Nelson Rodrigues
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Ao contrário do que possam pensar, não me espantam, nem me irritam, certas reações pueris do dr. Alceu. São pueris, e daí? Nós, os velhos, precisamos de um mínimo de puerilidade encantada, sem a qual seríamos múmias inteiramente gagás. Digo mesmo que esse pouco de infância ou, melhor dizendo, de juventude é um íntimo, um esplêndido tesouro.
Na semana passada, dizia-me um admirador do mestre: — “É um menino, Alceu é um menino”. Concordei, mas fazendo a ressalva: — “Está certo. Mas é preciso não exagerar”. Eis o que eu queria dizer: — o dr. Alceu exagera além de todos os limites de nossa paciência. Nunca me esqueço de um dos seus artigos: — “A revolta juvenil”. Não há dúvida de que, em tal página, o menino devora o adulto.
Há pouco tempo, Tristão de Athayde surpreendia o país com uma proposta extraordinária. Simplesmente, ele queria liberdade para os entorpecentes. Há jovens, de ambos os sexos, inclusive meninas de doze anos, que se autodestroem. Conheço uma menina, dos seus quinze anos, filha de um amigo meu. A garota se viciou a partir da maconha (é universalmente sabido que a maconha abre uma janela para o infinito. A maconha é o começo de um processo, muitas vezes irreversível. E a filhinha do meu amigo entrou justamente nesse processo irreversível).
Se o dr. Alceu tivesse seus dez, doze anos, diríamos: — “Não sabe o que diz”. Mas como não tem os doze anos, que o salvariam, devemos concluir que sabe, sim, sabe o que diz. O problema do dr. Alceu é o da repressão. É contra qualquer repressão. “E os traficantes?”, perguntará o leitor, no seu desolado escândalo. Transfiro a pergunta ao mestre: — “E os traficantes?”. No seu artigo que li, reli, não há uma palavra contra os traficantes. Vejam bem: — se bem o entendi, o nosso Tristão não admite repressão nem contra os traficantes.
A partir desse artigo, o dr. Alceu perde a capacidade de espantar a sua platéia. Mas diz a minha vizinha gorda e patusca: — “A gente vive aprendendo”. E o que é que nos ensinou mais o mestre de várias gerações? Seu artigo tem passagens realmente extraordinárias. Por exemplo, esta aqui: — “Entre nós, como na União Soviética”.
Vocês entenderam essa? O que faz o nosso governo aqui, faz o governo soviético lá. E o pior é que não sabíamos e jamais nos constara que estivéssemos também sob o regime comunista. E o nosso bom Alceu, de posse do segredo, só agora, e tardiamente, faz a revelação. Não há a menor diferença entre o Brasil e a Rússia soviética.
De acordo. Se Alceu o diz, Alceu o sabe. Mas não resisto à tentação de perguntar-lhe: — “De que hospício você nos escreve, ó Alceu?”. Não sei se vocês me entendem. Mas é assim que a Rússia trata os intelectuais como o Alceu. O sujeito é enfiado num hospício, amarrado num pé de mesa e dão-lhe água numa cuia de queijo Palmira. Se em vez de ser brasileiro, fosse russo, o dr. Alceu, submetido a um tratamento de choques, estaria louco varrido, rasgando dinheiro na esquina mais à mão.
Mas o trecho citado justifica uma dúvida: — terá um escritor, do peso, da responsabilidade e da idade do dr. Alceu, o direito de achar (ou fingir que acha) que o Brasil e a Rússia são a mesma coisa? Matamos aqui 12 milhões de camponeses de fome punitiva? Houve algo parecido, em nossa história, com o Grande Terror? Assassinamos milhões em nossos expurgos hediondos? Temos, em nossa história, uma ignomínia parecida com o pacto germano-soviético? Mas repito a pergunta: — terá um escritor o direito de passar adiante a mais sinistra inverdade, desde Pero Vaz Caminha? Mas o grave é que o dr. Alceu sabe que não é assim. E por que, então, nega a evidência objetiva e até espetacular?
