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José do Patrocínio
PRIMEIRA PARTE
A Paróquia Abandonada
I
Tinha acabado a missa conventual e só à tarde sairia a procissão
de prece: a imagem da Senhora da Piedade no seu andor armado de damasco e
festões de flores, carregado por virgens; o Cristo de lividez poética
na sua cruz negra e desornada.
A população de B. V., pequena paróquia cearense, achava-se
bem, como quem retesa os músculos depois de um pesadelo; espanejava-se
num contentamento largo como um romper da alva. A maior parte dos paroquianos
estava reunida a rir e a galhofar e acentuava insistentemente o contraste
entre o seu aspecto de hoje e o da véspera.
– Olé! – exclamavam uns para os outros. – Você a modo que ouviu
o ronco dos guaíbas ou o zunzum da Itaquatiara?
A diferença era de fato enorme. Desde dezembro uma tristeza, densa
como um nevoeiro, tinha empanado os espíritos ao verem a florescência
dos cajueiros esperdiçada aos calores crus do estio. Nem um suor de
tempestade embaciou a atmosfera, sempre de limpidez cristalina. Começou
desta data a devoção solene, mas foi inteiramente vão
o apelo para o céu diante da misantropia da natureza. Os dias secos
e ardentes continuaram a devastar o gado, as plantações e as
pastagens, ao passo que os rios e os açudes empobreciam como fidalgos
pródigos.
Também as preces, em vez de levantar os ânimos, copiaram a desolação
da terra e tornaram-se a ceva mística do desalento. Quando as procissões
recolhiam ao som das monodias religiosas, e extinguiam-se os archotes, e apagavam-se
as velas dos altares, escureciam igualmente o templo e as consciências.
A claridade elétrica do luar, caindo então sobre a comum tristeza,
parecia o olhar esgazeado de miséria a magnetizar o povoado.
É que o pânico feriu, de improviso, a energia das populações
de sudoeste, assim como a de toda a Província do Ceará. Estatelavam
todas ante a perspectiva hostil do futuro, numa resignação de
faquir que se imola, e, como se tivessem um prurido de angústias, recontavam-se
histórias de outras épocas horrorosamente calamitosas. Demais,
a superstição abriu logo as longas asas de corvo e pairou sobre
os espíritos acovardados. Um círculo alourado em torno da lua,
a queda de um meteoro, as cores do crepúsculo, tudo foi considerado
prenúncio da esperada desgraça. O templo substituiu a consolação
pela ameaça, a esperança pelo desconforto. Assim é que
o vigário Paula, conhecido até então como pouco severo,
transformou a calma desleixada do seu olhar numa austeridade fria de juiz;
o tom vulgar de suas práticas de outrora numa entoação
cava de agouro. As donzelas tiritavam o velo; a sua estola, roxa como o rebordo
de uma chaga, e a sobrepeliz, alva como os cogumelos novos, lembravam-lhes
o caixão e a mortalha, e a boca do sacerdote afigurava-se-lhes a entrada
da cova inexorável.
A paróquia tornou-se um imenso beatério, que se angustiava
profundamente ao ouvir explicado, com os pormenores da perversidade, um hieróglifo
escrito na memória de todos por um missionário capuchinho. O
vigário o repetia pausadamente:
– Em 77 muito rasto e pouco pasto; em 78 muito pasto e pouco rasto.
E explicava em seguida:
– É que haveis de fugir de vossas moradas, como a caça acuada,
tendo horror ao próprio som das vossas pisadas. A seca, porém,
vos seguirá os passos como um cão destro, e para onde quer que
fujais, lá encontrareis o desabrigo, a fome e a morte.
Estava-se já em princípios de março, e a fatalidade
parecia ratificar a crueza de tais predições. Do alto da colina,
em que está a sede da paróquia, com suas casas esparsas pela
extensão das ruas embrionárias e pelo contorno da praça;
com a sua igreja caiada, sem torres, tendo um telheiro por campanário,
viam-se os incalculáveis estragos do verão. Era um espetáculo
solene e tristonho. A planície estendia-se amplamente, semelhante a
uma cicatriz enorme no meio do verdor sadio das carnaubeiras novas e das grandes
touceiras de mandacarus, cujos grupamentos de estolhos semelhavam-se a órgãos
de esmeralda encravados na charneca. Os pequenos casais, que apareciam ao
longe, com os seus tetos de palha, as suas paredes caiadas, e os currais de
pau-a-pique, desertos e negros de estrume, recordavam outras tantas tendas
da penúria. O rio Jaguaribe, perdida a abundância hibernal, estava
reduzido a algumas poças. As suas ribanceiras descobertas, altas como
dois muros; o seu leito despido em vastas coroas de areia, amarelas como o
âmbar, pareciam uma vala de cemitério, babando viva gula de cadáveres.
Uma nuvem de urubus, que, dividindo-se e subdividindo-se, ora pousava nas
capoeiras ou no solo, servia de outros tantos marcos à morte. É
que o gado caía por centenas, como num matadouro, ou, faminto e sedento,
cambaleava a fraqueza das suas ossadas a roer folhas mortas pela intensidade
da canícula.
Foi, pois, com uma violência selvagem que, na véspera do outono,
dia de São José, a alegria irrompeu do seio da paróquia.
O sertanejo não desarmou a rede nem arranjou o mocó para partir;
vestiu-se de gala, porque o verão simulou chegar ao seu termo. Fria
e sombrosa madrugada quebrou a monotonia das auroras enfartadas de sol; uma
bafagem úmida bruniu a copa empoeirada das árvores e cochichou
nos capoeirões sussurros de temporal. As nuvens obesas de chuveiros
alegravam como a carranca mais feia na festa dos bobos, e a paisagem tomou
o ar descanoado do convalescente a respirar o ambiente oxigenado de uma hora,
ainda úmida da rega matutina.
A igreja acompanhou-a na brusca mutação. Já não
dobrava como por finados; os sinos, festivamente tangidos, entoavam uma aleluia
àquelas vastas ruínas, e os seus repiques prolongados penetravam
pelas casas com um ruído jovial de irmãos recém-chegados,
sacudindo os sonolentos e acordando-os em sobressalto feliz. Também,
à hora da missa, não se via uma população mesta
e combalida, mas o povo com a sua alma sonora, enchendo as ruas e a praça
de uma prasenteria anárquica.
Cerca de uma hora da tarde, porém, a sede paroquial ficou silenciosa
e quase deserta. A multidão, tomando a ladeira norte da colina, escoou-se
alvoroçada aspirando os sons de um búzio, três vezes repetidos.
Foram como um pedaço de ímã, caído sobre um monte
de limalha, aqueles sons cabalísticos; atraíram, arrastaram
os grupos, que irresistivelmente correram de encontro a eles. Nem as pessoas
mais graduadas, as que não tinham estadiado na praça, puderam
conter-se. O próprio vigário Paula, reunido à família
do professor público Francisco de Queiroz e à do velho criador
Rogério Monte, seguiu alegremente ao encalço da multidão.
Havia neste grupo a dignidade da proeminência social. O vigário
com seu chapéu redondo de grandes borlas pretas, a sua batina lilás,
colhida na cintura pelos alamares da seda, levava pelo braço, com um
passo cadenciado, a filha mais velha de Queiroz. Chamava-se Eulália
e era uma rapariga de 20 anos, porte direito como a palma da acácia,
andar firme e resoluto, ao de leve sacudido, como o ramo do ingazeiro que
molha a ponta na correnteza. Rebentavam-lhe os seios com o vigor pujante da
puberdade, tomando o corpinho branco e justo a conformação das
graviolas verdes. Deles o colo enérgico tirava a curva das estátuas,
e como que a cintura desbastava mais a circunferência de cone truncado
junto ao ápice. Coroava-lhe o tronco forte uma cabeça sibilina,
sumida artisticamente numa cabeleira negra, farta e lustrosa, enquadrando
um rosto oval, moreno, corado e carnudo, recebendo um tom de nobreza principesca
dos olhos à flor das pálpebras, vividos, maliciosos, e das narinas
graciosamente vincadas. Ia pensativa, contra o seu hábito que era uma
ponta de estroinice, desfeita em risadas de uma alegria clara, como as pojaduras
de leite.
O vigário, por sua vez, guardava um retraimento cavalheiresco, de
quem não quer incomodar. Só de vez em quando demorava o passo,
e com uma voz meio autoritária, meio meiga, fazia notar as devastações
da seca.
Estava ao natural. Era frio como as pedras de ara, pouco familiar no trato,
exceto para com Eulália e o professor, com o qual havia colegiado –
bom tempo de que um velho muro guardava a recordação numa frase
obscena. O corpo atlético, mas proporcional e correto, ostentava músculos
demais, que no entanto não impediam que se lhe sentisse facilmente
o estremecimento do coração. O rosto de puro tipo indígena,
embutido numa cabeleira dura e corredia, bebia nos negros olhos fundos, extraordinariamente
brilhantes, uma expressão entre o escárnio e a piedade. A sua
arma predileta era o desprezo, e, quando lhe chegava aos ouvidos alguma murmuração
desagradável, movia desdenhosamente os ombros para não se desculpar.
Já em meio da ladeira, Eulália, que se tinha limitado a concordar
com o seu companheiro, dirigiu-lhe por sua vez a palavra.
– Quero pedir-lhe um favor – disse. – Durante todo esse tempo de prece, o
senhor nunca se lembrou de mim para fazer parte das virgens, que levam o andor
de Nossa Senhora. Peço-lhe que me dê hoje um lugar entre elas.
– Não pode ser – respondeu secamente o vigário.
– Por quê? – interrompeu-o Eulália, corando com todo o pudor
dos seus 20 anos.
– Por quê? – repetiu ele com o arrependimento no olhar e meiguice extrema
na voz. – Os seus ombros ficariam magoados.
– Não, não é esta a razão – respondeu sorrindo
ao galanteio. – Eu não sou melhor do que as outras. Irena é
mais fraca e não se tem magoado; já vê que posso.
– Mas que pecados tem você cometido para querer fazer este sacrifício?
– Isto é o que se há de dizer, para notar que eu não
fui incluída no número das virgens de Nossa Senhora.
– Pois bem – tartamudeou precipitadamente o vigário – diga-lhes que
eu não a convidei, porque entre você e a imagem, esta é
que deve carregá-la…
Eulália fitou-o assombrada, mas já a frieza natural do vigário
havia-lhe extinguido o arrebatamento e um sorriso paternal substituíra
o grito do coração.
– Não se entristeça por ninharias, minha filha. Quer ser uma
das virgens? Se-lo-á. Está satisfeita agora?
Ela meneou afirmativamente a cabeça, mas conservou baixos os olhos,
que tinham descaído num enleio pudico, e pôs-se a demorar o passo
para ficar mais próximo da família. Queria evitar que ainda
uma vez ouvisse alguma frase que a impressionasse pela afoiteza estranha.
Já, em poucas horas, era a segunda vez que o vigário assim se
lhe dirigia: em casa, jogando as prendas, conheceu que vinha dele uma sentença
que a tornou pensativa: "Está na berlinda porque faz pecar sobre
a terra". Agora, num assomo sacrílego dissera-lhe… nem sabia
o quê.
Paula, compreendendo que a sua ousadia magoara a companheira, e sem saber
como distraí-la, apontou para o cemitério que se estendia ao
lado, como um vasto supedâneo de um cruzeiro negro, em cujos braços
alvejava uma coroa de espinhos. Próximo à base do cruzeiro branqueava
uma carneira toscamente acabada.
– Ali dorme o velho vigário, descansado da sua asma -disse ele. –
Lembra-se de que, em pequena, tinha muito medo da sua tosse e dos seus olhos
esbugalhados?
Eulália sorriu, olhando para o cemitério como uma criança
consolada, e o vigário acrescentou:
– Tanto medo como teve ainda agora de mim, não é verdade?
A moça continuou a sorrir, e as suas feições asserenaram.
A voz dos outros companheiros veio envolvê-los, restituindo assim a
paz àquele espírito timorato.
Em breve chegaram à planície, e permearam a multidão,
que lhes abria alas, cortejando-os e descobrindo-se reverentemente.
– Aí está o que lhes agrada – disse o vigário, assinalando
a multidão. – Deus é só para os apertos.
Os sons do búzio estrugiram com toda a sua aspereza selvagem.
Entraram em um barracão vastíssimo, ruína de um antigo
engenho que pertenceu ao patrimônio dos Montes. Era um lugar triste
como o abandono, e acreditavam que servia de ponto de reunião as almas
penadas e de entrevistas de bruxas e demônios.
Muita gente viu aí, por horas mortas, tripúdios tetérrimos
de esqueletos à luz de fogos-fátuos, cadenciados por uivos de
cães e pios de noitibós. Cavava-se um enorme abismo que substituía
o solo do casarão por um ambiente visível, de um colorido luminoso
como as chamas de álcool num vaso de cobre. Então, como a poeira
no raio de sol coado por uma fresta, a aluvião de fantasmas, movendo
os maxilares num cântico sem eco, ondeava, baralhava-se, passava daqui
para ali, e tomava a catadura marcial dos guerreiros nos baixos-revelos assírios.
Depois vinham meiguices e ameaças, atitudes humilhadas e blasfemas,
calmas de lago e cóleras de fera.
Não era também raro contar que se tinha ouvido, à noite,
o estrépito soturno de um desmoronamento. Sentia-se o cavo som do baque
das paredes, e depois o prolongado estralar de telhas que se quebravam. E
toda a gente acreditava que era o Engenho mal-assombrado que tinha vindo ao
chão. No entanto, no dia seguinte, lá estava ele de pé,
com os mesmos buracos no telhado, com os mesmos esteios negros enfileirados
como um pelotão de gigantes.
A imaginação popular sancionava estas criações
supersticiosas por uma lenda que habitava o isolamento do triste edifício,
enchendo-o de par com o vôo das revoadas negras dos morcegos. Narrava
a lenda sombria uma festa esplêndida, em que se casavam rufos de adufes
e cantigas de violeiros, os trilos das violas com os sapateados e palmas dos
dançadores. No meio da festa, porém, uma horda de facínoras,
gente dos Feitosas, entrou e, apunhalando o hospedeiro, constrangeu a sua
esposa formosa a dançar em torno do cadáver ensangüentado,
baldão e ludíbrio dos assassinos. Hoje, as danças dos
duendes reproduziam no seu horror aquela cena medonha.
Tal era o lugar em que se achava a multidão, trepada sobre caieiras
de entulho das paredes desabadas, que tornavam côncava a superfície
do solo. Trouxera-a aí uma curiosidade bárbara, um apetite de
desastre e de horror: o espetáculo das cobras com o Feiticeiro.
– Hum! – ponderavam alguns. – Esse demônio bate a bota brincando.
– Que o leve o diabo! – respondiam outros. – Ele faz-se besta com bichos.
– Quem sabe se as cobras têm dentes?
– No Crato houve quem duvidasse e pagou com a vida a experiência.
– Olhem, está-se mesmo a ver que ele tem parte com o diabo – apontavam
outros. – Que olhos!
Do meio da grande massa popular destacavam-se dois indivíduos, que
havia mais de um mês habitavam a ruína. Um, ainda criança,
teria 12 para 13 anos e era robusto, muito esperto, de olhos cheios de vivacidade,
boca rasgada entre os lábios grossos, e gengivas vermelhas como cardos,
em que se embutiam dentes alvos e sãos; os da frente, no maxilar superior,
agudos como os caninos. O outro era um homem de corpo desenvolvido, fisionomia
carrancuda, antipática, olhares suspeitosos, gestos untuosos de emboscado,
palavra humilde e atenciosa. Levava uma vida misteriosa, sempre em lugares
tristes e de má fama. Filho do norte da Província, contavam
que, a primeira vez que foi visto, saía da Bajara, a casa encantada
que mãos ignoradas cavaram no maciço da Serra Grande, muito
espaçosa, com grandes mesas e bancos talhados na homogeneidade da rocha.
Quase toda a Província o conhecia e tinha-lhe medo pela sua profissão
incrível: brincar com um bando de cascavéis. Chamavam-no por
isso o Feiticeiro.
