Rui Barbosa
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Em 14 de julho de 1916
A honra insigne com que hoje me confundis não cabe em minha pessoa: só minha nação pode recebê-la dignamente. O valor inestimável de vosso ato e as palavras de imerecidíssima liberalidade, comovedoras sobretudo pela sinceridade de sua benevolência e por sua intenção afetuosa, com que acabais de acolher-me pela boca do mestre eminente, a quem cometestes a missão de me saudar, penetraram no mais íntimo de minha alma; mas não obscureceram na minha consciência a certeza de minha mesquinhez, de minha insuficiência, de meu nenhum valor diante do espetáculo em que me envolve esta assembléia magnífica, entre os acentos de eloqüência que nela ainda ressoam e sob a impressão de grandeza do apostolado que se professa nesta Casa.
QUE SOU EU?
Que sou eu, afinal, para que possa tocar-me, neste cenário soberbo, o papel a que me elevastes? Apenas um velho amigo do direito, um cultor laborioso, porém estéril, das letras, um humílimo operário da ciência. Nada mais. Toda a significação de minha vida se reduz a ser um exemplo de trabalho, de perseverança, de fidelidade a algumas idéias sãs.
Espírito continuamente em busca de um ideal, nunca cheguei a divisá-lo senão do fundo obscuro de minha mediocridade, muito ao longe, qual esperança que se dissipa num sonho de realidades. Na política, ainda que meus concidadãos, excessivamente generosos, me hajam cumulado, por alta complacência, de mercês e dignidades para as quais me faltam títulos e merecimentos, as circunstâncias me reduziram à condição de elemento pertinaz de resistência, talvez útil, por vezes, para obstar o mal, mas quase sempre sem autoridade para obter o bem.
Porque, nos países de educação cívica escassamente desenvolvida, somente os detentores do poder têm nas mãos a força do bem ou do mal.
Posto momentaneamente no governo por uma revolução, tive a parte que não podia evitar nos trabalhos dos que a organizaram e, seguramente, um quinhão avantajado nos seus erros. Depois, como colaborador na fundação das instituições nascidas desses acontecimentos, consagrei o resto de minha existência, com pouco resultado e diligência extrema, ao trabalho de interpretá-las, de submetê-las a um como curso de lições de coisas, para facilitar-lhes o uso, pondo-o ao alcance de todos, e de defendê-las contra os sofismas, os erros e os abusos.
Sem embargo, no mérito dessa lida ingrata e ordinariamente infrutífera, nada vejo que me eleve acima de minha própria vulgaridade, na qual envelheci cada vez mais consciente de minha fraqueza, de minha ignorância, de minha nenhuma autoridade, assim no terreno das idéias como no dos fatos, cujo torvelinho nos arrebata, nos flagela, nos consome, para, ao cabo, nos abandonar, já inúteis, à margem da eternidade, por onde a corrente da vida corre para seus destinos ignorados.
CLARIDADES NA CERRAÇÃO
Não obstante, há, vez por outra, na cerração que nos encobre, grandes claridades que rasgam o espaço do mundo moral e nos deixam ver, para além da fronteira das nossas desilusões, nos longes mais distantes da nossa percepção, os espigões da serra do futuro, dourados pelo sol de promessas divinas. Surpreendido, então, nessas abertas de luz, o homem, reconciliando-se com a fé que se lhe amortecia, sente-se de joelhos diante dos céus, no fundo misterioso de si mesmo, ao ver que a obscuridade das coisas não é senão o véu do templo, no vazio silencioso de cuja infinita nave a mão de Deus, insensível às nossas impa- ciências, reserva os tesouros incalculáveis de sua bondade para as raças e as nacionalidades que os souberam merecer.
É justamente num desses momentos que eu me sinto agora, transpostas essas portas, que, da contemplação do firmamento argentino na transparência do seu azul e na imaculada brancura de seus horizontes andinos, nos conduzem a este santuário do estudo, do saber e da justiça. Diríeis que se assiste a uma transfiguração: que a presença de um sacerdócio evocou a de uma divindade, que dos gabinetes e salões da academia surgiram as ogivas, as cúpulas, as cariátides silenciosas de uma catedral, erguendo nas mãos e sustentando nas costas o peso dos tetos sagrados; que a tribuna se converteu em púlpito, que um incenso sutil impregna o ambiente, e os portadores invisíveis das preces murmuradas no segredo das consciências elevam até o Criador o holocausto das orações, com a evaporação balsâmica das manhãs eleva no ar límpido o aroma dos prados, o cântico das flores, a embriaguez dos jardins. As vozes do nosso egoísmo emudeceram, e, no recolhimento das almas, em sua vibração interior, nas ondas de emoção que as percorrem, ouve-se o sussurro de uma aspiração transcendente e de uma confiança nova. Sacrificate sacrificium justitiae et sperate in Domino.
É sob o influxo de uma dessas emoções, bem raras em minha idade crestada pela aridez da experiência, que entro à vossa hospitalidade e saúdo os lares augustos desta casa. Por aqui passaram gerações e gerações, perquirindo os veios preciosos da ciência das sociedades, em cujas ramificações profundas a incógnita dos problema da organização da família humana e suas condições de evolução sobre a face da Terra aguarda o trabalho incansável dos mineiros, que as dificuldades sempre renascentes e sempre crescentes da eterna tarefa não desanimam. Aqui se muniram com a primeira experiência no comércio das leis vossos magistrados, vossos parlamentares, vossos estadistas mais notáveis. O foro, a administração, o magistério dessas vastas e complexas disciplinas, sobre as quais assenta a estrutura dos estados, têm aqui o viveiro das capacidades, o laboratório das soluções, a escola dos sistemas, das teorias, das verdades comprovadas e das questões em estudo. Todo o progresso intelectual de vossa pátria transitou, em sua gestação, em sua consolidação, em sua expansão, em sua frutificação, por estas salas, por estes ban- cos, por estas cátedras venerandas, que o lustre de anos gloriosos reveste da santidade com que a pátina do tempo consagra os bronzes antigos.
Todas essas imagens, as sombras dessas tradições, o concurso dessas memórias aureoladas pela administração e pelo reconhecimento dos contemporâneos, todas elas, convocadas agora pelas datas patrióticas e pelos fastos liberais de julho, dir-se-ia que enchiam o vestíbulo desta Faculdade quando, há pouco, transpuseram seu umbral meus passos hesitantes de forasteiro esmagado pela vossa generosidade e pela convicção invencível de não ter com que vo-la retribuir. A brilhante teoria dos vossos imortais, e seu longo séquito de laureados, desdobram aos nossos olhos a história da intelectualidade argentina, mesclando-se e confundindo-se com as galas desta solenidade. Mas a visão interior continua-me a discerni-los aqui unidos, envolvendo a multidão rumorosa dos viventes na turbamulta dos redivivos, e interrogando com sua curiosidade penetrante a temeridade do estranho que não teve a discrição de se escusar ao vosso chamado. A que viria aqui o estrangeiro, o desconhecido, o incompetente? Senhores, a trazer à soberania da grandeza argentina o tributo de obediência de um coração livre, que não sei se vos deve mais hoje, nas honras desta solenidade, quando me recebeis como mensageiro de meu governo e minha nação, ou há vinte e três anos, quando não negastes ao expatriado o asilo de vossa hospedagem, o refúgio de vossas leis, a segurança de vossa proteção. Foi então que as leituras do meu exílio me levaram à obra de vosso Alberdi, o primeiro dos vossos escritores que me pôs em comunhão com o pensamento liberal argentino, e a quem, não obstante suas prevenções antibrasileiras, admiro cada vez mais e tenho, ainda hoje, por uma das inteligências mais seletas da literatura americana. O ilustre tucumano – uma das glórias da Universidade de Buenos Aires na segunda metade do século passado – por duas vezes, nos dias sombrios de sua terra, conheceu as tristezas do expatriado, indo buscar em Montevidéu e no Chile, sucessivamente, à sombra do gasalhado estrangeiro, um abrigo onde exercesse seus direitos de pensar e escrever livremente.
O QUE É A LIBERDADE
Foi em condições como essas que vim a conhecer, em 1893, as praias argentinas. “Eu deixei meu país”, dizia ele mais tarde, “eu deixei meu país em busca da liberdade de atacar a política de seu governo, quando esse governo castigava o exercício de toda liberdade, como crime de traição da pátria”. Não lhe bastava, como a outros, “o desejo de ser livre”. Não tinha à liberdade esse “amor platônico”. Era “de um modo material e positivo” que lhe queria. “Amo-a para possuí-la”, acrescentava. “Amo-a para possuí-la […] mas não há senão um modo de possuir alguém sua liberdade, e este consiste em possuir a completa segurança de si mesmo. Liberdade que não seja segurança, não é garantia, é um escolho”.
Era assim que a definia a Inglaterra, que a definem os Estados Unidos; e o espírito argentino, interpretado nos escritos de um de seus mais luminosos pensadores, já então não sabia defini-la de outro modo.
A civilização política é liberdade. Mas a liberdade[…] não é senão a segurança: a segurança da vida, da pessoa, dos bens. Para um saxão de raça, ser civilizado é ser livre. Ser livre é estar seguro de não ser atacado em sua pessoa, em sua vida, em seus bens, por ter opiniões desagradáveis ao governo. A liberdade que não significa isso é uma liberdade de comédia. A primeira e a última palavra da civilização é a segurança individual.
Toda a civilização, pois, se encerra na liberdade, toda a liberdade na segurança dos direitos individuais. Liberdade e segurança legal são termos equivalentes e substituíveis um pelo outro. O estado social que não estriba nesta verdade é um estado social de opressão: a opressão das maiorias pelas minorias, ou a opressão das minorias pelas maiorias, duas expressões, em substância, irmãs da tirania, uma e outra ilegítimas, uma e outra absurdas, uma e outra barbarizadoras. As repúblicas latinas deste continente, que desnaturaram suas Constituições mais ou menos livres e submergiram na selvageria, não devem essa infausta sorte senão à desgraça de menosprezar e não praticar este singelíssimo rudimento de filosofia constitucional.
Esquecida ou abolida essa noção elementar, os governos consagrados por suas Cartas à forma republicana, mas, realmente assentados na intolerância, derivam aceleradamente para esse estado singular de cronicidade na epilepsia, cujos fenômenos o senhor Lucas Ayarragaray descreveu, com lampejos de Tácito, em seu livro sobre A Anarquia Argentina e o Caudilhismo, e um dos vossos maiores historiadores, o se- nhor Vicente López, caracterizou em termos penetrantes, quando trata, em sua grande História da República Argentina, do “descenso fatal do organismo político no rumo da tirania absoluta”.
GAUCHOCRACIA
A dominação espanhola não aparelhara os povos, como a colonização britânica da América do Norte, para o regímen da liberdade.
Da sujeição absoluta às formas embrionárias da obediência passiva, não se havia de chegar sem transições dolorosas à autonomia no governo do povo pelo povo. A semente cultivada pelo truculento despotismo dos reis absolutos germinou logicamente no brutal despotismo dos caudilhos. Daí esse “poema bárbaro” de servidão e desordem, essa “subversão ciclópia”, a “gauchocracia”, que agravam a anarquia até a demência, exaltam a crueldade até o delírio, produzem a mazorca e o caudilho, tingem de sangue a história dos pampas e, com a superstição de um militarismo selvagem, com os costumes de um partidismo atroz, dividem a sociedade em verdugos e proscritos, classificam os cidadãos em patriotas e traidores, entronizam no poder os mandões sanguissedentos e despovoam de espíritos cultos o país, povoando com eles o desterro, onde rutilam, em constelações deslumbrantes, vossas estrelas de primeira magnitude: os Sarmientos, os Alberdis, os Rivadavias, os Tejedores, os López, os Mitres, os Varelas, os Canés, os Echeverrías, os Lavalles, os Gutiérrez, os Indartes, os Irigoyens e tantos e tantos outros, onde se concentram e de onde se desparzem os raios mais luminosos da inteligência argentina.
Todos os que se não alistam nessa demagogia de crueza e pilhagem estão “fora da proteção das leis”, são “execrados criminosos”, nutrem “sentimentos infames”, passam pelos “entes mais vis da sociedade”.
Formam a categoria dos “imundos e selvagens”. Na literatura virulenta que emana desses paroxismos sinistros, a pletora do ódio fratricida introduz esse vocabulário monstruoso, onde cada ultraje reflete as paixões mais tenebrosas da vesânia da força, armada com as “faculdades onímodas”, as ditaduras tumultuárias, os plebiscitos grotescos, nos quais a unanimidade dos votos recolhidos pelo Terror coroa os “restauradores das leis”, e os decretos de traição, que fulminam os mais nobres representantes da cultura jurídica, ainda nascente, então, porém já viva, exuberante e radiosa.
Vão já bem longe, para a Argentina, esses dias malditos, de inenarrável negror. Para ela são passados, ainda que não sejam passados para outras regiões deste continente. Há apenas vinte e três anos, repúblicas havia, sob o Cruzeiro do Sul, nas quais os expatriados políticos eram feridos no desterro pelo estigma de traição lançado em atos oficiais, para enxovalhar no estrangeiro aos perseguidos.
Vós, contudo, há muito que consolidastes a vossa civilização.
Vinte e cinco anos, pelo menos, de governo estável, ordem constante e progresso ininterrupto vos libertaram para sempre das recaídas no mal da anarquia. Um desenvolvimento colossal da riqueza, as acumulações do trabalho na prosperidade, uma abundante transfusão de sangue europeu, um civismo educado nos melhores exemplos da liberdade conservadora, grandes reformas escolhidas com discrição, adotadas com sinceridade e praticadas com inteireza depuraram dos últimos vestígios da antiga doença vosso robusto organismo, talhado para o crescimento gigantesco, asseguraram-vos no mundo uma reputação definitiva e fizeram da República Argentina um dos centros da civilização contemporânea, uma nação cujo invejável progresso pode resumir-se numa palavra, dizendo-se que a República Argentina é um país organizado.
Quando se conquista e se afirma uma posição como esta, a memória pode voltar-se, com tranqüilidade e orgulho, para os dias maus de outro tempo. Por esses dias maus não responde a raça, nem o território, nem o céu americano. Respondem as influências da conquista, da colonização e da opressão ultramarina. Saturados de uma educação monástica e despótica, supersticiosa e servil, os povoadores destas terras nelas implantaram, com o pecado original de sua descendência, o atavismo dos vícios arraigados no organismo dos povos ibéricos por séculos desse absolutismo, cuja malignidade culminou sob o Demônio do Meio-Dia e seus degenerados sucessores. Como a Bartolomé Mitre, a mim também me parece que nenhum povo se teria governado melhor a si mesmo nas condições em que se encontravam as colônias hispano-americanas, ao se emanciparem e fundarem a república, condizente com o seu gênio, mas não com seus antecedentes e costumes.
O MOVIMENTO EMANCIPADOR
O doutor Luís V. Varela, em sua notável História Constitucional da República Argentina, evidenciou, com a diferença entre os dois movimentos emancipadores, quanto excedia em dificuldades o das Províncias Unidas do Rio da Prata, no começo do século XIX, ao dos Estados Unidos da América do Norte, na última metade do século XVIII. Os norte-americanos defendiam direitos em cuja posse estavam desde o seu estabelecimento, ao passo que os argentinos entraram em revolução para ter direitos a que aspiravam e nunca haviam tido. Os puritanos que povoaram as colônias norte-americanas para elas se transplantaram com as instituições civilizadoras da Grã-Bretanha. Mas os espanhóis que ocupavam as regiões rio-platenses eram conquistadores de territórios, que senhoreavam, dobrando-os à lei das armas. Nas Cartas outorgadas pela coroa de Inglaterra continham-se verdadeiras Constituições, nas quais se estendiam aos emigrados todas as liberdades desfrutadas na mãe pátria. As colônias espanholas não passavam de feitorias, discricionariamente administradas pelos vice-reis em nome do soberano europeu. Ao se redimirem da metrópole, já eram os domínios ingleses entidades autônomas, dotadas politicamente de governos republicanos representativos. Os argentinos, ao se desligarem dos vínculos coloniais, não encontraram no acervo com que ingressavam na vida autônoma senão as tradições da centralização espanhola, as leis das Índias e um esboço rudimentar de municípios nos cabildos das cidades. Lá, todo o poder local nascia do povo, cujos sufrágios elegiam os governos. Aqui, os governados não tinham voto, individual ou coletivo, na eleição de sua administração. Lá, para constituir a nação, bastou que os estados se unissem, abdicando uma diminuta fração de sua soberania.
Aqui estava tudo por criar em matéria de instituições locais, provinciais e nacionais, que a república, surgindo de um fiat popular, evocava do caos e improvisava do nada.
