortinas e portões
Para construir na noite as feéricas mansões.

Sonharei com o poente azul e com seus astros,
Repuxos no jardim chorando entre alabastros,
Beijos como canções desde a manhã à tarde,
Tudo o que de infantil o Idílio ainda guarde.
O Alvoroço lá fora em tempestade cresça
Mas eu nunca erguerei da carteira a cabeça;
Mergulhado serei nesta sensualidade
Do mês de abril chamar só com minha vontade,
De um sol todo extrair de minha alma, que espera
Mudar meu peito ardente em tépida atmosfera.

A mendiga ruiva

Ruiva e branca a aparecer,
Cuja roupa deixar ver
Por seus rasgões a pobreza
Como a beleza,

A mim, poeta sofredor,
Teu corpo de um mal sem cura
Todo manchas de rubor,
Só tem doçura.

E calças (muito mais bela
Que a Rainha da Novela
Com os seus coturnos brancos)
Os teus tamancos.

Em vez de molambos, mal
Não te iria a roupa real,
Cegando as ondulações
Até os talões;

Em vez de meia de crivos,
Para os olhos dos lascivos
Um punhal na perna linda
Brilhasse ainda;

E laços mal apertados
Mostrem aos nossos pecados
Os teus seios a brilhar
Como um olhar;

Para seres desnudada
Tu te faças de rogada.
Possam expulsar teus braços
Dedos devassos;

Pérolas formosas, ou
Poema do mestre Belleau
Que os galantes na prisão
Sempre te dão,

A chusma dos rimadores
Dedicando-te primores,
Contemplando-te o escarpim
No varandim,

Muito pagem a sonhar
E muito senhor Ronsard
Olhariam com sigilo
Teu fresco asilo!

No leito dos teus delírios
Terás mais beijos que lírios
Tua lei dominará
Mais de um Valois!

Porém segue a tua lida,
Só por sobras de comida
Jogadas por distanciadas
Encruzilhadas;

E só quer teu sonho louco
Jóias que valem bem pouco
Que eu nem posso, ó Deus clemente,
Dar de presente.

Nada te orna neste instante,
Perfume, rubim, diamante,
Só tua nua magreza!
Minha beleza!

Os sete velhos

A Vitor Hugo

Cidade formigante, e que ao sonho se aviva,
Em que o fantasma ao sol nos agarra o pescoço!
O mistério por tudo é seiva que deriva
Nos estreitos canais do poente colosso.

No entanto, uma manhã em que na rua feia
As casa, a que a névoa emprestava brancor,
Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,
E em que, decoração como a da alma do ator,

Suja e amarela bruma enchia todo o espaço,
Eu ia, os nervos meus com heróicas tensões,
E discutindo com meu espírito lasso,
Pela viela a vibrar dos graves carroções.

De repente um ancião cujas pobres sacolas
Imitavam a cor de um céu a tempestear,
A cujo aspecto só choveriam esmolas,
Se não fosse o rancor que ardia em seu olhar,

Surgiu tendo no fel suas pupilas molhadas;
Enquanto aguça a neve, a das noites mais rudas,
A sua barba imensa, esquia como espadas,
Projetava-se assim como a barba de Judas.

Não era curvo mas alquebrado, a sua espinha
Dava com sua perna exato ângulo reto,
Tanto que seu bastão, que o seu cariz sublinha,
Ia-lhe dando o ar, como o passo incorreto,

De um mórbido muar, de um judeu de três patas.
Metias os membros seus na nevada e no lodo,
Como quem está a pisar mortos com as sapatas,
Lançando ao universo o arreganho do apôdo.

Vinha outro: barba, olhar, costas, bastão, molambos,
Eram em tudo iguais, do mesmo inferno oriundos,
Centenários os dois, visões barrocas ambos,
Iam com passo igual a misteriosos mundos.

Tinha eu diante do olhar um enredo poluto,
Ou era a humilhação de um acaso perverso?
Sete vezes contei, de minuto em minuto,
A multiplicação e velho tão diverso.

Aquele que se ri dessa minha inquietude,
Que não se vê prender de um frêmito fraterno,
Pense bem que, apesar desta decrepitude,
Estes monstros fatais tinham um ar eterno!

Teria posto o olhar num oitavo avantesma,
Sem morrer, a este sósia, irônico e fatal,
Fênix tremenda, mãe e filha de si mesma?
– Mas as costas voltei ao cortejo infernal.

Bêbado que vê dois, assim exasperado,
Voltei, fechei a porta e de susto transido,
Frio e enfermo, febril o espírito turbado,
Pelo mistério e pelo absurdo malferido!

Minha razão embalde ansiou suster-se à barra;
A borrasca anulou meu empeno ao jogar,
E minha alma dançava assim como gabarra
Sem mastros, por monstruoso e por infindo mar.

Os cegos

Contemplai-os minha alma; eis que são pavorosos!
São como manequins, vagamente risíveis;
E sonâmbulos são, singulares, terríveis;
E quem sabe aonde vão seus globos tenebrosos?

Seus olhos, donde a chama eterna é partida,
Como se olhassem longe estão no firmamento;
E não se vê jamais, por sobre o pavimento,
Inclinar vagamente a fronte sucumbida.

Atravessam assim a infinda escuridade,
Esta irmã do silencio imutável, cidade!
Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto

Que é tão atroz que chega a perder-se no orgasmo,
Vê que eu erro também e mais do que eles pasmo,
Digo: “O que pelos céus eles procuram tanto?”

O esqueleto lavrador

I

E nas pranchas de anatomia
Que estão na poeira destes cais
Em que muitos livros ferais
Dormem feito múmia sombria,

Ilustrações a que a firmeza,
Como o saber de um velho artista,
Para um assunto que contrista,
Comunicaram a Beleza,

Vê-se, o que torna mais completos
Estes misteriosos horrores,
Cavando como lavradores
A multidão dos esqueletos.

II

Dessas terras por vós cavadas,
Calmos e fúnebres aldeões,
Do esforço de vossos pulmões,
De vossas carnes escorchadas,

Dizei-me, que messe fatal,
Forçados soltos do carneiro,
Vós tirais, e de que granjeiro
Deveis ir enchendo o casal?

Quereis (de um destino bem duro
Espantoso e lúcido emblema!)
Mostrar que nem na tumba extrema
O sono pode ser seguro;

Que o Nada nos será traição;
Que tudo, até a Morte, nos mente.
Tanto que sempre eternamente,
Teremos a condenação

De, por uma ignorada angra,
Esfolar uma terra irada
Enquanto se impele uma enxada
Sob nosso pé nu e que sangra?

O jogo

Nos fanados divãs das cortesãs mais velhas,
Pintada a sobrancelha, o olhar langue e fatal,
Num esgar, a fazer das pálidas orelhas
Tombar um retinir de pedra e de metal;

Sobre um verde tapiz, muitos rostos sem boca,
Como bocas sem cor, e maxilas sem dente,
Dedos em convulsão pela febre mais louca,
Sondando o bolso roto ou o seio fremente;

Sob os estuques vis, fila de frouxos lustres,
De candeeiros de mal projetados fulgores
Sobre as frontes letais dos poetas mais ilustres
Quem vêm desperdiçar os seus sangrentos suores;

Eis o negro painel que num sonho noturno
Vi desdobrar-se ao meu olhar claro e curioso.
Eu mesmo, num desvão do covil taciturno,
Encostei-me a tremer, o mais mudo e invejoso;

Desta gente invejava a paixão tão tenace,
Destas putas senis o prazer de tristeza
Galhardos, traficando à minha pobre face,
Um o antigo pudor, outra a sua beleza!

Eu pasmei de invejar tanta pobre criatura,
Correndo ao hiante abismo, e de alma alucinada,
Que tem no próprio sangue a embriaguez que procura
E que prefere a dor à morte e o inferno ao nada.

O amor da mentira

Se te vejo passar, minha cara indolente,
Ao canto de instrumentos, partido no teto,
Como donaire a fulgir, lenta e harmoniosamente,
O tédio a navegar no teu olhar inquieto;

E se eu contemplo, à luz do gás e que a colora,
Pálida fronte a arder de mórbido aparato,
Em que as tochas da tarde acendem uma aurora,
E estes olhos que atraem, como os de algum retrato,

Eu me digo: Que beleza! E que fresco vestido!
A saudade maciça – um halo de esplendor –
Coroa-a; e o coração, um pêssego ferido,
E o corpo amadurecem para o sábio amor.

És o fruto outonal de sabor soberano?
És o lacrimatório à espera de algum pranto,
Perfume de sonhar num oásis arcano,
Ramalhete de flor ou caricioso manto?

E de olhares eu sei de tristezas iníquas,
Que nada deixam ver por detrás de seus véus;
Escrínios a mofar, medalhões sem relíquias,
Mais ocos, a afundar muito mais do que os céus!

Mas não te basta ser só ilusão imensa
Para num falso coração ter tua presa?
Que importa o que há em ti, de tola indiferença?
A máscara que importa? Amo a tua beleza!

À moça de servir…

À moça de servir de que tinhas ciúme
E que dorme seu sono em campa sem perfume,
Deveremos levar-lhe algum buquê de flores .
Todo morto é infeliz, estremece de dores,
E quando outubro sopra, a podar velhas árvores,
Seu vento de tristeza em torno de seus mármores,
Devem certo julgar os vivos tão perversos
Por dormirem assim, sob lençóis imersos,
Enquanto, a ruminar devaneio fatal,
Sem amena palestra e sem formar casal,
Roídos pelo verme, esqueletos glaciais,
Sentem que vão morrer as neves hibernais
E os séculos sem que amigos ou parentes,
Troquem os farrapões pelas grades pendentes.
Quando a lenha assobia e canta, se, ao luar,
Imota em seu divã, punha-se a repousar,
E se, por noite azul e fria de dezembro,
Via-a a um canto do quarto (agora eu bem me lembro!)
Grave e vinda do fundo de seu leito eterno
Ninar a quem cresceu com seu olhar materno,
Que iria responder a esta alma assim tão pia,
Toda pranto a rolar da pálpebra vazia?