A voz da multidão punha no recinto um sussurro de mosqueiro; as mulheres
conchegavam-se, os homens punham-se em bicos de pés e tiravam os chapeirões
para não incomodar os vizinhos. O pequeno, o Cabrazinho, conforme o
chamavam, pôs-se a intermear o povo e a receber no seu chapéu
de couro moedas de cobre. Finda a miúda cobrança, começou
o desejado espetáculo, na plenitude do seu assombro.
No meio do barracão havia uma espécie de abajur, feito de um
estreito traçado de taquara, dentro do qual podia-se estar de pé,
à vontade, e girar numa área de vinte palmos. Para aí
entraram o Feiticeiro e o pequeno, ambos carregando gaiolas onde se viam os
corpos das cascavéis, grossas como um antebraço atlético,
medonhas apesar do seu fino colorido marrom hidrargirado. O pequeno veio depois
colocar-se fora, junto à portinhola que servia de entrada, e aí
recebia as gaiolas. esvaziadas pelo Feiticeiro, que sacudia no chão
os seus venenosos artistas.
O terror começou a invadir a multidão, que silenciou e ficou
a olhar embasbacada para aquele ente privilegiado, sereno, embora rodeado
pela morte. A musculação forte das omoplatas como que tinha
cintilações sobrenaturais; as nuas barrigas das suas pernas
esgalgadas pareciam ter concentrado toda a força vivaz da agilidade.
As cascavéis fitavam-no com a submissão de cães amigos.
O Feiticeiro rugiu então seu maracá, e aos sons do bater das
pedras na esfera da lata, corno que se propagou uma alucinação
geral. Os espectadores davam-se vaivéns para se arrumarem em bom lugar;
as cascavéis, que estavam enroscadas e como que receosas, davam botes
e queriam investir. Mas o maracá parou de súbito, e os oito
monstros, raivando nas suas enormes rodilhas, por sua vez principiaram a chocalhar,
vibrando as pontas das caudas, conformadas como a extremidade dos sabugos
de milho.
O maracá ressoou novamente, instigando-lhes a fúria. Corria-lhes
pelo corpo um arrepio de cólera, que lhes dava às cabeças
contrações epilépticas, e lhes descerrava convulsamente
os queixos, abrindo saída às línguas trífidas
e vermelhas, rápidas como relâmpagos. O Feiticeiro, postado junto
às malhas da rede, olhava-as com desdém e dizia frases de palhaço,
repassadas de escárnio boçal. Os espectadores tremiam e tinham
os sorrisos desenxabidos de quem dissimula o medo. Mas os demônios do
sertão pareciam recear e apenas continuavam nos seus botes céleres
e repetidos, que não atingiam o alvo.
– Coisas ruins! – disse por entre os dentes o Feiticeiro. – E tirando da
cinta uma varinha e fustigando-as: – Fora! Não prestam para nada.
O desprezo como que doeu às terríveis envenenadoras. Desenroscando-se
e levantando-se ao meio corpo, atiraram-se ao provocador. Neste momento, porém,
saltou dentro do circo o pequeno caboclo, e, seminu como
seu pai, pôs-se como ele a agitar o seu pequeno maracá, Possessos
e furibundos, os monstros acometeram o tememário, impetuosos como se
o fossem estrangular.
– Devagar! Devagar! – bradou o Feiticeiro. – Devagar!
O terror tinha invadido até a medula dos espectadores boquiabertos:
alguns tentaram fugir; as mulheres tiritavam e chamavam baixinho por Jesus.
Nas imaginações exaltadas, viam já estrebuchando por
terra a pobre criança, talvez violentada a tamanha temeridade. O pequeno,
porém, sorria, enquanto as cascavéis trepavam-lhe pelo corpo
e enovelavam-se-lhe pelas pernas, pela cintura e pelos braços. O terror
aumentava, a morte afigurava-se iminente; mas as cascavéis, em vez
de crivarem-no de dentadas, limitaram-se a lamber-lhe o pescoço e as
curvas, com a brandura de um cão a afagar seu dono. O rapazinho, encolhendo-se,
assim como quem sente frio, continuava a rir sossegado, dentro de sua túnica
de veneno, sonora como um chichard de guizos.
O Feiticeiro aproximou-se então, e, fitando os monstros com o seu
olhar magnético, prosseguiu a enfurecê-los pelo rugir do maracá.
Como que afadigadas, as cascavéis, longe de se irritarem, deitaram
as cabeças submissamente. Então o Feiticeiro, semelhante ao
hortelão desentrançando videiras, pôs-se a desenleá-las
e a fechá-las nas gaiolas. Duas apenas, as maiores, ficaram fora, prontas
como duas armas engatilhadas.
Depois que o rapazinho saiu do circo entre os aplausos da multidão,
o maracá rugiu veementemente, provocando nas duas cobras, gigantescas,
cólera de energúmeno com espasmos de histeria. Partiram com
setas e, ora acometendo, ora enovelando-se, moviam as línguas nervosamente,
começando já a querer morder os próprios corpos.
O Feiticeiro, sacudindo-se cadenciadamente ao som do rude instrumento, numa
dança selvagem, resmoneava uma canção lúgubre;
os espectadores olhavam com o olhar os pesadelos.
Afinal, o homem sobrenatural acocorou-se ante as duas possessas que o fitavam,
agitando-se quase imperceptivelmente, como os gatos, quando face a face se
encaram a ensaiar carícias brutais dos seus brutais amores. O instrumento
selvagem continuou a espalhar o seu fermento de guerra, até que foi
vibrado como ameaça. Num salto rápido e temeroso, as cascavéis
galgaram a distância que se lhes interpunham, e com expansabilidade
de uma cólera explosiva, agarraram-se aos braços do seu provocador.
– Quem compra miçangas?! gritou o caboclo, com um sorriso mau.
Mas, em seguida, deixando-se cair por terra, gemeu sentidamente:
– Ai! E desta vez que eu morro.
Rompeu então em estrebuchamentos convulsos, compungentes, que não
tinham força entretanto para desvencilhá-lo das vingativas dentadas.
O pequeno, junto da portinhola, tinha um olhar amedrontado, ao passo que seu
pai ia aos poucos diminuindo os movimentos e caindo num relaxamento muscular
assustador.
– Está morto! Está morto – gritaram. – Desencantou; fuja quem
não quer morrer!
E a multidão inteira alvorotou-se, e acotovelando-se, atropelando-se,
fugiu do medonho lugar, enquanto o pequeno, rindo muito, penetrava no circo
para desembaraçar os braços de seu pai dos venenosos ornatos.
– Malvados! – disse o Feiticeiro levantando-se. – Deixar-me-iam morrer como
um cachorro!
No meio do rebuliço e pânico geral, que esvaziara, como que
por encanto, o vasto casarão, deixando-o entregue à sua habitual
tristeza de esfinge, só um homem se manteve diferente ao que se passara
– o vigário Paula. Durante o espetáculo persistira em seguir
com o olhar um rapaz claro, de barbas e cabelos louros, corpo desbastado e
esbelto, e cujos olhos insistiam em uma atenção contemplativa
ao grupo formado pela filhas de Queiroz e Irena Monte. Em uma das ocasiões
o olhar do vigário encontrou-se com o do moço, e este mostrou-se
dominado por um vexame profundo.
– Conhece o Augusto Feitosa? – perguntou ele a Eulália.
– Sim, muito – respondeu-lhe a moça distraidamente – já o vi
aqui.
Paula concluiu logo que a pertinácia daquela contemplação
tinha Eulália por alvo. Lembrou-se de que entre Irena e o rapaz interpunham-se
dois séculos de ódio incansável entre as suas famílias;
as outras filhas de Queiroz não pensavam ainda em corresponder a galanteios.
A sua suspeita, pois, não demorou em tornar-se uma certeza dolorosa,
e o vigário ficou sombrio como quem acaba de ouvir as derradeiras palavras
de um ente caro.
No jantar em casa de Queiroz, enquanto os outros, mastigando com o apetite
sertanejo grandes pedaços de assados, riam comentando o espetáculo,
ele se conservava mudo a olhar indiferente.
– Estou incomodado dos nervos – pretextou para explicar a tristeza.
À tardinha, quando na igreja distribuiu os lugares do andor da Virgem,
ao passo que se dirigiu a todas com meiguice, dizendo palavras amáveis,
ao chegar a Eulália, os seus olhos fuzilaram, e foi com um tom repreensivo
e um gesto de contrariedade que lhe disse bruscamente:
– A senhora também.
Ela o ouviu com estranheza, mas agradecida: não seria apontada, estava
entre as virgens de Nossa Senhora. E sentia-se feliz caminhando para esse
lugar de honra.
A procissão desfilou esplêndida no seu luxo de fé e contrição,
sob os olhos do vigário que espiava de preferência o andor da
Virgem, sobre os ombros de quatro donzelas. Entre elas figuravam Irena e Eulália,
esta agora livre do olhar contemplativo de Feitosa. Paula estava tranqüilo,
mas de repente parou e, brandindo o crucifixo que tinha entre as mãos,
resmungou com uma entoação angustiada:
– Ainda aqui, e eu não posso matá-lo!
Esta explosão de cólera tinha sido provocada por Augusto Feitosa,
que se colocara ao lado do andor, e, contrastando com a fúria do vigário,
abandonava-se à grande paz da multidão, que percorria devotamente
as ruas do povoado.
Era um espetáculo imponente de singeleza; a crença mergulhava
os espíritos num enlevo, que era como um esquecimento da vida, uma
aspiração infinita de um sono profundo, como deve ser o dos
arcanjos na tepidez das suas asas brancas, na calma da bem-aventurança.
Os cânticos, com as notas finais muito prolongadas, trêmulas de
contrição, aumentavam esse gozo suave, abafando os ruídos
do vento nas árvores e os mugidos tristes das boiadas famintas das
cercanias.
O crepúsculo trepou em vão pela face da sombra a ostentar o
seu corpo vermelho como um campo de recente batalha, e em vão nele
dissolveu os tons variegados, vivos, de cambiante indescritível. A
alma do sertanejo, deixando escoar toda a sombra que, havia três meses,
a escurecia, empanava todo esse brilho, toda essa grandiosa ostentação
fidalga e caprichosa de colorido e luz. Para ele se conservava ainda a escuridão
promissora, cheia de encantos para sua imaginação, como as faces
da rainha de Sabá para a delirante paixão do rei-poeta. A treva
era um prêmio da sua fé, a condensação das suas
preces tristonhas, e estas ainda ele as conservava inteiras e vivazes.
Não via senão as imagens do Cristo e da Virgem, e estas exalavam
tanta doçura, tanta consolação, de seus olhos amortecidos
pela dor, das suas faces maceradas pela resignação, que era
impossível alguém pensar nas ameaças temerosas do verão.
Mas, ao dobrar uma das esquinas, a procissão quase que recuou. Estava
de pé um homem, alto e magro, dessa magreza que é o extrato
da robustez. Seus olhos negros, esbotocados, como grandes laivos de sangue,
tinham a vivacidade convulsiva da loucura; os cabelos grandes, emaranhados
e muito grisalhos, atufavam-se sobre a cabeça, como um turbante de
estopa. Descalço, com as roupas estilhaçadas e sórdidas,
esse homem parecia um vômito da penúria deposto aí para
envilecer a devoção.
– Mau, mau – rosnava-se -, vizinhança de doidos é como traseira
de poldro xucro; cuidado! – diziam os fiéis, desviando-se dele receosos.
– Coitado! – murmuravam as mulheres – Como anda agora desprezado o pobre
Joaquim Maluco! A gente não sabe para que tem filhos.
– Qual coitado nem meio coitado – respondia-se-lhes. – Está com o
diabo no corpo: te esconjuro!
Hirto, embasbacado, a alguma distância das casas da rua, braços
cruzados sobre as costas, imóvel como uma estátua, o doido contemplou
por largo espaço o desdobramento luminoso do préstito; mas,
quando passou o primeiro grupo de virgens, vestidas de branco, com as cabeças
cobertas com toalhas alvíssimas, sobressaltou-se e, fundindo em lágrimas,
rompendo em soluços, ajoelhou-se com as mãos postas levantadas
sobre a cabeça.
– São os anjos – repetia o desgraçado -, são os anjos
que vêm buscar minha filha.
A sua voz, com a inflexão despedaçada do desespero, mudou o
temor geral em compaixão; todos esqueceram a antipatia supersticiosa
para homologar a sua angústia.
– Não se esquecerá nunca, o desgraçado! – diziam os
paroquianos.
E contavam o caso baixinho aos que não sabiam:
O velho era o Joaquim Mateiro, honrado como os que o são. Um dia soube-se
na sua casa que a filha mais velha estava grávida e confessava que
o seu amante era o defunto vigário, que a seduzira pela quaresma, ao
confessá-la no dia das Dores. O Joaquinzinho, irmão da seduzida,
calou-se e saiu com a sua espingarda de caça. A matriz estava aberta
e o vigário celebrava a missa, já no ponto de levantar a hóstia.
Impelido pela alucinação, o moço levou a arma ao rosto
e desfechou um tiro contra o vigário, mas a bala apenas varou a hóstia
e foi cravar-se na imagem de Nossa Senhora, que estava em frente. Desarmado,
perseguido, doido de indignação, o moço correu até
a casa, e, no meio da estupefação geral, armou-se com a sua
faca de mateiro e cravou-a até o fim da lâmina no coração
da irmã. O suicídio concluiu essa tremenda tragédia,
e o pai, não podendo resistir a tamanha dor, enlouqueceu.
Os grupos de virgens continuaram a desfilar, e o velho, sempre de joelhos,
repetia a sua frase de alucinado, sentida e comovente. Subitamente, porém,
levantou-se e, caminhando até o meio da ala, atirou para o andor da
Senhora da Piedade uma blasfêmia horripilante:
– Parem; os anjos da minha filha, os anjos de Deus não devem carregar
esta alcoviteira do vigário. Parem, parem!
– Virgem Mãe de Deus! – bradaram centenas de vozes.
– Perdão, perdão!
– Mãe de Deus, não! Não! – gritou o doido. – Foi ela,
a malvada, quem disse à minha filha: "vai, escuta o vigário".
Os cânticos cessaram, e a massa popular inteira caiu de joelhos, enquanto
um grupo arrastava para fora o doido, que se debatia com a força de
um tigre uivando amordaçado por mão possante.
As claridades do sol posto bruxuleavam no ocaso como uma fresta iluminada
por onde algum ente sobrenatural espiasse para a terra. Reinava um silêncio
tumular em torno das imagens, que pareciam mais tristes.
– Agnus Dei qui tolis peccata mundi – cantou por vezes o vigário,
com voz trêmula e comovida, até que o povo lhe respondeu com
uma entoação dolorosa:
– Miserere nobis.
Passou finalmente o estupor e a procissão prosseguiu, envolta em cânticos
tristes, repassados da fé ardente que a violenta comoção
havia produzido. Sentia-se a contrição profunda dos espíritos
no tom das singelas melopéias, que buscavam dar à Virgem um
desagravo solene; e foi sob o influxo deste sentimento que o préstito
entrou no templo, já noite fechada, à luz ondeante dos archotes.
Soprava esperto vento de leste, pondo um farfalho tépido nas gravioleiras
dos quintais. A pardacenta homogeneidade das nuvens rompera-se em grandes
rasgões, onde luziam estrelas com o alegre contraste das moitas de
mimoteias no escuro dos brejos. Dir-se-ia, enfim, que desde o crepúsculo
tinha cessado a hospedagem divina, tanto o aspecto do céu prognosticava
agora a volta dos luares imaculados e dos dias ardentes, de um esplendor perdulário.
Mas a cegueira benéfica da fé adiou a dolorosa desilusão.
Embebida nas harmonias acariciadoras dos salmos melancólicos, torturada
pela cena do agravo da Virgem, mas certa do perdão, a multidão
volveu às suas moradas sem reparar que o dia de São José
tinha passado sem chuva. A contrição e a esperança enchiam-lhe
o pensamento.
O vigário, porém, saiu da igreja sombrio e intratável,
sem ter feito prédica.
– Tenho o inferno na cabeça – disse ao sacristão. – Arrebento.
– Como não, sr. vigário? Aquele endemoninhado…
– Sim, o endemoninhado; mas há piores do que ele, e não obstante
vivem.