Não é, pois, de admirar que os homens de visão clara temessem pela obra que ia empreender-se, e que o Doutor Manuel de Castro, antes do congresso de Tucumán, expressasse os seus receios, dizendo: Demos que se organize a mais bela Constituição federal que os Estados jamais conheceram. Qual será o gênio que logre pô-la em execução? Momento perigoso; o tempo resolverá esta grande questão.
A questão, com o tempo, acabou por resolver-se. Mas não a resolveu o gênio de ninguém. O milagre de tê-la resolvido pertence ao gênio do povo argentino. Foi seu instinto democrático, suas poderosas qualidades de assimilação, suas disposições naturais para se familiarizar com as instituições livres o que determinou, através de longas provações, o vosso ingresso franco e total no concerto das nações realmente emancipadas.
UMA PROFECIA GENIAL
Quando o drama da revolução estala, em 1810, no vasto cenário da América Latina, com as insurreições que rebentam desde o Prata até o Chile, desde a Venezuela até o México, num impulso geral que abarca todas as colônias espanholas, a dinastia de Fernando VII e Carlos IV, destronados em 1808 pela invasão napoleônica, vê realizarem-se os pressentimentos do Conde de Aranda, que já em 1783 aconselhava a seu soberano que renunciasse espontaneamente ao domínio de todas as suas possessões nas duas Américas, fundando ali três reinos distintos, sobre os quais se estendesse a sombra da velha monarquia européia, elevada à dignidade imperial.
O célebre homem de Estado, num rasgo de admirável previsão, anunciara, desde aquela época, a desagregação dos latifúndios internacionais, que a coroa de Castela imaginava submetidos a seu senhorio por uma dependência indissolúvel. A separação das colônias norte- americanas não lhe diminuíra a confiança na vassalagem das suas.
Mas o presidente do conselho do governo de Madri, ao contrário, medindo o alcance dessa lição, procurava desiludir o trono espanhol. “Acabamos”, dizia ele, acabamos de reconhecer uma nova potência, num país em que não existe nenhuma outra em estado de atalhar-lhe o vôo. Esta República federal nasceu pigméia. Chegará o dia em que crescerá e se tornará um gigante e até um colosso naquelas regiões. Dentro de poucos anos veremos, com verdadeira dor, a existência desse colosso. Seu primeiro passo, quando tiver logrado engrandecer- se, será apoderar-se da Flórida e dominar o golfo do México.
Estes temores são muito fundados, e devem realizar-se dentro de poucos anos, se não presenciarmos outras comoções mais funestas em nossas Américas.
SUA REALIZAÇÃO
As frontes coroadas não costumam escutar estes avisos. Carlos III não dá ouvidos a seu previdente conselheiro. Mas sobre o rastro da revolução da América do Norte vinha a Revolução Francesa, e, sobre as pegadas da revolução de 1789, o dilúvio napoleônico, em cujas tormentas soçobra, em Espanha, a casa de Bourbon. As centelhas de Washington e Paris não tardam a crepitar nos ares do Prata. Os ânimos embebidos, pelos escritos de Moreno e Belgrano, na filosofia francesa do século XVIII, agitam-se inflamados, e os acontecimentos voam em tropel, numa carreira vertiginosa, rumo ao advento desta nacionalidade, desde 1806, quando, com a reconquista de Buenos Aires, com o Cabildo aberto da Plaza Mayor e a entrada triunfal de Liniers, se deu “a primeira aparição do povo argentino”, até 1816, quando a assembléia de Tucumán proclama definitivamente a emancipação nacional.
A 10 de fevereiro de 1807 uma junta de notáveis delibera a suspensão do vice-rei, sua prisão e a apreensão de seus papéis. É o que vossos historiadores chamam, com razão, o primeiro triunfo do povo soberano. De 2 a 5 de julho peleja-se no ataque e na defesa desta cidade.
As forças inglesas de mar e terra capitulam, embarcam, abandonam o rio da Prata. “Buenos Aires”, dizia Dom Cornelio Saavedra, “Buenos Aires, apenas com seus filhos e seus vizinhos, empreendeu esta memorável defesa e se cobriu de glória.”
A revolução de 1º de janeiro de 1809, desarmando as forças espanholas rendidas à milícia popular, dá outro grande passo no caminho da independência. Com essa vitória das armas de Buenos Aires aplainava-se o caminho à revolução do ano seguinte. A de 1810, iniciada a 20 de maio, já se pode dar por consumada a 22, quando o Cabildo aberto, que recebeu o nome de Congresso geral, derruba o vice-rei e as autoridades espanholas. Já então o sentimento geral se pronuncia na frase memorável de Moreno: “A Espanha caducou na América”.
Dois dias depois, uma reação momentânea intenta restabelecer as leis do reino. Mas nessa mesma data, durante a noite, o povo da cidade, entregue a si mesmo, agita-se ameaçadoramente nas ruas e, ao amanhecer do dia seguinte, as massas populares rompem as cadeias da sujeição colonial, proclamando, com a eleição da Junta Governativa, a constituição da primeira autoridade estabelecida para reger as Províncias Unidas do Rio da Prata.
É a revolução de 25 de maio, com a qual expira o vice- reinado de Buenos Aires. As outras vilas e cidades, convidadas por esta, concorrem com seus deputados para a organização de um governo federal, de um executivo, estabelecido em dezembro de 1810, no qual já se esboça a federação, o sistema representativo, a forma republicana, que outros atos da grande revolução não tardariam muito a desenvolver, concluir e consolidar.
Nos dois anos subseqüentes cresce a agitação redentora e organizadora.
Em 1811 a Junta Governativa dá à república nascente o regulamento orgânico de 22 de outubro, sua primeira Constituição, cujas disposições, em sua maioria, antecipam as da Constituição atual. É aí que a nação recebe seu batismo com o nome de Províncias Unidas. Já nesse documento primitivo de vossa existência constitucional se reserva ao Poder Legislativo a declaração de guerra, a celebração de tratados, a tributação do país, a criação de tribunais e empregos públicos, a inviolabilidade dos membros do Congresso, a responsabilidade legal do Poder Executivo, a independência da Justiça, as garantias individuais e, entre elas, a maior de todas, a do habeas corpus, que entre nós, no Brasil, adquiriu o maior desenvolvimento –, mas não se nacionalizou, na legislação brasileira, senão vinte e um anos depois de estar consagrada em vosso primeiro intento de Constituição.
A REDENÇÃO DOS CATIVOS
Meses depois, em abril de 1812, um ato governamental fecha o território do país ao tráfico de carne humana: “Proíbe-se absolutamente a introdução de expedições de escravos no território das Províncias Unidas”. É a grande aspiração humanitária, que o Brasil só haveria de realizar trinta e nove, e os Estados Unidos cinqüenta e dois anos mais tarde, à custa da mais espantosa das guerras civis que ensangüentaram o mundo.
Quarenta e oito anos depois do ato de 1812 a Constituição argentina de 1860 estatuiu: “Não há escravos na Nação Argentina: os poucos hoje existentes ficam livres desde o juramento desta Constituição”.
Os Estados Unidos de então ainda não haviam logrado essa con- quista que, justamente nessa época, estava às vésperas de originar a tremenda revolução intestina que, durante um lustro, ameaçou dissolver a União norte-americana, e que o Brasil somente vinte e sete anos mais tarde conseguiu realizar.
Comentando este paralelo, senhores, escrevia eu, faz sete anos, na imprensa brasileira:
Se o Brasil tivesse imprimido na pedra angular da sua independência e da sua organização política o mesmo princípio cristão, o rumo da nossa civilização, a celeridade do nosso progresso, a índole do nosso caráter seriam outros. Infelizmente bem diversa era a sorte que nos reservava a inconseqüência original dos autores da nossa emancipação.
Os nossos futuros historiadores não poderão dizer, como, já há doze anos, dizia, em relação à República Argentina, o historiador da sua independência, que a escravaria, como instituição, mui pouco alterou as condições econômicas e morais da sociedade nascente.
Longe disso, entre nós, pelo contrário, toda a cadeia da nossa história vai prender com o anel de ferro da escravidão africana. Daí emanaram os maiores contrastes entre o homem e a natureza, que enxovalham a nossa reputação e abatem a nossa fronte diante do estrangeiro. Durante três gerações fomos livres, prósperos e ricos à custa da opressão dos nossos semelhantes. Vamos atravessando hoje a grande expiação, que não falta jamais, que não perdoa aos atentados históricos, aos crimes capitais contra a humanidade. A carcaça do cativeiro morto ontem está em decomposição no meio de nós, a nos envenenar do miasma cadavérico: almas, idéias, instituições.
Por isso nos falece, até hoje, no aspecto dos homens e das coisas, o lustre, o donaire, o esmalte da civilização européia. Estes estigmas são tenazes, e não se dissimulam. Eles representam a justiça divina, de cujas sentenças os povos, como os indivíduos, não se resgatam senão pelo sofrimento.
O que para a extirpação desse cancro devemos ao contato argentino não passou despercebido ao nosso reconhecimento. O Conselheiro Saraiva, em 1865, previa que a aliança do Império com as repúblicas platinas daria em resultado necessário a eliminação da escravatura no Brasil. Seis anos mais tarde, Paranhos, advogando o projeto, de que saiu a lei de 28 de setembro, confirmava eloqüentemente esses pressentimentos: “Achei-me, ao terminar a guerra do Paraguai, em relações com cinqüenta mil brasileiros, que estavam em contato com os povos vizinhos; sei, por confissão dos mais ilustrados dentre eles, quantas vezes a instituição odiosa da escravidão no Brasil nos vexava e humilhava ante o estrangeiro; e pode perguntar-se aos mais esclarecidos dos nossos concidadãos que fizeram essa campanha, se todos eles regressaram, ou não, desejando ardentemente ver iniciada a reforma do elemento servil, se se deve, ou não, em parte a eles o mais poderoso impulso adquirido pela idéia nestes últimos tempos.”
Desse título de precursor da manumissão geral dos escravos na América, “referendado pelos maiores estadistas brasileiros, e dessa sua colaboração, pela influência, na obra da nossa regeneração social tinha toda a razão em se não esquecer, nos festejos de maio de 1888, a nação argentina. Foi com a consciência do seu contingente superior nessa conquista humana que ela nos abriu os braços fraternalmente, celebrando conosco o último ato da supressão do cativeiro no mundo civilizado.
Mais vale, entre dois povos, uma tradição destas na sua história que a escritura de um tratado de aliança nas suas chancelarias.
Na ordem usual e natural das coisas, a independência dos povos antecede sua emancipação. Entre vós, porém, os sucessos alteraram notavelmente a seqüência habitual da evolução política no curso da humanidade. Quando o grito final de vossa emancipação reboou de Tucumán pelas regiões do Prata, em 1816, já estava elaborada a Constituição inicial da Argentina, a matriz de suas Constituições ulteriores, na obra do deão Funes, nesse Regulamento Orgânico dos três poderes, que, desde 1811, adotara e promulgara a Junta Conservadora de Buenos Aires.
Tal era a impaciência em que, estimulada pela consciência de seu vigor, ardia a antiga colônia espanhola, por entrar plenamente no gozo de sua maioridade, com seu governo organizado e seus direitos definidos; e tantos os elementos de cultura já desenvolvidos nas camadas superiores da nova sociedade, o conjunto de homens capazes que ela reunia, o acatamento popular que os rodeava, a intuição do futuro que os esclarecia.
O CONGRESSO DE TUCUMÁN
Nem por isso, contudo, desmerecerem de seu reconhecido valor os fastos cívicos de Tucumán, onde o movimento iniciado em 1806 e glorificado em 1810 culminou com sua consagração terminal em 1816. O triunfo imprevisto de Belgrano, em setembro de 1812, renovara a face da revolução, batendo os exércitos espanhóis e arrojando ao Peru as forças do general Tristán.
O povo daquela cidade histórica acudira inflamado ao chamamento do libertador, toda a população viril pegara em armas e as próprias mulheres se associaram ativamente ao entusiasmo geral, trabalhando no fabrico de munições. Passando por sobre as ordens categóricas do governo, o arrojado general dá a batalha desaconselhada por seus superiores, na qual joga a vida a corpo perdido, num duelo de honra inevitável.
Algo é preciso aventurar, e esta é a ocasião de fazê-lo. Felizes de nós se pudermos lograr nosso intento, e dar à pátria um dia de satisfação, depois das amarguras por que estamos passando!
Não o enganava o coração pressago. Os soldados realistas são rechaçados. As forças do “exército pequeno”, na ironia de Belgrano, derrotam o “exército grande” em toda a insolência da presunção, que encarecera com a jactância incluída neste apodo posto às tropas inimigas.
Tucumán, a bem-fadada província setentrional, ganhara divisa de seu escudo de armas. Era o túmulo dos tiranos, como profeticamente lhe chama, em solenização da vitória, o general laureado.
O Estatuto Provisório, decretado em maio de 1815 pela Junta de Observação, designara “como lugar intermédio no território das Províncias Unidas”, para a reunião da Constituinte que se projetava, a capital feita célebre pelos últimos reveses do poder militar estrangeiro. Ia consumar-se, assim, a revolução de 15 de abril que, em 1813, mandara convocar de imediato um Congresso Geral, onde se formulasse a constituição do Estado. O Paraguai não responde. A Banda Oriental, Entre-Ríos, Corrientes e Santa Fé estão sob o domínio de Artigas. Mas as outras províncias, incluídas, finalmente, as de Córdoba e Salta, acorrem pressurosas ao chamado.
A assembléia dele resultante não iguala, em cultura política, a de 1813, composta dos patriotas de 1810; mas reflete com exatidão as localidades que representa, e congrega em seu seio, geralmente, os homens de mais conceito e estima em cada província, destacando-se entre eles algumas individualidades superiores, e sobressaindo neste número três frades tão ilustres por suas virtudes e letras como por seu civismo e idéias liberais. No fervor cívico destas o clero compete com o foro e com o comum do povo. Produto comparativamente venturoso de uma eleição a que a indiferença pública de certas localidades e os ódios regionais de outras não pareciam augurar bons resultados.
Três correntes distintas se debatem em seu seio; três credos a dividem: a centralização, a federação, a restauração dos Incas. Mas as opiniões, divergentes nessas tendências locais, inclinam-se, em geral, para a monarquia que entre seus adeptos conta com nomes de supremo prestígio, como os de Rivadavia, San Martín e Belgrano. É um corpo heterogêneo, desunido, flutuante, e é ele mesmo que debuxa o quadro social que o cerca, com a pena de frei Cayetano Rodríguez: as províncias divididas; desavindos os povos; rotos os laços da união social, os governos mal seguros; uma luta geral de interesses; as forças do estado vacilantes; esgotadas as fontes da prosperidade comum; “armada” no horizonte “uma negra tempestade” e a nação a caminho de “uma espantosa anarquia”.
Felizmente as divergências, que, em matéria de forma de governo, agitam a heterogênea assembléia, se retraem e desarmam todas à voz dos grandes patriotas, ante a suprema aspiração de toda as almas: a proclamação da independência nacional por ato nacional de uma assembléia nacional. “Até quando esperaremos para declarar nossa independência?”, pergunta San Martín, ocupado, então, em Mendoza, com a organização do exército dos Andes. Como ele, insta e urge Belgrano. É o sentimento unânime. A autoridade dos dois oráculos o estimula. A pressão aumenta mais ainda com as diligências de Pueyrredón, o Diretor Supremo, que o Congresso acaba de nomear. A assembléia já não pode resistir nem atrasar-se. A independência das Províncias Unidas é a Ordem do Dia para a sessão de 9 de julho, e o Congresso não a discute: aclama, entre os aplausos da multidão, que o vitoria, e numa ata da mais elevada linguagem, o entrega às províncias, às povoações, aos exércitos, que vão jurá-lo em paroxismos de entusiasmo.
O JURAMENTO DA INDEPENDÊNCIA
Deverei repetir-vos aqui essas nobres palavras? Deixai-me, senhores, a grata emoção de fazê-lo.
Nós, diziam os vinte e nove deputados, nós, os representantes das Províncias Unidas da América do Sul, invocando o Eterno, que pre- side o Universo, em nome e por autoridade dos povos que representamos, protestando ao Céu, às nações e aos homens todos do globo a justiça que regula os nossos votos, declaramos solenemente à face da Terra que é vontade unânime e indubitável destas províncias romper os vínculos que as ligavam aos reis de Espanha, recuperar os direitos de que foram despojadas, e investir-se do alto caráter de uma nação livre e independente do Rei Fernando VII, seus sucessores e metrópole. Ficam, por conseguinte, de fato e de direito, com amplo e pleno poder para darem a si mesmas as formas que exija a justiça e determine o acúmulo das atuais circunstâncias. Todas e cada uma delas assim o publicam, declaram e ratificam, comprometendo- se, por nosso intermédio, ao cumprimento e sustentação desta sua vontade, com o penhor de suas vidas, haveres e fama.
Antes de assim proclamada, a independência já era fato consumado.
