Machado de Assis
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Ulisse, jeté sur les rives d’Ithaque, ne les reconnaît pas et pleure sa patrie. Ainsi l’homme dans le bonheur possédé ne reconnaît pas son rêve et soupire.
Daniel Stern.
I
Quando, leitora amiga, no ocidente
Surge a tarde esmaiada e pensativa;
E entre a verde folhagem rescendente
Lânguida geme a viração lasciva;
E já das tênues sombras do oriente
Vem apontando a noite, e a casta diva
Subindo lentamente pelo espaço,
Do céu, da terra observa o estreito abraço;
II
Nessa hora de amor e de tristeza,
Se acaso não amaste e acaso esperas
Ver coroar-te a juvenil beleza
Casto sonho das tuas primaveras;
Não sentes escapar tua alma acesa
Para voar às lúcidas esferas?
Não sentes nessa mágoa e nesse enleio
Vir morrer-te uma lágrima no seio?
III
Sente-o? Então entenderás Elvira,
Que assentada à janela, erguendo o rosto,
O vôo solta à alma que delira
E mergulha no azul de um céu de Agosto;
Entenderás então porque suspira,
Vítima já de um íntimo desgosto,
A meiga virgem, pálida e calada,
Sonhadora, ansiosa e namorada.
IV
Mansão de riso e paz, mansão de amores
Era o vale. Espalhava a natureza,
Com dadivosa mão, palmas e flores
De agreste aroma e virginal beleza;
Bosques sombrios de imortais verdores,
Asilo próprio à inspiração acesa,
Vale de amor, aberto às almas ternas
Neste vale de lágrimas eternas.
V
A casa, junto à encosta de um outeiro,
Alva pomba entre folhas parecia:
Quando vinha a manhã, o olhar primeiro
Ia beijar-lhe a verde gelosia;
Mais tarde a fresca sombra de um coqueiro
Do sol quente a janela protegia;
Pouco distante, abrindo o solo adusto,
Um fio d’água murmurava a custo.
VI
Era uma jóia a alcova em que sonhava
Elvira, alma de amor. Tapete fino
De apurado lavor o chão forrava.
De um lado oval espelho cristalino
Pendia. Ao fundo, à sombra, se ocultava
Elegante, engraçado, pequenino
Leito em que, repousando a face bela,
De amor sonhava a pálida donzela.
VII
Não me censure o crítico exigente
O ser pálida a moça; é meu costume
Obedecer à lei de toda a gente
Que uma obra compõe de algum volume.
Ora, no nosso caso, é lei vigente
Que um descorado rosto o amor resume.
Não tinha Miss Smolen outras cores;
Não as possui quem sonha com amores.
VIII
Sobre uma mesa havia um livro aberto;
Lamartine, o cantor aéreo e vago,
Que enche de amor um coração deserto;
Tinha-o lido; era a página do Lago.
Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto,
Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago;
Chorava aos cantos da divina lira…
É que o grande poeta amava Elvira!
IX
Elvira! o mesmo nome! A moça os lia,
Com lágrimas de amor, os versos santos,
Aquela eterna e lânguida harmonia
Formada com suspiros e com prantos;
Quando escutava a musa da elegia
Cantar de Elvira os mágicos encantos,
Entrava-lhe a voar a alma inquieta,
E co’o amor sonhava de um poeta.
X
Ai, o amor de um poeta! amor subido!
Indelével, puríssimo, exaltado,
Amor eternamente convencido,
Que vai além de um túmulo fechado,
E que, através dos séculos ouvido,
O nome leva do objeto amado,
Que faz de Laura um culto, e tem por sorte
Negra foice quebrar nas mãos da morte.
XI
Fosse eu moça e bonita…Neste lance
Se o meu leitor é já homem sisudo,
Fecha tranqüilamente o meu romance,
Que não serve a recreio nem a estudo;
Não entendendo a força nem o alcance
De semelhante amor, condena tudo;
Abre um volume sério, farto e enorme,
Algumas folhas lê, boceja…e dorme.
XII
Nada perdes, leitor, nem perdem nada
As esquecidas musas; pouco importa
Que tu, vulgar matéria condenada,
Aches que um tal amor é letra morta.
Podes, cedendo à opinião honrada,
Fechar à minha Elvira a esquiva porta.
Almas de prosa chã, quem vos daria
Conhecer todo o amor que há na poesia?