Sonho parisiense

A Constantin Guy

E desta terrível paisagem,
E que jamais mortal olhou,
Esta manhã ainda a imagem
Vaga e longe, me arrebatou.

O sono é de milagres pleno!
Por um capricho singular,
Tinha eu banido do terreno
O vegetal irregular,

Pintor de genial fantasia,
Sentia em meu quarto sem preço
A embriagante monotonia
Da água, do metal e do gesso.

Babel que é toda colunatas,
Era um palácio indefinido,
De piscinas e de cascatas
Sobre o ouro fosco e o ouro brunido;

Depois as cataratas densas,
Como cortinas de cristal,
Eram fascinações suspensas
Pelas muralhas de metal.

Havia mais: colunas frescas
Que os tanques quietos circundavam;
Alvas náiades gigantescas
Como mulheres, se miravam.

Ia a água em azuis borbotões
Entre verdes e róseos cais,
E por léguas que eram milhões
Para os confins do nunca mais;

Eram pedras insuspeitadas,
Mágicos vagalhões perplexos;
Imensas neves fascinadas
Pelo que tinham de reflexos!

Indiferentes, taciturnas,
Pelo firmamento dos Ganges,
Vertiam suas áureas urnas
No abismo de rubins e alfanjes.

Arquiteto de fantasias,
Ia fazendo a meu bom grado,
Sob um túnel de pedrarias,
Passar um oceano domado;

E tudo: a cor mais merencória,
Era polido, alvo, irisado;
O líquido engastava a glória
Só num raio cristalizado.

Nem astro havia e nem vestígios
Do sol, certo nenhum fanal,
Para clarear estes pródigos
Brilhando de um fogo pessoal!

Ó maravilha dos sentidos!
Planava sobre a novidade
(Tudo ao olhar, nada aos ouvidos!)
Um silêncio de eternidade.

Reabrindo os meus olhos sem calma,
Eu vi o horror de meu tugúrio,
E senti, entrando em minha alma,
A ponta de um maldito augúrio;

A pêndula – ferais acentos –
Batia atroz o meio dia,
E o céu era treva e lamentos
E o universo se entorpecia.

O sol

Pois ao longo da viela em que, pelas mansardas,
Persianas fazem véu às luxúrias bastardas,
Quando o sol reverbera, imponente e inimigo,
Sobre a cidade e o campo e sobre o teto e o trigo,
Eu ponho-me a treinar em minha estranha esgrima,
Farejando por tudo os acasos da rima,
Numa frase a tombar como diante de obstáculos,
Ou topando algum verso há muito em nossos cálculos.

Este pai nutritivo, a odiar sempre o que enferme,
Pelos campos desperta a rosa como o verme;
Faz as mágoas voar de que as almas são cheias,
Enchendo o pensamento ao encher as colméias.
Ele é quem dá o alento aos que vêm de muletas,
Dando-lhes um frescor de jóias ou violetas,
Para ordenar depois que amadureça a messe
No coração eterno, o que sempre floresce!

E quando vai à rua, à maneira de um poeta,
Ele sabe aureolar a coisa mais abjeta.
Sozinho e sem rumor, como um rei se introduz
Nos hospitais da mágoa e nas mansões da luz!

O cisne

A Vitor Hugo

I

Andrômaca, só penso em ti! O curso de água,
Espelho pobre e triste onde já resplendeu,
De teu rosto de viúva a majestosa mágoa,
O Simoente falaz que ao teu pranto cresceu,

Agora fecundou minha fértil saudade,
Como eu atravessasse o novo Carrossel.
Morto é o velho Paris (a forma da cidade
Muda bem mais que o coração de uma infiel);

Só em pensamento vejo os campos de barracas,
Os fustes aos montões, as cornijas rachadas,
Os muros de um verniz verde, as ervas opacas,
O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas.

No outro tempo existiu neste ponto um aviário;
Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão
Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário
Manda ao ar silencioso obscuro furacão,

Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas
Dos seus pés atritando o pavimento iníquo,
Arrastava no chão as grandes plumas claras.
Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico,

Suas asas banhou na poeira, num desmaio,
E dizia a sonhar com seu lago natal:
“Água, não choverás?” Não trovejarás,
raio?”
Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal,

Às vezes para o céu, como um homem ovidiano,
Para o céu de um azul cruel e tão irônico,
Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano,
Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico!

II

Paris mudou! Porem minha melancolia
É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos,
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,
Minhas lembranças são mais pesadas que socos.

Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz,
Exilado que ele é, ridículo e sublime,
Roído de um desejo infindo! Como em vós

Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo,
Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno,
Junto a tumba vazia, em langor doloroso
Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno!

Vou pensando na negra a fanar cor de terra:
Busca de pés na lama e de olhar tão bravio
Ausentes coqueirais que sua África encerra
Atrás do muro imenso, o da bruma e do frio;

Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba
Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor,
Onde soem mamar, como de boa loba,
Nos órfãos a mirrar mais secos de que a flor!

E na floresta, que meu pobre corpo trilha,
Soa como buzina uma velha lembrança.
Penso no marinheiro esquecido numa ilha…
Nos vencidos de sempre e nos sem esperança!

As velhinhas

A Vitor Hugo

I

Nos obscuros desvãos das velhas capitais,
Em que tudo, até o horror, tem ares encantados,
Eu observo, obediente a meus sestros fatais,
Seres de exceção, decrépitos e amados.

Estes monstros tiveram um dia beleza,
Eponina ou Laís! Monstros tão retorcidos,
Amemo-los enfim! São almas com certeza.
Sob a anágua rasgada, e os frígidos tecidos,

Rojam-se ao flagelar das brisas mais iníquas,
Fremindo ao estridor de ônibus rugidores,
E apertando ao seu flanco, assim como relíquias,
Um bordado surrão, todo enigma e flores;

Como fantoches vão fazendo piruetas;
Vão se arrastando como os animais feridos,
Ou dançam, sem querer dançar, pobres sinetas
Em que um Diabo se enforca! E por muito partidos,

Que sejam, seu olhar é agudo como goiva,
Fulgura como uma água e de noite na poça;
Tem o divino olhar da menina ou da noiva
Que a todo brilho tem um riso que a alvoroça.

Nunca pudeste ver que esquife de velhinha
É pequeno tal qual os das mortas na infância?
As mortes nestas ecas irmãs advinha
Um símbolo fatal de graça e extravagância,

E quando eu entrevejo algum fantasma débil,
A atravessar Paris fervilhando de povo,
Sempre tenho a impressão de que este ser tão flébil
Caminha docemente e para um berço novo;

A menos que, posto a pensar na geometria,
Eu imagine ao ver estas velhas tão ralas,
Quantas vezes enfim o artífice varia
A forma do caixão que terá que encerrá-las.

– Estes olhos são poço a transbordar de pranto,
São crisóis que um metal que se esfriou enfeita…
São mistério, a esplender de invencível encanto,
Àquele que o Infortúnio austero sempre aleita!

De Frascati defunto a Vestal namorada;
Sacerdotisa e atriz… e de que o apontador
Somente sabe o nome, ó doce evaporada,
A que Tívoli outrora deu sombra de flor.

Todas me ebriam mas entre as que são mirradas,
Hás as que, ao transformar em mel a dor e a morte,
Dizem à própria dor que sempre as fez aladas:
“Possas levar-me ao céu, hipogrifo tão forte.”

Uma que, amando a pátria, a desgraçada inválida,
Outra, que seu esposo amargou tanto e tanto,
Outra, que por seu filho é a Madona ferida,
Poderiam fazer um rio com seu pranto.

II

Ah, que eu sempre segui as minúsculas velhas!
Ao poente um outra vi, à hora em que o sol se esquiva,
Ensangüentado o céu de feridas vermelhas,
Sentando-se num banco, e só e pensativa,

Para o concerto ouvir, tão rico de metal,
Dos soldados que assim enchem as solidões,
E que na tarde azul tornando a alma imortal
Vertem qualquer heroísmo em nossos corações.

Outra, orgulhosa ainda e sentindo o compasso,
Hauria avidamente este guerreiro coro;
Tinha um olhar igual ao de uma águia, e tão lasso,
Tinha a fronte marmórea e feita para louro!

III

Assim ides a andar, sem queixumes, estóicas,
Pelo terrível caos destes aglomerados.
Mães feridas, que sois levianas ou heróicas,
Cujos nomes outrora eram sempre citados.

Vós que fostes a glória ou que fostes a graça,
Ninguém vos reconhece! Um bêbado incivil
Vos insulta ao passar de um amor que é chalaça;
Roja-se aos vossos pés o menino mais vil.

Tendes pudor de ser, sombras encarquilhadas,
Tímidas, a vergar, ides costeando os muros;
E ninguém vos saúda; a que sois destinadas?
Restos de humanidade e para o céu maduros!

Meu olhar que, de longe, a acompanhar-vos vai,
Inquieto e fixo em vossos passos tão mofinos,
Tal qual se – maravilha! – eu fosse o vosso pai,
Prova, embora o ignoreis, prazeres clandestinos:

Vejo-vos a paixão, logo no seu início;
Vosso passado eu vivo, ou idílico ou rude;
Múltiplo o coração, frui todo o vosso vício,
Tendo na alma a fulgir toda a vossa virtude!