Quando chegou a casa, o seu coração de misantropo sangrava
como as veias de um estóico dentro do banho suicida. Os movimentos
automáticos traiam a inconsciência do delírio; as pupilas
negras nas córneas avermelhadas lembravam manchas de gangrena e pareciam
querer saltar das órbitas. Estouvado e brutal atirou com o chapéu
sobre a mesa; bateu com as janelas, e pisando forte e compassadamente, pôs-se
a passear com uma regularidade de pêndulo. A mobília pobre de
jacarandá lustrado, com o seu canapé forrado de sola, parecia
ter medo. A mesa grande, no meio da sala, como que recuava diante dos seus
passos. Um pequeno, que vinha sempre ajudá-lo a despir-se, entrou e,
sem ousar interrogá-lo, saiu deixando um castiçal sobre a mesa.
Só, estrangulando-se com o seu despeito, o vigário, com o olhar
fixo de um gato à espreita, andava, de extremidade a extremidade da
sala, de quando em quando segurando a batina, sacudindo-a como um tigre os
varões de ferro da sua gaiola.
De repente, porem, parou, levantou os punhos cerrados e a cabeça com
uma expressão compungente de desespero e de angústia. Como se
pulsos de aço o impelissem e subjugassem, cobriu o rosto com as mãos
espalmadas e deixou-se cair sobre uma cadeira, com a fronte sobre a mesa.
– Sr. vigário – murmurou da porta o pequeno – mandam chamar vosmecê
da casa do sr. Queiroz.
– Diga que estou doente; não posso ir a pagodes. Não me traga
mais recados; safe-se.
O pequeno, estremecendo de susto, retirou-se de pronto, mas, antes que tivesse
chegado à porta da rua, ouviu de novo a rude voz do seu amo, já
menos colérica:
– Ouça; pergunte de quem trouxeram o recado.
– Da sinhá Eulália – respondeu de fora uma voz de mulher.
– Estou doente – repetiu. – Demais não faço falta – e sacudindo
a cabeça -; quer divertir-se à minha custa. Víbora!
A última palavra foi proferida com um engasgo de cólera demente,
e o vigário, como que admirado de si mesmo, cruzou os braços
sobre o peito e ficou a olhar estatelado.
II
Eulália recebeu o recado no seu quarto de dormir, para onde se recolhera
com Irena. Tinham mudado a roupa, e sentadas, Eulália sobre uma caixa
de cedro, Irena encostada na rede, conversavam pequenas futilidades, enquanto
descansavam das fadigas da devoção.
Uma vela escura de carnaúba, num castiçal de ferro, ardia na
extremidade da caixa; um espelho de guarnição de pinho forrado
de papel com ramagens verdes e umas flores de miolo amarelo e corola acinerada,
reproduzia de quando em quando os traços de Irena aos morosos vaivéns
da rede. O desalinho das saias brancas muito engomadas, um vago cheiro de
alfazema, a pobreza asseada do quarto, acirravam nas duas moças a necessidade
de contarem intimamente o que viram, o que sentiram:
A freguesia nunca estivera tão bonita; como que não tinha ficado
uma só pessoa em casa. Estavam todos fora de si; quanto contentamento!
As mães e as irmãs nem davam pelo peso dos marmanjões
que traziam nos braços. É que eram muito fortes e sadias. A
praça parecia uma caldeira fervendo; que barulho enorme! Os homens
vestidos de ceroulas aniladas, a que se sobrepunham as fraldas das camisas,
também, muito azuis do anil, com os seus chapeirões de couro,
os pés grandes e esparramados nas alpargatas, faziam rir com a sua
originalidade primitiva. Os outros, vestidos de perneiras, véstia e
guarda-peito de couro muito cheios de bordados, com o chapeirão no
alto a cabeça, lembravam dias de ferra, em que todos perdiam a cabeça,
e doidos metiam a galope os cavalos, em risco de serem varados pelos chifres
do gado barbatão. Mas nada como as matutas com os seus cabelos longos,
corredios e lustrosos, muito negros, trançados em cruz do alto da cabeça
à nuca! Que dentes tão alvos, tão pontiagudos, tão
bem limados! E que bem feitos corpos, modelados pela compressão das
barbatanas na cassa muito viva dos seus vestidos afogados, de mangas curtas,
deixando ver completamente nus os seus braços carnudos! Na igreja e
durante a procissão, escondidas as cabeças em toalhas muito
rendadas, eram todas formosas. Só se lhes via os rostos num oval traçado
por junto das órbitas até a ponta do queixo, e assim ficavam
mais salientes os seus negros olhos piedosos, as narinas intumescidas, os
lábios grossos e rubros, os traços rudes, mais nobres, de mulheres
enérgicas. Mas o pior fora o doido; por que o deixavam sair? Por que
o não acariciavam em casa, coitado? Era digno de dó; ficou maluco
por amor dos filhos; deviam tratá-lo melhor os seus parentes.
Foi, interrompendo esta conversação amiga, que as duas moças
ouviram o recado de Paula, transmitido com uma fidelidade grosseira; e ambas
surpreendidas perguntaram qual a doença do vigário.
– Parece que é raiva; ele batia muito com os pés; gritou com
o José, e disse que não lhe trouxessem mais recados.
– Há de ser doença, a vista do doido talvez – ponderou Irena
quando ficaram de novo sós -, ele nem pregou o sermão.
Eulália conservou-se silenciosa por algum tempo, a sacudir as pernas
que rugiam na saia engomada, e a olha distraidamente com as pálpebras
meio cerradas. Os olhos azuis de Irena, preguiçosos como águas
represadas, muito fundos no seu rosto sóbrio de carnação,
como os dos arcanjos de mármore, e muito proporcionado à sua
estatura mediana e corpo franzino; os olhos de Irena envolveram Eulália
numa tácita interrogação.
Não havia entre elas segredo, eram amigas desde pequenas, porque foi
como pensionista de Francisco de Queiroz que Irena aprendeu a ler. Desde então
a vivacidade de uma temperava-se com a bonomia da outra, e Irena tonificava
o seu ânimo predisposto a ser dominado com a altivez de Eulália,
que era a sua força, a sua inspiração, a sua consciência.
Tinham intimidades desveladas, maiores do que as de irmãs, e não
obstante Eulália calava-se!
– O que tem você? – perguntou Irena admirada. – O vigário deu-lhe
alguma penitência má?
– Nem eu mesma sei o que tenho – respondeu com alguma demora. – Estou a pensar
no vigário, na sua raiva, e, de mistura com ela, no Joaquim Maluco.
– Então a raiva é com você?
– Parece.
Pôs-se então a contar a cena da igreja, a ida para o Engenho
mal-assombrado, os galanteios, as delicadezas excessivas que por muitas vezes
a tinham feito pensar, mas que nunca a impressionaram muito, porque todos
que viam e ouviam aplaudiam muito o vigário. Agora todas essas bondades
tinham-se mudado repentinamente em grosserias para com ela, em maneiras desabridamente
descorteses. Entretanto nunca o desrespeitara; tinha crescido aos seus olhos,
estimava-o, e ainda hoje beijava-lhe as mãos. Seu pai repetia-lhe sempre
que o vigário era o seu maior amigo, e contava-lhe que tinha sido seu
decurião; que viveram sempre como viviam elas duas. "Há
quem murmure do Paula – tinha-lhe por várias vezes dito – , mas é
que o não conhecem bem; chamaram-no frio e mau, porque é reservado
e sério; no fundo, porém, muito boa alma."
– Eu, pois – concluiu Eulália -, não lhe podia dar motivo para
ser maltratada, e por isso mesmo ressinto-me.
– Mas não dê importância; é que ele anda aborrecido.
Trata você como filha, e não repara no que diz e no que faz.
– Seja – respondeu Eulália, sacudindo os ombros. – E mudando de tom:
– Não sei por que estou só a pensar no Joaquim Maluco.
– É outra asneira; o que ele diz não ofende a Deus; é
doido.
Chamaram por elas; saíram, pois, dissimulando os vestígios
da pequena contrariedade. Mais uma vez na sala, no calor do jogo de prendas,
no esquecimento do "medir fitas", do "tirar do poço",
do "se minha boca fora condessa", da "caixinha dos três
desejos", Eulália retraiu-se e conservou-se pensativa.
Sofria sem saber por que, mas sofria; e como que se sentiu aliviada de um
peso na hora em que a reunião se dissolveu entre felicitações
pela chegada do inverno.
– Não pense mais no vigário nem no doido – disse-lhe Irena
ao sair -, sonhe comigo.
Eulália acolheu bondosamente o pedido da amiga, e passado pouco tempo,
resguardando apenas pela camisa de morim fino o seu pudor virginal à
curiosidade do espelho, sacudia os ombros, alongando o lábio desdenhosamente,
e metia-se na sua rede para dormir.
Lá fora luziam as estrelas com a tranqüilidade de um emboscado
seguro do descuido da vítima.
III
Quando já não se ouvia o som de nenhuma passada de transeunte,
um jato de luz entornou-se na sombra da praça. Escoara-se da janela
da casa do vigário, que vinha de quando em quando debruçar-se
ao peitoril, interrompendo assim um passeio automático. O seu semblante,
se bem já alguma cousa serenado, dizia que ele ainda estava sob a mesma
impressão; que o seu pensamento continuava a pairar sobre a imagem
de Eulália, profanando-a com um beijo de sátiro.
Cálculos temerosos enovelaram-se e desdobraram-se-lhe no cismar delirante;
às vezes parava de chofre e sorria, outras vezes tomava o ar grave
de quem aconselha, ou o aspecto carrancudo de quem ameaça; finalmente,
ajoelhando-se, exclamou, como quem calcula o efeito de uma cena romântica:
– Responder-lhe-ei: porque te amo
Este epílogo era inteiramente real. O coração frio de
Paula fora aquecido aos poucos, insensivelmente, como num banho-maria, à
luz dos olhos vivos de Eulália. Íntimo de Francisco de Queiroz,
acompanhara todas fases do desenvolvimento daquela formosura lapidar de estátua
grega. Quando voltou dos estudos no seminário tinha 22 anos e Eulália
apenas cinco. Era então muito dada com todos, muito afável,
e gostava de sentar-se no colo dos hóspedes para correr-lhe a mão
macia pela barba. Foi crescendo, crescendo, e, sempre a dobrar de beleza e
de afabilidade, ainda aos 11 anos vinha intrometer-se entre os joelhos de
Paula, então coadjutor da paróquia. Ele, acariciando-a, corria-lhe
a mão pelos cabelos, pela face e pelo colo, onde a demorava, sentindo-o
intumescido pela primeira efusão da puberdade. Ela pagava-lhe os afagos,
encostando-lhe a face morena sobre o ombro, e perguntando-lhe com um olhar
de cordeiro e um tom muito suave, por que é que ele não tinha
uma filha para brincar comigo; gostaria mais dela do que das bonecas que lhe
davam e que suas irmãs pequenas quebravam. Depois vira-a, à
medida que seus vestidos iam aumentado, diminuir as suas carícias,
tomá-la um retraimento delicado, limitar-se a um beijo na sua mão
grande de atleta e às perguntas pela sua saúde e pela concorrência
às missas. Então este beijo, aquecido por um hálito perfumado,
enfeixava, como raios num foco, tudo quanto ela lhe dera nas despreocupações
da meninice.
José do Patrocínio
Viveu assim satisfeito, sob o domínio de uma paixão acomodada,
cujo egoísmo se limitava a uma espécie de fanatismo religioso,
mas calmo, semelhante aos dos monges pelas santas dos seus conventos. Mais
tarde sobressaltou-se muito: Eulália estava com 16 anos, e seu próprio
pai falou-lhe em casá-la.
Todas as torturas do ciúme assaltaram-no inopinadamente com o ímpeto
de uma legião, com o desespero da impotência ofendida. Mas a
sua boa estrela veio-lhe em auxílio: a mulher de Queiroz morreu de
parto, e Eulália jurou não casar-se antes que sua irmãzinha
estivesse criada: um marido podia tirá-la de junto do berço
da órfã, e isto mata-la-ia.
Paula descansou na resolução de Eulália; conhecia a
energia do seu caráter, ardente como o sol, e infalível como
ele. A heroicidade do seu voto havia já quatro anos embalsamava-lhe
a virgindade e nunca a mais insignificante falha sobreviera. Dai aumentar-se
o culto silencioso do vigário, que só ultimamente começava
a querer patenteá-lo à maioridade da sua amada. Era, pois, sincero,
quando, de joelhos, exclamou
– Porque te amo.
Veio então recostar-se à janela, enxugando, com a ponta dos
dedos, talvez as primeiras lágrimas que tinha chorado depois do dia
em que fora sagrado sacerdote. O vento soprava com maior intensidade; era
quase violento, dissolvendo as nuvens ou acumulando-as em castelos opalados
na curva do ocaso. Já não havia escuridão, mas um leve
esfumarado, através do qual via-se o profundo azul do céu nítido
e estrelado, como a cauda de um pavão enorme.
A solidão esbatia-se na sua esmagadora integridade, cheia de evocações
misteriosas e de temores sobrenaturais, e do meio dela levantava-se, negra,
como o futuro, silenciosa como o além-túmulo, a massa agigantada
do cruzeiro do cemitério, nu e desornado, com os seus paus-a-pique
muito conchegados, como se fossem um quadro de esqueletos pulverulentos acostados
e unidos para se aquecerem da frialdade do relento. A paróquia inteira
parecia dormir. Só uma criança da vizinhança esgoelava
um choro birrento, estrídulo, inconsolável, apesar de uma acalentação
monótona, paciente como de um sonâmbulo, que se ouvia quando
o berreiro descaía em soluços.
Jazeu aí por largo tempo; mas as corujas com os seus ululos tristes
começaram a chamar-se para os amores nas trevas; os cavalos puseram-se
a soprar os seus bufos rumorosos, e batendo os chocalhos, enchiam o espaço
de estridentes relinchos, enquanto os galos da vizinhança cantavam
profiada e prolongadamente.
Paula estremeceu involuntariamente e, endireitando-se, aprumando-se em toda
a sua estatura, olhou para o céu, já sem as pegadas da tormenta,
e com a voz rude, repassada de perversidade satânica, resmungou, balanceando
o corpo:
– Bom, não temos inverno, ai vêm a fome e as epidemias; isto
vai ficar um inferno. Mas também quanto orgulho vai ser quebrado –
acrescentou sorrindo -, quanta baixeza surgir!
Fechou pacificamente as duas janelas, e tomando da vela, que já se
aproximava do fim, entrou no seu quarto, que abria sobre a sala. Já
em trajes de dormir, sentou-se à beira da sua rede, de grandes franjas
azuladas, pouco suspensa do chão, e persignou-se olhando de face um
Cristo esgrouviado, sarapintado das moscas, e que parecia não querer
encará-lo, tão pendida tinha a cabeça.
Alguns minutos depois o vigário resfolegava a respiração
compassada de quem dorme um sono tranqüilo. A vela ardendo dentro do
bocal, ora abatia a chama, ora exalava clarões esverdeados como a luzerna
de um vaga-lume.
IV
A placidez do sono desdobrou-se-lhe por sobre os atos do dia.
De manhã o vigário levou a aconselhar fé e resignação
aos seus vizinhos, que se mostravam aterrorados vendo o estio restituído
à sua ominosa soberania, constringindo a vegetação com
a força dos arrochos da jibóia. Mostravam-lhe o céu límpido,
o sol triunfante, e ao longe as maçarandubas desfolhadas, com os galhos
pendentes como os braços de um cadáver levantado pela cintura.
Não era mais possível a esperança; urgia tomar destino.
– Até junho, objetava ele, não há de que desesperar;
não virão grandes chuvas, mas sempre darão para plantar
vazantes de feijão e milho; já não se morrerá
de fome. Haverá penúria, é verdade, porém maior
castigo merecem os nossos pecados.
Foi dizer a missa muito sereno, e, cheio de bom humor, ouviu na sacristia
as lamentações do velho sacristão, queixando-se de que
os pobres já não podiam viver. Ainda ontem comprara rapaduras
à pataca; hoje lhe pediram um cruzado, e era se ele quisesse, apesar
de serem salobras. Comia-se já a farinha com parcimônia do mariscar
dos pintos, e a carne estava pela hora da morte. Ainda o que lhe valia era
algum dinheiro que o sr. vigário dava à sua afilhada; mas, se
a seca não parasse, já estava prevendo que morreriam de fome.