Declarada se devia ela considerar até pelos atos das assembléias de 1811 e 1813. Esses atos afirmam que nas duas assembléias “reside a soberania das Províncias Unidas do Rio da Prata”, estabelecem que “os deputados das Províncias Unidas são deputados da nação em geral” e mandam bater moedas com o escudo de armas nacional.
Porém essa vontade assentada e irretratável do povo ainda não recebera em um ato especial a consagração distinta e solene, que devia selá-la, nem se imprimira ao governo a necessária centralização, que devia preceder a marcha das armas vitoriosas na consolidação militar da independência declarada. Tais são as únicas resoluções em que o consenso unânime dos povos que ela representa lhe dá a força para impor- se à obediência de todos. Cingindo-se a essas medidas capitais, a assembléia se inspira naquele bom senso, naquele tato, naquele instinto prático, de que Belgrano, escrevendo a Rivadavia em fevereiro de 1810, a louvava com encarecimento neste expressivo testemunho:
Creio que há muito poucos que não desejem o melhor, e é daí que nascem as controvérsias; e, quando parece que se vão devorar, basta que alguém fale ajuizadamente, ainda que não tenha a voz de um estentor, para que todos o ouçam. Sempre será uma eterna glória para nosso país essa deferência para com a razão.
A OBRA DO CONGRESSO
Eis aí a obra do Congresso de Tucumán, cuja existência interior se desdobra numa luta de contradições inconciliáveis, cuja fisiono- mia se compõe das antíteses mais radicais, mas cujos atos dominantes salvaram a revolução, tornando irrevogável a redenção argentina, imprimindo unidade nacional ao governo das províncias emancipadas, e estabelecendo, com esses dois feitos, os fundamentos da construção majestosa, cuja data inaugural celebramos no augusto aniversário destes dias.
É assim que o tempo, o maior e o mais seguro fator da justiça na ordem das coisas humanas, vinga a sagrada memória desses benfeitores de sua nacionalidade, seus ilustres patriarcas, das injúrias da espantosa guerra social, nas mãos de cuja anarquia caem vencidos, mais tarde, quando a demagogia militar do ano vinte dissolve o Congresso de Tucumán e o diretório por ele constituído, impondo aos fundadores da independência e aos salvadores da revolução a tacha de traidores, cobrindo-os de ultrajes e submetendo-os a um processo monstruoso, em que os acusados se vêem de antemão condenar, em termos brutais, pelos caudilhos, aos quais nem a revolução nem a independência devem o menor serviço.
Detenhamo-nos aqui, senhores. Não me caberia seguir, destas alturas em diante, a trajetória dessa revolução que, renascendo sempre de suas catástrofes, e multiplicando sem cessar seus lauréis, transpõe os Andes, subleva o Chile, espraia sua inundação até as costas do Pacífico, insurge o Peru, estende a marcha redentora até o Equador, onde se associa à revolução colombiana, ao mesmo tempo que, dos extremos setentrionais da América do Sul, desce outra onda revolucionária, barrando os exércitos da Espanha e, encontrando-se com as ondas vitoriosas do movimento argentino, junta suas forças às dele, na última batida às armas da metrópole, cuja resistência agoniza nas montanhas peruanas, depois dos golpes mortais que lhe infligiram as batalhas de Chacabuco e Maipu, Carabobo e Boyacá.
Essas façanhas medem, a contar de 1816, os seis anos desbordantes de vitórias libertadoras, ao fim dos quais Bartolomé Mitre, em sínteses eloqüentes, recapitula a situação deste modo: As colônias hispano-americanas eram livres de fato e de direito por seu próprio esforço, sem auxílio estranho, lutando sozinhas contra os poderes absolutos da Terra, contra elas coligados; e do caos colonial surge um novo mundo, ordenado, coroado com as duplas luzes polares e equatoriais de seu céu. Poucas vezes presenciou o mundo uma gênese política semelhante, nem uma epopéia histórica mais grandiosa.
OUTRA PROFECIA
Era bem natural que na América do Norte encontrasse agrado e simpatia a emancipação das colônias da América do Sul, reconhecidas, em 1822, pelos Estados Unidos. Mas onde parece que se teve a compreensão mais nítida, mais viva e mais completa do interesse que representavam para a humanidade os extraordinários sucessos de que era teatro este continente, foi na Europa liberal, especialmente na Inglaterra, a mãe de todas as liberdades modernas, a grande escola da ciência dos homens de estado. As palavras do Marquês de Lansdowne, em 1823, na Câmara dos Comuns, propondo que a Grã-Bretanha reconhecesse a independência das províncias hispano-americanas, são um verdadeiro hino ao futuro da América.
A grandeza e a importância do assunto que vou tratar é tal, diz em acentos comovidos, que raramente se terá submetido outro maior nem igual à consideração de um corpo político. Os resultados abarcam um território cuja magnitude e capacidade de progresso abismam a imaginação quando se intenta medi-los; porque se estendem a regiões que vão dos 37 graus de latitude norte aos 41 de latitude meridional, numa linha, portanto, não menor que a de toda a África, com a mesma direção e mais largura que todos os nossos domínios na Ásia e na Europa. Nessas regiões cruzam-se rios majestosos, com tanta variedade de climas e de tal sorte temperados os calores equatoriais, que disposta se acha ali a natureza para dar em resumo quanto há mais de apetecer em todo o mundo. Habitam essas terras vinte e cinco milhões de almas, de várias raças, que sabem guardar a paz, viver em harmonia e que, em condições mais propícias do que aquelas com que até hoje têm lutado, bem depressa acabarão por encher os amplos vazios de terras incultas, cuja fertilidade as fará prosperar rapidamente, povoando aquele vasto continente de nações poderosas e bem afortunadas. Seus habitantes levarão aos lábios a taça da liberdade; e já ninguém poderá atalhar o rumo a sua civilização, nem aos sentimentos nobres e grandiosos que se levantarem em sua carreira. A regeneração desses países tem de ir adiante.
Não se poderia falar mais divinamente. Era como a mesma sabedoria, prenunciando, abraçada à liberdade, os destinos do Novo Mundo.
A EVOCAÇÃO DE CANNING
A remonarquização da América era, a esse tempo, um dos sonhos do absolutismo europeu. A assembléia da reação fixara seu programa no congresso de Verona. Um exército francês, invadindo a Espanha, restaura o trono de Fernando VII. Só falta agora que a Santa Aliança estenda o braço através do oceano para arrebatar às colônias hispano- americanas recém-redimidas os foros de sua liberdade, consagrada, em tantas campanhas, por tão sublimes sacrifícios. No governo da Senhora dos Mares vela, todavia, o gênio de um grande amigo da humanidade.
Sua autoridade opôs o veto britânico ao infernal atentado. “A América Espanhola é livre”, diz ele. Novus saeclorum nascitur ordo. E foi assim que esse grande ministro adquiriu o direito de exclamar, três anos mais tarde, no parlamento inglês: “Chamei à vida um Novo Mundo, a fim de restabelecer o equilíbrio do Antigo”.
Estas palavras, de uma altiloqüência religiosa e de unção profética, eu as ouvi citar, senhores, faz poucos anos, em circunstâncias que tocam especialmente à República Argentina, e que adquirem singular relevo entre os acontecimentos que angustiam e entenebrecem nossos dias. Entre minhas reminiscências, tão diversas e interessantes, da última conferência de Haia, uma das que mais aprecio é a das relações cordiais em que ali sempre me encontrei com vossos três eminentes delegados, entre os quais me permitireis salientar agora o estadista, por tantos títulos ilustres, que, chamado, pouco depois, a governar este país, deixou de sua administração um sulco luminoso de reformas, cujos benefícios já sentis, e que hão de exercer longa influência sobre vosso progresso constitucional.
Na sessão plenária com que, há perto de nove anos, se encerrou em Haia a famosa assembléia das nações, o eloqüente delegado argentino pronunciou um discurso dos mais apreciados, no começo do qual se evocava a imagem do célebre estadista inglês e suas palavras imortais.
Doravante, disse Sáenz Peña, doravante poderemos afirmar que a igualdade política entre os Estados deixou de ser uma ficção, e está consagrada como realidade evidente. Já não existirá no futuro um direito das gentes para a Europa e outro direito das gentes para a América. A história da Grã-Bretanha registrou esta sentença memo- rável, pronunciada no parlamento de Westminster, pela voz de um precursor: “Chamei à vida o Novo Mundo para restabelecer o equilíbrio do Antigo”. Proferiu ele estas palavras no primeiro quartel do século XIX e, no alvorecer do século XX, está consumada a evolução: os soberanos da Rússia e dos Países-Baixos, convocando-nos a este recinto, são os executores testamentários da profecia de George Canning. O equilíbrio está restaurado pela virtude do direito e pela harmonia das leis históricas, que concertam e juntam os dois mundos como as duas metades de uma só esfera, iluminada por uma só justiça e pela mesma civilização.
FALÁCIA DE NOSSAS PREVISÕES
Não haviam transcorridos muitos anos, senhores, desde que estas expressões traduziram com singular felicidade as esperanças de todo o gênero humano, quando acontecimentos sem par na memória dos homens vieram, com estrondo, pôr a descoberto a miserável falácia de nossas previsões. Uma dessas metades do globo, nosso hemisfério, continua (se também aqui não nos enganamos) sustentando-se tranqüila na divina estrutura do Planeta. A outra, porém, sacudida em seus eixos por catástrofes de desmedida grandeza, estala e vacila sobre si mesma, sacudida por um ciclone de calamidade. Os grandes estados investem uns contra os outros, em prodigiosa colisão, ao impulso de suas massas, como pedaços de corpos celestes que se encontrassem e entrechocassem, apagados os luzeiros do Senhor, nos espaços da noite infinita. Os estados pequenos, varridos como palhas pelo açoite do vento, ou inquietos com o sopro da rajada que roça suas fronteiras, perderam a segurança ou a existência, entregues ao azar da luta entre os maiores.
Mãos poderosas, desencadeando a borrasca, romperam as amarras eternas do futuro das nacionalidades, ameaçadas agora pelas incertezas de uma situação que aboliu todas as garantias da confiança dos homens nos homens, dos povos nos povos. Terríveis surpresas vogam no oceano tenebroso do inesperado, onde até as nuvens do céu cospem destruição, e os recessos do abismo se associam à cegueira exterminadora, que coalha, ao largo, sua superfície, com os destroços de todas as tradições cristãs. Nega-se o direito, desterra-se a justiça, elimina-se a verdade, contesta- se a moral, proscreve-se a honra, crucifica-se a humanidade; o vendaval de ferro ataca os símbolos sagrados, a arte, os tesouros da ciência acumulada, os grandes arquivos da civilização, os santuários do trabalho intelectual. Apenas subsiste, de todas as leis, a lei da necessidade, a lei da força, a lei do sangue, a lei da guerra. O Evangelho está substituído pela religião do aço e da pólvora.
Os citas bárbaros, nos templos de Marte – diz-nos o testemunho de Heródoto, no quarto livro de sua História – colocavam como ídolo, em cada uma de suas aras, um alfanje desnudo. Eis aí o nume de nossos tempos: uma espada ereta no grande altar do universo, onde outrora os cristãos adorávamos a caridade, a clemência e a doçura de um deus que se entregou à morte para livrar-nos do mal e fazer-nos irmãos.
ONDE A IGUALDADE DOS DIREITOS?
Onde, pois, hoje essa “virtude do direito”, essa “harmonia das leis históricas” esse “equilíbrio restaurado” entre as nações, que a vosso representante na Conferência da Paz inspiravam aquelas palavras memoráveis? Onde esse direito das gentes que ele celebrava com orgulho? Onde o terreno jurídico deparado aos “executores testamentários da profecia de Canning” na mútua colaboração dos dois continentes? Onde a igualdade no direito entre os pequenos Estados e os Estados poderosos?
Enquanto naquele concílio dos povos, com o concurso de todas as nações constituídas, supúnhamos estar codificando num corpo de leis os usos internacionais, que o consenso unânime da sociedade santificava, o meio moral do século estava a dissolver-se, já desde longos anos, desde o terceiro quartel do século anterior, por um surdo trabalho de adaptação aos interesses que haviam de estalar neste conflito e, com ele, sacudir, até seus fundamentos, a máquina da Terra.
O cataclismo atual, antes de acabar sua preparação nas forjas de canhões, começara a ser preparado no ar que as consciências respiram.
Os grandes extermínios de homens pelas epidemias nos vêm da atmosfera envenenada pelos miasmas, e dos veículos imperceptíveis que nos introduzem nas veias, ou nos insinuam nos pulmões o gérmen homicida.
Foi analogamente com uma profunda saturação atmosférica de venenos morais e com uma vasta difusão de parasitas malignos que se dispôs o mundo para a irrupção do flagelo cuja crueldade deveria afogá- lo em desgraças. Antes que saísse das fábricas de armamentos, dos quartéis e dos estados-maiores, tinha esta guerra acumulados os fluidos, que viriam a animá-la, nos livros, nas escolas, nas academias, nos laboratórios do pensamento humano. Para entrar em luta com a civilização, a força compreendera que era preciso constituir-se em filosofia adequada, corrompendo as inteligências, antes de subjugar as vontades.
CAUSAS FUNDAMENTAIS
Tudo nos mostra que a guerra e a paz, assim como todas as coisas, boas ou más, nas relações humanas, e, com elas, os problemas concernentes ao bom ou mau uso da matéria-prima que a natureza oferece às nossas ações, dependem sempre da justiça ou falsidade encerradas nas idéias dos homens.
Um dos aspectos característicos da guerra atual está no sentimento, generalizado hoje entre os próprios combatentes, de que “esta guerra é, essencialmente, uma guerra de idéias”. Os povos, cuja fortuna se joga nesses combates desordenados e furiosos, acabaram por ver que o espantoso conflito, em cuja voragem se abismam nações e territórios como barcos desarvorados, “tem, fundamentalmente, por causa, as teorias, as aspirações, os devaneios” de uma propaganda nutrida por um núcleo de espíritos cultos, porém pervertidos até o desvario por um nacionalismo enfermiço.
Graças a esses influxos perniciosos é que se converteram nos mais ferozes inimigos uns dos outros grandes povos cristãos, irmanados pela raça, pelas afinidades de idioma, pelas tradições religiosas, pelos interesses econômicos, pelas alianças régias, pela colaboração nos campos de batalha, pelas simpatias intelectuais, pelas inclinações populares.
OS ATOS RESULTAM DAS DOUTRINAS
As doutrinas precedem aos atos. Os fatos materiais emanam dos fatos morais. Os acontecimentos resultam de um ambiente de erros ou verdades. A guerra sob a qual se debate a Europa mutilada teve por origem montão de teorias disformes e virulentas, que, durante meio século, nas regiões mais acreditadas por sua cultura, encheram os livros dos filósofos, dos historiadores, dos publicistas, dos escritores militares.
As nações ameaçadas pelo pulular desses germes peçonhentos não advertiram nos sinais que lhes manifestavam a tendência e o objeto. Deixaram que a torrente epidêmica engrossasse em suas fontes matrizes, por não haver dado a importância devida à relação de causalidade, inevitável entre essas influências aparentemente abstratas e o curso dos negócios humanos, os sentimentos dos povos, os atos dos governos, os destinos do mundo.
Os professores, os jornalistas, os tribunos são hoje os que semeiam a paz ou a guerra. As bocas-de-fogo sucedem às bocas da palavra.
A pena prepara o campo à espada. Voltaire, repartindo o mundo entre as três nações mais cultas de sua época, a uma distribuía o domínio da terra, outra o dos mares, à terceira o das nuvens. Mas se é nas nuvens que habitam os metafísicos, os idéologos, os utopistas, também dessas alturas, onde se condensam emanações de idéias, pode chover sangue.
Sem embargo, não foi das nuvens que, em nossos dias, se pregou o evangelho da guerra. Foi das cátedras, de onde se proporcionava instruções à juventude, de onde os sábios falavam aos sábios, de onde a História ditava seus oráculos às escolas, de onde se dava aos cidadãos a lição do dever, aos governos, a soberania, aos soldados, a da obediência, aos generais, a do mando.
O CULTO DA GUERRA
Era dali que um dos mais autorizados mestres da ciência nova professava estas doutrinas:
A guerra é a ciência política por excelência. Provado está, muitas e muitas vezes, que só pela guerra vem um povo a ser deveras povo. Só na prática em comum de atos heróicos pelo bem da pátria logra uma nação tornar-se real e espiritualmente unida.
A guerra não é esse mal necessário, de que falava Aristóteles.
Não, ao contrário; “é do eterno conflito entre os estados que a História tira sua beleza. Pretender acabar com essa rivalidade é simplemente insensato.
Os civis emasculam a ciência política”, por desconhecerem que a guerra é a segunda função do Estado. “Essa concepção sentimental se desvaneceu no século XIX, depois de Clausewitz.” Os povos mais civilizados são os que melhor se batem, e esta “é a principal coisa da Histó- ria”. A grandeza depende mais do caráter que da educação; e é nos campos de batalha que se forma o caráter.