Nem se pense que é esta a única passagem interessante do artigo. Ele começa citando o que escreveu um grande publicista norte-americano. Diz o publicista: — “A mais velha civilização me parece ser também a mais jovem”. Como se vê, trata-se da China. Mas o dr. Alceu cita um americano e eu, para refutar James Reston, cito o próprio dr. Alceu. Pois foi o mesmíssimo Alceu que escreveu um violentíssimo artigo contra a mais jovem civilização do mundo. Tratando do caso de freiras, que rapazes da Guarda Vermelha acharam por bem estuprar, clamava o mestre: — “É de fremir”. Não só fremiu, como ainda lhe acrescentou um ponto de exclamação e reticências. Em que palavra devemos confiar? Na do grande publicista norte-americano ou na do notável publicista brasileiro? Parece que, de então para cá, o mestre deixou de fremir e chama de jovem (e por que jovem?) uma ditadura sanguinária. Afirma Tristão de Athayde que, depois de matar quase 70 milhões de chineses, Mao Tse-tung está fazendo, com sua Revolução Cultural, algo de incomparável no mundo moderno.
O surpreendente é que só agora o dr. Alceu vem à boca de cena e, limpando um imaginário pigarro, anuncia: — “Sou admirador da Revolução Cultural”. Mas vejamos. Será lícito falar em Revolução Cultural num país que ignora a descida do homem na Lua? Dirão vocês: — “Isso é apenas uma notícia”. Mas pode-se falar em Revolução Cultural num país onde o povo não tem acesso à notícia, à simples notícia? Há tempos, falei no pronunciamento de um congresso de oculistas em Pequim. Entre outras descobertas menores, os congressistas chegaram à conclusão definitiva de que os textos de Mao Tse-tung curam a cegueira.
Ninguém me contou, eu próprio li. Aí está a maior conseqüência da Revolução Cultural chinesa: — os textos de Mao aplicados, sob a forma de compressa, curam qualquer cegueira. E sabem quem é o autor, ou autora, de um fanatismo de tamanha obtusidade? A Revolução Cultural.
Mas, de passagem, o mestre escreve sobre a reação do jovem americano contra a decrepitude da civilização norte-americana. Antes de continuar, o que é que o dr. Alceu chama de jovem revolução nos Estados Unidos? Foi a bacanal de Woodstock. Trezentos mil jovens, de ambos os sexos, que, ao mesmo tempo que se drogavam, praticavam as mais tenebrosas formas de perversão sexual. Ou a jovem revolução está na depredação gratuita, na depredação idiota de algumas das maiores universidades do mundo? Ou estará no gesto da atriz nua que usa a bandeira americana como papel higiênico?
Mas pergunto: — que fez essa juventude? Eu já me daria por satisfeito se, um dia, tivesse inventado um comprimido, um Melhoral. Antes um comprimido do que nada. Aí está a palavra: — a juventude não faz nada e repito: — exatamente nada. Quando nasceu, as gerações passadas deram-lhe, de mão beijada, na bandeja, a maior nação do mundo, a mais moderna, a mais rica, a mais culta. E, então, por não ter feito nada, põe-se a contestar, a injuriar tudo o que já estava feito. Os mais velhos podiam replicar-lhe: — “Mas faça alguma coisa. Não precisa muito. Alguma coisa”.
E, súbito, o mestre, possuído por uma dessas certezas inapeláveis e fatais, fala da importância crescente do fenômeno idade, no conjunto dos fatores sociais modernos. Idades, sabemos que há várias. Estará Tristão falando ainda do jovem? Se é do jovem, pediria ao mestre que apresentasse um líder de dezessete, dezoito, dezenove anos. O grande líder juvenil, que conhecemos, é exatamente Mao Tse-tung, com seus 84 anos de idade. Em dado momento, para o nosso divertido horror, o dr. Alceu fala nos acontecimentos de 1968 na França.
O mestre admite que a agitação estudantil não teve grandes conseqüências visíveis. Aqui acrescento: — nem invisíveis. Ou por outra: — houve, sim, as conseqüências visíveis. Refiro-me aos automóveis virados, aos paralelepípedos arrancados e à Bolsa incendiada. Fora disso, a jovem revolução não deixou nem mesmo uma frase, uma única e escassa frase. O mestre insiste na Razão da Idade. A razão deixa de ser o que sempre foi, isto é, uma lenta, progressiva, dilacerada conquista espiritual. Pelo fato de ter nascido em 1963, e só por isso, o sujeito passa a ter razão. Olho, ainda uma vez, o artigo do mestre. Gostaria de vê-lo escrever sobre a jovem irracionalidade que sopra em todos os países e em todos os idiomas.
[21/11/1973]
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