O vigário consolava-o com bonomia: – A paciência é a
maior das virtudes. De hora em hora Deus melhora.
Já a sair pela porta lateral, Paula teve um movimento brusco, e gritou
para o sacristão:
– Ó Marciano! Pode começar a desarmar os andores e pôr
os santos nos seus nichos.
– Então o sr. vigário espera…
– Sim, sim, havemos de ter inverno.
E saiu com o seu passo demorado e firme, dando a mão a beijar aos
pequenos que iam para a escola, e, descobrindo-se ao vê-lo, corriam
ao seu encontro como para um pai.
Na porta da venda do Antão Ramos, um sovina que se valia da sua autoridade
de inspetor para cobrar dívidas, parou ao ver a rusguenta autoridade
com um chapéu de palha à cabeça, mangas arregaçadas,
vendendo aguardente a dois cabras.
– Bom dia, sr. inspetor – disse sorrindo. – Vai cobrar agora os fiados, hein?
Felizardo! A vida é para você.
– Muito bom dia, sr. vigário… Mas eu não espero; o inverno
não parece ainda vir desta.
– É por isto mesmo; a seca é o seu inverno; com ela chove-lhe
mais em casa.
– Qual! Outros serão os felizes.
– Vá, vá chorando; lá diz o ditado: quem não
chora…
– … não mama – concluiu o inspetor Antão a rir e a endireitar
as ceroulas, levantando-se em bicos de pés sobre os tamancos e pendendo-se
ao umbral, para onde viera. – Antes falasse pela boca de um anjo, sr. vigário.
– Para que houvesse seca, hein?
– Não, senhor; para que me chovesse em casa.
– Tire o telhado, sr. cauíla.
Antão e os fregueses riram muito desse pedacinho do sr. vigário:
muito boa saída.
– É assim às vezes – ponderou Antão. – Mas quando anda
casmurro, não dá nem palavra.
– Mas é homem de repentiva – ponderou um freguês.
– Dizendo um sermão – acrescentou o inspetor – é de fazer tremer
e chorar um homem. Danado! A gente nem se lembra do que rosnam dele com a
filha mais velha do sacristão; chora mesmo para ai.
– Isto, quanto mais desabusados, mais temíveis.
O vigário, sempre no seu passo demorado e firme, continuou a andar
pela mesma face da praça, até que parou a uma das janelas da
casa de Queiroz.
Uma toada alegre escoava-se: era um uníssono de vozes infantis, cristalinas
e ternas, solfejo do A, B, C, essa escala singela das grandes composições
do gênio. Os meninos, sentados em longos bancos de pau, já muito
gastos pelo tempo, faziam movimentos ocultos de desatenção,
moviam os lábios, por detrás do livro aberto, em conversas rápidas,
que terminavam às vezes por visíveis ameaças, tentavam
beliscar-se, careteavam, mas a toada impulsiva dissolvia tudo isso, deixando
apenas substituir o eco do alfabeto, da tabuada e das leituras do Catecismo
e do Expositor, como um hino grandioso ao trabalho.
Ao fundo da sala, numa alta cadeira de braços, junto a uma grande
mesa, em torno da qual assentavam-se alguns meninos escrevendo e fazendo contas
em lousas negras, Francisco de Queiroz, dobrado o corpo numa curva ampla,
proferia censuras aqui e gabos ali, maquinalmente, com o hábito de
22 anos de ensino. Os seus olhos negros, metidos numas órbitas muito
fundas, que lhe tornavam as pomas ainda mais salientes, jorravam luz e confusão
no espírito das crianças. A voz alteava-se-lhe com a severidade
claustral dos velhos mestres, e sua mão desenvolvida, de quarentão
reforçado, empunhava uma régua com movimentos nervosos de impaciência.
– Deus esteja nesta casa – exclamou o vigário. E como os colegiais
se pusessem em pé: – Deus os abençoe; continuem a trabalhar.
– Entra, Paula, já vou lá ter – disse o professor.
O vigário atravessou a sala e entrou na de jantar, que ficava próxima.
As filhas de Queiroz trabalhavam também: as duas menores lendo muito
atentas junto da mesa, Eulália e Chiquinha crivando em travesseirinhas
vermelhas. Só a pequenita, a caçula, brincava sentada numa banca
a ninar uma boneca, de vez em quando dirigindo a sua velha tia, que fazia
renda ao pé de si, observações sobre a filhinha manhosa.
Um desalinho asseado revestia da respeitabilidade do lar as pessoas e os objetos.
Paula cumprimentou-as com o melhor dos seus sorrisos, a receber beijos na
mão grande e carnuda.
– Pensei que estava mal conosco – disse Eulália. – Não quis
vir tomar café ontem.
– Ah! Sim, ontem estive doente; os miolos estalavam-me; não sabia
o que dizia; fiquei quase doido.
– Pareceu-me que o sr. vigário padecia desde a tarde, antes da procissão.
– Antes, muito antes; adoeci lá no Engenho; aquele espetáculo.
.
– Pois nós todos gostamos e muito – interveio Chiquinha.
– É verdade, faz medo, mas é bonito – acrescentou Eulália.
– Hei de ir sempre ver.
– Quem vai a senhora ver? – disse Paula fingindo-se distraído.
– O Feiticeiro.
– Não vale a pena o trabalho: feiticeiros encontra-os a cada canto.
O vigário refreava-se, mas nem por isso a inflexão da sua voz
passou despercebida para Eulália, que levantou os olhos das suas carreiras
de crivo, e fitou-o penetrantemente. A dissimulação, porém,
fechou de todo o pensamento do vigário no incompreensível, e
Eulália, sorrindo maliciosamente, calou-se.
A conversação travou-se então entre o vigário
e d. Ana, a respeito da seca, e Paula profetizou como irredutível o
tremendo flagelo.
– Vai ser um ano de penúria e de fome. Não há que ver,
julgue por hoje: são dez horas, e o sol já queima como brasa;
olhe para tudo e note: as árvores têm o ar de quem se despede.
– Mas Deus é piedoso, sr. vigário – disse a boa da velha com
a sua voz de apática; – ele há de ouvir os nossos rogos.
– Ouvir?! Para isto era preciso que não o fizessem surdo com os pecados;
mas não é assim infelizmente. Nem junto ao andor da Virgem Mãe
de Deus, d. Ana, nem aí há respeito pela religião!…
– Ah! Sr. vigário, é um doido, um endemoninhado.
– Não é dos doidos que falo, é dos que têm juízo.
Eulália corou como se fosse ré, ao passo que suas irmãs
e a velha d. Ana encararam o vigário e olharam-se mutuamente, enquanto
Paula regozijava-se com o efeito da sua perversidade. Tinha ferido fundo,
a julgar pelo espanto geral e a mudança rápida de Eulália.
E então aquela alma ulcerada pelo despeito, com a autoridade da hipocrisia
respeitada, sedenta de vingança, gulosa de crueldade, repetiu solenemente:
– É o que lhes digo, junto do andor da Mãe de Deus falta-se
com o respeito à religião!
Eulália continuou com a cabeça baixa; o moreno corado das suas
faces tomou um colorido ictérico, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas,
a sua respiração começou a fazer-se a longos haustos,
e a força de dissimular o que sofria quase a obrigou a dar um grito.
Sentia ódio e desprezo pelo vigário, e, encarando-o sorrateiramente,
mostrava que a impelia o desejo de esbofeteá-lo, calcá-lo aos
pés como um inseto asqueroso. Aquelas palavras, que lhe eram dirigidas,
tinham a hediondez da calúnia, a frieza da infâmia, a perversidade
calculada da cobra, que se enrodilha nas moitas da estrada para morder o caminheiro.
Queria visivelmente ofendê-la, torturá-la, infamá-la.
Se não fosse esta a verdade, por que lhe regateara um lugar sob o andor
de Nossa Senhora, e, só no dia em que de mau humor lho dera, lembrou-se
de que faltava-se com o respeito à religião?!
– E hão de crer que é uma das pessoas mais queridas do lugar?
– ponderou o sacerdote. – Muito pode o pecado!
O silêncio dos ouvintes era profundo; com a cabeça inclinada
sobre os seus trabalhos parecia procurarem adivinhar quem seria esse ente
perverso. Por fim a velha d. Ana, com a sua voz muito cantada, abanando a
cabeça, disse:
– Não pode ser, sr. vigário; foi por força engano de
quem contou-lhe; na procissão de ontem, foi engano por força.
– Não… eu vi – respondeu Paula tranqüilamente – com estes que
a terra há de comer.
E arregalou os olhos abaixando as pálpebras inferiores com a ponta
dos dedos.
Um sorriso vitorioso pairou-lhe nos lábios. O despeito da véspera
esmagou-lhe o coração, sugou-lhe o que lhe restava de puro;
abismou-o em torturas cruas, inquisitoriais. Todas as fúrias do ciúme
tinham-se levantado de improviso diante de si, e umas apunhalavam-no enquanto
outras riam; umas lhe mostravam uma câmara nupcial, com um par feliz,
tímido da própria liberdade, com medo do seu direito suave subterfúgio
para prolongar a ventura; outras para vilipendiá-lo, para zombar dos
ímpetos do seu amor ultrajado, levantavam um crucifixo entre os seus
e os olhos do noivo, e o Cristo assumia então um tamanho disforme,
enchia com o seu peito o resto do aposento, como se lhe quisesse dizer que,
para chegar até os noivos, ele, sacerdote, seu ministro, havia primeiro
de atirá-lo em terra sacrilegamente. Então como que se sentia
morrer, enquanto que nos braços do seu rival Eulália deixava-se
afagar sem resistência. Vingava agora a sua noite de angústias;
estavam agora trocados os quadros dos seus pesadelos; ele podia rir, olhar
em face, ao passo que ela baixava os olhos como culpada, e não ousava
rir, porque sabia que o seu riso acabaria em lágrimas.
Deu-se por satisfeito; o seu quarto de hora matinal, consagrado ao amigo,
estava aproveitado; podia partir.
– Bem, bem – disse ele -, não posso demorar-me; vou almoçar;
até logo!
Passando junto à mesa, parou um pouco e, inclinando-se sobre as pequenas
que escreviam:
– Sim, senhoras – resmungou -, estão com umas letras muito bonitas,
parecidas com as donas.
– Então o que é isto? Vocês conversam calados ? – disse
o professor assomando à porta da sala. – Parece que estão fazendo
quarto a defunto
– Ficaram admiradas de um sacrilégio que lhes contei.
– Ora você, padre-mestre, não há de perder este sestro
de me pregar sermões em casa, homem? Quer converter isto em ninho de
beatas?! Até Eulália já parece inclinada!
– Quais beatas, se elas são suas filhas ?
– Gratias agamus Domino Deo nostro – respondeu Queiroz, curvando-se e batendo
no peito com grande força; – dignus et justus est.
Riram-se todos; o próprio vigário sorriu meneando a cabeça.
Eulália, porém, não mudou de atitude, e, ela que era
a mais expansiva, conservou-se calada e indiferente.
– Estás sentindo alguma coisa, minha filha? – perguntou Queiroz, suspendendo-lhe
a cabeça por uma pressão carinhosa sobre a testa.
– Eu? – respondeu ela, fitando-o tristemente. E sufocou-se numa explosão
de soluços.
– Vê? – observou Queiroz ao vigário. – O seu sermão fez-lhe
mal.
– Ora, uma história à-toa; há de ser nervos.
E saiu com o seu passo firme e pausado.
V
As consolações do sr. vigário, na sua manhã de
inexplicável bom humor, dissiparam-se como líquido volátil.
A desolação veio sentar-se silenciosa no meio da paróquia,
enquanto os últimos dias de março rolavam como avalanchas de
luz, deixando após si um rastro de desilusões e pânico.
A população nem mais ousou implorar; a última esperança
terminou o seu sonho de prosperidade no vestíbulo da miséria,
e o céu pareceu impenetrável como um edifício bloqueado
pelo incêndio. Para que levantar preces, que não voltariam à
terra convertidas na piedade divina, como os vapores da terra em chuvas benfazejas?
Os espíritos afizeram-se ao horror do seu destino, semelhantes às
revoadas dos corvos, os hóspedes negros da podridão, ao mau
cheiro da carniça. A dor atrofiou os corações, e a sensibilidade
enlerdou-os com a anestesia nojosa dos cães, que morrinhavam a digestão
de carnes podres, em sono pesado na areia morna do terreiro.
– É tempo de desarmar a rede e arrumar o mocó – já se
dizia baixinho. – Não se pode mais esperar.
– Amanhã, infalivelmente amanhã! – exclamavam, sempre que ouviam
o soturno clamor do vento da tarde, lúgubre como se fosse o uivo longínquo
da fome.
Mas a terra do berço não perdia o seu encanto; despida das
galas da fortuna, adquiria o prestígio da desgraça, e os pobres
paroquianos deixavam-se ficar no meio da tristeza dantesca, esmagadora, que
os rodeava, como os braços de mãe moribunda. A saudade descobria
sempre um pretexto: junho ainda vinha longe; os cajueiros ainda tinham uns
farrapos de copa com que farfalhassem ao vento agoureiro; à sombra
do carnaubal ainda se respigavam frutos.
Tais eram as condições da paróquia em meados de abril,
quando foi acabrunhada por mais um presságio da próxima calamidade,
objeto dos prós e contras de um grupo que espairecia conversando à
porta de Antão Ramos.
– A prova da seca é aqui o sr. inspetor com o preço dos seus
gêneros.
– É – desculpava-se Antão -, vocês se esquecem que daqui
ao Aracati é um queijo, e paga-se bom dinheiro para ter quem ponha
cá os gêneros. Deus os livre dos freteiros!
– Por isso é que Vossa Mercê carrega nos pobres; eles são
a sua tropa.
– Negócio é negócio, mas eu não sou o que vocês
dizem de mim; uma bolacha para os pobres, com a graça de Deus, sempre
hei de ter.
– Que os anjos digam amém, porque, até hoje, ninguém
lhe viu os cunhos à moeda.
– Ó sr. Antão, diga-me cá, não está à
espera de um cargueiro?
– Olaré, e de bem boa soma.
– Veja se aquilo que ali vem não faz parte da carga.
Voltaram-se todos e olharam para a banda ocidental da praça. Dois
homens caminhavam aceleradamente pelo meio do largo e, de um grosso pau atravessado
sobre os seus ombros robustos, bojava uma rede de algodão enegrecida
pela poeira.
– Muito boa graça! – exclamou amuado todo o grupo. -É algum
doente ou defunto: é muito boa graça!
Puseram-se então a observar para ver se conheciam os homens que transportavam
a rede; e como eles tomassem a direção da igreja, Antão
e os seus conversadores seguiram também para lá. À porta
do templo os dois homens depuseram no chão a sua pesada carga e, arfando
de cansaço, limpando com o indicador a testa, de onde borbulhava suor
a lhes escorrer pelas espessas barbas negras, cortejaram os curiosos. O inspetor
e os seus companheiros olharam-se assombrados e apiedados corresponderam.
Os homens, empoeirados, maltrapilhos, emagrecidos, semimortos de fadiga, pareceram-lhes
dois destroços do medonho desmoronamento do sertão.
– Vossas Mercês me inculcam onde mora o sr. vigário? -perguntou
um dos recém-chegados.
– E acolá – ensinou-lhes Antão Ramos, assinalando com o dedo
a casa do Paula. – O mais certo, porém, é que ele esteja ali.
E mostrou o casebre em que residia o sacristão.
– E o lugar mais certo – justificaram os outros com malignidade; – é
a toca.
– Doença ou morte? – perguntou Antão Ramos apontando para a
rede.
– E morte, sim senhor – respondeu o recém-chegado -, e nós
queríamos ver se o sr. vigário encomendava e mandava fazer o
enterro.
– Pois é ir acolá, enquanto é dia – ponderou o inspetor;
– é ir num pé.
O sertanejo partiu.
