Napoleão – Fagundes Varela

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Elegia

Tristeza

O Exilado

Aurora

As Selvas

À Lucília

Childe-Harold

O Sabiá

Estâncias

O Mar

Ao Sr. Tomaz de Aquino Borges

Fagundes Varela

NAPOLEÃO

Sobre uma ilha isolada,
Por negros mares banhada,
Vive uma sombra exilada,
De prantos lavando o chão;
E esta sombra dolorida,
No frio manto envolvida,
Repete com voz sumida:
– Eu inda sou Napoleão.
Tremem convulsas as plagas
Bravias lutam as vagas,
Solta o vento horríveis pragas

Nos cendais da escuridão;
Mas nas torvas penedias
Entre fundas agonias,
Ela diz às ventanias:
– Eu inda sou Napoleão.
– E serei! do céu da glória,
Nem dos bronzes da memória,
Nem das páginas da história
Meus feitos se apagarão;
Passe a noite e as tempestades,
Venham remotas idades,
Caiam povos e cidades,
– Sempre serei Napoleão.
Da coluna de Vendôme,
O bronze, o tempo consome,
Porém não apaga o nome
Que tem por bronze a amplidão.
Apesar de infausto dia,
Da infâmia que tripudia,
Dos bretões a cobardia,
– Sempre serei Napoleão.
Nos vastos plainos do Egito,
Sobre Titães de granito,
Eu tenho um poema escrito
Que deslumbra a solidão.
Das Ísis rasguei os véus,
Entre os altares fui deus,
Fiz povos escravos meus,
– Ah! inda sou Napoleão.
Desde onde o crescente brilha
Até onde o Sena trilha,
Tive o mundo por partilha
Tive imensa adoração;
E de um trono de fulgores
Fiz dos grandes – servidores,
Fiz dos pequenos – senhores,
– E sempre fui Napoleão.
Quando eu cortava os desertos,
Vinham-me os ventos incertos
De incenso e mirra cobertos
Lamber-me as plantas no chão;
As caravanas paravam,
E os romeiros que passavam

Às solidões perguntavam:
– É este o deus Napoleão?
E lá nas plagas fagueiras,
Onde as brisas forasteiras,
Entre selvas de palmeiras
Corre o sagrado Jordão,
O lago dizia ao prado,
O prado ao monte elevado,
O monte ao céu estrelado:
– Vistes passar Napoleão!
Dizei, auras do Ocidente,
Dizei, tufão inda quente
Do bafejo incandescente
Do não vencido esquadrão,
Como é ele? é belo, ousado?
Tem o rosto iluminado?
Tem o braço denodado?
– Sempre é grande Napoleão?
E as águias no céu corriam,
E os areais se volviam,
E horrendas feras bramiam
No imenso da solidão;
Mas as vozes do deserto
Se erguiam como um concerto
E vinham saudar-me perto:
– Tu és, senhor, Napoleão!
– Se sou! que Marengo o conte,
De Austerlitz o horizonte,
E aquela soberba ponte
Que transpus como o tufão!
E a minha vida de Ajácio,
E o meu sublime palácio,
E os pescadores do Lácio
Que só dizem – Napoleão!
Se o sou! que digam as plagas,
Onde do sangue nas vagas,
Coberta de enormes chagas
Dorme vil população;
Digam da Ásia as bandeiras,
Digam longas cordilheiras,
Que se abatiam, rasteiras,
Ao corcel de Napoleão!
Se o sou! diga Santa Helena
Onde a mais sublime cena
Fechou tranqüila e serena
Minha história de Titão,
Digam as ondas bravias,
Digam torvas penedias,
Onde as rijas ventanias
Vêm murmurar: – Napoleão.
E serei! do céu, da glória,
Nem dos bronzes da memória
Nem das páginas da história
Meus feitos se apagarão!
Assim na rocha isolada
Pelas espumas banhada,
Disse a sombra desterrada,
De prantos lavando o chão.
As névoas rolam nos céus,
Da noite escura nos véus
Soltam negros escarcéus
Rugidos de imprecação;
Mas das sombras a espessura
A face da onda escura,
O salgueiro que murmura
Tudo fala – Napoleão!

SONETO

Desponta a estrela d’alva, a noite morre.
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando corre.
Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.
Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
Às carícias da aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!
Porém minh’alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
– Oh! mundo encantador, tu és medonho!

ILUSÃO

Sinistro como um fúnebre segredo
Passa o vento do Norte murmurando
Nos densos pinheirais;
A noite é fria e triste; solitário
Atravesso a cavalo a selva escura
Entre sombras fatais.
À medida que avanço, os pensamentos
Borbulham-me no cérebro, ferventes,
Como as ondas do mar,
E me arrastam consigo, alucinado,
À casa da formosa criatura
De meu doido cismar.
Latem os cães; as portas se franqueiam
Rangendo sobre os quícios; os criados
Acordem pressurosos;
Subo ligeiro a longa escadaria,
Fazendo retinir minhas esporas
Sobre os degraus lustrosos.
No seu vasto salão iluminado,
Suavemente repousando o seio
Entre sedas e flores,
Toda de branco, engrinaldada a fronte,
Ela me espera, a linda soberana
De meus santos amores.
Corro a seus braços trêmulo, incendido
De febre e de paixão… A noite é negra,
Ruge o vento no mato;
Os pinheiros se inclinam, murmurando:
– Onde vai este pobre cavaleiro
Com seu sonho insensato?…

DEIXA-ME!

Quando cansado da vigília insana
Declino a fronte num dormir profundo,
Por que teu nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o tempo que passei no mundo?
Por que teu vulto se levanta airoso,
Tremente em ânsias de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o seio,
No meu retiro vens tentar-me ainda?
Por que me falas de venturas longas,
Por que me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes à fogueira extinta,
Doces perfumes a polutas flores?
Não basta ainda essa existência escura,
Página treda que a teus pés compus?
Nem essas fundas, perenais angústias,
Dias sem crenças e serões sem luz?
Não basta o quadro de meus verdes anos
Manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
Onde pranteio desprezado e só?
Ah! não me lembres do passado as cenas,
Nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
A quantos outros não fizeste o mesmo?
A quantos outros, inda os lábios quentes
De ardentes beijos que eu te dera então,
Não apertaste no vazio seio
Entre promessas de eternal paixão?
Oh! fui um doido que segui teus passos,
Que dei-te em versos de beleza a palma;
Mas tudo foi-se, e esse passado negro
Por que sem pena me despertas n’alma?
Deixa-me agora repousar tranqüilo,
Deixa-me agora dormitar em paz,
E com teus risos de infernal encanto
Em meu retiro não me tentes mais!

O VIZIR

– Não derribes meus cedros! murmurava
O gênio da floresta aparecendo
Adiante de um vizir, senão eu juro
Punir-te rijamente! E no entanto
O vizir derribou a santa selva!
Alguns anos depois foi condenado
Ao cutelo do algoz. Quando encostava
A cabeça febril no duro cepo,
Recuou aterrado: – “Eternos deuses!
Este cepo é de cedro!” E sobre a terra
A cabeça rolou banhada em sangue!

NÃO TE ESQUEÇAS DE MIM!

Não te esqueças de mim, quando erradia
Perde-se a lua no sidéreo manto;
Quando a brisa estival roçar-te a fronte,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças de mim, quando escutares
Gemer a rola na floresta escura,
E a saudosa viola do tropeiro
Desfazer-se em gemido de tristura.
Quando a flor do sertão, aberta a medo,
Pejar os ermos de suave encanto,
Lembre-te os dias que passei contigo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças de mim, quando à tardinha
Se cobrirem de névoa as serranias,
E na torre alvejante o sacro bronze
Docemente soar nas freguesias!
Quando de noite, nos serões de inverno,
A voz soltares modulando um canto,
Lembre-te os versos que inspiraste ao bardo,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças de mim, quando meus olhos
Do sudário no gelo se apagarem,
Quando as roxas perpétuas do finado
Junto à cruz de meu leito se embalarem.
Quando os anos de dor passado houverem,
E o frio tempo consumir-te o pranto,
Guarda ainda uma idéia a teu poeta,
Não te esqueças de mim, que te amo tanto.

SONETO

Eu passava na vida errante e vago
Como o nauta perdido em noite escura,
Mas tu te ergueste peregrina e pura
Como o cisne inspirado em manso lago.
Beijava a onda num soluço mago
Das moles plumas a brilhante alvura,
E a voz ungida de eternal doçura
Roçava as nuvens em divino afago.
Vi-te; e nas chamas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade
Esquecido de mim, de Deus, do mundo!
Mas ai! cedo fugiste!… da soidade,
Hoje te imploro desse amor tão fundo
Uma idéia, uma queixa, uma saudade!

ELEGIA

A noite era bela – dormente no espaço
A lua soltava seus pálidos lumes;
Das flores fugindo, corria lasciva
A brisa embebida de moles perfumes.
Do ermo os insetos zumbiam na relva,
As plantas tremiam de orvalho banhadas,
E aos bandos voavam ligeiras falenas
Nas folhas batendo com as asas douradas.
O túrbido manto das névoas errantes
Pairava indolente no topo da serra;
E aos astros – e às nuvens perfumes – sussurros,
Suspiros e cantos partiam da terra.
Nós éramos jovens – ardentes e sós,
Ao lado um do outro no vasto salão;
E as brisas e a noite nos vinham no ouvido
Cantar os mistérios de infinda paixão!
Nós éramos jovens – e a luz de seus olhos
Brilhava incendida de eternos desejos,
E a sombra indiscreta do níveo corpinho
Sulcava-lhe os seios em brandos arquejos!
Nós éramos jovens – e as balsas floridas
O espaço inundavam – de quentes perfumes,
E o vento chorava nas tílias do parque,
E a lua soltava seus tépidos lumes!…
Ah! mísero aquele que as sendas do mundo
Trilhou sem o aroma de pálida flor,
E à tumba declina, na aurora dos sonhos,
O lábio inda virgem dos beijos de amor!
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os anos apontam.
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias do homem por gozos se contam.
Assim nessa noite de mudas venturas,
De louros eternos minh’alma enastrei;
Que importa-me agora martírios e dores,
Se outrora dos sonhos a taça esgotei?
Ah! lembra-me ainda! – nem um candelabro
Lançava ao recinto seu brando clarão,
Apenas os raios da pálida lua
Transpondo as janelas batiam no chão.
Vestida de branco – nas cismas perdida,
Seu mórbido rosto pousava em meu seio,
E o aroma celeste das negras madeixas
Minh’alma inundava de férvido anseio.
Nem uma palavra seus lábios queridos
Nos doces espasmos diziam-me então:
Que valem palavras, quando ouve-se o peito
E as vidas se fundem no ardor da paixão?
Oh! céus! eram mundos… ai! mais do que mundos
Que a mente invadiam de etéreo fulgor!
Poemas divinos – por Deus inspirados,
E a furto contados em beijos de amor!
No fim do seu giro, da noite a princesa
Deixou-nos unidos em brando sonhar;
Correram as horas – e a luz da alvorada
Em juras infindas nos veio encontrar!
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os anos apontam…
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias do homem por dores se contam!
Ligeira… essa noite de infindas venturas
Somente em minh’alma lembranças deixou…
Três meses passaram, e o sino do templo
À reza dos mortos os homens chamou!
Três meses passaram – e um lívido corpo
Jazia dos círios à luz funeral,
E, à sombra dos mirtos, o rude coveiro
Abria cantando seu leito afinal!…
Nós éramos jovens, e a senda terrestre
Trilhávamos juntos, de amor a sorrir,
E as flores e os ventos nos vinham no ouvido
Contar os arcanos de um longo porvir!
Nós éramos jovens, e as vidas e os seios,
O afeto prendera num cândido nó!
Foi ela a primeira que o laço quebrando
Caiu soluçando das campas no pó!
Não são dos invernos as frias geadas,
Nem longas jornadas que os anos apontam,
O tempo descora nos risos e prantos,
E os dias do homem por dores se contam!
– 1861.

