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Capítulo I
Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco
da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma
apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que
passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se
histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica – que o
detestava – costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a
face afogueada de sangue, muito enfartado:
– Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe – à hora em que defronte,
na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém
o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado.
Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca,
cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.
Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo
vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia
certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso,
logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para
o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia!
E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos
de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando:
– Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo
na bola!
As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
– Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!
Era miguelista3 – e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus
jornais enchiam-no duma cólera irracionável:
– Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.
Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia
isolado – com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu único
amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque
o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta
do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem
seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio –
que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.
O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules.
– Hércules pela força – explicava sorrindo, Frei pela gula.
No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe
todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cônegos,
baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro
torrão de terra:
– É a última pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado;
o cônego Campos contou-o à noite ao chá em casa do deputado
Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do
chantre, e afirmou-se com respeito – que sua excelência tinha muita
pilhéria!
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão
do pároco, o Joli. A criada entrara com sezões no hospital;
a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais.
Era um gozo pequeno, extremamente gordo, – que tinha vagas semelhanças
com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono,
apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria
o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão,
repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã
apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume
levou-o e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça,
o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco.
Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário.
O seu nome era Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências
políticas, e o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição,
falou com amargura, citando o Gólgota, no favoritismo da corte e na
reação clerical. Alguns padres tinham-se escandalizado com o
artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.
– Não, não, lá que há favor, há; e que
o homem tem padrinhos, tem – disse o chantre. – A mim quem me escreveu para
a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então
ministro da Justiça).
3 Miguelista: Partidário de D. Miguel (1802-1866), representante da
política absolutista, contrária ao liberalismo. (N.E.)
Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão.
De sorte que – acrescentou sorrindo com satisfação – depois
de Frei Hércules vamos talvez ter Frei Apolo.
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era
o cônego Dias, que fora nos primeiros anos do seminário seu mestre
de Moral. No seu tempo, dizia o cônego, o pároco era um rapaz
franzino, acanhado, cheio de espinhas carnais…
– Parece que o estou a ver com a batina muito coçada e cara de quem
tem lombrigas!… De resto bom rapaz! E espertote…
O cônego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordara,
o ventre saliente enchia-lhe a batina e a sua cabecinha grisalha, as olheiras
papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anedotas de frades lascivos
e glutões.
O tio Patrício, o Antigo, negociante da Praça, muito liberal
e que quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila,
dizia às vezes ao vê-lo atravessar a Praça, pesado, ruminando
a digestão, encostado ao guarda-chuva:
– Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
O cônego vivia só com uma irmã velha, a Sra. D. Josefa
Dias, e uma criada, que todos conheciam também em Leiria, sempre na
rua, entrouxada num xale tingido de negro, e arrastando pesadamente as suas
chinelas de ourelo. O cônego Dias passava por ser rico; trazia ao pé
de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com peru, e tinha reputação
o seu vinho duque de 1815. Mas o fato saliente da sua vida – o fato comentado
e murmurado – era a sua antiga amizade com a Sra. Augusta Caminha, a quem
chamavam a S. Joaneira, por ser natural de S. João da Foz. A S. Joaneira
morava na Rua da Misericórdia, e recebia hóspedes. Tinha uma
filha, a Ameliazinha, rapariga de vinte e três anos, bonita, forte,
muito desejada.
O cônego Dias mostrara um grande contentamento com a nomeação
de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé,
exaltou os seus bons estudos no seminário, a sua prudência de
costumes, a sua obediência: gabava-lhe mesmo a voz: “um timbre
que é um regalo.'”
– Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa, está
a calhar!
Predizia-lhe com ênfase um destino feliz, uma conezia decerto, talvez
a glória de um bispado!
E um dia, enfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé,
criatura servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
Era uma tarde de Agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava
então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço
de pau sobre a ribeira do Lis tinha sido destruído, já se passava
sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra,
fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões
de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguesia
de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e incorporar; camadas de cascalho
cobriam o chão; e os grossos cilindros de pedra, que acalcam e recamam
os macadames, enterravam-se na terra negra e úmida das chuvas.
Em roda da Ponte a paisagem é larga e tranqüila. Para o lado
de onde o rio vem são colinas baixas, de formas arredondadas, cobertas
da rama verde-negra dos pinheiros novos; embaixo, na espessura dos arvoredos,
estão os casais4 que dão àqueles lugares melancólicos
uma feição mais viva e humana – com as suas alegres paredes
caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam
nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta
nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pálidos, estende-se
até os primeiros areais o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto
de águas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade;
apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuíticas da Sé,
um canto do muro do cemitério coberto de parietárias, e pontas
agudas e negras dos ciprestes; o resto está escondido pelo duro monte
ouriçado de vegetações rebeldes, onde destacam as ruínas
do Castelo, todas envolvidas à tarde nos largos vôos circulares
dos mochos, desmanteladas e com um grande ar histórico.
Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco
à beira do rio. É um lugar recolhido, coberto de árvores
antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Ali, caminhando devagar, falando baixo,
o cônego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre
”uma idéia que ela lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!”
Amaro pedia-lhe com urgência que lhe arranjasse uma casa de aluguel,
barata, bem situada, e se fosse possível mobilada; falava sobretudo
de quartos numa casa de hóspedes respeitável. “Bem vê
o meu caro padre-mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me
convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta
seria o bastante. O que é necessário é que a casa seja
respeitável, sossegada, central, que a patroa tenha bom gênio
e que não peça mundos e fundos; deixo tudo isto à sua
prudência e capacidade, e creia que todos estes favores não cairão
em terreno ingrato. Sobretudo que a patroa seja pessoa acomodada e de boa
língua.”
– Ora a minha idéia, amigo Mendes, é esta: metê-lo em
casa da S. Joaneira! resumiu o cônego com um grande contentamento. É
rica idéia, hem!
4 Casais. Pequenas propriedades; sítios. (N.E.)
– Soberba idéia, disse o coadjutor com a sua voz servil.
– Ela tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que pode servir
de escritório. Tem boa mobília, boas roupas…
– Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.
O cônego continuou:
– É um belo negócio para a S. Joaneira: dando os quartos, roupas,
comida, criada, pode muito bem pedir os seus seis tostões por dia.
E depois sempre tem o pároco de casa.
– Por causa da Ameliazinha é que eu não sei – considerou timidamente
o coadjutor. – Sim, pode ser reparado. Uma rapariga nova… Diz que o senhor
pároco é ainda novo… Vossa senhoria sabe o que são
línguas do mundo.
O cônego tinha parado:
– Ora histórias! Então o padre Joaquim não vive debaixo
das mesmas telhas com a afilhada da mãe? E o cônego Pedroso não
vive com a cunhada, e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga
de dezenove anos? Ora essa!
– Eu dizia… atenuou o coadjutor.
– Não, não vejo mal nenhum. A S. Joaneira aluga os seus quartos,
é como se fosse uma hospedaria. Então o secretário-geral
não esteve lá uns poucos de meses?
– Mas um eclesiástico… insinuou o coadjutor.
– Mais garantias, Sr. Mendes, mais garantias! exclamou o cônego. E
parando, com uma atitude confidencial: – E depois a mim é que me convinha,
Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!
Houve um pequeno silêncio. O coadjutor disse, baixando a voz:
– Sim, vossa senhoria faz muito bem à S. Joaneira…
– Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse
o cônego. E com uma entonação terna, risonhamente paternal:
– que ela é merecedora! é merecedora. Boa até ali, meu
amigo! – Parou, esgazeando os olhos: – Olhe que dia em que eu não lhe
apareça pela manhã às nove em ponto, está num
frenesi! Oh criatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se sem razão. Mas
então, é aquilo! Pois quando eu tive a cólica o ano passado!
Emagreceu, Sr. Mendes! E depois não há lembrança que
não tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal
é para o padre santo, você sabe? é como ela me chama.
Falava com os olhos luzidos, uma satisfação babosa.
– Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher!
– E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
– Lá isso! exclamou o cônego parando outra vez. Lá isso!
Bem conservada até ali! Pois olhe que não é uma criança!
Mas nem um cabelo branco, nem um, nem um só! E então que cor
de pele! – E mais baixo, com um sorriso guloso: – E isto aqui! ó Mendes,
e isto aqui! – Indicava o lado do pescoço debaixo do queixo, passando-lhe
devagar por cima a sua mão papuda: – É uma perfeição!
E depois mulher de asseio, muitíssimo asseio! E que lembrançazinhas!
Não há dia que me não mande o seu presente! é
o covilhete de geléia, é o pratinho de arroz-doce, é
a bela morcela de Arouca! Ontem me mandou ela uma torta de maçã.
Ora havia de você ver aquilo! A maçã parecia um creme!
Até a mana Josefa disse: “Está tão boa que parece
que foi cozida em água benta!” – E pondo a mão espalmada
sobre o peito: – São coisas que tocam a gente cá por dentro,
Mendes! Não, não é lá por dizer, mas não
há outra.
O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
– Eu bem sei, disse o cônego parando de novo e tirando lentamente as
palavras, eu bem sei que por ai rosnam, rosnam… Pois é uma grandíssima
calúnia! O que é, é que eu tenho muito apego àquela
gente. Já o tinha em tempo do marido. Você bem o sabe, Mendes.
O coadjutor teve um gesto afirmativo.
– A S. Joaneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa
de bem, Mendes! exclamava o cônego batendo no chão fortemente
com a ponteira do guarda. sol.
– As línguas do mundo são venenosas, senhor cônego, disse
o coadjutor com uma voz chorosa. E depois dum silêncio, acrescentou
baixo: – Mas aquilo a vossa senhoria deve-lhe sair caro!
– Pois aí está, meu amigo! Imagine você que desde que
o secretário-geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa
vazia: eu é que tenho dado para a panela, Mendes!
– Que ela tem uma fazendita, considerou o coadjutor.
– Uma nesga5 de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as décimas,
os jornais! Por isso digo eu, o pároco é uma mina. Com os seis
tostões que ele der, com que eu ajudar, com alguma coisa que ela tire
da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim
é um alívio, Mendes.
– É um alívio, senhor cônego! repetiu o coadjutor.
Ficaram calados. A tarde descaía muito límpida; o alto céu
tinha uma pálida cor azul; o ar estava imóvel. Naquele tempo
o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em seco; e a água
baixa arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos
seixos.
Duas vacas, guardadas por uma rapariga, apareceram então pelo caminho
lodoso que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto de um silvado;
entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pelado da canga, bebiam
de leve, sem ruído; a espaços erguiam a cabeça bondosa,
olhavam em redor com a passiva tranqüilidade dos seres fartos – e fios
de água, babados, luzidios à luz, pendiam-lhes dos cantos do
focinho. Com a inclinação do sol a água perdia a sua
claridade espelhada, estendiam-se as sombras dos arcos da Ponte. Do lado das
colinas ia subindo um crepúsculo esfumado, e as nuvens cor de sangüínea
e cor de laranja que anunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma decoração
muito rica.
– Bonita tarde! disse o coadjutor.
O cônego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
– Vamo-nos chegando às Ave-Marias, hem?
Quando, daí a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o cônego
parou, e voltando-se para o coadjutor:
– Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joaneira!
É uma pechincha para todos.
– Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande pechincha!
E entraram na igreja, persignando-se.
Capítulo II
Uma semana depois, soube-se que o novo pároco devia chegar pela diligência
de Chão de Maçãs, que traz o correio à tarde;
e desde as seis horas o cônego Dias e o coadjutor passeavam no Largo
do Chafariz, à espera de Amaro.
Era então nos fins de Agosto. Na longa alameda macadamizada que vai
junto do rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos
claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres,
velhas fiavam à porta; crianças sujas brincavam pelo chão,
mostrando seus enormes ventres nus; e galinhas em redor iam picando vorazmente
as imundícies esquecidas. Em redor do chafariz cheio de ruído,
onde os cântaros arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com
a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam, meneando a chibata
de junco; com o seu cântaro bojudo de barro equilibrado à cabeça
sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os quadris; e dois oficiais
ociosos, com a farda desapertada sobre o estômago, conversavam, esperando,
a ver quem viria. A diligência tardava. Quando o crepúsculo desceu,
uma lamparina luziu no nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se
iluminando uma a uma, com uma luz soturna, as janelas do hospital.
Já tinha anoitecido quando a diligência, com as lanternas acesas,
entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e veio
parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz; o caixeiro
do tio Patrício partiu logo a correr para a Praça com o maço
dos Diários Populares; o tio Baptista, o patrão, com o cachimbo
negro ao canto da boca, desatrelava, praguejando tranqüilamente; e um
homem que vinha na almofada, ao pé do cocheiro, de chapéu alto
e comprido capote eclesiástico, desceu cautelosamente, agarrando-se
às guardas de ferro dos assentos, bateu com os pés no chão
para os desentorpecer, e olhou em redor.
– Oh, Amaro! gritou o cônego, que se tinha aproximado, oh ladrão!
– Oh, padre-mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, enquanto
o coadjutor, todo curvado, tinha o barrete na mão.
Daí a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça,
entre a corpulência vagarosa do cônego Dias e a figura esguia
do coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote de padre. Soube- se
que era o pároco novo; e disse-se logo na botica que era uma boa figura
de homem. O João Bicha levava adiante um baú e um saco de chita;
e como aquela hora já estava bêbedo, ia resmungando o Bendito.
5 Nesga. Pequena porção de terra. (N.E.)
Eram quase nove horas, a noite cerrara. Em redor da Praça as casas
estavam já adormecidas: das lojas debaixo da arcada saía a luz
triste dos candeeiros de petróleo, entreviam-se dentro figuras sonolentas,
caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar à
Praça, tortuosas, tenebrosas, com um lampião mortiço,
pareciam desabitadas. E no silêncio o sino da Sé dava vagarosamente
o toque das almas.
O cônego Dias ia explicando pachorrentamente ao pároco “o
que lhe arranjara”. Não lhe tinha procurado casa: seria necessário
comprar mobília, buscar criada, despesas inumeráveis! Parecera-lhe
melhor tomar- lhe quartos numa casa de hóspedes respeitável,
de muito conchego – e nessas condições (e ali estava o amigo
coadjutor que o podia dizer), não havia como a da S. Joaneira. Era
bem arejada, muito asseio, a cozinha não deitava cheiro; tinha lá
estado o secretário-geral e o inspetor dos estudos; e a S. Joaneira
(o Mendes amigo conhecia-a bem) era uma mulher temente a Deus, de boas contas,
muito econômica e cheia de condescendências…
– Você está ali como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de
meio, café…
– Vamos a saber, padre-mestre: preço? disse o pároco.
– Seis tostões. Que diabo! é de graça! Tem um quarto,
tem uma saleta…
– Uma rica saleta, comentou o coadjutor respeitosamente.
– E é longe da Sé? perguntou Amaro.
– Dois passos. Pode-se ir dizer missa de chinelos. Na casa há uma
rapariga, continuou com a sua voz pausada o cônego Dias. E a filha da
S. Joaneira. Rapariga de vinte e dois anos. Bonita. Sua pontinha de gênio,
mas bom fundo… Aqui tem você a sua rua.
Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha
Misericórdia, com um lampião lúgubre ao fundo.
– E aqui tem você o seu palácio! disse o cônego, batendo
na aldraba de uma porta esguia.
No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam saliência,
com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas
de madeira; as janelas de cima, pequeninas, eram de peitoril; e a parede,
pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.
A S. Joaneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta,
alumiava com um candeeiro de petróleo; e a figura da S. Joaneira destacava
plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda, alta, muito branca, de
aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pele
engelhada; os cabelos arrepiados, com um enfeite escarlate, eram já
raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se uns
braços rechonchudos, um colo copioso e roupas asseadas.
– Aqui tem a senhora o seu hóspede, disse o cônego subindo.
– Muita honra em receber o senhor pároco! muita honra! Há-de
vir muito cansado! por força! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com
o degrauzinho.
Levou-o para uma sala pequena, pintada de amarelo, com um vasto canapé
de palhinha encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada
de baeta verde.
– É a sua sala, senhor pároco, disse a S. Joaneira. Para receber,
para espairecer… Aqui – acrescentou abrindo uma porta – é o seu quarto
de dormir. Tem a sua cômoda, o seu guarda-roupa… – Abriu os gavetões,
gabou a cama batendo a elasticidade dos colchões. – Uma campainha para
chamar sempre que queira… As chavinhas da cômoda estão aqui…
Se gosta de travesseirinho mais alto… Tem um cobertor só, mas querendo…
– Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, – disse o pároco
com a sua voz baixa e suave.
– É pedir! O que há, da melhor vontade…
– Oh criatura de Deus! interrompeu o cônego jovialmente, o que ele
quer agora é cear!
– Também tem a ceiazinha pronta. Desde as seis que está o caldo
a apurar…
E saiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
– Vá, Ruça, mexe-te, mexe-te!…
O cônego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:
– É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.
– Eu estou bem em toda parte, padre-mestre, disse o pároco, caçando
os seus chinelos de ourelo. Olha o seminário!… E em Feirão!
Caía- me a chuva na cama.
Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cometas.
– Que é aquilo? perguntou Amaro, indo à janela.
– As nove e meia, o toque de recolher.
Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candeeiro esmorecia. A noite
estava muito negra. E havia sobre a cidade um silêncio côncavo,
de abóbada.
Depois das cometas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do
quartel; por baixo da janela um soldado, que se demorara nalguma viela do
Castelo, passou correndo; e das paredes da Misericórdia saía
constantemente o agudo piar das corujas.
– É triste isto, disse Amaro.
Mas a S. Joaneira gritou de cima:
– Pode subir, senhor cônego! Está o caldo na mesa!
– Ora vá, vá, que você deve estar a cair de fome, Amaro!
– disse o cônego, erguendo-se muito pesado.
E detendo um momento o pároco, pela manga do casaco:
– Vai você ver o que é um caldo de galinha feito cá pela
senhora! Da gente se babar!…
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava,
com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo à
luz forte dum candeeiro de abajur verde. Da terrina subia o vapor cheiroso
do caldo e, na larga travessa a galinha gorda, afogada num arroz úmido
e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma aparência suculenta
de prato morgado. No armário envidraçado, um pouco na sombra,
viam-se cores claras de porcelana; a um canto, ao pé da janela, estava
o piano, coberto com uma colcha de cetim desbotado. Na cozinha frigia-se;
e sentindo o cheiro fresco que vinha dum tabuleiro de roupa lavada, o pároco
esfregou as mãos, regalado.
– Para aqui, senhor pároco, para aqui, disse a S. Joaneira. Dai pode
vir-lhe frio. – Foi fechar as portadas das janelas; chegou-lhe um caixão
de areia para as pontas dos cigarros. – E o senhor cônego toma um copinho
de geléia, sim?
– Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o cônego,
sentando- se e desdobrando o guardanapo.
A S. Joaneira, no entanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o pároco,
que, com a cabeça sobre o prato, comia em silêncio o seu caldo,
soprando a colher. Parecia bem-feito; tinha um cabelo muito preto, levemente
anelado. O rosto era oval, de pele trigueira e fina, os olhos negros e grandes,
com pestanas compridas.
O cônego, que não o via desde o seminário, achava-o mais
forte, mais viril.
– Você era enfezadito…
– Foi o ar da serra, dizia o pároco, fez-me bem! – Contou então
a sua triste existência em Feirão, na alta Beira, durante a aspereza
do Inverno, só com pastores. O cônego deitava-lhe o vinho de
alto, fazendo-o espumar.
– Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! Desta gota não
pilhava você no seminário.
Falaram do seminário.
– Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o cônego.
– E do Carocho, que roubava as batatas?
Riram; e bebendo, na alegria das reminiscências, recordavam as histórias
de então, o catarro do reitor, e o mestre do cantochão que deixara
um dia cair do bolso as poesias obscenas de Bocage6.
– Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.
A S. Joaneira então pôs na mesa um prato covo com maçãs
assadas.
– Viva! Não, lá nisso também eu entro! exclamou logo
o cônego. A bela maçã assada! nunca me escapa! Grande
dona de casa, meu amigo, rica dona de casa, cá a nossa S. Joaneira!
Grande dona de casa!
Ela ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados. Foi
buscar uma garrafa de vinho do Porto; pôs no prato do cônego,
com requintes devotos, uma maçã desfeita, polvilhada de açúcar;
e batendo-lhe nas costas com a mão papuda e mole:
– Isto é um santo, senhor pároco, isto é um santo! Ai!
devo-lhe muitos favores!
– Deixe falar, deixe falar, dizia o cônego. – Espalhava-se-lhe no rosto
um contentamento baboso. – Boa gota! acrescentou, saboreando o seu cálice
de Porto. Boa gota!
– Olhe que ainda é dos anos da Amélia, senhor cônego.
6 Observe a crítica ao clero desenvolvida pelo narrador desde o inicio
da narrativa Os religiosos agem apenas por interesses grosseiramente materiais:
dinheiro, alimento e sexo Há uma contradição entre o
que realmente são e o que aparentam ser, como ocorre com o mestre de
cantochão (canto religioso monótono), que se divertia lendo
poemas obscenos do poeta pré-romântico português Manuel
Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) (N.E.)
– E onde está ela, a pequena?
– Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquilo naturalmente foram para casa das
Gansosos passar a noite.
– Cá esta senhora é proprietária, explicou o cônego,
falando do Morenal. É um condado! – Ria com bonomia, e os seus olhos
luzidios percorriam ternamente a corpulência da S. Joaneira.
– Ah, senhor pároco, deixe falar, é uma nesga de terra… disse
ela.
Mas vendo a criada encostada à parede, sacudida com aflições
de tosse:
– Ó mulher, vai tossir lá para dentro! credo!
A moça saiu, pondo o avental sobre a boca.
– Parece doente, coitada, observou o pároco.
Muito achacada, muito!… A pobre de Cristo era sua afilhada, órfã,
e estava quase tísica. Tinha-a tomado por piedade…
– E também porque a criada que cá tinha foi para o hospital,
a desavergonhada… Meteu-se aí com um soldado!…
O padre Amaro baixou devagar os olhos – e trincando migalhas, perguntou se
havia muitas doenças naquele Verão.
– Colerinas, das frutas verdes, rosnou o cônego. Metem-se pelas melancias,
depois tarraçadas de água… E suas febritas…
Falaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.
– Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso
Senhor Jesus Cristo, tenho saúde, tenho!
– Ai, Nosso Senhor lha conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou
a S. Joaneira. – Contou imediatamente a grande desgraça que tinha em
casa, uma irmã meio idiota entrevada havia dez anos! Ia fazer sessenta
anos… No Inverno viera-lhe um catarro, e desde então, coitadinha,
definhava, definhava…
– Há bocado, ao fim da tarde, teve ela um ataque de tosse! Pensei
que se ia embora. Agora descansou mais…
Continuou a falar “daquela tristeza”, depois da sua Ameliazinha,
das Gansosos, do antigo chantre, da carestia de tudo – sentada, com o gato
no colo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão.
O cônego, pesado, cerrava as pálpebras; tudo na sala parecia
ir gradualmente adormecendo; a luz do candeeiro esmorecia.
– Pois senhores, disse por fim o cônego mexendo-se, isto são
horas!
O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as graças.
– O senhor pároco quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S. Joaneira.
– Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!
E desceu devagar, palitando os dentes.