Assim dogmatiza o historiador, o catedrático oficial. Depois dele ouviremos o filósofo?
A guerra, diz ele, é a divindade que consagra e purifica os Estados […] Uma boa guerra santifica todas as causas. Contra o risco de que o ideal do estado se corrompa no ideal do dinheiro, o único remédio está na guerra e, ainda uma vez, na guerra.
Quereis escutar agora o estratego, o general, o chefe de exército? Escutai-o: Sem a guerra as raças inferiores e carentes de moral rapidamente eliminariam as raças saudáveis e longevas. Sem ela o mundo acabaria numa decadência geral. A guerra é um dos fatores essenciais da moralidade.
Não basta? Ouvi ainda: O pior de todos os erros na guerra é o mal compreendido espírito de benevolência […] Porque aquele que usa de sua força inexoravelmente, sem medir o sangue derramado, levará sempre vantagem grande sobre o adversário, se este não se conduz do mesmo modo. A estratégia regular consiste, sobretudo, em descarregar sobre o exército do inimigo os mais terríveis golpes possíveis e, depois, em causar aos habitantes de seu território sofrimentos tais que os obriguem a desejar ansiosamente paz e obriguem seu governo a pedi-la. Às populações não se lhes deve deixar mais do que os olhos para chorarem a guerra.
Um general dos que foram elevados à notoriedade por esta guerra formula, em síntese expressiva, a lei dessa alquimia moral, transforma em rasgos de clemência as mais bárbaras impiedades. “Dureza e rigor”, diz ele, “convertem-se no contrário desde que com isso se logre inculcar no adversário a resolução de suplicar a paz.” Donde se conclui inevitavelmente que, como, deste ponto de vista, quanto mais torturadas as populações não combatentes, mais ansiarão pela paz, tanto mais caridade haverá na guerra quanto maior a crueldade que nela se empregue.
“O país sofre”, dizia um dos heróis dessa tragédia, filosofando sobre as agonias de uma região condenada à fome.
A população está faminta. É deplorável. Mas é um bem. Não se faz a gurerra com sentimentalidades. Quanto mais implacável for, mais humana será, em substância, a guerra. Os meios de guerra que mais rápido imponham a paz são e hão de ser o mais humano.
ATÉ A PAZ É GUERRA
Tão consubstanciada se acha a luta armada, aos olhos dessa filosofia truculenta, com as exigências essenciais do nosso destino, que somente em gradação difere a guerra da paz. Toda a vida se reduz a guerra, desde a que nos circula nas veias, entre os fagócitos e os micróbios daninhos por eles devorados, até a que assola a Terra entre os povos invasores e os invadidos. E como, segundo um dos artigos desse credo, “o que é justo se decide pela arbitragem da guerra, pois as decisões da guerra são biologicamente exatas, desde que todas elas emanam da natureza das coisas”; como, por conseguinte, sendo a mesma guerra o critério da guerra, sendo ela quem se julga a si mesma, a sentença das armas constitui a expressão inelutável da justiça, toda a história futura dos homens teria de resumir-se numa palavra: invasão. Invasão obtida pela força ou repelida pela força. Invasão exercida contra a fraqueza e tolerada pela fraqueza; visto que, na lei proclamada pelos oráculos da nova cultura, a guerra é o procedimento de legítima expropriação das raças incapazes pelas capazes.
Pela guerra nos salvaremos, ou nos extinguiremos pela guerra. Eis aí o dilema, em cujos dois extremos a guerra, como princípio de todas as coisas, desaba sobre nós com o peso de sua fatalidade inevitável. Guerra, ou guerra.
Guerra em ação, ou guerra em ameaça. Luta contra a guerra iminente, ou guerra declarada. Sujeição à guerra, ou extermínio pela guerra.
DESCRISTIANIZAÇÃO DA HUMANIDADE
As conseqüências do terrível argumento são irrecusáveis.
Essencial ao homem, já agora, não é aprender a pensar, a sentir, a querer de acordo com esses mandamentos que as crenças de nossos pais nos habituaram a considerar sagrados, que nossos próprios instintos, por si sós, nos ditariam, que o primeiro balbucio da razão nascente nos ensina pela voz do coração, que nos levam a respeitar a infância, a velhice, a debilidade, o infortúnio, a virtude, o talento. Não essencial, agora, não é amarmo-nos uns aos outros, como nos prescrevia o antigo Deus dos cristãos, atacado hoje em seus templos, bombardeado em suas cate- drais, profanado em suas imagens, fuzilado em seus sacerdotes. Não: essencial é que nos esforcemos para ver quem se distinguirá mais nas artes sublimes de nos espiarmos uns aos outros, de nos assaltarmos, de nos espoliarmos, de nos fuzilarmos, de nos atraiçoarmos, de nos invadirmos, de nos mentirmos, de nos extinguirmos.
A GUERRA SANTIFICADA POR SI MESMA
Daí a mais absoluta inversão do que se chama direito internacional.
Se a guerra é a pedra de toque do justo e do injusto, a arbitragem do lícito e do ilícito, a instância inapelável do direito entre as nações, a guerra é a razão, a absolvição, a canonização de si mesma. Daí o princípio de que a necessidade, na guerra, sobrepuja todas as leis divinas e humanas. Dois elementos compunham o direito internacional: a contraposição de um código de leis à doutrina da necessidade na guerra, e a limitação das exigências da necessidade na guerra pelas normas da humanidade e da civilização. É com isso, justamente, que se acaba, declarando-se peremptoriamente que “a necessidade na guerra prevalece sobre os usos da guerra”.
A lei da necessidade na guerra manda que se traiam os tratados? Traem-se. A lei da necessidade na guerra exige que se viole a neutralidade? Viola-se. A lei da necessidade na guerra quer que se ponham a pique navios neutros, afogando passageiros e tripulantes? Afundam-se, afogam-se. A lei da necessidade na guerra aconselha que se matem cegamente velhos, mulheres e crianças, lançando bombas sobre as populações adormecidas, em cidades pacíficas e indefesas? Matam-se.
Para chegar a esta moralidade, não valia a pena atravessar vinte séculos de cristianismo. Muito antes da era cristã, na república de Platão, já o cinismo de Trasímaco afrontava a lógica de Sócrates, dizendo-lhe: “Eu proclamo que a justiça não é senão o interesse do mais forte”. Mas o mesmo Sócrates nos conta que, ao discutir esta proposição, viu no sofista o que nunca lhe vira. Viu-o ruborizar-se. Outro tanto não sucederá, talvez, com os de nossos dias, se bem que os paradoxos do grego não derramassem sangue, ao passo que os do militarismo atual cobrem o mundo de luto.
O CULTO DO ESTADO
A mesma corrente de idéias que põe, nas relações internacionais, a guerra por cima de todas as leis, começara a colocar, nas relações internas, o Estado por cima de todos os direitos. O culto do Estado precedeu ao culto da força militar, a estadolatria à estratolatria. Vosso Alberdi escreveu um excelente panfleto sobre A Onipotência do Estado, encarada ali como “a negação da liberdade individual”. Mas, nas doutrinas que hoje empesteiam e desonram a inteligência humana, a religião do poder sublima-o ainda mais alto: segundo elas, planando numa região de arbítrio sem fronteiras, o Estado, alfa e ômega de si mesmo, existente por si próprio e a si próprio suficiente, é “superior a todas as regras morais”. Ampliado de muitos diâmetros, o super-homem nos dá o super-Estado, o Estado isento dos freios e contrapesos a que a democracia e o sistema representativo o submetem nos governos limitados pelo elemento parlamentar, ou pelas instituições republicanas. E, entendido assim, vem o Estado a ser uma entidade “independente do espírito e da consciência dos cidadãos”. É “um organismo amoral e depredatório, empenhado em sobrepor-se aos outros estados por meio da força”. Não tem, para reger-se, senão sua vontade e soberania.
DUAS MORAIS
Já agora o sistema está completo: em política interna, a força traduzida na razão de estado; em política externa, a força exercida pela guerra. Nas relações internas, duas morais: uma para o indivíduo, outro para o estado. Duas morais, igualmente, nas relações externas: uma para os estados militarmente robustos, outra para os estados militarmente débeis.
RETROCESSO
Para autorizar este retrocesso às idades primitivas foi necessário cantar em todos os tons as virtudes civilizadoras da guerra, negar o alto valor dos pequenos estados no desenvolvimento e equilíbrio do mundo, reivindicar exclusivamente para as teorias do predomínio da força o caráter de exeqüibilidade, negando a eficácia das sanções morais nas relações entre os povos. Pois bem: nenhuma dessas três pretensões consulta a verdade, nem se mantém diante do senso comum.
GENEBRA E HAIA
Pôr em dúvida, hoje, a autoridade da moral no direito das gentes é borrar de um golpe vinte séculos de progresso cristão. As conferências de Genebra e Haia revestiram-no de formas positivas, que os terremotos internacionais lograrão transtornar passageiramente, ainda que deles hão de sair renovadas e vitoriosas. Em Haia, quarenta e oito potências deliberaram sobre o direito internacional, submetendo- o a uma vasta codificação de estipulações, que se comprometeram a observar.
AS FORÇAS MORAIS
Se essas normas sofreram, ultimamente, transgressões violentas, não é porque sejam vãs abstrações. Na existência interna de cada estado também se quebram, amiúde, as leis nacionais; e se a condição habitual dela não é a de ser burlada pela força constantemente, esta vantagem se deve ao mecanismo tutelar da justiça, mais ou menos bem organizada em todas as constituições. É o que ainda está por organizar, mas não será impossível que se organize, talvez mais depressa do que se pensa, entre as nações independentes. Todavia, enquanto não se organiza, forças morais existem que, se não obrigam os povos das contingências da guerra, mantêm, pelo menos, em torno e acima desta, um conjunto de restrições e impossibilidades, opostas aos excessos extremos do militarismo desencadeado.
NÃO, NÃO HÁ DUAS MORAIS
Não se diga, portanto, como se tem dito, que, na esfera onde se agita a política das potências maiores, as noções usuais da moral doutrinária não se acolhem senão depois de alteradas por uma grosseira liga de egoísmo. Não há duas morais, a doutrina e a prática. A moral é uma só: a da consciência humana, que não vacila em discernir entre o direito e a força. Os interesses podem obscurecer transitoriamente esse órgão da visão interior: podem obscurecê-lo nas relações entre os povos, como nas relações entre os indivíduos, no comércio entre os estados como no comércio entre os homens, no governo como nos tribunais, na esfera da política internacional, como na dos códigos civis e penais.
Porém tais perturbações, tais anomalias, tais crises não provam que não exista em nós, individual ou coletivamente, o senso da moralidade humana, ou que suas fórmulas sejam meras teorias.
Não é à nossa, pois, que cabe o qualificativo de moral teórica.
A baixa liga do egoísmo entra em quase todos os negócios humanos, e o risco de ser a lei anulada pela força é comum a todos os domínios da nossa vontade, individual ou coletiva. O que, porém, não demonstra que o mundo real se reduza todo ele, a violência e arbitrariedade; e tanto não é assim que, postos nesse terreno, os conflitos entre os povos são insolúveis. A própria vitória das armas, quando não corresponde à justiça, não os dirime solidamente: apenas se abafam e procrastinam para, ulteriormente, renascerem em novas guerras. Se a de 1870 não tivesse tomado à França a Alsácia e a Lorena, não teria perpetuado entre os vencidos o sentimento da desforra, entre os vencedores, o da conquista.
Somente a moral, portanto, é prática. Somente a justiça é eficaz. Somente as criações de uma e outra perduram.
O ANARQUISMO INTERNACIONAL
“A sociedade humana”, escrevia, no ano passado, um autor americano dos mais notáveis, não pode em última apelação estribar-se na força. Quando numa eleição os republicanos votam, excluindo do poder os democratas, em que se fiam eles para estarem certos de que os democratas lhes entregarão o poder? No Exército e na Marinha, direis. Mas quem manda no Exército e na Marinha, quem dispõe desses instrumentos de poder são os democratas, que estão no governo. Não há outra certeza de que os democratas dele se apeiem e entreguem esses instrumentos de poder, não há outra senão o acordo, a convenção existente nas leis.
Se eles não respeitassem esse acordo, os republicanos levantariam um exército de insurgentes para arrojar do governo os democratas, precisamente como ocorre em certas repúblicas sul-americanas, obtido o quê, ocupariam o poder até que os democratas, por sua vez, reunissem outro exército. De modo que a sorte reservada aos norte-americanos seria, destarte, a mesma de outros países, onde as revoluções se sucedem de seis em seis meses. O que o evita é, unicamente, a confiança geral, que todos nutrem, em que nenhum dos adversários há de falsear as regras preestabelecidas. É forçoso que se estenda a mesma convenção ao campo das relações internacionais; e o militarismo não perecerá senão quando for universalmente reconhecida a necessidade, para as nações, de se regerem pela mesma norma. Toda a esperança de que ele acabe por extinguir- se reside em que triunfe uma doutrina melhor, reconhecendo- se que a luta pelo ascendente militar deve ser abandonada, não por uma das partes, apenas, mas por todas. Proscreva-se o anarquismo internacional, a suposição de que entre as nações não existe sociedade, e substituam-se esses erros pelo reconhecimento franco de um fato óbvio, qual seja o de que as nações formam uma sociedade, e de que esses princípios, nos quais toda a gente deposita a esperança da estabilidade da civilização dentro de cada estado, devem aplicar- se, igualmente, como a única esperança de que se mantenha a civilização nas relações entre os estados.
Para poder fazer do direito da força e da excelência da guerra os dois pólos da civilização, necessário seria levar ao mundo superior da consciência as devastações, com que se tem assolado o mundo, onde reinam as conquistas materiais do nosso progresso. Vacila em seus fundamentos a razão humana, destruindo-se as fronteiras que separavam o bem e o mal, o justo e o injusto, a violência e o direito. O mundo está farto de ouvir cantar em todos os tons do entusiasmo a apologia do extermínio sistematizado. Mas, quando, para a caracterização da guerra, não bastassem as maldades inomináveis que essencialmente a definem, qualificada estava ela de sobra com essa aberração que inventou, em benefício dos interesses da guerra: o privilégio de legitimar a imoralidade, pondo em conflito duas morais antagônicas, uma reservada aos fortes, com a garantia executiva das armas, outra consignada aos débeis, com a miséria de uma sujeição ilimitada ao capricho dos fortes.
BARBARIA
Não existia a moral senão, justamente, para moderar os grandes e escudar os pequenos, refrear os opulentos e abrigar os pobres, conter os fortes e garantir os fracos. Entretanto, com a dualidade que introduziram na concepção da moral, a força e a guerra, apoderando-se do mundo, basearam a moral no dinheiro, na soberba e no poder, fizeram da moral a humilhação, o ergástulo, o cativeiro dos fracos, dos necessitados e dos pequenos. Duplicando a moral, aboliram a moral; e, como a moral é a barreira das barreiras entre as sociedades civilizadas e as sociedades bárbaras, abolindo a moral, proclamaram implicitamente a barbaria como último destino do gênero humano. Barbaria servida pela física e pela química, barbaria adulada pelos sábios e pelos doutos, barbaria dourada pelas artes e pelas letras, barbaria disciplinada nos minis- térios e nos quartéis, barbaria com a presunção da ciência e o gênio da organização, mas nem por isso menos barbaria, antes barbaria pior, por isso mesmo. Maldita seja a guerra que, reduzindo a moral a lacaia da força, embotou o senso íntimo dos povos e envolveu em trevas a consciência de uma parte da humanidade.
A MORAL É UMA SÓ
Não, não há duas morais. Para os estados, como para os indivíduos, repito, na paz, como na guerra, a moral é uma só. Nos campos de batalha, nas cidades invadidas, no território inimigo ocupado, no oceano solapadamente sulcado por submarinos, nas incursões das belonaves aéreas, é ela quem protege os lares tranqüilos nas cidades inermes, quem resguarda nos transatlânticos as populações viajoras, quem não permite semear de minas as águas reservadas ao comércio pacífico, quem livra dos torpedos os barcos de pesca e os hospitais flutuantes, quem abriga de bombardeios as enfermarias e as bibliotecas, os monumentos e os templos, quem proíbe a pilhagem, a execução dos reféns, a trucidação dos feridos, o envenenamento das fontes, quem protege as mulheres, as crianças, os velhos, os enfermos, os desarmados. A moral é só esta. Não se pode conceber outra. Se o mundo vê erigir-se agora um sistema que a ela lhe usurpa o nome, revogando todos esses cânones da eterna verdade, não é a moral que se está civilizando: é a imoralidade, encoberta com os títulos da moral destruída, a malfeitora oculta sob o nome de sua vítima; e todos os povos, sob pena de suicídio, devem unir-se para lhe opor a unanimidade incondicional de sua execração.