Começaram logo as perguntas habituais na província, onde a
fraternidade é um sentimento profundo, e o outro sertanejo, que ficou
de guarda ao cadáver, desfiou ingenuamente as respostas:
Eram de Inhamuns, mesmo do interior do sertão; tinham abandonado um
pedacinho de terra que possuíam, porque Inhamuns era hoje o mesmo que
uma fornalha. A gente, de alpargatas, sentia tanto calor nos pés como
se estivesse descalço sobre brasas. Ia para 30 dias que o defunto,
a quem Deus falasse na alma, tinha chegado a Inhamuns. Era de muito longe;
morava lá para Maria Pereira, por esses bibocões do mundo, e,
muito sabido no entendimento do tempo, não quis mais esperar para ver
em que dava o verão. O velho meteu a cara e veio de cabeça baixa,
navegando por esses estradões fora que até, Virgem! era um desconforme.
Ele vinha a ser sogro daquele que foi chamar o vigário, que era irmão
do narrador. Contara o velho que lá em Maria Pereira estava tudo que
era uma desgraça, e por isso tinha vindo de mudança. Pelos seus
cálculos o Ceará estava perdido. Há duas pedras na serra
Grande, a Itaquatiara e a que ele chamava Rei do Fogo. Quando a Itaquatiara
fala com a sua voz de pedra, há inverno; mas quando por alta noite
o Rei do Fogo acende o seu penacho de luz muito azul e cor de ouro, é
um ano de seca. O velho soube que por três vezes brilhou a chama do
facho que ninguém acende, e fugiu aos três anos de seca, de epidemia
e de morte. Inhamuns, porém, estava já muito crestado da seca,
e o pouco que o narrador e seu irmão tinham dava mal para sustentar
as suas famílias. Extinguiu-se logo depois da chegada do velho com
a sua gente, e então para fugir à fome resolveram partir. O
velho coitado, não pôde resistir às longas jornadas, e
nesse dia pela madrugada tinha morrido, deixando uma ninhada de dez filhos.
– Mas já está tudo tão mau por lá, que é
preciso fugir? – perguntou Antão Ramos.
– Já para um ano – continuou o narrador – não pousam em bando
sobre as ramagens da oiticica as nuvens de papagaios e periquitos, e há
mais de seis meses come-se a farinha ralada do miolo da carnaúba. A
terra está rachada de secura, e da gadaria não resta mais do
que a ossada branca. Nós só deixamos a nossa terra, quando não
tínhamos nem mais uma cabeça de bezerro; o último boi
que apuramos é que nos tem servido para comer na viagem. Está
tudo num desespero, e vem aí para baixo um povaréu de meter
medo.
– Que desgraça! Santo Deus, que desgraça! – repetiram os ouvintes.
O narrador ia prosseguir para satisfazer o crescido número de curiosos
que o ouviam comiserados, porque a sorte de Inhamuns era a da sua paróquia,
e, talvez, a de toda a província. Mas o vigário acabava de chegar,
e força era interromper-se a narração.
Os recém-chegados colocaram de novo a rede sobre os ombros e, precedidos
pelo vigário, seguidos pelos curiosos, entraram na igreja, cujas portas
foram no momento abertas pelo sacristão, com o seu mau humor habitual.
Dentro em pouco Paula voltou, e parando junto ao cadáver, em cujo
rosto a convulsão da morte estampara o último soluço,
principiou a encomendação com os gestos maquinais do homem de
ofício, que tem pressa e quer aviar-se. Manejando o hissope com rudeza
de pintor a sacudir a brocha, engrolou, com o adjutório do velho sacristão,
a mesta solenidade, e rapidamente pronunciou, já de costas para o cadáver,
o requiescat in pace.
– Que pitada deu-me o bicho! – disse voltando-se para o sacristão.
– E que cara tem ele!
Os parentes do morto choravam sentidamente, limpando os olhos vermelhos nas
mangas sórdidas da camisa. Paula olhou-os com a sua frieza marmórea,
e com a mais acentuada indiferença:
– Venham daí – disse-lhes; – falta ainda o assentamento e… pagar
a cova – acrescentou baixinho, dirigindo-se ao sacristão.
Os homens acompanharam-no até a sacristia, onde sobre uma velha mesa
um Cristo amarelecia o corpo e empoeirava as chagas ao desabrigo.
– Sabem que têm de pagar a cova? – perguntou Paula, recostando-se no
espaldar da sua cadeira.
– Sim, senhor; mas nós vamos de viagem, e só temos dez tostões
para as despesas.
– Isto é pouco – refletiu o vigário, olhando para o tinteiro
e batendo com a caneta na beirada da mesa -, com dez tostões não
se enterra um homem em sagrado.
– Mas é o que nós temos.
– Pois, meus ricos, o que querem que lhes faça? Vocês podiam
ter enterrado o homem no caminho: punham-lhe uma cruz em cima, e livravam-me
de incômodos.
Os dois sertanejos fundiram-se em lágrimas, e um deles, com uma acentuação
triste, respondeu:
– É que a gente, com ser pobre, pensa que deve ser enterrado como
cristão.
– É, mas precisa pagar a cova. Eu já dispenso a encomendação.
Os infelizes, com os olhos baixos e fazendo girar nas mãos os seus
chapeirões de couro, calaram-se, abafando os soluços que lhes
rompiam em bando. Paula, porém, não mudou de atitude; tamanha
dor não teve força para impressioná-lo.
– Em que ficamos? – perguntou depois de algum tempo de espera. – Está
quase a anoitecer, e não posso estar aqui até amanhã.
O genro do morto meteu a mão precipitadamente dentro de um bornal,
que trazia a tiracolo. Quando a tirou, trouxe suspenso um pequeno cordão
de ouro, de cuja extremidade pendia uma cruz.
– Isto chega para pagar a cova, sr. vigário? – perguntou timidamente.
E acrescentou. – o mais que eu tenho.
O vigário tomou desdenhosamente o objeto, e depois de examiná-lo
por miúdo, escovando na lila da sua batina a pequena cruz:
– Chega! – disse molhando a pena. – Ficará para Nossa Senhora da Piedade,
e sairá da minha algibeira ~ dinheiro da cova. Diga o nome.
Pôs-se a lançar o assentamento, e depois, dirigindo-se ao sacristão,
fez-lhe sinal para acompanhar os dois fregueses.
– Avie-se, Marciano; eu fico esperando-o aqui.
– É num pulo – resmungou o velho sacristão.
Paula foi debruçar-se à janela, cantarolando e enrolando um
cigarro descansadamente.
As últimas claridades do dia confundiam-se já com os primeiros
brilhos do luar. Pairava no ambiente uma tristeza sobrenatural, que se podia
chamar a melancolia de Deus. O carnaubal distante, já invadido pela
noite, vergando com uma branda flexão aos assopros do vento vespertino,
espalhava uns frêmitos convulsivos e tristes, como se ele fosse a boca
por onde se espalhassem os soluços da esterilidade. Os bois magros
e trôpegos desciam para o leito do Jaguaribe à procura de água,
semelhantes a um bando de esqueletos recolhendo-se a vala mortuária,
e junto das poças, com as ventas muito dilatadas, bebendo a longos
haustos e ruminando a não satisfeita gula do pasto, mugiam longamente
a sua fome, entristecendo ainda mais a hora melancólica da tarde.
O vigário, porém, indiferente ao que lhe ia em torno, fumava
a longas baforadas, imerso numa distração profunda. Tinha os
olhos pregados na casa de Queiroz, onde Eulália e suas irmãs
apascentavam também a sua curiosidade no grupo formado à porta
do templo. Esse olhar agudo, cheio de lubricidade de sátiro, como que
rompia todos os arcanos do pudor de Eulália, e mergulhava o observador
no delírio de uma festa orgíaca. Balançando-se nas pernas
encurvadas e bambas, acendendo cigarros uns após outros, o seu semblante
reproduzia o contentamento do tigre aspirando o cruor quente da vítima.
Sentia-se bem naquela preguiça que o deixava na posse inteira do seu
desejo, sem que o mais leve temor o perturbasse e o desviasse da sua contemplação.
Vendo diversas pessoas correrem para o lado da igreja, sorriu agradecido:
era um novo fomento à curiosidade da moça, e mais algum tempo
de gozo que lhe era dado ao coração de condenado. A noite, porém,
interpôs-se, e o encanto rompeu-se bruscamente.
– Está pronto, sr. vigário; lá ficou o homem – disse
Marciano.
– Bem, vamo-nos embora; leve aquele cordão para a sua Mundica e diga-lhe
que me guarde o café logo mais.
– Muito obrigado, muito obrigado – repetiu o sacristão, que estava
acendendo uma vela -, Deus é quem o há de pagar.
Na parede caiada, a sombra do velho esgroviado reproduziu-lhe com um desenvolvimento
gigantesco a zumbaia da desonra.
E saíram ambos. Marciano na frente, deixando retinir uma cambada de
chaves, alumiava e fechava com estrépito as portas e janelas da sacristia.
Paula seguia-o a alguma distância com o seu chapéu redondo na
mão. As pisadas rijas do vigário e o chap-chap demorado, raspado
pelos chinelos do sacristão no soalho tosco, reboavam.
Quando a chama da vela abriu-se, semelhante a uma pupila enorme, na escuridão
da nave, aumentou-se um burburinho que vinha da porta principal, e no corpo
da igreja ressoaram passadas em tropel.
– O que teremos mais? – perguntou Paula. – Quer ver que nos trazem outro
demônio a encomendar?
– Macacos me mordam, se eu duvido – respondeu o sacristão. – Os homens
disseram-me que a sua gente vinha pousar na freguesia, e como estão
todos a morrer de fome..
– Entendem que eu hei de estar aqui às ordens para encomendá-los
um por um! Não se façam bestas.
A claridade esbateu-se em cheio sobre parte dos que entravam, enquanto os
outros formavam círculo em torno do vigário e do velho Marciano.
Destacava-se da massa um grupo de vinte e poucas pessoas, entre as quais dois
sertanejos já conhecidos do vigário. Dir-se-ia um volvo da miséria
trazida ao templo acintosamente, e ao vê-lo misturava-se a comiseração
com o nojo. Nos rostos escaveirados, a máscara da fome estagnava-lhes
os olhares numa quietação comatosa, e dava-lhes às fisionomias
a acentuação do idiotismo. O desleixo enxovalhava a mocidade;
envilecia a velhice e deformava a meninice. Uma velhinha de pele pergaminhada,
já não podendo suster-se nas pernas fatigadas, sentou-se covando
um colo e mostrando os pés inchados, com profundos vincos das correias
das alpargatas. Pestanejando silenciosa, com os braços descaídos,
lembrava-se a gente das parcas sombrias que o cinzel assenta sobre os túmulos.
Duas mulheres, que traziam nos braços os filhos cobertos com uns farrapos,
esforçavam-se debalde por acalentá-los: as crianças,
ao contato daqueles seios muxibentos, vagiam com o ruído fraco e triste
dos sapos magnetizados. As moças, meio corpo em camisa, deixando a
descoberto os colos queimados pelas soalheiras e empastados por escuras mascarras
de suor e poeira, pareciam as personificações do desânimo.
Os seus olhos cearenses, olhos cheios de erupções de altivez,
ou de humildades de escrava, conservavam-se baixos, como se quisessem defender-lhes
os seios virgens, que tufavam no morim encardido das camisas puídas.
As crianças completavam o quadro: vestidas com umas camisolas que mal
lhes cobriam os ventres hidrópicos, cabelos emaranhados e piolhosos,
olhos ictéricos, o tórax deprimido, braços e pernas atrofiados,
pés inchados até os artelhos, assemelhavam-se a rãs mortas.
Perfiladas e seguras aos vestidos das mulheres, chupando gulosamente os dedos,
narravam no seu semblante bisonho uma longa história de sofrimento.
– Sr. vigário – disse Antão Ramos, que aproveitava todo ensejo
de mostrar-se autoridade -, este povaréu pede uma pousada. É
uma pobre gente de Inhamuns, lá para os confins daquele sertão.
– É uma obra de caridade dar pousada aos peregrinos – disse o vigário.
– Mas são 23 pessoas; custam a arranchar-se. Nós nos lembramos
de Vossa Mercê, por ser na paróquia a pessoa que tem menor família.
Eles pedem só para dormir.
– Lá está a casa – respondeu Paula, dissimulando a contrariedade
com um sorriso -, mas não será só por uma noite, porque
as crianças e os grandes mesmo não resistem a mais jornadas
sem descansar, pelo menos, quatro dias.
Muitas vozes concordaram; estavam dizendo justamente isto. Se os retirantes
não parassem para descansar, talvez não deitassem mais duas
jornadas fora, sem ficar algum pelo caminho.
– O melhor, portanto – continuou Paula serenamente -, é fazê-los
acomodarem-se no Engenho: ficarão à vontade, e o tempo que quiserem.
– Mas hoje não podem ir para lá – interrompeu Antão
Ramos. – Aquilo está um monturo.
– Na verdade, aquilo está um monturão – repetiram os circunstantes
-, até hão de morar cobras nos entulhos. Demais, o Feiticeiro
é má vizinhança.
– A minha casa lá está, já o disse – acentuou o vigário.
– Somente hão de dormir sobre os ladrilhos, porque eu só disponho
de dois armadores para redes.
– Três podem ser armadas na meia-água da minha casa, que já
está às ordens – observou Antão Ramos.
– Mais de três podem ficar na minha bolandeira – disse Rogério
Monte, que acabava de chegar.
– Graças – exclamou o vendeiro. – Está tudo arranjado…
E mais baixo:
– Fez-me não sei o que por dentro a cara desses cabras: isto é
boa gente por força.
O sertanejo, que à tarde entregara ao vigário o cordão
de ouro, teve um movimento brusco de contentamento, e, para testemunhar a
sua gratidão, que era partilhada pela família inteira, inclinou-se
e beijou a mão do vigário.
– Que lábia – resmungou o sacristão. – É que acha tolos.
O tom escarninho do velho impressionou profundamente os que o ouviram. Sabiam
que Marciano era a crônica viva daquelas paragens, embora não
tivesse arredado pé da paróquia havia mais de 30 anos. O pior
é que dizia sempre a verdade, e que os seus olhos perspicazes como
que viam, dentro de todos, os pensamentos os mais íntimos. Esta qualidade
adquirira-lhe inimigos irreconciliáveis e antipatias invencíveis,
no número das quais estava Antão Ramos.
O que é que está aí resmungando, velho Marciano? Lembre-se
de que está com os pés na cova e tem filhas. Não e bom
ser palmatória do mundo – disse o inspetor.
E, com mais severidade, acrescentou:
– Se você não escorropichasse galhetas, veria como não
lhe sobrava o tempo para espiar a vida alheia.
Marciano caminhou direito para o sertanejo, e, pondo-lhe a mão na
testa, exclamou, com um tom impertinente:
– Eis aqui por que eu falo; veja bem, sr. Antão, repare Vossa Mercê,
antes de mostrar que tem quijila de mim.
A sua voz roufenha, incômoda, inclemente, alteou-se então, e,
cortante como um punhal, fez ressoar esta tremenda injúria:
– É um ladrão que está aqui, uma corja de ladrões,
uma ninhada de ladrões.
O efeito de tais palavras foi medonho; subitamente a piedade mudou-se em
cólera, e os mesmos que pediam agasalho para os caminheiros gritavam
agora que os pusessem fora e os acossassem até longe, como se faz às
onças que não podem ser mortas.
O sertanejo, humilhado, cambaleando, levou maquinalmente a mão à
fronte, como se quisesse apagar daí o sinal infamatório, mas
retirou-a logo com ligeireza de quem se queimasse num ferro em brasa. O pânico
e o desespero injetaram-lhe os olhos de sangue e deixaram-no boquiaberto.
– É tarde já para esconder – chasqueou o sacristão.
– Todos viram. É uma cruz, por sinal que é feita por mão
de mestre e por uma ponta de faca bem afiada.
– Eis aí a pobre gente que, sem mais nem menos, queriam meter-me em
casa – disse o vigário sorrindo. – Mais cuidado para outra vez, mestre
Antão, quando oferecer a casa alheia.
O inspetor, olhando de revés para o sertanejo, apenas pôde responder
humildemente:
– Tem Vossa Mercê toda a razão, sr. vigário, enganei-me.