A S. Joaneira alumiava no patamar, com o candeeiro. Mas nos primeiros degraus
o pároco parou, e voltando-se, afetuosamente:
– É verdade, minha senhora, amanhã é sexta-feira, é
jejum…
– Não, não, acudiu o cônego que se embrulhava na capa
de lustrina, bocejando, você amanhã janta comigo. Eu venho por
cá, vamos ao chantre, á Sé, e por aí… E olhe
que tenho lulas. É um milagre, que isto aqui nunca há peixe.
A S. Joaneira tranqüilizou logo o pároco.
– Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor pároco. Tenho o
maior escrúpulo!
– Eu dizia, explicou o pároco, porque infelizmente hoje em dia ninguém
cumpre.
– Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ela. – Mas eu! credo!…
A salvação da minha alma antes de tudo!
A campainha embaixo, então, retiniu fortemente.
– Há-de ser a pequena, disse a S. Joaneira. Abre, Ruça!
A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
– És tu, Amélia?
Uma voz disse adeusinho! adeusinho! E apareceu, subindo quase a correr, com
os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bela rapariga, forte, alta, bem-feita,
com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim.
– Sobe, filha. Aqui está o senhor pároco. Chegou agora à
noitinha, sobe!
Amélia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus
de cima, onde o pároco ficara, encostado ao corrimão. Respirava
fortemente de ter corrido; vinha corada; os seus olhos vivos e negros luziam;
e saía dela uma sensação de frescura e de prados atravessados.
O pároco desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar,
murmurando boas-noites! com a cabeça baixa. O cônego, que descia
atrás, pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amélia:
– Então isto são horas, sua brejeira?
Ela teve um risinho, encolheu-se.
– Ora vá-se encomendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto
devagarinho com a sua mão grossa e cabeluda.
Ela subiu a correr, enquanto o cônego, depois de ir buscar o guarda-
sol à saleta, saía, dizendo à criada, que erguia o candeeiro
sobre a escada:
– Está bem, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então
às oito, Amaro! Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus! Reza à
Senhora da Piedade que te seque essa catarreira.
O pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva,
tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura
antiga dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu Breviário, ajoelhou
aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes
bocejos; e então por cima, sobre o teto, através das orações
rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique
das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela
sacudia ao despir-se.
Capítulo III
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros7. Seu
pai era criado do marquês; a mãe era criada de quarto; quase
uma amiga da senhora marquesa. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das
Selvas, com bárbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira
página branca: À minha muito estimada criada Joana Vieira e
verdadeira amiga que sempre tem sido, – Marquesa de Alegros. Possuía
também um dagtterreótipo8 de sua mãe: era uma mulher
forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma
cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãe, que
fora sempre tão sã, sucumbiu, daí a um ano, a uma tísica
de laringe. Amaro completara então seis anos. Tinha uma irmã
mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio,
merceeiro abastado do bairro da Estrela. Mas a senhora marquesa ganhara amizade
a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adoção tácita:
e começou, com grandes escrúpulos, a vigiar a sua educação.
A marquesa de Alegros ficara viúva aos quarenta e três anos,
e passava a maior parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma
pessoa passiva, de bondade indolente, com capela em casa, um respeito devoto
pelos padres de S. Luís, sempre preocupada dos interesses da Igreja.
As suas duas filhas, educadas no receio do céu e nas preocupações
da Moda, eram beatas e faziam o chique falando com igual fervor da humildade
cristã e do último figurino de Bruxelas. Um jornalista de então
dissera delas: – Pensam todos os dias na toalete com que hão-de entrar
no Paraíso.
No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocráticas
onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião,
a Caridade eram então ocupações avidamente aproveitadas:
cosiam vestidos para os pobres da freguesia, bordavam frontais para os altares
da igreja. De Maio a Outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho
de salvar a sua alma; liam os livros beatos e doces; como não tinham
S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude
dos santos. Deus era o seu luxo de Verão.
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesiástica.
A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era já
afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado
ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas.
A senhora marquesa não o quis mandar ao colégio porque receava
a impiedade dos tempos, e as camaradagens imorais. O capelão da casa
ensinava- lhe o latim, e a filha mais velha, a Sra. D. Luísa, que tinha
um nariz de cavalete e lia Chateaubriand9, dava-lhe lições de
francês e de geografia.
7 Todo o capitulo III constitui um flash back, isto è, um retrocesso
da história narrada. Com ele, o narrador pretende fundamentar o caráter
de padre Amaro, de acordo com os princípios da estética realista-naturalista.
(N.E.)
8 Daguerreótipo: Fotografia obtida através do aparelho inventado
por Louis J M Daguerre (1787-1851). (N.E )
Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha-morta. Nunca brincava, nunca
pulava ao sol. Se à tarde acompanhava a senhora marquesa às
alamedas da quinta, quando ela descia pelo braço do padre Liset ou
do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, mono, muito encolhido, torcendo
com as mãos úmidas o forro das algibeiras, – vagamente assustado
das espessuras de arvoredos e do vigor das relvas altas.
Tomou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé de uma ama velha.
As criadas de resto feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio
delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele rolava por entre as
saias, em contato com os corpos, com gritinhos de contentamento. Às
vezes, quando a senhora marquesa saía, vestiam-no de mulher, entre
grandes risadas; ele abandonava-se, meio nu, com os seus modos lânguidos,
os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além
disso, utilizavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que
fazia as queixas. Tomou-se enredador, muito mentiroso.
Aos onze anos ajudava à missa, e aos sábados limpava a capela.
Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, colocava os santos em plena luz
em cima duma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações
gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santíssimo,
ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e
cré as auréolas dos Mártires.
No entanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miúdo e amarelado;
nunca dava uma boa risada; trazia sempre as mãos nos bolsos. Estava
constantemente metido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bulia
nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente
preguiçoso, e custava de manhã arrancá-lo a uma sonolência
doentia em que ficava amolecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado
ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o
padreca.
•••
Num domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço,
a senhora marquesa de repente caiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu
testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joana, entrasse
aos quinze anos no seminário e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado
de realizar esta disposição piedosa. Amaro tinha então
treze anos.
As filhas da senhora marquesa deixaram logo Carcavelos e foram para Lisboa,
para a casa da Sra. D. Bárbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi
mandado para casa do tio, para a Estrela. O merceeiro era um homem obeso,
casado com a filha dum pobre empregado público, que o aceitara para
sair da casa do pai, onde a mesa era escassa, ela devia fazer as camas e nunca
ia ao teatro. Mas odiava o marido, as suas mãos cabeludas, a loja,
o bairro, e o seu apelido de Sra. Gonçalves. O marido, esse adorava-a
como a delícia da sua vida, o seu luxo; carregava-a de jóias
e chamava-lhe a sua duquesa.
Amaro não encontrou ali o elemento feminino e carinhoso, em que estivera
tepidamente envolvido em Carcavelos. A tia quase não reparava nele;
passava os seus dias lendo romances, as análises dos teatros nos jornais,
vestida de seda, coberta de pó-de-arroz, o cabelo em cachos, esperando
a hora em que passava debaixo das janelas, puxando os punhos, o Cardoso, galã
da Trindade. O merceeiro apropriou-se então de Amaro como duma utilidade
imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer logo às cinco
horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando
à pressa o pão na chávena de café, ao canto da
mesa da cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio
chamava-lhe o burro. Pesava-lhes até o magro pedaço de vaca
que ele comia ao jantar. Amaro emagrecia, e todas as noites chorava.
Sabia já que aos quinze anos devia entrar no seminário. O tio
todos os dias lho lembrava:
– Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro. Em tendo
quinze anos, é para o seminário. Não tenho obrigação
de carregar contigo! Besta na argola, não está nos meus princípios!
E o rapaz desejava o seminário, como um libertamento.
Nunca ninguém consultara as suas tendências ou a sua vocação.
Impunham-lhe uma sobrepeliz; a sua natureza passiva, facilmente dominável,
aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava
ser padre. Desde que saíra das rezas perpétuas de Carcavelos
conservara o seu medo do Inferno, mas perdera o fervor pelos santos; lembravam-lhe
porém os padres que vira em casa da senhora marquesa, pessoas brancas
e bem tratadas, que comiam ao lado das fidalgas, e tomavam rapé em
caixas de ouro; e convinha-lhe aquela profissão em que se cantam bonitas
missas, se comem doces finos, se fala baixo com as mulheres, – vivendo entre
elas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante, – e se recebem presentes
em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um anel de rubi no dedo
mínimo; monsenhor Saavedra com os seus belos óculos de ouro,
bebendo aos goles o seu copo de Madeira. As filhas da senhora marquesa bordavam-lhes
chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fora padre na Baia, viajara,
9 Chateaubriand: François-Renè, visconde de Chateaubriand (1768-1848),
escritor pré-romântico francês, com livros onde defende
a religião cristã (N E.)
estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas
que cheiravam a água-de-colônia, apoiadas ao castão de
ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em êxtase e cheias dum riso
beato, cantava, para as entreter, com a sua bela voz:
Mulatinha da Baia,
Nascida no Capujá…
Um ano antes de entrar para o seminário, o tio fê-lo ir a um
mestre para se afirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão.
Pela primeira vez na sua existência, Amaro possuiu liberdade. Ia só
à escola, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exército de infantaria,
espreitou às portas dos cafés, leu os cartazes dos teatros.
Sobretudo começara a reparar muito nas mulheres – e vinham-lhe, de
tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando
voltava da escola, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro
ao jardim da Estrela. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janelinha
num vão sobre os telhados. Encostava-se ali olhando, e via parte da
cidade baixa, que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gás: parecia-lhe
perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não
conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrasados de luz, e mulheres
que arrastam ruge-ruges de sedas pelos peristilos dos teatros; perdia-se em
imaginações vagas, e de repente apareciam-lhe no fundo negro
da noite formas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque
e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado
até ao ombro… Mas embaixo, na cozinha, a criada começava a
lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e
vinham-lhe então desejos de descer, ir roçar-se por ela, ou
estar a um canto a vê-la escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres
que vira nas vielas, de saias engomadas e ruidosas, passeando em cabelo, com
botinas cambadas: e, da profundidade do seu ser, subia-lhe uma preguiça,
como que a vontade de abraçar alguém, de não se sentir
só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de
baixo:
– Então tu não estudas, mariola?
E daí a pouco, sobre o Tito Lívio cabeceando de sono, sentindo-se
desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava
o dicionário.
Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de
padre, porque não poderia casar. Já as convivências da
escola tinham introduzido na sua natureza efeminada curiosidades, corrupções.
Às escondidas fumava cigarros: emagrecia e andava mais amarelo10.
•••
Entrou no seminário. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra
um pouco úmidos, as lâmpadas tristes, os quartos estreitos e
gradeados, as batinas negras, o silêncio regulamentado, o toque das
sinetas – deram-lhe uma tristeza lúgubre, aterrada. Mas achou logo
amizades; o seu rosto bonito agradou. Começaram a tratá-lo por
tu, a admiti-lo, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, às
conversas em que se contavam anedotas dos mestres, se caluniava o reitor,
e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura: porque quase todos
falavam com saudade das existências livres que tinham deixado: os da
aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas
cheias de cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, enquanto
um vapor se exala dos prados; os que vinham das pequenas vilas lamentavam
as ruas tortuosas e tranqüilas de onde se namoravam as vizinhas, os alegres
dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não
lhes bastava o pátio do recreio lajeado, com as suas árvores
definhadas, os altos muros sonolentos, o monótono jogo da bola: abafavam
na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Inácio, onde se faziam
as meditações da manhã e se estudavam à noite
as lições; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais
humildes – o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos,
o carreiro que ia cantarolando ao áspero chiar das rodas, e até
os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforje escuro.
10 Note que Amaro não possuía nenhuma vocação
para o sacerdócio. Aceita-o por comodismo; sua conduta covarde e encoberta
teria correspondência com as atitudes de um sacerdote. (N.E.)
Da janela dum corredor via-se uma volta de estrada: à tardinha uma
diligência costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos
do chicote, ao trote das três éguas, carregadas de bagagem; passageiros
alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos;
quantos olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com eles para as
alegres vilas e para as cidades, pela frescura das madrugadas ou sob a claridade
das estrelas!
E no refeitório, diante do escasso caldo de hortaliça, quando
o regente de voz grossa começava a ler monotonamente as cartas de algum
missionário da China ou as Pastorais do senhor bispo, quantas saudades
dos jantares de família! As boas postas de peixe! O tempo da matança!
Os rijões quentes que chiam no prato! Os sarrabulhos cheirosos!
Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do
rosto enfastiado da tia coberto de pó-de-arroz; mas insensivelmente
pôs-se também a ter saudades dos seus passeios aos domingos,
da claridade do gás e das voltas da escola, com os livros numa correia,
quando parava encostado à vitrina das lojas a contemplar a nudez das
bonecas!
Lentamente, porém, com a sua natureza incaracterística, foi
entrando como uma ovelha indolente na regra do seminário. Decorava
com regularidade os seus compêndios; tinha uma exatidão prudente
nos serviços eclesiásticos; e calado, encolhido, curvando-se
muito baixo diante dos lentes – chegou a ter boas notas.
Nunca pudera compreender os que pareciam gozar o seminário com beatitude
e maceravam os joelhos, ruminando, com a cabeça baixa, textos da Imitação
ou de Santo Inácio; na capela, com os olhos em alvo, empalideciam de
êxtase; mesmo no recreio, ou nos passeios, iam lendo algum volumezinho
de Louvores a Maria; e cumpriam com delícia as regras mais miúdas
– até subir só um degrau de cada vez, como recomenda S. Boaventura.
A esses o seminário dava um antegosto do Céu: a ele só
lhe oferecia as humilhações duma prisão, com os tédios
duma escola.
Não compreendia também os ambiciosos; os que queriam ser caudatários
dum bispo, e nas altas salas dos paços episcopais erguer os reposteiros
de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados,
servir uma Igreja aristocrática, e, diante das devotas ricas que se
acumulam no frufru das sedas sobre o tapete do altar-mor, cantar com voz sonora.
Outros sonhavam até destinos fora da Igreja: ambicionavam ser militares
e arrastar nas ruas lajeadas o tlintlim dum sabre; ou a farta vida da lavoura,
e desde a madrugada, com um chapéu desabado e bem montados, trotar
pelos caminhos, dar ordens nas largas eiras cheias de medas, apear à
porta das adegas! E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando
ao sacerdócio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza
do seminário para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.
Amaro não desejava nada:
– Eu nem sei, dizia ele melancolicamente.
No entretanto, escutando por simpatia aqueles para quem o seminário
era o “tempo das galés”, saia muito perturbado daquelas conversas
cheias de impaciente ambição da vida livre. Às vezes
falavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janelas, as peripécias
da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas
onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo
nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir, e, no fundo
das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia como uma brasa
silenciosa o desejo da Mulher.
Na sua cela havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre
a esfera, com o olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a
serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio, rezava-lhe
a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade
da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava,
despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade
ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas,
redondezas, uma carne branca… Julgava então ver os olhos do Tentador
luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama de água benta;
mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário,
ao domingo11.
Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral falar, com a
sua voz roufenha, do Pecado, compará-lo à serpente e com palavras
untuosas e gestos arqueados, deixando cair vagarosamente a pompa melíflua
dos seus períodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem,
calcassem aos pés a serpente ominosa! E depois era o mestre de Teologia
mística que falava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer
a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Crisólogo, S.
Cipriano e S. Jerônimo, explicava os anátemas dos santos contra
a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente,
Dardo, Filha da Mentira, Porta do Inferno, Cabeça do Crime, Escorpião…
11 Verifique neste parágrafo a importância da fisiologia na
escrita de Eça de Queirós da fase realista-naturalista. A inautenticidade
do processo educativo nos seminários leva a personagem a subverter
os próprios valores éticos inculcados pelos padres (N.E.)
– E como disse o nosso padre S. Jerônimo – e assoava-se estrondosamente
– Caminho de iniqüidade, iniquita via!
Até nos compêndios encontrava a preocupação da
Mulher! Que ser era esse, pois, que através de toda a teologia ora
era colocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada
com apóstrofes bárbaras? Que poder era o seu, que a legião
dos santos ora se arremessa ao seu encontro, numa paixão extática,
dando-lhe por aclamação o profundo reino dos Céus, –
ora vai fugindo diante dela como do Universal Inimigo, com soluços
de terror e gritos de ódio, e escondendo-se, para a não ver,
nas tebaidas e nos claustros, vai ali morrendo do mal de a ter amado? Sentia,
sem as definir, estas perturbações: elas renasciam, desmoralizavam-no
perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfalecia no desejo
de os quebrar.
E em redor dele, sentia iguais rebeliões da natureza: os estudos,
os jejuns, as penitências podiam domar o corpo, dar-lhe hábitos
maquinais, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como num ninho
serpentes imperturbadas. Os que mais sofriam eram os sangüíneos,
tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus
nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia:
lutavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos linfáticos
a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silêncios moles:
desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com
um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um maço
de cigarros – quantos encantos do pecado!
Amaro por fim quase invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes,
estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silêncio da alta livraria,
eram respeitados, usavam óculos, tomavam rapé. Ele mesmo tinha
às vezes ambições repentinas de ciência; mas diante
dos vastos infolios vinha-lhe um tédio insuperável. Era no entanto
devoto: rezava, tinha fé ilimitada em certos santos, um terror angustioso
de Deus. Mas odiava a clausura do seminário! A capela, os chorões
do pátio, as comidas monótonas do longo refeitório lajeado,
os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe
que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade duma rua ou na paz
dum quintal, fora daquelas negras paredes. Emagrecia, tinha suores éticos:
e mesmo no último ano, depois do serviço pesado da Semana Santa,
como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.
Ordenou-se enfim pelas têmporas de S. Mateus; e pouco tempo depois
recebeu, ainda no seminário, esta carta do Sr. padre Liset:
“Meu querido filho e novo colega.- Agora que está ordenado, entendo
em minha consciência que devo dar-lhe conta do estado dos seus negócios,
pois quero cumprir até o fim o encargo com que carregou os meus ombros
débeis a nossa chorada marquesa, atribuindo-me a honra de administrar
o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco devam importar
a uma alma votada ao sacerdócio, são sempre as boas contas que
fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado
da querida marquesa – para quem deve erguer em sua alma uma gratidão
eterna – está inteiramente exausto. Aproveito esta ocasião para
lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabeleci
mento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: caiu
sob o império das paixões, e tendo-se ligado ilegitimamente,
viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu
uma casa de hóspedes na Rua dos Calafates n? 53. Se toco nestas impurezas,
tão impróprias de que um tenro levita, como o meu querido filho,
tenha delas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação
da sua respeitável família. Sua irmã, como decerto sabe,
casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro
que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circunstâncias,
que o meu querido filho esteja de posse deste fato. Do que me escreveu o nosso
querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguesia de Feirão,
na Gralheira, vou falar com algumas pessoas importantes que têm a extrema
bondade de atender um pobre padre que só pede a Deus misericórdia.
Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da
virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se
encontra a felicidade neste nosso santo ministério quando sabemos compreender
quantos são os bálsamos que derrama no peito e quantos os refrigérios
que dá – o serviço de Deus.’ Adeus, meu querido filho e novo
colega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupilo da nossa
chorada marquesa, que decerto do Céu, onde a elevaram as suas virtudes,
suplica à Virgem, que ela tanto serviu e amou, a felicidade do seu
caro pupilo “. Liset.
“P.S. – O apelido do marido de sua irmã é Trigoso. ”
Liset.
Dois meses depois Amaro foi nomeado pároco de Feirão, na Gralheira,
serra da Beira Alta. Esteve ali desde Outubro até o fim das neves.
Feirão é uma paróquia pobre de pastores e naquela época
quase desabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tédio
à lareira, ouvindo fora o Inverno bramir na serra. Pela Primavera vagaram
nos distritos de Santarém e de Leiria paróquias populosas, com
boas côngruas12. Amaro escreveu logo à irmã contando a
sua pobreza em Feirão; ela mandou- lhe, com recomendações
de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu imediatamente.
Os ares lavados e vivos da serra tinham- lhe fortificado o sangue; voltava
robusto, direito, simpático, com uma boa cor na pele trigueira.
Logo que chegou a Lisboa foi à Rua dos Calafates no 53, a casa da
tia: achou-a velha, com laços vermelhos numa cuia enorme, toda coberta
de pó-de-arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa
que abriu os seus magros braços a Amaro.
– Como estás bonito! Ora não há! Quem te viu? Ih, Jesus!
Que mudança!
Admirava-lhe a batina, a coroa: e contando-lhe as suas desgraças,
com exclamações sobre a salvação da sua alma e
sobre a carestia dos gêneros, foi-o levando para o terceiro andar, a
um quarto que dava para o saguão.
– Ficas aqui como um abade, disse-lhe ela. E baratinho!… Ai! ter- te de
graça queria eu, mas… Tenho sido muito infeliz, Joãozinho!…
Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com Joãozinho na cabeça…
Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luís. Tinha ido
para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora
marquesa de Alegros, a Sra. D. Luísa, que estava casada com o conde
de Ribamar, conselheiro de Estado, com influência, regenerador fiel
desde cinqüenta e um, duas vezes ministro do reino.
E, por conselho da tia, Amaro, logo que meteu o seu requerimento, foi uma
manhã a casa da Sra. condessa de Ribamar, a Buenos Aires. Á
porta um coupé esperava.
– A senhora condessa vai sair, disse um criado de gravata branca e quinzena
de alpaca, encostado à ombreira do pátio, de cigarro na boca.
Nesse momento, duma porta de batentes de baeta verde, sobre um degrau de
pedra, ao fundo do pátio lajeado, uma senhora saía, vestida
de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabelos frisados sobre a
testa, lunetas de ouro num nariz comprido e agudo, e no queixo um sinalzinho
de cabelos claros.
– A senhora condessa já me não conhece? disse Amaro com o chapéu
na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.
– O Amaro? – disse ela, como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem ele é!
Ora não há! Está um homem. Quem diria!
Amaro sorria-se.
– Eu podia lá esperar! continuou ela admirada. E está agora
em Lisboa?
Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da
paróquia…
– De maneira que vim requerer, senhora condessa.
Ela escutava-o com as mãos apoiadas numa alta sombrinha de seda clara,
e Amaro sentia vir dela um perfume de pó-de-arroz e uma frescura de
cambraias.
– Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido há-de
falar. Eu me encarrego disso. Olhe, venha por cá. – E com o dedo sobre
o canto da boca: – Espere, amanhã vou para Sintra. Domingo, não.
O melhor é daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias pela manhã,
sou certa. – E rindo com os seus largos dentes frescos: – Parece que o estou
a ver traduzir Chateaubriand com a mana Luísa! Como o tempo passa!
– Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
– Sim, bem. Está numa quinta em Santarém.
Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, num aperto
sacudido que fez tilintar os seus braceletes de ouro, e saltou para o coupé,
magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
Amaro começou então a esperar. Era em Julho, no pleno calor.
Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos
e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Às vezes ia
conversar com a tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na
penumbra zumbia a monótona sussurração
12 Côngrua: Pensão recebida pelos padres para o seu sustento
(N.E.)
das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia croché,
com a luneta encavalada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo
volume do Panorama13.
