I
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O Guadamelato é uma Ribeira que, descendo das solidões mais agras da Serra Morena, vem, através de um território montanhoso e selvático, desaguar no Guadalquivir, pela margem direita, pouco acima de Córdova. Houve tempo em que nestes desvios habitou uma densa população: foi nas eras do domínio sarraceno em Espanha. Desde o governo do amir Abul-Khatar o distrito de Córdova fora distribuído às tribos árabes do Iemem e da Síria, as mais nobres e mais numerosas entre todas as raças da África e da Ásia que tinham vindo residir na Península por ocasião da conquista ou depois dela. Às famílias que se estabeleceram naquelas encostas meridionais das longas serranias chamadas pelos antigos Montes Marianos conservaram por mais tempo os hábitos erradios dos povos pastores. Assim, no meado do décimo século, posto que esse distrito fosse assaz povoado, o seu aspecto assemelhava-se ao de um deserto; porque nem se descortinavam por aqueles cabeços e vales vestígios alguns de cultura, nem alvejava uni único edifício no meio das colinas rasgadas irregularmente pelos algares das torrentes ou cobertas de selvas bravias e escuras. Apenas, um ou outro dia, se enxergava na extrema de algum almargem virente a tenda branca do pegureiro, que no dia seguinte não se encontraria ali, se, porventura, se buscasse.
Havia, contudo, povoações fixas naqueles ermos; havia habitações humanas, porém não de vivos. Os árabes colocavam os cemitérios nos lugares mais saudosos dessas solidões, nos pendores meridionais dos outeiros, onde o sol, ao pôr-se, estirasse de soslaio os seus últimos raios pelas lájeas lisas das campas, por entre os raminhos floridos das sarças açoitadas do vento. Era ali que, depois do vaguear incessante de muitos anos, eles vinham deitar-se mansamente uns ao pé dos outros, para dormirem o longo sono sacudido sobre as suas pálpebras das asas do anjo Asrael.
A raça árabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra família humana, gostava de espalhar na terra aqueles padrões, mais ou menos sumptuosos, do cativeiro e da imobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independência ilimitada durante a vida.
No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das margens do Guadamelato para o Nordeste, estava assentado um desses cemitérios pertencentes à tribo Iemenita dos Benu-Homair. Subindo pelo rio viam-se alvejar ao longe as pedras das sepulturas, como vasto estendal, e três únicas palmeiras, plantadas na coroa do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemitério Al-tamarah. Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-se um desses brincos da natureza, que nem sempre a ciência sabe explicar; era um cubo de granito de desconforme dimensão, que parecia ter sido posto ali pelos esforços de centenares de homens, porque nada o prendia ao solo. Do cimo desta espécie de atalaia natural descortinavam-se para todos os lados vastos horizontes.
Era um dia à tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras principiavam do lado do Leste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado na borda do rochedo quadrangular, um árabe dos Benu-Homair, armado da sua comprida lança, volvia olhos atentos, ora para o lado do Norte, ora para o de Oeste: depois, sacudia a cabeça com um sinal negativo, inclinando-se para o lado oposto da grande pedra. Quatro sarracenos estavam ali, também, assentados em diversas posturas e em silêncio, o qual só era interrompido por algumas palavras rápidas, dirigidas ao da lança, a que ele respondia sempre do mesmo modo com o seu menear de cabeça.
“Al-barr, – disse, por fim, um dos sarracenos, cujo trajo e gesto indicavam uma grande superioridade sobre os outros – parece que o caide de Chantaryn 1 esqueceu a sua injúria, como o wali de Zarkosta 2 a sua ambição de independência. Até os partidários de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas vezes vencidos por meu pai, não podem acreditar que Abdallah realize as promessas que me induziste a fazer-lhes.”
“Amir Al-melek 3 – replicou Al-barr – ainda não é tarde: os mensageiros podem ter sido retidos por algum sucesso imprevisto. Não creias que a ambição e a vingança adormeçam tão facilmente no coração humano. Dize, Al-athar, não te juraram eles pela santa Kaaba 4 que os enviados com a notícia da sua rebelião e da entrada dos cristãos chegariam hoje a este lugar aprazado, antes de anoitecer?
“Juraram – respondeu Al-athar -; mas que fé merecem homens que não duvidam de quebrar as promessas solenes feitas ao califa e, além disso, de abrir o caminho aos infiéis para derramar o sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que falhassem as esperanças que pões nos teus ocultos aliados. Oxalá não tivesse de tingir o sangue as ruas de Kórthoba 5, e não houvera de ser o supedâneo do trono que ambicionas o túmulo de teu irmão!”
Al-athar cobriu a cara com as mãos, como se quisesse esconder a sua amargura. Abdallah parecia comovido por duas paixões opostas. Depois de se conservar algum tempo em silêncio, exclamou:
“Se os mensageiros dos levantados não chegarem até o anoitecer, não falemos mais nisso. Meu irmão Al-hakem acaba de ser reconhecido sucessor do califado: eu próprio o aceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter convosco. Se o destino assim o quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassidéh 6 e que não soubeste acabar, como aquela que debalde tentaste repetir na presença dos embaixadores do Frandjat 7, e que foi causa de caíres no desagrado de meu pai e de Al-hakem e de conceberes esse ódio que alimentas contra eles, o mais terrível ódio deste mundo, o do amor-próprio ofendido.”
Ahmed Al-athar e o outro árabe sorriram ao ouvirem estas palavras de Abdallah. Os olhos, porém, de Al-barr faiscaram de cólera.
“Pagas mal, Abdallah – disse ele com a voz presa na garganta – os riscos que tenho corrido para te obter a herança do mais belo e poderoso Império do Islão. Pagas com alusões afrontosas aos que jogam a cabeça com o algoz para te pôr na tua uma coroa. És filho de teu pai!… Não importa. Só te direi que é já tarde para o arrependimento. Pensas, acaso, que uma conspiração sabida de tantos ficará oculta? No ponto a que chegaste, retrocedendo é que hás-de encontrar o abismo!