TRISTEZA

Eu amo a noite com seu manto escuro
De tristes goivos coroada a fronte
Amo a neblina que pairando ondeia
Sobre o fastígio de elevado monte.
Amo nas plantas, que na tumba crescem,
De errante brisa o funeral cicio:
Porque minh’alma, como a sombra, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.
Amo a desoras sob um céu de chumbo,
No cemitério de sombria serra,
O fogo-fátuo que a tremer doideja
Das sepulturas na revolta terra.
Amo ao silêncio do ervaçal partido
De ave noturna o funerário pio,
Porque minh’alma, como a noite, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.
Amo do templo, nas soberbas naves,
De tristes salmos o troar profundo;
Amo a torrente que na rocha espuma
E vai do abismo repousar no fundo.
Amo a tormenta, o perpassar dos ventos,
A voz da morte no fatal parcel,
Porque minh’alma só traduz tristeza,
Porque meu seio se abrevou de fel.
Amo o corisco que deixando a nuvem
O cedro parte da montanha, erguido,
Amo do sino, que por morto soa,
O triste dobre na amplidão perdido.
Amo na vida de miséria e lodo,
Das desventuras o maldito seio,
Porque minh’alma se manchou de escárnios,
Porque meu seio se cobriu de gelo.
Amo o furor do vendaval que ruge,
Das asas negras sacudindo o estrago;
Amo as metralhas, o bulcão de fumo,
De corvo as tribos em sangrento lago.
Amo do nauta o doloroso grito
Em frágil prancha sobre mar de horrores,
Porque meu seio se tornou de pedra,
Porque minha’alma descorou de dores.
O céu de anil, a viração fagueira,
O lago azul que os passarinhos beijam,
A pobre choça do pastor no vale,
Chorosas flores que ao sertão vicejam,
A paz, o amor, a quietação e o riso
A meus olhares não têm mais encanto,
Porque minh’alma se despiu de crenças,
E do sarcasmo se embuçou no manto.
– 1861.

O EXILADO

O exilado está só por toda a parte!
Passei tristonho dos salões no meio,
Atravessei as turbulentas praças
Curvado ao peso de uma sina escura;
As turbas contemplaram-me sorrindo,
Mas ninguém divisou a dor sem termos
Que as fibras de meu peito espedaçava.
O exilado está só por toda a parte!
Quando, à tardinha, dos floridos vales
Eu via o fumo se elevar tardio
Por entre o colmo de tranqüilo albergue,
Murmurava a chorar: – Feliz aquele
Que à luz amiga do fogão doméstico,
Rodeado dos seus, à noite, senta-se.
O exilado está só por toda a parte!
Onde vão estes flocos de neblina
Que o euro arrasta nas geladas asas?
Onde vão essas tribos forasteiras
Que à tempestade se esquivar procuram?
Ah! que me importa?… também eu doidejo,
E onde irei, Deus o sabe, Deus somente.
O exilado está só por toda a parte!
Desta campina as árvores são belas,
São belas estas flores que se vergam
Das auras estivais ao débil sopro;
Mas nem a sombra que no chão se alonga,
Nem o perfume que o ambiente inunda
São dessa gleba divinal que adoro.
O exilado está só por toda a parte!
Mole e lascivo no tapiz da selva
Serpeia o arroio, e o deslizar queixoso
Peja de amor as solidões dormentes;
Mas nunca o rosto refletiu-me um dia,
Nem foi seu burburinho enlanguescido
Que embalou minha infância a descuidosa.
O exilado está só por toda a parte!
– Por que chorais? me perguntou o mundo;
Contai-nos vossa dor, talvez possamos
Saná-la às gotas de elixir suave;
Mas, quando eu suspendi a lousa escura
Que o túmulo cobria-me da vida,
Riram-se pasmos sem sondar-lhe o fundo.
O exilado está só por toda a parte!
Vi o ancião da prole rodeado
Sorrir-se calmo e bendizer a Deus,
Vi junto à porta da nativa choça
As crianças beijarem-se abraçadas;
Mas de filho ou de irmão o santo nome
Ninguém me deu, e eu fui passando triste.
O exilado está só por toda a parte!
Quando verei essas montanhas altas
Que o sol dourava nas manhãs de agosto?
Quando, junto à lareira, as folhas lívidas
Deslembrarei de meu sombrio drama?
Doida esperança! as estações sucedem-se
E sem um gozo vou descendo à campa.
O exilado está só por toda a parte!
Brandas aragens, que roçais fagueiras
Das maravilhas nas cheirosas frontes,
Aves sem pátria, que cortais os ares,
Irmãs na sorte do infeliz romeiro,
Ah! levai um suspiro à pátria amada,
Último alento de cansado peito.
O exilado está só por toda a parte!
Quando nas folhas de lustrosos plátanos
Novos luares descansarem gratos,
Já sobre a estrada de meus pés os traços
O pegureiro não verá, que passa!
Mísero! ao leito de final descanso
Ninguém meu sono velará chorando.
O exilado está só por toda a parte!

AURORA

Antes de erguer-se de seu leito de ouro,
O rei dos astros o Oriente inunda
De sublime clarão;
Antes de as asas desprender no espaço,
A tempestade agita-se e fustiga
O turbilhão dos euros.
As torrentes de idéias que se cruzam,
O pensamento eterno que se move
No levante da vida,
São auras santas, arrebóis esplêndidos,
Que precedem à vinda triunfante
De um sol imorredouro.
O murmurar profundo, enrouquecido,
Que do seio dos povos se levanta,
Anuncia a tormenta;
Essa tormenta salutar e grande
Que o manto roçará, prenhe de fogo,
Na face das nações.
Preparai-vos, ó turbas! Preparai-vos,
Rebatei vossos ferros e cadeias,
Algozes e tiranos!
A hora se aproxima pouco a pouco,
E o dedo do Senhor já volve a folha
Do livro do destino!
Grande há de ser o drama, a ação gigante,
Majestosa a lição! luzes e trevas
Lutarão sobre os orbes!
O abismo soltará seus tredos roncos,
E o frêmito dos mares agitados
Se unirá aos das turbas.
Os reis convulsarão nos tronos frágeis,
Buscando embalde sustentar nas frontes
As úmidas coroas…
Debalde!… o vendaval na fúria insana
Os levará com elas, envolvidos
Num turbilhão de pó!
Vis, abatidos, o fidalgo e o rico
Sairão de seus paços vacilantes
Nos podres alicerces…
E errantes sobre a terra irão chorando,
Mendigar um farrapo ao vagabundo,
E um pedaço de pão!
Estranho povo surgirá da sombra
Terrível e feroz cobrindo os campos
De cruentos horrores!
O palácio e a prisão irão por terra,
E um segundo dilúvio, então de sangue,
O mundo lavará!
O sábio em seu retiro, estupefato,
Verá tombar a imagem da ciência,
Fria estátua de argila,
E um pálido clarão dirá que é perto
O astro divinal que às turbas míseras
Conduz a redenção!
Como aos dias primeiros do universo,
O globo se erguerá banhado em luzes,
Reflexos de Deus;
E a raça humana sob um céu mais puro
Um hino insigne enviará, prostrada
Aos pés do Onipotente!
Irmãos todos serão; todos felizes;
Iguais e belos, sem senhor nem peias,
Nem tiranos e ferros!
O amor os unirá num laço estreito,
E o trânsito da vida uma romagem
Se tornará celeste!
A hora se aproxima pouco a pouco;
O dedo do Senhor já volve a folha
Do livro do destino!…
Ergue-se a tela do teatro imenso,
E o mistério infinito se desvenda
Do drama do Calvário!

AS SELVAS

Selvas do Novo Mundo, amplos zimbórios,
Mares de sombra e ondas de verdura,
Povo de Atlantes soberano e mudo
Em cujos mantos o tufão murmura.
Salve! minh’alma vos procura embalde,
Embalde triste vos estendo os braços…
Cercam-me o corpo rebatidos muros,
Prendem-me as plantas enredados laços!…
Pátria da liberdade! antros profundos!
Vastos palácios! eternais castelos!
Mandai-me os gênios das sombrias grutas
De meus grilhões espedaçar os elos!…
Ah! que eu não possa me esquivar dos homens,
Matar a febre que meu ser consome,
E entre alegrias me arrojar cantando
Nas secas folhas do sertão sem nome!
Ah! que eu não possa desprender aos ermos
O fogo ardente que meu crânio encerra,
Gastar os dias entre o espaço e Deus
Nas matas virgens da colúmbia terra!
Eu não detesto nem maldigo a vida,
Nem do despeito me remorde a chaga,
Mas ah! sou pobre, pequenino e débil
E sobre a estrada o viajor me esmaga!
Que faço triste no rumor das praças?
Que busco pasmo nos salões dourados?
Verme do lodo me desprezam todos,
O pobre e os grandes de esplendor cercados!
Fere-me os olhos o clarão do mundo,
Rasgam-me o seio prematuras dores,
E à mágoa insana que me enluta as noites,
Declino à campa na estação das flores.
E há tanto encanto nas florestas virgens,
Tanta beleza do sertão na sombra,
Tanta harmonia no correr do rio,
Tanta delícia na campestre alfombra…
Que inda pudera reviver de novo,
E entre venturas flutuar minh’alma,
Fanada planta que mendiga apenas
A noite, o orvalho, a viração e a calma!

À LUCÍLIA

Se eu pudesse ao luar, Lucília bela,
Queimar-te a fronte de insensatos beijos,
Dobrar-te ao colo, minha flor singela,
Ao fogo insano de eternais desejos;
Ai! se eu pudesse de minh’alma aos elos
Prender tu’alma enfebrecida e cálida,
Erguer na vida os festivais castelos
Que tantas noites planejaste, pálida;
Ai! se eu pudesse nos teus olhos turvos
Beber a vida da volúpia ao véu,
Bem como os juncos sobre as ondas curvos
A chuva bebem que derrama o céu,
Talvez que as mágoas que meu peito ralam
Em cinzas frias se perdessem logo,
Como as violas que ao verão trescalam
Somem-se aos raios de celeste fogo!
Oh! vem Lucília! é tão formosa a aurora
Quando uma fada lhe batiza o alvor,
E a madressilva, que ao frescor vapora
Os ares peja de lascivo amor…
Sou moço ainda; de meu seio aos ermos
Posso-te louco arrebatar comigo…
De um mundo novo na solidão sem termos
Deitar-te à sombra de amoroso abrigo!
Tenho um dilúvio de ilusões na fronte,
Um mundo inteiro de esperanças n’alma,
Ergue-te acima de azulado monte,
Terás dos gênios do infinito a palma!…

CHILDE-HAROLD

(Sobre uma página de Byron)
Não te rias assim, oh! não te rias,
Basta de sonhos, de ilusões fatais!
Minh’alma é nua, e do porvir às luzes
Meus roxos lábios sorrirão jamais!
Que pesar me consome? ah! não procures
Erguer a lousa de um pesar profundo,
Nem apalpares a matéria lívida,
E a lama impura que pernoita ao fundo!
Não são as flores da ambição pisadas,
Não é a estrela de um porvir perdida…
Que esta cabeça coroou de sombras
E a tumba inclina ao despontar da vida!
É este enojo perenal, contínuo,
Que em toda a parte me acompanha os passos,
E ao dia incende-me as artérias quentes,
Me aperta à noite nos mirrados braços!
São estas larvas de martírio e dores
Sócias constantes do judeu maldito!
Em cuja testa, dos tufões crestada,
Labéu de fogo cintilava escrito!
Quem de si mesmo desterrar-se pode?
Quem pode a idéia aniquilar que o mata?
Quem pode altivo esmigalhar o espelho
Que a torva imagem de Satã retrata?
Quantos encontram inefáveis gozos
Nesses prazeres, para mim tormentos!
Quantos nos mares onde a morte enxergo
Abrem as velas do baixel aos ventos!
O meu destino é vaguear e sempre!
Sempre fugindo funeral lembrança…
Férreo estilete que me rasga os músculos,
Voz dos abismos que me brada: – Avança!
Que pesar me consome? ai! não mais tentes,
Espera a lousa de um pesar profundo,
Somente a morte encontrarás nas bordas,
E o inferno inteiro a praguejar no fundo!