XIII
Ora, o tio de Elvira, o velho Antero,
Erudito e filósofo profundo,
Que sabia de cor o velho Homero,
E compunha os anais do Novo Mundo;
Que escrevera uma vida de Severo,
Obra de grande tomo e de alto fundo;
Que resumia em si a Grécia e Lácio,
E num salão falava como Horácio;
XIV
Disse uma noite à pálida sobrinha:
“Elvira, sonhas tanto! devaneias!
Que andas a procurar, querida minha?
Que ambições, que desejos ou que idéias
Fazem gemer tua alma inocentinha?
De que esperança vã, meu anjo, anseias?
Teu coração de ardente amor suspira;
“Que tens?” – “Eu nada,” respondia Elvira.
XV
“Alguma coisa tens!” tornava o tio;
“Porque olhas tu as nuvens do poente,
Vertendo às vezes lágrimas a fio,
Magoada expressão d’alma doente?
Outras vezes, olhando a água do rio,
Deixas correr o espírito indolente,
Como uma flor que ao vento ali tombara,
E a onda murmurando arrebatara.”
XVI
“-Latet anguis in herba…” Neste instante
Entrou a tempo o chá…perdão, leitores,
Eu bem sei que é preceito dominante
Não misturar comidas com amores;
Mas eu não vi, nem sei se algum amante
Vive de orvalho ou pétalas de flores;
Namorados estômagos consomem;
Comem Romeus, e Julietas comem.
XVII
Entrou a tempo o chá, e foi servi-lo,
Sem responder, a moça interrogada,
C’um ar tão soberano e tão tranqüilo
Que o velho emudeceu. Ceia acabada,
Fez o escritor o costumado quilo,
Mas um quilo de espécie pouco usada,
Que consistia em ler um livro velho;
Nessa noite acertou ser o Evangelho.
XVIII
Abrira em S. Mateus, naquele passo
Em que o filho de Deus diz que a açucena
Não labora nem fia, e o tempo escasso
Vive, co’o ar e o sol, sem dor nem pena;
Leu e estendendo o já trêmulo braço
A triste, à melancólica pequena,
Apontou-lhe a passagem da Escritura
Onde lera lição tão reta e pura.
XIX
“Vês? diz o velho, escusas de cansar-te;
Deixa em paz teu espírito, criança:
Se existe um coração que deva amar-te,
Há de vir; vive só dessa esperança.
As venturas do amor um deus reparte;
Queres tê-las? põe nele a confiança.
Não persigas com súplicas a sorte;
Tudo se espera; até se espera a morte!
XX
A doutrina da vida é esta: espera,
Confia, e colherás a ansiada palma;
Oxalá que eu te apague essa quimera
Lá diz o bom Demófilo que à alma
Como traz a andorinha a primavera,
A palavra do sábio traz a calma.
O sábio aqui sou eu. Ris-te, pequena?
Pois melhor; quero ver-te uma açucena!”
XXI
Falava aquele velho como fala
Sobre cores um cego de nascença.
Pear a juventude! Condená-la
Ao sono da ambição vivaz e intensa!
Co’as leves asas da esperança orná-la
E não querer que rompa a esfera imensa!
Não consentir que esta manhã de amores
Encha com frescas lágrimas as flores.
XXII
Mal o velho acabava e justamente
Na rija porta ouviu-se uma pancada.
Quem seria? Uma serva diligente,
Travando de uma luz, desceu a escada.
Pouco depois rangia brandamente
A chave, e a porta aberta dava entrada
A um rapaz embuçado que trazia
Uma carta, e ao doutor falar pedia.
XXIII
Entrou na sala, e lento, e gracioso,
Descobriu-se e atirou a capa a um lado;
Era um rosto poético e viçoso
Por soberbos cabelos coroado;
Grave sem gesto algum pretensioso,
Elegante sem ares de enfeitado;
Nos lábios frescos um sorriso amigo,
Os olhos negros e o perfil antigo.
XXIV
Demais, era poeta. Era-o. Trazia
Naquele olhar não sei que luz estranha
Que indicava um aluno da poesia,
Um morador da clássica montanha,
Um cidadão da terra da harmonia,
Da terra que eu chamei nossa Alemanha,
Nuns versos que hei de dar um dia a lume,
Ou n’alguma gazeta, ou num volume.
XXV
Um poeta! e de noite! e de capote!
Que é isso, amigo autor? Leitor amigo.