À noitinha saía, a dar duas voltas no Rossio. Abafava-se, no
ar pesado e imóvel: a todos os cantos se apregoava monotonamente água
fresca! Pelos bancos, debaixo das árvores, vadios remendados dormitavam;
em redor da Praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente;
as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia,
bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.
Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janela aberta ao calor
da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava
cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam,
com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado,
meu marido há-de falar! E via-se já pároco numa bonita
vila, numa casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranqüilo
e importante, recebendo bandejas de doce das devotas ricas.
Vivia então num estado de espirito muito repousado. As exaltações,
que no seminário lhe causava a continência, tinham-se acalmado
com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa
pastora, que ele gostava de ver ao domingo tocar à missa, dependurada
da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar
de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao Céu as orações
que manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se
regaladamente.
No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
– Não está, disse-lhe um criado da cavalariça.
Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos;
e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho, fixado
com varões de metal. Da alta clarabóia caia uma luz suave; ao
cimo da escada, no patamar, sentado numa banqueta de marroquim escarlate,
um criado encostado à parede branca envernizada, com a cabeça
pendente e o beiço caído, dormia. Fazia um grande calor; aquele
alto silêncio aristocrático aterrava Amaro; esteve um momento,
com o seu guarda-sol pendente do dedo mínimo, hesitando; tossiu devagarinho,
para acordar o criado que lhe parecia terrível com a sua bela suíça
preta, o seu rico grilhão de ouro; e ia descer, quando ouviu por detrás
dum reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó
esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho
numa larga sala com estofos de damasco amarelo; uma grande luz entrava das
varandas abertas, e viam- se arvoredos de jardim. No meio da sala três
homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:
– Não sei se incomodo…
Um homem alto, de bigode grisalho e óculos de ouro, voltou-se surpreendido,
com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde.
– Sou o Amaro…
– Ah, disse o conde, o Sr. padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade…
Minha mulher falou-me. Tem a bondade.
E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quase calvo, de calças
brancas muito curtas:
– É a pessoa de quem lhe falei. – Voltou-se para Amaro: – É
o senhor ministro.
Amaro curvou-se, servilmente.
– O Sr. padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi criado de pequeno em casa
de minha sogra. Nasceu lá, creio eu…
– Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro, que se conservava afastado,
com o guarda-sol na mão.
– Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora – já não
há disso! – fê-lo padre. Houve até um legado, creio eu…
Enfim, aqui o temos pároco… Onde, Sr. padre Amaro?
– Feirão, excelentíssimo senhor.
– Feirão?… disse o ministro estranhando o nome.
– Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado.
Era um homem magro, entalado numa sobrecasaca azul, muito branco de pele,
com soberbas suíças dum negro de tinta, e um admirável
cabelo lustroso de pomada, apartado até ao cachaço numa risca
perfeita.
– Enfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguesia pobre, sem distrações,
com um clima horrível…
– Eu meti já requerimento, excelentíssimo senhor, arriscou
Amaro timidamente.
– Bem, bem, afirmou o ministro. Há-de arranjar-se, – e mascava o seu
charuto.
– É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade!
Os homens novos e ativos devem estar nas paróquias difíceis,
nas cidades… É claro! Mas não; olhe, lá ao pé
da minha quinta, em Alcobaça, há um velho, um gotoso, um padre-mestre
antigo, um imbecil!… Assim perde-se a fé.
– É verdade, disse o ministro, mas essas colocações
nas boas paróquias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços.
É necessário o estímulo…
– Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionais,
serviços à Igreja, não serviços aos governos.
13 Nos antigos volumes da revista portuguesa Panorama, encontramos novelas
históricas românticas, criticadas por Eça de Queirós
(N.E.)
O homem das soberbas suíças negras teve um gesto de objeção.
– Não acha? perguntou-lhe o conde.
– Respeito muito a opinião de vossa excelência, mas se me permite…
Sim, digo eu, os párocos na cidade são-nos dum grande serviço
nas crises eleitorais. Dum grande serviço!
– Pois sim. Mas…
– Olhe vossa excelência, continuou ele, sôfrego da palavra. Olhe
vossa excelência em Tomar. Por que perdemos? Pela atitude dos párocos.
Nada mais.
O conde acudiu:
– Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero
não são agentes eleitorais.
– Perdão.., queria interromper o outro.
O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas,
cheias da autoridade dum vasto entendimento:
– A religião, disse ele, pode, deve mesmo auxiliar os governos no
seu estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio…
– Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo películas
mascadas de charuto.
– Mas descer às intrigas, continuou o conde devagar, aos imbróglios…
Perdoe-me meu caro amigo, mas não é dum cristão.
– Pois sou-o, senhor conde, exclamou o homem das suíças soberbas.
Sou-o a valer! Mas também sou liberal. E entendo que no governo representativo…
Sim, digo eu… com as garantias mais sólidas…
– Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero, e
desacredita a política.
– Mas são ou não as maiorias um princípio sagrado? gritava
rubro o das suíças, acentuando o adjetivo.
– São um principio respeitável.
– Upa! upa, excelentíssimo senhor! Upa14!
O padre Amaro escutava, imóvel.
– Minha mulher há-de querer vê-lo, disse-lhe então o
conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou: – Entre. É o Sr.
padre Amaro, Joana!
Era uma sala forrada de papel branco acetinado, com móveis estofados
de casimira clara. Nos vãos das janelas, entre as cortinas de pregas
largas duma fazenda adamascada cor de leite, apanhadas quase junto do chão
por faixas de seda, arbustos delgados, sem flor, erguiam em vasos brancos
a sua folhagem fina. Uma meia-luz fresca dava a todas aquelas alvuras um tom
delicado de nuvem. Nas costas duma cadeira uma arara empoleirada, firme num
só pé negro, coçava vagarosamente, com contrações
aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo
para um canto do sofá, onde viu os cabelinhos louros e frisados da
senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro
da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante
dela numa cadeira baixa, com os cotovelos sobre os joelhos abertos, ocupava-
se em balançar, como um pêndulo, um pince-nez de tartaruga. A
condessa tinha no regaço uma cadelinha, e com a sua mão seca
e fina cheia de veias, acamava-lhe o pêlo branco como algodão.
– Como está, Sr. Amaro? – A cadela rosnou. – Quieta, Jóia.
Sabe que já falei no seu negócio? Quieta, Jóia… O ministro
está ali.
– Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.
– Sente-se aqui, Sr. padre Amaro.
Amaro pousou-se à beira dum fauteuil, com o seu guarda-sol na mão,
– e reparou então numa senhora alta que estava de pé, junto
do piano, falando com um rapaz louro.
– Que tem feito estes dias, Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua
irmã?
– Está em Coimbra, casou.
– Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anéis.
Houve um silêncio. Amaro, de olhos baixos, passava, com um gesto embaraçado
e errante, os dedos pelos beiços.
– O Sr. padre Liset está para fora? perguntou.
– Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa.
– Está o mesmo sempre: muito amável, muito doce. É a
alma mais virtuosa!…
– Eu prefiro o padre Félix, disse o rapaz gordo, estirando as pemas.
14 Observe o diálogo entre as personagens envolvidas na política
corrupta do período da Regeneração (1850-1910), monarquia
constitucional liberal-conservadora Ele evidencia o comprometimento do clero
com a corrupção política desse regime (N. E.)
– Não diga isso, primo! Jesus, brada aos Céus! Pois então,
o padre Liset, tão respeitável!… E depois outras maneiras
de dizer as coisas, com uma bondade… Vê-se que é um coração
delicado… ‘
– Pois sim, mas o padre Félix…
– Ai, nem diga isso! Que o padre Félix é uma pessoa de muita
virtude, decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais… – e com
um gesto delicado procurava a palavra: – mais fina, mais distinta… Enfim,
vive com outra gente. – E sorrindo para Amaro: – Pois não acha?
Amaro não conhecia o padre Félix, não se recordava do
padre Liset.
– Já é velho o Sr. padre Liset, observou ao acaso.
– Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade,
que entusiasmo!… Ai, é outra coisa! – E voltando-se para a senhora
que estava junto do piano: – Pois não achas, Teresa?
– Já vou, respondeu Teresa, toda absorvida.
Amaro afirmou-se então nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa,
com a sua alta e forte estatura, uma linha de ombros e de seio magnífica;
os cabelos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a palidez do rosto aquilino
semelhante ao perfil dominador de Maria Antonieta; o seu vestido preto, de
mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa
toda adornada de rendas negras, o tom monótono das alvuras da sala;
o colo, os braços estavam cobertos por uma gaze preta, que fazia aparecer
através da brancura da carne; e sentia-se nas suas formas a firmeza
dos mármores antigos, com o calor dum sangue rico.
Falava baixo, sorrindo, numa língua áspera que Amaro não
compreendia, cerrando e abrindo o seu leque preto – e o rapaz louro, bonito,
escutava-a retorcendo a ponta de um bigode fino, com um quadrado de vidro
entalado no olho.
– Havia muita devoção na sua paróquia, Sr. Amaro? perguntava,
no entanto, a condessa.
– Muita, muito boa gente.
– É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias,
considerou ela com um tom piedoso. – Queixou-se da obrigação
de viver na cidade, nos cativeiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua
quinta de Carcavelos, rezar na pequena capela antiga, conversar com as boas
almas da aldeia! – e a sua voz tornara-se terna.
O rapaz rechonchudo ria-se:
– Ora, prima! dizia, ora, prima! – Não, ele, se o obrigassem a ouvir
missa, numa capelinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!…
Não compreendia, por exemplo, a religião sem música…
Era lá possível uma festa religiosa, sem uma boa voz de contralto?
– Sempre é mais bonito, disse Amaro.
– Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó
prima, lembra-se daquele tenor… como se chamava ele? O Vidalti! Lembra-se
do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglesinhos? O tantum
ergo?
– Eu preferia-o no Baile de Máscaras, disse a condessa.
– Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!
No entanto o rapaz louro viera apertar a mão à senhora condessa,
falando-lhe baixo, muito risonho; Amaro admirava a nobreza da sua estatura,
a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe caíra uma luva,
e apanhou-lha servilmente. Quando ele saiu Teresa, depois de se ter aproximado
vagarosamente da janela e olhando para a rua – foi sentar-se numa causeuse
com um abandono que punha em relevo a magnífica escultura do seu corpo,
e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:
– Vamo-nos, João?
A condessa disse-lhe então:
– Sabes que o Sr. padre Amaro foi criado comigo em Benfica?
Amaro fez-se vermelho: sentia que Teresa pousava sobre ele os seus belos
olhos dum negro úmido como o cetim preto coberto de água.
– Está na província agora? perguntou ela, bocejando um pouco.
– Sim, minha senhora, vim há dias.
– Na aldeia? continuou ela, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.
Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando
o cabo do guarda-sol:
– Na serra, minha senhora.
– Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Há sempre neve,
diz que a igreja não tem telhado, são tudo pastores. Uma desgraça!
Eu pedi ao ministro a ver se o mudávamos. Pede-lhe tu também…
– O quê? disse Teresa.
A condessa contou que Amaro requerera para uma paróquia melhor. Falou
de sua mãe, da amizade que ela tinha a Amaro…
– Morria-se por ele. Ora um nome que ela lhe dava… Não se lembra?
– Não sei, minha senhora.
– Frei Maleitas!… Tem graça! Como o Sr. Amaro era amarelito, sempre
metido na capela…
Mas Teresa, dirigindo-se à condessa:
– Sabes com quem se parece este senhor?
A condessa afirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.
– Não se parece com aquele pianista do ano passado? continuou Teresa.
Não me lembra agora o nome…
– Bem sei, o Jalette, disse a condessa. – Bastante. No cabelo, não.
– Está visto, o outro não tinha coroa!
Amaro fez-se escarlate. Teresa ergueu-se arrastando a sua soberba cauda,
sentou-se ao piano.
– Sabe música? perguntou, voltando-se para Amaro.
– A gente aprende no seminário, minha senhora.
Ela correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas,
e tocou a frase do Rigoleto, parecida com o Minuete de Mozart15, que diz Francisco
I, despedindo-se, no sarau do primeiro ato, da senhora de Crécy, –
e cujo ritmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de
braços que se desenlaçam em despedidas supremas.
Amaro estava enlevado. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano
apaixonado, o colo de Teresa que ele via sob a negra transparência da
gaze, as suas tranças de deusa, os tranqüilos arvoredos de jardim
fidalgo davam-lhe vagamente a idéia duma existência superior,
de romance, passada sobre alcatifas preciosas, em coupés acolchoados,
com árias de óperas, melancolias de bom gosto e amores dum gozo
raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a música chorar
aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de
refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora
o seu prazer – pensando que vai voltar à dureza das côdeas secas
e à poeira dos caminhos.
No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ária
inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:
The village seems dead and asleep
When Lubin is away!…16
– Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justiça, aparecendo à
porta, batendo docemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
– Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo- se logo.
O ministro veio, com uma pressa galante:
– Que é, minha senhora? que é?
O conde e o sujeito de magníficas suíças tinham entrado
discutindo ainda.
– A Joana e eu temos que lhe pedir, disse Teresa ao ministro.
– Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.
– Mas, minhas senhoras, disse o ministro, sentando-se confortavelmente, com
as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma
coisa grave? meu Deus! prometo, prometo solenemente…
– Bem, disse Teresa, batendo-lhe com o leque no braço. Então
qual é a melhor paróquia vaga?
– Ah! disse o ministro, compreendendo e olhando para Amaro, que vergou os
ombros, corado.
O homem das suíças, que estava de pé fazendo saltar
circunspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de informações:
– Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do distrito e sede do
bispado.
– Leiria? disse Teresa. Bem sei, é onde há umas ruínas?
– Um Castelo, minha senhora, edificado por D. Dinis.
15 O Rigoleto è uma composição descontraída, melodramática,
do italiano Giuseppe Verdi (1813-1901). É diferente da ópera
do austríaco Wolfgang A Mozart (1756-1791), bem mais contraída.
As produções de Mozart são consideradas de transição
do Classicismo para o Romantismo. (N. E.)
16 O compositor vienense Joseph Haydn (1732-1809) é importante pela
renovação musical de suas produções.
A tradução da letra è a seguinte:
A cidade parece morta e adormecida
Quando Lubin está fora!… (N. E.)
– Leiria é excelente!
– Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, sede do bispado,
uma cidade… O Sr. padre Amaro é um eclesiástico novo…
– Ora, Sr. Correia! exclamou Teresa, e o senhor não é novo?
O ministro sorriu, curvando-se.
– Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava
ternamente a cabeça da arara.
– Parece-me inútil, o pobre Correia está vencido! A prima Teresa
chamou-lhe novo!
– Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja
uma lisonja excepcional; eu não sou também tão antigo…
– Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas
em 1820.
– Era meu pai, caluniador, era meu pai!
Todos riram.
– Sr. Correia, disse Teresa, está entendido. O Sr. padre Amaro vai
para Leiria!
– Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma
tirania!
– Thank you, fez Teresa, estendendo-lhe a mão.
– Mas, minha senhora, estou a estranhá-la, disse o ministro, fixando-a.
– Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o chão, distraída,
dando pequeninas pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao
piano bruscamente, e recomeçou a doce ária inglesa:
The village seems dead and asleep
When Lubin is away!…
Entretanto, o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.
– É negócio feito, disse-lhe ele. O Correia entende-se com
o bispo. Daqui a uma semana está nomeado. Pode ir descansado.
Amaro fez uma cortesia, e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto
do piano:
– Senhor ministro, eu agradeço…
– À senhora condessa, à senhora condessa, disse o ministro
sorrindo.
– Minha senhora, eu agradeço, veio ele dizer à condessa, todo
curvado.
– Ai, agradeça a Teresa. Ela quer ganhar indulgências, parece.
– Lembre-me nas suas orações, Sr. padre Amaro, disse ela. E
continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano – as tristezas da aldeia
quando Lubin está ausente!
Amaro daí a uma semana soube o seu despacho. Mas não tomara
a esquecer aquela manhã em casa da Sra. condessa de Ribamar, – o ministro
de calças muito curtas, enterrado na poltrona, prometendo o seu despacho;
a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes…
Cantava-lhe sempre no cérebro aquela ária triste do Rigoleto:
e perseguia-o a brancura dos braços de Teresa, sob a gaze negra! Instintivamente
via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso
do rapaz louro: detestava-o então, e a língua bárbara
que falava, e a terra herética de onde viera: e latejavam-lhe as fontes
à idéia de que um dia pode- ria confessar aquela mulher divina,
e sentir o seu vestido de seda preta roçar pela sua batina de lustrina
velha, na escura intimidade do confessionário.
Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para
Santa Apolônia, com um galego que lhe levava o baú. A madrugada
rompia. A cidade estava silenciosa, os candeeiros apagavam-se. Às vezes,
uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe
intermináveis; saloios começavam a chegar montados nos seus
burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas;
numa ou noutra rua uma voz aguda já apregoava os jornais; e os moços
dos teatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.
Quando chegou a Santa Apolônia a claridade do sol alaranjava o ar por
detrás dos montes da Outra Banda; o rio estendia-se, imóvel,
riscado de correntes de cor de aço sem lustre; e já alguma vela
de falua passava, vagarosa e branca.
Capítulo IV
Ao outro dia, na cidade, falava-se da chegada do pároco novo, e todos
sabiam já que tinha trazido um baú de lata, que era magro e
alto, e que chamava Padre-Mestre ao cônego Dias.
As amigas da S. Joaneira – as íntimas – a D. Maria da Assunção,
as Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa dela para se porem ao
fato… Eram nove horas, Amaro saíra com o cônego. A S. Joaneira,
radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas arregaçadas,
nos arranjos da manhã; e imediatamente, com animação,
contou a chegada do pároco, as suas boas maneiras, o que tinha dito…
– Mas venham vocês cá abaixo, sempre quero que vejam.
Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o baú de lata, uma prateleira
que lhe arranjara para os livros.
– Está muito bem, está muito bem, diziam as velhas andando
pelo quarto, devagar, com respeito, como numa igreja.
– Rico capote! – observou D. Joaquina Gansoso, apalpando o pano das largas
bandas que pendiam ao comprido do cabide. – É obra para um par de moedas!
– E a boa roupa branca! disse a S. Joaneira, erguendo a tampa do baú.
O grupo das velhas curvou-se com admiração.
– A mim o que me consola é que ele seja um rapaz novo, disse D. Maria
da Assunção, piedosamente.
– Também a mim, disse com autoridade a D. Joaquina Gansoso.
Estar a gente a confessar-se e a ver o pingo do rapé, como era com
o Raposo, credo! até se perde a devoção! E o bruto do
José Miguéis! Não, lá isso Deus me mate com gente
nova!
A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do pároco, – um crucifixo
que estava ainda embrulhado num jornal velho, o álbum de retratos,
onde o primeiro cartão era uma fotografia do Papa abençoando
a cristandade. Todas se extasiaram.
– É o mais que se pode, diziam, é o mais que se pode!
Ao sair, beijando muito a S. Joaneira, felicitaram-na porque adquirira, hospedando
o pároco, uma autoridade quase eclesiástica.
– Vocês apareçam à noite, disse ela do alto da escada.
– Pudera!… gritou D. Maria da Assunção, já à
porta da rua, traçando o seu mantelete. – Pudera!… Para o vermos
à vontade!
Ao meio-dia veio o Libaninho, o beato mais ativo de Leiria; e subindo a correr
os degraus, já gritava com a sua voz fina:
– Ó S. Joaneira!
– Sobe, Libaninho, sobe, disse ela, que costurava à janela.
– Então o senhor pároco veio, hem? perguntou o Libaninho, mostrando
à porta da sala de jantar o seu rosto gordinho cor de limão,
a calva luzidia; e vindo para ela com o passinho miúdo, um gingar de
quadris:
– Então que tal, que tal? tem bom feitio?
A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua
mocidade, o seu ar piedoso, a brancura dos seus dentes…
– Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota.
-. Mas não se podia demorar, ia para a repartição! -.
Adeus, filhinha, adeus! – E batia com a sua mão papuda no ombro da
S. Joaneira. – Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei ontem a
Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!
A criada tinha entrado.
– Adeus, Ruça! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãe
dos Homens. – E avistando Amélia pela porta do quarto entreaberta:
– Ai, que estás mesmo uma flor, Melinha! Quem se salvava na tua graça
bem eu sei!
E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada rapidamente,
ganindo:
– Adeusinho, adeusinho, pequenas!
– Ó Libaninho, vens à noite?
– Ai, não posso, filha, não posso. – E a sua vozinha era quase
chorosa. – Olha que amanhã é Santa Bárbara: tem seis
Padre-Nossos de direito!
•••
Amaro fora visitar o chantre com o cônego Dias, e tinha-lhe entregado
uma carta de recomendação do Sr. conde de Ribamar.
– Conheci muito o Sr, conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis,
no Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: há que
anos isso vai!
E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, falou com satisfação
do seu tempo; contou anedotas da Junta, apreciou os homens de então,
imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excelência), os tiques,
as caturrices, – sobretudo Manuel Passos, que ele descrevia passeando na Praça
Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéu de grandes abas, dizendo:
– Ânimo patriotas! o Xavier agüenta-se!
Os senhores eclesiásticos da câmara riram com gozo. Houve uma
grande cordialidade. Amaro saiu muito lisonjeado.
Depois jantou em casa do cônego Dias, e foram passear ambos pela estrada
de Marrazes. Uma luz doce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos
outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga tranqüilidade;
fumos esbranquiçados saíam dos casais, e sentiam-se os chocalhos
melancólicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da Ponte, e
disse, olhando em redor a paisagem suave:
– Pois senhores, parece-me que me hei-de dar bem aqui!
– Há-de-se dar regaladamente, afirmou o cônego, sorvendo o seu
rapé.
Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joaneira.
As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candeeiro
de petróleo, Amélia costurava,
A Sra. D. Maria da Assunção vestira-se, como nos domingos,
de seda preta: o seu chinó, dum louro avermelhado, estava coberto com
as rendas de um enfeite negro; as mãos descarnadas, calçadas
de mitenes, solenemente pousadas no regaço, reluziam de anéis;
do broche sobre o pescoço até ao cinto, um grosso grilhão
de ouro caía com passadores lavrados. Conservava-se direita e cerimoniosa,
com a cabeça um pouco de lado, os óculos de ouro assentes sobre
o nariz acavalado: tinha no queixo um grande sinal cabeludo; e quando se falava
de devoções ou de milagres dava um jeito ao pescoço,
e abria um sorriso mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados,
cravados nas gengivas como cunhas. Era viúva e rica, e sofria dum catarro
crônico.
– Aqui tem o senhor pároco novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joaneira.
Ela ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, comovida.
– Estas são as senhoras Gansosos, há-de ter ouvido… disse
a S. Joaneira ao pároco.
Amaro cumprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter
algum dinheiro, mas costumavam receber hóspedes. A mais velha, a Sra.
D. Joaquina Gansoso, era uma pessoa seca, com uma testa enorme e larga, dois
olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no
seu xale, direita, com os braços cruzados, falava perpetuamente, numa
voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal dos homens e dava-se
toda à Igreja.
A irmã, a Sra. D. Ana, era extremamente surda. Nunca falava, e com
os dedos cruzados sobre o regaço, os olhos baixos, fazia girar tranqüilamente
os dois polegares. Nutrida, com o seu perpétuo vestido preto de riscas
amarelas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda a noite, e
só acentuava a sua presença de vez em quando por suspiros agudos;
dizia- se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio. Todos
a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papéis para
caixas de doce.