O SABIÁ
(Cançoneta)

Oh! meu sabiá formoso,
Sonoroso,
Já desponta a madrugada,
Desabrocha a linda rosa
Donairosa,
Sobre a campina orvalhada.
Manso o regato murmura
Na verdura
Descrevendo giros mil,
Some-se a estrela brilhante,
Vacilante,
No horizonte cor de anil.
Ergue-te, oh! meu passarinho,
De teu ninho,
Vem gozar da madrugada…
Modula teu terno canto,
Doce encanto
De minh’alma amargurada.
Vem junto à minha janela,
Sobre a bela
Verdejante laranjeira,
Beber o eflúvio das flores,
Teus amores,
Nas asas de aura fagueira.
Desprende a voz adorada,
Namorada,
Poeta da solidão,
Ah! vem lançar com encanto
Mais um canto,
No livro da criação!
Oh! meu sabiá formoso,
Sonoroso,
Já desponta a madrugada…
Deixa teu ninho altaneiro,
Vem ligeiro
Saudar a luz da alvorada.

ESTÂNCIAS

Quando à tardinha rumorejam brisas
Roubando o aroma das agrestes flores,
E doce e grave, nas viçosas matas,
Mais triste canto o sabiá desata,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de ti, por que tu’alma
É o sol de minh’alma e de meu gênio;
E neste exílio que infernal me cerca,
Mísera planta, desfaleço e morro
Ao frio toque de hibernal geada!
* * *
Quando das franjas do Ocidente róseo
Um raio ainda me clareia o cárcere,
E um tom suave de tristeza e luzes
Mistura o dia à palidez da noite,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de ti, porque teu seio
Guarda um tesouro de piedade santa,
E nesse instante que o pesar duplica
Faltam-me as vozes de teus lábios meigos
E o doce orvalho de amorosos olhos!
* * *
Quando nas bordas de meu leito escuro
Fatais espectros de pavor se cruzam,
E exausto, e lívido, eu procuro embalde
O grato sono que meus olhos deixa,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de ti, porque saudosa
Sonho-te a imagem soluçando ao longe,
E a fronte curva, e umedecidas pálpebras,
Meu nome dizes ao tufão que passa,
À brisa doida que te morde as tranças!
* * *
Quando meu corpo se debate em febre,
E a lava ardente nas artérias corre…
Quando cruenta, de funéreos risos,
Pressinto a morte levantar-se perto,
Eu lembro-me de ti!
* * *
Eu lembro-me de ti que és minha vida,
Último alívio neste mundo insano,
Anjo da guarda que à minh’alma aflita
Pudera as trevas espancar com as asas,
Lavar-lhe as manchas num Jordão de lágrimas!
* * *
Ai! tudo os homens entre nós quebraram:
A paz, o riso, as esperanças áureas;
Mas de teu peito me arrancar não podem,
Nem a minh’alma desprender da tua!…
Eu lembro-me de ti!…

O MAR

Sacode as vagas de teu dorso imenso,
Oh! profundo oceano! Ergue-as altivas
Com seus frígios barretes! Em vão tentam
Lutar contigo temerárias frotas,
Traçar-te raias a vaidade humana!
Tu és eterno e vasto como o espaço,
Livre como a vontade onipotente.
Régio manto do globo! povo infindo
De soberbos Titães! gênio da força,
Salve três vezes!… Das espáduas amplas
Derribas todo o jugo que te oprime,
Tragas gigantes de carvalho e cedro,
E a fronte erguendo majestosa e bela
Diademas de pérolas atiras
Às estrelas do céu, e ao mundo cospes
A férvida saliva em desafio!
Quantos impérios celebrados, fortes
Não floresceram de teu trono às bases
Sublime potestade! e onde estão eles?
O que é feito de Roma, Assíria e Grécia,
Cartago, a valorosa? As vagas tuas
Lambiam-lhes os muros, quer nos tempos
De paz e de bonança, quer na quadra
Em que chuvas de setas se cruzavam
À face torva das hostis falanges!
Tudo esb’roou-se, se desfez em cinzas,
Sumiu-se como os traços que o romeiro
Deixa de Núbia na revolta areia!
Só tu, oh! mar, sem termos, imutável
Como o quadrante lúgubre do tempo,
Ruges, palpitas sem grilhões nem peias!
Nunca na face desse azul sombrio,
Onde tranqüilas, ao chorar das brisas,
Poesias do céu, flores do éter,
As estrelas se miram namoradas…
Nunca o fogo e a lava, a guerra e a morte,
A armada dos tiranos há deixado
Um vestígio sequer de seus destroços!
Tal como à tarde do primeiro dia
Que ao orbe clareou, hoje te ostentas
Na tua majestade horrenda e bela!
Espelho glorioso onde entre fogos
Se mostra onipotente, nas tormentas
A face do Senhor! Monstro sublime
Cujas garras de ferro o globo abraçam…
Até que um dia, quem o sabe? exausto
Lance o último alento! ah! no teu seio
Talvez tremendo espírito se agite,
Misto sombrio de paixões sem freios,
Cuja expressão vislumbra-te no rosto,

Ora hediondo de compressos músculos,
Ora suave como o louro infante
Sobre o seio materno, ora cruento
Gotejando suor, escuma e raiva!
Níobe eterna! de teu ventre túmido
Os monstros dos abismos rebentaram,
Em cujo dorso de argentadas conchas
Os raios das estrelas resvalavam:
De teu lodo fecundo, inextinguível,
Brotaram continentes cujas grimpas
Iam bater na abóbada cerúlea;
Teus paços de coral e de esmeraldas
Encerravam princesas vaporosas,
Louras ondinas, encantados gênios,
Soberbas divindades! Entretanto
Viste tudo cair! riscada a Atlântida
Da face do universo, os brônzeos deuses
Desterrados pra sempre, e só restou-te
Uma voz gemedora que chorava:
– Já não vive o Deus Pã! oh! Pã é morto!
Oceano sem fundo! vagas túmidas
Abismo de mistério, ah! desde a infância
Preso na teia da atração divina
Eu vos busquei sedento! sobre as praias,
Curvas como os alfanjes dos eunucos,
Eu me perdia nos dourados dias
Da santa primavera, ouvindo os brados
Dos marinhos corcéis, molhando as plantas
Na gaze salitrosa que envolvia
A areia cintilante! após mais tarde
Sentava-me no cimo dos rochedos,
Suspirando de amor aos verdes olhos,
Aos moles braços que do salso leito
Erguiam-se tão meigos e adorados!…
Amo-te ainda, oh! mar! amo-te muito,
Mas não tranqüilo umedecendo a proa
Da gôndola lasciva, nem chorando
às carícias da lua! Amo-te horrível,
Arrogante e soberbo, repelindo
Os furacões que roçam-te nas crinas,
Quebrando a asa de fogo que das nuvens
Procura te domar, batendo a terra
Com teus flancos robustos, levantando
Triunfante e feroz no tredo espaço
A cabeça estrelada de ardentias!
Amo-te assim, oh! mar, porque minh’alma
Vê-te imenso e potente, desdenhoso
Rindo às quimeras da cobiça humana!
Amo-te assim! ditoso no teu seio
Zombo do mundo que meu ser esmaga,
Sou livre como as vagas que me cercam
E só a tempestade e a Deus respeito.
Salve, oceano onipotente e eterno!
Santo espelho de Deus, três vezes salve!

DE NOTURNAS NÉVOAS

Nas horas tardias que a noite desmaia,
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz.
Eu vi entre os flocos de névoas imensas,
Que em grutas extensas se elevam no ar,
Um corpo de fada, serena dormindo,
Tranqüila sorrindo num brando sonhar.
Na forma de neve, puríssima e nua,
Um raio da lua de manso batia,
E assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.
Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes, cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu?
O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas,
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!
Nas nuas espáduas, dos astros dormentes,
Tão frio não sentes o pranto filtrar?
E as asas de prata do gênio das noites
Em tíbios açoites a trança agitar?
Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!…
Os astros sem alma se cansam de olhar-te,
Não podem amar-te, nem dizem paixão!
E as auras passavam, e as névoas tremiam,
E os gênios corriam no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!
Imagem formosa das nuvens da Ilíria,
Brilhante Valquíria das brumas do norte,
Não ouves ao menos do bardo os clamores,
Envolta em vapores mais fria que a morte!
Oh! vem! vem, minh’alma! teu rosto gelado,
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
Eu quero aquecê-los ao peito incendido,
Contar-te ao ouvido paixão delirante!…
Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias,
Nas horas tardias que a noite desmaia.
E as brisas da aurora ligeiras corriam,
No leito batiam da fada divina…
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem
E a pálida imagem desfez-se em neblina!
Santos – 1861.

VIDA DE FLOR

Por que vergas-me a fronte sobre a terra?
Diz a flor da colina ao manso vento,
Se apenas às manhãs o doce orvalho
Hei gozado um momento?
Tímida ainda, nas folhagens verdes
Abro a corola à quietação das noites,
Ergo-me bela, me rebaixas triste
Com teus feros açoites!
Oh! deixa-me crescer, lançar perfumes,
Vicejar das estrelas à magia,
Que minha vida pálida se encerra
No espaço de um só dia!
Mas o vento agitava sem piedade
A fronte virgem da cheirosa flor,
Que pouco a pouco se tingia, triste,
De mórbido palor.
Não vês, oh brisa? lacerada, murcha,
Tão cedo ainda vou pendendo ao chão,
E em breve tempo esfolharei já morta
Sem chegar ao verão?
Tem piedade de mim! deixa-me ao menos
Desfrutar um momento de prazer,
Pois que é meu fado despontar na aurora
E ao crepúsc’ulo morrer!…
Brutal amante não lhe ouviu as queixas,
Nem às suas dores atenção prestou,
E a flor mimosa, retraindo as pétalas,
Na tige se inclinou.
Surgiu na aurora, não chegou à tarde,
Teve um momento de existência só!
A noite veio, procurou por ela,
Mas a encontrou no pó.
Ouviste, oh virgem, a legenda triste
Da flor do outeiro e seu funesto fim?
Irmã das flores à mulher, às vezes
Também sucede assim.
S. Paulo – 1861.