A MORAL JURÍDICA
“O que a nós nos importa, acima de tudo, a nós pacifistas e democratas alemães”, dizia, ainda ontem, um deles, em livro recentíssimo o que nos importa é isto: não há preço em troca do qual possamos tolerar por mais tempo, em pleno século XX, a coexistência de duas morais, uma ao lado da outra: uma para uso do cidadão, outra para uso do estado. Maquiavel está morto, e morto para sempre. Os povos, os estados, as dinastias estão submetidos hoje às mesmas concepções morais, às mesmas leis morais que os simples cidadãos. Devem proceder como gente honesta. Quando não, hão de vir a ser, em nome da justiça e da segurança pública, citados diante da justiça, como outro delinqüente qualquer. Não lhes é lícito alegar, para se defenderem, outros motivos que não sejam os do direito penal.
Porque, atualmente, já não deve haver razão de estado, nem direito público especial infensos à discussão e estranhos às noções da moralidade corrente. O que resta disso nos papéis diplomáticos e nos cérebros de certos sábios, a guerra atual o destruirá. Já não existe, nem poderá existir mais, na Europa, senão uma só moral: a moral jurídica, ligando a todos e regendo tudo: reis e dinastias, cidadãos e países.
ELOGIOS USURPADOS PELA GUERRA
Mas, senhores, a guerra não merece o reconhecimento do gênero humano nem sequer pelos atos heróicos e virtudes sublimes de que são teatro seus campos. As influências que elevam os homens a essas alturas da abnegação, a esses gloriosos extremos do sacrifício, não são os apetites sanguinários do combate: é a preocupação dos direitos e interesses da paz, o zelo de seus tesouros periclitantes, que cada um dos combatentes vê periclitar com a guerra. Esses sentimentos, esses afetos, essas nobres qualidades se inflamam e deflagram na luta armada, que oferece aos ameaçados a ocasião da resistência ao perigo iminente. Mas o que ilumina essa luta, o que a engrandece, o que a santifica, é o amor da pátria, o amor da família, o amor da liberdade, o amor de tudo o que as comoções militares inquietam e aniquilam. Pois bem: esses sentimentos não se desenvolvem com tanta intensidade em parte alguma como entre os povos pacíficos, as nações liberais, os governos democratizados.
Se não, veja-se a Inglaterra. Vejam-se os Estados Unidos. Veja-se a Bélgica. Veja-se a Suíça. Veja-se a França.
A França, desapercebida para a guerra, opõe ao gênio da organização o gênio da improvisação, as faculdades criadoras que este encerra e que aquela não possui; cria, para armar-se, uma metalurgia nova; improvisa uma resistência surpreendente; desenvolve virtudes inesperadas, e se excede a si mesma nos campos de batalha. A Inglaterra, militarmente desorganizada, obrigada a medir-se com o inimigo em sete ou oito frentes diversas, sobrecarregada no oceano com a polícia dos mares, inquietada em seu próprio território pela campanha aérea, entrega serenamente à morte a flor de sua aristocracia e de sua cultura, cobre-se de lauréis nos combates, e levanta pelo voluntariado, em dezoito meses, um exército de cinco milhões de homens. A Bélgica, assaltada pela mais imprevista das invasões, levanta a mão da indústria para tomar a espada, a carabina, a lança, e, sobre os restos do torrão paterno, dilacerada, incendiada, atormentada, mas não acobardada, não desonrada, não esmagada, enche a História com o incomparável assombro de sua nobreza, de sua energia e de seu heroísmo. A Suíça, irredutível em sua liberdade e em sua democracia, se impõe, com o civismo de suas milícias, ao respeito dos beligerantes, cujas fronteiras a sitiam por todos os lados. Os Estados Unidos, sem exército nem marinha correspondentes a suas responsabilidades, aos problemas de sua política externa, às condições de sua situação internacional, não receiam pela segurança de sua posição no continente, nem temem achar esgotado, quando o buscarem, esse reservatório de virtude e energias, onde os povos livres sabem encontrar, ao primeiro grito da necessidade, os elementos de sua defesa.
CONFRONTOS DECISIVOS
Um escritor desse país, discorrendo sobre a história de uma das mais agitadas repúblicas sul-americanas, comprovou que, nos primeiros vinte anos de sua existência independente, ela travara mais de cento e vinte batalhas.
Com esse campo de exercício constante para as qualidades “viris e aventureiras”, que se preconizam como a vantagem das nações militarizadas, quem admitirá, não obstante, cotejar essas democracias batalhadoras e as dos Estados Unidos, inimiga da guerra por sua índole, por sua história, por suas instituições, por seus costumes? A Turquia é a nação mais militarizada de toda a Europa; a Inglaterra, a menos militarizada.
Qual das duas, por aquilo que é, daria dos princípios que a modelam mais favorável idéia?
GUERRA E INDÚSTRIA
Dirão que a guerra estimula a indústria e o comércio? Às vezes, mas transitoriamente. Foi o que ocorreu, por exemplo, depois da campanha russo-japonesa. Houve países, como os Estados Unidos, cujas vendas ao Japão, à Rússia e à China cresceram depois dessa guerra. Mas à excitação sucedeu, quase em seguida, uma depressão profunda. A guerra matou centenas de milhares de homens, empobreceu milhões, e os países, prostrados pela sangria, tiveram de economizar, por muitos anos, na proporção correspondente ao decréscimo de seus recursos com os sacrifícios da luta. Naturalmente é o que sucederá, também, passada a guerra atual.
AS CONTAS DA GUERRA
As cifras com que houvessem de calcular-se os prejuízos desta conflagração inaudita seriam de uma imensidade quase astronômica. Já se computam em treze milhões os homens que ela devorou, consumiu ou pôs fora de combate. Mas, quando debaixo desta parcela tremenda inscrevermos em milhares de milhões as somas de moeda consumida, as indenizações, as requisições, as assolações, as cidades arrasadas, as províncias devastadas, o incalculável das culturas, das florestas, dos campos, onde à população sucedeu o ermo, às colheitas sucedeu a hecatombe, e as terras que o arado revolvia são hoje lavradas pelos canhões, a imaginação retrocederá espavorida. A tanto não chegaram aqueles antigos déspotas chineses, cuja carnificina lograva apenas suprimir um milhão de vidas em dezenas de anos de reinado, nem aqueles conquistadores orientais que assinalavam com pirâmide de crânios humanos a passagem de suas armas.
GUERRAS DEFENSIVAS
Se “as guerras de resistência à agressão, ou as de socorro aos oprimidos têm dado motivo a esplêndidas irradiações de heroísmo”, é que elas nascem da consciência jurídica, nos que se defendem, ou da abnegação pela solidariedade humana, nos que se sacrificam. Essas mesmas proezas de verdadeiro heroísmo, o daqueles que se matam pelo direito, próprio ou alheio, constituem a mais direta condenação da guerra, que dança sua dança macabra sobre essas virtudes, e junca com essas vidas preciosas o campo abominável de seus matadouros.
Suprimi essas exceções, nas quais o que brilha não são os benefícios da guerra, mas a palma de seus mártires, e o que a História nos ensina é que a guerra nasce da tirania, ou a engendra, que a guerra colide com as instituições livres e as destrói, que a guerra desumaniza as almas e as corrompe, que a guerra descristianiza as sociedades e as barbariza, que a guerra divide os povos em castas e os escraviza, que a guerra atenta contra Deus e Lhe profana o nome, associando-O aos mais horrendos selvagismos. As nações que se dizem organizadas por ela, constituí- da para ela e por ela engrandecidas, são máquinas de combate, mecanismos de agressão, onde na pele de cada indivíduo está metido o sargento instrutor, onde se reduz a ciência a um papel diminuto e subalterno, onde a educação militarista mata a iniciativa, proscreve o ideal, automatiza a vida, arregimenta a sociedade, imprime em tudo a marca da dependência militar, e faz da guerra a verdadeira religião nacional.
NAÇÕES DE PRESA E NAÇÕES DE PASTO
A militarização das potências divide o mundo em nações de presa e nações de pasto, umas constituídas para a soberania e a rapina, outras para a servidão e a carniça. A política da guerra é a agressão organizada quaerens quem devoret.
Mas é na guerra preventiva, invenção digna da barbárie destilada pela cultura, que se manifesta seu caráter superlativamente agressivo.
Um país declara guerra ao outro, invade-o e devasta-o, ainda que dele não haja recebido ofensa alguma e apenas se defenda do invasor depois da invasão.
Mas nem por isso se excedeu. Estava no seu direito; fez muito bem; porque lá tinha ele suas razões para crer que, caso não se antecipasse, outros países, seus inimigos, se lhe adiantariam no ocupar o território daquele. É como se eu me apoderasse da casa do vizinho e a incendiasse, por acreditar que outro da vizinhança, se eu me não apressasse em queimá- la, se anteciparia a mim na consumação desse atentado. Tal escusa, entre indivíduos, não livraria o criminoso da responsabilidade e do cárcere, senão da morte. Entre nações, porém, é a base de uma teoria, o fundamento de uma generalização, a justificação de uma lei nova.
Quatrocentos e dezesseis anos antes de Cristo, narra Tucídides que Atenas, debatendo com o povo da pequena ilha de Melos o dilema da sujeição ou extermínio que lhe impunha, atalhou a questão, dizendo: “Bem sabeis, como nós, que na ordem do mundo só se fala de direito entre iguais em força. Entre fortes e fracos, os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”.
A IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS
Na última conferência de Haia, senhores, o contrário sustentaram todas as nações hispano-americanas. Com o maior ardor ali nos batemos todos pela igualdade jurídica de todos os estados soberanos; e tal prestígio assumiu esse princípio, naquela assembléia incomparável, que, por não o aceitar, caiu com estrondo o projeto de organização da Corte de Justiça Arbitral, ainda que o formulassem as grandes potências, as quais, não podendo salvá-lo, logo o abandonaram quase todas.
Isto porque os termos do pleito já nasceram idênticos aos do século quinto antes de Cristo, quando a poderosa Atenas discutia com os ilhéus de Melos.
ESTADOS PEQUENOS
Quando hoje se fala de estados pequenos, são estes os não inscritos no rol das grandes potências, isto é, todos os estados mais fracos, os menos armados. De sorte que, além dos estados territorialmente pequenos da Europa, a lista abrange a América inteira, excetuada a União Norte-Americana e o Domínio do Canadá. Toda a América Latina, portanto, entrará, com a Bélgica, a Holanda, a Escandinávia, a Suíça, Portugal, a Grécia, a Sérvia, a Bulgária, a Romênia e o Montenegro, na lista dessas entidades inferiores, cujo destino, consoante a lei de que o poder é o direito, se acha à mercê dos senhores da força.
Não importa que os pequenos estados tenham sido, talvez (o conceito é de Bryce), “os mais poderosos e úteis fatores no adiantamento da civilização”. Não importa que a esses pequenos estados “deva o mundo muito mais que às monarquias militantes” desde Luís XIV até hoje. Não importa que a Grã-Bretanha fosse, dada sua população, um pequeno estado, quando produziu Shakespeare, Bacon e Milton, como um pequeno estado eram os Estados Unidos, quando produziram Washington e Franklin, Jefferson e Marshall. Não importa que num desses dois pequenos estados se elaborasse o direito comum anglo-saxão e, no outro, a Carta da União Americana. Não importa que em pequenos estados hajam vindo à luz o Antigo Testamento, os poemas homéricos, a Divina Comédia, o Renascimento italiano. Não importa que a Alemanha de Kant e Lessing, de Goethe e Schiller não fosse mais que um grupo de principados e cidades livres. Não importa que a pequenos estados, como o de Atenas, o de Florença, o de Weimar, esteja a humanidade atada por dívidas inestimáveis. Não importa que os pequenos estados hajam dado à terra espetáculos e lições de incomensurável grandeza moral, como o da emancipação helvética, faz seiscentos anos, e o da luta das Províncias Unidas dos Países-Baixos contra o colosso da monarquia espanhola. Não importa que o valor da Holanda e da Bélgica, como elementos essenciais do equilíbrio europeu, esteja consagrado pelos atos da política inglesa no século XIV, no século XVI, no século XVII, no século XVIII, no século XIX, defendendo os Países-Baixos desde Felipe II, Luís XIV, Napoleão I, até hoje, a liberdade européia. Não importa o papel dos pequenos estados da América Latina, quando sua insurreição, no princípio do século XIX, cortando o vôo à Santa Aliança, tanto contribuiu para desopressão da Europa. Não importa que entre esses estados haja países como a República Argentina, o Chile, o Brasil, com imensos territórios, grandes populações, riquezas maravilhosas, alta cultura política e fatos que honram a história da espécie humana.
Nada importa; porque só uma consideração se terá em conta: a de sua inferioridade de militar, a de sua insuficiência guerreira, e de sua desvantagem numa comparação de forças com as grandes nações armadas.
LA RAISON DU PLUS FORT
Para estas não existe nenhuma lei, segundo a moderna moral bélica, a não ser a de que a força tem a primazia sobre o direito, a de que o direito é apenas um acessório da força. Segundo os magnates do sistema, os pequenos estados constituem um risco perpétuo para a tranqüilidade dos grandes, são, entre as potências, o pomo da discórdia, dão causa freqüente à guerra, e lhe deparam campo habitual em seus territórios mal defendidos.
Quando foi (a pergunta é de Geffcken, que não sofre a suspeita de ser latino), quando foi que a Holanda, a Bélgica ou a Suíça alguma vez fomentaram a discórdia entre os estados vizinhos?
Decerto que nunca. Mas la raison du plus fort est tuojours la meilleure.
A fábula de La Fontaine encerra em si toda a evolução contemporânea do direito das gentes culto. De que vale ao cordeiro estar bebendo no arroio mais abaixo que o lobo se, a despeito da evidência, o apetite do carniceiro voraz o argúi de lhe turvar as águas?
O PODER DO ESTADO É SUPERIOR À HUMANIDADE
Treitschke, o mestre de Bernhardi, considera “uma desgraça que o direito internacional tivesse por pátria, durante tanto tempo, países como a Bélgica e a Holanda. Esses países”, diz ele, em risco contínuo de serem atacados, têm uma concepção sentimental dessa matéria e, por isso, sua tendência é apelar para o vencedor em nome da humanidade, como se tais apelos não fossem antinaturais e insensatos, pela contradição em que se acham com o poder do Estado.
ESTADOS NEUTRALIZADOS E EMASCULADOS
Aos olhos dos super-homens que o insigne professor representa, “a Bélgica, sendo um estado neutro, é, por natureza, um estado emasculado”.
O epíteto é de um insigne historiador. Vede, não obstante, qual é a falta de virilidade nas legiões do Rei Alberto! Ora bem: como, ao perder a virilidade, mudou ipso facto de sexo, estado neutro, precisamente por ser neutro, variou de condição. A condição dos que perderam a qualidade viril é a de protegidos ou cativos, como a mulher ou o eunuco. A noção de neutralidade, pois, já não poderia ser a que até o presente se tinha por tal. Quando os estados poderosos neutralizassem uma nação culta e livre, não seria para lhe assegurar a independência, mas para sujeitá-la à tutela dos fortes.
TRATADOS NADA VALEM
Nada obsta a que essa independência tenha a fiança de um tratado, e não só de um tratado especial, senão também da convenção geral de Haia, que declara inviolável o território neutro. Nada obsta; porque os tratados são farrapos de papel. Foi, portanto, em assinar farrapos de papel que estivemos ocupados, nas conferências de 1899 e 1907, os quarenta e tantos estados que, sisudamente, ali nos reunimos. O mundo inteiro se indignou contra a franqueza da nova doutrina. Mas não tinha razão. É uma doutrina sincera. Não tenta enganar a ninguém. E tem o mérito de resumir, numa só palavra, a imensa revolução por que passou, manipulada pelos interesses da guerra, a moral humana.
PAPEL E PALAVRA
Se os tratados são farrapos de papel, porque se consignam em papéis, trapos de papel são todos os contratos, porque em papel escrevem todos se, porque os celebramos no papel, os tratados não são por isso, senão farrapos de papel, nada mais que farrapos são, igualmente, as leis, que no papel se formulam, decretam e promulgam. Se os tratados, porque recebem no papel sua forma visível, a trapos de papel se reduzem, as constituições, que no papel se pactuam, não passam de farrapos de papel. Trapos de papel maiores ou menores, mas, ao fim e ao cabo, papel, e em farrapos. De sorte que todo o comércio humano, todas as relações da sociedade, todos os direitos e deveres, a família, a pátria, a civilização, o estado, toda a fábrica do mundo racional, depois de feitas as contas, não vêm a ser mais que uma traparia de papel, inútil ou valioso, conforme se trate de sujeitar os fracos ou de servir os fortes.