Ruínas! Minha família! Ó velhas solitárias!
Eu vos dou cada tarde o mais solene adeus!
Onde amanhã sereis, Evas octogenárias,
Sobre quem pesa a garra espantosa de Deus?

O crepúsculo da tarde

É doce o anoitecer, que é amigo do réu;
Como um cúmplice vem, tão veludoso; o céu
Fecha-se lentamente – ele é uma alcova enorme
E muda o homem inquieto em fera que não dorme.

Desejam-te por certo, ó suave anoitecer,
Estes que sem mentir hão de poder dizer:
Nós trabalhamos hoje! É a tarde que alivia
As almas que devora uma atroz agonia,
O sábio mais tenaz, pesada a fronte em chama,
O cansado artesão que volta à sua cama.

E demônios malsãos, nestes pardos instantes,
Acordam gravemente , como os negociantes,
E movem ao voar o postigo ou a porta.
Através dos clarões que a ventania entorta,
O deboche na rua acende lume infame,
E como um formigueiro encontra o seu forame.

Vai forçando por tudo uma escondida estrada,
Tal como um inimigo a tentar a emboscada;
Move-se pelo bairro, o que o lodo consome,
E como um verme rouba ao homem o que come.
Ouve-se em cada canto a cozinha assobiar,
O teatro estremecer, a orquestra ressonar;
Nas mesas dos cafés, sonoras de remoques,
Vão conversando as cortesãs com os escroques,

Os ladrões que mercê nem trégua alguma têm
Vão logo principiar seu trabalho também,
Docemente forças caixas fortes de bancos,
Para vestir a amante e dormir pelos bancos.

Fecha-te, coração, neste grave momento.
E os meus ouvidos cerra a este horrível lamento
Que vem dos hospitais quando as dores culminam!
Os enfermos a noite estrangula; terminam
O seu destino e vão para o abismo comum;
Vão enchendo o hospital de suspiros. Mais de um
Não virá mais buscar a sopa perfumada,
Junto ao fogão, à tarde, ao pé de uma alma amada.

Deles, a maior parte jamais conheceu,
A doçura do lar, como jamais viveu.

Dança macabra

A Ernest Christophe

Emproada como viva, orgulhosa a estatura,
Com seu grande buquê, mais as luvas e o lenço,
Possui a languidez como a desenvoltura
De uma coquete magra e de ar de sonho imenso.

Viu-se um dia num baile um porte assim delgado?
O vestido abundante e de real esplendor
Tão excessivo rui sobre um pé apertado
Por escarpim galante e lindo como flor.

Estes fofos que tem aos bordos das clavículas,
Como um lascivo arroio a ir de encontro ao rochedo,
Vedam pudicamente, e das vistas ridículas,
O fúnebre fulgor que ela guarda em segredo.

Tem o vazio e a treva a morar na pupila,
E seu crânio, de flor sabiamente toucado,
Sobre as vértebras tão molemente vacila,
– Ó fascínio do nada em loucura ataviado!

Alguns te fitarão como a caricatura.
Nunca há de compreender amante material,
O garbo singular desta humana armadura.
Tu, meu grande esqueleto, és meu único ideal.

Vens agora turbar, com feição zombeteira,
A festa desta Vida? Algo em ti deve arder
Para esporear assim tua viva caveira,
Levando-a ingenuamente ao sabá do Prazer?

Ao canto do violino, às candeias tão frias,
Esperas expulsar teu pesadelo então?
Para após suplicar à torrente de orgias
Que este inferno refresque a arder no coração?

Inesgotável poço e de culpa e defeito!
Da sempiterna dor eternal alambique!
As costelas, que são as grades de teu peito,
O insaciável réptil deixam que eu verifique.

Vivo sempre a temer que os teus airados ares
Não encontrem jamais um preço ao seu valor;
Que coração mortal te entende se zombares?
Só embriagam quem é forte os encantos do horror!

– Do fundo deste olhar, cheio de horríveis vôos,
Nasce a vertigem: e os dançarinos prudentes
Nunca irão contemplar, sem amargos enjôos,
O sorriso eternal dos seus trinta e dois dentes.

Mas quem nunca abraçou um esqueleto, em suma,
E quem não se nutriu de ares de campo santo?
O que importa o que veste, orna, pinta ou perfuma?
Como posso pensar que te olhem com espanto?

Cortesã sem nariz, baiadeira patética,
Dizes a estes que a dançar te miram ofuscados:
– “Casquilhos, apesar de toda a arte cosmética
Cheirais a Morte, ó Esqueletos perfumados!

Mirrados Antinoés, dândis de face glabra,
Defuntos de verniz, D. Joãos encanecidos,
O abalo universal desta dança macabra
Vos atrai a outros sóis sempre desconhecidos!

Do cais frio do Sena ao do Ganges inquieto,
Salta e desmaia agora o rebanho mortal
Ignorando a trombeta do anjo que, do teto,
Soa, sinistra e aberta, um trabuco fatal.

E sob todos os céus sempre a Morte te admira
Em tuas contorções, atroz humanidade,
E às vezes como tu, perfumada de mirra,
Sua ironia junta à tua insanidade”.

Sempre hei de recordar…

Sempre hei de recordar, da cidade vizinha,
Pequena mas tranqüila, a nossa lava casinha;
A Pomona de gesso e a tão antiga Vênus
Escondendo num bosque os seus membros pequenos;
E o sol da tarde, pleno de soberba fria,
Que, atrás do vidro em que seu feixe se partia,
Parecia, olho aberto para um céu curioso,
Contemplar-nos a ceia, longo e silencioso,
Abrindo longamente as sua luz que traja
Nossa toalha frugal e as cortinas de sarja.

Brumas e chuvas

Ó inverno, ó fim de outono, ó primavera em lama,
Dormidas estações! A minha alma vos ama
Por cobrirdes-me assim cérebro e coração
De sudário brumal, de tumba e de ilusão.

Nesta grande planura em que o Astro se derrama,
Noite em que o cata-vento é uma voz rouca r brama,
A minha alma, melhor que na morna estação,
Suas asas de corvo abrirá na amplidão.

Por certo ao coração, todo coisas esquálidas,
Sobre quem desce há muito o frio das nevadas,
Rainhas da atmosfera, ó estações descoradas,

Nada é mais doce que as vossas trevas tão pálidas,
Se a dois e dois por noite, após um triste ocaso,
Dormimos nossa dor por um leito de acaso.

O crepúsculo da manhã

Cantava a Diana pelos pátios das casernas,
E o vento matinal assoprava as lanternas.
Era a hora em que o caudal dos sonhos repelentes
Retorcia na cama alvos adolescentes;
Como um olho a sangrar, que vibra e se desmancha,
Uma lâmpada ao sol era vermelha mancha;
E a alma grave do corpo imitava a porfia
Da luta que travava a lâmpada com o dia.
Como um rosto a chorar e que à brisa se enxuga,
Havia o tremor no ar dos objetos na fuga,
Lasso era o homem de ler como a mulher de amar.

As mansardas além pareciam fumar.
As mulheres do amor com seu olhar febril
Dormiam a roncar o seu sono imbecil;
As pobres, arrastando os seios frios, magros,
Sopravam seus tições e seus dedos amargos.
Era a hora em que, no frio e miserável quarto,
Se acrescentava a dor das mulheres no parto;
Um soluço cortado e por sangue espumoso,
Cantava o galo ao longe, a ferir o ar brumoso;
A névoa – um vasto mar – banhava os edifícios
E os homens, a morrer no fundo dos hospícios,
Davam seu estertor, mas em soluços falhos;
Voltavam os rufiões, roídos de trabalhos.

A aurora, tiritando em seu vestido aberto,
Ia lenta a avançar sobre o Sena deserto,
E os olhos esfregando, o sombrio Paris
Apanha a ferramenta, operário feliz.

O vinho do assassino

Livre! Minha mulher é morta!
Bebo o que o cálice contém.
Quando eu voltava sem vintém,
Gritava só der ver-me à porta.

Tenho de um rei todo o esplendor;
O ar é puro, o céu admirável…
Tínhamos verão tão amável
Quando eu caí morto de amor!

A sede atroz que me faz louco
Quem a pudera amortecer?
Só o vinho que pode caber
Na sua tumba e não é pouco;

E joguei-a de um poço ao fundo,
Joguei mesmo em seguida a corda
Como os calhaus de sua borda.
– Há de esquecer-se dela o mundo!

Por nossas juras de alegria,
(E não juramos nunca em vão!)
Para nossa conciliação
Como aos tempos de nossa orgia,

Implorei dela uma entrevista
À tarde numa estrada escura,
E veio a aluada criatura!
(Todo o mundo é louco ou artista).

Ainda ela era a mais garrida,
Embora bem fatigada! E
Eu ainda a amava; eis por que
Lhe disse: parte desta vida!

Quem me compreenderá? Um somente,
Do mundo da embriagues, mesquinho,
Pensará, nas noites de doente,
Fazer um sudário do vinho?

Este crápula tão traiçoeiro
Mas do que as máquinas do inferno,
Jamais, em verão ou inverno,
Conheceu o amor verdadeiro,

Com os seus negros alvoroços,
Seu cortejo infernal de espantos,
Seus frascos de veneno e os prantos
De seus ruídos de cadeia e de ossos!

Eis-me liberto e satisfeito!
Irei beber muito esta tarde;
Depois, sem medo e sem alrde,
Farei deste solo o meu leito,

E dormirei bem como um cão!
Um carros de rodas pesadas
Cheio de pedras das calçadas
Um enraivecido vagão,

Partir-me-ão a fronte que odeia
– Um prêmio dos delitos meu –
Mas zombo de tudo, de Deus,
De Satanás, da Santa Ceia!