O FORAGIDO
(Canção)

Minha casa é deserta; na frente
Brotam plantas bravias do chão,
Nas paredes limosas o cardo
Ergue a fronte silente ao tufão.
Minha casa é deserta. O que é feito
Desses templos benditos doutrora,
Quando em torno cresciam roseiras,
Onde as auras brincavam na aurora?
Hoje a tribo das aves errantes
Dos telhados se acampa no vão,
A lagarta percorre as muralhas,
Canta o grilo pousado ao fogão.
Das janelas no canto, as aranhas
Leves tremem nos fios dourados,
As avencas pululam viçosas
Na umidade dos muros gretados.
Tudo é tredo, meu Deus! o que é feito
Dessas eras de paz que lá vão,
Quando junto do fogo eu ouvia
As legendas sem fim do serão?
No curral esbanjado, entre espinhos,
Já não bala ansioso o cordeiro,
Nem desperta-se ao toque do sino,
Nem ao canto do galo ao poleiro.
Junto à cruz que se eleva na estrada
Seco e triste se embala o chorão,
Não há mais o esfumar das acácias,
Nem do crente a sentida oração.
Não há mais uma voz nestes ermos,
Um gorjeio das aves no val;
Só a fúria do vento retroa
Alta noite agitando o ervaçal.
Ruge, oh! vento gelado do norte,
Torce as plantas que brotam do chão,
Nunca mais eu terei as venturas
Desses tempos de paz que lá vão!
Nunca mais desses dias passados
Uma luz surgirá dentre as brumas!
As montanhas se embuçam nas trevas,
As torrentes se vendam de espumas!
Corre, pois, vendaval das tormentas,
Hoje é tua esta morna soidão!
Nada tenho, que um céu lutulento
E uma cama de espinhos no chão!
Ruge, voa, que importa! sacode
Em lufadas as crinas da serra;
Alma nua de crença e esperanças,
Nada tenho a perder sobre a terra!
Vem, meu pobre e fiel companheiro,
Vamos, vamos depressa, meu cão,
Quero ao longo perder-me das selvas
Onde passa rugindo o tufão!
Cantareira – 1861.

A MULHER
(A C…)

A mulher sem amor é como o inverno,
Como a luz das antélias no deserto,
Como espinheiro de isoladas fragas,
Como das ondas o caminho incerto.
A mulher sem amor é mancenilha
Das ermas plagas sobre o chão crescida,
Basta-lhe à sombra repousar um’hora
Que seu veneno nos corrompe a vida.
De eivado seio no profundo abismo
Paixões repousam num sudário eterno…
Não há canto nem flor, não há perfumes,
A mulher sem amor é como o inverno.
Su’alma é um alaúde desmontado
Onde embalde o cantor procura um hino;
Flor sem aromas, sensitiva morta,
Batel nas ondas a vagar sem tino.
Mas, se um raio do sol tremendo deixa
Do céu nublado a condensada treva,
A mulher amorosa é mais que um anjo,
É um sopro de Deus que tudo eleva!
Como o árabe ardente e sequioso
Que a tenda deixa pela noite escura
E vai no seio de orvalhado lírio
Lamber a medo a divinal frescura,
O poeta a venera no silêncio,
Bebe o pranto celeste que ela chora,
Ouve-lhe os cantos, lhe perfuma a vida…
– A mulher amorosa é como a aurora.
S. Paulo – 1861.

TRISTEZA

Minh’alma é como o deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
É como a rocha isolada,
Pelas espumas banhada,
Dos mares na solidão.
Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!
Roem-me atrozes idéias,
A febre me queima as veias;
A vertigem me tortura!…
Oh! por Deus! quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura!
Despem-se as matas frondosas,
Caem as flores mimosas
Da morte na palidez,
Tudo, tudo vai passando…
Mas eu pergunto chorando:
Quando virá minha vez?
Vem, oh virgem descorada,
Com a fronte pálida ornada
De cipreste funerário,
Vem! oh! quero nos meus braços
Cerrar-te em meigos abraços
Sobre o leito mortuário!
Vem, oh morte! a turba imunda
Em sua miséria profunda
Te odeia, te calunia…
– Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria.
Quero morrer, que este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel,
Porque meu seio gastou-se,
Meu talento evaporou-se
Dos martírios ao tropel!
Quero morrer: não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançar ao chão,
Do pó desprender-me rindo
E as asas brancas abrindo
Lançar-me pela amplidão!
Oh! quantas louras crianças
Coroadas de esperanças
Descem da campa à friez!…
Os vivos vão repousando;
Mas eu pergunto chorando:
– Quando virá minha vez?
Minh’alma é triste, pendida,
Como a palmeira batida
Pela fúria do tufão.
É como a praia que alveja,
Como a planta que viceja
Nos muros de uma prisão!
S. Paulo – 1861.

O ESTANDARTE AURIVERDE
(Cantos sobre a questão anglo-brasileira)
AO BRASIL

Bela estrela de luz, diamante fúlgido
Da coroa de Deus, pérola fina
Dos mares do ocidente,
Oh! como altiva sobre nuvens de ouro
A fronte elevas afogando em chamas
O velho continente!
A Itália meiga que ressona lânguida
Nos coxins de veludo adormecida
Como a escrava indolente;
A França altiva que sacode as vestes
Entre o brilho das armas e as legendas
De um passado fulgente.
A Rússia fria – Mastodonte eterno!
Cuja cabeça sobre os gelos dorme,
E os pés ardem nas fráguas;
A Bretanha insolente que expelida
De seus planos estéreis se arremessa
Mordendo-se nas águas;
A Espanha túrbida; a Germânia em brumas;
A Grécia desolada; a Holanda exposta
Das ondas ao furor…
Uma inveja teu céu, outra teu gênio,
Esta a riqueza, a robustez aquela,
E todas o valor!
Oh! terra de meu berço, oh pátria amada,
Ergue a fronte gentil ungida em glórias
De uma grande nação!
Quando sofre o Brasil, os brasileiros
Lavam as manchas, ou debaixo morrem
Do santo pavilhão!…

AO POVO

Não ouvis?… Além dos mares
Braveja ousado Bretão!
Vingai a pátria, ou valentes
Da pátria tombai no chão!
Erguei-vos, povo de bravos,
Erguei-vos, brasíleo povo,
Não consintais que piratas
Na face cuspam de novo!
O que vos falta? Guerreiros?
Oh! que eles não faltam não,
Aos prantos de nossa terra
Guerreiros brotam do chão!
Mostrai que as frontes sublimes
Os anjos cercam de luz,
E não há povo que vença
O povo de Santa Cruz!
Sofrestes ontem, criança
Contra a força o que fazer?…
Se nada podeis, agora
Podeis ao menos morrer!…
Oh! morrei! a morte é bela
Quando junto ao pavilhão
Se morre pisando escravos
Que insultam brava nação!
Quando nos templos da fama
Nas áureas folhas da história
Gravado revive o nome
Por entre os hinos da glória!
Quando a turba que se agita
Saúda a campa adorada:
– Foi um herói que esvaiu-se
Nos braços da pátria amada!

A D. PEDRO II

Tu és a estrela mais fulgente e bela
Que o solo aclara da Colúmbia terra,
A urna santa que de um povo inteiro
Arcanos fundos no sacrário encerra!
Tu és nos ermos a coluna ardente
Que os passos guia de uma tribo errante,
E ao longe mostras através das névoas
A plaga santa que sorriu distante!…
Tu és o gênio benfazejo e grato
Poupando as vidas no calor das fráguas,
E, à voz das turbas, do rochedo em chamas
Desprende um jorro de benditas águas!
Tu és o nauta que através dos mares
O lenho imenso do porvir conduz,
E ao porto chega sossegado e calmo
De um astro santo acompanhando a luz!
Oh! não consintas que teu povo siga
Louco, sem rumo, desonroso trilho!
Se és grande, ingente, se dominas tudo,
Também das terras do Brasil és filho!
Abre-lhe os olhos, o caminho ensina
Aonde a glória em seu altar sorri
Dize que vive, e viverá tranqüilo,
Dize que morra, morrerá por ti!

A SÃO PAULO

Terra da liberdade!
Pátria de heróis e berço de guerreiros,
Tu és o louro mais brilhante e puro,
O mais belo florão dos brasileiros!
Foi no teu solo, em borbotões de sangue
Que a fronte ergueram destemidos bravos,
Gritando altivos ao quebrar dos ferros:
– Antes a morte que um viver de escravos!
Foi nos teus campos de mimosas flores,
À voz das aves, ao soprar do norte,
Que um rei potente às multidões curvada
Bradou soberbo: – Independência ou morte!
Foi no teu seio que surgiu, sublime,
Trindade eterna de heroísmo e glória,
Cujas estátuas cada vez mais belas,
Dormem nos templos da brasília história!
Eu te saúdo, oh! majestosa plaga,
Filha dileta, e estrela da nação,
Que em brios santos carregaste os cílios
À voz cruenta de feroz Bretão!
Pejaste os ares de sagrados cantos,
Ergueste os braços e sorriste à guerra,
Mostrando ousada ao murmurar das turbas,
Bandeira imensa da cabrália terra!
Eia! caminha, o Partenon da glória
Te guarda o louro que premia os bravos!
Voa ao combate repetindo a lenda:
– Morrer mil vezes que viver escravos!

CANTO DO SERTANEJO

Salve, oh! florestas sombrias,
Salve, oh! broncas penedias,
Onde as rijas ventanias
Murmuram fera canção,
Nas sombras deste deserto
Do norte ao rude concerto,
Sentado de Deus tão perto
Quem é que teme o Bretão?
Cobre-se a selva de flores,
Brincam voláteis cantores
Bebendo os langues odores
Que passam na viração,
Rugem cavernas frementes,
Silvam medonhas serpentes,
Bradam raivosas torrentes,
Quem é que teme o Bretão?
Ah! correi filhos das matas,
Através das cataratas,
Entre suaves cantatas
Ao gênio da solidão,
Cuspi nos dias escassos,
Rompei os imigos laços…
Não tendes dois fortes braços?
Quem é que teme o Bretão?
Loucos! nas fundas clareiras,
Aos urros das cachoeiras
Nas brenhas das cordilheiras,
Feia morte encontrarão!
Quem tem do ermo as grandezas,
As serras por fortalezas
Não teme as loucas bravezas
Do temerário Bretão!
Daqui decide-se a sorte,
Daqui troveja-se a morte,
Daqui se extingue a coorte
Que insulta a brava nação!…
Gritos das selvas, dos montes,
Dos matagais e das fontes
Retumbam nos horizontes…
Quem é que teme o Bretão?
Salve, oh! florestas sombrias,
Salve, oh! broncas penedias,
Onde as rijas ventanias
Perpassam varrendo o chão,
Neste profundo deserto
De negros antros coberto
Sentado de Deus tão perto
Quem é que teme o Bretão?

DE CANTOS RELIGIOSOS
AVE! MARIA!

A noite desce – lentas e tristes
Cobrem as sombras a serrania,
Calam-se as aves, choram os ventos,
Dizem os gênios: – Ave! Maria!
Na torre estreita de pobre templo
Ressoa o sino da freguesia,
Abrem-se as flores, Vesper desponta,
Cantam os anjos: – Ave! Maria!
No tosco alvergue de seus maiores,
Onde só reinam paz e alegria,
Entre os filhinhos o bom colono
Repete as vozes: – Ave! Maria!
E, longe, longe, na velha estrada,
Pára e saudades à pátria envia
Romeiro exausto que o céu contempla,
E fala aos ermos: – Ave! Maria!
Incerto nauta por feios mares,
Onde se estende névoa sombria,
Se encosta ao mastro, descobre a fronte,
Reza baixinho: – Ave! Maria!
Nas soledades, sem pão nem água,
Sem pouso e tenda, sem luz nem guia,
Triste mendigo, que as praças busca,
Curva-se e clama: – Ave! Maria!
Só nas alcovas, nas salas dúbias,
Nas longas mesas de longa orgia
Não diz o ímpio, não diz o avaro,
Não diz o ingrato: – Ave! Maria!
Ave! Maria! – No céu, na terra!
Luz da aliança! Doce harmonia!
Hora divina! Sublime estância!
Bendita sejas! – Ave! Maria!