Menos ainda que o papel é a palavra, porque é um sopro; e, não o obstante, imaginava-se outrora que ela vincula os reis e os povos, os homens e os numes. O verbo de Deus, antes de registrado nas Sagradas Escrituras, o juramento na sagração dos soberanos, na promulgação das constituições, na investidura das dignidades, no depoimento das testemunhas, a poesia homérica no canto dos aedos, a tradição na memória das gentes, a eloqüência na voz dos tribunos – tudo é palavra – a palavra cujo fiat, no Gênesis, criou o mundo, e cuja vibração, na História, transforma e revoluciona o universo. Quando a palavra se transfere da voz ao papel, cuidava o vulgo ingênuo que ela subia um grau na escala da segurança, não porque a consciência valha mais escrita que falada, mas porque, falada, não deixa, como nos escritos, o rastro de sua autenticidade.
Daí o valor do papel, que não comunica sua destrutibilidade a seu conteúdo, mas antes recebe daquilo que contém sua inviolabilidade.
Essa é a nobreza do papel. No papel se salvaram todos os monumentos das letras antigas. No papel se perpetuavam os antigos forais dos municípios livres. No papel se escreve a Magna Carta. No papel fixa a Matemática seus cálculos, a Química suas fórmulas, a Geografia suas posições, a Astronomia suas medidas. Foi no papel que Leverrier descobriu Netuno. É ao papel que a amizade, o direito, a honra confiam seus segredos, suas dívidas, seus compromissos. É no papel que a ciência, a literatura, as instituições eternizam suas obras-primas, seus títulos de es- tabilidade, os arquivos de seu passado, as garantias de seu porvir. Todo o universo moral, todo o universo político, todo o universo humano assenta, hoje, em trapos de papel. Os vendavais da guerra passam sobre ele, e arrebatam-no, dispersam-no, destroem-no. É por isso que ela começa por incendiar bibliotecas. São montoeiras de papel, asilos do pó, das traças e da inteligência. Entregando-as às chamas, a guerra saneia o Planeta. Deus não o criou para o verbo, mas para o ferro.
Se devesse de acatar a esses papéis, a esses papeluchos, a essa papelagem, a guerra estaria desarmada. A cada passo o fantasma de um direito, tropeço de uma convenção, a impertinência de uma garantia. Cedant arma togae dizia outrora o mundo. Hoje, porém, o que diz no mundo é que cedat jus armis: ceda o direito à força. E como a força tem sua culminação na guerra, a guerra é a lei das leis, a justiça das justiças, a soberania das soberanias.
Essa grandeza não tolera a liberdade, nem a humanidade, nem a honestidade. Se um indivíduo repudiasse a própria firma, num contrato legítimo, a título de que era um trapo de papel, ninguém o consideraria um homem de bem. Mas se uma nação repudia tratados solenes, a título de que são papeluchos, ninguém ousará dizer que fez o que não devia. Porque a força é o juiz de seus direitos, a guerra é o árbitro de seus poderes, e todas as convenções internacionais encerram a cláusula, subentendida sempre, do rebus sic stantibus: enquanto as circunstâncias não mudarem; isto é: enquanto outra não for a vontade soberana do mais forte.
EXPROPRIAÇÃO DAS RAÇAS INCOMPETENTE
É pela guerra, diz Bernhardi e só pela guerra que se pode realizar a expropriação das raças incompetentes. O mundo é dominado pela idéia de que a guerra é um instrumento político antiquado, já indigno de povos adiantados em civilização. Nós não devemos deixar-nos seduzir por essas teorias.
Os tribunais de arbitragem são um perigo, porque podem paralisar os movimentos das potências envolvidas no caso.
“Raças incompetentes!” Quais são elas?
As nações desarmadas ou mal armadas. A competência ou a incompetência, são as armas que as dão ou tiram. Não está no direito a competência; porque o direito é apenas um expoente do poder. Não está na inteligência; porque a inteligência não é máquina de matar. Não está na riqueza; porque o mais rico dos estados pode ser reduzido a um cemitério pelo vendaval de uma invasão. Não está nas convenções; porque o papel não vale senão pelo punho que o defende. Eis aí, senhores, os benefícios da guerra. Não se limita a exterminar as vidas. Destrói-nos também o senso moral.
ABOLIÇÃO DO SENSO MORAL
No sítio onde ele existia, um hediondo câncer multiplica seus erros monstruosos. A guerra não é um mal, é um bem: “uma necessidade biológica da mais alta importância”. Com ela não perde a cultura: pelo contrário, “no desenvolvimento da cultura, a guerra é o maior dos fatores”. O gênero humano não deve temê-la. Longe disso, “Deus há de prover para que se renove sempre essa medicina drástica do gênero humano”.
As diligências tendentes à extinção da guerra não são apenas insensatas, senão também imorais, e devem estigmatizar-se por indignas da humanidade.
Pensar em tribunais de arbitragem é alimentar idéias que representam uma presunçosa intrusão no domínio das leis da natureza e que acarretarão para a espécie humana em geral as conseqüências mais desastrosas.
Bem longe de arruinar os povos, a guerra os desenvolve e enriquece; pois “a História inteira os ensina que o comércio medra à sombra da força armada”. Bem haja, pois, “o saudável egoísmo, que ainda dirige a política da maioria dos estados”; pois graças a ele se anularão os esforços realizados para estabelecer a paz, esforços “extraordinariamente perniciosos”, que contrariam “a idealidade, a inevitabilidade, as bênçãos da guerra, estímulo indispensável ao desenvolvimento do homem”.
A PAZ É O MAL
Da paz, sim, devemos ter receio; porque a paz, se acaso fosse exeqüível, “nos conduziria à degeneração geral”. Ela “não deve, nem poderá ser nunca o objeto da política de uma nação”, visto que a guerra é “a lei natural, a que se podem reduzir todas as outras leis da natureza”.
Heráclito de Éfeso dizia que “a guerra é a mãe de todas as coisas”; e os sábios de nossa idade não topam com outra expressão mais digna de resumir a obra divina. “Os grandes armamentos constituem a mais necessária precondição da salubridade nacional”.
OS AXIOMAS DA FORÇA
“O fim de tudo e a essência de tudo, num estado, é o poder; e quem não for homem bastante para encarar de frente esta verdade, renuncie à política.” O mais sublime dever moral do estado não é guardar a justiça, nem sustentar a moral: “é aumentar seu próprio poder”. Da moralidade de suas ações o estado é o único juiz. “Os direitos reconhecidos, como os que se estipulam nos tratados, não são jamais direitos absolutos: sua origem humana torna-os imperfeitos e variáveis; e há condições em que não correspondem à verdade atual das coisas.”
“Todo o trabalho em prol da existência de uma humanidade coletiva fora dos limites dos estados e nacionalidades é irrealizável.” “As nações fracas não têm o mesmo direito de viver que as ações poderosas e robustas.” Eis aí, senhores, os axiomas da escola destinada a regenerar o mundo pela força.
A GUERRA ATUAL E AS CONVENÇÕES DE HAIA
Se esse é o verdadeiro direito público, ninguém poderá queixar- se de que a guerra atual tenha dilacerado todas as convenções de Haia. As convenções de Haia são as mais solenes de quantas viu a História; são os atos jurídicos de maior gravidade, nos quais reciprocamente se manifestou a livre vontade dos estados. Porque nunca se celebrou conselho de nações tão numeroso quanto aquele, onde podemos dizer que se reuniram, em número de mais de quarenta, todos os governos regulares.
Nunca se debateram tão atentamente, entre estados, seus mútuos direitos na paz e na guerra; nunca se deliberou com tanta luz, com tanta isenção, com tanta harmonia sobre estas questões supremas; nunca se ergueu às leis da paz e da guerra uma construção tão vasta, tão sólida e excelsa. Dessa construção, não obstante, o conflito que agora rasga as entranhas da Europa não deixou pedra sobre pedra.
Os fatos se acumulam, descompassados e tremendos. Como conciliar as convenções de Haia com a violação do território de nações neutras, invadido, ocupado, talado, anexado? Com o uso de gases asfixiantes e jatos de petróleo inflamado? Com o emprego de projéteis explosivos e o envenenamento das fontes? Com o abuso da bandeira de parlamentações e das insígnias da Cruz Vermelha? Com a imposição de requisições e indenizações exorbitantes às regiões ocupadas? Com o bombardeio de aldeias, cidades, vilas, povoações e casas indefesas? Com o fogo dirigido contra edifícios consagrados aos cultos, às artes, às ciências, à caridade, monumentos históricos, hospitais e enfermarias? Com o fato de forçar os prisioneiros a participarem das operações militares contra sua pátria, ou a servirem de escudo vivo ao inimigo? Com o sistema de obrigar os reféns a responderem por atos de hostilidade a que são alheios e que não podem evitar? Com as penas coletivas, as contribuições achatadoras, os êxodos forçados, as exterminações implacáveis de populações inteiras, a pretexto de atos individuais pelos quais não são responsáveis?
Com a destruição desnecessária de propriedades particulares e públicas, de bairros, aldeias e cidades inteiras, de estabelecimentos destinados à religião, à beneficência, ao ensino, de mercados, museus, oficinas industriais, obras artísticas e laboratórios do saber, a título de castigos coletivos?
Com a pilhagem e o incêndio, a expatriação e a deportação de habitantes inocentes, sem consideração de sexo, idade, condição ou sofrimento?
Com o fuzilamento de prisioneiros ou feridos, e a execução em massa de pessoas não-combatentes? Com o ataque a navios-hospitais e a disseminação de minas flutuantes em alto-mar? Com a ampliação arbitrária da zona marítima de guerra? Com a destruição de embarcações de pesca? Com o torpedeamento e afundamento de navios mercantes neutros, o sacrifício de suas tripulações e passageiros, sem aviso nem socorro, às centenas, aos milhares?
O CASO DO ORADOR
Não me ocupo, senhores, de política, mas do aspecto jurídico desses acontecimentos. Não foi ao embaixador do Brasil, cuja missão, aliás já está concluída, que recebestes e elegestes membro honorário de vosso corpo docente: foi unicamente ao jurista. Mas, para trazer o espírito absorto nestas questões, existe ainda, no jurista, a consideração da parte, modesta, mas notória, da parte assídua, laboriosa, intensa, que tomou nos trabalhos da última Conferência da Paz, e o cargo em que, há nove anos, foi investido, de membro da Corte Permanente de Arbitragem.
Meu caso vem a ser o do juiz que pergunta pelo código das leis que pode ser chamado a aplicar, o do legislador que estremece pelas instituições em cuja elaboração cooperou, o de um signatário daqueles contratos que busca saber se entendia o que fez, se não se observa aquilo que ajustou, se contribuiu para melhorar seus semelhantes ou para enganá-los e defraudá-los.
CONSEQÜÊNCIAS DAS CONVENÇÕES DA HAIA
A espécie, assim considerada, suscita a meus olhos uma questão de consciência. Qual será, senhores, a situação dos que, havendo concertado e subscrito essas convenções, as vêem hoje conculcadas e rotas? Ante esse repúdio total só terão o direito de ressentir-se e clamar aqueles contra os quais diretamente se perpetram as transgressões ou, pelo contrário, a comunhão dos contraentes na elaboração e na firma comportará para todos as obrigações e os direitos de uma verdadeira solidariedade?
SOLIDARIEDADE ENTRE OS CONTRAENTES DE HAIA
As convenções de Haia, senhores, tão bem o sabeis vós quanto eu, não foram celebradas separadamente, entre nação e nação, duas a duas, em tratados bilaterais. Se o tivessem sido, as demais poderiam cruzar os braços. Cada grupo teria sua situação jurídica distinta e indiferente aos demais. Res tua agitur non nostra.
Mas, de modo bem diverso, essas convenções internacionais foram estipuladas entre todas as nações e todas as nações, e num convênio universal. Portanto, cada uma das infrações a essa concórdia geral interessa a todos os contraentes, e cada um dos signatários recebe de cheio, em sua individualidade, o golpe assestado a qualquer um dos outros.
Nenhum deles é ferido individualmente. Todos o são, virtual e simultaneamente, na comunhão de compromissos e direitos que entre todos se instituiu.
E não é tudo. Evidentemente, senhores, quebrada a inviolabilidade jurídica de um pacto dessa natureza, por obra de um ou mais de seus signatários, com o silêncio e, pelo silêncio, com o implícito assentimento dos demais (Qui tacet consentire videtur), anulada estará ela em relação a todos os demais. Os que emudeceram terão sancionado tacitamente o atentado, terão renunciado a invocar amanhã, em proveito próprio, a garantia cuja fragilidade hoje admitiram: terão, portanto, convindo na falência da situação contratual, em que eram partes.
Com o desacato que sofreu, sem reclamação dos co-interessados, o convênio decairá eternamente de sua autoridade. Era um sistema de garantias, que se organizara e consagrara. Mas na primeira ocasião de exercer ele seu império tutelar e mostrar sua eficácia protetora, uns o espezinharam e rasgaram com o maior desprezo, outros o viram romper e espezinhar sem o menor alarme. Maltratado e desprezado assim, o venerando instrumento desse ato jurídico sem par em sua grandeza moral e política valerá tão pouco amanhã, para abrigar aos que hoje o não defendem, quanto na atualidade está valendo para conter aos que o não respeitam.
O TESTEMUNHO DE ROOSEVELT
Na última conferência de Haia, a situação de maior responsabilidade coube ao Presidente dos Estados Unidos, o senhor Theodore Roosevelt, que, acedendo à iniciativa do congresso pacifista de 1904, assumiu a de convidar as outras nações para a assembléia reunida na capital da Holanda, e sobre os trabalhos dessa assembléia exerceu a influência mais ativa. Ninguém, pois, estava mais autorizado para interpretar o espírito e o alcance dos compromissos ali estipulados que o ilustre ex-Presidente da grande república norte-americana. Pois é ele, senhores, quem, escrevendo no New York Times de 8 de novembro do ano de 1914, nos esclarece acerca desse ponto:
Os Estados Unidos e todas as grandes potências atualmente em guerra foram partes no código internacional criado pelo regulamentos anexos às convenções celebradas em Haia, em 1899 e 1907.
Como Presidente da República, atuando no caráter de chefe de governo, e de acordo com os desejos unânimes de nosso povo, ordenei que se pusesse nessas convenções a firma dos Estados Unidos.
Pois bem: eu não consentiria, e do modo mais categórico o declaro, que se consumasse tal farsa, se me entrasse na cabeça que o governo de meu país poderia não se considerar obrigado a tudo quanto estivesse ao seu alcance para que as normas, em cuja determinação tomou parte, recebessem a devida execução quando ocorresse a emergência de se executarem. Não posso conceber que, no futuro, uma nação que se estime a si mesma, entenda que vale a pena firmar outras convenções de Haia, se nem os neutros de grande poder, como os Estados Unidos, lhes dão a importância de reclamar contra sua violação manifesta.
AS LEIS DA NEUTRALIDADE
Demos, não obstante, senhores, por eliminadas as convenções de Haia, e suponhamos que nada tenham as nações não-beligerantes com o acerto de contas entre os beligerantes, em relação às transgressões, reais ou imaginárias, das leis da guerra. Ainda assim há um ponto em que a indiferença dos neutros não poderá deixar de cessar: é, pelos menos, o que diz respeito às violações do direito dos neutros, cometidas pelos beligerantes. Todo e qualquer ato dessa natureza constitui uma negação geral dos direitos da neutralidade, e interessa, por conseguinte, a todos os neutros.
NOVA EXPRESSÃO DA NEUTRALIDADE
Nos tempos presentes, senhores, com a internacionalização crescente dos interesses nacionais, com a penetração mútua que as nacionalidades realizam entre si, com a interdependência essencial em que até as nações mais remotas vivem umas das outras, a guerra não pode isolar-se nos estados entre os quais se abre o conflito. Suas comoções, seus estragos, suas misérias repercutem ao longe sobre o crédito, o comércio, a fortuna dos povos mais distantes. É mister, pois, que a neutralidade receba uma expressão, uma natureza, um papel diverso dos de outrora. Sua noção moderna já não pode ser a antiga.
Até onde a concepção da neutralidade, pergunta um escritor norte-americano:
Até onde essa concepção estriba no pressuposto de que as nações não participantes numa guerra nada têm que ver com ela, nem estão obrigadas a coisa alguma em relação aos beligerantes, e podem isolar- se dos seus efeito? Essa concepção assenta sobre uma série de ficções. Pela expansão de suas relações mútuas e com o aumento da recíproca dependência entre elas, as nações constituem, de fato, uma sociedade; e, reconhecidas as conseqüências que nesse fato se envolvem, já não é possível a neutralidade num sentido real, no caso de uma grande guerra.
Nas atuais condições do mundo, não há meio, de fato, para os neutros, “de esquivar-se a pagar duro tributo por guerras em que não têm parte, nem responsabilidade”. As operações militares, com o bloqueio, o exercício do direito de visita, a repressão do contrabando, sejam quais forem as reservas e atenções com que procedam os beligerantes, hão de ofender e desgostar os neutros.