O vinho dos trapeiros

Muita vez ao rubor de um revérbero e a um vento,
Que à chama sempre é um golpe e o cristal um tormento,
Bem num velho arrabalde, amargo labirinto
De humanidade a arder em fermentos de instinto,

Há o trapeiro que vem movendo a fronte inquieta,
Nos muros a apoiar-se e como faz um poeta,
E sem se incomodar com os guardas descuidosos,
Abre o seu coração em projetos gloriosos.

Ei-lo posto a jurar, ditando lei sublime,
Exaltando a virtude, abominado o crime,
E sob o firmamento – um pálio de esplendor –
Embriagar-se à luz de seu próprio valor.

Estes, que a vida em casa enche de desenganos,
Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos,
Derreados sob montões de detritos hostis,
Confuso material que vomita Paria,

Voltam, cheios de odor de pipas e barrancos,
E seguem-nos os que a vida tornou tão brancos,
Bigodes a tombar como velhos pendões;
Os arcos triunfais, as flores, os clarões

Se erguem diante do olhar, ó solene magia!
E na ensurdecedora e luminosa orgia
Do clarim e do sol, do grito e do tambor,
Eles trazem a glória ao povo ébrio de amor!

E assim é que através desse terrestre solo,
O vinho é ouro a rolar, fascinante Pactolo;
Pela garganta humana ele canta os seus feitos
E reina por seus dons como os reis mais perfeitos.

E para o ódio afogar e embalar o ócio imenso
Desta velhice atroz que assim morre em silêncio ,
Gerou o sono, Deus, de remorso tocado;
O homem o vinho criou, filho do sol sagrado

O vinho do solitário

O olhar tão singular de um mulher galante
Que para nós desliza à feição de alvo raio
Que a Lua ondeando envia ao lago num desmaio,
Quando ela vem banhar a beleza hesitante;

A última ficha às mãos do último jogador,
Um beijo libertino da magra Adelina,
Os sons de uma canção enervante de fina,
Como o grito a morrer de desumana dor,

Isto não valerá, ó garrafa profunda,
Os bálsamos de amor que na pança fecunda
Guardas ao coração dos pobre poetas teus!

Tu lhe dás esperança e vida e mocidade;
– E o orgulho, este tesouro da mendicidade,
Que nos torna triunfais, semelhantes a Deus!

A destruição

Sem cessar, ao meu lado, o Demônio arde em vão;
Nada em torno de mim como um ar vaporoso;
Eu degluto-o e sinto-o, a queimar-me o pulmão,
Enchendo-o de um desejo eterno e criminoso.

Toma, ao saber o meu amor à fantasia,
A forma da mulher, que eu mais espere e ame,
E tendo sempre um ar de pura hipocrisia,
Acostuma-me a boca a haurir um filtro infame.

Longe do olhar de Deus ele conduz-me assim,
Quebrado de fadiga e numa ânsia sem fim,
Às planícies do tédio, infinitas, desertas,

E atira aos olhos meus, cheios de confusão,
Ascorosos rasgões e feridas abertas,
E os aparelhos a sangrar da Destruição!

Mulheres malditas

Como um gato pensante e na areia deitadas,
Voltam os olhos seus ao mais longe do mar,
E seus próximos pés e suas mãos coladas
Têm langor de sorrir e tremor de chorar.

Umas, o coração cheio de confidência,
Num bosque em que a cantar os ribeiros se movem,
Vão soletrando o Amor da ingênua adolescência,
O ramo a descascar de algum arbusto jovem;

Outras, são como irmãs, andam lentas e flavas
Das rochas através, plenas de aparições,
Onde viu Santo Antônio arderem como lavas
Os rubros seios nus de suas tentações;

Outras há, que ao fulgor da líquida resina,
No silêncio abissal de velho antro pagão,
Chamam para aliviar a febre que alucina
Baco, o deus que adormece o remorso e a ilusão!

E outras, cuja garganta ama os escapulários,
Sabem em sua roupa um chicote esconder,
E misturam na noite, em bosques solitários,
As lágrimas da dor e a espuma do prazer.

Ó monstros do martírio, ó sombras virginais!
Almas a desprezar a pobre realidade,
Com sexo e devoção, o infinito buscais,
Estrangulada a voz de lamento e saudade,

Que na cripta infernal tanto buscou minha alma,
Pobres irmãs a um tempo eu vos amo e respeito
Por vossa sede em vão e por vossa dor calma,
E estas urnas de amor que vos enchem o peito.

Beatriz

Em terrenos de cinza e cal e sem beleza,
Como eu chorasse um dia à triste natureza,
E tivesse a cabeça a errar de incerto mal,
Lentamente aguçava em meu peito um punhal.
Ao meio-dia eu vi tombar-me na cabeça
Nuvem de tempestade a mais funérea e espessa,
Que trazia um tropel de demônios viciosos
Recordando os anões irados e curiosos.
Puseram-se depois frios a me fitar
Pedestres que se põem algum louco a admirar.
Via-os murmurar e rir cada vez mais
Os olhos a piscar e trocando sinais:

– “Olhemos devagar esta criatura
Sombra que quer de Hamleto imitar a postura,
Os cabelos ao vento, o olhar de indecisão,
Faz sempre pena ver esse alegre histrião,
Esta figura de patife e de indigente,
E que de seu papel se incumbe sabiamente
Que sabe interessar no seu canto de dores
Águias e ribeirões, grilos, sombras e flores,
E mesmo a mim, autor desta velha canção,
Recitando a rugir seu público pregão!”
Poderia(Ah! Este orgulho é mais alto que os sonhos,
A alta nuvem domina e o grito dos demônios)
Desviar tão simplesmente a lava fronte serena,
Se eu não notasse enfim em meio à turba obscena,
Crime que não moveu no firmamento o sol,
O meu profundo amor, o de olhar de arrebol
Com eles a se rir de minha mágoa funda,
Dando-lhes o prazer de uma carícia imunda.

Uma mártir

Desenho de um mestre desconhecido

Entre frascos sutis, estofos laminados
E móveis os mais voluptuosos,
Estatuetas, painéis, vestidos perfumados,
Dobrando-se até o chão, suntuosos,

E por um quarto onde, como em estufa, o ar
É o mais perigoso e fatal
Em que os buquês morrentes são, a agonizar,
No seu sepulcro de cristal,

Cadáver sem cabeça expande onda tristonha
Sobre o travesseiro encharcado
De sangue rubro e vivo e em que se nutre a fronha
Com a mesma avidez do prado.

Como as vagas visões e que a sombra procria,
Que aos olhos são rígida algema,
A cabeça e os anéis da madeixa sombria
E o que tem de preciosa gema,

Sobre o criado mudo estão como um ramúsculo,
E vazio de pensamentos,
Um olhar vago e branco, assim como um crepúsculo,
Escapa dos seus olhos cruentos.

No leito, o tronco nu ostenta sem pudor
E no mais completo abandono
A beleza fatal e o secreto esplendor
Das perfeições de que ele é dono;

Sua meia rosada e de ouro em sua perna
Ficou como fica a saudade.
A liga, olho secreto, arde feito lanterna,
Darda olhar de diamante e jade.

O aspecto singular de sua solitude
E o de um retrato langoroso,
De olhar provocador como a sua atitude,
Revela um amor tenebroso,

A alegria culposa, a de uma orgia estranha,
Tonta do beijo que fascina,
Esta que um anjo mau jubiloso acompanha,
A olhar das dobras da cortina;

Entretanto, a quem vê esta elegância de hética,
Do ombro o contorno árduo e sutil,
O seu porte irrequieto e sua anca esquelética,
Como um irritado réptil,

Ela é jovem demais! – Sua alma exasperada,
Seus sentidos doentes de tédio,
Tinham-se acaso aberto à matilha alterada
Dos desejos, o cru assédio?

Este amante traidor que não pudeste viva
Com tanto amor satisfazer,
Verteu em tua carne inerte e compassiva
A imensidão do seu prazer?

Responde, morta! Por teu rígido cabelo,
Erguendo-te com braço extremo,
Dize, cabeça hedionda, em teus dentes de gelo
Ele colou o adeus supremo?

– Longe do mundo atroz, longe da turba impura,
E do magistrado curioso,
Dorme em paz, dorme em paz, estranha criatura,
Em teu sepulcro misterioso;

Teu esposo anda longe, e tua forma cruel
Junto a ele é a vigília mais forte;
E como tu por certo ele te será fiel,
Como constante até a morte.

As duas boas irmãs

Morte e devassidão são a dupla fatal,
Amorosas e sãs, juntas são pelo fado,
Cujo flanco andrajoso e sempre virginal
Ninguém soube que um dia houvessem procriado.

Ao poeta mais sinistro, ao amigo do mal,
Favorito do inferno e cortesão rafado,
Túmulo e lupanar apontam do frontal
Um leito que jamais de remorso é habitado.

E a sepultura e a alcova – a blasfêmia fecunda –
Alternam-se a ofertar – duas boas irmãs –
Os terríveis prazeres e as doçuras vãs.

Devassidão, não queres enterrar-me, inunda?
Morte, quando virás, rua rival ao encanto,
Enxertar em seu mirto o cipreste do pranto?