VOZ DO POETA

Perdão, Senhor meu Deus! Busco-te embalde
Na natureza inteira! O dia, a noite,
O tempo, as estações mudos sucedem-se,
Mas eu sinto-te o sopro dentro dalma!
Da consciência ao fundo te contemplo!
E movo-me por ti, por ti respiro,
Ouço-te a voz que o cérebro me anima,
E em ti me alegro, e canto, e penso!
Da natureza inteira que aviventas
Todos os elos a teu ser se prendem,
Tudo parte de ti e a ti se volta;
Presente em toda a parte, e em parte alguma,
Íntima fibra, espírito infinito,
Moves potente a criação inteira!
Dás a vida e a morte, o olvido e a glória!
Se não posso adorar-te face a face,
Oh! basta-me sentir-te sempre, e sempre!
Eu creio em ti! eu sofro, e o sofrimento
Como ligeira nuvem se esvaece
Quando murmuro teu sagrado nome!
Eu creio em ti! e vejo além dos mundos,
Minha essência imortal brilhante e livre,
Longe dos erros, perto da verdade,
Branca dessa brancura imaculada
Que os gênios inspirados nesta vida
Em vão tentaram descobrir no mármore!

SALMO I

Ditoso o justo que afastado vive
Do concílio dos maus e do caminho
Trilhado por perversos pecadores!
E que nunca ensinou, bem como o ímpio,
Do negro vício as máximas corruptas!
Ditoso o homem que fiel concentra
De seu Deus criador na lei divina
Todo o seu pensamento e seu afeto,
E nela só medita noite e dia!
Ele será qual árvore frondosa,
Banhada por arroios cristalinos,
Que bons frutos produz na quadra própria,
E nunca perde o viço e a louçania.
Quanto a sorte do ímpio é diferente!
Brinco do acaso, das paixões joguete,
Assemelha-se ao pó que o vento agita
E sobre a terra desdenhoso espalha.
No dia, pois, do santo julgamento
Perante o Deus severo, confundido,
Fulminado será, deixando ao justo,
O prêmio prometido: a glória eterna!

DE AVULSAS INVOCAÇÃO

Eu te vejo sentada entre os palmares
Robusta e bela, pensativa e airosa,
Cheias de sangue as fortes jugulares,
Beijando a naiadéia e não a rosa.
América gentil! Filha dos mares!
Tu, que a manhã bafeja carinhosa,
Dá gênio a teu cantor, lhe estende a mão,
Infunde-lhe na fronte a inspiração!
Pura em tua nudez, sempre singela,
Da Gália mentirosa o luxo deixas,
És da Escritura a tímida gazela!
Teus vestuários são tuas madeixas!
Do mundo conhecido és a donzela!
Sempre perdoas e jamais te queixas!
Dá gênio a teu cantor, lhe estende a mão,
Infunde-lhe na fronte a inspiração!
Hei de em minhas canções sempre invocar-te,
Pois creio que me atendes, que tens almas!
De teu cocar farei um estandarte
A cuja sombra tenha asilo e calma!
“Se a tanto me ajudar engenho e arte”
Nada na terra meu talento espalma!…
Dá gênio a teu cantor, lhe estende a mão,
Infunde-lhe na fronte a inspiração!
Simbolizas os filhos do futuro,
Os homens da esperança e da verdade,
Não tens de antigos o pensar escuro,
És só luz, pensamento e liberdade!
Não te manchou o rosto o bafo impuro
Das seitas infernais da média-idade!
Dá gênio a teu cantor, lhe estende a mão,
Infunde-lhe na fronte a inspiração!
Quero-te sempre assim entre os palmares
Robusta e bela, pensativa e airosa,
Cheias de sangue as fortes jugulares,
Beijando a naiadéia e não a rosa.
América gentil! Filha dos mares!
Tu, que a manhã bafeja carinhosa,
Dá gênio a teu cantor, lhe estende a mão,
Infunde-lhe na fronte a inspiração!

CANTO

I

Jesus! Filho de Deus! Quero adorar-te
No céu, na terra, no universo inteiro!
Vejo teu nome escrito em toda a parte
Onde vai meu olhar de forasteiro!
Milagres de saber, prodígios de arte,
Senhor e servo, artista e pegureiro,
Todos repetem neste mundo vário,
O poema sublime do Calvário!

II

Os astros de mais luz, orbes imensos,
Hipérboles lançadas sobre os ares,
Brilhantes a rolar em mares densos,
Escarpados de angélicos colares;
Gênios supernos, querubins infensos,
Tudo, tudo, Senhor, em teus altares
São míseras ofertas que a desgraça
Logo transforma em pó, cinza e fumaça!

III

A faixa branco-azul dos hemisférios,
Onde palpitam borboletas de ouro,
Estrada excelsa dos salões sidéreos,
Mostra a meus olhos imortal tesouro!
Ali vagueiam meus irmãos etéreos!
Ali repousa meu sonhar vindouro!
Ali da glória resplandece a origem!
Ali domina a sempiterna Virgem!

IV

O’ Cristo! Se de um sangue sacrossanto
Banhaste a gleba vil onde pisaste,
Se jogaram soldados em teu manto
Quando da cruz as dores suportaste,
Tudo mudou-se! Do divino pranto
Constelações sem número formaste!
Da túnica manchada por imundos
Fizeste o pavilhão que abriga os mundos.

V

Nos belos tempos da saudosa infância
Quadra de louros sonhos, de esperanças
Ouvia-te das balsas na fragrância:
– “Vinde, vinde até mim, pobres crianças!”
Tu me deste a miséria e a abundância,
Quando chorei, me consolaste, ó Deus!
Ao clarão imortal dos olhos teus!

VI

Rujam embora as vagas do oceano
Mandando aos alcantis navio incerto,
Corra o gládio de bárbaro tirano
Transformando as cidades num deserto!
Passe da peste e morte o sopro insano,
Medonho, horrendo em boqueirão aberto!
Flagele a humanidade a sede, a fome…
O’ Cristo! Creio em ti, creio em teu nome!

VII

Jesus! Hoje porém se os livros abro
E o fruto colho da fatal ciência,
Tudo vejo em terrível descalabro!
Nem crenças, nem razão, nem consciência
De velha planta tronco feio e glabro
Volve este pobre mundo em decadência!
Só tu podes verter aos homens luz,
Árvore santa onde sofreu Jesus!

ARMAS

– Qual a mais forte das armas,
A mais firme, a mais certeira?
A lança, a espada, a clavina,
Ou a funda aventureira?
A pistola? O bacamarte?
A espingarda, ou a flecha?
O canhão que em praça forte
Faz em dez minutos brecha?
– Qual a mais firme das armas?
O terçado, a fisga, o chuço,
O dardo, a maça, o virote?
A faca, o florete, o laço,
O punhal, ou o chifarote?…
A mais tremenda das armas,
Pior que a durindana,
Atendei, meus bons amigos:
Se apelida: – A língua humana!

DE CANTOS E FANTASIAS
JUVENÍLIA

I

Lembras-te, Iná, dessas noites
Cheias de doce harmonia,
Quando a floresta gemia
Do vento aos brandos açoites?
Quando as estrelas sorriam,
Quando as campinas tremiam
Nas dobras de úmido véu?
E nossas almas unidas
Estreitavam-se, sentidas
Ao langor daquele céu?
Lembras-te, Iná? Belo e mago,
Da névoa por entre o manto,
Erguia-se ao longe o canto
Dos pescadores do lago.
Os regatos soluçavam,
Os pinheiros murmuravam
No viso das cordilheiras,
E a brisa lenta e tardia
O chão revolto cobria
De flores das trepadeiras.
Lembras-te, Iná? Eras bela,
Ainda no albor da vida,
Tinhas a fronte cingida
De uma inocente capela.
Teu seio era como a lira
Que chora, canta e suspira
Ao roçar de leve aragem;
Teus sonhos eram suaves,
Como o gorjeio das aves
Por entre a escura folhagem.
Do mundo os negros horrores
Nem pressentias sequer;
Teus almos dias, mulher,
Passavam num chão de flores.
Oh! primavera sem termos!
Brancos luares dos ermos!
Auroras de amor sem fim!
Fugistes, deixando apenas
Por terra esparsas as penas
Das asas de um serafim!
Ah! Iná! Quanta esperança
Eu não vi brilhar nos céus
Ao luzir dos olhos teus,
A teu sorrir de criança!
Quanto te amei! Que futuros!
Que sonhos gratos e puros!
Que crenças na eternidade!
Quando a furto me falavas,
E meu ser embriagavas
Na febre da mocidade!
Como nas noites de estio,
Ao sopro do vento brando,
Rola o selvagem cantando
Na correnteza do rio;
Assim passava eu no mundo,
Nesse descuido profundo
Que etérea dita produz!
Tu eras, Iná, minh’alma,
De meu estro a glória e a palma,
De meus caminhos a luz!
Que é feito agora de tudo?
De tanta ilusão querida?
A selva não tem mais vida,
O lar é deserto e mudo!
Onde foste, oh! pomba errante?
Bela estrela cintilante
Que apontavas o porvir?
Dormes acaso no fundo
Do abismo tredo e profundo,
Minha pérola de Ofir?
Ah! Iná! por toda parte
Que teu espírito esteja,
Minh’alma que te deseja
Não cessará de buscar-te!
Irei às nuvens serenas,
Vestindo as ligeiras penas
Do mais ligeiro condor;
Irei ao pego espumante,
Como da Ásia o possante,
Soberto mergulhador!
Irei à pátria das fadas
E dos silfos errabundos,
Irei aos antros profundos
Das montanhas encantadas;
Se depois de imensas dores,
No seio ardente de amores
Eu não puder apertar-te,
Quebrando a dura barreira
Deste mundo de poeira,
Talvez, Iná, hei de achar-te!

II

Era à tardinha. Cismando,
Por uma senda arenosa
Eu caminhava. Tão brando,
Como a voz melodiosa
Da menina enamorada,
Sobre a grama aveludada,
Corria o vento a chorar.
Gemia a pomba… no ar
Passava grato e sentido
O aroma das maravilhas
Que cresciam junto às trilhas
Do deserto umedecido.
Mais bela que ao meio-dia,
Mais carinhosa batia
A luz nos canaviais;
E o manso mover das matas,
O barulho das cascatas
Tinham notas divinais.
Tudo era tão calmo e lindo,
Tão fresco e plácido ali,
Que minh’alma se expandindo
Voou, foi junto de ti,
Nas asas do pensamento,
Gozar do contentamento
Que noutro tempo fruí.
Oh! Como através dos mantos
Das saudades e dos prantos
Tão meigamente sorrias!
Tinhas o olhar tão profundo
Que de minh’alma no fundo
Fizeste brotar um mundo
De sagradas alegrias.
Uma grinalda de rosas
Brancas, virgens, odorosas,
Te cingia a fronte triste…
Cismavas queda, silente,
Mas, ao chegar-me, tremente
Te ergueste, e alegre, contente,
Sobre meus braços caíste.
Pouco a pouco, entre os palmares
Da longínqua serrania,
Sumia-se a luz do dia
Que aclarava esses lugares;
As campânulas pendidas
Sobre as fontes adormidas
De sereno gotejavam,
E no fundo azul dos céus,
Dos vapores entre os véus,
As estrelas despontavam.
Éramos sós, mais ninguém
Nossas palavras ouvia;
Como tremias, meu bem!
Como teu peito batia!…
Pelas janelas abertas
Entravam moles, incertas,
Daquelas plagas desertas
As virações suspirosas,
E cheias de mil desvelos,
Cheias de amor e de anelos,
Lançavam por teus cabelos
O eflúvio das tuberosas!…
Ai! tu não sabes que dores,
Que tremendos dissabores
Longe de ti eu padeço!
Em teu retiro sozinha,
Pobre criança mesquinha,
Cuidas talvez que te esqueço!
A turba dos insensatos
Entre fúteis aparatos
Canta e folga pelas ruas,
Mas triste, sem um amigo,
Em meu solitário abrigo
Pranteio saudades tuas!
Nem um minuto se passa,
Nem um inseto esvoaça,
Nem uma brisa perpassa
Sem uma lembrança aqui;
O céu da aurora risonho,
A luz de um astro tristonho,
Os sonhos que à noite sonho,
Tudo me fala de ti.