Estava também a Sra. D. Josefa, a irmã do cônego Dias.
Tinha a alcunha de castanha pilada. Era uma criaturinha mirrada, de linhas
aduncas, pele engelhada e cor de cidra, voz sibilante; vivia num perpétuo
estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contrações
nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho
chamava-lhe a estação central das intrigas de Leiria.
– Então passeou muito, senhor pároco? perguntou ela logo empertigando-se.
– Fomos quase até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o
cônego, sentando-se pesadamente por detrás da S. Joaneira.
– Não achou bonito, senhor pároco? acudiu a Sra. D. Joaquina
Gansoso.
– Muito bonito.
Falaram das lindas paisagens de Leiria, das boas vistas: a Sra. D. Josefa
gostava muito do passeio ao pé do rio; até já ouvira
dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a
igreja da Encarnação, no alto.
– Desfruta-se muito, dali.
Amélia disse sorrindo:
– Eu por mim gosto daquele bocado ao pé da Ponte, debaixo dos chorões.
– E partindo com os dentes o fio da costura: – É tão triste!
Amaro olhou para ela, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul
muito justo ao seio bonito; o pescoço branco e cheio saía dum
colarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos
dentes brilhava; e pareceu ao pároco que um buçozinho lhe punha
aos cantos da boca uma sombra sutil e doce.
Houve um pequeno silêncio, – o cônego Dias com o beiço
descaído ia já cerrando as pálpebras.
– Que será feito do Sr. padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.
– Está talvez com a enxaqueca, pobre de Cristo! lembrou piedosamente
a Sra. D. Maria da Assunção.
Um rapaz que estava junto do aparador disse então:
– Eu vi-o hoje a cavalo, ia para os lados da Barrosa.
– Homem! disse logo, com azedume, a irmã do cônego, a Sra. D.
Josefa Dias, é milagre ter o senhor reparado!
– Por quê, minha senhora? disse ele erguendo-se e chegando-se ao grupo
das velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pele branca, regular, um
pouco fatigado, destacava bem um bigode pequeno muito negro, caído
aos cantos, que ele costumava mordicar com os dentes.
– Ainda ele o pergunta! exclamou a Sra. D. Josefa Dias. O senhor, que nem
lhe tira o chapéu!
– Eu?
– Disse-mo ele, afirmou ela com uma voz cortante. E acrescentou:
Ai, senhor pároco, bem pode chamar o Sr. João Eduardo para
o bom caminho. – E teve um risinho maligno.
– Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse ele rindo, com
as mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para
Amélia.
– É uma graça! exclamou a Sra. D. Joaquina Gansoso. Olhe, com
o que o senhor disse hoje lá em casa, de tarde, da Santa da Arregassa,
não há-de ganhar o Céu!
– Ora essa! gritou a irmã do cônego, voltando-se bruscamente
para João Eduardo. Então o que tem o senhor a dizer da Santa?
Acha talvez que é uma impostora?
– Credo, Jesus! disse a Sra. D. Maria da Assunção, apertando
as mãos e fitando João Eduardo, com um terror piedoso. Pois
ele havia de dizer isso? Cruzes!
– Não, o Sr. João Eduardo, afirmou gravemente o cônego,
que espertara, desdobrando o seu lenço vermelho – não era capaz
de dizer uma dessas.
Amaro perguntou então:
– Quem é a Santa da Arregassa?
– Credo! Pois não tem ouvido falar, senhor pároco? exclamou
numa admiração a Sra. D. Maria da Assunção.
– Há-de ter ouvido, afirmava a Sra. D. Josefa Dias com autoridade.
Diz que os jornais de Lisboa vêm cheios disso!
– É, com efeito, uma coisa bem extraordinária, ponderou com
um tom profundo o cônego.
A S. Joaneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:
– Ai, não imagina, senhor pároco, é o milagre dos milagres!
– Se é! se é!, disseram.
Houve um recolhimento devoto.
– Mas então?… perguntou Amaro, todo curioso.
– Olhe, senhor pároco, começou a Sra. D. Joaquina Gansoso endireitando-se
no xale, falando com solenidade: a Santa é uma mulher que aqui há
numa freguesia perto, que está há vinte anos na cama…
– Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assunção, tocando-
lhe com o leque no braço.
– Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.
– Vinte e cinco, vinte e cinco, afirmou a S. Joaneira. E o cônego apoiou-a,
oscilando gravemente a cabeça.
– Está entrevadinha de todo, senhor pároco! rompeu a irmã
do cônego, ávida de falar. Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos
são isto! – E mostrava o dedo mínimo. – Para a gente a ouvir
é necessário pôr-lhe a orelha ao pé da boca!
– Pois se ela se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a
Sra. D. Maria da Assunção. Coitadinha! que até a gente
lembra-se…
Houve entre as velhas um silêncio comovido. João Eduardo, que
por trás das velhas, de pé, com as mãos nos bolsos, sorria
mordicando o bigode, disse então:
– Olhe, senhor pároco, a coisa é o que os médicos dizem:
é que aquilo é uma doença nervosa.
Aquela irreverência fez, entre as velhas devotas, um escândalo;
a Sra. D. Maria da Assunção persignou-se logo à “cautela”.
– Pelo amor de Deus! gritou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor diga isso, diante
de quem quiser, menos de mim! É uma afronta!
– É que até pode cair um raio, dizia para os lados, baixo,
a Sra. D. Maria da Assunção, muito aterrada.
– Olhe, também lho digo, exclamou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor
é um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas.
– E voltando- se para o lado de Amélia, muito azeda: – Olhe, filha
minha é que eu lhe não dava!
Amélia corou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho também,
curvou-se sarcasticamente:
– Eu digo o que dizem os médicos. E de resto, acredite que não
tenho pretensões a casar com pessoa da sua família! Nem mesmo
consigo, Sra. D. Josefa!
O cônego deu uma risada muito pesada.
– Arreda! Cruzes! gritou ela, furiosa.
– Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
– Tudo, senhor pároco, disse a Sra. D. Joaquina Gansoso: está
sempre de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ela peça tem
a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ela e cura-se de
toda a moléstia. E depois, quando comunga, começa a erguer-se,
e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o Céu, que
até chega a fazer terror.
Mas neste momento uma voz disse à porta da sala:
– Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarelo, com as faces cavadas, uma grenha
riçada, um bigode a D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca,
porque lhe faltavam quase todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados,
de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra
na mão.
– Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
– Mal, respondeu ele com voz triste, sentando-se. Sempre as dores no peito,
a tossezita.
– Então não se dava bem com o óleo de fígados
de bacalhau?
– Qual! fez ele desconsoladamente.
– Uma viagem à Madeira, isso é que era, isso é que era!
disse a Sra. D. Joaquina Gansoso com autoridade.
Ele riu, com uma jovialidade súbita:
– Uma viagem à Madeira! Não está má! A D. Joaquina
Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense de administração com
dezoito vinténs por dia, mulher e quatro filhos! Para a Madeira!
– E como vai ela, a Joanita?
– Coitadita, lá vai! Tem saúde, graças a Deus! Gorda,
sempre com bom apetite. Os pequenos, os dois mais velhos é que estão
doentes; demais a mais agora a criada também caiu de cama! É
o diacho! Paciência! Paciência! – E encolhia os ombros.
Mas voltando-se para a S. Joaneira, dando-lhe uma palmada no joelho:
– E como vai a nossa Madre Abadessa?
Todos riram: e a Sra. D. Joaquina Gansoso informou o pároco que aquele
rapaz, o Artur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bela voz.
Era a melhor da cidade para modinhas.
A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joaneira,
enchendo as chávenas de alto, dizia:
– Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja
do Sousa…
E Artur oferecia açúcar com o seu antigo gracejo:
– Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente
as torradas; sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos
da manteiga e das nódoas do chá, estendiam prudentemente os
lenços sobre o regaço.
– Vai um docinho, senhor pároco? disse Amélia, apresentando-lhe
o prato. São da Encarnação, muito fresquinhos.
– Obrigado.
– Aquele ali. É toucinho do Céu.
– Ah! se é do Céu.., disse ele todo risonho. E olhou para ela,
tomando o bolo com a ponta dos dedos.
O Sr. Artur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela
alumiava o caderno de música; e Amélia, logo que a Ruça
levou a bandeja, acomodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarelo.
– Então hoje que há-de ser? perguntou Artur.
Os pedidos cruzaram-se:
– O guerrilheiro! O noivado do sepulcro.’ O descrido.’ o nunca mais!
O cônego Dias disse do seu canto pesadamente:
– Ó Couceiro, vá lá aquela do Tio Cosme, meu brejeiro!
As mulheres reprovaram:
– Credo! por quem é, senhor cônego! Que lembrança! E
a Sra. D. Joaquina Gansoso resumiu:
– Nada: uma coisa de sentimento para o senhor pároco fazer idéia.
– Isso, isso! disseram; uma coisa de sentimento, ó Artur, uma coisa
de sentimento!
Artur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente à face uma expressão
dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente:
Adeus, meu anjo! Eu vou partir sem ti!
Era uma canção dos tempos românticos de 51, o Adeus!
Dizia uma suprema despedida, num bosque, por uma tarde pálida de Outono;
depois, o homem solitário e precito, que inspirara um amor funesto,
ia errar desgrenhado à beira do mar; havia uma sepultura esquecida
num vale distante, brancas virgens vinham chorar à claridade do luar!
– Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
Artur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervalos, durante o acompanhamento,
sorria em redor – e na sua boca cheia de sombra viam-se os restos de dentes
podres. O padre Amaro, ao pé da janela, fumando, contemplava Amélia,
enlevado naquela melodia sentimental e mórbida: o seu perfil fino,
de encontro à luz, tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente
a curva do seu peito; e ele seguia as suas pálpebras de grandes pestanas,
que do teclado para a música se erguiam e se abaixavam com um movimento
doce. João Eduardo, junto dela, voltava- lhe as folhas da música.
Mas Artur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, num gesto
desolado e veemente, soltou a última estrofe:
E um dia, enfim, deste viver fatal,
Repousarei na escuridão da campa!
– Bravo! bravo! exclamaram.
E o cônego Dias comentou baixo ao pároco:
– Ah! para coisas de sentimento não há outro. – E bocejando
enormemente: Pois, menino, tenho tido toda a noite as lulas a conversar cá
por dentro17.
Mas chegara a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituais;
e a Sra. D. Josefa Dias, com o seu olho de avara a luzir, chocalhava já
vivamente o grosso saco dos números.
– Aqui tem um lugar, senhor pároco, disse Amélia.
Era junto dela. Ele hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio sentar-
se um pouco corado, ajeitando timidamente a volta.
Fez-se logo um grande silêncio; e, com a voz dormente, o cônego
começou a tirar os números. A Sra. D. Ana Gansoso dormitava
ao seu canto, ressonando ligeiramente.
Com o abajur as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, caindo
sobre o xale escuro que cobria a mesa, fazia destacar os cartões enegrecidos
do uso, e as mãos secas das velhas, pousadas em atitudes aduncas, remexendo
as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela derretia-se com uma chama
alta e direita.
17 Na situação narrativa que aqui se encerra, há uma
critica ao sentimentalismo mórbido e piegas do Romantismo (N.E.)
O cônego rosnava os números com as pilhérias veneráveis
da tradição: 1, cabeça de porco! – 3, figura de entremês!
– Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
– Temei – murmurava outra com gozo.
E a irmã do cônego, sôfrega:
– Chocalhe esses números, mano Plácido! Vá!
– E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Artur
Couceiro, com a cabeça entre os punhos.
Enfim o cônego quinou. E Amélia olhando em redor pela sala:
– Então não joga, Sr. João Eduardo? disse ela. Onde
está?
João Eduardo saiu da sombra da janela, por trás da cortina.
– Tome lá este cartão, ande, jogue.
– E receba as entradas, já que está de pé, disse a S.
Joaneira. Seja o senhor recebedor!
João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam
dez réis.
– Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.
Fora a irmã do cônego que não tocara no seu cobre acastelado.
João Eduardo disse, curvando-se:
– Parece-me que a Sra. D. Josefa não entrou.
– Eu?! gritou ela, furiosa. Olha uma destas! Até fui a primeira! Credo!
Duas moedas de cinco réis, por sinal! Que tal está o homem!
– Ah! bem, disse ele então, fui eu que me esqueci! Cá ponho.
– E rosnou: beata e ladra!
E a irmã do cônego dizia no entanto baixo à Sra. D. Maria
da Assunção:
– Queria ver se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
– Só quem não está feliz é o senhor pároco,
observaram.
Amaro sorriu. Estava distraído, e fatigado; às vezes mesmo
esquecia- se de marcar, e Amélia dizia-lhe, tocando-lhe no cotovelo:
– Olhe que não marcou, senhor pároco.
Tinham já apostado dois ternos; ela ganhara; depois faltou a ambos
para quinarem o número trinta e seis.
Em roda repararam.
– Ora vamos a ver se quinam ambos, disse a Sra. D. Maria da Assunção,
envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
Mas o trinta e seis não saía; havia outras quadras nos cartões
alheios; Amélia receava que quinasse a Sra. D. Joaquina Gansoso, que
se mexia muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente
interessado.
O cônego tirava os números com uma pachorra maliciosa.
– Vá! vá! Ande com isso, senhor cônego! diziam-lhe.
Amélia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
– Dava tudo para que saísse o trinta e seis!
– Sim? Aí o tem… Trinta e seis! disse o cônego.
– Quinamos! gritou ela, triunfante; e, tomando o cartão do pároco
e o seu mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito corada.
– Ora Deus os abençoe, disse o cônego, jovial, entornando-lhes
diante o pires cheio de moedas de dez réis.
– Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assunção, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram
a agasalhar-se. Amélia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca.
João Eduardo aproximou-se dela, e baixando a voz:
– Muitos parabéns por ter quinado com o senhor pároco. Que
entusiasmo! – E como ela ia responder: – Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se
no seu xale-manta com despeito.
A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam
ganindo adeusinhos. O Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviário;
mas distraia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes podres de
Artur, sobretudo o perfil de Amélia. Sentado à beira da cama,
com o Breviário aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas
mãos pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o
seu buçozinho gracioso…
Sentia a cabeça pesada do jantar do cônego e da monotonia do
quino, com uma grande sede além disso das lulas e do vinhito do Porto.
Quis beber, mas não tinha água no quarto. Lembrou-se então
que na sala de jantar havia uma bilha de Extremoz com água fresca,
muito boa, da nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal,
subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o reposteiro corrido; ergueu-o
e recuou com um ah! Vira num relance Amélia, em saia branca a desfazer
o atacador do colete; estava junto do candeeiro e as mangas curtas, o decote
da camisa deixavam ver os seus braços brancos, o seio delicioso. Ela
deu um pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou imóvel, com um suor à raiz dos cabelos. Poderiam
suspeitar uma ofensa! Palavras indignadas iam sair decerto através
do reposteiro do quarto, que ainda se balouçava agitado!
Mas a voz de Amélia, serena, perguntou de dentro:
– Que queria, senhor pároco?
– Vinha buscar água, balbuciou ele.
– Aquela Ruça! aquela desleixada! Desculpe, senhor pároco,
desculpe. Olhe aí ao pé da mesa, a bilha. Achou?
– Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a água escorria-
lhe pelos dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amélia sentiu por baixo passos nervosos
pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava,
excitado, pelo quarto.
Capítulo V
Ela, em cima, não dormia também. Sobre a cômoda, dentro
de uma bacia, a lamparina extinguia-se, com um mau cheiro de morrão
de azeite; brancuras de saias caídas no chão destacavam; e os
olhos do gato, que não sossegava, reluziam pela escuridão do
quarto com uma claridade fosfórica e verde.
Na casa vizinha, uma criança chorava sem cessar. Amélia sentia
a mãe embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Era a pobre Catarina engomadeira, que o tenente Sousa deixara com um filho
no berço, e grávida de outro – para ir casar a Extremoz! Tão
bonita era, tão loura – e mirrada agora, tão chupada!
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Como ela conhecia aquela cantiga! Quando tinha sete anos sua mãe
dizia-a, nas longas noites de Inverno, ao irmãozinho que morrera18!
Lembrava-se bem! moravam então noutra casa, ao pé da estrada
de Lisboa; à janela do seu quarto havia um limoeiro e a mãe
punha, na sua ramagem luzidia, os cueiros do Joãozinho, a secarem ao
sol. Não conhecera o papá. Fora militar, morrera novo; e a mãe
ainda suspirava ao falar da sua bela figura com o uniforme de cavalaria. Aos
oito anos ela foi para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma velhita
roliça e branca, que fora tacho das freiras de Santa Joana de Aveiro;
com os seus óculos redondos, junto à janela, empurrando a agulha,
morria-se por contar histórias do convento: as perrices da escrivã,
sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira, preguiçosa
e pacata, com uma pronúncia minhota; a mestra de cantochão,
admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Távoras; e a legenda
de uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria
os corredores, soltando gemidos dolorosos e clamando: – Augusto! Augusto!
Amélia ouvia aquelas histórias, encantada. Gostava então
tanto de festas de igreja e da convivência dos santos, que desejava
ser uma “freirinha, muito bonita, com um veuzinho muito branco”.
18 Inicia-se nesta passagem e vai até quase o final deste capitulo
um novo flash back, desta vez para fundamentar o caráter da educação
recebida por Amélia e circunstâncias anteriores ao aparecimento
de Amaro (N. E.)
A mamã era muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa, um homem
velho e robusto, que soprava de asma ao subir a escada e tinha uma voz fanhosa,
vinha todos os dias, como amigo da casa. Amélia chamava-lhe padrinho.
Quando ela voltava da mestra, à tarde, encontrava-o sempre a palestrar
com a mãe, na sala, de batina desabotoada, deixando ver o longo colete
de veludo preto com raminhos bordados a amarelo. O senhor chantre perguntava-lhe
pelas lições e fazia-a dizer a tabuada.
À noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o cônego
Cruz; e um velhito calvo, de perfil de pássaro, com óculos azuis,
que fora frade franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as
amigas da mãe, com as suas meias; e um capitão Couceiro, de
caçadores, que tinha os dedos negros do cigarro e trazia sempre a sua
viola. Mas às nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do quarto
ela via a luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silêncio, e o capitão,
repenicando a guitarra, cantava o lundum da Figueira.
Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipáticos:
sobretudo o padre Valente, tão gordo, tão suado, com umas mãos
papudas e moles, de unhas pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe
devagarinho a orelha, e ela sentia o seu hálito impregnado de cebola
e de cigarro. O seu amiguinho era o cônego Cruz, magro, com o cabelo
todo branco, a volta sempre asseada, as fivelas luzidias; entrava devagarinho,
cumprimentando com a mão sobre o peito, e uma voz suave cheia de ss.
Já então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa,
por qualquer “bagatela”, falavam-lhe sempre dos castigos do Céu;
de tal sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que só sabe dar o sofrimento
e a morte, e que é necessário abrandar, rezando e jejuando,
ouvindo novenas, animando os padres. Por isso, se às vezes ao deitar
lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitência no outro dia, porque
temia que Deus lhe mandasse sezões ou a fizesse cair na escada.
Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições
de música. A mãe tinha na sala de jantar, ao canto, um velho
piano, coberto com um pano verde, tão desafinado, que servia de aparador.
Amélia costumava cantarolar pela casa; e a sua voz fina e fresca agradava
ao senhor chantre, e as amigas da mãe diziam-lhe:
– Tu tens aí um piano, por que não mandas ensinar a rapariga?
Sempre é uma prenda! olha que lhe pode servir de muito!
O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé de Évora,
extremamente infeliz: a filha única, muito linda, fugira-lhe com um
alferes para Lisboa; e, passados dois anos, o Silvestre da Praça, que
ia muito à capital, vira-a descer a Rua do Norte, de garibaldi escarlate
e alvaiade num olho, com um marinheiro inglês. O velho caíra
em grande melancolia e grande miséria; e por piedade tinham-lhe dado
um emprego no cartório da câmara eclesiástica. Era uma
figura triste de romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro, deixava
crescer até os ombros os seus cabelos brancos e finos; os olhos, cansados,
lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e parecia
muito transido, no seu capote cor de vinho que só lhe chegava à
cintura e que tinha uma gola de astracã. Chamavam-lhe o Tio Cegonha,
pela sua alta magreza e o seu ar solitário. Amélia um dia tinha-lhe
chamado Tio Cegonha; mas mordeu logo o beiço, toda envergonhada.
O velho pôs-se a sorrir:
– Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?… ora, que tem? Cegonha
sou eu, e bem cegonha!
Era então no Inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não
cessavam; a áspera estação oprimia os pobres. Viam-se
naquele ano famílias esfomeadas indo à câmara pedir pão.
O Tio Cegonha vinha sempre ao meio-dia dar a lição; o seu guarda-chuva
azul deixava um ribeiro na escada; tiritava; e quando se sentava escondia,
na sua vergonha de velho, as botas encharcadas com a sola aberta. Queixava-se
sobretudo do frio das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado,
e não o deixava escrever no cartório. ‘
– Prendem-se-me os dedos, dizia tristemente.
Mas quando a S. Joaneira lhe pagou o primeiro mês das lições,
o velho apareceu muito contente, com urnas grossas luvas de lã.
– Ah, Tio Cegonha, como vem quentinho! disse-lhe Amélia.
– Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas meias
de lã. Deus a abençoe, minha menina, Deus a abençoe!
E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lágrimas. Amélia tomara-se
a “sua rica amiguinha”. Já lhe fazia confidências:
contava-lhe as suas necessidades, as saudades da filha, as suas glórias
na Sé de Évora, quando diante do senhor arcebispo, vistoso na
sua sobrepeliz escarlate, acompanhava o Lausperene.
Amélia não se esqueceu das meias de lã do Tio Cegonha.
Pediu ao chantre que lhe desse umas meias de lã.
– Ora essa! para quê? para ti? disse ele com o seu riso grosso.
– Para mim, sim, senhor.
– Deixe falar, senhor chantre! disse a S. Joaneira. Olha a idéia!
– Não deixe falar, não! dê, sim?!
Lançou-lhe os braços ao pescoço; fez-lhe olhinhos doces.
– Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! há-de
ser o diabo!… Pois sim, aí tens. – E deu-lhe dois pintos para umas
meias de lã.
No dia seguinte tinha-os ela embrulhados num papel, que dizia por fora em
letras garrafais: Ao meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discípula.
Uma manhã, depois, viu-o mais amarelo, mais chupado:
– Ó Tio Cegonha, disse de repente, quanto lhe dão lá
no cartório?
O velho sorriu-se:
– Ora, minha rica menina, quanto me hão-de dar? uma bagatela.
Quatro vinténs por dia. Mas o Sr. Neto faz-me algum bem…
– E chegam-lhe quatro vinténs?
– Ora! como hão-de chegar?
Sentiram-se os passos da mãe; e Amélia, retomando gravemente
a atitude de lição, começou a solfejar alto, com um ar
profundo.
E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãe a dar
de almoçar e de jantar ao Tio Cegonha nos dias de lição.