Imagina que estás num camarote
Vendo passar-se em cena um drama antigo.
Sem lança não conheço D. Quixote,
Sem espada é apócrifo um Rodrigo;
Herói que às regras clássicas escapa,
Pode não ser herói, mas traz a capa.
XXVI
Heitor (era o seu nome) ao velho entrega
Uma carta lacrada; vem do norte.
Escreve-lhe um filósofo colega
Já quase a entrar no tálamo da morte.
Recomenda-lhe o filho, e lembra, e alega,
A provada amizade, o esteio forte,
Com que outrora, acudindo-lhe nos transes,
Salvou-lhe o nome de terríveis lances.
XXVII
Dizia a carta mais: “Crime ou virtude,
É meu filho poeta; e corre fama
Que já faz honra à nossa juventude
Co’a viva inspiração de etérea chama;
Diz ele que, se o gênio não o ilude,
Camões seria se encontrasse um Gama.
Deus o fade; eu perdôo-lhe tal sestro;
Guia-lhe os passos, cuida-lhe do estro.”
XXVIII
Lida a carta, o filósofo erudito
Abraça o moço e diz em tom pausado:
“Um sonhador do azul e do infinito!
É hóspede do céu, hóspede amado.
Um bom poeta é hoje quase um mito,
Se o talento que tem é já provado,
Conte co’o meu exemplo e o meu conselho;
Boa lição é sempre a voz de um velho.”
XXIX
E trava-lhe da mão, e brandamente
Leva-o junto de Elvira. A moça estava
Encostada à janela, e a esquiva mente
Pela extensão dos ares lhe vagava.
Voltou-se distraída, e de repente
Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava,
Sentiu…Inútil fora relatá-lo;
Julgue-o quem não puder experimentá-lo.
XXX
Ó santa e pura luz do olhar primeiro!
Elo de amor que duas almas liga!
Raio de sol que rompe o nevoeiro
E casa a flor à flor! Palavra amiga
Que, trocada um momento passageiro,
Lembrar parece uma existência antiga!
Língua, filha do céu, doce eloqüência
Dos melhores momentos da existência!
XXXI
Entra a leitora numa sala cheia;
Vai isenta, vai livre de cuidado:
Na cabeça gentil nenhuma idéia,
Nenhum amor no coração fechado.
Livre como andorinha que volteia
E corre loucamente o ar azulado.
Venham dois olhos, dois, que a alma buscava…
Era senhora? ficará escrava!
XXXII
C’um só olhar escravos ele e ela
Já lhes pulsa mais forte o sangue e a vida;
Rápida corre aquela noite, aquela
Para as castas venturas escolhida;
Assoma já nos lábios da donzela
Lampejo de alegria esvaecida.
Foi milagre de amor, prodígio santo.
Quem mais fizera? Quem fizera tanto?
XXXIII
Preparara-se ao moço um aposento.
Oh! reverso da antiga desventura!
Tê-lo perto de si! viver do alento
De um poeta, alma lânguida, alma pura!
Dá-lhe, ó fonte do casto sentimento,
Águas santas, batismo de ventura!
Enquanto o velho, amigo de outra fonte,
Vai mergulhar-se em pleno Xenofonte.
XXXIV
Devo agora contar, dia por dia,
O romance dos dois? Inútil fora;
A história é sempre a mesma; não varia
A paixão de um rapaz e um senhora.
Vivem ambos do olhar que se extasia
E conversa co’a alma sonhadora;
Na mesma luz de amor os dois se inflamam;
Ou, como diz Filinto: “Amados, amam.”
XXXV
Todavia a leitora curiosa
Talvez queira saber de um incidente;
A confissão dos dois; — cena espinhosa
Quando a paixão domina a alma que sente.
Em regra, confissão franca e verbosa
Revela um coração independente;
A paz interior tudo confia,
Mas o amor, esse hesita e balbucia.
XXXVI
O amor faz monossílabos; não gasta
O tempo com análises compridas;
Nem é próprio de boca amante e casta
Um chuveiro de frases estendidas;
Um volver d’olhos lânguido nos basta
Por conhecer as chamas comprimidas;
Coração que discorre e faz estilo,
Tem as chaves por dentro e está tranqüilo.
XXXVII
Deu-se o caso uma tarde em que chovia,
Os dois estavam na varanda aberta.