– Eu juro por Nosso Senhor Jesus Cristo – soluçou o desventurado,
a quem visavam as acusações. – Não sou um ladrão.
E, caindo aos pés do impassível Paula, ajuntou:
– Deus, que nos está vendo, fulmine-me com um raio se eu minto…
A impaciência dos espectadores interrompeu-o: não queriam ouvi-lo,
estavam fartos de lamentações iguais; que se pusesse fora com
todos os seus e bem longe do povoado.
Em vão as mulheres sufocavam-se em soluços, e o Cristo, muito
branco e triste, abria no lusco-fusco do templo o seu abraço de perdão:
a palavra de Marciano tinha empedernido todos os corações.
Todos os episódios do quadro comovente daquela família fugitiva
desapareceram para deixar lugar apenas à cruz infamatória, que
se lhe desdobrava agora por toda a altura do porte e pela extensão
dos seus braços abertos.
– Não acha que é hora de desatravancar a igreja, sr. vigário?
E já noite fechada – ponderou o velho impiedoso.
Paula meneou afirmativamente a cabeça e tentou seguir; mas o sertanejo,
caindo de joelhos, abraçando-se-lhe às pernas e insistindo no
juramento, constrangeu-o a parar. Quando viu que eram vãos os seus
rogos, apelou para as crianças: não tinham culpa da sua desgraça;
por ele nem pediria, mas as pobrezinhas tinham fome, precisavam descansar,
e agora era impossível caminharem mais.
– As crianças – concluiu ele – não roubam.
O velho sacristão, sorrindo escarninhamente, aproximou-se de um dos
meninos, e, segurando-lhe o queixo, resmoneou:
– Estezinho, pelos olhos, já devia ter também a sua cruz; já
pode furtar galinhas.
O sertanejo levantou-se com a elasticidade de uma espiral de aço que
deixa de ser comprimida, e, cego de cólera, mudada em delírio
a resignação, precipitou-se sobre o provocador brutal. Braços
possantes, porém, subjugaram-no, enquanto o seu irmão defendia
a família das selvagens ameaças.
– Fora, assassino ! Fora, ladrão – gritavam impelindo-o brutalmente.
O desgraçado cedeu ao seu destino de precito. Desde que se lhe estampou
na fronte aquela cruz aviltante, a sua sorte era amargar afrontas. Todas as
portas negavam-lhe agasalho, todos os corações, piedade. Nem
as suas lágrimas, nem as de todos os seus conseguiram apagar o estigma,
que lhe circunscreveu todo o horizonte da vida. Em toda a parte ensinavam-se
até às crianças a chamarem-no – ladrão!
Saiu, pois, trôpego e humilhado, seguido pela vergonha dos companheiros
dos seus padecimentos, da impiedade dos paroquianos e da indiferença
do ministro da religião, do perdão e do arrependimento. O céu
desnublado vestia-se de um luar deslumbrante; uma viração benfazeja
refrigerava o ambiente cálido ainda das irradiações do
sol; uns cajueiros esgalhados agitavam os ramos seminus como fazendo um sinal
de convite.
– Vamos para acolá – disse o sertanejo -, talvez não nos ponham
fora.
– Não – exclamou Rogério Monte, batendo no ombro do precito
-, vamos para ali.
E apontou a sua casa, que alvejava em frente, modesta como a bondade.
Duas vozes feminis coroaram a piedade do velho Monte, que se viu colhido
entre os seus braços.
– Muito bem, faz muito bem! disseram-lhe Irena e Eulália. – Não
há de morrer por aí à toa.
– É como eu entendo também a caridade – disse Queiroz, que,
atraído pelo barulho, conduzira as duas moças até a igreja.
– Faze o bem e não olhes a quem.
– Está um lindo luar – observou o vigário, que se aproximava
do grupo venerando -, dava-se agora um ótimo passeio.
VI
O ato de Rogério para com os sertanejos não foi senão
um lampejo da sua fidalguia moral. Vazado no velho molde dos primeiros povoadores
e seus descendentes, o seu coração tinha a heroicidade sã
da bondade e o desassombro calmo da justiça. Dois terços da
paróquia agradeciam-lhe pão e agasalho, consolações
na enfermidade, e a cova em que repousavam os entes queridos. Entre os dotes
de Irena, a sua filha única, assinalava Monte as suas qualidades de
enfermeira, a piedade com que pensava os doentes que vinham acolher-se muitas
vezes ao abrigo desinteressado daqueles 16 anos.
Orgulhoso de ter calos nas suas mãos fidalgas, despreocupado da ambição
de enriquecer, não podendo resistir ao impulso filantrópico
e bom, que o levava a enxugar as lágrimas com que deparava em seu caminho,
era chamado pródigo pelos seus amigos. Trabalhava de longa data, cerca
de 40 anos, e, no entanto, a sua fortuna era apenas a sua fazenda de criação,
fortuna precária que o sol do verão podia facilmente dissipar.
Os prejuízos do velho criador na quadra atual serviam de confirmação
aos seus amigos, que, cheios de severidade, repetiam-lhe o rifão: quem
dá o que tem a pedir vem.
– Mas encontra quem lhe dê também – respondia Rogério
tranqüilamente.
Não era, porém, um ente privilegiado; o seu caráter
tinha uma enorme falha. O respeito supersticioso pelos seus maiores fazia-o
conservar, como relíquia sagrada, ódio encanecido, invencível,
intransigente à família dos Feitosas. Sua alma evangélica
negar-lhes-ia um gole de água. Quando, na intimidade, fitava o Engenho
mal-assombrado, Rogério deixava perceber que a ponta do punhal do facínora
da noite lendária atingia-lhe o coração através
de dois séculos, e, como que para vingar a dor da esposa alucinada,
historiava a longa série de vinganças, de sevos desforços
tomados pelos seus antepassados, com a exaltação de quem aplaude.
– Não me falem em Feitosa – dizia ele. – Este nome faz-me ficar perverso.
E o seu rosto magro, os olhos castanhos desassombrados, os seus movimentos
e gestos sempre afáveis mudavam de súbito para uma acentuação
frenética, e, aprumando a sua estatura desenvolvida, acrescentava:
– Tenho sangue-frio suficiente para atravessar-lhes o coração
a um por um e beber o sangue a essas feras.
A história da província explica, se não justifica, o
ódio secular das duas famílias, hoje desmembradas e espalhadas
pela vastidão do território cearense, balda de fortuna e de
prestígio. Todo o século 18 reboou com o ruído das batalhas
desses poderosos rivais, que, de par com os Lyras, foram os Deucaliões
do sul do Ceará. Ramos do mesmo tronco genealógico, uma questão
de terras separou-os para sempre, e ambos puseram-se em campo, em guerra fratricida,
guerra em que as crueldades assombram, as devastações aterroram.
As tribos selvagens, assoldadas por eles, foram os executores dos seus tremendos
veredictos, e basta isto para perceber-se a monstruosidade das execuções.
Ao anoitecer a quietação claustral das fazendas era perturbada
pelo toque dos instrumentos guerreiros. Uma seta inflamada atirava o cartel
fatal aos moradores, e as labaredas vermelhas de um incêndio, rompendo
a custo novelos densos de fumo, apelavam para um, combate sem tréguas.
E, no meio da confusão, do alvoroço e do terror, barulhando-se
na treva ou arquejando ao calor insuportável do incêndio, os
dois exércitos encontravam-se braço a braço, depois de
se terem crivado por nuvens de flechas, por descargas de mosquetaria, e ferozes,
sanguissedentos, disputavam linha a linha a vitória, cujo coroamento
era o sacrifício de mulheres, de crianças e de anciãos.
Debalde as justiças da Metrópole tentaram pôr fim a essas
contendas ensangüentadas; as ciladas esperavam-nas, e a derrota das milícias
era infalível diante dos poderosos sertanejos, senhores de barço
e cutelo das povoações, influências invencíveis
nos senados das câmaras, agasalho de perseguidos e facínoras.
A rivalidade irreconciliável terminou por desmoronar essa grandeza
colossal, intumescida de orgulho e de crimes, e no presente século
as ruínas apenas sobrenadam ao vasto mar de sangue que teve por praias
a extensão de um século.
Não obstante, os velhos descendentes não mudavam na adversidade
a paixão dos tempos felizes.
O vigário Paula sintetizou um dia o caráter de Rogério
numa das suas frases de fino espírito:
– É um bom homem, que há de ir parar no inferno a dar esmolas.
Queiroz, ouvindo-o proferir esta sentença contra o seu velho amigo,
repeliu-a com azedume, admirado de que fosse Paula quem tal dissesse de um
homem cujo valimento dera-lhe a paróquia.
– O que quer você, Queiroz? Eu digo o que sinto. A maior virtude do
homem é o perdão, e Rogério não sabe perdoar.
– Ora, adeus, homem – respondeu-lhe o professor.
Mas, impressionado pelas palavras do vigário, tentou remover do coração
do amigo aquela mancha, que tinha herdado aos seus maiores. Vão propósito:
o ódio de Monte estava dissolvido no seu próprio sangue.
Tal era o homem, que não se arreceou de agasalhar a "corja de
ladrões" com aplauso de Irena e Eulália e do bondoso Queiroz.
Os paroquianos, comentando a cena da igreja, mostravam-se arrependidos. No
fim de contas aquela gente era desgraçada, merecia compaixão,
e tanto que soube corresponder à bondade de Rogério cavalheirosamente.
Desde o dia seguinte foi instalar-se no Engenho, na vizinhança do Feiticeiro.
Abonançada a inquietação dos primeiros momentos, ninguém
mais se lembrou de chamar temerário ao velho Rogério Monte,
e a paróquia recaiu na sua vida monótona, dividida entre os
comentários dos acontecimentos dos últimos dias e as antevisões
dolorosas do seu destino, entre a devoção matinal e o sono letárgico
logo ao cair da noite.
Paula continuou a dizer tranqüilamente as suas missas a meter-se três
vezes à mesa durante o dia, a consolar o queixoso Marciano, a passar
as tardes no casebre deste, a dar o seu quarto de hora de manhã à
palestra e duas horas por noite à bisca na casa de Queiroz.
Estas duas horas e pouco eram o seu maior tormento e o seu maior prazer.
Via Eulália, sempre confusa diante dele, como que amedrontada, a querer
abrir-se em uma fraqueza, e a hesitar. O seu despeito folgava com essa tortura
lenta, agravada pelo pudor de Eulália; mas o coração
repercutia-lhe dolorosamente aquele sofrimento, que já ia alterando
a fisionomia santa do seu ídolo, e então Paula custava a domar
o desejo impetuoso de ajoelhar-se junto à moça, pedir-lhe que
o perdoasse ou desprezasse, mas que vivesse feliz, despreocupada como outrora.
Porém o hálito morno do beijo que lhe embalsamava a mão,
sempre que entrava ou saía da casa do professor, alucinava-o de novo,
e acordava-lhe, ruidosa como um temporal, a paixão que se estorcia
na sombra como as torturas do Ugulino dantesco, venenosa como as serpentes,
feroz como as panteras. Lábios que tinham hálito tão
perfumoso, de uma tepidez tão suave, deviam dizer carícias angélicas,
enquanto as mãos delicadas desfiassem afagos de fazer estremecer, como
o rolar de uma gota de água pela medula. E que temeridade, que energia
heróica não teria aquele amor, erupto de um coração
que acordava com a violência da mocidade, depois de um sono cataléptico
de quatro anos, consagrados somente à piedade filial? Não; não
podia deixar que outrem fruísse os gozos que a fatalidade, aquela batina
cruel, que ele sacudia com as raivas do tigre, lhe proibia. Não seria
sua, mas também não seria de ninguém!
E todos os dias, preocupado com a sua vingança recalcada pelas conveniências,
frio como as escamas das cobras, calculava como irritar os brios de Eulália,
e afastar para sempre Augusto Feitosa, ainda que para consegui-lo fosse preciso
vê-la morta.
Uma tarde, a conversar com ela, na horta, achou ocasião de apunhalar-lhe
pela terceira vez o mísero coração.
– Por que foge sempre de mim – perguntou-lhe -, ou fica tão contrafeita
quando me vê?
Eulália admirou-se de ouvi-lo com uma entoação meiga
e tanta bondade no olhar. Estava agora acostumada a outras maneiras, ao desabrimento
brutal ou descortesia hipócrita, e por isso o tom manso e cordial do
padre fê-la estremecer; mas logo, lembrando-se das palavras de Irena,
alvoroçou-se de contentamento. Tratava-a, de feito, como seu pai, e
por isso não percebia que às vezes a magoava muito.
– Eu? – respondeu-lhe. – O sr. vigário é que parece continuar
mal comigo.
– Não hei de tratá-la com intimidade, quando a vejo esquivar-se…
– É desconfiança.
– É verdade; eu sou meio caboclo, e desconfio muito, principalmente
de quem calcula.
– De quem… ? – perguntou a moça, que não ouviu bem a última
palavra.
– Digo que – repetiu o vigário, sorrindo e sacudindo o seu longo indicador
– não gosto de quem faz cálculos para fazer-se estimada.
– Mas é comigo que fala? – interrogou Eulália, corando muito.
– O padre sou eu, minha sonsinha – respondeu com bonomia. – Eu sou quem pode
confessar; você apenas deve cumprir as penitências, de que precisa
bem.
– Eu calculo, para ser estimada? ! Por quem?
– Há de ser por mim; pois por quem há de ser mais?. Aviso-a
com o segredo do confessionário.
E retirou-se, deixando-a humilhada, perplexa, diante da acusação
que o seu recato de virgem considerava esmagadora.
– Eis aí por que me maltrata – disse ela; – eu vi logo a ponta da
intriga: hei de desfazê-la.
E perdeu-se num mar de conjeturas, para atinar com a origem da ignóbil
difamação.
Toda a paróquia com as suas pequenas murmurações, com
os seus dichotes à meia voz, desfilou-lhe pelo pensamento, num préstito
sombrio e lúgubre, a olhá-la vesgamente como para um ente abjeto.
Deixava de ser a santa filha de Queiroz, alegre como o gazear dos pássaros,
para ser a mulher sonsa a calcular com os seus encantos – diziam todos talvez
a essa hora. Quando passasse, ouviria o cascalhar represo das risadas malignas,
provocadas pela infame calúnia, que se insinuara sorrateiramente no
ânimo da paróquia, e, sem que ela própria o sentisse,
estampara-lhe na fronte um ferrete ignominioso, quem sabe se indelével!
A calúnia era infame demais para que a revelasse e pedisse a seu honrado
pai uma desafronta. Fora amargurar-lhe a existência, ferir-lhe no âmago
a vida, enxovalhar-lhe a nobreza. Demais, o sr. vigário impusera-lhe
o segredo do confessionário.
Não havia, pois, outro remédio senão ficar abatida aos
próprios olhos, deixando-se devorar em silêncio por aquela amargura,
até que um dia a justiça do céu se incumbisse da sua
reabilitação.
Apressou o passo, e chegando-se timidamente ao vigário:
– Mas o senhor não acredita nessa mentira, não é verdade?
perguntou com acanhamento.
– A mulher perdeu o mundo – respondeu sorrindo… – Eu sei lá …
. mas se diz que não…
– Juro que não, pela alma de minha mãe!
– Não é bom falar nos mortos, d. Eulália – replicou
austeramente; – não se deve profanar as sepulturas; errar é
dos homens.
As lágrimas rebentaram em fios dos olhos tristes da moça, e
os seus lábios trêmulos mal puderam tartamudear:
– Seja o que o sr. vigário quiser.
– As lágrimas fazem-na tão bonita, Eulália, que eu não
tenho forças para deixar de acreditá-la! – exclamou Paula com
uma ternura infinita, apertando entre as suas a mão abandonada de Eulália.
Estremeceram ambos ao mesmo tempo, como se um olhar indiscreto os surpreendesse.
A moça apertou o passo para entrar em casa, e Paula conservou-se imóvel
a olhar para o chão, como se uma força ignota lhe violentasse
o olhar.
Uma toada triste rumorejou então distante, com um eco soturno e lúgubre.
Era o Joaquim Maluco, pai inconsolável, que passava, cantando a sua
desgraça na inconsciência da loucura.