Assim se estabeleceu entre ela e o velho uma grande intimidade. E o pobre
Tio Cegonha, saindo do seu frio isolamento, acolhia-se àquela amizade
inesperada, como a um conchego tépido. Encontrava nela o elemento feminino
que amam os velhos, com as carícias, as suavidades de voz, as delicadezas
de enfermeira; achava nela a única admiradora da sua música;
e via-a sempre atenta às histórias do seu tempo, às recordações
da velha Sé de Évora que ele amava tanto, e que lhe fazia dizer,
quando se falava de procissões, ou de festas de igreja:
– Para isso Évora! em Évora é que é!
Amélia aplicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua
vida; já tocava contradanças e antigas árias de velhos
compositores; a Sra. D. Maria da Assunção estranhava que o mestre
lhe não ensinasse o Trovador.
– Coisa mais linda! dizia.
Mas o Tio Cegonha só conhecia a música clássica, árias
ingênuas e doces de Lully, motivos de minuetes, motetes floridos e piedosos
dos doces tempos freiráticos.
Uma manhã o Tio Cegonha encontrou Amélia muito amarela e triste.
Desde a véspera queixava-se de “mal-estar”. Era um dia nublado,
muito frio. O velho queria ir-se embora.
– Não, não, Tio Cegonha, disse ela, toque alguma coisa para
eu me entreter.
Ele tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas extremamente
melancólica.
– Que lindo! que lindo! dizia Amélia, de pé junto ao piano.
E quando o velho deu as últimas notas:
– O que é? perguntou ela.
O Tio Cegonha contou-lhe que era o começo de uma Meditação
feita por um frade seu amigo.
– Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
Amélia quis logo saber a história; e sentando-se no mocho do
piano, embrulhando-se no seu xale:
– Diga, Tio Cegonha, diga!
Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira;
ela morrera no convento daquele amor infeliz; e ele, de dor e de saudade,
fizera-se frade franciscano…
– Parece que o estou a ver…
– Era bonito?
– Se era! Um rapaz na flor da vida, rico… Um dia veio ter comigo ao órgão:
“Olha o que eu fiz”, disse-me ele. Era um papel de música.
Abria em ré menor. Pôs-se a tocar, a tocar… Ai, minha rica
menina, que música! Mas não me lembra o resto!
E o velho, comovido, repetiu no piano as notas plangentes da Meditação
em ré menor.
Amélia todo o dia pensou naquela história. De noite veio-lhe
uma grande febre, com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade franciscano,
na sombra do órgão da Sé de Évora. Via os seus
olhos profundos reluzirem numa face encovada: e, longe, a freira pálida,
nos seus hábitos brancos, encostada ás grades negras do mosteiro,
sacudida pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades
franciscanos caminhava para o coro: ele ia no fim de todos, curvado, com o
capuz sobre o rosto, arrastando as sandálias, enquanto um grande sino,
no ar nublado, tocava o dobre dos finados. Então o sonho mudava: era
um vasto céu negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com
hábitos de convento e um ruído inefável de beijos insaciáveis,
giravam, levadas por um vento místico; mas desvaneciam-se como névoas,
e na vasta escuridão ela via aparecer um grande coração
em carne viva, todo traspassado de espadas, e as gotas de sangue que caíam
dele enchiam o céu duma chuva escarlate19.
Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouveia tranqüilizou a S. Joaneira
com uma simples palavra:
– Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze anos da rapariga.
Hão-de-lhe vir amanhã as vertigens e os enjôos… Depois
acabou-se. Temo-la mulher.
A S. Joaneira compreendeu.
– Esta rapariga tem o sangue vivo e há-de ter as paixões fortes!
acrescentou o velho prático, sorrindo e sorvendo a sua pitada.
Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço
de açorda, caiu de repente morto com uma apoplexia. Que consternação
inesperada, para a S. Joaneira! Durante dois dias, esguedelhada, em saias
brancas chorou, gemeu pelos quartos. D. Maria da Assunção, as
senhoras Gansosos vieram acalmar, amansar a sua dor: e a Sra. D. Josefa Dias
resumiu as consolações de todos, dizendo:
– Deixa, filha, que te não há-de faltar quem te ampare!
Era então no começo de Setembro; a Sra. D. Maria da Assunção,
que tinha uma casa na praia da Vieira, propôs levar a S. Joaneira e
Amélia para a estação dos banhos, para ela espalhar,
nos bons ares saudáveis, em lugar diferente, aquela dor.
– É uma esmola que me fazes, dissera a S. Joaneira. Sempre me lembra
que era ali que ele punha o guarda-chuva… Ali que ele se sentava a ver-me
costurar!
– Está bom, está bom, deixa-te disso. Come e bebe, toma os
teus banhos, e o que lá vai lá vai. Olha que ele tinha bem os
seus sessenta.
– Ah, minha rica! a gente é pela amizade que lhes ganha.
Amélia tinha então quinze anos, mas era já alta e de
bonitas formas. Foi uma alegria para ela a estação na Vieira!
Nunca vira o mar; e não se fartava de estar sentada na areia, fascinada
pela vasta água azul, muito mansa, cheia de sol; às vezes no
horizonte passava um fumo delgado de paquete; a monótona e gemente
cadência da vaga adormentava-a; e em redor o areal faiscava, a perder
de vista, sob o céu azul-ferrete.
Como se lembrava bem! Logo pela manhã estava a pé! Era a hora
do banho: as barracas de lona alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras,
sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar, palrando;
os homens, de sapatos brancos estendidos em esteiras, chupavam o cigarro,
riscavam emblemas na areia; enquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal,
muito olhado, passeava só, soturno, junto da vaga, seguido do seu Terra-Nova.
Ela saía então da barraca com o seu vestido de flanela azul,
a toalha no braço, tiritando de susto e de frio: tinha- se persignado
às escondidas e toda trêmula, agarrada à mão do
banheiro, escorregando na areia, entrava na água, rompendo a custo
a maresia esverdeada que fervia em redor. A onda vinha espumando, ela mergulhava,
e ficava aos saltos, sufocada e nervosa, cuspindo a água salgada. Mas,
quando saía do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a toalha pela
cabeça, arrastando-se para a barraca, mal podendo com o peso do vestido
encharcado, risonha, cheia de reação; e em redor vozes amigas
perguntavam:
– Então que tal, que tal? Mais fresquinha, hem?
Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar, a apanhar conchinhas;
o recolher das redes, onde a sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia
sobre a areia molhada; e que longas perspectivas de ocasos ricamente dourados,
sobre a vastidão do mar triste, que escurece e geme!
D. Maria da Assunção tinha sido visitada, logo ao chegar, por
um rapaz, filho do Sr. Brito de Alcobaça, seu parente. Chamava-se Agostinho,
ia freqüentar o quinto ano de direito na Universidade. Era um moço
delgado, de bigode castanho, pêra, cabelo comprido deitado para trás,
e luneta: recitava versos, sabia tocar guitarra, contava anedotas de caloiros,
fazia partidas, e era famoso na Vieira, entre os homens, “por saber conversar
com senhoras”.
– O Agostinho, patife! diziam. É chalaça a esta, chalaça
àquela. Lá para sociedade não há outro!
19 Veja a associação entre o sensualismo e o misticismo da
personagem, que lhe trazem imagens oníricas dilacerantes. (N. E )
Logo desde os primeiros dias Amélia reparou que os olhos do Sr. Agostinho
Brito se fitavam constantemente nela, “p’ra namoro”. Amélia
corava muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e admirava-o,
achava-o muito “dengueiro”.
Um dia em casa da Sra. D. Maria da Assunção pediram a Agostinho
para recitar.
– Oh, minhas senhoras, isto aqui não é forja de ferreiro! exclamou
ele, jovial.
– Ora vá! não se faça rogado, disseram, insistindo.
– Bem, bem, por isso não nos havemos de zangar.
– A Judia, Brito, lembrou o recebedor de Alcobaça.
– Qual Judia! disse ele, há-de ser mas há-de ser a Morena!
– E olhou para Amélia. – Foi uma poesia que fiz ontem.
– Valeu, valeu!
– E cá o rapaz acompanha, disse um sargento do 6 de Caçadores,
tomando logo a guitarra.
Fez-se um silêncio: o Sr. Agostinho deitou o cabelo para trás,
fincou a luneta, apoiou as duas mãos às costas duma cadeira,
e fitando Amélia:
– À Morena de Leiria! disse.
Nasceste nos verdes campos
Onde Leiria é famosa,
Tens a frescura da rosa, .
E o teu nome sabe a mel…
– Perdão, exclamou o recebedor, a Sra. D. Juliana não está
boa. Era a filha do escrivão de direito de Alcobaça; tinha-se
feito muito pálida, e, lentamente, desmaiava na cadeira, com os braços
pendentes, o queixo sobre o peito. Borrifaram-na de água, levaram-na
para o quarto de Amélia; quando lhe desapertaram o vestido e lhe deram
vinagre a respirar, ergueu- se sobre o cotovelo, olhou em redor, começaram
a tremer-lhe os beiços e rompeu a chorar. Fora, os homens em grupo
comentavam:
– Foi o calor, diziam.
– O calor que ela tinha sei eu, rosnou o sargento de caçadores. O
Sr. Agostinho torcia o bigode, contrariado. Algumas senhoras foram a casa
acompanhar a Sra. D. Juliana. D. Maria da Assunção e a S. Joaneira,
atabafadas nos seus xales, iam também. Havia vento, um criado levava
um lampião, e todos caminhavam na areia, calados.
– Tudo isto é teu proveito, disse a Sra. D. Maria da Assunção
baixo à S. Joaneira, demorando-se um pouco atrás.
– Meu!?
– Teu. Pois tu não percebeste? A Juliana, em Alcobaça, era
namoro do Agostinho. Mas o rapaz aqui anda pelo beiço pela Amélia.
A Juliana percebeu, viu-o recitar aqueles versos, olhar para ela, zás!
– Ora essa!… disse a S. Joaneira.
– Deixa lá, o Agostinho tem um par de mil cruzados que lhe deixam
as tias. É um partidão!
Ao outro dia, à hora do banho, a S. Joaneira vestia-se na sua barraca,
e Amélia, sentada na areia, esperava, pasmada para o mar.
– Olá! sozinha? disse uma voz por detrás.
Era Agostinho. Amélia, calada, começou a riscar a areia com
a sombrinha. O Sr. Agostinho suspirou, alisou outro pedaço de areia
com o pé, escreveu – AMÉLIA. Ela, muito vermelha, quis apagar
com a mão.
– Então! disse ele. E debruçando-se, baixo: – É o nome
da Morena, bem vê. O seu nome sabe a mel!…
Ela sorriu:
– Ande, que fez ontem desmaiar aquela pobre Juliana – disse.
– Ora! importa-me a mim bem com ela! Estou farto daquele estafermo! Então
que quer? Eu cá sou assim. Tanto digo que me não importo com
ela, como digo que há uma pessoa por quem dava tudo… Eu sei…
– Quem é? É a Sra. D. Bernarda?
Era uma velha hedionda, viúva de um coronel.
– É, disse ele rindo. É justamente por quem eu ando apaixonado
é pela D. Bernarda.
– Ah! o senhor anda apaixonado! disse ela devagar, com os olhos baixos, riscando
a areia.
– Diga-me uma coisa, está a mangar comigo? exclamou Agostinho puxando
por uma cadeirinha, sentando-se junto dela.
Amélia pôs-se de pé.
– Não quer que eu me sente ao pé de si? perguntou ele ofendido.
– Eu é que estava cansada de estar sentada.
Calaram-se um momento.
– Já tomou banho? disse ela.
– Já.
– Estava frio hoje?
– Estava.
As palavras de Agostinho eram agora muito secas.
– Zangou-se? disse ela docemente, pondo-lhe de leve a mão no ombro.
Agostinho ergueu os olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo risonho,
– exclamou com veemência:
– Estou mesmo doido por si!
– Chut!… disse ela.
A mãe de Amélia, levantando o pano da barraca, saía,
muito abafada, de lenço amarrado na cabeça.
– Mais fresquinha, hem? perguntou logo Agostinho, tirando o chapéu
de palha.
– Estava por aqui?
– Vim dar uma vista de olhos. E agora toca ao almocinho, hem?
– Se é servido… disse a S. Joaneira.
Agostinho, muito galante, ofereceu o braço à mamã.
E desde então seguia sempre Amélia, de manhã no banho,
de tarde à beira-mar; apanhava-lhe conchas; e tinha-lhe feito outros
versos – o Sonho. Uma estrofe era violenta:
Senti-te contra o meu peito
Tremer, palpitar, ceder…
Ela murmurava-os com grande comoção, de noite, suspirando,
abraçando o travesseiro.
Outubro findava, as férias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho
da Sra. D. Maria da Assunção e das amigas fora dar um passeio
ao luar. À volta, porém, erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram
o céu, caíram gotas de água. Estavam então junto
a um pequeno pinheiral, e as senhoras, aos gritinhos, quiseram abrigar-se.
Agostinho, com Amélia pelo braço, rindo alto, foi penetrando
longe dos outros na espessura; e então, sob o monótono e gemente
rumor das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:
– Estou doido por ti, filha!
– Creio lá nisso! murmurou ela.
Mas Agostinho, tomando subitamente um tom grave:
– Sabes? talvez eu tenha de me ir amanhã embora.
– Vai-se?
– Talvez; não sei ainda. Além de amanhã é a matrícula.
– Vai-se… suspirou Amélia.
Ele então tomou-lhe a mão, apertou-lha com furor:
– Escreve-me! disse.
– E a mim, escreve-me? disse ela.
Agostinho agarrou-a pelos ombros e machucou-lhe a boca de beijos vorazes.
– Deixe-me! deixe-me! dizia ela sufocada.
De repente teve um gemido doce como um arrulho de ave, e abandonava-se –
quando a voz aguda de D. Joaquina Gansoso gritou:
– Há uma aberta. É andar! é andar!
E Amélia, desprendendo-se, atarantada, correu a agachar-se sob o guarda-chuva
da mamã.
Ao outro dia, com efeito, o Sr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras chuvas,
e dentro em pouco também Amélia, a mãe, a Sra. D. Maria
da Assunção voltaram para Leiria.
Passou o Inverno.
E um dia, em casa da S. Joaneira, D. Maria da Assunção deu
parte que o Agostinho Brito, segundo lhe escreviam de Alcobaça, tinha
o casamento justo com a menina do Vimeiro.
– Cáspite! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os
seus trinta contos! Olha o meco!
E diante de todos Amélia rompeu a chorar.
Amava Agostinho; e não podia esquecer aqueles beijos de noite no
pinheiral cerrado. Pareceu-lhe então que não tornaria a ter
alegria! Ainda lembrada daquele moço da história do Tio Cegonha,
que por amor se escondera na solidão de um convento, começou
a pensar em ser freira: deu-se a uma forte devoção, manifestação
exagerada das tendências que desde pequenina as convivências de
padres tinham lentamente criado na sua natureza sensível; lia todo
o dia livros de rezas; encheu as paredes do quarto de litografias coloridas
de santos; passava longas horas na igreja, acumulando Salve-Rainhas à
Senhora da Encarnação. Ouvia todos os dias missa, quis comungar
todas as semanas – e as amigas da mãe achavam-na “um modelo, de
dar virtude a incrédulos” !
Foi por esse tempo que o cônego Dias e sua irmã, a Sra. D. Josefa
Dias, começaram a freqüentar a casa da S. Joaneira. Dentro em
pouco o cônego tornou-se o “amigo da família”. Depois
do almoço era certo com a sua cadelinha, como outrora o chantre com
o seu guarda-chuva.
– Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joaneira. Mas o senhor
chantre não há dia nenhum que me não lembre dele!
A irmã do cônego tinha então organizado com a S. Joaneira
a Associação das Servas da Senhora da Piedade. A Sra. D. Maria
da Assunção, as Gansosos “filiaram-se”; e a casa da
S. Joaneira tornou-se um centro eclesiástico. Foi esse o momento melhor
da vida da S. Joaneira; “a Sé, como dizia com tédio o Carlos
da botica, era agora na Rua da Misericórdia”. Parte dos cônegos,
o novo chantre, vinham todas as sextas-feiras. Havia imagens de santos na
sala de jantar e na cozinha. As criadas, por escrúpulo, eram examinadas
em doutrina antes de serem aceitas. Ali muito tempo fizeram-se as reputações:
se se dizia de um homem: não é temente a Deus, havia o dever
de o desacreditar santamente. As nomeações de sineiros, coveiros,
serventes de sacristia arranjavam-se ali por intrigas sutis e palavras piedosas.
Tinham tomado um certo vestuário entre o preto e o roxo; toda a casa
cheirava a cera e a incenso; e a S. Joaneira, mesmo, monopolizara o comércio
das hóstias.
Assim passaram anos. Pouco a pouco, porém, o grupo devoto dispersou-se:
a ligação do cônego Dias e da S. Joaneira, muito comentada,
afastou os padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia também
– como era de tradição naquela diocese, fatal aos chantres;
e já não eram divertidos os quinos das sextas-feiras. Amélia
mudara muito; crescera: fizera-se uma bela moça de vinte e dois anos,
de olhar aveludado, beiços muito frescos – e achava a sua paixão
pelo Agostinho uma “tontice de criança”. A sua devoção
subsistia, mas alterada: o que amava agora na religião e na igreja
era o aparato, a festa – as belas missas cantadas ao órgão,
as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o altar-mor na glória
das flores cheirosas, o roçar das correntes dos incensadores de prata,
os uníssonos que rompem briosamente no coro das aleluias. Tomava a
Sé como a sua Ópera: Deus era o seu luxo. Nos domingos de missa
gostava de se vestir, de se perfumar com água-de-colônia, de
se ir aninhar sobre o tapete do altar-mor, sorrindo ao padre Brito ou ao cônego
Saldanha. Mas em certos dias, como dizia a mãe, “murchava”;
voltavam então os abatimentos de outrora, que a amarelavam, lhe punham
duas rugas velhas ao canto dos lábios: tinha nessas ocasiões
horas duma vaga saudade parva e mórbida, em que sò a consolava
cantar pela casa o Santíssimo ou as notas lúgubres do toque
da Agonia. Com a alegria voltava-lhe o rosto do culto alegre – e lamentava
então que a Sé fosse uma ampla estrutura de pedra dum estilo
frio e jesuítico: quereria uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada,
forrada de papel, iluminada a gás; e padres bonitos oficiando a um
altar ornado como uma étagère.
Fizera vinte e três anos quando conheceu João Eduardo no dia
da procissão de Corpus-Christi, em casa do tabelião Nunes Ferral,
onde ele era escrevente. Amélia, a mãe, a Sra. D. Josefa Dias
tinham ido ver a procissão da bela varanda do tabelião, guarnecida
de colchas de damasco amarelo. João Eduardo estava lá, modesto,
sério, todo vestido de preto. Havia muito que Amélia o conhecia;
mas naquela tarde, reparando na brancura da sua pele e na gravidade com que
ajoelhava, pareceu-lhe “muito bom rapaz”.
À noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de colete branco,
foi pela sala exclamando, entusiasmado, com a sua voz de grilo: – É
tirar pares, é tirar pares! – enquanto a filha mais velha ao piano
tocava com brio estridente uma mazurca francesa. João Eduardo aproximou-se
de Amélia:
– Ai, eu não danço! – disse ela logo com ar seco.
João Eduardo não dançou também; foi encostar-se
a uma ombreira com a mão na abertura do colete, os olhos fitos em Amélia.
Ela percebia, desviava o rosto, mas estava contente; e quando João
Eduardo, vendo uma cadeira vazia, veio sentar-se ao pé dela, Amélia
fez-lhe logo lugar acomodando os folhos de seda, agradada. O escrevente, embaraçado,
torcia o bigode com a mão trêmula. Por fim Amélia voltando-se
para ele:
– Então o senhor não dança também?
– E a Sra. D. Amélia? disse ele baixo.
Ela inclinou-se para trás, e batendo nas pregas do vestido:
– Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa séria.
– Nunca se ri? perguntou ele, pondo na voz uma intenção fina.
– Às vezes rio quando há de quê, disse ela olhando-o
de lado.
– De mim, por exemplo.
– De si!? Ora essa! Está a caçoar comigo? Por que me hei-de
eu rir do senhor? Boa!… então o senhor que tem que faça rir?
– e agitava o seu leque de seda preta.
Ele calou-se, procurando as idéias, as delicadezas.
– Então sério, sério, não dança?
– Já lhe disse que não. Ai, que é tão perguntador!
– É porque me interesso por si.
– Ora, deixe lá! disse ela fazendo um indolente gesto de negativa.
– Palavra!
Mas a Sra. D. Josefa Dias, que os vigiava, aproximou-se, de testa muito franzida,
e João Eduardo levantou-se, intimidado.
À saída, quando Amélia no corredor punha os seus agasalhos,
João Eduardo veio dizer-lhe, de chapéu na mão:
– Cubra-se bem, não apanhe frio!
– Então continua a interessar-se por mim? – disse ela apertando em
redor do pescoço as pontas da sua manta de lã.
– O mais possível, creia.
Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de zarzuela20.
Falava-se muito da contralto, a Gamacho. A Sra. D. Maria da Assunção
tinha um camarote, levou a S. Joaneira e Amélia – que duas noites antes
estivera costurando, com uma pressa comovida, um vestido de cassa todo florido
de laços de seda azul. João Eduardo na platéia – enquanto
a Gamacho, empastada de pó-de-arroz sob a sua mantilha valenciana,
vibrando com uma graça decrépita o leque de lantejoulas, garganteava
malaguenhas agudas – não se fartou de contemplar, de desejar Amélia.
À saída veio cumprimentá-la, oferecer-lhe o braço
até a Rua da Misericórdia; a S. Joaneira, a Sra. D. Maria da
Assunção seguiam atrás com o tabelião Nunes.
– Então gostou da Gamacho, Sr. João Eduardo?
– A falar-lhe a verdade nem sequer reparei nela.
– Então que fez?
– Olhei para si, respondeu ele resolutamente.
Ela parou imediatamente, disse com a voz um pouco alterada:
– Onde vem a mamã?
– Deixe lá a mamã!
E João Eduardo, então, falando-lhe junto do rosto, disse-lhe
“a sua grande paixão”. Tomou-lhe a mão, repetia todo
perturbado:
– Gosto tanto de si! Gosto tanto de si!
Amélia estava nervosa da música, do teatro; a noite quente
de Verão, com a sua vasta cintilação de estrelas tomava-a
toda lânguida. Abandonou a mão, suspirou baixinho.
– Gosta de mim, não é verdade? perguntou ele.
– Sim, respondeu ela, e apertou os dedos de João Eduardo com paixão.
Mas, como ela pensou, “fora decerto um fogacho” – porque, dias
depois, quando conheceu mais João Eduardo, quando pôde falar
livremente com ele, reconheceu que ”não tinha nenhuma inclinação
pelo rapaz”. Estimava-o, achava-o simpático, bom moço; poderia
ser um bom marido; mas sentia dentro em si o coração adormecido.
O escrevente porém começou a ir à Rua da Misericórdia
quase todas as noites. A S. Joaneira estimava-o pelo seu “propósito”
e pela sua honradez. Mas Amélia ia-se mostrando “fria”: esperava-o
à janela pela manhã quando ele passava para o cartório,
fazia-lhe olhos doces à noite, – mas só para o não descontentar,
para ter na sua existência desocupada um interessezinho amoroso.
João Eduardo um dia falou à mãe em casamento:
– Como a Amélia quiser, eu por mim… disse a S. Joaneira.