No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se advertia o príncipe da arriscada empresa de disputar a coroa a seu irmão Al-hakem. Um grito, porém, do atalaia o interrompeu. Ligeiro como relâmpago, um vulto saíra do cemitério, galgara o cabeço e se aproximara sem ser sentido: vinha envolto num albornoz escuro, cujo capuz quase lhe encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e revolta. Os quatro sarracenos puseram-se em pé de um pulo e arrancaram as espadas.
Ao ver aquele movimento, o que chegara não fez mais do que estender para eles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz: então as espadas baixaram-se, como se corrente elétrica tivesse adormecido os braços dos quatro sarracenos. Al-barr exclamara: -“Al-muulin 8 o profeta ! Al-muulin o santo!…”
“Al-muulin o pecador – interrompeu o novo personagem -; Al-muulin, o pobre fakih 9 penitente e quase cego de chorar as próprias culpas e as culpas dos homens, mas a quem Deus, por isso, ilumina, às vezes, os olhos da alma para antever o futuro ou ler no fundo dos corações. Li no vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O Senhor pesou na balança dos destinos a ti, Abdallah, e a teu irmão Al-hakem. Ele foi achado mais leve. A ti o trono; a ele o sepulcro. Está escrito. Vai; não pares na carreira, que não te é dado parar! Volta a Kórthoba. Entra no teu palácio Merwan; é o palácio dos califas da tua dinastia. Não foi sem mistério que teu pai to deu por morada. Sobe ao sótão 10 da torre. Ali acharás cartas do caide de Chantaryn e delas verás que nem ele, nem o wali de Zarkosta nem os Benu-Hafsun faltam ao que te juraram!”
“Santo fakih – replicou Abdallah, crédulo, como todos os muçulmanos daqueles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado – creio o que dizes, porque nada para ti é oculto. O passado, o presente, o futuro domina-los com a tua inteligência sublime. Asseguras-me o triunfo; mas o perdão do crime podes tu assegurá-lo?”
“Verme, que te crês livre! – atalhou com voz solene o fakih. – Verme, cujos passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frágeis instrumentos nas mãos do destino, e que te crês autor de um crime! Quando a frecha despedida do arco fere mortalmente o guerreiro, pede ela, acaso, a Deus perdão do seu pecado? Átomo varrido pela cólera de cima contra outro átomo, que vais aniquilar, pergunta, antes, se nos tesouros do Misericordioso há perdão para o orgulho insensato!”
Fez então uma pausa. A noite descia rápida. Ao lusco-fusco ainda se viu sair da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que apontava para as bandas de Córdova. Nesta postura, a figura do fakih fascinava. Coando pelos lábios as sílabas, ele repetiu três vezes:
“Para Merwan!”
Abdallah abaixou a cabeça e partiu vagarosamente, sem olhar para trás. Os outros sarracenos seguiram-no. Al-muulin ficou só.
Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Córdova; se vivêsseis, porém, naquela época e o perguntásseis nessa cidade de mais de um milhão de habitantes, ninguém vo-lo saberia dizer. Era um mistério a sua pátria, a sua raça, donde viera. Passava a vida pelos cemitérios ou nas mesquitas. Para ele o ardor da canícula, a neve ou as chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras vezes se via que não fosse lavado em lágrimas. Fugia das mulheres, como de um objeto de horror. O que, porém, o tornava geralmente respeitado ou, antes, temido, era o dom de profecia, o qual ninguém lhe disputava. Mas era um profeta terrível, porque as suas predições recaíam unicamente sobre futuros males. No mesmo dia em que nas fronteiras do império os cristãos faziam alguma correria ou destruíam alguma povoação, ele anunciava publicamente o sucesso nas praças de Córdova. Qualquer membro da família numerosa dos Benu-Umeyyas caía debaixo do punhal de um assassino desconhecido, na mais remota província do império, ainda das do Moghreb ou Mauritânia, na mesma hora, no mesmo instante, às vezes, ele o pranteava, redobrando os seus choros habituais. O terror que inspirava era tal, que, no meio de um tumulto popular, a sua presença bastava para fazer cair tudo em mortal silêncio. A imaginação exaltada do povo tinha feito dele um santo, santo como o islamismo os concebia; isto é, como um homem cujas palavras e cujo aspecto gelavam de terror.
Ao passar por ele, Al-barr apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz quase imperceptível:
“Salvaste-me!”
O fakih deixou-o afastar e, fazendo um gesto de profundo desprezo, murmurou:
“Eu?! Eu, teu cúmplice, miserável?!”
Depois, alevantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar os dedos rapidamente e, rindo com um rir sem vontade, exclamou:
“Pobres títeres!”
Quando se fartou de representar com os dedos a idéia de escárnio que lhe sorria lá dentro, dirigiu-se, ao longo do cemitério, também para as bandas de Córdova, mas por diverso atalho.
II
Nos paços de Azzahrat, o magnífico alcáçar dos califas de Córdova, há muitas horas que cessou o estrépito de uma grande festa. O luar de noite serena de abril bate pelos jardins, que se dilatam desde o alcâçar até o Guad-al-kebir, e alveja trêmulo pelas fitas cinzentas dos caminhos tortuosos, em que parecem enredados os bosquezinhos de arbustos, os maciços de árvores silvestres, as veigas de boninas, os vergéis embalsamados, onde a laranjeira, o limoeiro e as demais árvores frutíferas, trazidas da Pérsia, da Síria e do Catai, espalham os aromas variados das suas flores. Lá ao longe, Córdova, a capital da Espanha muçulmana, repousa da lida diurna, porque sabe que Abdu-r-rahman III, o ilustre califa, vela pela segurança do império. A vasta cidade repousa profundamente, e o ruído mal distinto que parece revoar por cima dela é apenas o respiro lento dos seus largos pulmões, o bater regular das suas robustas artérias. Das almádenas de seiscentas mesquitas não soa uma única voz de almuadem, e os sinos das igrejas moçárabes guardam também silêncio. Ás ruas, as praças, os azoques ou mercados estão desertos. Somente o murmúrio das novecentas fontes ou banhos públicos, destinados às abluções dos crentes, ajuda o zumbido noturno da sumptuosa rival de Bagdad.