COMÉRCIO DE ARMAS E BLOQUEIO
Por outro lado, o comércio de armas e munições bélicas, exercido abertamente por nações neutras com uma das partes combatentes em detrimento da outra, estabelece diferenças incontestáveis na maneira de tratar os beligerantes. Teoricamente, a lei é de igualdade. Na prática, a desigualdade é flagrante. Pode ocorrer, como tem ocorrido, que, dadas as circunstâncias da luta, esse concurso da indústria dos neutros seja decisivo para a vitória de uma das partes; e, deste modo, países pelos quais não se considera nem deve considerar-se violada a neutralidade, contribuem diretamente para a superioridade militar de um dos beligerantes, em prejuízo do outro.
Concluir-se-á daqui que se devam reformar as leis da neutralidade, para vedar o comércio particular de armas entre neutros e beligerantes?
Não; porque, para chegarmos aí à igualdade real na observância das leis da neutralidade, seria preciso cortar não somente o comércio de artefatos militares, senão também todo o comércio entre beligerantes e neutros. De outro modo, assegurado esse comércio a uns pelo domínio dos mares, e proibido a outros pelo bloqueio, o simples tráfico de provisões, que vai abastecer a um dos beligerantes, não abastecendo o outro, pode atuar decisivamente para o aniquilamento dos bloqueados e o triunfo dos que mantêm o bloqueio. Mas levada ao extremo de suspender inteiramente o comércio com todas as nações em guerra, para estabelecer entre todas um pé de igualdade absoluto, a neutralidade importaria na abolição do bloqueio, o que é absurdo, porquanto seria desarmar os combatentes, na guerra naval, de suas superioridades naturais.
Toda neutralidade encerra hoje em si, portanto, restrições e diferenças que negam a neutralidade.
Demais, instituída a proibição absoluta do comércio de armas, o que se lograria seria unicamente assegurar à paz armada, às conspirações da ambição militar, resultados ainda mais certos. As nações pacíficas seriam, assim, mais facilmente vítimas de sua falta de ambição, de sua boa-fé, de sua confiança na honra dos tratados. Não se poderiam valer, contra a guerra inesperada e súbita, do recurso de acudir aos mercados produtores de armamentos. Todas, portanto, se veriam obrigadas a dar à sua preparação militar, na paz, as maiores proporções possíveis, a fim de precaver-se contra as surpresas da guerra; com o que a paz viria a tornar-se cada vez mais e inevitavelmente, um virtual estado de guerra.
Não restaria, então, outra escolha na vida internacional senão entre guerra e guerra: guerra preparada ou guerra declarada; guerra iminente ou guerra presente.
VERDADEIRA NOÇÃO DA NEUTRALIDADE
Não será, pois, nessa direção absurda, que se hão de alterar as regras da neutralidade; porque seria alterá-las em benefício da militarização do mundo. A reforma a que urge submetê-las deve seguir a orientação oposta: a orientação pacificadora da justiça internacional. Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível.
Neutralidade não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. Quando entre ela e ele existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la. Desde que a violência calca aos pés, arrogantemente, o código escrito, cruzar os braços é servi-la. Os tribunais, a opinião pública, a consciência não são neutros entre a lei e o crime. Em presença da insurreição armada contra o direito positivo, a neutralidade não pode ser a abstenção, não pode ser a indiferença, não pode ser a insensibilidade, não pode ser o silêncio.
PELO MENOS O DEVER DE PROTESTAR
Se o fosse, a obra de Haia não seria apenas um capricho fútil: seria uma cilada atroz. Porque, descansando no suposto valor de seus ditames, como limites da força e garantias do direito, os povos se entregariam à expectativa do regímen jurídico cuidadosamente articulado ali, para despertar, de repente, sob o troar dos canhões que os fariam em pedaços.
Os estados soberanos não se reuniram durante longos meses, na capital da Holanda, para examinar didaticamente os problemas do direito internacional e redigir, em colaboração, um manual teórico do direito das gentes. A Conferência da Paz não foi uma academia de sábios, ou um congresso de professores e jurisconsultos, convocados para discutir métodos e doutrinas: foi a assembléia plenária das nações, onde se converteram os usos flutuantes do direito consuetudinário em textos formais de legislação escrita, sob a fiança mútua de um contrato solene. Desde então, os governos que firmaram, se não se constituíram em tribunal de justiça, para sujeitar os transgressores à ação coercitiva de sentenças executórias, contraíram, pelo menos, a obrigação de protestar contra as transgressões.
É essa, portanto, uma situação inquestionável, que os estados afirmaram pelas convenções de Haia. É esse um direito que a neutralidade, por meio delas, conquistou, e um dever a que, por elas, se submeteu: o direito e o dever de constituir um tribunal de consciência, uma instância de opinião, uma jurisdição moral sobre os estados em guerra, para julgar-lhes os atos e reprovar-lhes os excessos. A neutralidade inerte e surda-muda cedeu o passo à neutralidade vigilante e capaz de função judiciária.
A NEUTRALIDADE ABDICANTE
Renunciando a essas funções tão benignas, tão saudáveis, tão conciliadoras, a neutralidade cometeria o mais lamentável dos erros: imolaria ao egoísmo de uma comodidade passageira, de uma tranqüilidade momentânea e aparente, o futuro de toda a espécie humana, os interesses permanentes de todos os estados. Desautorizando a obra das cortes da civilização celebradas em Haia, inutilizaria, desta vez para sempre, todos os ulteriores intentos para organizar a legalidade internacional; e deixando triunfar, sem qualquer sanção, todas as enormidades, todos os absurdos, todas as monstruosidades concebíveis contra a lei consagrada, incorreria numa cumplicidade excepcionalmente grave, senão numa verdadeira co-autoria com os réus dessa anarquia estupenda nas relações entre os estados.
O PODER DA NEUTRALIDADE
Porque, senhores, é incalculável, é imensurável, é inestimável a soma de poder que esse consenso das nações neutras representa, a intensidade e a eficácia de pressão com que esse poder atuaria no procedi- mento dos beligerantes. Se, imediatamente às primeiras explosões de insana revolta contra o direito constituído nas convenções de Haia, os signatários dessas convenções levantassem o clamor público da censura universal contra a ousadia das paixões desenfreadas e ébrias no delírio do orgulho, a torrente da desordem, se não retrocedesse, ter-se-ia moderado, e não continuaríamos a ver submergir-se a civilização de um continente inteiro sob esse dilúvio de soberba, cujas cataratas inundam a Europa, como vagalhões de pampeiro em praia rasa.
AINDA É TEMPO
Ainda não passou de todo a ocasião; ainda não seria de todo tarde para esse movimento reconciliatório da neutralidade com a justiça.
Se as nações cristãs, as nações humanas que a guerra não enlaçou no seu remoinho não despertarem do abstencionismo a que as condenaram seus escrúpulos, estará por saber, no fim de contas, quem terá pecado mais contra Deus, e terá causado maior mal: se os que imergiram o presente na mais espantosa das guerras, ou se os que, deixando apagar-se na consciência dos povos as últimas esperanças no direito, deixaram submergir o futuro na mais negra das noites.
A NOVA NEUTRALIDADE
A imparcialidade na justiça, a solidariedade no direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão: eis aí a nova neutralidade, que, se deriva positivamente das conferências de Haia, não flui menos imperativamente das condições sociais do mundo moderno. A neutralidade recebeu uma nova missão e tem, agora, uma definição nova.
Não é a expressão glacial do egoísmo. É a reivindicação moral da lei escrita.
Será, pois, a neutralidade armada? Não: deve ser a neutralidade organizada.
Organizada, não com a espada, para usar da força, mas com a lei, para impor o direito. O direito não se impõe somente com o peso dos exércitos. Também se impõe, e melhor, com a pressão dos povos.
Indubitavelmente, há forças capazes de organização, maiores e mais seguras em seus resultados do que as forças militares. São as forças econômicas e as forças sociais, com as quais as forças da força não podem lutar. É o que se sente nos próprios atos beligerantes, nessa ansiedade com que todos cortejam a opinião dos Estados Unidos, e tam- bém a de outras nações americanas de muito menos importância militar que a grande república do norte.
Por que todo esse empenho em conciliar a boa vontade e as simpatias do Novo Mundo? Simplesmente para não ferir sentimentos, atrás dos quais não se ergue a iminência da guerra? Não. Os estados em guerra temem o mau juízo do universo, porque sua reprovação poderia traduzir-se em elementos de resistência desastrosos para os propósitos que deram margem a este conflito: a expansão comercial e a infiltração econômica, a conquista dos mercados e a imigração ultramarina.
O PODER SUPERIOR À FORÇA
Quando se pretende que a civilização repousa, em última instância, na força policial ou militar, não se adverte que o exército e a polícia, eliminada a lei que os mantém, não existiriam, ou seriam ajuntamentos informes, anárquicos e ingovernáveis. Quem sujeita as fileiras à docilidade? Quem adscreve a oficialidade à jerarquia? Quem assegura a obediência das massas armadas ao mando supremo de um só homem?
Qual é, em suma o elemento compulsivo, segundo o qual se move o poder das armas? A fé jurada, os textos escritos, a certeza de um regímen comum a todos, o contrato de associação, de organização, de sujeição, a que todos se sentem vinculados. Remova-se esta base, diz um americano, “e não haverá diferença entre os Estados Unidos e o Haiti”. Não é porque os norte-americanos sejam mais militares, que se preservam de certos defeitos da civilização sul-americana. É justamente porque são menos militares. Já se disse que é a força quem reivindica os direitos da Bélgica. Mas quem pôs a força em movimento? Quem impeliu a Inglaterra a correr em socorro dos belgas? Um influxo do espírito, uma coisa moral, uma idéia: a tradição da santidade dos tratados, a teoria das obrigações internacionais, o senso de um contrato existente.
A SOCIEDADE INTERNACIONAL
A noção de contratualidade, mais ou menos jurídica, mais ou menos moral, está no fundamento de todas as associações humanas. Sem ela, nem sequer no crime pode haver associação. Contestado sempre como inexeqüível entre estados soberanos, o princípio de mútua dependência social que os liga vai, sem embargo, cada vez mais demonstrando sua realida- de e seu desenvolvimento. O comércio não é, como irrefletidamente se crê, origem de rivalidades agressivas entre as nações. A lei predominante na existência delas é, cada dia mais intensamente, a cooperação – cooperação que nas relações comerciais tem o maior de seus fatores; e esse fator conduz sensivelmente o mundo rumo a uma sociedade internacional.
A guerra tem evidenciado que, seja qual for o poder e a grandeza de um estado, circunscrito a seus próprios recursos, ele não poderá manter uma posição de autoridade no mundo, nem contar com sua própria segurança. Entregue exclusivamente a suas forças, cada um dos países aliados estaria perdido. Nenhum deles resistiria à portentosa concentração de energias organizadas, que a Europa central havia acumulado contra a Europa saxã, a Europa latina e a Europa eslava. A co-associação desses três elementos europeus foi a salvação de cada um deles e de todos, no choque gigantesco que, já faz dois anos, comove o Velho Continente.
Do outro lado, tampouco, nenhuma das potências do grupo austro- germânico, limitada a seus meios, arrostaria o conflito, a despeito das maravilhas da organização militar acumuladas em quase meio século de absorção de toda a vitalidade nacional na cultura da guerra.
A OPINIÃO DO MUNDO
Essas vantagens, amontoadas pelos Titãs da Força durante quarenta e cinco anos de ininterrupta preparação guerreira, não levavam em conta um elemento moral, com o qual, em tais cálculos, não é costume contar: a opinião do mundo, isto é, a consciência da humanidade, que nunca, em toda a história do homem, se pronunciou com tal grandeza, com tal intensidade, com tal soberania.
O MUNDO NOVO QUE VEM
A confiança absoluta na vitória pela excelência dos armamentos, pela incubação da guerra na paz, não teve o êxito esperado; e do meio das batalhas, das entranhas do solo arado pelos canhões, das estupendas matanças em que se estende a safra da morte, desses abismos de miséria e horrores, de pranto e luto, de desolação e ruínas, de torturas e gemidos, o olhar do crente, do filósofo, do homem de estado vê que surge uma força ignorada, o princípio de um mundo novo, a regeneração da Terra pelo entendimento do ideal cristão.
SUAS FORMAS
A imagem, ainda mal definida, assume formas diversas, mais ou menos belas, mais ou menos consoladoras, mais ou menos precisas, mais ou menos práticas, segundo a luz a que os olhos de cada observador vislumbram o singular fenômeno. Para uns, seria a união das nações democratizadas, no seio de uma vasta federação, onde as soberanias convivam, renunciando unicamente os elementos essenciais à harmonia internacional. Para outros é a constituição desse tribunal das potências que o senhor Roosevelt esboçava, há dois anos, com a base assentada no compromisso comum de sustentar executivamente suas sentenças.
Outros, ainda, prevêem a inauguração de um sistema no qual os estados soberanos se obriguem, por convenções praticamente garantidas, a não entregar seus litígios de qualquer natureza à decisão das armas, antes de os haver submetido ao exame de uma junta internacional. Outros, enfim, menos avançados na via das conjecturas, crêem ver a barreira contra as inundações da violência militar na oposição dos neutros à exorbitação dos poderes beligerantes.
NÃO SÃO OS POVOS OS QUE QUEREM A GUERRA
Em meio dessas divergências, há, sem embargo, um elemento comum a todas as opiniões: o sentimento de que as sociedades civilizadas não podem continuar à mercê dos interesses imorais e desorganizadores da força. Não são os governos democratizados os que perturbam a paz do mundo. Os povos amam o trabalho, anelam a justiça, confiam na palavra, têm no mais alto grau o instituto da moralidade, aborrecem as instituições opressivas, simpatizam com os direito dos fracos. A democracia e a liberdade são pacíficas e conservadoras. As castas, as ambições dinásticas, os regímens arbitrários são os que promovem a discórdia, a malevolência e a desarmonia entre os estados. A guerra atual seria impossível se os povos, e não o direito divino das coroas, dominassem na política internacional.
PREDIÇÕES
Mas esse poder, inconsciente e inerme como as grandes forças da natureza, entra agora em cena com toda a energia da lei irresistí- vel que representa. Se as instituições livres, as instituições parlamentares e as instituições representativas não forem achatadas nesta campanha, a Europa há de ser restituída ao domínio de seu direito, os pequenos estados hão de recuperar sua integridade, as nacionalidades cativas ressurgirão emancipadas, e o movimento dos povos libertos levantará muralhas insuperáveis ao espírito de conquista.
Os povos já não se iludem com os famosos qualificativos de “resultado necessário”, “imperativo histórico”, ou “intervenção da providência”, com os quais se embuçam, como em um manto de santidade, as infernais hecatombes humanas, em cuja orgia de sangue se apascentam as guerras diabólicas de hoje, guerras em que a ciência, servindo aos apetites da fúria militar, multiplica, nas mãos do homem, para o rancor e a cobiça, a potência homicida. Os povos sabem que as guerras, em nossos dias, nem sempre são resultados espontâneos de causas sociais.
Ordinariamente são atos de vontade, resoluções individuais, maduradas no arbítrio dos potentados, encaminhadas pela diplomacia secreta e rebuçadas pela mentira política com a linguagem dos grandes sentimentos de honra, direito, salvação nacional. A catástrofe atual agita, há dois anos, ante os olhos do mundo, a tocha dessa evidência, acelerando com ela a democratização dos governos, o advento das nações à posse de seus destinos e a compreensão dos vínculos sociais que entrelaçam, uns aos outros, os vários ramos da civilização cristã.
A facilidade e a brutalidade com que a política de conquista pisoteou os compromissos de Haia, parecendo aniquilar numa catástrofe irremediável o princípio de um regímen jurídico entre os estados, não vieram senão ensinar aos povos que cumpre reforçar as garantias de sua tranqüilidade, buscando novas sanções à moralidade internacional. Esta pavorosa e fantástica subversão das leis estabelecidas na magna carta da paz e da guerra descobriu, em toda sua hediondez, a natureza das influências a cuja sombra se conspiram estes crimes contra a humanidade, e há de levantar, no espírito dos povos escarmentados, uma reação irresistível contra o predomínio dessa força malfeitora. Os amigos do direito das gentes não temos, pois, motivo para perder a fé em sua utilidade: o que nos cumpre é cavar-lhe mais fundo os alicerce: Not to despair, but to dig deeper for its foundations.
É uma realidade evidente que as nações, no sentido econômico, constituem já uma sociedade. Para que de uma sociedade formada pelos interesses mercantis, industriais, agrícolas, financeiros, passe ela a ser uma sociedade constituída moral e politicamente, para esse auspicioso resultado as circunstâncias deste cataclisma estão concorrendo de modo incontrastável. Essas circunstâncias elevaram a opinião pública, nos dois continentes, daqueles interesses aos interesses ainda mais altos da justiça universal, em que os outros repousam, sem que se possam reputar seguros, enquanto não for criada uma legalidade internacional, com suas sanções indispensáveis.