A chuva peneirava, e além cobria
Cinzento véu o ocaso; a tarde incerta
Já nos braços a noite recebia,
Como amorosa mãe que a filha aperta
Por enxugar-lhe os prantos magoados.
‘Stavam ambos imóveis e calados.
XXXVIII
Juntos, ao parapeito da varanda,
Viam cair da chuva as gotas finas,
Sentindo a viração fria, mas branda,
Que balançava as frouxas casuarinas.
Raras, ao longe, de uma e de outra banda,
Pelas do céu tristíssimas campinas,
Viam correr da tempestade as aves
Negras, serenas, lúgubres e graves.
XXXIX
De quando em quando vinha uma rajada
Borrifar e agitar a Elvira as tranças,
Como as fora a brisa perfumada
Que à palmeira sacode as tênues franças.
A fronte gentilíssima e engraçada
Sacudia co’a chuva as más lembranças;
E ao passo que chorava a tarde escura
Ria-se nela a aurora da ventura.
XL
“Que triste a tarde vai! que véu de morte
Cobrir parece a terra! ( o moço exclama).
Reprodução fiel da minha sorte,
Sombra e choro. – “Porquê?” pergunta a dama;
Diz que teve dos céus uma alma forte…
–“É forte o bronze e não resiste à chama;
Leu versos meus em que zombei do fado?
Ilusões de poeta malogrado!”
XLI
“Somos todos assim. É nossa glória
Contra o destino opor alma de ferro;
Desafiar o mal, eis nossa história,
E o tremendo duelo é sempre um erro.
Custa-nos caro uma falaz vitória
Que nem consola as mágoas do desterro,
O desterro, — esta vida obscura e rude
Que a dor enfeita e as vítimas ilude.
XLII
Contra esse mal tremendo que devora
A seiva toda à nossa mocidade,
Que remédio haveríamos, senhora,
Senão versos de afronta e liberdade?
No entanto, bastaria acaso um’hora,
Uma só, mas de amor, mas de piedade,
Para trocar por séculos de vida
Estes de dor acerba e envilhecida”
XLIII
Ai não disse e, fitando olhos ardentes
Na moça, que de enleio enrubescia,
Com discursos mais fortes e eloqüentes
Na exposição do caso prosseguia;
A pouco e pouco as mãos inteligentes
Travaram-se; e não sei se conviria
Acrescentar que um ósculo…Risquemos,
Não é bom mencionar estes extremos.
XLIV
Duas sombrias nuvens afastando,
Tênue raio de sol rompera os ares,
E, no amoroso grupo desmaiando,
Testemunhou-lhe as núpcias singulares.
A nesga azul do ocaso contemplando,
Sentiram ambos irem-lhe os pesares,
Como noturnas aves agoureiras
Que à luz fogem medrosas e ligeiras.
XLV
Tinha mágoas o moço? A causa delas?
Nenhuma causa; fantasia apenas;
O eterno devanear das almas belas,
Quando as dominam fervidas Camenas;
Uma ambição de conquistar estrelas,
Como se colhem lúcidas falenas;
Um desejo de entrar na eterna lida,
Um querer mais do que nos cede a vida.
XLVI
Com amores sonhava, ideal formado
De celestes e eternos esplendores,
A ternura de um anjo destinado
A encher-lhe a vida de perpétuas flores.
Tinha-o enfim, qual fora antes criado
Nos seus dias de mágoas e amargores;
Madrugavam-lhe na alma a luz e o riso;
Estava à porta enfim do paraíso.
XLVII
Nessa noite, o poeta namorado
Não conseguiu dormir. A alma fugira
Para ir velar o doce objeto amado,
Por quem, nas ânsias da paixão, suspira;
E é provável que, achando o exemplo dado,
Ao pé de Heitor viesse a alma de Elvira;
De maneira que os dois, de si ausentes,
Lá se achavam mais vivos e presentes.
XLVIII
Ao romper da manhã, co’o sol ardente,
Brisa fresca, entre as folhas sussurrando,
O não-dormido vate acorda, e a mente
Lhe foi dos vagos sonhos arrancando.
Heitor contempla o vale resplendente,
A flor abrindo, o pássaro cantando;
E a terra que entre risos acordava,
Ao sol do estio as roupas enxugava.
XLIX
Tudo então lhe sorria. A natureza,
As musas, o futuro, o amor e a vida;
Quanto sonhara aquela mente acesa
Dera-lhe a sorte, enfim, compadecida.