E Amélia, consultada, respondeu ambiguamente:
– Mais tarde, por ora não me parece, veremos.
20 Zarzuela. Composição espanhola, onde se canta e declama,
de forma alternada (N.E.)
Enfim acordou-se tacitamente em esperar, até que ele obtivesse o lugar
de amanuense do governo civil, rasgadamente prometido pelo doutor Godinho
– o temido doutor Godinho!
Assim vivera Amélia até a chegada de Amaro: e, durante a noite,
estas recordações vinham-lhe por fragmentos, como pedaços
de nuvens que o vento vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde, acordou
já o sol ia alto: e espreguiçava-se, quando ouviu dizer a Ruça
na sala de jantar:
– É o senhor pároco que vai sair com o senhor cônego;
vão à Sé.
Amélia saltou da cama, correu à janela em camisa, ergueu uma
pontinha da cortina de cassa, olhou. A manhã resplandecia: e o padre
Amaro pelo meio da rua conversando com o cônego, assoava-se ao seu lenço
branco, muito airoso na sua batina de pano fino.
Capítulo VI
Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro
sentiu-se feliz. A S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na
sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o “quarto do senhor pároco
andava que nem um brinco”! Amélia tinha com ele uma familiaridade
picante de parenta bonita: “tinham calhado um com o outro”, como
dissera, encantada, D. Maria da Assunção. Os dias iam assim
passando para Amaro, fáceis, com boa mesa, colchões macios e
a convivência meiga de mulheres. A estação ia tão
linda que até as tílias floresceram no jardim do Paço:
“quase milagre!”, disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas
as manhãs da janela do seu quarto, em robe-de-chambre, citava versos
das Éclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrela,
dos desconsolos do seminário e do áspero Inverno na Gralheira
– aquela vida em Leiria era para Amaro como uma casa seca e abrigada onde
o alegre lume estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada
na serra, sob trovões e chuveiros.
Ia cedo dizer a missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote,
com luvas de casimira, meias de lãs por baixo das botas de alto cano
vermelho. As manhãs estavam frias: e àquela hora só algumas
devotas, com o mantéu escuro pela cabeça, rezavam aqui e além,
ao pé dum altar envernizado de branco.
Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no
lajedo, enquanto o sacristão, pachorrento, contava “as novidades
do dia”.
Depois, com o cálice na mão, de olhos baixos, passava à
igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do Santíssimo Sacramento,
subia devagar ao altar onde duas velas de cera esmoreciam com uma claridade
pálida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava,
curvado:
– Introibo ad altare Dei.
– Ad Deum qui laetificat juventutem meam, resmungava, num latim silabado,
o sacristão.
Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com
uma devoção enternecida. “Estava agora habituado”,
dizia. E como não ceava, e àquela hora em jejum, com a frescura
cortante do ar, já sentia apetite, engrolava depressa, monotonamente,
as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. Por trás o
sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão
pela sua espessa barba bem rapada, olhando de revés para a Casimira
França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que ele “trazia
de olho” desde a Páscoa. Largas réstias de sol caiam das
janelas laterais. Um vago aroma de junquilhos secos adocicava o ar.
Amaro, depois de recitar rapidamente o ofertório, limpava o cálice
com o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar
as galhetas, apresentava-as, curvado – e Amaro sentia o cheiro do óleo
rançoso que lhe reluzia no cabelo. Naquela parte da missa, por um antigo
hábito de emoção mística, Amaro tinha um recolhimento
sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava,
com largueza, a exortação universal á oração
– Orate, fratres! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto
idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, de onde
pendiam grandes rosários negros. Então o sacristão ia
ajoelhar-se por trás dele, sustentando ligeiramente com uma das mãos
a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a
hóstia – Hoc est enim corpus meum! – elevando alto os braços
para o Cristo cheio de chagas roxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha
tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silêncio
sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo lajeado
da Sé, à volta do mercado.
– Ite, missa est! dizia Amaro enfim.
– Deo gratias! respondia o sacristão respirando alto, com o alívio
da obrigação finda.
E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus
dar a bênção, era já pensando na alegria do almoço,
na clara sala de jantar da S. Joaneira e nas boas torradas. Àquela
hora já
Amélia o esperava com o cabelo caído sobre o penteador, tendo
na pele fresca um bom cheiro de sabão de amêndoas.
•••
Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde
a S. Joaneira e Amélia costuravam. “Estava aborrecido embaixo,
vinha um bocado para o cavaco”, dizia. A S. Joaneira, numa cadeira pequena,
ao pé da janela, com o gato aninhado na roda do vestido de merino,
cosia de luneta na ponta do nariz. Amélia, junto da mesa, trabalhava
com o cesto da costura ao lado; a cabeça inclinada sobre o trabalho
mostrava a sua risca fina, nítida, um pouco afogada na abundância
do cabelo; os seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de cera, oscilavam,
faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra;
as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pele de
um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu peito cheio respirava
devagar. Às vezes, cravando a agulha na fazenda, espreguiçava-se
devagarinho, sorria, cansada. Então Amare gracejava:
– Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!
Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia:
o major despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco
do Carlos do correio. De vez em quando a Ruça vinha ao armário
buscar um prato ou uma colher; então falava-se do preço dos
gêneros, do que havia para o jantar. A S. Joaneira tirava as lunetas,
traçava a perna, e balouçando o pé calçado numa
chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.
– Hoje temos grão-de-bico. Não sei se o senhor pároco
gostará, foi para variar…
Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade
de gostos com Amélia.
Depois, animando-se, bulia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma
carta; perguntou-lhe pelo derriço; ela respondeu, picando vivamente
o pesponto:
– Ai! a mim ninguém me quer, senhor pároco…
– Não é tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho,
afetando tossir.
Amélia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe
para sustentar nas mãos uma meadinha de retrós que ela ia dobar.
– Deixe falar, senhor pároco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice!
Isto, em se lhe dando confiança!…
Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: – ele estava ali para o que
quisessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem!… E as
duas mulheres riam, dum riso cálido, enlevadas naquelas maneiras do
senhor pároco, “que até tocavam o coração”
! Às vezes Amélia pousava a costura e tomava o gato no colo;
Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do maltês que se
arredondava, fazendo um ronrom de gozo.
– Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos.
E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
– Bichaninho gato! bichaninho gato!
Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remédio à idiota
ou ir palrar à cozinha. Eles ficavam sós; não falavam,
mas os seus olhos tinham um longo diálogo mudo, que os ia penetrando
da mesma languidez dormente. Então Amélia cantarolava baixo
o Adeus ou o Descrente: Amaro acendia o seu cigarro, e escutava, bamboleando
a perna.
– É tão bonito isso! dizia.
Amélia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaços,
erguendo o busto, mirava o alinhavado ou o pesponto, passando-lhe por cima,
para o assentar, a sua unha polida e larga.
Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ela ou
vinha dela lhe parecia perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu
andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com ternura
para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto,
enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade duma mulher. Quando
percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro olhares
gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote pendurado, uma
meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações
da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E não
se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas que batiam
as ombreiras das portas estreitas. Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso,
não lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé,
o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo,
como de um monte se vêem as casas desaparecer no nevoeiro dos vales;
e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo
na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.
Às vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé:
– Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário
ser homem!
Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava
em cima, o tique-tique das suas botinas batia o soalho… Adeus! a devoção
caia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam,
e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do
seu cérebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas pelas outras
como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, sofria.
E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não
a ver, estar longe de Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacifica,
com uma criada velha cheia de provérbios e de economia, e passear pela
sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia,
de cima, chamava-o – e o encanto recomeçava, mais penetrante.
A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do
dia. A S. Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo os caroços
das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A Ruça,
cada dia mais ética, servia mal, sempre a tossir; Amélia às
vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria
levantar-se logo, atencioso.
– Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor pároco! dizia ela. E punha-
lhe a mão no ombro, e os seus olhos encontravam-se.
Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estômago, sentia-se
regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada
tornava-se expansivo, tinha gracinhas; às vezes mesmo, com um brilho
terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amélia debaixo da
mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia “que muito lhe pesava não
ter uma irmãzinha assim” !
Amélia gostava de ensopar o miolo do pão no molho do guisado:
a mãe dizia-lhe sempre:
– Embirro que faças isso diante do senhor pároco.
E ele então rindo:
– Pois olhe, também eu gosto. Simpatia! magnetismo!
E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas.
Mas o crepúsculo crescia, a Ruça trazia o candeeiro. O brilho
dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava à
S. Joaneira mamã; Amélia sorria, de olhos baixos, trincando
com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Daí a pouco vinha o café;
e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca, e
quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
Àquela hora aparecia sempre o cônego Dias; sentiam-no subir
pesadamente, dizendo da escada:
– Licença para dois!
Era ele e a cadela, a Trigueira.
– Ora Nosso Senhor vos dê muito boas-noites! dizia assomando à
porta.
– Vai a gotinha de café, senhor cônego? perguntava logo a S.
Joaneira.
Ele sentava-se, exalando um profundo uff! Vá lá a gotinha do
café! E batendo no ombro do pároco, olhando para a S. Joaneira:
– Então, como vai cá o seu menino?
Riam; vinham as histórias do dia. O cônego costumava trazer
no bolso o Diário Popular; Amélia interessava-se pelo romance,
a S. Joaneira pelas correspondências amorosas nos anúncios.
– Ora vejam que pouca-vergonha!… dizia ela, deliciando-se.
Amaro então falava de Lisboa, de escândalos que lhe contara
a tia: dos fidalgos que conhecera “em casa do Sr, conde de Ribamar”.
Amélia, enlevada, escutava-o com os cotovelos sobre a mesa, roendo
vagarosamente a ponta do palito.
Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à
cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras
que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã
reineta, fazendo debaixo da roupa uma saliência quase imperceptível,
fixava em todos, com susto, os seus olhinhos côncavos e chorosos.
– É o senhor pároco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amélia
ao ouvido. Vem ver como está.
A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:
– Ah! é o menino!
– É o menino, é, diziam rindo.
E a velha ficava a murmurar, espantada:
– É o menino, é o menino!
– Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa
morte!
E voltavam para a sala de jantar onde o cônego Dias, todo enterrado
na velha poltrona de chita verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre,
dizia logo:
– Ora vá um bocadinho de música, pequena!
Amélia ia sentar-se ao piano.
– Ó filha, toca o Adeus! recomendava a S. Joaneira começando
a sua meia.
E Amélia, ferindo o teclado:
Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado…
A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro,
sentia-se todo enleado num sentimentalismo agradável.
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-
se então a ler os Cânticos a Jesus, tradução do
francês publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma
obrazinha beata, escrita com um lirismo equívoco, quase torpe – que
dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus
é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma
concupiscência alucinada: “Oh! vem, amado do meu coração,
corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão
e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! ” E um
amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade,
geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras
gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento,
com uma persistência histérica. E depois de monólogos
frenéticos de onde se exala um bafo de cio místico, vêm
então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos
difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto!
Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no
no convento. É beato e excitante; tem as eloqüências do
erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim
e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica21!
Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos
sonoros, túmidos de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia
em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos,
encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos,
e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças;
ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria
os dois seios muito brancos.
Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.
Começara então a recomendar-lhe a leitura dos Cânticos
a Jesus.
– Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse
ele, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura.
Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as
olheiras até o meio da face. Queixou-se de insônia, de palpitações.
– E então, gostou dos Cânticos?
– Muito. Orações lindas! respondeu.
Durante todo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste
– e sem razão, às vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.
•••
Os piores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João
Eduardo vinha passar as noites em família. Até às nove
horas o pároco não saía do quarto; e quando subia para
o chá desesperava-se de ver o escrevente embrulhado no seu xale-manta,
sentado junto de Amélia.
– Ai o que estes dois têm para aí palrado, senhor pároco!
dizia a S. Joaneira.
Amaro tinha um sorriso lívido, partindo devagar a sua torrada, com
os olhos fitos na chávena.
Amélia na presença de João Eduardo, agora, não
tinha com o pároco a mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos
da costura; o escrevente, calado, chupava o cigarro; e havia grandes silêncios
em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.
– Olha quem andar agora nas águas no mar! dizia a S. Joaneira, fazendo
devagar a sua meia.
– Safa! acrescentava João Eduardo.
21 Observe a intrusão emotiva do narrador neste parágrafo e
os efeitos de Cânticos a Jesus nas personagens protagonistas. (N.E.)
As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro; detestava-o pela
sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante dele
sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.
– Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joaneira.
– Estou tão cansada! respondia Amélia apoiando-se nas costas
da cadeira, com um suspirozinho de fadiga.
A S. Joaneira, então, que não gostava de “ver gente mona”,
propunha uma bisca de três; e o padre Amaro, tomando o seu candeeiro
de latão, descia para o quarto, muito infeliz.
Nessas noites quase detestava Amélia; achava-a casmurra. A intimidade
do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidiu mesmo falar á
S. Joaneira, dizer-lhe “que aquele namoro de portas adentro não
podia ser agradável a Deus”. Depois, mais razoável, resolvia
esquecê-la, pensava em sair da casa, da paróquia. Representava-se
então Amélia com a sua coroa de flores de laranjeira, e João
Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados… Via
a cama de noivado com os seus lençóis de renda… E todas as
provas, as certezas do amor dela pelo “idiota do escrevente” cravavam-se-lhe
no peito como punhais…
– Pois que casem, e que os leve o diabo!…
Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como
para impedir que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o frufru das
suas saias. Mas daí a pouco, como todas as noites, escutava com o coração
aos saltos, imóvel e ansioso, os ruídos que ela fazia em cima
ao despir-se, palrando ainda com a mãe.
Um dia Amaro jantara em casa da Sra. D. Maria da Assunção;
fora depois passear pela estrada de Marrazes, e à volta, ao fim da
tarde, encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho,
no patamar, estavam os chinelos de ourelo da Ruça.
– Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi à fonte e esqueceu-se de fechar
a porta.
Lembrou-se que Amélia tinha ido passar a tarde com a Sra. D. Joaquina
Gansoso, numa fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joaneira falara
em ir à irmã do cônego. Fechou devagar a cancela, subiu
à cozinha a acender o seu candeeiro; como as ruas estavam molhadas
da chuva da manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos
não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu
no quarto da S. Joaneira, através do reposteiro de chita, uma tosse
grossa; surpreendido, afastou sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta
entreaberta espreitou. – Oh Deus de Misericórdia! a S. Joaneira, em
saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas
de camisa, o cônego Dias resfolegava grosso!
Amaro desceu, colado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta,
e foi ao acaso para os lados da Sé. O céu enevoara-se, leves
gotas de chuva caíam.
– E esta! E esta! dizia ele assombrado.
Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S.
Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os ímpetos
do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição,
as dignidades eclesiásticas! Que faria então um homem novo e
forte, que sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!…
Era, pois, verdade o que se cochichava no seminário, o que lhe dizia
o velho padre Sequeira, cinqüenta anos padre da Gralheira: – “Todos
são do mesmo barro!” Todos são do mesmo barro, – sobem
em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminários, dirigem as
consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente,
e têm no entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de
quem vão repousar das atitudes devotas e da austeridade do ofício,
fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!
Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquela, a
S. Joaneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia
de um velho cônego? A S. Joaneira fora decerto bonita, bem-feita, desejável
– outrora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos
declives da idade, àqueles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas,
que diabo, não eram honestas! Recebiam hóspedes, viviam da concubinagem.
Amélia ia sozinha à igreja, às compras, à fazenda;
e com aqueles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante!
– Resumia, filiava certas recordações: um dia que ela lhe estivera
mostrando na janela da cozinha um vaso de rainúnculos, tinham ficado
sós, e ela, muito corada, pusera-lhe a mão sobre o ombro e os
seus olhos reluziam e pediam; outra ocasião ela roçara-lhe o
peito pelo braço! A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não
a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéia deliciosa
que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante
da mãe! Imaginava jà a boa vida escandalosa e regalada; enquanto
em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego cheio de dificuldades
asmáticas – Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé,
apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus… Com que frenesi
a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental,
quase doloroso: agora a idéia muito magana dos dois padres e as duas
concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma
satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua. – Que pechincha
de casa!
A chuva caía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de
jantar. Subiu.
– lh, como vem frio! disse-lhe Amélia sentindo, ao apertar-lhe a mão,
a umidade da névoa.
Sentada à mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: João
Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joaneira.
Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente
dera-lhe de repente, sem saber por quê, o duro choque duma realidade
antipática: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dançar
uma sarabanda na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam
– vendo ali Amélia ao pé do noivo, curvada sobre uma costura
honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de família!
E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel
de ramagens verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista
Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho piano mal
firme nos seus três pés torneados; o paliteiro tão querido
de todos – um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva aberto eriçado
de palitos, e aquela tranqüila bisca jogada com os dichotes clássicos.
Tudo tão decente!
Afirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joaneira,
como para descobrir nelas as marcas das beijocas do cônego: ah! tu,
não há dúvida, és “uma barregã de
clérigo”. Mas Amélia! com aquelas longas pestanas descidas,
o beiço tão fresco!… Ignorava decerto as libertinagens da
mãe; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente
na segurança dum amor legal! – E Amaro, da sombra, examinava-a longamente
como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.
– Cansadinho, senhor pároco, hem? disse a S. Joaneira. E para João
Eduardo: – Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar!
O escrevente, namorado, distraía-se.
– É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joaneira a cada momento.
Depois ele esquecia-se de comprar cartas.
– Ah menino, menino! dizia ela com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas
orelhas!
Amélia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque
preto com botões de vidro, que lhe disfarçava a forma do seio.
E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo
escondendo a beleza que mais apetecia nela! E nada a esperar. Nada dela lhe
pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a brancura daqueles peitos! Queria
casar – e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando
paus! Odiou-o então, dum ódio complicado de inveja ao seu bigode
negro e ao seu direito de amar…
– Está incomodado, senhor pároco? perguntou Amélia,
vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.
– Não, disse ele secamente.
– Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.
O escrevente, baralhando as cartas, começara a falar de uma casa que
queria alugar; a conversa caiu sobre arranjos domésticos.
– Traz-me luz! gritou Amaro à Ruça.
Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôs a vela sobre a cômoda;
o espelho estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridículo
com a sua cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trás a
coroa hedionda. Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode,
o seu cabelo todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar- me?
pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade;
ele só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os
terrores do pecado! Ela simpatizava talvez com ele, apesar de padre; mas antes
de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais natural! Via-se pobre, bonita,
só: cobiçava uma situação legitima e duradoura,
o respeito das vizinhas, a consideração dos lojistas, todos
os proveitos da honra!
Odiou-a então, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estúpida,
que não percebia que ao pé dela, sob uma negra batina, uma paixão
devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciência! Desejou
que ela fosse como a mãe, – ou pior, toda livre, com vestidos garridos,
uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma fêmea
fácil como uma porta aberta…
– Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! – pensou,
recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos
pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!
Abafava. Abriu a janela. O céu estava tenebroso; a chuva cessara; o
piar das corujas na Misericórdia cortava só o silêncio.
Enterneceu-se, então, com aquela escuridão, aquela mudez de
vila adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu ser, o
amor que sentira ao princípio por ela, muito puro, dum sentimentalismo
devoto: via a sua linda cabeça, duma beleza transfigurada e luminosa,
destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento
de adoração, como no culto a Maria e na Saudação
Angélica; pediu-lhe perdão ansiosamente de a ter ofendido; disse-lhe
alto: És uma santa, perdoa! – Foi um momento muito doce, de renunciamento
carnal…
E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente
em si, pôs-se a pensar com saudade – que se fosse um homem livre seria
um marido tão bom! Amorável, delicado, dengueiro, sempre de
joelhos, todo de adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho,
a puxar-lhe as barbas! À idéia daquelas felicidades inacessíveis,
os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero,
“a pega da marquesa que o fizera padre”, e o bispo que o confirmara22!
– Perderam-me! perderam-me! dizia, um pouco desvairado.
Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor
das saias de Amélia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os
dentes no beiço, de ciúme. A cancela bateu, Amélia subiu
cantarolando baixo.
– Mas a sensação do amor místico que o penetrara um
momento, olhando a noite, passara; e deitou-se, com um desejo furioso dela
e dos seus beijos.
Capítulo VII
Dias depois o padre Amaro e o cônego Dias tinham ido jantar com o abade
da Cortegassa. – Era um velho jovial, muito caridoso, que vivia há
trinta anos naquela freguesia e passava por ser o melhor cozinheiro da diocese.
Todo o clero das vizinhanças conhecia a sua famosa cabidela de caça.
O abade fazia anos, havia outros convidados – o padre Natário e o padre
Brito: o padre Natário era uma criaturinha biliosa, seca, com dois
olhos encovados, muito malignos, a pele picada das bexigas e extremamente
irritável. Chamavam-lhe o Furão. Era esperto e questionador;
tinha fama de ser grande latinista, e ter uma lógica de ferro; e dizia-se
dele: é uma língua de víbora! Vivia com duas sobrinhas
órfãs, declarava-se extremoso por elas, gabava-lhes sempre a
virtude, e costumava chamar-lhes as duas rosas do seu canteiro. O padre Brito
era o padre mais estúpido e mais forte da diocese; tinha o aspecto,
os modos, a forte vida de um robusto beirão que maneja bem o cajado,
emborca um almude de vinho, pega alegremente à rabiça do arado,
serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e nas sestas quentes de Junho
atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O senhor chantre,
sempre correto nas suas comparações mitológicas, chamava-lhe
– o leão de Nemeia.
A sua cabeça era enorme, de cabelo lanígero que lhe descia
até as . sobrancelhas: a pele curtida tinha um tom azulado, do esforço
da navalha de barba; e, nas suas risadas bestiais, mostrava dentinhos muito
miúdos e muito brancos do uso da broa.
Quando iam sentar-se à mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando
muito, com a calva suada, exclamando logo em tons agudos:
– Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela igreja
de Nossa Senhora da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma missa de intenção.
Ai, filhos! papei-a logo, venho mesmo consoladinho!
A Gertrudes, a velha e possante ama do abade, entrou então com a vasta
terrina do caldo de galinha: e o Libaninho, saltitando em redor dela, começou
os seus gracejos:
– Ai, Gertrudinhas, quem tu fazias feliz, bem eu sei!
A velha aldeã ria, com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia
a massa do seio.
– Olha que arranjo me aparece agora pela tarde!…
– Ai, filha! as mulheres querem-se como as pêras, maduras e de sete
cotovelos. Então é que é chupá-las!
Os padres gargalharam; e, alegremente, acomodaram-se à mesa.
O jantar fora todo cozinhado pelo abade: logo à sopa as exclamações
começaram:
– Sim, senhor, famoso! Disto nem no Céu! Bela coisa!
22 Eça de Queirós coloca-se contra o celibato clerical. (N.E.)
O excelente abade estava escarlate de satisfação. Era, como
dizia o senhor chantre, “um divino artista” ! Lera todos os Cozinheiros
completos, sabia inúmeras receitas; era inventivo – e, como ele afirmava
dando marteladinhas no crânio, “tinha-lhe saído muito petisco
daquela cachimônia” ! Vivia tão absorvido pela sua “arte”
que lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fiéis ajoelhados
para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre
os condimentos do sarrabulho. E ali vivia feliz, com a sua velha Gertrudes,
de muito bom paladar também, com o seu quintal de ricos legumes, sentindo
uma só ambição na vida – ter um dia a jantar o bispo!