E PUR SI MUOVE
Romperam-se os tratados, proclamaram-se doutrinas funestas à existência dos contratos entre estados, excogitaram-se refinamentos de malignidade nos meios de guerra proibidos, nivelaram-se as populações não combatentes aos exércitos em armas para autorizar essa nefanda caça desencadeada contra a propriedade, a honra e a vida humana. Diríeis que o mal aniquilara para sempre o bem; diríeis que, no vórtice dessa tormenta, desaparecera, expirara o direito das gentes. E, contudo, não pereceu esse direito. E pur si muove. Caiu nos campos de batalha, para erguer-se de novo na consciência humana, de onde há de vir a reinar, restaurado, e a reconstruir o mundo. É ele quem está qualificando, nos fastos desta guerra, as ações dos beligerantes e as inações dos neutros; foi ele quem já impôs aos inconcebíveis atentados desta guerra seus nomes protervos; será ele quem, depois desta guerra, há de vir a julgar os vivos e os mortos, separando os mártires dos perversos, os heróis dos malfeitores; será ele quem, ao raiar da paz anelada, presidirá aos congressos, onde se há de deliberar sobre a causa do mundo; será ele quem, nas convenções dessa liquidação final, definirá e garantirá o foral da civilização moderna; será ele quem sepultará, numa condenação irrevogável, as heresias do imperialismo e do militarismo; será ele quem reintegrará, nas relações entre as potências, as leis da fidelidade à palavra empenhada, da lealdade nos meios de combater o inimigo, da proteção aos fracos, do respeito aos inermes, da igualdade jurídica dos estados.
INDEPENDÊNCIA E SOBERANIA
A esse desideratum salvador e necessário, a liga dos preconceitos e interesses opõe o exagero atual das idéias de independência e soberania.
Mas essas noções, como a noção de neutralidade, têm de passar pela modificação irrecusável que o bom-senso lhes dita. Os povos não são menos independentes, nem os estados menos soberanos, por isso que renunciem ao direito insensato de se odiarem, de se destruírem, de se acometerem e devorarem, submetendo seus litígios a uma justiça constituída por sua própria eleição, do mesmo modo que os indivíduos não são menos livres e sui juris por se lhes não reconhecer o direito bestial de se agredirem e trucidarem, de se entregarem à pilhagem e ao assassínio, sem que respondam aos tribunais estabelecidos pelas leis de cada nação. Pelo contrário: essas aparentes limitações da liberdade e da soberania são as condições essenciais e as garantias impreteríveis da soberania e da liberdade; porque sem elas a liberdade se perde nas convulsões da desordem, e a soberania se condena aos azares da guerra.
A POSIÇÃO DA AMÉRICA
A América, senhores, não pode dar de ombros com desdém, ante o curso destas questões, ainda que o teatro onde, no presente, elas se agitam seja o de outro continente. Os oceanos que nos circundam não nos isolam, jurídica e politicamente, do resto do globo. Desde a cordilheira em que a natureza deu sua coluna vertebral a este corpo gigantesco, desde as Montanhas Rochosas até os Andes, desde a Califórnia até a Patagônia, o egoísmo dos homens não lograria extrair massas bastante grandes de granito para cercar o Novo Mundo com uma impenetrável muralha chinesa. Correntes misteriosas, profundas e indestrutíveis, como essas que atravessam continuamente os mares, transportando em suas águas o calor de um outro hemisfério, mantêm as relações intelectuais, econômicas e políticas dos estados, a comunhão dos interesses, tendências e sentimentos.
Nunca essa identidade íntima entre os destinos das duas metades do gênero humano foi demonstrada com circunstâncias mais concludentes que no correr desta guerra. Cada pulsação que dilata as artérias européias vem, imediatamente, latejar nas nossas. Se fosse possível que a Europa se extinguisse pelo extermínio de suas raças, ou pelo nau- frágio definitivo de sua civilização, os membros, conservados aqui, desse imenso organismo, que hoje abarca todas as regiões da esfera terrestre, se reduziriam, durante séculos e séculos, a um malogrado fragmento, paraplégico e decadente, da espécie humana, como esses mutilados, cujo corpo a amputação faz desmedrar, e cujo cérebro se atrofia pela insuficiência da circulação, prejudicada com a eliminação de órgãos necessários a uma atividade normal. De modo semelhante, a Europa, por sua vez, receberia um golpe mortal em seu desenvolvimento se a América fosse dormir sob as ondas, ao lado da Atlântida submergida, ou se os seus habitantes retornassem à existência selvagem dos aborígines, em que os acharam os seus descobridores.
A bandeira do nacionalismo, do chauvinismo, do jingoísmo, desfraldada por certos patriotas – alguns dos quais, por certo, muito ilustrados, muito dignos e muito eloqüentes – é uma bandeira de egoísmo, desconfiança e retrocesso, que não resolve nada e que nada garante.
A América tem nas veias o sangue, a inteligência de seus antepassados, que não são os apaches, os guaranis ou os africanos, mas os ingleses e os iberos, os saxões e os latinos, cuja substância viva, cujas tradições, cujas idéias, cujos cabedais nos geraram, nos criaram, nos educaram, nos enriqueceram, até sermos o que hoje somos. Ao jingoísmo guerreiro se opõem, nos Estados Unidos, duzentos e cinqüenta anos de puritanismo e, no resto da América, um século inteiro de experiência do flagelo militar, sob as variadas formas do caudilhismo e da anarquia. O Direito e a Liberdade fizeram a América do Norte. De Liberdade e Direito são os bons exemplos, com que ela afirma sua superioridade. Em seu direito e em sua liberdade é que a América do Sul pode encontrar modelos. Com essa liberdade e esse direito é que se oferece agora ao paladino exemplar da política americana a missão de atuar na política européia, levando em torno de si as nações latino-americanas, sob a influência de sua atração jurídica e moral, como astros gravitando ao redor de um grande ideal, rumo às regiões da paz e da justiça.
A vocação, pois, que se está delineando para este continente, não é nem a de retrair-se ante a pendência travada, além do oceano, entre a civilização e a militarização do mundo, nem a de absorver-se, também ela, no militarismo, que reduziu a Europa ao dilema de se arruinar sob a paz armada, ou buscar o termo de seus grandes armamentos no desastre de uma guerra por eles imposta. Essa vocação se orienta no sentido de tratar de assumir a iniciativa, e de contribuir de modo influente para a constituição do novo sistema de vida internacional, pela associação ou aproximação das nações, mediante um regímen que substitua a lei da guerra pela da justiça. Não se evita a guerra preparando a guerra. Não se obtém a paz senão preparando a paz. Si vis pacem, para pacem.
OS MANDAMENTOS CRISTÃOS
O dogma do militarismo seqüestra os povos para suplantá- los. Divide et impera. Os mandamentos do cristianismo unem as nações para dirigi-la.
Enzwei und gebiete! Tüchtig Wort.
Verein und leite! Besser Hort.
Quem tem razão não é Maquiavel, é Goethe, a quem Nietzsche repudia.
PROCEDÊNCIA AMERICANA
Se a distância e a diferença de meio nos alongam da Europa, abrigando-nos das paixões e agonias da guerra, seria absurdo que isto servisse para nos contaminar das idéias às quais se deve a guerra, ao invés de assumirmos o papel que as circunstâncias nos reservam, de elemento ativo na criação de um mundo internacional mais bem organizado.
A América, senhores, já tem no rumo deste oriente títulos de precursora.
Antes das conferências de Haia, em 1899 e 1907, antes da declaração de Bruxelas, em 1701, antes da declaração de São Petersburgo, em 1868, antes da convenção de Genebra, em 1864, já o governo dos Estados Unidos da América, em suas Instruções para o serviço dos exércitos em campanha, articulava as leis fundamentais da guerra moderna.
Sujeitar a guerra à disciplina do direito e da humanidade é criar, em última análise, uma situação fatal para a guerra; porque a guerra é, por natureza, inumana, rebelde, indisciplinável. A tendência natural da guerra é sacudir as leis da guerra. Desde que, portanto, se começou a trabalhar para submeter a guerra a leis, começou-se a trabalhar “pela paz do gênero humano”. Era o que o Presidente Roosevelt reconhecia, em 1904, na circular onde esboçava os propósitos da conferência que se realizou cinco anos mais tarde.
SOLIDARIZAÇÃO DAS NAÇÕES
Dessa direção não nos permita Deus que regressemos. A guerra atual vai terminar por uma reorganização que assentará o direito internacional, mais amplamente do que nunca, em princípio de solidariedade entre as nações, senão todas, pelo menos as de um grupo, onde se destacarão as mais cultas, as mais poderosas, e as mais interessadas na liberdade. Tratarmos de ampliar o mais possível esse núcleo, contribuindo para aumentar-lhe, até onde for possível, o número de estados que devam compô-lo, seria obedecer à índole das nossas instituições, ao gênio dos nossos povos, à tradição da nossa história, aos interesses da nossa segurança, aos deveres da nossa honra, desde que o objeto dessa revolução pacífica nas relações internacionais seja dificultar a guerra e organizar a paz, solidarizando as nações, num regímen em que elas se associem para se oporem às violações do direito das gentes.
Grande fortuna, senhores, a que me proporcionastes, de falar esta linguagem de paz e de justiça, numa das mais brilhantes capitais do mundo, sob o teto hospitaleiro de uma congregação de sociólogos e juristas, a um dos mais cultos auditórios deste continente. Creio que reconhecereis comigo que “todos somos interessados” (são palavras de um publicista norte-americano), que “todos somos interessados”, repito, nos problemas da reconstrução subseqüente à guerra, e devemos dedicar toda a influência de que disponhamos (e é imensa) a assegurar que essa reconstrução observará o legítimo rumo.
Parecerá, talvez, excesso de otimismo discorrer sobre estas aspirações de reconstituição do mundo pelas idéias generosas de volta ao direito e reconciliação como a moral cristã, quando a mais febril atividade multiplica as fábricas de armas, o metal rutila nas forjas em lâminas candentes, ou ferve em cataratas de aço na fusão dos canhões, quando todas as indústrias são substituídas pela dos instrumentos de matança, quando o sangue jorra das asas tenebrosas da guerra sobre os continentes, do Báltico e do Mar do Norte ao mediterrâneo e ao Mar Negro, da Grã-Bretanha e da Bélgica à Grécia, à Palestina e ao Egito, das estepes moscovitas às praias africanas, da França à Pérsia, da Península dos Bálcãs aos desertos da Arábia, do fundo dos oceanos ao vértice dos Alpes, do mundo antigo, onde a morte estende o sudário de suas batalhas, ao novo, arrastado a colaborar, com suas fábricas e estaleiros, na faina tremenda.
DO MAL, O REMÉDIO
Mas é justamente do excesso do mal que me parece vir surgindo a esperança de remédio. Assim como há visitas da saúde, que precedem a última agonia, há agonias que se resolvem no regresso à saúde.
A mais terrível das enfermidades morais sofrida nos últimos séculos por nossa espécie foi a militarização do mundo civilizado, a hipertrofia dos armamentos. Dessa doença mortal não era possível sair senão por uma crise quase mortal. Mas, felizmente, a consciência cristã não entrou em coma. Pelo contrário: as energias do bem vão-se reanimando, os sintomas de uma grande reação aumentam a olhos vistos, e do coração da humanidade, traspassado pelas sete espadas da dor, brota a vontade, a confiança, o alvoroço do triunfo, com o sentimento, o consolo, a certeza da regeneração. Os horizontes ainda estão singularmente sombrios.
Formidáveis aglomerações caliginosas ainda ocultam o céu. As centelhas riscam a atmosfera baixa e turva. Um ambiente pesado, eletrizado, comprime e inquieta. Mas já se sentem os primeiros indícios do cansaço na luta dos elementos enfurecidos, e uma corrente de ar forte e puro, como os grandes sopros, destas planícies, começa a descondensar as trevas, limpando as regiões superiores do firmamento. É o instinto da conservação humana que desperta o tino íntimo das coisas que se insinua no ânimo dos povos e lhes restitui o sentido da vida.
Ou pôr freio à guerra, ou renunciar à civilização. É o que quase todos sentem.
AINDA NÃO SE CONHECIA A GUERRA
Antes desta guerra, o mundo contemporâneo ainda não conhecia a guerra. Comparadas com esta, até as campanhas napoleônicas se despojam daquela grandeza épica em que nossa imaginação as contemplava atônita. Seria preciso retroceder até às invasões dos bárbaros, para ver a fúria chamejar em áreas tão vastas, e o gênio da ferocidade rugir com tão horrenda violência. Agora, porém, depois que se viu o alude ensangüentado rolar sobre o velho continente em massas imensuráveis, abismarem-se no vórtice das batalhas, em menos de dois anos, mais de doze milhões de almas, e atirar-se à face dos céus a proclamação ostentosa do culto da força absoluta; depois que se viu até aonde pode chegar o inferno das paixões militares, desbordado e propagador entre os homens, a família humana, indizivelmente penetrada de espanto, sentiu que era sua própria existência que estava em questão, viu que a eliminação dessa maldade organizada já não podia ser unicamente um anelo do pacifismo, convenceu-se de que o mundo não suportaria outro acesso desta loucura inconsiderada e vertiginosa.
OS OLHOS SE VOLTAM PARA A AMÉRICA
Mas desde que esta impressão entrou a saturar os ânimos, um movimento espontâneo e instintivo, entre os próprios combatentes, fez que os olhos de todos se volvessem para este hemisfério distante, onde tremula, ao norte, a bandeira estrelada dos Estados Unidos, ao sul o pendão cerúleo da República Argentina, onde, caminho dos Andes, às portas do Chile, se ergue, colossal, a imagem do Cristo, e, à orla do Atlântico, no estandarte brasileiro se desfraldam as insígnias de ordem e progresso. Outros compuseram suas bandeiras com as cores da terra.
Vós compusestes a vossa com as cores do céu. E os matizes celestes não poderiam desmentir sua origem. As estrelas do céu não podem transigir com os interesses do inferno. O progresso e a ordem não podem servir à desordem e à força. A evocação do Crucificado não pode cobrir a ferocidade e a barbaria.
O mundo antigo, pois não se enganou – deixai-me crer que não se enganou – ao volver seus olhos para o novo mundo, esperando que, do seio destas democracias, a opinião cristã dos povos surja e tome o lugar que lhe cabe na resistência à dominação da terra pela violência, no trabalho para a renovação da vida internacional pelo direito.
ENTRE O PAGANISMO E O CRISTIANISMO
Uma vez mais se joga a sorte do universo entre os falsos numes e o culto verdadeiro, entre os ídolos bárbaros e o símbolo cristão, entre o paganismo dos conquistadores, que dividiu os homens em se- nhores e cativos, e o espiritualismo dos mártires, que irmanou os homens na caridade, entre o Verbo da Força e o Verbo de Deus.
Por ele clama aos céus o sangue vertido no martirológio destes dois anos – por ele, senhores, pelo espírito que se librava, no princípio dos tempos, sobre a desordem caótica dos elementos, e que agora baixará sobre a desordem caótica dos interesses, para extrair desta anarquia um mundo regido pelas leis da consciência, como suscitou daquela um mundo ordenado pelas leis da matéria. Na ordem material, como na ordem moral, só o espírito organiza, só o espírito regenera, só o espírito cria.
APELO AO PODER DO ESPÍRITO
Nas Mensagens à Nação Alemã, que escrevia entre as dolorosas vicissitudes de sua pátria, Fichte apelava do poder da força para o poder do espírito. É da força para o espírito que nós apelamos também; e não poderíamos fazê-lo em expressões mais verdadeiras, nem mais sentidas.
Não luteis, dizia ele, por conquistar com armas corpóreas; porém mantende-vos firmes e eretos na dignidade do espírito diante de vossos antagonistas. Vosso é o destino superior de fundar o império do espírito e da razão, destruindo aos rudes poderes da matéria seu domínio de reitores do mundo… Sim: em todas as nações há inteligências nas quais não penetrará jamais a crença de que as grandes promessas feitas à espécie humana, de um reino do Direito, da Razão e da Verdade, sejam vãs ilusões. Essas inteligências nutrem a convicção de que este regímen de ferro é apenas uma transição para um estado mais bem constituído. Em vós confiam esses, e com eles, as raças mais novas da humanidade. Soçobrando vós, convosco soçobraria, na humanidade, a esperança de uma regeneração futura.
Estas palavras, reiteradas agora, cento e oito anos depois, não devem senão variar de direção. Tinha razão o filósofo. O patriota não na tinha. As raças mais novas confiam em si mesmas. É em si mesma que a humanidade espera. A ela é que nos dirigimos. E, quando vier o reino do espírito, virá pelo enlace da liberdade européia com liberdade americana, numa comunhão hostil à guerra e armada contra ela de garantias inquebrantáveis.
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