Um paraíso, uma gentil beleza,
E a ternura castíssima e vencida
De um coração criado para amores,
Que exala afetos como aroma as flores.
L
E ela? Se conheceste em tua vida,
Leitora, o mal de amor, delírio santo,
Dor que eleva e conforta a alma abatida,
Embriaguez do céu, divino encanto,
Se a tua face ardente e enrubescida
Palejou com suspiros e com prantos,
Se ardeste enfim, naquela intensa chama,
Entenderás o amor de ingênua dama.
LI
Repara que eu não falo desse enleio
De uma noite de baile ou de palestra;
Amor que mal agita a flor do seio,
E ao chá termina e acaba com a orquestra;
Não me refiro ao simples galanteio
Em que cada menina é velha mestra,
Avesso ao sacrifício, à dor e ao choro;
Falo do amor, não falo do namoro.
LII
Éden de amor, ó solidão fechada,
Casto asilo a que o sol dos novos dias
Vai mandar, como a furto, a luz coada
Pelas frestas das verdes gelosias,
Guarda-os ambos; conserva-os recatada.
Almas feitas de amor e de harmonias,
Tecei, tecei as vívidas capelas,
Deixai correr sem susto as horas belas.
LIII
Cá fora o mundo insípido e profano
Não dá, nem pode dar o enleio puro
Das almas novas, nem o doce engano
Com que se esquecem males do futuro.
Não busqueis penetrar neste oceano
Em que se agita o temporal escuro.
Por fugir ao naufrágio e ao sofrimento,
Tendes uma enseada, — o casamento.
LIV
Resumamos, leitora, a narrativa.
Tanta estrofe a cantar etéreas chamas
Pede compensação, musa insensiva,
Que fatigais sem pena o ouvido às damas.
Demais, é regra certa e positiva
Que muitas vezes as maiores famas
Perde-as uma ambição de tagarela;
Musa, aprende a lição; musa, cautela!
LV
Meses depois da cena relatada
Nas estrofes, a folhas, — o poeta
Ouviu do velho Antero uma estudada
Oração Cicerônica e seleta;
A conclusão da arenga preparada
Era mais agradável que discreta.
Dizia o velho erguendo olhos serenos:
“Pois que se adoram, casem-se, pequenos!”
LVI
Lágrima santa, lágrima de gosto
Vertem olhos de Elvira; e um riso aberto
Veio inundar-lhe de prazer o rosto
Como uma flor que abrisse no deserto.
Se iam já longe as sombras do desgosto;
Inda até li era o futuro incerto;
Fez-lho certo o ancião; e a moça grata
Beija a mão que o futuro lhe resgata.
LVII
Correm-se banhos, tiram-se dispensas,
Vai-se buscar um padre ao povoado;
Prepara-se o enxoval e outras pertenças
Necessárias agora ao novo estado.
Notam-se até algumas diferenças
No modo de viver do velho honrado,
Que sacrificia à noiva e aos deuses lares
Um estudo dos clássicos jantares.
LVIII
“Onde vais tu? – À serra! Vou contigo”.
–” Não, não venhas, meu anjo, é longa a estrada.
Se cansares?” – “Sou leve, meu amigo;
Descerei nos teus ombros carregada.”
–” Vou compor encostado ao cedro antigo
Canto de núpcias”. – “Seguirei calada;
Junto de ti, ter-me-ás mais em lembrança;
Musa serei sem perturbar.”-“Criança!”
LIX
Brandamente repele Heitor a Elvira;
A moça fica; o poeta lentamente
Sobe a montanha. A noiva repetira
O primeiro pedido inutilmente.
Olha-o de longe, e tímida suspira.
Vinha a tarde caindo frouxamente,
Não triste, mas risonha e fresca e bela,
Como a vida da pálida donzela.
LX
Chegando, enfim, à c’roa da colina,
Viram olhos de Heitor o mar ao largo,
E o sol, que despe a veste purpurina,
Para dormir no eterno leito amargo.
Surge das águas pálida e divina,
Essa que tem por deleitoso encargo
Velar amantes, proteger amores,
Lua, musa dos cândidos palores.
LXI
Respira Heitor; é livre. O casamento?
Foi sonho que passou, fugaz idéia
Que não pôde durar mais que um momento.
Outra ambição a alma lhe incendeia.