III

Tu és a aragem perdida
Na espessura do pomar,
Eu sou a folha caída
Que levas sobre as asas ao passar.
Ah! voa, voa, a sina cumprirei:
Te seguirei.
Tu és a lenda brilhante
Junto do berço cantada;
Eu sou o pávido infante
Que o sono esquece ouvindo-te a toada.
Ah! canta, canta, a sina cumprirei:
Te escutarei.
Tu és a onda de prata
Do regato transparente;
Eu a flor que se retrata
No cristal encantado da corrente.
Ah! chora, chora, o fado cumprirei:
Te beijarei.
Tu és o laço enganoso
Entre rosas estendido;
Eu o pássaro descuidoso
Por funesto prestígio seduzido.
Ah! não temas, a sina cumprirei:
Me entregarei.
Tu és o barquinho errante
No espelho azul da lagoa;
Eu sou a espuma alvejante
Que agita nágua a cortadora proa.
Ah! voga, voga, o fado cumprirei:
Me desfarei.
Tu és a luz da alvorada
Que rebenta na amplidão;
Eu a gota pendurada
Na trepadeira curva do sertão.
Ah! brilha, brilha, a sorte cumprirei:
Cintilarei.
Tu és o íris eterno
Sobre os desertos pendido;
Eu o ribeiro do inverno
Entre broncos fraguedos escondido.
Ah! fulge, fulge, a sorte cumprirei:
Deslizarei.
Tu és a esplêndida imagem
De um romântico sonhar;
Eu cisne de alva plumagem
Que falece de amor a te mirar.
Ah! surge, surge, o fado cumprirei:
Desmaiarei.
Tu és a luz crepitante
Que em noite trevosa ondeia;
Eu mariposa ofegante
Que em torno à chama trêmula volteia.
Ah! basta, basta, a sina cumprirei:
Me abrasarei.

IV

Teus olhos são negros, negros
Como a noite nas florestas…
Infeliz do viajante
Se de sombras tão funestas
Tanta luz não rebentasse!
A aurora desponta e nasce
Da noite escura e tardia:
Também da noite sombria
De teus olhos amorosos
Partem raios mais formosos
Que os raios da luz do dia.
Teu cabelo mais cheiroso
Que o perfume dos vergéis,
Na brancura imaculada
Da cútis acetinada
Rola em profusos anéis:
Eu quisera ter mil almas,
Todas ardentes de anelos,
Para prendê-la, meu anjo,
À luz de teus olhos belos,
Nos grilhões de teus olhares,
Nos anéis de teus cabelos!

V

Não vês quantos passarinhos
Se cruzam no azul do céu?
Pois olha, pomba querida,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.
Não vês quantas rosas belas
O sereno umedeceu?
Pois olha, flor de minh’alma,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.
Não vês quantos grãos de areia
Na praia o rio estendeu?
Pois olha, cândida pérola,
Mais vezes,
Mais vezes te adoro eu.
Ave, flor, perfume, canto,
Rainha do gênio meu,
Além da glória e dos anjos,
Mil vezes,
Mil vezes te adoro eu.

VI

És a sultana das brasílias terras,
A rosa mais balsâmica das serras,
A mais bela palmeira dos desertos;
Tens nos olhares do infinito as festas
E a mocidade eterna das florestas
Na frescura dos lábios entreabertos.
Por que Deus fez-te assim? Que brilho é esse
Que ora incendeia-se, ora desfalece
Nessas pupilas doidas de paixão?…
Quando as enxergo julgo nos silvados
Ver palpitar nos lírios debruçados
As borboletas negras do sertão.
O rochedo luzido, onde a torrente
Bate alta noite rápida e fremente,
De teu preto cabelo inveja a cor…
E que aroma, meu Deus! o estio inteiro
Parece que levanta-se fagueiro,
Cheio de sombra e cânticos de amor!
Quando tu falas lembro-me da infância,
Dos vergéis de dulcíssima fragrância
Onde cantava à tarde o sabiá!…
Ai! deixa-me chorar e fala ainda,
Não, não dissipes a saudade infinda
Que nesta fronte bafejando está!
Eu tenho nalma um pensamento escuro,
Tão tredo e fundo que o farol mais puro
Que Deus há feito espancará jamais
Debalde alívio hei procurado aflito,
Mas quando falas, teu falar bendito
Abranda-lhe os martírios infernais!
Dizem que a essência dos mortais há vindo
De um outro mundo mais formoso e lindo
Que um santo amor as bases alimenta;
Talvez nesse outro mundo um laço estreito
A teu peito prendesse o triste peito
Que hoje sem ti nas trevas se lamenta!
És a princesa das brasílias terras,
A rosa mais balsâmica das serras,
Do céu azul a estrela mais dileta…
Vem, não te afastes, teu sorrir divino
É belo como a aurora, e a voz um hino
Que o gênio inspira do infeliz poeta.

VII

Ah! quando face a face te contemplo,
E me queimo na luz de teu olhar,
E no mar de tu’alma afogo a minha,
E escuto-te falar;
Quando bebo teu hálito mais puro
Que o bafejo inefável das esferas.
E miro os róseos lábios que aviventam
Imortais primaveras,
Tenho medo de ti!… Sim, tenho medo
Porque pressinto as garras da loucura,
E me arrefeço aos gelos do ateísmo,
Soberba criatura!
Oh! Eu te adoro como adoro a noite
Por alto-mar, sem luz, sem claridade,
Entre as refregas do tufão bravio
Vingando a imensidade!
Como adoro as florestas primitivas
Que aos céus levantam perenais folhagens,
Onde se embalam nos coqueiros presas
As redes dos selvagens!
Como adoro os desertos e as tormentas,
O mistério do abismo e a paz dos ermos,
E a poeira de mundos que prateia
A abóbada sem termos!…
Como tudo o que é vasto, eterno e belo,
Tudo o que traz de Deus o nome escrito!
Como a vida sem fim que além me espera
No seio do infinito!

VIII

Saudades! tenho saudades
Daqueles serros azuis,
Que à tarde o sol inundava
De louros toques de luz!
Tenho saudades dos prados,
Dos coqueiros debruçados
À margem do ribeirão,
E o dobre de Ave-Maria
Que o sino da freguesia
Lançava pela amplidão!
Oh! minha infância querida!
Oh! doce quartel da vida!
Como passaste depressa!
Se tinhas de abandonar-me,
Por que, falsária, enganar-me
Com tanta meiga promessa?
Ingrata, por que te foste?
Por que te foste, infiel?
E a taça de etéreas ditas,
As ilusões tão bonitas
Cobriste de lama e fel?
Eu era vivo e travesso,
Tinha seis anos então,
Amava os contos de fadas
Contados junto ao fogão;
E as cantigas compassadas,
E as legendas encantadas
Das eras que lá se vão.
De minha mãe era o mimo,
De meu pai era a esperança;
Um tinha o céu, outro a glória
Em meu sorrir de criança,
Ambos das luzes viviam
Que de meus olhos partiam.
Junto do alpendre sentado
Brincava com minha irmã,
Chamando o grupo de anjinhos
Que tiritavam sozinhos
Na cerração da manhã;
Depois, por ínvios caminhos,
Por campinas orvalhadas,
Ao som de ledas risadas
Nos lançávamos correndo…
O viandante parava
Tão descuidosos nos vendo,
O camponês nos saudava,
A serrana nos beijava
Ternas palavras dizendo.
À tarde eram brincos, festas,
Carreiras entre as giestas,
Folguedos sobre a verdura;
Nossos pais nos contemplavam,
E seus seios palpitavam
De uma indizível ventura.
Mas ai! os anos passaram,
E com eles se apagaram
Tão lindos sonhos sonhados!
E a primavera tardia,
Que tanta flor prometia,
Só trouxe acerbos cuidados!
Inda revejo esse dia,
Cheio de dores e prantos,
Em que tão puros encantos
Oh! sem saber os perdia!
Lembra-me ainda: era à tarde.
Morria o sol entre os montes,
Casava-se a voz das rolas
Ao burburinho das fontes;
O espaço era todo aromas,
Da mata-virgem nas comas
Pairava um grato frescor;
As criancinhas brincavam,
E as violas ressoavam
Na cabana do pastor.
Parti, parti, mas minh’alma
Partida ficou também,
Metade ali, outra em penas
Que mais consolo não tem!
Oh! como é diverso o mundo
Daquelas serras azuis,
Daqueles vales que riem
Do sol à dourada luz!
Como diferem os homens
Daqueles rudes pastores
Que o rebanho apascentavam,
Cantando idílios de amores!
Subi aos paços dos nobres,
Fui aos casebres dos pobres,
Riqueza e miséria vi;
Mas tudo é morno e cansado,
Tem um gesto refalsado,
Nestes lugares daqui!
Oh! Então chorei por ti,
Minha adorada mansão;
Chamei-te de meu desterro,
Os braços alcei-te em vão!
Não mais! Os anos passaram,
E com eles desbotaram!
Tantas rosas de esperança!
Do tempo nas cinzas frias
Repousam pra sempre os dias
De meu sonhar de criança!

IX

Um dia o sol poente dourava a serrania,
As ondas suspiravam na praia mansamente,
E além nas solidões morria o som plangente
Dos sinos da cidade dobrando Ave-Maria.
Estávamos sozinhos sentados no terraço
Que a trepadeira em flor cobria de perfumes:
Tu escutavas muda das auras os queixumes,
Eu tinha os olhos fitos na vastidão do espaço.
Então me perguntaste com essa voz divina
Que a teu suave mando trazia-me cativo:
– Por que todo o poeta é triste e pensativo?
Por que dos outros homens não segue a mesma sina?
Era tão lindo o céu, a tarde era tão calma…
E teu olhar brilhava tão cheio de candura,
Criança! que não viste a tempestade escura
Que estas palavras tuas me despertaram nalma!
Pois bem, hoje que o tempo partiu de um golpe só
Sonhos da mocidade e crenças do futuro,
Na fronte do poeta não vês o selo escuro
Que faz amar as tumbas e afeiçoar-se ao pó?

X

À luz da aurora, nos jardins da Itália
Floresce a dália de sentida cor,
Conta-lhe o vento divinais desejos
E geme aos beijos da mimosa flor.
O céu é lindo, a fulgurante estrela
Ergue-se bela na amplidão do sul,
Pálidas nuvens do arrebol se coram,
As auras choram na lagoa azul.
Tu és a dália dos jardins da vida,
A estrela erguida no cerúleo véu,
Tens nalma um mundo de virtudes santas,
E a terra encantas num sonhar do céu.
Basta um bafejo na inspirada fibra
Que o seio vibra divinais encantos,
Como no templo do senhor vendado
O órgão sagrado se desfaz em cantos.
Pomba inocente, nem sequer o indício
Do escuro vício pressentiste apenas!
Nunca manchaste na charneca impura
A doce alvura das formosas penas.