Alegoria

É uma bela mulher e que opulenta deixa
Arrastar em seu vinho a fluídica madeixa.
Nela, garras de amor, venenos de espelunca,
À sua pele enfim tudo morre ou se trunca.
Ela zomba da morte e despreza o deboche,
Monstros de foice à mão são-lhe sempre um fantoche,
Na sua destruição sempre guardam respeito
Ao rude esplendor de seu rígido peito.
Possui andar de deusa e sono de sultana;
Ela tem no prazer a crença maometana,
E com braços que são aos seios larga taça,
Com seu olhar convoca inteira a humana raça.
É que esta virgem sabe: o seu ventre é infecundo,
No entanto necessário à marcha deste mundo,
E que a sua beleza é sempre um dom sublime
E que extrai o perdão de todo infame crime.

Ah, que ela ignora o Inferno e olvida o Purgatório,
E quando vier – Ó Noite – o seu fim ilusório,
Há de encarar a Morte e sem nenhum gemido
Sem ódio e sem rancor – como um recém-nascido.

Uma viagem citara

Meu coração, uma ave, esvoaçava ditoso,
Livremente planava em torno da cordoalha;
E movia-se a nave a um amplo céu sem falha,
Como um anjo embriagado a um alto sol radioso.

Qual é esta ilha triste e sombria? É Citera.
Ela é mesmo um país famoso nas canções,
Eldorado banal de nossas ilusões.
Mas olhai-a afinal, pois é uma pobre terra.

– Ilha do coração e das festas do amor!
Da Vênus ancestral a visão soberana
Por cima de teu mar como um perfuma plana,
Nas almas a infundir misterioso langor.

Com teus mirtos azuis, tuas flores gloriosas,
Ilha, devem amar-te nação e nação,
Os suspiros em ti da alma em adoração
São incenso a rolar sobre um jardim de rosas

Ou o arrulho eternal de um longínquo pombal!
Era apenas Citera um torrão dos mais magros,
Deserta imensidão, dura de gritos agros.
Mas eu adivinhava uma cena fatal!

Não era um templo, não, de sombras florestais,
Em que a sacerdotisa, amorosa das flores,
Ia, o seu corpo a arder de secretos calores,
Entreabrindo o vestido às brisas vesperais;

Mas logo a bordejar o litoral a leste,
As aves a assustar, pairando nos espaços,
Vimos forca a subir mostrando três braços,
Destacados do céu como um negro cipreste.

Pássaros de terror sobre um cadáver vasto
Tocam a destruir o enforcado maduro,
Roíam, pondo a tenaz do bico tão impuro,
Em todos os rincões deste podre repasto;

Tinha vazio o olhar e dos flancos ridículos
Fluíam pela coxa os graves intestinos;
Cevados de delícia os negros assassinos
Tinham-lhe devorado os infames testículos.

Ao seus pés um tropel de irritados muares,
O focinho para o ar incessante rodava;
Uma besta maior no centro se agitava
Como um executor entre os seus auxiliares.

E filho de Citera, oriundo do céu pulcro,
Este insulto infernal amargavas calado
Só por expiação do teu culto execrado
E dos crimes por que te negam o sepulcro.

Risível enforcado, ah que são meus teus ais!
Eu senti só de ver os teus membros pendentes,
Como um vômito, vir aos meus trinta e dois dentes
Longo rio de fel das dores ancestrais;

Diante deste holocausto, ó criatura infeliz,
Eu ao vivo senti bicos e maxilares
Dos noturnos chacais, dos corvos tumulares,
Que punham minha carne em negro almofariz.

– O céu era de encanto e o mar todo se unia;
Eu via tudo negro e tudo sanguinário;
Ai de mim, pude ter como se num sudário
Sepulto o coração mas nesta alegoria.

Oh, Vênus, em tua ilha, eu só vi um carrasco,
Símbolo de uma forca a enforcar minha imagem…
– Concede-me, Senhor, a energia e a coragem
De olhar-me, coração e corpo, sem ter asco!

A negação de são pedro

O que há de fazer Deus do fluxo de heresias
Que sempre vai subindo às suas mansões brandas?
Tirano a se saciar de vinhos e viandas,
Dorme ao doce rumor das blasfêmias mais frias.

Os soluços dos que foram martirizados
São uma sinfonia embriagadora e augusta,
Pois, apesar do sangue que a volúpia custa,
Jamais deles os céus se sentiram saciados!

– Recorda-te, Jesus,da cena do horto, quando
Imploravam a orar os teus joelhos escravos
Ao que no céu se ria do rumor dos cravos
Que em tua carne punha algum algoz infando;

Quando viste escarrar na tua divindade
A crápula, a ulular, da guarda e do bordel,
E sentiste o amargor do vinagre e do fel
Na boca em que vivia a imensa humanidade;

E quando a lentidão de teu corpo partido
Teus braços alongava e teu suor e teu sangue
Eram destilação de tua fronte langue,
E quando foste a cada um em alvo erigido,

Estavas a pensar no dia de recamos
Em que vieste a cumprir a promessa eternal,
E pisavas, montando o mais meigo animal,
Caminhos que eram luar de flores e de ramos,

Em que, o teu coração imenso de esperança,
Para expulsar os vendilhões foste violento
E no teu templo enfim? Ah, o arrependimento
Teu flanco não entrou mais fundo do que a lança?

– Por certo eu sairei, quanto a mim satisfeito
Deste mundo em que ao sonho a ação não é associada:
Possa eu usar da espada e morrer pela espada!
– Pedro negou Jesus… e foi muito bem feito!

Abel e caim

I

Raça de Abel, só bebe e come,
Deus te sorri tão complacente.

Raça de Caim, sempre some
No lodo miseravelmente.

Raça de Abel, teu sacrifício
Doce é ao nariz do Serafim!

Raça de Caim, teu suplício
Será que jamais terá fim?

Raça de Abel, tuas sementes
E teu gado produzirão;

Raça de Caim, sempre sentes
Uivar-te a fome como um cão.

Raça de Abel, não tremas nunca
À lareira patriarcal;

Raça de Caim, na espelunca,
Treme de frio, atroz chacal!

Raça de Abel, pulula! Ama!
Teu oiro é sempre gerador.

Raça de Caim, alma em flama,
Cuidado com o teu amor.

Raça de Abel multiplicada
Como a legião dos percevejos!

Raça de Caim, pela estrada
Arrasta a família aos arquejos.

II

Raça de Abel apodrecida
Há de adubar o solo ardente!

Raça de Caim, tua lida
Nunca te será suficiente;

Raça de Abel, eis teu labéu:
Do ferro o chuço é vencedor!

Raça de Caim, sobe ao céu
E arremessa à terra o Senhor!

Tradução: Jorge Pontual

A morte dos amantes

Teremos leitos só rosas ligeiras
Divãs de profundeza tumular,
E estranhas flores sobre prateleiras,
Sob os céus belos a desabrochar.

A arder de suas luzes derradeiras,
Nossos dois corações vão fulgurar,
Tochas a refletir duas fogueiras
Em nossas duas almas, este par

Gêmeos espelhos. Por tarde mediúnica,
Nós trocaremos uma flama única
Um adeus que é um soluço tão cruel;

Pouco depois, um anjo abrindo as portas,
Virá vivificar, o mais fiel,
Os espelhos sem luz e as chamas mortas.

A morte dos artistas

Quantas vezes irei sacudir os meus guisos,
Tua fronte beijar, morna Criatura?
E para o alvo alcançar, de tão mística altura,
Quantos dardos da aljava hão de me ser precisos?

Em conjuras sutis usaremos os juízos,
Para após demolir muita grave armadura,
Antes de contemplar a grande Criatura
De desejo infernal que paralisa os risos!

Há estes que o Ídolo seu não fitaram jamais,
Há o maldito escultor que, marcado de ofensa,
Só vive a martelar o peito e a fronte imensa.

Só esperam – Capitólio, e de sombras fatais! –
Venha a Morte e planando à feição de um sol novo,
Em seu cérebro arder como um floral renovo.

O sonho de um curioso

A F.N.

Ah, sabes como eu sei, a dor tão saborosa,
E que te faz dizer “Oh! O homem singular!”
– Ia morrer. Havia em minha alma amorosa,
Sonho misto de horror, um mal particular;

Angústia e espera viva e jamais sediciosa.
Mais a ampulheta eu via fatal se esgotar,
Mais sentia a tortura áspera e deliciosa;
Fugia o coração ao mundo familiar.

Eu era como a criança ávida do espetáculo.
E a ela o pano de boca era um odiento obstáculo…
Enfim se revelou a verdade tão fria:

Sem surpresa morri, e a aurora negra e infinda
Estava em torno. Oh, Deus era só isto o que eu via?
Tinha-se erguido o pano e eu esperava ainda.

O fim da jornada

Debaixo de uma luz tão baça,
Vai, corre e dança sem razão,
A vida, gritante e devassa.
Porém, logo que, na amplidão,

A noite voluptuosa sonha
Tudo abrandando, mesmo a fome,
Tudo apagando, até a vergonha,
O poeta em lassidão sem nome

Diz: – “Os meus ossos e a minha alma
Invocam ardentes a calma;
E, de coração tumular,

Agora vou dormir de lado,
Rolar em vosso cortinado,
Ó trevas de refrigerar!”

A viagem

A Máxime du camp

I

A quanta criança os mapas e as figuras ama,
O mundo é igual ao seu apetite profundo.
Deus meu, que é grande o mundo à vela em áurea chama!
Aos olhos da saudade, ah que é pequeno o mundo!

Partimos de manhã, fronte que o sonho alaga,
Ávido o coração de desejos e mágoas,
Íamos a seguir, pelo ritmo da vaga,
Ninar nosso infinito ao finito das águas:

Uns, beatos de fugir de uma pátria qualquer;
Outros, do horror de seus berços de azedume,
E astrólogos a arder no olhar de uma mulher
De tirânica Circe, e de amargo perfume.