Dissipada a ilusão, o pensamento
Novo quadro a seus olhos patenteia,
Não lhe basta aos desejos de sua alma
A enseada da vida estreita e calma.
LXII
Aspira ao largo; pulsam-lhe no peito
Uns ímpetos de vida; outro horizonte,
Túmidas vagas, temporal desfeito,
Quer com eles lutar fronte por fronte.
Deixa o tranqüilo amor, casto e perfeito,
Pelos bródios de Vênus de Amatonte;
A existência entre flores esquecida
Pelos rumores de mais ampla vida.
LXIII
Nas mãos da noite desmaiara a tarde;
Descem ao vale as sombras vergonhosas;
Noite que o céu, por mofa ou por alarde,
Torna propícia às almas venturosas.
O derradeiro olhar frio e covarde
E umas não sei quê estrofes lamentosas
Solta o poeta, enquanto a triste Elvira,
Viúva antes de noiva, em vão suspira!
LXIV
Transpõe o mar Heitor, transpõe montanhas;
Tu, curiosidade, ingrato levas
A ir ver o sol das regiões estranhas.
A ir ver o amor das peregrinas Evas.
Vai, em troco de palmas e façanhas,
Viver na morte, bracejar nas trevas;
Fazer do amor, que é livro aos homens dado,
Copioso almanaque namorado.
LXV
Inscreve nele a moça de Sevilha,
Longas festas e noites espanholas,
A indiscreta e diabólica mantilha
Que a fronte cinge a amantes e a carolas.
Quantos encontra corações perfilha,
Faz da bolsa e do amor largas esmolas;
Esquece o antigo amor e a antiga musa
Entre os beijos da lépida Andaluza.
LXVI
Canta no seio túrgido e macio
Da fogosa, indolente Italiana,
E dorme junto ao laranjal sombrio
Ao som de uma canção napolitana.
Dão-lhe para os serões do ardente estio,
Asti, os vinhos; mulheres, a Toscana.
Roma adora, embriaga-se em Veneza,
E ama a arte nos braços da beleza.
LXVII
Vê Londres, vê Paris, terra das ceias,
Feira do amor a toda a bolsa aberta:
No mesmo laço, as belas como as feias,
Por capricho ou razão, iguais aperta;
A idade não pergunta às taças cheias,
Só pede o vinho que o prazer desperta;
Adora as outoniças, como as novas,
Torna-se herói de rua e herói de alcovas.
LXVIII
Versos quando os compõe, celebram antes
O alegre vício que a virtude austera;
Canta os beijos e as noites delirantes,
O estéril gozo que a volúpia gera;
Troca a ilusão que o seduzia dantes
Por maior e tristíssima quimera;
Ave do céu, entre ósculos criada,
Espalha as plumas brancas pela estrada.
LXIX
Um dia, enfim, cansado e aborrecido,
Acorda Heitor; e olhando em roda e ao largo,
Vê um deserto, e do prazer perdido
Resta-lhe unicamente o gosto amargo;
Não achou o ideal apetecido
No longo e profundíssimo letargo;
A vida exausta em festas e esplendores,
Se alguma tinha, eram já murchas flores.
LXX
Ora, uma noite, costeando o Reno,
Ao luar melancólico, — buscava
Aquele gozo simples, doce, ameno,
Que à vida toda outrora lhe bastava;
Voz remota, cortando o ar sereno,
Em derredor os ecos acordava;
Voz aldeã que o largo espaço enchia,
E uma canção de Schiller repetia.
LXXI
“A glória! diz Heitor, a glória é vida!
Porque busquei nos gozos de outra sorte
Esta felicidade apetecida,
Esta ressurreição que anula a morte?
Ó ilusão fantástica e perdida!
Ó malgasto, ardentíssimo transporte!
Musa, restaura as apagadas tintas!
Revivei, revivei, chamas extintas!”
LXXII
A glória? tarde vens, pobre exilado!
A glória pede as ilusões viçosas,
Estro em flor, coração eletrizado,
Mãos que possam colher etéreas rosas;
Mas tu, filho do ócio e do pecado,
Tu que perdeste as forças portentosas
Na agitação que os ânimos abate,
Queres colher a palma do combate?
LXXIII
Chamas em vão as musas; deslembradas,
À tua voz os seus ouvidos cerram;
E nas páginas virgens, preparadas,
Pobre poeta, em vão teus olhos erram;
Nega-se a inspiração; nas despregadas
Cordas da velha lira, os sons que encerram
Inertes dormem; teus cansados dedos
Correm debalde; esquecem-lhe os segredos.