Que festa fora esta que expirara algumas horas antes de nascer a lua e de tingir com a brancura pálida da sua luz aqueles dois vultos enormes de Azzahrat e de Córdova, que olham um para o outro, a cinco milhas de distância, como dois fantasmas gigantes envoltos em largos sudários? Na manhã do dia que findara, Al-hakem, o filho mais velho de Abdu-r-rahman, fora associado ao trono. Os walis, wasires e khatebs da monarquia dos Benu-Umeyyas tinham vindo reconhecê-lo Wali-al-ahdi, isto é, futuro califa do Andaluz e do Moghreb. Era uma idéia, afagada longamente pelo velho príncipe dos crentes, que se realizara, e o júbilo de Abdu-r-rahman havia-se espraiado numa dessas festas, por assim dizer fabulosas, que só sabia dar no século décimo a corte mais polida da Europa, e talvez do mundo, a do soberano sarraceno de Espanha.
O palácio Merwan, junto dos muros de Córdova, distingue-se à claridade duvidosa da noite pelas suas formas maciças e retangulares, e a sua cor tisnada, bafo dos séculos que entristece e santifica os monumentos, contrasta com a das cúpulas aéreas e douradas dos edifícios, com a das almádenas esguias e leves das mesquitas e com a dos campanários cristãos, cuja tez docemente pálida suaviza, ainda mais, o brando raio de luar que se quebra naqueles estreitos panos de pedra branca, donde não se reflete, mas cai na terra preguiçoso e dormente. Como Azzahrat e como Córdova, calado e aparentemente tranqüilo, o palácio Merwan, a antiga morada dos primeiros califas, suscita idéias sinistras, enquanto o aspecto da cidade e da vila imperial unicamente inspiram um sentimento de quietação e paz. Não é só a negridão das suas vastas muralhas a que produz essa apertura de coração que experimenta quem o considera assim solitário e carrancudo; é, também, o clarão avermelhado que ressumbra da mais alta das raras frestas abertas na face exterior da sua torre albarrã, a maior de todas as que o cercam, a que atalaia a campanha. Aquela luz, no ponto mais elevado do grande e escuro vulto da torre, é como um olho de demônio, que contempla colérico a paz profunda do império e que espera ansioso o dia em que renasçam as lutas e as devastações de que por mais de dois séculos fora teatro o solo ensangüentado da Espanha.
Alguém vela, talvez, no paço de Merwan. No de Azzahrat, posto que nenhuma luz bruxoleie nos centenares de varandas, de miradouros, de pórticos, de balcões que lhe arrendam o imenso circuito, alguém vela por certo.
A sala denominada do Califa, a mais espaçosa entre tantos aposentos quantos encerra aquele rei dos edifícios, devera a estas horas mortas estar deserta, e não o está. Dois lampadários de muitos lumes pendem dos artesões primorosamente lavrados, que, cruzando-se em ângulos retos, servem de moldura ao almofadado de azul e ouro que reveste as paredes e o teto. A água de fonte perene murmura, caindo num tanque de mármore construído no centro do aposento, e no topo da sala ergue-se o trono de Abdu-r-rahman; alcatifado dos mais ricos tapetes do país de Fars. Abdu-r-rahman está aí sozinho. O califa passeia de um para outro lado, com olhar inquieto, e de instante a instante pára e escuta, como se esperasse ouvir um ruído longínquo. No seu gesto e meneios pinta-se a mais viva ansiedade; porque o único ruído que lhe fere os ouvidos é o dos próprios passos sobre o xadrez variegado que forma o pavimento da imensa quadra. Passado algum tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do trono, abre-se lentamente, e um novo personagem aparece. No rosto de Abdu-r-rahman, que o vê aproximar, pinta-se inquietação ainda mais viva.
O recém-chegado oferecia notável contraste no seu gesto e vestiduras com as pompas do lugar em que se introduzia e com o aspecto majestoso de Abdu-r-rahman, ainda belo, apesar dos anos e das cãs que começavam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os pés do que entrara apenas faziam um rumor sumido no chão de mármore. Vinha descalço. A sua aljarabia ou túnica era de lá grosseiramente tecida, o cinto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, porém, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum espanto produzia nele aquela magnificência. Não era velho; e, todavia, a sua tez tostada pelas injúrias do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao pé do califa, que ficara imóvel, cruzou os braços e pôs-se a contemplá-lo calado. Abdu-r-rahman foi o primeiro em romper o silêncio:
“Tardaste muito e foste menos pontual do que costumas, quando anuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua é sempre triste, como o teu nome. Nunca entraste a ocultas em Azzahrat, senão para me saciares de amargura: mas, apesar disso, não deixarei de abençoar a tua presença, porque Al-ghafir – dizem-no todos e eu o creio – é um homem de Deus. Que vens anunciar-me, ou que pretendes de mim?”
“Amir Al-muminin 11, que pode pretender de ti um homem cujos dias se passam à sombra dos túmulos, pelos cemitérios, e a cujas noites de oração basta por abrigo o pórtico de um templo; cujos olhos tem queimado o choro, e que não esquece um instante que tudo neste desterro, a dor e o gozo, a morte e a vida, está escrito lá em cima? Que venho anunciar-te?… O mal; porque só mal há na terra para o homem que vive, como tu, como eu, como todos, entre o apetite e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto é, entre os seus eternos e implacáveis inimigos!”
“Vens, pois, anunciar-me uma desventura?!… Cumpra-se a vontade de Deus. Tenho reinado perto de quarenta anos, sempre poderoso, vencedor e respeitado; todas as minhas ambições têm sido satisfeitas; todos os meus desejos realizados; e, todavia, nesta longa carreira de glória e prosperidade, só fui inteiramente feliz catorze dias da minha vida 12. Pensava que este fosse o décimo quinto. Devo, acaso, apagá-lo do registo em que conservo a memória deles e em que já o tinha escrito?”