Por não mudar em feras, trazem a alma cheia
De espaço e de esplendor e de céu com lampejos;
Esta neve que os morde, este sol que os cobreia
Apagam lentamente as impressões dos beijos.

Mas por certo só são na verdade viajantes
Os que só partem por partir como um balão,
Ligeiros corações na Fortuna confiantes,
E sem saber por que, dizem vamos e vão!

Os seus desejos são como nuvens informes,
E sonham como sonha o canhão o conscrito
Ignotas lassidões e volúpias enormes,
Cujos nomes jamais ao mundo há de ser dito.

II

Somos valsa de pião, somos salto de bola;
Ao homem em vigília ou quando o sono nasce
Sempre a curiosidade arrasta e desconsola,
Como um anjo cruel que as estrelas lanhasse.

Fortuna singular de fim sempre em mudança,
E estando sempre ausente, está em todo lugar!
Em que o homem que jamais nela perde a esperança
Só vive a perseguir e quase a delirar.

A nossa lama é trirreme a procurar Içaria;
Sobre a ponte uma voz percute: “abre o olho!”
E, da gávea, outras voz grita, ardorosa e vária:
“Amor!, Glória! Ventura!” Inferno! Era um escolho!

Cada ilhota que vê o homem pela vigia
É Eldorado a surgir feito promessa vã!
Mas a imaginação que se perde na orgia
Só descobre um recife ao nascer da manhã.

Ó pobre sonhador de religiões tão quiméricas!
É preciso prender ou deixar solto ao largo,
O marinheiro ebriado, inventor das Américas,
Cuja miragem torna o pego mais amargo?

Os pés postos na lama, o velho vagabundo,
Sonha, o nariz ao ar, paraíso fagueiro;
E vê o seu olhar uma Cápua no mundo
Toda vez que uma vela ilumina um pardieiro.

III

Oh viajantes do espanto! Ah, que nobres histórias
Lemos em vosso olhar de marinhos mistérios!
Os escrínios mostrai, que trazeis nas memórias,
De jóias a irradiar feitas de astros etéreos!

Queremos viajar sem vapor e sem vela!
Fazei para amainar o tédio das prisões
Por nossa alma passar, tesos como uma tela,
Horizontes de amor, vossas recordações.

O que pudestes ver enfim?

IV

“Nós vimos vaga
Como a estrela também; e o árido litoral;
E não obstante tanta amargura pressaga,
Por vezes como aqui vimos tédio fatal.

“Mas o triunfo do sol sobre o mar furta-cor,
A glória da cidade ao sol quase no poente,
Nos nossos corações punham o inquieto ardor
De mergulhar num céu reflexo atraente.

“Panorama não há, sem país opulento
Em que possa caber o misterioso encanto
Do esboço que nas nuvens delineia o vento
E que o desejo faz que amemos tanto, tanto!

“- O desejo da força o prazer sempre atiça.
Desejo, árvore velha e que o prazer vigora
Mas que no entanto cresce, espessando a cortiça,
Teus ramos querem ver de perto o sol da aurora!

Hás de sempre crescer árvore mais vivaz
Que o cipreste? – Mas nós já colhemos também
Umas ilustrações ao vosso álbum voraz,
Irmãos que belo achais o que de longe vem.

Nós pudemos saudar ídolos com a trompa;
Tronos sempre a brilhar de painéis luminosos;
Palácios de pintor que de feérica pompa,
Ao banqueiros serão os sonhos mais ruinosos;

E costumes que são aos olhos uma orgia;
Mulheres a esplender nas unhas e nos dentes,
E prudentes jograis que a áspide acaricia.”

V

E após, e após enfim?

VI

“Cérebros inocentes!
“Para não esquecer a coisa capital,
Vimos por tudo e sem nunca a haver procurado,
Pela imensa extensão da escala mais fatal,
A tediosa visão do perpétuo pecado:

“A mulher, serva hostil, tão orgulhosa e estúpida,
Amando-se sem rir e sem nenhum fastio;
O homem servo da serva, alma lasciva e cúpida,
Que num esgoto desemboca feito um rio;

“O algoz no seu prazer, o máaacute;rtir no seu dano;
O festim que perfuma o sangue e que Tempra;
O vinho do poder enervando o tirano,
E o povo a delirar ao chicote que o espera;

“Diversas religiões iguais à nossa em suma,
Todas galgando o céu enfim; e a ânsia divina
Como busca um donzel doce leito de pluma,
Procurando a volúpia em pregos ou em crina;

“A humanidade falsa e a quem o gênio ébria,
E como antigamente agora delirante,
Gritando para Deus em furiosa agonia:
– “Eu te maldigo, ó meu Senhor, meu semelhante!”

E os que prudentes são, amantes da demência
Ao fugir do tropel que a sorte uniu enfim,
E procurando no ópio a enorme sonolência!
– Tal é do globo inteiro o eterno boletim.”

VII

Saber amargo o que se pode obter na viagem!
O mundo, hoje pequeno e quase sem remédio,
Hoje, ontem, amanha, nos faz ver nossa imagem:
Sempre um oásis de horror num deserto de tédio!

É preciso partir? Ficar? Queres ficar, pois fica:
Parte, se for preciso. Um corre, outro se esgueira,
O inimigo a enganar, de vigilância iníqua,
O Tempo! E muitos são estes que sem canseira,

Correm como o Profeta ou o Judeu errante.
Nem neve nem vagão hão de poder bastar
Para fugir do gladiador tão ultrajante.
Há os que o matam enfim sem sair do lugar.

E após o ponta-pé que o Tempo nos destina
“Avante!” poderemos gritar um momento,
Da maneira que outrora íamos para a China,
Olhos fixos ao largo e cabelos ao vento,

Iremos embarcar sobre os mares sombrios
Tal jovem passageiro e cheio de prazer.
Não ouvis esta voz, de funéreo amavio,
Que canta: “Por aqui! Vós que quereis comer

“Ó Lótus perfumado. É só aqui que se apanha
O fruto de ilusão que vos enche de fome;
Viestes vos embriagar desta doçura estranha
Que há neste entardecer que o Tempo não consome?”

A essa voz familiar revela-se a visão;
Os Pílades além mostram braços vermelhos.
“Para Electra navega o pobre coração!”
Disse aquela a que já beijamos os joelhos.

VIII

Ó Morte, ó capitão! Deixemos este cais!
Este país é o tédio! Ah, soltemos a vela!
Se o firmamento e o mar são negrumes fatais
O nosso coração, se clarões se constela!

Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!
Tanto o cérebro nosso é de fogo incendido,
No abismo mergulhar, Inferno ou Céu, que importa?
Para o novo encontrar no mais desconhecido!

Epígrafe (um livro condenado)

Leitor pacífico e bucólico,
Homem de bem, austero e lhano,
Joga fora este saturniano
Livro, orgíaco e melancólico.

Se não herdaste o dom hipnótico
De Satã, o astuto decano,
Irias ler-me por engano,
Ou me terias por neurótico.

Mas se, sem teus olhos piscar,
Do abismo os horrores conheces,
Lê-me afinal que me hás de amar;

Alma curiosa que padeces
E buscas no éden teu abrigo,
Tem dó de mim… Ou te maldigo!

Madrigal triste

I

Que me importa que saibas tanto?
Sê bela e taciturna! As dores
À face emprestam certo encanto,
Como à campina o rio em pranto;
A tempestade apraz às flores.

Eu te amo mais quando a alegria
Te foge ao rosto acabrunhado;
Quando a alma tens em agonia,
Quando o presente em ti desfia
A hedionda nuvem do passado.

Eu te amo quando em teu olhar
O pranto escorre como sangue;
Ou quando, a mão a te embalar,
A tua angústia ouço aflorar
Como um espasmo quase exangue.

Aspiro, volúpia divina,
Hino profundo e delicioso!
A dor que o teu seio lancina
E que, quando o olhar te ilumina,
Teu coração enche de gozo!

II

Sei que o peito, que palpita
À sombra de amores passados,
Qual uma forja ainda crepita,
E que a garganta enfim te habita
Algo do orgulho dos danados;

Mas enquanto, amor, no que sonhas
Do inferno a imagem não for dada
E dessas visões tão medonhas,
Em meio a gládios e peçonhas,
De pólvora e ferro animada.

Sempre de todos te escondendo,
Denunciando em tudo a desgraça
E à hora fatal estremecendo,
Não houveres sentido o horrendo
Aperto do asco que te abraça,

Não poderás, rainha e escrava,
Que apenas me amas com pavor,
Nos abismos que a noite escava,
Dizer-me, a voz trêmula e cava:
“Sou tua igual, ó meu Senhor!”

O rebelde

Um Anjo em fúria qual uma águia cai do céu,
Segura, a garra adunca, os cabelos do ateu
E, sacudindo-o, diz: “À regra serás fiel!”
(Sou teu Anjo guardião, não sabias?) És meu!

Pois é preciso amar, sorrindo à pior desgraça,
O perverso, o aleijado, o mendigo, o boçal,
Para que estendas a Jesus, quando ele passa,
Com tua caridade um tapete triunfal.

Eis o amor! Antes que a alma tenhas em ruínas,
Teu êxtase reaviva à glória e à luz divinas;
Esta é a Volúpia dos encantos Celestiais!”

E o Anjo, que a um tempo nos exalta e nos lamenta,
Com punhos de gigante o anátema atormenta;
Mas o ímpio sempre diz: “Não serei teu jamais!”

Recolhimento

Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta.
Reclamavas a Tarde; eis que elas vem descendo:
Sobre a cidade um véu de sombras se projeta,
A alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo.