– Será um aviso do céu?! – murmurou Paula perturbado.
Mas logo, sacudindo os ombros:
– Seja – continuou consigo. – Prefiro o inferno com ela!
VII
De volta à sala de Queiroz, Eulália e Paula estavam apoderados
de sentimentos diversos.
A filha do professor tinha medo de si mesma. Lembrava-se de que um enleio
inexplicável avassalou-a e converteu-a em títere de um impulso
ignoto, mas triunfante, que a entregaria ao vigário como escrava. O
calor daquelas mãos, que apertaram as suas com um tremor carinhoso,
coara-se-lhe como um veneno pelas veias; sentiu-se alquebrada, sem vontade,
sem domínio sobre si, e deixar-se-ia até beijar se não
fosse o canto providencial do doido.
Semelhante recordação afogueava-lhe o pudor e obrigava-a a
ocultar-se para esconder as lágrimas. Mas a solidão fazia-lhe
medo; via-se fraca, dominável por tudo, inerte ao ponto de se deixar
vencer até pelo raio do sol moribundo. O polido do espelho do seu quarto
figurava-se-lhe uma lanterna que lhe acendiam dentro da consciência,
a cuja luz não podia esconder que o vigário a impelia com um
aceno, escravizava-a com um olhar. Lutava então contra o amargor de
tão triste certeza, mas a imaginação baralhava-se-lhe
num cismar cambiante como as vistas de um caleidoscópio. No entanto,
não tinha forças para repreender-se severamente, porque o que
sentia agora não era senão a reprodução do que
sentira desde a infância pelo sr. vigário.
Recordava-se de que, em pequena, era de um gênio violento e excessivamente
traquinas. Em vão as carícias paternas e as de sua boa mãe
buscavam contê-la: continuava sempre, e, se a castigavam, cedia por
temor, mas não por estar convencida de que fizera mal. Entretanto,
se a ameaçavam dizendo que iam contar ao sr. vigário, aquietava-se
logo, e, sem ressentir-se, distraía-se e ia ler ou amimar sua boneca.
Depois de crescida, já mocinha, sentia uma satisfação
untuosa, fresca como o contato de uma pele, ouvindo as prédicas daquele
homem que fazia estremecer todos os corações, que falava em
nome de Deus, e não obstante na sua casa desfazia-se em afagos e em
meiguices para consigo. Depois foi gradativamente compreendendo que Paula
era um homem de espírito, superior à gente rude da paróquia,
que o maldizia porque não o entendia, e não se compenetrava
de que o pároco, gravitando em outra esfera, não podia deleitar-se
com os seus divertimentos grosseiros e com os seus costumes semi-selvagens.
Este conceito exagerado, que cimentou-se com as repetidas afirmações
de Queiroz, predispuseram-na a deixar-se levar pelo vigário, a quem
devotava uma afeição quase igual à que dava ao pai; afeição
desinteressada, sem laços materiais, como se evidenciava do desassombro
com que ouvia falar na filha do sacristão, a formosa Mundica.
Hoje, porém, descobrira em si fraqueza demais na sua afeição;
fora obrigada a corar por ela, e sobressaltada, querendo fugir de si mesma,
Eulália não tinha coragem de comunicar a ninguém o estado
do seu espírito, e nem ao menos ousava repreender-se: fora confessar
a si mesma um crime sem perdão.
Paula, ao contrário, deixava transparecer uma alegria serena, mas
expansiva, que precisava de corrigir-se pelo seu hábito inveterado
de conter-se, ainda nos momentos mais difíceis.
O seu espírito, orgulhoso do triunfo conseguido sobre Eulália,
tinha necessidade de apossar-se de todo o horizonte, de ter a largueza de
quem se espreguiça para afugentar os restos do sono.
O conchego da família do seu amigo era um círculo estreito
para a sua respiração: abafava-o. Precisava de ar livre, da
posse ampla do ambiente para que os seus pulmões resfolegassem com
a amplitude do seu contentamento.
– Vou fazer uma obra de caridade – disse ele a Queiroz: – vou até
o Engenho conversar com essa pobre gente que lá tem arranchado;
– É um belo passeio – ponderou-lhe Queiroz -, mas é um pouco
distante e você voltará já com a noite.
– Que quer? É o meu oficio.
– O que vale é que faz luar.
– O dever não espera pelo escuro, nem pela claridade.
– Nem sempre – respondeu o professor, batendo-lhe no ombro.
Paula saiu com o seu passo firme e compassado, e enveredou pela ladeira norte
da colina, a cumprimentar aqui e ali os paroquianos, que se descobriam todos
ao vê-lo. Pouco demorou a estar fora do povoado e a ficar só,
no isolamento sussurrante da estrada e no júbilo do seu amor, agora
esperançado.
A soledade dava-lhe alguma coisa de fantástico: parecia o luto visitando
a devastação. A sua batina negra como que distendia-se por diante
do povoado, extensa como a espessa barreira de trevas em que a população
inteira vinha abismar-se e asfixiar-se na desesperança e no pranto.
A vegetação combalida, agitada pelo vento da tarde, parecia
estremecer ante o hóspede inesperado, as claridades do crepúsculo
recuavam diante dele como diante da noite. O cruzeiro do cemitério,
sobranceiro aos arbustos de copa emurchecida, envolvia-o com o seu olhar sem
pupilas, o agudo olhar da crença que penetra no mais insondável
do desconhecido. Mas Paula caminhava com o mesmo passo inalterável,
tranqüilo, absorto na sua alegria, sentindo talvez nas suas o calor virginal
da mão trêmula de Eulália.
A cerca do cemitério começou a aparecer diante dele, perfilada
como um pelotão apresentando as armas ao seu superior, e Paula, estremecendo,
malgrado seu, descobriu-se. Os zumbidos dos grilos, sobressaindo no profundo
silêncio, avultavam como se fossem gemidos alados de dentro das sepulturas:
um coro trépido vindo de além-túmulo.
A solenidade da morte, pairando sobre o terreno limpo do campo-santo, impunha-se
com todo o seu respeito supersticioso. Paula sentia a conquista desse poder
inexplicável, e tanto que, apesar seu, apressava o passo e fazia ressoar
pisadas mais fortes.
Em frente à cancela que fechava o cemitério um outro homem
impressionava-se também e punha o ouvido à espreita. Era o Joaquim
Maluco, o endemoninhado. Todas as noites o mísero pai vinha exacerbar
a sua loucura com uma visita ao jazigo dos filhos, ou, como ele dizia, esperar
o vigário, que tinha fugido para muito longe. Esta visita dolorosa
foi principalmente a causa de o julgarem endemoninhado, porque havia noites
em que, nas violências dos seus acessos, o velho Joaquim, depois de
abraçar-se com o cruzeiro solitário, rogar-lhe piedade e justiça
para a sua angústia, indignava-se contra o seu silêncio e concluía
por um grito sacrílego:
– Ah! Não me respondes? Vou esbofetear-te, cuspir-te na face, filho
daquela alcoviteira; espera!
E marinhava alucinado pelo madeiro nu, até chegar aos braços
onde julgava encontrar o Cristo, para profaná-lo. Lá em cima,
despeitado e receoso, o doido, escarranchando-se no cruzamento dos dois madeiros,
atordoava o povoado com uma vozeria horrífica, misto de blasfêmias
e de pedidos de socorro, seguido de gargalhadas medonhas.
– Fugiu; fugiu também com o vigário; ele também fugiu!
Vejam, ele fugiu porque sabia que eu vinha cá em cima esbofeteá-lo!
O povoado inteiro abalava-se então, e, transido de terror, suplicava
ao endemoninhado que descesse.
O Joaquim Maluco, certificando-se de que alguém se aproximava, levou
o indicador aos lábios, e, acocorando-se por detrás do esteio
da cancela, esperou.
Quando Paula ia passar em frente, o doido, pulando com a elasticidade da
loucura, veio colocar-se-lhe em frente, agachado como um tigre preparado para
dar o bote.
– Pare aí, pare! – bradou o desventurado… – Então pensava
que ela estava aqui sozinha como no confessionário? Vai morrer já,
agora mesmo.
Paula, com os cabelos eriçados, a fisionomia descomposta pelo susto,
estremecendo convulsivamente, tinha estatelado em face do velho Joaquim. O
doido aparecia-lhe com as cores sobrenaturais do remorso; o seu olhar esgarado
subjugava-o com a força de um pulso de aço e deixava-o imóvel,
mudo e passivo como um cadáver.
– Quer rezar primeiro? – perguntou-lhe o doido. – Venha rezar para morrer.
Travou-lhe violentamente do braço, puxou-o após si até
junto do cruzeiro. Paula, tendo nas veias a anestesia do remorso, deixou-se
ir, abandonado àquela fúria que, ao mesmo tempo que o torturava,
fazia-lhe bem. A lembrança de Eulália, não tendo tido
tempo de esvair-se, sobrestava-lhe o pensamento, radiante no abandono da cena
da horta, prestes a vergar ao menor aceno audaz. Ser-lhe-ia agradável
morrer assim; a morte viria como um desmaio suave, sob o contato carinhoso
daquela imagem imaculada.
– Ajoelhe-se e reze – continuou o doido -, eu vou acordá-la; ela está
acolá; há de gostar de vê-lo estrebuchar.
Retirou-se, olhando de vez em quando para o vigário, que, de pé,
o fitava também, imóvel e silencioso. Mas a alguns passos deteve-se,
e voltando-se rapidamente, veio de novo parar diante de Paula.
– Ajoelhe-se – repetiu o desgraçado. – Tem medo da morte?… A minha
filha adormeceu sorrindo; o meu filho, o que está ali fora de sentinela,
não pestanejou quando teve de partir. Reze!
Livre da pressão do seu temível ameaçador, Paula foi
pouco a pouco recobrando o seu sangue-frio habitual. Conservou-se de pé,
olhando o doido que se afastava, e sorriu, meneando a cabeça piedosamente.
Depois, cruzando os braços sobre o peito, relanceou os olhos pelo cemitério,
como quem procura alguma coisa. Encostado à cerca, próximo à
cancela, luzia o aço polido de uma enxada, como o olhar facínora,
ávido de um crime.
Paula, com o seu sorriso de desprezo, encarou para o instrumento, e depois
volveu o olhar à direção tomada pelo doido.
– Coitado, talvez eu tenha de feri-lo ou estrangulá-lo! -resmungou
desdenhosamente.
Continuou imóvel à espera, sombrio como a premeditação
nefanda de um crime hediondo. A perversidade daquela natureza avultava em
todo o seu relevo, na plenitude dos seus contornos. As mangas largas da batina
deixavam-lhe ver os pulsos sertanejos, grossos e achatados, traindo a força
dos vaqueiros que derrubam com uma laçada os touros bravios, e semelhantes
a duas jibóias enroscadas esperando presa. Mas Paula cansou por fim,
e com o seu passo firme e pausado, relanceando o olhar em torno de si, retirou-se
sem que fosse sentido.
O mísero pai, alucinado, de joelhos sobre uma sepultura na extremidade
do cemitério, ocupava-se exclusivamente em acordar o esqueleto soterrado
da filha.
Já o vigário estava no Engenho, sentado a conversar com os
seus novos habitantes, e quem passasse pela frente do cemitério veria
ainda o doido, ajoelhado, batendo com as mãos espalmadas na terra,
e ouvi-lo-ia, com uma rouquidão carinhosa, exclamar repetidas vezes:
– Acorda, filha; vem, ele está ali; eu vou matá-lo.
À noite, Eulália e Irena estavam juntas, e, conforme o seu
costume, fecharam-se por dentro, na alcova da primeira.
Mais do que a porta de cedro, separava-as do resto da família a abstração
em que elas se achavam. A caçula dormia e os velhos, na sala das aulas,
jogavam calorosamente a bisca, emparceirados com d. Ana e Chiquinha. Duas
caboclas, que eram as criadas da casa, encostadas aos umbrais da porta, espiavam
o jogo.
As duas moças, atravessadas na rede, que Eulália impelia de
quando em quando, fincando no ladrilho a pontinha do pé, puseram-se
a conversar.
– Tem-no visto? – perguntou Eulália.
Irena fitou significativamente a sua amiga e meneou a cabeça, afirmando.
– E não está alegre?
– Você bem sabe que eu não posso ficar alegre quando o vejo;
cada olhar seu parece que me afasta de meu pai para sempre.
Estas palavras, proferidas com a sincera acentuação de uma
dor verdadeira e profunda, foram seguidas por um longo silêncio, durante
o qual as duas moças, balançando-se sem se encarar, olhavam
com indiferença para o espelho que as refletia em frente.
– Você já sondou seu pai, Irena? Talvez não se zangue,
ele estima-a tanto! – ponderou Eulália. – Cede por força.
– Acredita? Pois era o mesmo que dar-lhe uma facada.
E Irena, sentando-se, desfiou as razões da sua afirmação
peremptória:
Tinha-o conversado sobre os Feitosas, a propósito das palavras do
vigário; lembrara-lhe que mais de um rio de sangue já havia
passado sobre as ofensas das duas famílias e nada mais devia existir
entre os seus parentes e os seus rivais.
O velho pai respondeu-lhe, porém, com o laconismo da intransigência:
– Os Feitosas são homens que insultam mulheres, que assassinam as
crianças dos seus inimigos; não serei eu, nem filho meu, que
os perdoe.
– Então não há nenhuma esperança?
– Nenhuma – suspirou tristemente Irena -, e tenho vontade de dizer-lhe que
o melhor para nós ambos é o esquecimento. Mas…
– Não pode – continuou Eulália. – E assim mesmo quando se encontra
um embaraço.
– Não posso, minha amiga, não posso.
Pôs-se então a dizer com que profunda dedicação
amava Feitosa. Foi através de dois séculos de ódio, separados
por um rio de lágrimas e sangue, em cuja correnteza boiavam cabeças
decepadas de anciãos, de mulheres e de crianças, recordações
tristíssimas das cenas mais bárbaras, destroços de habitações,
novelos de fumo ainda prenhes de labaredas de incêndio; foi através
da antipatia mais arraigada que se viram. Foi isto em janeiro, em uma procissão
de preces. Feitosa estava na paróquia havia poucos dias e era o alvo
dos comentários de todos, e só por isso levantou os olhos para
ele. Os seus olhares se encontraram, os seus cabelos loiros e a pele muito
fina, suando sangue, impressionaram-na. Pareceu-lhe não ser um Feitosa,
mas um gêmeo seu, com a mesma alma tímida, com a mesma índole
condescendente. Desde logo Irena sentiu que ele também se impressionara
consigo, e, de volta da procissão, olhavam-se com um olhar comunicativo,
sem sombras, quase sem receio, prestes a ser íntimo.
Em fins de janeiro, Rogério Monte deixou por alguns dias o povoado,
para ir até a fazenda, e Irena ficou em casa de Queiroz, onde, pela
primeira vez, falou com Augusto Feitosa. As poucas palavras que trocaram entre
si foram uma revelação invencível, espontânea,
partida ao mesmo tempo de ambos, ardente, expansiva, irredutível. Só
mais tarde, quando já a saudade alimentava-lhes a paixão, quando
o impulso do coração desmoronava os brios tradicionais, pensaram
na rivalidade das duas famílias. Feitosa jurou imediatamente contrapor
a espontaneidade do seu afeto à resistência dos seus, mas Irena,
certa de que era a única alegria do velho Rogério Monte, hesitou
e tremeu pelo futuro. Deveria sacrificar ao egoísmo do coração
a honra do pai? O amor respondia-lhe peremptoriamente – sim! Mas a piedade
filial aconselhava-lhe que – não! Pensou então em suplicar-lhe,
em demovê-lo do pensamento mau que lhe pairava como ave agoureira sobre
a integridade do caráter, mas não teve coragem de levar por
diante a sua tentativa, porque viu alevantar-se ameaçador, intransigente,
o ódio vivaz com que o velho tinha sido aleitado, embalado na meninice,
alimentado na mocidade. O seu espírito condescendente conciliou por
um adiamento as dificuldades da sua posição, e Irena deliberou
continuar clandestinamente a amar Feitosa, apesar de seu pai.