“Podes apagá-lo – replicou o rude fakih -: podes, até, rasgar todas as folhas brancas que restam no livro. Califa! vês estas faces sulcadas pelas lágrimas? vês estas pálpebras requeimadas por elas? Duro é o teu coração, mais que o meu, se, em breve, as tuas pálpebras e as tuas faces não estão semelhantes às minhas.”
O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pálido de Abdu-r-rahman: os seus olhos serenos, como o céu, que imitavam na cor, tomaram a terrível expressão que ele costumava dar-lhes no revolver dos combates, olhar esse que, só por si, fazia recuar os inimigos. O fakih não se moveu, e pôs-se também a olhar fito para ele.
“Al-muulin, o herdeiro de Benu-Umeyyas pode chorar arrependido dos seus erros diante de Deus; mas quem disser que há neste mundo desventura capaz de lhe arrancar uma lágrima, diz-lhe ele que mentiu!”
Os cantos da boca de Al-ghafir encresparam-se com um quase imperceptível sorriso. Houve um largo espaço de silêncio. Abdu-r-rahman não o interrompeu: o fakih prosseguiu:
“Amir Al-muminin, qual de teus dois filhos amas tu mais? Al-hakem, o sucessor do trono, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah, o sábio e guerreiro Abdallah, o ídolo do povo de Kórthoba?”
“Ah – replicou o califa, sorrindo – já sei o que me queres dizer. Devias prever que a nova viria tarde e que eu havia de sabê-la… Os cristãos passaram a um tempo as fronteiras do Norte e as do Oriente. Meu velho tio Almoddhafer já depôs a espada vitoriosa, e crês necessário expor a vida de um deles aos golpes dos infiéis. Vens profetizar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih, creio em ti, que és aceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrela dos Benu-Umeyyas. Se eu amasse um mais do que outro, não hesitaria na escolha; fora esse que eu mandara não à morte, mas ao triunfo. Se, porém, essas são as tuas previsões, e elas têm de realizar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha, em al-djihed 13 contra os infiéis?”
Al-ghafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor sinal de impaciência. Quando ele acabou de falar, repetiu tranqüilamente a pergunta:
“Califa, qual amas tu mais dos teus dois filhos?”
“Quando a imagem pura e santa do meu bom Al-hakem se me representa no espírito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e inteligente do meu Abdallab, amo-o mais a ele. Como te posso eu, pois, responder, fakih?”
“E, todavia, é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um e outro. Um deles deve morrer na próxima noite, obscuramente, nestes paços, aqui mesmo, talvez, sem glória, debaixo do cutelo do algoz ou do punhal do assassino.”
Abdu-r-rahman recuara ao ouvir estas palavras, o suor começou a descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sentira apertar-se-lhe o coração desde que o fakih começara a falar. A reputação de iluminado de que gozava Al-muulin, o caráter supersticioso do califa e, mais que tudo, o haverem-se verificado todas as negras profecias que num longo decurso de anos ele lhe fizera, tudo contribuía para aterrar o príncipe dos crentes. Com voz trêmula replicou:
“Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condenar no fim da vida a perpétua aflição, a ver correr o sangue de meus filhos queridos, às mãos da desonra ou da perfídia?”
“Deus é grande e justo – interrompeu o fakih. – Acaso, nunca fizeste correr injustamente o sangue? Nunca, por ódio brutal, despedaçaste de dor nenhum coração de pai, de irmão, de amigo?”
Al-muulin tinha carregado na palavra irmão, com um acento singular. Abdu-r-rahman, possuído de mal refreado susto, não atentou por isso.
“Posso eu acreditar tão estranha, direi antes, tão incrível profecia – exclamou ele por fim – sem que me expliques o modo como se deve realizar esse terrível sucesso? Como há-de o ferro do assassino ou do algoz vir, dentro dos muros de Azzahrat, verter o sangue de um dos filhos do califa de Kórthoba, cujo nome, seja-me lícito dizê-lo, é o terror dos cristãos e a glória do islamismo?”
Al-munliu tomou um ar imperioso e solene, estendeu a mão para o trono e disse:
“Assenta-te, califa, no teu trono e escuta-me; porque, em nome da futura sorte do Andaluz, da paz e da prosperidade do império e das vidas e do repouso dos muçulmanos, eu venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te um filho. Sucessor do profeta, ímã 14 da divina religião do Corão, escuta-me; porque é obrigação tua ouvir-me.”
O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro mistério que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Maquinalmente subiu ao trono, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que ele rematava, e, encostando ao punho o rosto desnudado, disse com voz presa: – “Podes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-ghafir!”
Tomando então uma postura humilde e cruzando os braços sobre o peito, Al-ghafir, o triste, começou da seguinte maneira a sua narrativa:
III
“Califa! – começou Al-muulin – tu és grande; tu és poderoso. Não sabes o que é a afronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração nobre e enérgico, se este não pode repeli-la e, sem demora, com o mal ou com a afronta, vingá-la à luz do sol! Tu não sabes o que então se passa na alma desse homem, cujo inteiro desagravo consiste em deixar fugir alguma lágrima furtiva, e que até, às vezes, é obrigado a beijar a mão que o feriu nos seus mais santos afetos. Não sabes o que isto é; porque todos os teus inimigos têm caído diante do alfanje do almogaure ou deixado despenhar a cabeça de cima do cepo do algoz. Ignoras, por isso, o que é o ódio; o que são essas solidões tenebrosas por onde o ressentimento que não pode vir ao gesto se dilata e vive, à espera do dia da vingança. Dir-to-ei eu. Nessa noite imensa, em que se envolve o coração chagado, há uma luz sanguinolenta que vem do inferno e que alumia o espírito vagabundo. Há aí terríveis sonhos, cm que o mais rude e ignorante descobre sempre um meio de desagravo. Imagina como será fácil aos altos entendimentos encontrá-lo! E por isso que a vingança, que parecia morta e esquecida, aparece, às vezes, inesperada, tremenda, irresistível, e morde-nos, surgindo debaixo dos pés, como a víbora, ou despedaça-los, como o leão pulando dentre os juncais. Que lhe importa a ela a majestade do trono, a santidade do templo, a paz doméstica, o ouro do rico, o ferro do guerreiro? Mediu as distâncias, calculou as dificuldades, meditou no silêncio e riu-se de tudo isso!”