CISMAS À NOITE

Doce brisa da noite, aura mais frouxa
Que o débil sopro de adormido infante,
Tu és, quem sabe? a perfumada aragem
Das asas de ouro algum gênio errante.
Tu és, quem sabe? a gemedora endecha
De um ente amigo que afastado chora,
E ao som das fibras do saltério ebúrneo
Conta-me as dores que padece agora!
Ai! não te arredes, viração tardia,
Zéfiro pleno da estival fragrância!
Sinto a teus beijos ressurgir-me nalma
O drama inteiro da rosada infância!
Bem com a aurora faz brotar as clícias,
Chama das selvas os festivais cantores,
Assim dos tempos na penumbra elevas
Todos os quadros da estação das flores.
Sim, vejo ao longe os matagais extensos,
O lago azul, os palmeirais airosos,
A grei sem conta de ovelhinhas brancas
Balindo alegre nos sarçais viçosos;
Diviso a choça paternal no outeiro,
Alva, gentil, dos laranjais no seio,
Como a gaivota descuidosa e calma
Das verdes ondas a boiar no meio;
Sinto o perfume das roçadas frescas,
Ouço a canção do lenhador sombrio,
Sigo o barqueiro que tranqüilo fende
A lisa face do profundo rio…
Oh! minhas noites de ilusões celestes!
Visões brilhantes da primeira idade!
Como de novo reviveis tão lindas
Por entre as balsas da nativa herdade!
Como no espaço derramais, suaves,
Tão langue aroma, vibração tão grata!
Como das sombras do passado, mesmo,
Tantas promessas o porvir desata!
Exalte embora o insensato as trevas,
Chame o descrido a solidão e a morte,
Não quero ainda fenecer, é cedo!
Creio na sina, tenho fé na sorte!
Creio que as dores que suporto alcancem
Um prêmio ainda da justiça eterna!
Oh! Basta um sonho!… o respirar de um silfo,
O amor duma alma compassiva e terna!
Basta uma noite de luar nos campos,
O brando eflúvio dos vergéis do sul,
Dois olhos belos, como a crença belos,
Fitos do espaço no fulgente azul!
Ah! não te afastes, viração amiga!
Além não passes com teu mole adejo!
Tens nas delícias que as torrentes vertes
Toda a doçura de um materno beijo!
Fala-me ainda desses tempos idos,
Rasga-me a tela da sazão que vem,
Foge depois, e mais sutil, mais tênue,
Vai meus suspiros repetir além.

SEXTILHAS

Amo o cantor solitário
Que chora no campanário
Do mosteiro abandonado,
E a trepadeira espinhosa
Que se abraça caprichosa
À forca do condenado.
Amo os noturnos lampírios
Que giram, errantes círios,
Sobre o chão dos cemitérios,
E ao clarão de tredas luzes
Fazem destacar as cruzes
De seu fundo de mistérios.
Amo as tímidas aranhas
Que, lacerando as entranhas,
Fabricam dourados fios,
E com seus leves tecidos
Dos tugúrios esquecidos
Cobrem os muros sombrios.
Amo a lagarta que dorme,
Nojenta, lânguida, informe,
Por entre as ervas rasteiras,
E as rãs que os pauis habitam,
E os moluscos que palpitam
Sob as vagas altaneiras!
Amo-os, porque todo o mundo
Lhes vota um ódio profundo,
Despreza-os sem compaixão!
Porque todos desconhecem
As dores que eles padecem
No meio da criação!

CÂNTICO DO CALVÁRIO

À memória de meu filho
Morto a 11 de dezembro de 1863
Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança!… eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro!…
Eras a messe de um dourado estio!…
Eras o idílio de um amor sublime!…
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai! – Ah! no entanto,
Pomba – varou-te a flecha do destino!
Astro – engoliu-te o temporal do norte!
Teto, caíste! Crença, já não vives!
Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!
Correi! Um dia vos verei mais belas
Que os diamantes de Ofir e de Golconda
Fulgurar na coroa de martírios
Que me circunda a fronte cismadora!
São mortos para mim da noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!
Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! sede benditas!
Oh! filho de minh’alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente,
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!
Não mais! A areia tem corrido, e o livro
De minha infanda história está completo.
Pouco tenho de andar! Um passo ainda,
E o fruto de meus dias, negro, podre,
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno! e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!
Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! o lago escuro
Onde ao clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!…
Oh! Quantas horas não gastei, sentado
Sobre as costas bravias do Oceano,
Esperando que a vida se esvaísse
Como um floco de espuma, ou como o friso
Que deixa nágua o lenho do barqueiro!
Quantos momentos de loucura e febre
Não consumi perdido nos desertos,
Escutando os rumores das florestas,
E procurando nessas vozes torvas
Distinguir o meu cântico de morte!
Quantas noites de angústias e delírios
Não velei, entre as sombras espreitando
A passagem veloz do gênio horrendo
Que o mundo abate ao galopar infrene
Do selvagem corcel?… E tudo embalde!
A vida parecia ardente e doida
Agarrar-se a meu ser!… E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda na alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave;
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
Meu filho! frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor… ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!
O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros bardos,
Torpe alegria que circunda os berços
Quando a opulência doura-lhes as bordas,

Não te saudaram ao sorrir primeiro,
Clícia mimosa rebentada à sombra!
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os príncipes da terra…
Templos, altares de afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de magia!
Cantos ditados pelo próprio Deus!
Oh! Quantos reis que a humanidade aviltam
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
Trocariam a púrpura romana
Por um verso, uma nota, um som apenas
Dos fecundos poemas que inspiraste!
Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
Do cantor infeliz lançaste à vida,
Arco-íris de amor! luz da aliança,
Calma e fulgente em meio da tormenta!
De exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes
Lançou dilúvios de harmonia! O gozo
Ao pranto sucedeu, as férreas horas
Em desejos alados se mudaram…
Noites fulgiam, madrugadas vinham,
Mas sepultados num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!
Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
Dos beijos divinais! nos olhos langues
Brilhava o brando raio que acendera
A bênção do Senhor quando o deixaste!
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz, voavam,
Riam-se alegres, das caçoilas níveas,
Celeste aroma te vertendo ao corpo!
E eu dizia comigo: – teu destino
Será mais belo que o cantar das fadas
Que dançam no arrebol, mais triunfante
Que o sol nascente derribando ao nada
Muralhas de negrume!… Irás tão alto
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!
Ai! doido sonho!… Uma estação passou-se,
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
Abrasou com seu facho ensangüentado
Meus soberbos castelos. A desgraça

Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seus dedos reais selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!…
Ouço o tanger monótono dos sinos,
E cada vibração contar parece
As ilusões que murcham-se contigo!
Escuto em meio de confusas vozes,
Cheias de frases pueris, estultas,
O linho mortuário que retalham
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, sinto o aroma
Do incenso das igrejas, ouço os cantos
Dos ministros de Deus que me repetem
Que não és mais da terra!… E choro embalde!…
Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe?
No vulto solitário de uma estrela…
E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto!
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria,
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde azinha subirá minh’alma.

QUEIXAS DO POETA

Ao cedro majestoso que o firmamento espana
Ligou a mão de Deus a úmida liana,
Às amplas soledades arroios amorosos,
Às selvas passarinhos de cantos sonorosos,
Neblinas às montanhas, aos mares virações,
Ao céu mundos e mundos de fúlgidos clarões,
Mas presa de uma dor tantálica e secreta
Sozinho fez brotar o gênio do poeta!…
A aurora tem cantigas e a mocidade rosas,
O sono do opulento visões deliciosas,
Nas ondas cristalinas espelham-se as estrelas,
E as noites desta terra têm seduções tão belas,
Que as plantas, os rochedos e os homens eletrizam,

E os mais dourados sonhos na vida realizam.
Mas triste, do martírio ferido pela seta,
Soluça no silêncio o mísero poeta!…
As auras do verão, nas regiões formosas
Do mundo americano, as virações cheirosas
Parecem confundidas rolar por sobre as flores
Que exalam da corola balsâmicos odores;
As leves borboletas em bandos esvoaçam,
Os reptis na sombra às árvores se enlaçam;
Mas só, sem o consolo de uma alma predileta,
Descora no desterro a fronte do poeta!…
O viajor que à tarde sobre os outeiros passa
Divisa junto às selvas um fio de fumaça
Erguer-se preguiçoso da choça hospitaleira
Pousada alegremente de um ribeirão à beira;
Ali junto dos seus descansa o lavrador,
Dos homens afastado e longe do rumor;
Mas no recinto escuro que o desalento infecta
Sucumbe lentamente o gênio do poeta!…
No rio caudaloso que a solidão retalha,
Da funda correnteza na límpida toalha,
Deslizam mansamente as garças alvejantes;
Nos trêmulos cipós de orvalho gotejantes
Embalam-se avezinhas de penas multicores
Pejando a mata virgem de cânticos de amores;
Mas presa de uma dor tantálica e secreta
De dia em dia murcha o louro do poeta!…

RESIGNAÇÃO

Sozinho no descampado,
Sozinho sem companheiro,
Sou como o cedro altaneiro
Pela tormenta açoitado.
Rugi, tufão desabrido!
Passai, temporais de pó!
Deixai o cedro esquecido,
Deixai o cedro estar só!
Em meu orgulho embuçado,
Do tempo zombo da lei…
Oh! venha o raio abrasado,
– Sem me vergar… tombarei!
Gigante da soledade,
Tenho na vida um consolo:

Se enterro as plantas no solo,
Chego a fronte à imensidade!
Nada a meu fado se prende,
Nada enxergo junto a mim;
Só o deserto se estende
A meus pés, fiel mastim.
À dor o orgulho sagrado
Deus ligou num grande nó…
Quero viver isolado,
Quero viver sempre só!
E quando o raio incendido
Roçar-me, então cairei
Em meu orgulho envolvido,
Como em um manto de rei.

PROTESTOS

Esquecer-me de ti? Pobre insensata!
Posso acaso o fazer quando em minh’alma
A cada instante a tua se retrata?
Quando és de minha vida o louro e a palma,
O faro amigo que anuncia o porto,
A luz bendita que a tormenta acalma?
Quando na angústia fúnebre do horto
És a sócia fiel que azinha instila
Na taça da amargura algum conforto?
Esquecer-me de ti, pomba tranqüila,
Em cujo peito, erário de esperança,
Entre promessa meu porvir se asila!
Esquecer-me de ti, frágil criança,
Ave medrosa que esvoaça e chora
Temendo o raio em dias de bonança!
Bane o pesar que a fronte te descora,
Seca as inúteis lágrimas no rosto…
Que, pois, receias se inda brilha a aurora?
Ermo arvoredo aos temporais exposto,
Tudo pode aluir, tudo apagar
Em minha vida a sombra do desgosto;
Ah! mas nunca teu nome há de riscar
De um coração que te idolatra, enquanto
Uma gota de sangue lhe restar!

É teu, e sempre teu, meu triste canto,
De ti rebenta a inspiração que tenho,
Sem ti me afogo num contínuo pranto;
Teu riso alenta meu cansado engenho,
E ao meigo auxílio de teus doces braços
Carrego aos ombros o funesto lenho.
De mais a mais se apertam nossos laços,
A ausência… oh! Que me importa! estás presente
Em toda a parte onde dirijo os passos.
Na brisa da manhã que molemente
Junca de flores do deserto as trilhas
Ouço-te a fala trêmula e plangente.
Do céu carmíneo nas douradas ilhas
Vejo-te, ao pôr-do-sol, a grata imagem,
Cercada de esplendor e maravilhas.
Da luz, do mar, da névoa e da folhagem
Uma outra tu mesma eu hei formado,
Outra que és tu, não pálida miragem.
E coloquei-te num altar sagrado
Do templo imenso que elevou talvez
Meu gênio pelos anjos inspirado!
Não posso te esquecer, tu bem o vês!
Abre-me d’alma o livro tão vendado,
Vê se te adoro ou não: por que descrês?

DESENGANO

Oh! não me fales da glória,
Não me fales da esperança!
Eu bem sei que são mentiras
Que se dissipam, criança!
Assim como a luz profliga
As sombras da imensidade,
O tempo desfaz em cinzas
Os sonhos da mocidade.
Tudo descora e se apaga:
É esta do mundo a lei,
Desde a choça do mendigo
Até aos paços do rei!
A poesia é um sopro,
A ciência uma ilusão,
Ambas tateiam nas trevas
A luz procurando em vão.