LXXIV
Ah! se a taça do amor e dos prazeres
Já não guarda licor que te embriague;
Se nem musas nem lânguidas mulheres
Têm coração que o teu desejo apague;
Busca a ciência, estuda a lei dos seres,
Que a mão divina a tua dor esmague;
Entra em ti, vê o que és, observa em roda,
Escuta e palpa a natureza toda.
LXXV
Livros compra, um filósofo procura;
Revolve a criação, prescruta a vida;
Vê se espancas a longa noite escura
Em que a estéril razão andou metida;
Talvez aches a palma da ventura
No campo das ciências escondida.
Que a tua mente as ilusões esqueça:
Se o coração morreu, vive a cabeça!
LXXVI
Ora, por não brigar co’os meus leitores,
Dos quais, conforme a curta ou longa vista,
Uns pertencem aos grupos novadores,
Da fria comunhão materialista;
Outros, seguindo exemplos dos melhores,
Defendem a teoria idealista;
Outros, enfim, fugindo armas extremas,
Vão curando por ambos os sistemas.
LXXVII
Direi que o nosso Heitor, após o estudo
Da natureza e suas harmonias,
(Opondo a consciência um forte escudo
Contra divagações e fantasias);
Depois de ter aprofundado tudo,
Planta, homem, estrelas, noites, dias;
Achou esta lição inesperada:
Veio a saber que não sabia nada.
LXXVIII
“Nada! exclama um filósofo amarelo
Pelas longas vigílias, afastando
Um livro que há de ver um dia ao prelo
E em cujas folhas ia trabalhando.
Pois eu, doutor de borla e de capelo,
Eu que passo os meus dias estudando,
Hei de ler o que escreve pena ousada,
Que a ciência da vida acaba em nada?”
LXXIX
Aqui convinha intercalar com jeito,
Sem pretensão, nem pompa nem barulho,
Uma arrancada apóstrofe do peito
Contra as vãs pretensões do nosso orgulho;
Conviria mostrar em todo o efeito
Essa que és do espírito entulho,
Ciência vã, de magnas leis tão rica,
Que ignora tudo, e tudo ao mundo explica.
LXXX
Mas, urgindo acabar este romance,
Deixo em paz o filósofo, e procuro
Dizer do vate o doloroso trance
Quando se achou mais peco e mais escuro.
Valera bem naquele triste lance
Um sorriso do céu plácido e puro,
Raio do sol eterno da verdade,
Que a vida aquece e alenta a humanidade.
LXXXI
Quê! nem ao menos na ciência havia
Fonte que a eterna sede lhe matasse?
Nem no amor, nem no seio da poesia
Podia nunca repousar a face?
Atrás desse fantasma correria
Sem que jamais as formas lhe palpasse?
Seria acaso a sua ingrata sorte
A ventura encontrar nas mõas da morte?
LXXXII
A morte! Heitor pensara alguns momentos
Nessa sombria porta aberta à vida;
Pálido arcanjo dos finais alentos
De alma que o céu deixou desiludida;
Mão que, fechando os olhos sonolentos,
Põe o termo fatal à humana lida;
Templo de glória ou região do medo
Morte, quem te arrancara o teu segredo?
LXXXIII
Vazio, inútil, ermo de esperanças
Heitor buscava a noiva ignota e fria,
Que o envolvesse então nas longas tranças
E o conduzisse à câmara sombria,
Quando, em meio de pálidas lembranças,
Surgiu-lhe a idéia de um remoto dia,
Em que cingindo a cândida capela
Estava a pertencer-lhe uma donzela.
LXXXIV
Elvira! o casto amor! a esposa amante!
Rosa de uma estação, deixada ao vento!
Riso dos céus! estrela rutilante
Esquecida no azul do firmamento!
Ideal, meteoro de um instante!
Glória da vida, luz do pensamento!
A gentil, a formosa realidade!
Única dita e única verdade!
LXXXV
Ah! porque não ficou calmo e tranqüilo
Da ingênua moça nos divinos braços?
Porque fugira ao casto e alegre asilo?
Porque rompera os malformados laços?
Quem pudera jamais restituí-lo
Aos estreitos, fortíssimos abraços
Com que Elvira apertava enternecida
Esse que lhe era o amor, a alma e a vida?