E Al-ghafir o triste desatou a rir ferozmente. Abdu-r-rahman olhava para ele espantado.
“Mas – prosseguiu o fakih – às vezes Deus suscita um dos seus servos, um dos seus servos de ânimo tenaz e forte, possuído, também, de alguma idéia oculta e profunda, que se alevante e rompa a trama urdida das trevas. Este homem no caso presente, sou eu. Para bem? Para mal? – Não sei; mas sou! Sou eu que venho revelar-te como se prepara a ruína do teu trono e a destruição da tua dinastia.”
“A ruína do meu trono e a destruição da minha dinastia? – gritou Abdu-r-rahman, pondo-se em pé e levando a mão ao punho da espada. – Quem, a não ser algum louco, imagina que o trono dos Benu-Umeyyas pode, não digo desconjuntar-se, mas apenas vacilar debaixo dos pés de Abdu-r-rahman? Quando, porém, falarás enfim claro, Al-muulin?”
E a cólera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual impassibilidade o fakih prosseguiu:
“Esqueces-te, califa, da tua reputação de prudência e longanimidade. Pelo profeta! Deixa divagar um velho tonto, como eu… Não!… Tens razão… Basta! O raio que fulmina o cedro desce rápido do céu. Quero ser como ele… Amanhã, a estas horas, teu filho Abdallah ter-te-á já privado da coroa para a cingir na própria fronte, e o teu sucessor Al-hakem terá perecido sob um punhal d’assassino. Ainda te encolerizas? Foi acaso demasiado extensa a minha narrativa?”
“Infame! – exclamou Abdu-r-rahman. – Hipócrita, que me tens enganado! Tu ousas caluniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue há-de correr, mas é o teu. Crias que, com essas visagens de inspirado, com esses trajos de penitência, com essa linguagem dos santos, poderias quebrar a afeição mais pura, a de um pai? Enganas-te, Al-ghafir! A minha reputação de prudente, verás que é bem merecida.”
Dizendo isto, o califa ergueu as mãos, como quem ia a bater as palmas. Al-muulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o menor indício de perturbação ou de terror.
“Não chames ainda os eunucos; porque assim é que dás provas de que não a merecias. Conheces que me seria impossível fugir. Para matar ou morrer sempre é tempo. Escuta, pois, o infame, o hipócrita, até o fim. Acreditarias tu na palavra do teu nobre e altivo Abdallah? Bem sabes que ele é incapaz de mentir a seu amado pai, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades possíveis.
O fakih desatara de novo num rir tremulo e hediondo. Meteu a mão no peitilho da aljarabia e tirou, uma a uma muitas tiras de pergaminho: pô-las sobre a cabeça e entregou-as ao califa, que começou a ler com avidez. A pouco e pouco, Abdu-r-rahman foi empalidecendo, as pernas vergaram-lhe e, por fim, deixou-se cair sobre os coxins do trono e, cobrindo a cara com as mãos, murmurou: – “Meu Deus! por que te mereci isto!”
Al-muulin fitara nele um olhar de gerifalte, e nos lábios vagueava-lhe um riso sardônico e quase imperceptível.
Os pergaminhos eram várias cartas dirigidas por Abdallah aos rebeldes das fronteiras do oriente, os Benu-Hafsun, e a diversos xeques bereberes, dos que se haviam domiciliado na Espanha, conhecidos pelo seu pouco afeto aos Benu-Umeyyas. O mais importante, porém, de tudo era uma extensa correspondência com Umeyya-ibn-Ishak, guerreiro célebre e antigo alcaide de Santarém, que, por graves ofensas, passara ao serviço dos cristãos de Oviedo com muitos cavaleiros ilustres da sua clientela. Esta correspondência era completa de parte a parte. Por ela se via que Abdallah contava, não só com os recursos dos muçulmanos seus parciais, mas também com importantes socorros dos infiéis por intervenção de Umeyya. A revolução devia rebentar em Córdova pela morte de Al-hakem e pela deposição de Abdu-r-rahman. Uma parte da guarda do alcáçar de Azzahrat estava comprada. Al-barr, que figurava muito nestas cartas, seria o hajibe ou primeiro ministro do novo califa. Ali se viam, enfim, os nomes dos principais conspiradores e todas as circunstâncias da entrepresa eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém, com aquela individuação que nas suas cartas ele constantemente exigia. Al-muulin falara verdade: Abdu-r-rahman via despregar diante de si a longa teia da conspiração, escrita com letras de sangue pela mão do seu próprio filho.
Durante algum tempo o califa conservou-se, como a estátua da dor, na postura que tomara. O fakih olhava fito para ele com uma espécie de cruel complacência. Al-muulin foi o primeiro que rompeu o silêncio; o príncipe Benu-Umeyya, esse parecia ter perdido o sentimento da vida.
“É tarde – disse o fakih. – Chegará em breve a manhã. Chama os eunucos. Ao romper do sol a minha cabeça pregada nas portas de Azzahrat deve dar testemunho da prontidão da tua justiça. Elevei ao trono de Deus a última oração e estou aparelhado para morrer, eu o hipócrita, eu o infame, que pretendia lançar sementes de ódio entre ti e teu virtuoso filho. Califa, quando a justiça espera, não são boas horas para meditar ou dormir.”
Al-ghafir retomava a sua habitual linguagem, sempre irônica e insolente, e ao redor dos lábios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.
A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman das suas tenebrosas cogitações. Pôs-se em pé. As lágrimas haviam corrido por aquelas faces; mas estavam enxutas. A procela de paixões encontradas tumultuava lá dentro; mas o gesto do príncipe dos crentes recobrara aparente serenidade. Descendo do trono, pegou na mão mirrada de Al-muulin e, apertando-a entre as suas, disse:
“Homem que guias teus passos pelo caminho do céu, homem afeito ao profeta, perdoa as injúrias de um insensato! Cria ser superior à fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas tu esquecê-lo! Agora estou tranqüilo… bem tranqüilo… Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz desígnio. Alguém lho inspirou: alguém verteu naquele ânimo soberbo as vãs e criminosas esperanças de subir ao trono por cima do meu cadáver e do de Al-hakem. Não desejo sabê-lo para o absolver; porque ele já não pode evitar o destino fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pai fui califa, e Deus confiou-me no Andaluz a espada da suprema justiça. Morrerá; mas hão-de acompanhá-lo todos os que o precipitaram no abismo.”