– Oh senhor pároco! dizia ele a Amaro, por quem é! mais um
bocadinho de cabidela, faça favor! Essas codeazinhas de pão
ensopadas no molho! Isso! isso! Que tal, hem? – E com um aspecto modesto:
– Não é lá por dizer, mas a cabidela hoje saiu-me boa!
Estava com efeito, como disse o cônego Dias, de tentar Santo Antão
no deserto! Todos tinham tirado as capas, e, só com as batinas, as
voltas alargadas, comiam devagar, falando pouco. Como no dia seguinte era
a festa da Senhora da Alegria, os sinos na capela, ao lado, repicavam; e o
bom sol do meio-dia dava tons muito alegres à louça, às
bojudas canecas azuis com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões
escarlates, às frescas malgas de azeitonas pretas – enquanto o bom
abade, de olho arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com cuidado
nacos brancos do peito do capão recheado.
As janelas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camélias
vermelhas crescendo junto ao peitoril, e para além das copas das macieiras
um pedaço muito vivo de céu azul-ferrete. Uma nora chiava ao
longe, lavadeiras batiam a roupa.
Sobre a cômoda, entre in-folios, na sua peanha, um Cristo perfilava
tristemente contra a parede o seu corpo amarelo, coberto de chagas escarlates:
e, aos lados, simpáticos santos sob redomas de vidro, lembravam legendas
mais doces de religião amável: o bom gigante S. Cristóvão
atravessando o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo
sobre a sua mãozinha como uma péla; o doce pastor S. Joãozinho
coberto com uma pele de ovelha, e guardando os seus rebanhos, não com
um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro, tendo na sua mão
de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do Céu! Nas
paredes, em litografias de coloridos cruéis, o patriarca S. José
apoiava-se ao seu cajado onde florescem lírios brancos; o cavalo empinado
do bravo S. Jorge pisava o ventre dum dragão surpreendido; e o bom
Santo Antônio, à beira dum regato, sorria, falando a um tubarão.
O tlintlim dos copos, o ruído das facas animava a velha sala, de teto
de carvalho defumado, duma alegria desusada. E Libaninho devorava, dizendo
pilhérias.
– Gertrudinhas, flor do caniço, passa-me as bages. Não me olhes
assim, magana, que me fazes revolver os intestinos!
– O diabo é o homem! dizia a velha. Olha para o que lhe deu! Falasse-me
aqui há trinta anos, seu perdido!
– Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto coisas
pela espinha acima!
Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam
vazias: e o padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola
de lã da Covilhã, onde a marca da fábrica, feita de linha
azul, era uma cruz sobre o coração.
Um pobre então viera à porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos;
e enquanto Gertrudes lhe metia no alforje metade duma broa, os padres falaram
dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguesias.
– Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abade. Ó Dias,
mais este bocadinho da asa!
– Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre
Natário. – Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros,
e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas
portas. – Súcia de mariolas, resumiu.
– Deixe lá, padre Natário, deixe lá! disse o abade.
Olhe que há pobreza deveras. Por aqui há famílias, homem,
mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não
comem senão ervas.
– Então que diabo querias tu que eles comessem? exclamou o cônego
Dias lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capão. Querias
que comessem peru? Cada um como quem é!
O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estômago, e
disse com afeto:
– A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
– Ai filhos! acudiu o Libaninho num tom choroso, se houvesse só pobrezinhos
isto era o reininho dos Céus!
O padre Amaro considerou com gravidade:
– É bom que haja quem tenha cabedais para legados pios, edificações
de capelas…
– A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natário
com autoridade.
O cônego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
– Para o esplendor do culto e propagação da fé.
– Mas a grande causa da miséria, dizia Natário com uma voz
pedante, era a grande imoralidade.
– Ah! lá isso não falemos! exclamou o abade com desgosto. Neste
momento há só aqui na freguesia mais de doze raparigas solteiras
grávidas! Pois senhores, se as chamo, se as repreendo, põem-se
a fungar de riso!
– Lá nos meus sítios, disse o padre Brito, quando foi pela
apanha da azeitona, como há falta de braços, vieram as maltas
trabalhar. Pois agora o verás! Que desaforo! – Contou a história
das maltas, trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam oferecendo
os braços pelas fazendas, vivem na promiscuidade e morrem na miséria.
– Era necessário andar sempre de cajado em cima deles!
– Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mãos na cabeça.
Ai, o pecado que vai pelo mundo! Até se me estão a eriçar
os cabelos!
Mas a freguesia de Santa Catarina era a pior! As mulheres casadas tinham
perdido todo o escrúpulo.
– Piores que cabras, dizia o padre Natário alargando a fivela do colete.
E o padre Brito falou dum caso na freguesia de Amor: raparigas de dezesseis
e dezoito anos que costumavam reunir-se num palheiro – o palheiro do Silvério
– e passavam lá a noite com um bando de marmanjos!
Então o padre Natário, que já tinha os olhos luzidios,
a língua solta, disse repoltreando-se na cadeira e espaçando
as palavras:
– Eu não sei o que se passa lá na tua freguesia, Brito; mas
se há alguma coisa, o exemplo vem de alto… A mim têm-me dito
que tu e a mulher do regedor…
– É mentira! exclamou o Brito, fazendo-se todo escarlate.
– Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, repreendendo-o com bondade.
– É mentira! berrou ele.
– E aqui para nós, meus ricos, disse o cônego Dias baixando
a voz, com o olhinho aceso numa malícia confidencial, sempre lhes digo
que é uma mulher de mão-cheia!
– É mentira! clamou o Brito. E falando de um jato: – Quem anda a espalhar
isso é o morgado da Cumiada, porque o regedor não votou com
ele na eleição… Mas tão certo como eu estar aqui, quebro-lhe
os ossos! – Tinha os olhos injetados, brandia o punho: – Quebro-lhe os ossos!
– O caso não é para tanto, homem, considerou Natário.
– Quebro-lhe os ossos! Não lhe deixo um inteiro!
– Ai, sossega, leãozinho! disse o Libaninho com ternura. Não
te percas, filhinho!
Mas recordando a influência do morgado da Cumiada, que era então
oposição e que levava duzentos votos à uma, os padres
falaram de eleições e dos seus episódios. Todos ali,
a não ser o padre Amaro, sabiam, como disse Natário, “cozinhar
um deputadozinho”. Vieram anedotas; cada um celebrou as suas façanhas23.
O padre Natário na última eleição tinha arranjado
oitenta votos!
– Cáspite! disseram.
– Imaginem vocês como? Com um milagre!
– Com um milagre? repetiram espantados.
– Sim, senhores.
Tinha-se entendido com um missionário, e na véspera da eleição
receberam-se na freguesia cartas vindas do Céu e assinadas pela Virgem
Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do
Inferno, votos para o candidato do governo. De chupeta, hem?
– De mão-cheia! disseram todos.
Só Amaro parecia surpreendido.
– Homem! disse o abade com ingenuidade, disso é que eu cá precisava.
Eu então tenho de andar aí a estafar-me de porta em porta. –
E sorrindo bondosamente: – Com o que se faz ainda alguma coisita é
com o relaxe da côngrua!
– E com a confissão, disse o padre Natário. A coisa então
vai pelas mulheres, mas vai segura! Da confissão tira-se grande partido.
O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
23 O segmento narrativo mostra a participação do clero em favor
do governo rnonárquico (N. E.)
– Mas enfim a confissão é um ato muito sério, e servir,
assim para eleições…
O padre Natário, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos
excitados, soltou uma palavra imprudente:
– Pois o senhor toma a confissão a sério?
Houve uma grande surpresa.
– Se tomo a confissão a sério? gritou o padre Amaro recuando
a cadeira, com os olhos arregalados.
– Ora essa! exclamaram. Oh, Natário! Oh, menino!
O padre Natário exaltado queria explicar, atenuar:
– Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão
seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou pedreiro-livre24! O que eu quero
dizer é que um meio de persuasão, de saber o que se passa, de
dirigir o rebanho para aqui ou para ali… E quando é para o serviço
de Deus, é uma arma. Aí está o que é – a absolvição
é uma arma!
– Uma arma! exclamaram.
O abade protestava, dizendo:
– Oh, Natário! oh, filho! isso não!
O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, “tinha já um tal terror
que até lhe tremiam as pernas” !
Natário irritou-se:
– Então talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de nós,
pelo fato de ser padre, porque o bispo lhe impôs três vezes as
mãos e porque lhe disse o accipe, tem missão direta de Deus,
– é Deus mesmo para absolver? !
– Decerto! exclamaram, decerto!
E o cônego Dias disse meneando uma garfada de bages:
– Quorum remiseris peccata, remittuntur eis. É a fórmula. A
fórmula é tudo, menino…
– A confissão é a essência mesma do sacerdócio,
soltou o padre Amaro com gestos escolares, fulminando Natário. Leia
Santo Inácio! Leia S. Tomás!
– Anda-me com ele! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando Amaro.
– Anda-me com ele, amigo pároco! Salta-me no cachaço do ímpio!
– Oh, senhores! berrou Natário furioso com a contradição,
o que eu quero é que me respondam a isto. E voltando-se para Amaro:
– O senhor, por exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu pão
torrado, tomou o seu café, fumou o seu cigarro, e que depois se vai
sentar no confessionário, às vezes preocupado com negócios
de família ou com faltas de dinheiro, ou com dores de cabeça,
ou com dores de barriga, imagina o senhor que está ali como um Deus
para absolver?
O argumento surpreendeu.
O cônego Dias, pousando o talher, ergueu os braços, e com uma
solenidade cômica exclamou:
– Hereticus est! É herege!
– Hereticus est! também eu digo, rosnou o padre Amaro.
Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do arroz-doce.
– Não falemos nessas coisas, não falemos nessas coisas, disse
logo prudentemente o abade. Vamos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá
a garrafinha do Porto!
Natário, debruçado sobre a mesa, ainda arremessava argumentos
a Amaro:
– Absolver é exercer a graça. A graça só é
atributo de Deus: em nenhum autor encontro que a graça seja transmissível.
Logo…
– Ponho duas objeções… gritou Amaro, com o dedo em riste,
em atitude de polêmica.
– Oh filhos! oh filhos, acudiu o bom abade aflito. Deixem a sabatina, que
até nem lhes sabe o arrozinho!
Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com
as precauções clássicas:
– Mil oitocentos e quinze! dizia. Disto não se bebe todos os dias.
Para o saborear, depois de o fazer reluzir à luz na transparência
dos copos, repoltreavam-se nas velhas cadeiras de couro; começaram
as saúdes! A primeira foi ao abade, que murmurava: – Muita honra…
muita honra… Tinha os olhos chorosos de satisfação.
– A Sua Santidade Pio IX! gritou então o Libaninho brandindo o cálice.
Ao mártir!
24 Pedreiro-livre: Membro da rnaçonaria. Na origem, essa associação
secreta era constituída por pedreiros, que eram livres da jurisdição
dos bispos (N.E.)
Todos beberam comovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hino de Pio
IX: o abade, prudente, fê-lo calar por causa do hortelão que
no quintal aparava o buxo.
A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natário tornara-se terno,
falava das suas sobrinhas, “as suas duas rosas”, e citava Virgílio,
molhando as castanhas em vinho. Amaro, todo deitado para trás na cadeira,
as mãos nos bolsos, olhava maquinalmente as árvores do jardim,
pensando vagamente em Amélia, nas suas formas; suspirou mesmo com um
desejo dela – enquanto o padre Brito, rubro, queria convencer os republicanos
a marmeleiro.
– Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou entusiasmado o Libaninho.
Mas Natário começara a discutir com o cônego história
eclesiástica: e, muito questionador, voltou aos seus argumentos vagos
sobre a doutrina da Graça: afirmava que um assassino, um parricida
poderia ser canonizado – se se tivesse revelado o estado de Graça!
Divagava, com frases de escola em que se lhe pegava a língua. Citou
santos que tinham sido escandalosos; outros que pela sua profissão
deviam ter conhecido, praticado, amado o vício. Exclamou com as mãos
na cinta:
– Santo Inácio foi militar!
– Militar? gritou o Libaninho. – E erguendo-se, correndo a Natário,
lançando-lhe um braço ao pescoço com uma ternura pueril
e avinhada: – Militar? E que era ele? Que era ele, o meu devoto Santo Inácio?
Natário repeliu-o:
– Deixe-me, homem! Era sargento de caçadores.
Houve uma enorme risada.
O Libaninho ficara extático.
– Sargento de caçadores! dizia erguendo as mãos num ímpeto
beato. Meu rico Santo Inácio! Bendito e louvado seja ele por toda a
eternidade!
E então o abade propôs que fossem tomar café para debaixo
da parreira.
Eram três horas. Ao erguer-se todos cambaleavam um pouco, arrotando
formidavelmente, com risadas espessas; só Amaro tinha a cabeça
lúcida, as pernas firmes – e sentia-se muito terno.
– Pois agora, colegas, disse o abade sorvendo o último gole de café,
o que está a calhar é um passeio à fazenda.
– Para esmoer, rosnou o cônego erguendo-se com dificuldade. vamos lá
à fazenda do abade!
Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito de carros. O dia estava
muito azul, dum sol tépido. A vereda seguia entre valados eriçados
de silvas, para além as terras lisas estendiam-se cobertas de restolho;
a espaços as oliveiras destacavam, com grande nitidez, na sua folhagem
fina; para o horizonte arredondavam-se colinas cobertas da rama verde-negra
dos pinheiros; havia um grande silêncio; só às vezes,
ao longe, num caminho, um carro chiava. E naquela serenidade da paisagem e
da luz, os padres iam caminhando devagar, tropeçando um pouco, de olho
aceso, estômago enfartado, chacoteando e achando a vida boa.
O cônego Dias e o abade, de braço dado, caturravam. O Brito,
ao lado de Amaro, jurava que havia de beber o sangue ao morgado da Cumeada.
– Prudência, colega Brito, prudência, dizia Amaro chupando o
cigarro.
E o Brito, com passadas de carretão, rosnava.
– Hei-de comer-lhe os fígados.
O Libaninho atrás, só, cantarolava em falsete:
– Passarinho trigueiro,
Salta cá fora…
Adiante de todos ia o padre Natário: levava a capa no braço,
arrastando pelo chão; a batinha desabotoada por trás deixava
ver o forro imundo do colete; e as suas pernas escanifradas, com as meias
pretas de lã cheias de passagens, faziam bordos que o atiravam contra
o silvado.
E no entanto Brito, com grandes bafos de vinho, roncava:
– Eu só me contentava em agarrar num cajado e correr tudo! tudo! –
e gesticulava com um gesto imenso que abrangia o mundo!
– Tem as asas quebradas,
Não pode agora…
Gania atrás o Libaninho.
Mas pararam de repente: Natário adiante gritava com voz furiosa:
– Seu burro, você não vê? Sua besta!
Era à volta do atalho. Tropeçara com um velho que conduzia
uma ovelha; ia caindo; e ameaçava-o com o punho fechado numa raiva
avinhada.
– Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente o homem.
– Sua besta! berrava Natário com os olhos chamejantes. Que o racho!
O homem balbuciava, tinha tirado o chapéu; viam-se os seus cabelos
brancos; parecia ser um antigo criado da lavoura envelhecido no trabalho;
era talvez avô – e curvado, vermelho de vergonha, encolhia-se com as
sebes para deixar passar no estreito caminho de carros os senhores padres
joviais e excitados da vinhaça!
Amaro não os quis acompanhar até à fazenda. Ao fim da
aldeia, no cruzeiro, tomou pelo caminho de Sobros, voltou para Leiria.
– Olhe que é uma légua à cidade, dizia o abade. Eu mando-lhe
aparelhar a égua, colega.
– Qual história, abade, a perninha é rija! – e, traçando
alegremente a capa, partiu cantarolando o Adeus…
Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido dum
muro de quinta coberto de musgos e eriçada no alto de luzidios fundos
de garrafas. Quando Amaro chegou próximo ao portão de carros,
baixo e pintado de vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande
vaca malhada; Amaro divertido espicaçou-a com o guarda-chuva; a vaca
trotou balouçando a papeira – e Amaro ao voltar-se viu Amélia,
ao portão, que saudava, dizendo toda risonha:
– Então está-me a espantar o gado, senhor pároco?
– É a menina! Que milagre é este?
Ela fez-se um pouco vermelha:
– Vim à quinta com a D. Maria da Assunção. Vim dar uma
vista de olhos à fazenda.
Ao pé de Amélia uma rapariga acamava couves numa canastra.
– Então esta é que é a quinta da D. Maria?
E Amaro deu um passo para dentro do portão.
Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra doce, estendia-se até
à casa que se entrevia no fundo, branquejando ao sol.
– É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se também
por aqui. Vá, Joana, avia-te!
A rapariga pôs a canastra à cabeça, deu as boas-tardes,
meteu pelo caminho de Sobros, batendo muito os quadris.
– Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade, considerava o pároco.
– Venha ver a nossa fazenda! disse Amélia. É uma migalhinha
de terra, mais para fazer uma idéia. Vai-se por aqui mesmo… Olhe,
vamos ter lá baixo com a D. Maria, quer?
– Valeu. Vamos lá à D. Maria, disse Amaro.
Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O chão estava cheio de
folhas secas, e, entre os troncos espaçados, moutas de hortênsias
pendiam abatidas, amareladas dos chuveiros; ao fundo a casa baixa, velha,
de um andar só, assentava pesadamente. Ao longo da parede grandes abóboras
amadureciam ao sol, e no telhado, todo negro do Inverno, esvoaçavam
pombos. Por trás o laranjal formava uma massa de folhagens verde- escuras;
uma nora chiava monotonamente.
Um rapazinho passou com um balde de lavagem.
– Para onde foi a senhora, João? perguntou Amélia.
– Foi pro olival, disse o rapaz com a sua vozinha arrastada. O olival era
longe, no fundo da quinta: havia ainda grandes lamas, não se podia
ir lá sem tamancos.
– Vai-se a gente sujar toda, disse Amélia. Deixar lá a D. Maria,
hem? Vamos nós ver a quinta… Por aqui, senhor pároco…
Estavam defronte dum velho muro onde cresciam clematites. Amélia abriu
uma porta verde; e por três degraus de pedra desconjuntados desceram
a uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do muro cresciam rosas de
todo o ano; do outro lado, por entre os pilares de pedra que sustentavam a
latada e os pés torcidos das cepas, via-se, batido de luz, com tons
amarelados, um grande campo de erva; os tetos baixos do curral coberto de
colmo destacavam ao longe em escuro, e desse lado um fumozinho leve e branco
perdia-se no ar muito azul.
Amélia a cada momento parava, explicava a quinta. – Ali ia semear-
se cevada; além havia de ver o cebolinho, estava muito bonito…
– Ah! a D. Maria da Assunção traz isto muito bem tratado!
Amaro ouvia-a falar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado; a sua
voz naquele silêncio dos campos parecia-lhe mais rica, mais doce; o
grande ar dava-lhe uma cor mais picante às faces; o seu olhar rebrilhava.
Para saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que
ele entreviu, perturbou-o como um começo da sua nudez.
Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido dum regueiro. Amélia
riu muito do pároco, que tinha medo dos sapos. Ele então exagerou
os seus sustos. Ó menina Amélia, haveria víboras? Ele
roçava-se por ela, afastando-se das ervas altas.
– Vê aquele valado? Pois para o lado de lá é a nossa
fazenda. Entra- se pela cancela, vê? Mas veja lá se está
cansado! Que o senhor parece-me que não é grande caminhador…
Ai, um sapo!
Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o ombro. Ela empurrou-o docemente, e com
um riso cálido:
– Seu medroso! seu medroso!
Estava toda contente, toda viva. Falava na sua fazenda com uma vaidadezinha,
satisfeita de entender da lavoura, de ser proprietária. – A cancela
está fechada, parece – disse Amaro.
– Está, fez ela. – Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava fechada!
Que pena! E abalava, impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes
ombreiras de madeira encravadas na espessura do silvado.
– Foi o caseiro que levou a chave!
Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a voz: –
Antônio! Antônio!
Ninguém respondeu.
– Anda lá para o fundo da quinta! disse ela. Que seca! Se o senhor
pároco quisesse, aqui adiante pode-se passar. Há uma abertura
no valado, chamam-lhe o salto da cabra. Pode a gente saltar para o outro lado.
E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:
– Quando eu era pequena nunca passava pela cancela! Saltava sempre por ali.
E cada trambolhão, quando o chão estava resvaladiço com
a chuva! Era um vivo demônio, aqui onde me vê! Ninguém
há-de dizer, senhor pároco, hem? Ai! vou-me a fazer velha! –
E voltando-se para ele, com um risinho onde luzia o esmalte dos dentes:
– Não é verdade? Estou-me a fazer velha, hem?
Ele sorria. Custava-lhe falar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho
do abade, amolecia-o: e a figura dela, os seus ombros, os seus encontros davam-lhe
um desejo contínuo e intenso.
– Aqui está o salto da cabra, disse Amélia parando.
Era uma abertura estreita no valado: a terra do outro lado, mais baixa, estava
toda lamacenta. Via-se dali a fazenda da S. Joaneira: o campo plano estendia-se
até um olival, com a erva fina muito estrelada de pequenos malmequeres
brancos; uma vaca preta, de grandes malhas, pastava; e para além viam-se
tetos aguçados dos casais, onde voavam revoadas de pardais.
– E agora? perguntou Amaro.
– Agora saltar, disse ela rindo.
– Cá vai! exclamou ele.
Traçou a capa, saltou: mas escorregou nas ervas úmidas, – e
imediatamente Amélia, debruçando-se, rindo muito, com grandes
acenos de mãos:
– E agora adeus, senhor pároco, que eu vou ter com a D. Maria. Aí
fica preso na fazenda. Para cima não pode o senhor pular, pela cancela
não pode o senhor passar! É o senhor pároco que está
preso…
– Ó menina Amélia! ó menina Amélia!
Ela cantarolava-lhe, escarnecendo:
Fico sozinha à varanda,
Que o meu bem está na prisão!
Aquelas maneirinhas excitavam o padre – e com os braços erguidos,
a voz cálida:
– Salte, salte!
Ela então fez voz de mimo:
– Ai, tenho medinho! tenho medinho…
– Salte, menina!
– Lá vai! gritou ela bruscamente.
Saltou, foi cair-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se
– e sentindo entre os braços o corpo dela, apertou-a brutalmente e
beijou-a com furor no pescoço Amélia desprendeu-se, ficou diante
dele, sufocada, com a face em brasa, compondo na cabeça e em roda do
pescoço, com as mãos trêmulas, as pregas da manta de lã.
Amaro disse-lhe:
– Ameliazinha!
Mas ela de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do valado. Amaro,
com grandes passadas, seguiu-a atarantado. Quando chegou à cancela,
Amélia falava ao caseiro, que aparecia com a chave.
Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a parreira.
Amélia adiante palrava com o caseiro; e atrás Amaro, de cabeça
baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amélia parou, fazendo-se
vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:
– Ó Antônio, disse, ensine o portão ao senhor pároco.
Muito boas tardes, senhor pároco.
E através das terras úmidas correu para o fundo da quinta,
para os lados do olival.
A Sra. D. Maria da Assunção ainda lá estava, sentada
numa pedra, tagarelando com o tio Patrício; um bando de mulheres, com
grandes varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.