Um dia o noivo falou-lhe em fugir, e tremeu depois da sua revolta. Pediu-lhe
que a deixasse, que não a quisesse perder, assassinando seu pai; mas
aos poucos a certeza da intransigência paterna habituou-a com o triste
pensamento, e foi ela mesma quem, mais tarde, disse que às vezes tinha
vontade de fugir.
– E o que há de por fim acontecer – concluiu Irena, enxugando as lágrimas
que lhe borbulharam incontinenti.
Osilêncio interpôs-se de novo à confidência, e os
vaivéns da rede tornaram-se mais fortes, fazendo ranger a corda nos
armadores. De espaço a espaço ouviam-se as risadas e os protestos
de Chiquinha, arrebatada no calor do jogo, e a barulhada de todas as vozes,
comentando a mão acabada.
– Penso mal, não é, Eulália?
– Não sei, filha; se não houver outro remédio!… Mas
pense bem primeiro; talvez se faça por gosto dele: pense bem.
– Qual! – murmurou Irena, meneando a cabeça. – Meu pai não
volta atrás o que diz.
– Você está resolvida então?
Irena afirmou com o gesto, mal contendo os soluços, e escondeu a cabeça
nos punhos da rede, para ocultar da amiga o rosto envergonhado. Eulália
calou-se amigavelmente e, inclinando-se sobre Irena, beijou-lhe a face escaldada
pelo pudor.
– Eu também resolvi ainda agora uma coisa contra o vigário
– disse Eulália. – Não o quero aturar mais.
– Continua com os seus modos? – perguntou Irena.
– Cada vez mais desabridos; eu sou o seu adufe.
– Mas de onde tirou o vigário estes modos com você, ele que
a estimava ternamente?…
– Agora – disse Eulália, sorrindo tristemente -, eu calculo para ser
estimada, como da outra vez eu faltava o respeito à religião
junto do andor de Nossa Senhora.
– Você calcula? E que ele ainda está doente. Mas você
por que não diz isto a seu pai?
– Eu?! – disse Eulália sobressaltada – Nem com você podia falar:
foi um segredo do confessionário.
– Ah!
Quando reataram a conversação, Irena parecia alucinada; o seu
coração impoluto, ferido pelo golpe desfechado em sua amiga,
atinou facilmente com a causa das descortesias insensatas do vigário.
Foi com um abraço estreito, com um beijo, longo como o seu sofrimento,
que ela começou a revelar à amiga a sua suspeita.
– Você vai ficar mal comigo, Eulália, vai abandonar-me.
– Está doida, menina! – respondeu Eulália, com uma erupção
brusca de jovialidade. – Olhe, o melhor é abreviar antes de tresler.
– Antes estivesse doida; mas infelizmente sou eu quem está sendo motivo
para seu sofrimento!
– Você?
– Sim; eu pelo Augusto.
– Ah! Que malvado é o tal sr. vigário!
– Você bem disse que nós somos bem infelizes! Eu sou a culpada
do que você sofre.
– Você? Que culpa tem você de que eles julguem mal os outros?
Deixa-os ! Eu serei sempre sua amiga.
– Mas é preciso desconvencer o vigário, dizer-lhe que se enganou.
– Se eu pronunciasse o nome de Augusto era pior ainda: aquele homem é
um perverso.
A última frase foi acentuada com o amargor da convicção,
e a fisionomia de Eulália testemunhava a sinceridade com que fora ela
proferida. Dir-se-ia que a filha do professor estava pronta para abrir luta
com o maior amigo de seu pai; que lhe pagaria ofensa por ofensa, descortesia
por descortesia. Mas o eco da voz de Paula penetrou, como um espião,
dentro do quarto, e trazia umas palavras cheias de doçuras para o coração
de Eulália.
– Onde estão as meninas? – perguntara o vigário.
– Enterrando os vivos e desenterrando os mortos – respondeu Queiroz. – Estão
fechadas no quarto a conversar… Aproveita a vaza, Ana, não há
mais trunfo fora.
– Contou mal, contou mal! – gritou Chiquinha, rindo muito. – Cá está
o valete.
– E aqui um reizinho, minha filha, e você bem sabe que o rei mata.
– Mas não faz a gagosa, não passou escoteira.
– Paciência, mas vocês tomaram capote.
– Boas! Conte.
A voz de Queiroz continuou a penetrar no quarto de Eulália, agora
com ecos da contagem, e afinal exclamou o professor:
– E quatro, oitenta e nove, e dois, noventa e um! Passa o capote ali para
o vigário.
– Que grande coisa! Quando se está infeliz, tudo acontece.
– Tem razão – interveio Paula -, eu ia ainda agora morrendo.
Eulália, contendo a tempo um grito, buscou esconder a Irena a sua
comoção, e perguntou-lhe sorrindo, com a sensaboria da dissimulação:
– Ouve o que ele está dizendo? Que ia morrendo… Irena, que levantara
os olhos para a amiga, ficou assombrada de ver como estava descomposta a sua
fisionomia.
– O que tem você, Eulália?
– Nada!… não sinto nada.
– Mas está tão pálida!
– É que eu não posso ouvir mais a voz do vigário; mas
isto passa. Vamos lavar o rosto, porque você também está
com os olhos pisados.
– É como lhes digo – continuou Paula -, fui assaltado pelo Joaquim
Maluco, que me obrigou a voltar acompanhado.
Eulália lavava-se sofregamente e apressava Irena, como se lhe quisesse
comunicar a própria impaciência.
Quando acabaram:
– Vamos para a sala – disse ela -, antes que nos chamem. Evitamos alguma
graça do sr. vigário; principalmente eu.
Entraram na sala e depuseram os seus beijos respeitosos na mão de
Paula, que prosseguia em historiar a cena da tarde com o doido.
– Aquele é um perigo para você, vigário – ponderou Rogério.
– É pedreiro livre – riu Francisco de Queiroz -, inimigo do altar.
– Ora, o que se lhe há de fazer? Há maiores doidos que vivem
e ninguém os incomoda. Não concorda, não pensa do mesmo
modo, d. Eulália?
– Mas esses outros são mansos – respondeu a moça; não
querem matar os outros de emboscada.
– É exato, há diversos modos de ser doido.
Quem olhasse atentamente para Eulália veria quanto fel semelhantes
palavras lhe haviam coado no coração. Mas felizmente para o
vigário só Irena compreendia o amargor que as repassava, e esta
limitava-se a desesperar com a sua amiga.
Paula demorou-se pouco; viera só deixar a perplexidade no espírito
de Eulália, de certo ainda impressionada pelo que se passara na horta.
O efeito estava produzido com mais eficácia do que tinha calculado.
Saiu, pois, satisfeito, com o seu passo firme e pausado.
Rogério Monte entendeu também que devia cessar o jogo, e tomou
o chapéu.
– Perdoe-me o que eu lhe faço sofrer – disse Irena, mal contendo as
lágrimas.
– Não me faça padecer mais, Irena; que tem você com isso
? Você faz-me detestar ainda mais aquele miserável.
VIII
Maio entrou pela paróquia com a tristeza profunda de um féretro.
Os dias ardentes, mas de uma claridade mesta como a chama dos brandões
funerários, envileciam o seu brilho. esbatendo-se em quadros lutulentos.
Não havia pôr-de-sol em que o povoado não visse passar,
sujos como as enxurradas do inverno, grupos de emigrantes misérrimos,
em cujos semblantes transpareciam, com a mesma intensidade, as torturas da
fome e da saudade do torrão natal abandonado.
O Engenho, com as suas lendas supersticiosas, com o seu aspecto sombrio de
crasta alumiada por uma fraca lâmpada tornou-se ainda mais tristonho:
parecia um corvo colossal cobrindo com a asa negra desmesurada a sua pútrida
carniça. Os seus arredores exalavam o cheiro nauseabundo das sentinas
não desinfetadas, o seu interior tresandava as exalações
dos curtumes. Já não era a multidão despreocupada, sussurrante,
feliz, ávida de contentamento, quem o enchia a transbordar, dando alma
às ruínas, evocando-lhes o passado pletórico de vida
dos tempos do poderio da família dos seus possuidores. Enchia-o agora
a inundação da miséria, o vômito da esterilidade
do sertão, gente seminua, cadavérica, faminta, que era atirada
pelo cansaço por sobre os seus entulhos, como o náufrago moribundo
cuspido pelo mar no lodaçal de um mangue.
A vasta área, que serviu de cenário ao espetáculo do
Feiticeiro, estava agora dividida em muitos cubículos, feitos pelo
envaramento de ramagens, que recatavam-lhes o interior com a folhagem seca.
Nos claros deixados, viam-se aqui e ali lareiras improvisadas por três
pedras soltas, sobre as quais as panelas negras de fuligem ferviam para escaldar
o tapichã, enquanto a lenha, apenas emurchecida, chiava, deitando novelos
de fumaça, debaixo da qual a chama vacilava em crescer, como se o próprio
fogo se houvera tornado preguiçoso. Em torno das lareiras ou dos borralhos
extintos, as crianças quedando sentadas, com a resignação
hereditária do cearense, lembravam grandes entranhas acocoradas à
beira do brejo.
O efeito moral da população adventícia no ânimo
da paróquia prostrou-a num abatimento invencível, e, além
disso, o tifo começou a tomar um desenvolvimento epidêmico. Pairou
então sobre o povoado o ar consternado do penitente na noite do oratório.
Via-se condenado a morrer por uma sentença irrevogável, porque
a fatalidade pusera-lhe estreito cerco. De um lado, o sertão trasbordava,
de outro lado, assustadoras notícias de Aracati diziam que, em quase
todas as cidades e povoações, a morte engordava nas hecatombes
da fome.
A intensidade do horror tinha sugerido uma crueldade atroz ao instinto de
conservação da paróquia, tanto mais vivaz agora que a
frialdade da cova já invadira, em parte, pelo terror.
O Feiticeiro e vários retirantes haviam abandonado o Engenho, deixando
alguns deles a mísera família abandonada à desgraça,
sem que ao menos lhe dessem, por despedida, uma palavra de conforto. Um pensamento
ocorreu logo a todos e impôs-se como certeza. A fama dos Viriatos dos
Cariris tomava grande vulto na voz pública; contavam-se já façanhas
medonhas dessa quadrilha de ladrões, que se aliara com o flagelo da
seca para levar a ruína e a miséria aos cearenses. Onde o sol
abrasador, os ventos impetuosos e áridos não podiam chegar,
penetravam as mãos dos bandidos; o que não conseguiam as moléstias
reinantes, faziam os seus punhais cegos e desapiedados, que eram a guarda
de honra que lhes garantiam as suas espoliações.
Falava-se muito também do desaparecimento de muitos homens de força
provada, de agilidade aclamada. De um dia para outro ninguém mais os
descobria: partiam sem deixar rasto, como se o chão os houvesse tragado.
Começou-se, pois a suspeitar que esses homens eram voluntários
que se iam alistar na temível quadrilha dos Cariris. A paróquia
inteira, portanto, ao saber da fuga dos retirantes, volveu os olhos para as
bandas de sudoeste, onde se levantavam com um azul de turquesa os picos da
cordilheira infestada pelos Viriatos.
Alguns indícios apagados, mas ainda assim conducentes a justificar
a suspeita, ficaram após os fugitivos. Durante muitos dias o Feiticeiro
pareceu olvidar-se das suas cobras, que puderam dormir e enfurecer-se à
vontade nas suas estreitas gaiolas. O homem misterioso tinha sido invadido
por uma piedade estranha pelos miseráveis que co-habitavam o Engenho,
e distribuía esmolas pelas crianças. A sua bolsa tornou-se o
complemento da do velho Monte, a cujas expensas se mantinham os retirantes.
Rompera-se carinhosamente o seu antipático silêncio; sorrisos
paternais desbastavam-lhe a aspereza hostil do semblante: fizera-se conversador
e tratável.
A seu convite, os homens mais valentes passavam as tardes a provar forças
e travavam lutas corpo a corpo, porfiadas, e até algumas vezes ameaçadoras
a ponto de ser necessária a intervenção do seu promotor.
– Eh! – resmungava o Feiticeiro. – Isto é só para desenferrujar
para as viagens: não é de vida ou de morte.
Dois dias antes da fuga, o homem misterioso, conversando à tarde,
tinha dito aos ouvintes:
– Homem! Vocês têm ouvido nomear uns tais Viriatos ?… É
gente para se ter respeito – continuou ele após a resposta afirmativa;
– é gente de pegar: onde eles chegam, fecha-se o tempo.
– São ladrões desabusados – disseram entre os ouvintes -, má
casta de gente.
– Vingam muitos pobres inocentes – replicou o Feiticeiro – chamados ladrões
por tirar uma cana, e às vezes ratada.
– Lá isto é verdade – concordou o grupo.
– E aqui mesmo há exemplo – continuou o Feiticeiro -, há muita
gente que passa por ladrão sem nunca ter furtado nem a porção
de açúcar que uma formiga carrega.
– Muita verdade, muita verdade, tio Luís – responderam;
– lá em Inhamuns toda a gente fala no Virgulino; ele que o diga.
Os olhos voltaram-se todos para o homem que na sacristia entregara o cordão
de ouro ao vigário Paula, em paga da sepultura do seu sogro.
– Ora o que lá vai, lá vai – ponderou Virgulino -, para que
falar mais nisso?
A insistência do grupo obrigou-o, porém, a vir em auxílio
das suas palavras
Tinha sido morador num sítio de criação, e ali nunca
houve nenhum vaqueiro mais estimado. Era como um filho da casa, confiariam
dele montes de ouro em pó. Todas as tardes o filho mais velho do situado
vinha prosear no seu rancho e balançar-se na rede da sala, contando
histórias divertidas, muito de se ouvir, porque ele tinha ido a estudos
na Fortaleza. Era, em suma, um rapaz da praça, bem falante e muito
floreador. Virgulino recebia-o em casa sem diferença de irmão;
ele e o Anacleto, que os ouvintes estavam vendo, eram uma e a mesma coisa.
Mas, uma tarde, o moço adiantara-se com uma das irmãs de Virgulino,
que, ao ver semelhante desacato ao seu pundonor de cearense, ainda teve prudência
de lhe dizer acomodado:
– Mais devagar, amigo; guarde esses modos lá para a praça,
quando for ao Ceará.
A resposta foi de ferver o sangue:
– Cala boca daí; tomara você que eu a queira.
Uma onda de indignação engoliu de um trago a prudência
do vaqueiro, e, fora de si, rugindo injúrias pungentes, agrediu o rapaz
temerário, espalmando-lhe uma tremenda bofetada.
O covarde vacilou, bamboleou e rodou por terra, onde o foi subjugar a cólera
de Virgulino, que, por desprezo, cuspiu-lhe ainda na face. A vingança
não demorou a se fazer sentir atroz, quanto fora brutal a afronta.
O próprio pai do rapaz, o velho situado, abriu-lhe na fronte a cruz
infamatória, corrente fatal de galé que nada pode quebrar, porque
os seus elos são fundidos com o próprio sangue do condenado.
– Eis ai por que eu sou apontado como ladrão – terminou Virgulino.
– Mirem-se agora neste espelho – exclamou o Feiticeiro – e tenham raiva aos
Viriatos.
E, prosseguindo com a sua voz pausada, enrouquecida, o Feiticeiro comentou
a cena da igreja e a pouca piedade da paróquia.
– O velho Monte não pode sozinho matar a fome a mais de cem pessoas;
dá o que pode o bom do velho, mas os outros nem um real! O sr. vigário
nem confessa a gente, e dá a comunhão; mas a hóstia santa
e o gole de água não matam a fome ao cristão. Aqui é
como se vê sempre: a presença do pobre não faz dó,
mete medo; o rico pensa logo que o infeliz o vem roubar. Eu não vivo
da esmola; vivo do veneno das cobras. O veneno é menos cruel do que
a esmola. Não preciso de rogar o bocado para a boca. Por isso mesmo
não me vexo com o desprezo de todos; não sinto que olhem para
mim como para um pesteado. Mas vocês…
A voz do Feiticeiro tomou então uma acentuação lúgubre.
Enrugou-se-lhe a pele do rosto entre os supercílios, e os seus olhos
vermelhos, meio ocultas as pupilas no sobrecenho carregado, luziram como duas
brasas.
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