Enquanto dos mortais a multidão abjeta,
Sob o flagelo do Prazer, algoz horrendo,
Remorsos colhe à festa e sôfrega se inquieta,
Dá-me, ó Dor, tua mão; vem por aqui, correndo

Deles. Vem ver curvarem-se os Anos passados
Nas varandas do céu, em trajes antiquados;
Surgir das águas a Saudade sorridente;

O Sol que numa arcada agoniza e se aninha,
E, qual longo sudário a arrastar-se no Oriente,
Ouve, querida, a doce Noite que caminha.

As queixas de um ícaro

Os rufiões das rameiras são
Ágeis, felizes e devassos;
Quanto Amim, fraturei os braços
Por ter-me alçado além do chão.

É graças aos mais raros astros,
Que o céu envolvem num lampejo,
Que, agora cego, já não vejo
Dos sóis senão os turvos rastros.

Eu quis do espaço em toda parte
Achar em vão o fim e o meio;
Não sei sob que olho de ígneo veio
Minha alma eu sinto que se parte;

E porque o belo ardeu comigo,
Perdi a glória e o benefício
De dar meu nome ao precipício
Que há de servir-me de jazigo.

O exame da meia-noite

Meia-noite. O relógio soa
E nos induz, em tom mordaz,
A recordar que uso fugaz
Fizemos do dia que escoa:
– Hoje, treze, data fatal,
Sexta-feira, nos comportamos,
Malgrado tudo o que exaltamos,
Como discípulos do mal;

Contra Jesus, o mais glorioso
Dentre os deuses, temos pecado!
Como um parasita sentado
À mesa de um Creso monstruoso,
Cada um de nós, gratos à Besta,
Do Demônio a súdita eleita,
Insulta aquilo que respeita
E adula aquilo que detesta;

Ao humilde o nosso desdouro
Mostramos com dura arrogância;
Saudamos a enorme Ignorância,
Com sua cabeça de touro;
Beijamos a torpe Matéria
Com toda a nossa devoção,
E abençoamos da podridão
A bruxuleante luz funérea.

Enfim, para afogar de vez
A vertigem no que delira,
Nós, os sacerdotes da Lira,
Cuja glória é louvar a ebriez
Do que a morte acaso dissolva,
Sem apetite algum comemos…
– Depressa, a lâmpada apaguemos
Para que a treva nos envolva!

O admoestador

O homem fiel a tal condição
Traz em seu peito uma Serpente
Que, quando ele diz num repente:
“Eu quero!”ela responde: “Não!”

Caso os olhos nos olhos fixes
Das Satiresas ou das Nixes,
O Dente diz: “Cumpre o dever!”

Procria filhos, cuida as árvores
Cinzela o verso, entalha os mármores.
E ele: “Esta noite irás viver?”

Seja o que for que espera ou sonha,
O homem não vive um só momento
Sem que essa Víbora o tormento
De uma advertência cruel lhe imponha.

Bem longe daqui

Aqui é a choupana sagrada
Onde esta donzela enfeitada,
Sempre serena e preparada,

As mãos em leque no regaço
E nos coxins pousando o braço,
Ouve da fonte os sons do espaço:

De Dorotéia eis a morada.
– Cantam a brisa e a água corrente
Sua canção entrecortada
Que embala esta infanta mimada.

De cima a baixo, docemente,
Untam-lhe a pele delicada
Com benjoim e bálsamo olente.
– Murcham as flores de repente.

O abismo

Pascal em si tinha um abismo se movendo.
– Ai, tudo é abismo! – sonho, ação, desejo intenso,
Palavra! E sobre mim, num calafrio, eu penso
Sentir do Medo o vento às vezes se estendendo.

Em volta, no alto, embaixo, a profundeza, o denso
Silêncio, a tumba, o espaço cativante e horrendo…
Em minhas noites, Deus, o sábio dedo erguendo,
Desenha um pesadelo multiforme e imenso.

Tenho medo do sono, o túnel que me esconde,
Cheio de vago horror, levando não sei aonde;
Do infinito, à janela, eu gozo os cruéis prazeres,

E meu espírito, ébrio afeito ao desvario,
Ao nada inveja a insensibilidade e o frio.
– Ah, não sair jamais dos Números e Seres!

A tampa

Seja aonde for que vá em torno desta esfera,
Sob um clima de fogo ou sob um sol distante,
Servidor de Jesus, cortesão de Citera,
Mendigo tenebroso ou Creso rutilante,

Paria, campônio, citadino e às vezes fera,
Seja-lhe o cérebro moroso ou esfuziante,
O homem sucumbe ante ao mistério que o exaspera,
E não eleva o olhar senão por breve instante.

No alto, o Céu! Paredão que o abafa como estufa,
Cenário ébrio de luz para uma ópera bufa
De cujo palco ensangüentado o histrião se serve;

Terror do libertino, anseio do eremita:
O Céu! Tampa sóbria da imensa marmita
Onde indivisa a vasta Humanidade ferve.

O cachimbo da paz

I

E Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Vida,
O Poderoso, veio à planície florida,
Ao prado imenso rente ao cerro montanhoso,
E ali, sobre as escarpas da Rubra Pedreira,
O espaço dominado e ardendo à luz primeira,
Eis que se ergueu, onipotente e vigoroso.

E convocou então os povos incontáveis,
Mais do que as ervas e as areias infindáveis.
Com sua mão tremenda uma laca arrancou
À rocha, e fez com ela um cachimbo disforme;
Depois, junto ao regato, num bambual enorme,
Para servir de tubo, um caniço apanhou.

Para enchê-lo tomou um bálsamo oloroso;
E, criador da Energia, o Todo-Poderoso,
De pé. Eis que acendeu, qual divino fanal,
O Cachimbo da Paz. De pé sobre a Pedreira,
Fumou, soberbo e ereto, ardendo à luz primeira.
E para as tribos esse era o grande sinal.

E em círculos subia a fumaça sagrada
No ar doce da manhã, sensual e perfumada.
E agora o que se via era um sombrio véu;
Logo o vapor se fez mais azulado e intenso,
Depois branqueou, sempre engrossando no ar suspenso,
Para extinguir-se aos pés da abóbada do céu.

Dos distantes confins das montanhas Rochosas,
Desde os lagos do Norte às ondas impetuosas,
De Tawasentha, a várzea amena e sem igual,
A Tuscaloosa, erma floresta trescalante,
Avisou-se o sinal e a fumaça ondulante
Lentamente a subir no incêndio matinal.

Os Profetas diziam: “Vedes essa estria
De vapores, que, igual ao braço que chefia,
Oscila e se recorta em negro no ar vermelho?
É Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Vida,
Que proclama por toda a planície florida:
Guerreiros meus, eu vos convoco ao real conselho!”

Pelas sendas do rio ou pelo ermo poeirento,
Pelas quatro vertentes de onde sopra o vento,
Vós, fiéis guerreiros, vós das tribos em porfia,
Entendendo o sinal da nuvem caminheira,
Viestes dóceis até junto à Rubra Pedreira
Onde sempre Gitchi Manitou vos ouvia.

Os guerreiros de pé se erguiam na paisagem,
Armas na mão, a face impávida e selvagem,
Matizados tal como uma folha outonal;
O ódio que à luta impele a todos os mortais,
O ódio que ardia nos olhares ancestrais
No olhar lhes acendia uma lama fatal.

Em seus olhos brilhava a maldição da guerra.
E Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Terra,
Tinha por eles uma infinda compaixão,
Como um pai extremoso, indisposto às disputas,
Que vê seus filhos a morder-se em árduas lutas.
Tal Gitchi Manitou por toda uma nação.

E ergueu sobre eles sua forte mão direita
Para dobrar-lhes a alma e a natureza estreita,
Para esfriar-lhe a febre à sombra dessa mão;
Depois lhes disse, a voz solene e majestosa,
Comparável à voz de uma água tormentosa,
Que tomba e ecoa mais hedionda que um trovão:

II

“Minha posteridade, odiosa mais querida!
Ó filhos meus, ouvi a divina razão!
É Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Vida,
Quem vos fala! O que em vossa planície florida
Pôs a rena, o castor, a raposa e o bisão.

Eu vos tornei a caça e a pesca generosas;
Por que se fez então o caçador tão vil?
De pássaros povoei as várzeas mais lodosas;
Por que não sois felizes, crianças belicosas?
Por que ao vizinho o homem dá caça e faz-se hostil?

Bem longe estou de vossa arena de inimigos.
Promessas e orações de vós não ouço mais!
Domina vosso gênio o amor pelos perigos,
E vossa força está na união. Quais bons amigos
Vivei, pois, e aprendei a vos manter em paz.

Um Profeta virá de minha mão em breve
Para vos dar conforto e convosco sofrer,
E seu verbo fará a existência mais leve;
Mas se a menosprezá-lo algum de vós se atreve,
Tereis então, filhos malditos, que morrer!

Às ondas apagai a cor dos ódios vãos.
O caniço é abundante e a rocha não se esfaz;
Cada um pode entalhar o seu cachimbo. Às mãos
Limpai o sangue! Agora vivei como irmãos,
E unidos, pois, fumais o Cachimbo da Paz!”

III

E eles então, depondo as armas sobre a terra,
Lavam nas águas as brutais cores da guerra
Que às frontes lhes ardiam triunfantes e cruéis.
Cada um faz seu cachimbo e às margens do regato
Colhe um longo caniço e dá-lhe o corte exato.
E o Espírito sorria ante os seus filhos fiéis.

Todos se foram, a alma quieta e enternecida,
E Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Vida,
Uma vez mais galgou a escada celestial.
– Através do vapor que em nuvens se desdobra
Ergueu-se o Poderoso, ébrio de sua obra,
Sublime, perfumado, infinito, triunfal!