– Que é isso, tonta? De onde vens tu a correr, rapariga? Credo! que
doida!
– Vim a correr, disse ela toda vermelha, sufocada.
Sentou-se ao pé da velha; e ficou imóvel, com as mãos
caídas no regaço, respirando fortemente, os beiços entreabertos,
os olhos fixos numa abstração. Todo o seu ser se abismava numa
só sensação:
– Gosta de mim! Gosta de mim!
•••
Estava há muito namorada do padre Amaro – e às vezes, só,
no seu quarto, desesperava-se por imaginar que ele não percebia nos
seus olhos a confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas
o ouvia pela manhã pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria
penetrar todo o seu ser sem razão, punha-se a cantarolar com uma volubilidade
de pássaro. Depois via-o um pouco triste. Por quê? Não
conhecia o seu passado; e lembrada do frade de Évora, pensou que ele
se fizera padre por um desgosto de amor. Idealizou-o então: supunha-lhe
uma natureza muito terna, parecia- lhe que da sua pessoa airosa e pálida
se desprendia uma fascinação. Desejou tê-lo por confessor:
como seria estar ajoelhada aos pés dele, no confessionário,
vendo de perto os seus olhos negros, sentindo a sua voz suave falar do Paraíso!
Gostava muito da frescura da sua boca; fazia-se pálida à idéia
de o poder abraçar na sua longa batina preta! Quando Amaro saía,
ia ao quarto dele, beijava a travesseirinha, guardava os cabelos curtos que
tinham ficado nos dentes do pente. As faces abrasavam-se-lhe quando o ouvia
tocar a campainha.
Se Amaro jantava fora com o cônego Dias, estava todo o dia impertinente,
ralhava com a Ruça, às vezes mesmo dizia mal dele, “que
era casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito”. Quando
ele falava de alguma nova confessada, amuava, com ciúme pueril. A sua
antiga devoção renascia, cheia de um fervor sentimental: sentia
um vago amor físico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos
beijos demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o Céu,
porque não os distinguia bem de Amaro, e pareciam-lhe dependências
da sua pessoa. Lia o seu livro de missa pensando nele como no seu Deus particular.
E Amaro não sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ela em
cima o escutava, regulando as palpitações do seu coração
pelas passadas dele, abraçando o travesseiro, toda desfalecida de desejos,
dando beijos no ar, onde se lhe representavam os lábios do pàroco25!
•••
A tarde caía quando D. Maria e Amélia voltaram para a cidade.
Amélia adiante, calada, chibatava a sua burrinha, enquanto D. Maria
da Assunção vinha palrando com o moço da quinta, que
segurava a arreata. Ao passarem junto à Sé tocou a Ave-Maria.
E Amélia, rezando, não podia destacar os olhos das cantarias
da igreja tão grandiosamente erguidas, decerto para que ele ali celebrasse!
Lembravam-lhe então domingos em que o vira, ao repicar dos sinos, dar
a bênção dos degraus do altar-mor: e todos se curvavam,
mesmo as senhoras do morgado Carreiro, mesmo a Sra. baronesa da Via-Clara
e a mulher do governador civil, tão orgulhosa com o seu nariz de cavalete!
Dobravam-se sob os seus dedos erguidos, e achavam decerto também bonitos
os seus olhos negros! E era ele que a tinha apertado nos braços, ao
pé do valado! Sentia ainda no pescoço a pressão cálida
dos seus beiços: uma paixão flamejou como uma chama por todo
o seu ser: largou a arreata do burrinho, apertou as mãos contra o peito,
e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma numa devoção:
– Oh, Nossa Senhora das Dores, minha madrinha, faz que ele goste de mim!
No adro lajeado cônegos passeavam, conversando. A botica defronte já
tinha luz, os bocais reluziam; e por detrás da balança a figura
do farmacêutico Carlos, com o seu boné bordado a miçanga,
movia-se majestosamente.
25 0 sensualismo místico de Amélia leva-a a indefinir as fronteiras
entre matéria e espírito. (N.E.)
Capítulo VIII
O padre Amaro voltara para casa aterrado.
– E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o coração
encolhido.
Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! Não podia continuar
ali, na mesma familiaridade, depois de ter tido “aquele atrevimento com
a pequena”.
Que ela não ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-a
talvez o respeito eclesiástico, a delicadeza para com o hóspede,
a atenção para com o amigo do cônego. Mas podia contar
à mãe, ao escrevente… Que escândalo! E via o senhor
chantre, traçando a perna e fitando-o, – que era a sua atitude de repreensão
– dizer-lhe com pompa: – “São esses desregramentos que desonram
o sacerdócio. Não se comportaria de outro modo um Sátiro
no monte Olimpo!” – Poderiam desterrá-lo outra vez para alguma
freguesia da serra!… Que diria a Sra. condessa de Ribamar?
E depois, se persistisse em vê-la na intimidade, ter constantemente
presentes aqueles olhos negros, o sorriso cálido que lhe fazia uma
covinha no queixo, a curva daquele peito – a sua paixão, crescendo
surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, torná-lo-ia
doido, “podia fazer alguma asneira”!
Decidiu-se então a ir falar ao cônego Dias: a sua natureza fraca
necessitava sempre receber forças duma razão, duma experiência
alheia: costumava consultar ordinariamente o cônego que, pelo hábito
da disciplina eclesiástica, ele julgava mais inteligente por ser seu
superior na hierarquia; e não perdera, desde o seminário, a
sua dependência de discípulo. Depois, se quisesse arranjar uma
casa e uma criada para ir viver só, necessitava o auxílio do
cônego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candeeiro de azeite esmorecia com um morrão
avermelhado. Os tições da braseira, cobertos duma pulverização
de cinza, revermelhavam vagamente. E o cônego, sentado numa cadeira
de braços, com o capote pelos ombros, os pés embrulhados num
cobertor, amodorrado no calor do lume, com o Breviário sobre os joelhos,
dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada dormitava como ele.
Aos passos de Amaro o cônego abriu muito devagar os olhos, rosnou:
– Ia adormecendo, hem!
– É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher.
Então que preguiça é essa?
– Ah! é você? disse o cônego com um enorme bocejo. Cheguei
tarde de casa do abade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto…
Então que é feito?
– Vim por aqui.
– Pois o abade deu-nos um rico jantar. A cabidela estava de mão- cheia!
Eu carreguei-me um bocado, disse o cônego rufando com os dedos na capa
do Breviário.
Amaro, sentado ao pé dele, remexia devagar o brasido:
– Sabe você, padre-mestre? disse ele de repente. Ia acrescentar: –
Aconteceu-me um caso! – Mas reteve-se, murmurou: – Estou hoje esquisito; tenho
andado ultimamente fora dos eixos…
– Você, com efeito, anda amarelo, disse o cônego, considerando-o.
Purgue-se, homem!
Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.
– Sabe? estou com idéia de mudar de casa.
O cônego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos sonolentos:
– Mudar de casa! Ora essa! por quê?
O padre Amaro chegou a cadeira para ele, e falando baixo:
– Você percebe… Tenho estado a pensar, é assim esquisito estar
em casa de duas mulheres, com uma rapariga…
– Ora, histórias! Que me vem você contar? Você é
hóspede… Deixe- se disso, homem! É como quem está na
hospedaria.
– Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo…
E suspirou; desejava que o cônego o interrogasse, facilitasse as confidências.
– Então só hoje é que pensa nisso, Amaro?!
– É verdade, tenho estado a pensar hoje nisto. Tenho as minhas razões.
– Ia a dizer: – Fiz uma tolice, – mas acanhou-se.
O cônego olhou para ele um momento:
– Homem! seja franco!
– Sou.
– Você acha aquilo caro?
– Não! disse o outro com uma negação impaciente.
– Bem, então é outra coisa…
– É. Você que quer? – E num tom magano, com que julgou agradar
ao cônego: – A gente também gosta do que é bom…
– Bem, bem, disse o cônego rindo, percebo. Você, como eu sou
amigo da casa, quer-me dizer por bons modos que tem nojo de tudo aquilo!
– Tolice! disse Amaro, erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.
– Oh, homem! exclamou o cônego abrindo os braços. Você
quer sair da casa? Por alguma é! Ora a mim parece-me que melhor…
– É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes
passadas pela sala. Mas estou com esta ferrada! Veja você se me arranja
uma casita barata com alguma mobília… Você entende melhor dessas
coisas…
O cônego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coçando
devagar o queixo.
– Uma casita barata, rosnou por fim. Eu verei, eu verei… talvez.
– Você compreende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao cônego.
A casa da S. Joaneira…
Mas a porta rangeu, D. Josefa Dias entrou: e depois de conversarem sobre
o jantar do abade, o catarro da pobre D. Maria da Assunção,
a doença de fígado que ia minando o engraçado cônego
Sanches – Amaro saiu, quase contente agora de se não “ter desabotoado
com o padre-mestre”.
O cônego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquela resolução
de Amaro de deixar a casa da S. Joaneira era bem-vinda: quando ele o trouxera
de hóspede para a Rua da Misericórdia, combinara com a S. Joaneira
diminuir-lhe a mesada que havia anos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas
arrependeu-se logo: a S. Joaneira, se não tinha hóspede, dormia
só no primeiro andar: o cônego podia então saborear livremente
os carinhos da sua velhota;- e Amélia na sua alcova, em cima, era alheia
a este “conchegozinho”. Quando veio o padre Amaro, a S. Joaneira
cedeu-lhe o quarto, e dormia numa cama de ferro ao pé da filha: e o
cônego então reconheceu, como ele disse, desconsolado – “que
aquele arranjo tinha estragado tudo”. Para gozar as doçuras da
sesta com a sua S. Joaneira, era necessário que Amélia jantasse
fora, que a Ruça estivesse na fonte, outras combinações
importunas: e ele, cônego do cabido, na egoísta velhice, quando
precisava ter recato com a sua saúde, via-se obrigado a esperar, a
espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e higiênicos as dificuldades
dum colegial que ama a senhora professora. Ora se Amaro saísse, a S.
Joaneira descia ao seu quarto, no primeiro andar; vinham as antigas comodidades,
as tranqüilas sestas. É verdade que tinha de dar a antiga mesada…
Daria a mesada!
– Que diabo! ao menos está um homem à sua vontade, resumiu
ele.
– Que está para aí o mano a falar só? perguntou a Sra.
D. Josefa, despertando do quebranto em que ia caindo, ao pé do lume.
– Estava cá a ma1ucar como hei-de castigar a carne na quaresma – disse
o cônego com um riso grosso.
•••
A essa hora a Ruça chamava o padre Amaro para o chá: e ele
subia devagar, com o coração pequenino, receando encontrar a
S. Joaneira muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só
Amélia – que tendo-lhe sentido os passos na escada tomara rapidamente
a costura, e, com a cabeça muito baixa, dava grandes agulhadas, vermelha
como o lenço que abainhava para o cônego.
– Muito boa noite, menina Amélia.
– Muito boa noite, senhor pároco.
Amélia costumava sempre ter um olá! ou um ora viva! muito amável;
aquela secura aterrou-o; disse-lhe logo muito perturbado:
– Menina Amélia, eu peço-lhe que me perdoe… Foi um atrevimento…
Eu nem soube o que fiz… Mas acredite… Estou resolvido a sair daqui. Até
já pedi ao Sr, cônego Dias que me arranjasse casa…
Falava com o rosto baixo – e não via Amélia erguer os olhos
para ele, surpreendida e toda desconsolada.
Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braços:
– Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o Sr. padre Natário:
grande jantar! Conte lá, conte lá!
Amaro teve de dizer os pratos, as pilhérias do Libaninho, a discussão
teológica; depois falaram da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido
a dizer à S. Joaneira que ia deixar a casa, – o que era, coitada, para
a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dial
Na manhã seguinte o cônego foi a casa de Amaro, pela manhã,
antes de ir ao coro. O pároco fazia a barba à janela:
– O1á, padre-mestre! Que há de novo?
– Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã…
Há uma casita lá para os meus lados, que é um achado.
Era do major Nunes, que vai mudado para o 5.
Aquela precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente
o fio à navalha:
– Tem mobília?
– Tem mobília, tem louças, tem roupas, tem tudo.
– Então…
– Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós,
Amaro, você tem razão. Estive a pensar no caso… É melhor
para você viver só. De modo que vista-se, e vamos ver a casita.
Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira carunchosa:
a mobília, como disse o cônego, “podia passar a veteranos”;
algumas litografias desbotadas pendiam lugubremente de grandes pregos negros;
e o imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados,
as paredes riscadas de fósforos, e até sobre um poial da janela
duas peúgas quase negras.
Amaro aceitou a casa. E nessa mesma manhã o cônego ajustou-lhe
uma criada, a Sra. Maria Vicência, pessoa muito devota, alta e magra
como um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou
o cônego Dias) era a própria irmã da famosa Dionísia!
A Dionísia fora outrora a Dama das Camélias26, a Ninon de Lenclos,
a Manon de Leiria: gozara a honra de ser concubina de dois governadores civis
e do terrível morgado da Sertejeira; e as paixões frenéticas
que inspirara tinham sido para quase todas as mães de família
de Leiria causa de lágrimas e de fanicos. Agora engomava para fora,
encarregava-se de empenhar objetos, entendia muito de partos, protegia “o
rico adulteriozinho” segundo a singular expressão do velho D.
Luís da Barrosa, cognominado o infame, fornecia lavradeirinhas aos
senhores empregados públicos, sabia toda a história amorosa
do distrito. E via-se sempre na rua a Dionísia com o seu xale de xadrez
traçado, o pesado seio tremendo dentro dum chambre sujo, o passinho
discreto e os antigos sorrisos – mas a que faltavam já os dois dentes
de diante.
O cônego logo nessa tarde deu parte à S. Joaneira da resolução
de Amaro. Foi um grande espanto para a excelente senhora! Queixou-se, com
amargura, da ingratidão do senhor pároco.
O cônego tossiu grosso e disse:
– Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo por quê:
é que este arranjo do quarto em cima, etc., está-me a arrasar
a saúde.
Deu outras razões de prudência higiênica, e acrescentou
passando-lhe com bondade os dedos pelo pescoço:
– E o que é perder a conveniência, não se aflija a senhora!
Eu darei para a panela como dantes; e como a colheita foi boa porei mais meia
moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma beijoca, Augustinha,
sua brejeira! E ouça, como-lhe cá as sopas.
Amaro no entanto embaixo ia emalando a sua roupa. Mas a cada momento parava,
dava um ai triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama fofa, a mesa com
a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita onde ele lia o Breviário,
ouvindo, por cima, cantarolar Amélia.
– Nunca mais! pensava. Nunca mais!
Adeus as boas manhãs passadas ao pé dela, vendo-a costurar!
Adeus as alegres sobremesas, que se prolongavam à luz do candeeiro!
Adeus os chás, ao pé da braseira, quando o vento uivava fora
e cantavam as frias goteiras! Tudo tinha acabado!
26 A Dama das Camélias (1847): Romance de Alexandre Dumas, filho (1824-1895)
O escritor francês criticou a hipocrisia social e defendeu a igualdade
sexual entre o homem e a mulher. (N.E.)
A S. Joaneira e o cônego apareceram então à porta do
quarto. O cônego resplandecia; e a S. Joaneira disse, muito magoada:
– Já sei, já sei, seu ingrato!
– É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os ombros tristemente.
Mas há razões… Eu sinto…
– Olhe, senhor pároco, disse a S. Joaneira, não se ofenda com
o que lhe vou dizer, mas eu já lhe queria como filho… e levou o lenço
aos olhos.
– Tolices, exclamou o cônego. Pois então ele não pode
vir aqui em amizade, passar as noites para o cavaco, tomar o seu café?…
O homem não vai para o Brasil, senhora!
– Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era
tê-lo de portas adentro!
Enfim, ela bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor…
Fez-lhe então grandes recomendações sobre a lavadeira,
que mandasse buscar o que quisesse, louças, lençóis…
– E veja lá, não lhe esqueça alguma coisa, senhor pároco!
– Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado.
E continuando a arrumar a sua roupa, o pároco desesperava-se agora
contra a resolução que tomara. A pequena evidentemente não
tinha aberto bico! Para que sairia então daquela casa tão barata,
tão confortável, tão amiga? E odiava o cônego pelo
seu zelo tão precipitado.
O jantar foi triste. Amélia, decerto para explicar a sua palidez,
queixava-se de dores na cabeça. Ao café o cônego quis
a sua “dose de música”; e Amélia, ou maquinalmente
ou com intenção, disse a canção querida:
Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado!
Soa a hora, o momento fadado.
É forçoso deixar-te e partir!
Então, àquela chorosa melodia repassada das tristezas da separação,
Amaro sentiu-se tão perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir
encostar o rosto à vidraça, esconder as duas lágrimas
que irreprimivelmente lhe saltavam das pálpebras. Os dedos de Amélia
embrulhavam-se também no teclado; até a mesma S. Joaneira disse:
– Oh! filha, toca outra coisa, credo!
Mas o cônego, erguendo-se pesadamente:
– Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou consigo
até a Rua das Sousas…
Amaro então quis dizer adeus à idiota; mas depois de um forte
acesso de tosse, a velha dormia, muito fraca.
– Deixá-la sossegada, disse Amaro. E apertando a mão á
S. Joaneira: – Muito obrigado por tudo, minha senhora, acredite…
Calou-se, com um soluço na garganta.
A S. Joaneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.
– Oh, senhora! disse o cônego rindo-se, já há bocado
lhe disse, o homem não vai para as Índias!
– A gente é pela amizade que lhes ganha, choramingou a S. Joaneira.
Amaro tentou gracejar. Amélia, muito branca, mordia o beicinho.
Enfim Amaro desceu: e o João Ruço, que na sua chegada a Leiria
lhe trouxera o baú para a Rua da Misericórdia, muito bêbedo,
cantarolando o Bendito, – levava-lho agora para a Rua das Sousas, bêbedo
também, mas trauteando o Rei-chegou.
•••
Quando Amaro, nessa noite, se viu só naquela casa tristonha, sentiu
uma melancolia tão pungente e um tédio tão negro da vida,
que, com a sua natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar
ali a morrer!
Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro,
pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho com
o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatório,
a bacia e o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da
janela; tudo ali cheirava a mofo; e fora, na rua negra, caia sem cessar a
chuva triste. Que existência! E seria sempre assim!…
Desesperou-se então contra Amélia: acusou-a, com o punho fechado,
das comodidades que perdera, da falta de mobília, da despesa que ia
ter, da solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração
devia ter vindo ao seu quarto, dizer-lhe: Sr. padre Amaro, para que sai de
casa? Eu não estou zangada! – Porque enfim quem irritara o seu desejo?
Ela, com as suas maneirinhas temas, os seus olhinhos adocicados! Mas não,
deixara-o ema. lar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo tocar
com estrondo a valsa do Beijo!
Jurou então não voltar a casa da S. Joaneira. E, a grandes
passadas pelo quarto, pensava – no que havia de fazer para humilhar Amélia.
Q quê? Desprezá-la como uma cadela! Ganhar influência na
sociedade devota de Leiria, ser muito do senhor chantre: afastar da Rua da
Misericórdia o cônego e as Gansosos; intrigar com as senhoras
da boa roda para que se afastassem dela, com secura, no altar-mor, à
missa do domingo; dar a entender que a mãe era uma prostituta… Enterrá-la!
cobri-la de lama! E na Sé, ao sair da missa, regalar-se de a ver passar
encolhida no seu mantelete preto, escorraçada de todos, enquanto ele,
à porta, de propósito, conversaria com a mulher do governador
civil e seria galante com a baronesa de Via-Clara!… Depois pregaria um grande
sermão, na quaresma, e ela ouviria dizer, na arcada, nas lojas: “Grande
homem, o padre Amaro!”. Tornar-se-ia ambicioso, intrigaria, e, protegido
pela Sra. condessa de Ribamar, subiria nas dignidades eclesiásticas:
o que pensaria ela quando o visse um dia bispo de Leiria, pálido e
interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos incensadores,
ao longo da nave da Sé, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os
roucos cantos do órgão? E ela o que seria então? Uma
magra criatura murcha, embrulhada num xale barato! E o Sr. João Eduardo,
o escolhido de agora, o esposo? Seria um pobre amanuense mal pago, com uma
quinzena roçada, os dedos queimados do cigarro, curvado sobre o seu
papel almaço, imperceptível na terra, adulando alto e invejando
baixo! E ele, bispo, na vasta escadaria hierárquica que sobe até
ao Céu, estaria já muito para cima dos homens, na zona de luz
que faz a face de Deus-Padre! – E seria par do reino, e os padres da sua diocese
tremeriam de o ver franzir a testa!
Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
Que faria ela àquela hora? pensava. Costurava decerto, na sala de
jantar: estava o escrevente: jogavam a bisca, riam – ela roçava-lhe
talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa. Recordou o seu pé,
o bocadinho da meia que vira quando ela saltava as lamas na quinta, e essa
curiosidade inflamada subia pela curva da perna até ao seio, percorrendo
belezas que suspeitava… O que ele gostava daquela maldita! E era impossível
obtê-la! E todo o homem feio e estúpido podia ir à Rua
da Misericórdia, pedi-la à mãe, vir à Sé
dizer-lhe: “Senhor pároco, case-me com esta mulher”, e beijar,
sob a proteção da Igreja e do Estado, aqueles braços
e aquele peito! Ele não. Era padre! Fora aquela infernal pega da marquesa
de Alegros!…
Abominava então todo o mundo secular – por lhe ter perdido para sempre
os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da participação
nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação,
na idéia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens.
Aquele miserável escrevente podia casar e possuir a rapariga – mas
que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia
o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?… – E repastava-se
deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos sacerdotais. Mas
vinha-lhe bem depressa a desconsoladora idéia que esse domínio
só era válido na região abstrata das almas; nunca o poderia
manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da
Sé – mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um
mundo irreligioso reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha
influência sobre almas de beatas… E era isto que lamentava, esta diminuição
social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico,
limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos
homens… O que lhe faltava era a autoridade dos tempos em que a Igreja era
a nação e o pároco dono temporal do rebanho. Que lhe
importava, no seu caso, o direito místico de abrir ou fechar as portas
do Céu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou fechar a porta
das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amélias tremessem
da sombra da sua batina… Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar
das vantagens que dá a denúncia e dos terrores que inspira o
carrasco, e ali naquela vila, sob a jurisdição da sua Sé,
fazer estremecer, à idéia de castigos torturantes, aqueles que
aspirassem a realizar felicidades – que lhe eram a ele interditas; e pensando
em João Eduardo e em Amélia; lamentava não poder acender
as fogueiras da Inquisição! – Assim aquele inofensivo moço
tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão
contrariada, ambições grandiosas de tirania católica:
– porque todo o padre, o mais boçal, tem um momento em que é
penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento místico
ou nas suas ambições de dominação universal: todo
o subdiácono se julga uma hora capaz de ser santo ou de ser papa: não
há seminarista que não tenha, durante um instante, aspirado
com ternura à caverna no deserto em que S. Jerônimo, olhando
o céu estrelado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça, como
um abundante rio de leite: e o abade pançudo que à tardinha,
à varanda, palita o dente furado saboreando o seu café com um
ar paterno, traz dentro em si os indistintos restos dum Torquemada27.
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