“Ainda há pouco te disse – replicou Al-ghafir – o que pode inventar o ódio que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indiferença e, até, da submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu ofendeste no seu amor-próprio de poeta, que expulsaste de Azzahrat, como um homem sem engenho nem saber, quis provar-te que, ao menos, possuía o talento de conspirador. Foi ele que preparou este terrível sucesso. Hás-de confessar que se houve com destreza. Só numa coisa não: em pretender associar-me aos seus desígnios. Associar-me?…, não digo bem… fazer-me seu instrumento… A mim!… Queria que eu te apontasse ao povo como um ímpio pelas tuas alianças com os amires infiéis de Frandjat. Fingi estar por tudo, e chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei a meu cargo as mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o aliado dos cristãos, o antigo caide de Chantaryn. Foi assim que pude coligir estas provas da conspiração. Loucos! As suas esperanças eram a miragem do deserto… Dos seus aliados, apenas os de Zarkosta e os das montanhas de Al-kibla não foram um sonho. As cartas de Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia 15, tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra de Umeyya, esse é um segredo que, depois de tantas revelações, tu deixarás, califa, que eu guarde para mim… Oh, os insensatos! os insensatos!”
E desatou a rir.
A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução que ameaçava trazer à Espanha muçulmana todos os horrores da guerra civil devia rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário afogá-la em sangue. O longo hábito de reinar, junto ao caráter enérgico de Abdu-r-rahman, fazia com que, nestas crises, ele desenvolvesse de modo admirável todos os recursos que o gênio amestrado pela experiência lhe sugeria. Recalcando no fundo do coração a cruel lembrança de que era um filho que ia sacrificar à paz e à segurança do império, o califa despediu Al-muulin e, mandando imediatamente reunir o diwan, deu largas instruções ao chefe da guarda dos eslavos. Ao romper da manhã todos os conspiradores que residiam em Córdova estavam presos, e muitos mensageiros tinham partido, levando as ordens de Abdu-r-rahman aos walis das províncias e aos generais das fronteiras. Apesar das lágrimas e rogos do generoso Al-hakem, que lutou tenazmente por salvar a vida de seu irmão, o califa mostrou-se inflexível. A cabeça de Abdallah caiu aos pés do algoz na própria câmara do príncipe no palácio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra em que o tinham lançado, evitou assim o suplício.
O dia imediato à noite em que se passou a cena entre Abdu-r-rahman e Al-ghafir que tentamos descrever foi um dia de sangue para Córdova e de luto para muitas das mais ilustres famílias.
IV
Era pelo fim da tarde. Numa alcova do palácio de Azzahrat via-se reclinado um velho sobre as almofadas persas de um vasto almatrá ou camilha. Os seus ricos trajos, orlados de peles alvíssimas, faziam sobressair as feições enrugadas, a palidez do rosto, o encovado dos olhos, que lhe davam ao gesto todos os sintomas de cadáver. Pela imobilidade dir-se-ia que era uma destas múmias que se encontram pelas catacumbas do Egito, apertadas entre as cem voltas das suas faixas mortuárias e inteiriçadas dentro dos sarcófagos de pedra. Um único sinal revelava a vida nessa grande ruína de um homem grande; era o movimento da barba longa e pontiaguda que se lhe estendia, como um cone de neve pendurado sobre o peitilho da túnica de precioso tiraz. Abdu-r-rahman, o ilustre califa dos muçulmanos do ocidente, jazia aí e falava com outro velho, que, em pé defronte dele, o escutava atentamente; mas a sua voz saía tão fraca e lenta que, apesar do silêncio que reinava no aposento, só na curta distância a que estava o outro velho se poderiam perceber as palavras do califa.
O seu interlocutor é uma personagem que o leitor conhecerá apenas reparar no modo como está trajado. A sua vestidura é uma aljarabia de burel cingida de uma corda de esparto. Há muitos anos que nisto cifrou todos os cômodos que aceita à civilização. Está descalço, e a grenha hirsuta e já grisalha cai-lhe sobre os ombros em madeixas revoltas e emaranhadas. A sua tez não é pálida, os seus olhos não perderam o brilho, como a tez e como os olhos de Abdu-r-rahman. Naquela, coriácea e crestada, domina a cor mista de verde-negro e amarelo do ventre de um crocodilo; nestes, cada vez que os volve, fulgura a centelha de paixões ardentes que lhe sussurram dentro d’alma, como a lava prestes a jorrar do vulcão que ainda parece dormir. É Al-muulin, o santo fakih, que vimos salvar, onze anos antes, o califa e o império da intentada revolução de Abdallah.
Tinham, de feito, passado onze anos desde os terríveis sucessos acontecidos naquela noite em que Al-muulin descobrira a conspiração que se urdia, e desde então nunca mais se vira Abdu-r-rahman sorrir. O sangue de tantos muçulmanos vertido pelo ferro do algoz e, sobretudo, o sangue de seu próprio filho descera como a maldição do profeta sobre a cabeça do príncipe dos crentes. Entregue a melancolia profunda, nem as novas de vitórias, nem a certeza do estado florente do império o podiam distrair dela, senão momentaneamente. Encerrado, durante os últimos tempos da vida, no palácio de Azzahrat, a maravilha de Espanha, abandonara os cuidados do governo ao seu sucessor Al-hakem. Os gracejos da escrava Nuirat-eddia, a conversação instrutiva da bela Ayecha, e as poesias de Mozna e de Sofyia eram o único alívio que adoçava a existência aborrida do velho leão do islamismo. Mas, apenas Al-ghafir, o triste, se apresentava perante o califa, ele fazia retirar todos e ficava encerrado horas e horas com este homem, tão temido quanto venerado do povo pela austeridade das suas doutrinas, pregadas com a palavra, mas ainda mais com o exemplo. Abdu-r-rahman parecia inteiramente dominado pelo rude fakih, e, ao vê-lo, qualquer poderia ler no rosto do velho príncipe os sentimentos opostos do terror e do afeto, como se metade da sua alma o arrastasse irresistivelmente para aquele homem, e a outra metade o repelisse com repugnância invencível. O mistério que havia entre ambos ninguém o podia entender.