A lua ofendida

Ó Lua que em recato amavam nossos pais
Nos píncaros do azul, onde harém sorridente,
Os sóis vão te seguir, com seu cortejo ardente,
Querida Cíntia, luz das furnas ancestrais,

Não vês, em sua alcova próspera, os casais
A dormir, pondo à mostra o esmalte de seu dente?
O poeta cuja fronte o poema pensa e sente?
Ou sob a relva o amor das víboras fatais/

Sob o teu fulvo dominó, com pés de lã,
Irás, como antes, do crepúsculo à manhã,
Beijar de Endimião o pálido feitiço?

– “Vejo-te a mãe, filho de um século em desgaste,
Que exibe em seu espelho um rosto já sem viço
E que com arte apruma o seio que sugaste!”

A prece de um pagão

Não deixeis esfriar tua chama!
Minha alma entorpecida aquece,
Volúpia, inferno de quem ama!
Escuta, diva, a minha prece!

Deusa no espaço derramada,
Flama que dentro em nós desperta,
Atende a esta alma enregelada,
Que um brônzeo cântico te oferta.

Volúpia, abre-me a tua teia,
Toma o perfil de uma sereia
Feita de carne e de veludo,

Ou verte enfim teu sono mudo
No vinho místico e disforme,
Volúpia, espectro multiforme!

O crepúsculo romântico

Quão belo é o sol quando no céu se ergue risonho,
E qual uma explosão nos lança o seu bom-dia!
– Feliz quem pode com amor e ébria alegria
Saudar-lhe o ocaso mais glorioso do que um sonho!

Recordo-me! Eu vi tudo, a flor, o sulco, a fonte,
Murchar sob o esplendor dessa pupila que arde…
– Corramos todos sem demora ao poente, é tarde,
Para abraçar um raio oblíquo no horizonte!

Mas eu persigo em vão o Deus que ora se ausenta;
A irresistível Noite o seu império assenta,
Úmida, negra, erma de estrelas ou faróis;

Um odor de sepulcro em meio às trevas vaga,
E junto aos pantanais meu pé medroso esmaga
Inesperadas rãs e frios caracóis.

Mulheres malditas (delfina e hipólita)

Como um gato pensante e na areia deitadas,
Voltam os olhos seus ao mais longe do mar,
E seus próximos pés e suas mãos coladas
Têm langor de sorrir e tremor de chorar.

Umas, o coração cheio de confidência,
Num bosque em que a cantar os ribeiros se movem,
Vão soletrando o Amor da ingênua adolescência,
O ramo a descascar de algum arbusto jovem;

Outras, são como irmãs, andam lentas e flavas
Das rochas através, plenas de aparições,
Onde viu Santo Antônio arderem como lavas
Os rubros seios nus de suas tentações;

Outras há, que ao fulgor da líquida resina,
No silêncio abissal de velho antro pagão,
Chamam para aliviar a febre que alucina
Baco, o deus que adormece o remorso e a ilusão!

E outras, cuja garganta ama os escapulários,
Sabem em sua roupa um chicote esconder,
E misturam na noite, em bosques solitários,
As lágrimas da dor e a espuma do prazer.

Ó monstros do martírio, ó sombras virginais!
Almas a desprezar a pobre realidade,
Com sexo e devoção, o infinito buscais,
Estrangulada a voz de lamento e saudade,

Que na cripta infernal tanto buscou minha alma,
Pobres irmãs a um tempo eu vos amo e respeito
Por vossa sede em vão e por vossa dor calma,
E estas urnas de amor que vos enchem o peito.

A que está sempre alegre

Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria em cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

Lesbos – poemas condenados

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,
Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,
Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,
Emolduram as noites e os dias gloriosos;
Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,
Que desabam sem medo em pélagos profundos,
E correm, soluçando, em maio às colunatas,
Secretos e febris, copiosos e infecundos,
Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas!

Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,
Onde jamais ficou sem eco um só queixume,
Tal como Pafos as estrelas te veneram,
E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme!
Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,
Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita!
Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas,
Roçam de leve o tenro pomo que as excita;
Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério;
Consegues teu perdão dos beijos incontáveis,
Soberana sensual de um doce e nobre império,
Cujos requintes serão sempre inesgotáveis.
Deixa o velho Platão franzir seu olho sério.

Arrancas teu perdão ao martírio infinito,
Imposto sem descanso aos corações sedentos,
Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito
Vagamente entrevisto em outros firmamentos!
Arrancas teu perdão ao martírio infinito!

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?
Ou condenar-te a fronte exausta de extravios,
Se nenhum deles o dilúvio pôde ver
Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios?
Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

De que valem as leis do que é justo ou injusto?
Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,
O vosso credo, assim como os demais, é augusto,
E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!
De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo
Para cantar de tais donzelas os encantos,
E cedo eu me iniciei no mistério profundo
Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;
Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,
Qual sentinela de olho atento e indagador,
Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,
Cujas formas ao longe o azul faz supor;
E desde então do alto da Lêucade eu vigio

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,
E entre os soluços, retinindo no rochedo,
Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,
O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,
Para sabe se a onda do mar é meiga e boa!

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,
Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!
– O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta
O círculo de treva estriado pelas dores
Desta Safo viril, que foi amante e poeta!

– Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida,
A derramar os dons da paz de que partilha
E a flama de uma idade em áurea luz tecida
No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha;
Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida!

– De Safo que morreu ao blasfemar um dia,
Quando, trocando o rito e o culto por luxúria,
Seu belo corpo ofereceu como iguaria
A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria
Daquela que morreu ao blasfemar um dia.

E desde então Lesbos em pranto lamenta,
E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas,
Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta
Que lançam para os céus suas praias desertas!
E desde então Lesbos em pranto lamenta!

O letes

Vem ao meu peito, ó surda alma ferina,
Tigre adorado, de ares indolentes,
Quero os meus dedos mergulhar frementes
Na áspera lã de tua espessa crina;

Em tuas saias sepultar bem junto
De teu perfume a fronte dolorida,
E respirar, como uma flor ferida,
O suave odor de meu amor defunto.

Quero dormir o tempo que me sobre!
Num sono que ao da morte se confunde,
Que o meu carinho sem remorso inunde
Teu corpo luzidio como o cobre.

Para engolir-me a lágrima que escorre
O abismo de teu leito nada iguala;
O esquecimento por teus lábios fala
E a águas do Letes nos teus lábios corre.

O meu destino, agora meu delírio,
Hei de seguir como um predestinado;
Mártir submisso, ingênuo condenado,
Cujo fervor atiça o seu martírio,

Sugarei, afogando o ódio malsão,
Do mágico nepentes o conteúdo
Nos bicos desse colo pontiagudo,
Onde jamais pulsou um coração.

As jóias

A amada estava nua e, por ser eu o amante,
Das jóias só guardara as que o bulício inquieta,
Cujo rico esplendor lhe dava esse ar triunfante
Que em seus dias de gloria a escrava moura afeta.

Quando ela dança e entoa um timbre acre e sonoro,
Este universo mineral que à luz fulgura
Ao êxtase me leva, e é com furor que adoro
As coisas em que o som ao fogo se mistura.

Ela estava deitada e se deixava amar,
E do alto do divã, imersa em paz, sorria
A meu amor profundo e doce como o mar,
Que ao corpo, como à escarpa, em ondas lhe subia.

O olhar cravado em mim, como um tigre abatido,
Com ar vago e distante ela ensaiava poses,
E o lúbrico fervor à candidez unido
Punha-lhe um novo encanto às cruéis metamorfoses.

E sua perna e o braço, a coxa e os rins, untados
Como de óleo, a imitar de um cisne a fluida linha,
Passavam diante de meus olhos sossegados;
E o ventre e os seios, como cachos de uma vinha,

Se aproximavam, mais sutis que Anjos do Mal,
Para agitar minha alma enfim posta em repouso,
Ou arrancá-la então à rocha de cristal
Onde, calma e sozinha, ela encontrara pouso.

Como se à luz de um novo esboço, unida eu via
De antíope a cintura a um busto adolescente
De tal modo os quadris moldavam-lhe a bacia.
E a maquilagem lhe era esplêndida e luzente!

– E estando a lamparina agora agonizante,
Como na alcova houvesse a luz só da lareira,
Toda vez que emitia um suspiro faiscante,
Inundava de sangue essa pele trigueira.

O repuxo

Que olhos exaustos, pobre amada!
Dorme sem pressa e sono teu
Nessa postura descuidada
Em que o prazer te surpreendeu.
Nó pátio, o repuxo que chora
E cuja voz não silencia
Vai modulando noite afora
O doce amor que me extasia.

O jorro soluçante
De úmidas flores,
Onde Febe esfuziante
Põe suas cores,
É qual chuva incessante
De agudas dores.

Assim a tua alma que acende
Da volúpia o ardente clarão
Audaciosa e rápida ascende
Aos céus de infinita amplidão.
Depois se esfaz como quem morre
Numa triste e lânguida vaga
Que à borda de um abismo escorre
E todo o coração me alaga.

O jorro soluçante
De úmidas flores,
Onde Febe esfuziante
Põe suas cores,
É qual chuva incessante
De agudas dores.

Ó tu, que de noite és tão bela,
Como me é doce, no teu colo,
Junto à nascente ouvir aquela
Queixa sombria o eterno solo.
Lua, água clara, noite escura,
Ramos que arfais em derredor,
Vossa melancolia pura
É o espelho do meu amor.

O jorro soluçante
De úmidas flores,
Onde Febe esfuziante
Põe suas cores,
É qual chuva incessante
De agudas dores.

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