LXXXVI
Será tempo? Quem sabe? Heitor hesita;
Tardio pejo lhe enrubesce a face;
Punge o remorso; o coração palpita
Como se vida nova o reanimasse;
Tênue fogo, entre a cinza, arde e se agita…
Ah! se o passado ali ressuscitasse
Reviveriam ilusões viçosas,
E a gasta vida rebentara em rosas!
LXXXVII
Resolve Heitor voltar ao vale amigo,
Onde ficara a noiva abandonada.
Transpõe o lar, afronta-lhe o perigo,
E chega enfim à terra desejada.
Sobe o monte, contempla o cedro antigo,
Sente abrir-se-lhe n’alma a flor murchada
Das ilusões que um dia concebera;
Rosa extinta da sua primavera!
LXXXVIII
Era a hora em que os serros do oriente
Formar parecem luminosas urnas;
E abre o sol a pupila resplendente
Que às folhas sorve as lágrimas noturnas;
Frouxa brisa amorosa e diligente
Vai acordando as sombras taciturnas;
Surge nos braços dessa aurora estiva
A alegre natureza rediviva.
LXXXIX
Campa era o mar; o vale estreito berço;
De um lado a morte, do outro lado a vida,
Canto do céu, resumo do universo,
Ninho para aquecer a ave abatida.
Inda nas sombras todo o vale imerso,
Não acordara à costumada lida;
Repousava no plácido abandono
Da paz tranqüila e do tranqüilo sono.
XC
Alto já ia o sol, quando descera
Heitor a oposta face da montanha;
Nada do que deixou desparecera;
O mesmo rio as mesmas ervas banha.
A casa, como então, garrida e austera,
Do sol nascente a viva luz apanha;
Iguais flores, nas plantas renascidas…
Tudo ali fala de perpétuas vidas!
XCI
Desce o poeta cauteloso e lento.
Olha de longe; um vulto ao sol erguia
A veneranda fronte, monumento
De grave e celestial melancolia.
Como sulco de um fundo pensamento
Larga ruga na testa abrir se via,
Era a ruína talvez de um esperança…
Nos braços tinha uma gentil criança.
XCII
Ria a criança; o velho contemplava
Aquela flor que às auras matutinas
O perfumoso cálix desbrochava
E entrava a abrir as pétalas divinas.
Triste sorriso o rosto lhe animava,
Como um raio de lua entre ruínas.
Alegria infantil, tristeza austera,
O inverno torvo, a alegre primavera!
XCIII
Desce o poeta , desce, e preso, e fito
Nos belos olhos do gentil infante,
Treme, comprime o peito… e após um grito
Corre alegre, exaltado e delirante,
Ah! se jamais as vozes do infinito
Podem sair de um coração amante,
Teve-as aquele… Lágrimas sentidas
Lhe inundaram as faces ressequidas!
XCIV
“Meu filho!” exclama, e súbito parando
Ante o grupo ajoelha o libertino;
Geme, soluça, em lágrimas beijando
As mãos do velho e as tranças do menino.
Ergue-se Antero, e frio e venerando,
Olhos no céu, exclama: “Que destino!
Murchar-lhe, viva, a rosa da ventura;
Morta, insultar-lhe a paz da sepultura!”
XCV
“Morta!” – Sim! – “Ah! senhor! se arrependido
Posso alcançar perdão, se com meus prantos,
Posso apiedar-lhe o coração ferido
Por tanta mágoa e longos desencantos;
Se este infante, entre lágrimas nascido,
Pode influir-me os seus afetos santos…
É meu filho, não é? perdão lhe imploro!
Veja, senhor! eu sofro, eu creio, eu choro”.
XCVI
Olha-o com frio orgulho o velho honrado;
Depois, fugindo aquela cena estranha,
Entra em casa. O poeta, acabrunhado,
Sobe outra vez a encosta da montanha;
Ao cimo chega, e desce o oposto lado
Que a vaga azul entre soluços banha.
Como fria ironia a tantas mágoas,
Batia o sol de chapa sobre as águas.
XCVII
Pouco tempo depois ouviu-se um grito,
Som de um corpo nas águas resvalado;
À flor das vagas veio um corpo aflito…
Depois… o sol tranqüilo e o mar calado.
Depois…Aqui termina o manuscrito,
Que me legou antigo deputado,
Homem de alma de ferro, e olhar sinistro,
Que morreu velho e nunca foi ministro
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