E, todavia, a explicação era bem simples: estava no caráter extremamente religioso do califa, na sua velhice e no seu passado de príncipe absoluto, situação em que são fáceis grandes virtudes e grandes crimes. Habituado à lisonja, a linguagem áspera e altivamente sincera de Al-muulin tivera, a princípio, o atrativo de ser para ele inaudita; depois, a reputação de virtude de Al-ghafir, a crença de que era um profeta, a maneira por que, para o salvar e ao império, arrostara com a sua cólera e provara desprezar completamente a vida, tudo isto fizera com que Abdu-r-rahman visse nele, como o mais crédulo dos seus súditos, um homem predestinado, um verdadeiro santo. Sentindo avizinhar a morte, Abdu-r-rahman tinha sempre diante dos olhos que esse fakih era como o anjo que devia conduzi-lo pelos caminhos da salvação até o trono de Deus. Cifrava-se nele a esperança de um futuro incerto, que não podia tardar, e, assim, o espírito do monarca, enfraquecido pelos anos, estudava ansiosamente a mínima palavra, o menor gesto de Al-muulin; prendia-se ao monge muçulmano, como a hera antiga ao carvalho em cujo tronco se alimenta, se ampara, e vai trepando para o céu. Mas, às vezes, Al-ghafir repugnava-lhe. No meio das expansões mais sinceras, dos mais ardentes vôos de piedade profunda, de confiança inteira na misericórdia divina, o fakih fitava de repente nele os olhos cintilantes e, com sorriso diabólico, vibrava uma frase irônica, insolente e desanimadora, que ia gelar no coração do califa as consolações da piedade e despertar remorsos e terrores ou completa desesperação. Era um jogo terrível em que se deleitava Al-muulin, como o tigre com o palpitar dos membros da rês que se lhe agita moribunda entre as garras sangrentas. Nessa luta infernal em que lhe trazia a alma estava o segredo da atração e da repugnância que, ao mesmo tempo, o velho monarca mostrava para com o fakih, cujo aparecimento em Azzahrat cada vez se tornara mais freqüente e, agora, se renovava todos os dias.
A noite descia triste: as nuvens corriam rapidamente do lado do Oeste e deixavam, de quando em quando, passar um raio afogueado do sol que se punha. O vento tépido, úmido e violento fazia ramalhar as arvores dos jardins que circundavam os aposentos de Abdu-r-rahman. As folhas, retintas já de verde amarelado e mortal, desprendiam-se das franças das romeiras, dos sarmentos das videiras e dos ramos dos choupos em que estas se enredavam, e, remoinhando nas correntes da ventania, iam, iam, até rastejar pelo chão e empeçar na grama seca dos prados. O califa, exausto, sentia aquele cicio da vegetação moribunda chamá-lo, também, para a terra, e a melancolia da morte pesava-lhe sobre o espírito. Al-muulin, durante a conversação daquela tarde, havia-se mostrado, contra o seu costume, severamente grave, e nas suas palavras havia o que quer que fosse acorde com a tristeza que o rodeava:
“Conheço que se aproxima a hora fatal – dizia o califa. Nestas veias em breve se gelará o sangue; mas, santo fakih, não me será lícito confiar na misericórdia de Deus? Derramei o bem entre os muçulmanos, o mal entre os infiéis, fiz emudecer o livro de Jesus perante o de Mohammed, e deixo a meu filho um trono firmado no amor dos súbditos e na veneração e no temor dos inimigos da dinastia dos Benu-Umeyyas. Fiz quanto a um homem era dado fazer pela glória do Islão. Que mais pretendes? – Por que, não tens nos lábios para o pobre moribundo, senão palavras de terror? – Por que, há tantos anos, me fazes beber, gole a gole, a taça da desesperação?”
Os olhos do fakih, ao ouvir estas perguntas, brilharam com desusado fulgor, e uni daqueles sorrisos diabólicos, com que costumava fazer gelar todas as ardentes idéias místicas do príncipe, lhe assomou ao rosto enrugado e carrancudo. Contemplou por um momento o do velho monarca, onde, de feito, já vagueavam as sombras da morte: depois, dirigiu-se à porta da câmara, assegurou-se bem de que não era possível abrirem-na exteriormente e, voltando para ao pé do almatrá, tirou do peitilho um rolo de pergaminho e começou a ler em tom de indizível escárnio:
“Resposta de Al-ghafir, o triste, às últimas perguntas do poderoso Abdu-r-rahman, oitavo califa de Córdova, o sempre vencedor, justiceiro e bem-aventurado entre to dos os príncipes da raça dos Benu-Umeyyas. Capítulo avulso da sua história.”
Um rir prolongado seguiu a leitura do título do manuscrito. Al-muulin continuou:
“No tempo deste célebre, virtuoso, ilustrado e justiceiro monarca havia no seu diwan um wasir, homem sincero, zeloso da lei do profeta e que não sabia torcer por humanos respeitos a voz da sua consciência. Chamava-se Mohammed-ibn-Ishak, e era irmão de Umeyya-ibn-Ishak, caide de Chantaryn, um dos guerreiros mais ilustres do Islão, segundo diziam.”
“Ora esse wasir caiu no desagrado de Abdu-r-rahman, porque lhe falava verdade e rebatia as adulações dos seus lisonjeiros. Como o califa era generoso, o desagrado para com Mohammed converteu-se em ódio, e como era justo, o ódio breve se traduziu numa sentença de morte. A cabeça do ministro caiu no cadafalso, e a sua memória passou à posteridade manchada pela calúnia. Todavia, o príncipe dos fiéis sabia bem que tinha assassinado um inocente.”
As feições transtornadas de Abdu-r-rahman tomaram uma expressão horrível de angústia; quis falar, mas apenas pôde fazer um sinal, como que pedindo ao fakih que se calasse. Este prosseguiu:
“Parece-me que o ouvir a leitura dos anais do teu ilustre reinado te alivia e revoca à vida. Continuarei. Pudesse eu prolongar assim os teus dias, clementíssimo califa!”
“Umeyya, o caide, quando soube da morte ignominiosa do seu querido irmão, ficou como insensato. A saudade ajuntava-se o horror do ferrete posto sobre o nome, sempre imaculado, da sua família. Dirigiu as súplicas mais veementes ao príncipe dos fiéis para que, ao menos, reabilitasse a memória da pobre vítima; mas soube-se que, ao ler a sua carta, o virtuoso príncipe desatara a rir… Era, conforme lhe relatou o mensageiro, deste modo que ele ria.”
E Al-muulin aproximou-se de Abdu-r-rahman e soltou uma gargalhada. O moribundo arrancou um gemido.
“Estás um pouco melhor… não é verdade, invencível califa? Prossigamos. Umeyya, quando tal soube, calou-se. O mesmo mensageiro que chegara de Kórthoba partiu para Oviedo. O rei cristão de Al-djuf não se riu da sua mensagem. Daí a pouco, Radmiro tinha passado o Douro, e as fortalezas e cidades muçulmanas até o Tejo haviam aberto as portas ao rei franco, por ordem do caide de Chantaryn. Com um numeroso esquadrão de amigos leais, este ajudou a devastar o território muçulmano do Gharb até Mérida. Foi uma esplêndida festa; um sacrifício digno da memória de seu irmão. Seguiram-se muitas batalhas, em que o sangue humano correu em torrentes. Pouco a pouco, porém, Umeyya começou a refletir. Era Abdu-r-rahman quem o ofendera. Para que tanto sangue vertido? A sua vingança fora a de uma besta-fera; fora estúpida e vã. Ao califa, quase sempre vitorioso, que importava os que por ele pereciam? O caide de Chantaryn mudou então de sistema. A guerra pública e inútil converteu-a em perseguição oculta e eficaz: à força opôs a destreza. Fingiu abandonar os seus aliados e sumiu-se nas trevas. Esqueceram-se dele. Quando tornou a aparecer à luz do dia ninguém o conheceu. Era outro. Vestia um burel grosseiro; cingia uma corda de esparto; os cabelos caíam-lhe desordenados sobre os ombros e velavam-lhe metade do rosto: as faces tinha-lhas tisnado o sol dos desertos. Correra o Andaluz e o Moghreb; espalhara por toda a parte os tesouros da sua família e os próprios tesouros até o último dirhem, e em toda a parte deixara agentes e amigos fiéis. Depois veio viver nos cemitérios de Kórthoba, junto dos pórticos soberbos do seu inimigo mortal; espiar todos os momentos em que pudesse oferecer-lhe a amargura e as angústias em troca do sangue de Mohammed-ibn-Ishak. O guerreiro chamou-se desde esse tempo Al-ghafir, e o povo denominava-o Al-muulin, o santo fakih…”
Como sacudido por uma corrente elétrica, Abdu-r-rahman dera um pulo no almatrá ao ouvir estas últimas palavras e ficara assentado, hirto e com as mãos estendidas. Queria bradar, mas o sangue escumou-lhe nos lábios, e só pôde murmurar, já quase ininteligivelmente:
“Maldito!”
“Boa coisa é a história – prosseguiu o seu algoz, sem mudar de postura – quando nos recordamos do nosso passado, e não achamos lá para colher um único espinho de remorsos! É o teu caso, virtuoso príncipe! Mas sigamos avante. O santo fakih Al-muulin foi quem instigou Al-barr a conspirar contra Abdu-r-rahman; quem perdeu Abdallah; quem delatou a conspiração; quem se apoderou do teu ânimo crédulo; quem te puniu com os terrores de tantos anos; quem te acompanha no transe derradeiro, para te lembrar junto às portas do inferno que, se foste o assassino de seu irmão, também o foste do próprio filho; para te dizer que, se cobriste o seu nome de ignomínia, também ao teu se ajuntará o de tirano. Ouve pela última vez o rir que responde ao teu riso de há dez anos. Ouve, ouve, califa!”
A1-ghafir, ou antes Umeyya, levantara gradualmente a voz e estendia os punhos cerrados para Abdu-r-rahman, cravando nele os olhos reluzentes e desvairados. O velho monarca tinha os seus abertos e parecia, também, olhar para ele, mas perfeitamente tranqüilo. A quem houvesse presenciado aquela tremenda cena não seria fácil dizer qual dos dois tinha mais horrendo gesto.
Era um cadáver o que estava diante de Umeyya: o que estava diante do cadáver era a expressão mais enérgica da atrocidade de coração vingativo.
“Oh, se não ouviria as minhas derradeiras palavras!…” – murmurou o fakih, depois de ter conhecido que o califa estava morto. Pôs-se a cismar largo espaço; as lágrimas rolavam-lhe a quatro e quatro pelas faces rugosas. – “Um ano mais de tormentos, e ficava satisfeito! – exclamou por fim. – Pudera eu dilatar-lhe a vida!”
Dirigiu-se então para a porta, abriu-a de par em par e bateu palmas. Os eunucos, as mulheres e o próprio Al-hakem, inquieto pelo estado de seu pai, precipitaram-se no aposento. Al-muulin parou no limiar da porta, voltou-se para trás e, com voz lenta e grave, disse:
“Orai ao profeta pelo repouso do califa.”
Houve quem o visse sair; quem, à luz baça do crepúsculo, o visse tomar para o lado de Córdova com passos vagarosos, apesar das lufadas violentas de Oeste, que anunciavam uma noite procelosa. Mas nem em Córdova, nem em Azzahrat, ninguém mais o viu desde aquele dia.
Fonte: www.biblio.com.br
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