Caminham doidas, sem rumo,
Na senda que à dor conduz,
E vão cair soluçando
Aos pés de sangrenta cruz.
Oh! Não me fales da glória,
Não me fales da esperança!
Eu bem sei que são mentiras
Que se dissipam, criança!
Que me importa um nome impresso
No templo da humanidade,
E as coroas de poeta,
E o selo da eternidade,
Se para escrever os cantos
Que a multidão admira
É mister quebrar as penas
De minh’alma que suspira?
Se nos desertos da vida,
Romeiro da maldição,
Tenho de andar sem descanso
Como o Hebreu da tradição?…
Buscar das selvas o abrigo,
A sombra que a paz aninha,
E ouvir a selva bradar-me:
Ergue-te, doido, e caminha!
Caminha! dizer-me o mante!
Caminha! dizer-me o prado.
Oh! Mais não posso! – Caminha!
Responder-me o descampado?…
Ah! não me fales da glória,
Não me fales da esperança!
Eu bem sei que são mentiras
Que se dissipam, criança!

EM TODA A PARTE

Quando alta noite as florestas,
Ao soprar das ventanias,
Tenebrosas agonias
Traem nas vozes funestas,
Quando as torrentes bravejam,
Quando os coriscos rastejam
Na espuma dos escarcéus…
Então a passos incertos
Procuro os amplos desertos
Para escutar-te, meu Deus!
Quando na face dos mares
Espelha-se o rei dos astros,
Cobrindo de ardentes rastros
Os cerúleos alcaçares;
E a luz domina os espaços

Partindo da névoa os laços,
Rasgando da sombra os véus…
Então resoluto, ufano,
Corro às praias do oceano
Para mirar-te, meu Deus!
Quando às bafagens do estio
Tremem os pomos dourados,
Sobre os galhos pendurados
Do pomar fresco e sombrio;
Quando à flor d’água os peixinhos
Saltitam, e os passarinhos
Se cruzam no azul dos céus,
Então procuro as savanas,
Me atiro entre as verdes canas
Para sentir-te, meu Deus!
Quando a tristeza desdobra
Seu manto escuro em minh’alma,
E vejo que nem a calma
Desfruto que aos outros sobra,
E do passado no templo
Letra por letra contemplo
A nênia dos sonhos meus…
Então me afundo na essência
De minha própria existência
Para entender-te, meu Deus!

NO ERMO

Salve! erguidas cordilheiras,
Brenhas, rochas altaneiras,
Donde as alvas cachoeiras
Se arrojam troando os ares!
Folhas que rangem caindo,
Feras que passam rugindo,
Gênios que dormem sorrindo
No fresco chão dos palmares!
Salve! florestas sombrias,
Onde as rijas ventanias
Acordam mil harmonias
Na doce quadra estival!
Rolas gentis que suspiram,
Louras abelhas que giram
Sobre as flores que transpiram
No seio do taquaral!
Salve! esplêndida espessura,
Mares de sombra e verdura
Donde a brisa etérea e pura

Faz brotar a inspiração,
Quando à luz dos vaga-lumes,
Da mariposa aos cardumes
Se casam moles queixumes
Dos filhos da solidão!
Ah! que eu não possa me afastar das turbas,
Curar a febre que meu ser consome,
E entre alegrias me atirar cantando
Nas secas folhas do sertão sem nome…
Ah! que eu não possa desprender aos ermos
O fogo ardente que meu crânio encerra,
Gastar os dias entre Deus e os gênios
Nas matas virgens da cabrália terra!
Eu não detesto nem maldigo a vida,
Nem do despeito me remorde a chaga;
Mas ai! sou pobre, pequenino e débil,
E sobre a estrada o viajor me esmaga!
Fere-me os olhos o clarão do mundo,
Rasgam-me o seio prematuras dores,
E à mágoa insana que me enluta as noites
Declino à campa na estação das flores!
E há tanto encanto nos desertos vastos,
Tanta beleza do sertão na sombra,
Tanta harmonia no correr do rio,
Tanta doçura na campestre alfombra,
Que inda pudera se alentar de novo
E entre delícias flutuar minh’alma,
Fanada planta que mendiga apenas
O orvalho, a noite, a viração e a calma!
Abre-me os braços, ó fada,
Fada do ermo profundo,
Onde o bulício do mundo
Não ousa sequer bater!
Oh! quero tudo esquecer,
Tudo o que aos homens seduz,
Beber uma nova vida
E a fronte elevar ungida
De santas crenças à luz!
Glória, futuro… o que valem
Futuro e glórias de pó…

Sem gratos sonhos que embalem
O triste descrido e só?
De que serve o ouro, a fama,
Um nome – pálida chama!
Quando à noite junto à cama
Só há martírios e dores?
Quando a aurora é sem belezas,
Cheias de espinhos as devesas,
E a tarde só tem tristezas
Em vez de cantos e flores!

VERSOS SOLTOS

Ao General Juarez

Juarez! Juarez! Quando as idades,
Fachos de luz que a tirania espancam,
Passarem desvendando sobre a terra
As verdades que a sombra escurecia;
Quando soar no firmamento esplêndido
O julgamento eterno;
Então banhado do prestígio santo
Das tradições que as epopéias criam,
Grande como um mistério do passado,
Será teu nome a mágica palavra
Que o mundo falará lembrando as glórias
Da raça mexicana!
Quem se atreve a medir-te face a face?
Quem teu vôo acompanha nas alturas,
Condor soberbo que da luz nas ondas
Sacode o orvalho das possantes asas,
E lança um grito de desprezo infindo
Aos milhafres rasteiros?
Que destemido caçador dos ermos
Irá te cativar, ave sublime,
Nessas costas bravias e tremendas
Onde o Grande Oceano atira as vagas
E os vendavais sem peias atordoam
O espaço de rugidos?
Que sicário real, nas matas virgens,
Amplas, sem marcos, sem batismo e data,
Te apanhará, jaguar das soledades?…
Ah! tu espreitas os vulcões que dormem!
Quando a cratera encher-se, à luz vermelha
Rebentarás nas praças!
Trarás contigo os raios da tormenta!
Da tormenta serás o sopro ardente!
Mas a tormenta passará de novo
E o golfo mexicano iluminado
Refletirá teu vulto gigantesco.

O’águia do porvir!
Teu nome está gravado nos desertos
Onde pés de mortal jamais pisaram!
Quando pudessem deslembrá-lo os homens,
As selvas despiriam-se de folhas,
Para arrojá-las do tufão nas asas
As multidões ingratas!
Como as de um livro imenso elas compõem
Teu poema sublime, a pluma eterna
Do invisível destino, e não rasteira,
Mísera pena de mundano bardo,
Nelas traçou as indeléveis cifras
De teu nome imortal!
Os pastores de Puebla e de Xalisco,
As morenas donzelas de Bergara
Cantam teus feitos junto ao lar tranqüilo
Nas noites perfumadas e risonhas
Da terra americana. Os viajantes,
Que os desertos percorrem, pensativos
Param no cimo das erguidas serras,
Medem com a vista o descampado imenso,
E murmuram fitando os horizontes
Vastos, perdidos num lençol de névoas:
Juarez! Juarez! em toda a parte
Teu espírito vaga!…
Falam de ti as fontes e as montanhas,
As ervinhas do campo e os passarinhos
Que, abrindo as asas no azulado céu,
Como um bando de sonhos esvoaçam.
Mas esse nome que ameniza o canto
Do torvo montanhês, e mais suave
Que um suspiro de amor, parte dos lábios
Da virgem sonhadora das campinas,
Faz tremer o tirano que repousa
Nos macios coxins do leito de ouro,
Como o brado do arcanjo no infinito
Ao fenecer dos mundos!
Deixa que as turbas de terror escravas
Junto de falso trono se ajoelhem!
Os brindes e os folguedos continuam…
Mas a mão invisível do destino
Na sala do banquete austera escreve
O aresto irrevogável!

SETE DE SETEMBRO

Quando o gênio de Deus em santo arrojo
Batendo as sombras atirou no espaço
A hipérbole da luz,
E a matéria disforme que boiava
Sem destino e sem rumo, abriu a senda
Que à perfeição conduz;
Os querubins calaram-se escutando
A ode universal que retumbava
Aos pés do Criador;
E a natureza virgem dilatou-se,
E os mundos abalaram-se rugindo:
– Somos livres, Senhor!
As gerações ergueram-se no tempo:
De cada idéia levantou-se um povo,
De cada povo a lei!…
As eras sucederam-se confusas;
Mas o canto divino orientava
Das multidões a grei.
E ora entre névoas, ora entre fulgores,
Como a lua formosa em céu nublado,
A liberdade andava,
E a cada passo a trânsfuga celeste
Um rasto imenso de grilhões partidos
Como o raio deixava!…
Mas tu, risonha plaga americana,
Ilha de amor nos mares do mistério,
Dormias a sorrir,
Tão linda como o cisne de alvas penas,
Tão pura como a virgem balouçada
Nos sonhos do porvir!
Do vulto horrendo do voraz abutre
A sombra intensa não toldou-te as faces,
Nem manchou-te, é mentira!
Anjo de asas de luz! não foste escrava!
Criança! inda era cedo, o canto eterno
Dormia-te na lira!
Dormia! mas o hábito de Deus
Rugia-te nas fibras, inflamado
Como o vulcão no mar!
As nações esperavam-te ansiosas,
E no forum dos povos avultava
Vazio o teu lugar!
Apareceste enfim, mas não liberta,
Que nunca foste escrava, apenas débil,
Sem forças, vacilante;
Se assim não é, onde estarão teus ferros?
Onde o pó das prisões que derribaste?
Onde o jugo infamante?
É neste altar de esplêndido futuro,
Berço de outrora, trono do presente,
Que beijamos-te as plantas,
E ao perfume do incenso, ao som dos hinos,
Adoramos em ti, da liberdade
As glórias sacrossantas.
Filha augusta de Deus! Rosa banhada
Da Redenção nas lágrimas ardentes!
Mãe das raças opressas!
Pomba sagrada que rompendo as nuvens
Trazes ao lenho errante o verde ramo
Ungido de promessas;
Liberdade gentil, mil vezes salve!
Salve! sem peias devassando os ares,
Espancando os bulcões!
Salve! nos paços de opulentos sátrapas!
Salve! na choça humilde do operário!
Salve até nas prisões!

DE CANTOS MERIDIONAIS

O ESCRAVO

Ao Sr. Tomaz de Aquino Borges

Dorme! Bendito o arcanjo tenebroso
Cujo dedo imortal
Gravou-te sobre a testa bronzeada
O sigilo fatal!
Dorme! Se a terra devorou sedenta
De teu rosto o suor,
Mãe compassiva agora te agasalha
Com zelo e com amor.
Ninguém te disse o adeus da despedida,
Ninguém por ti chorou!
Embora! A humanidade em teu sud&aacuaacute;rio
Os olhos enxugou!
A verdade luziu por um momento
De teus irmãos à grei:
Se vivo foste escravo, és morto… livre
Pela suprema lei!
Tu suspiraste como o hebreu cativo
Saudoso do Jordão,
Pesado achaste o ferro da revolta,
Não o quiseste, não!
Lançaste-o sobre a terra inconsciente
De teu próprio poder!
Contra o direito, contra a natureza,
Preferiste morrer!
Do augusto condenado as leis são santas,
São leis porém de amor:
Por amor de ti mesmo e dos mais homens
Preciso era o valor…
Não o tiveste! Os ferros e os açoites
Mataram-te a razão!
Dobrado cativeiro! A teus algozes
Dobrada punição!
Por que nos teus momentos de suplício,
De agonia e de dor,
Não chamaste das terras africanas
O vento assolador?
Ele traria a força e a persistência
À tu’alma sem fé,
Nos rugidos dos tigres de Benguela,
Dos leões de Guiné!…
Ele traria o fogo dos desertos,
O sol dos areais,
A voz de teus irmãos viril e forte,
O brado de teus pais!
Ele te sopraria às moles fibras
A raiva do suão
Quando agitando as crinas inflamadas
Fustiga a solidão!
Então ergueras resoluto a fronte,
E, grande em teu valor,
Mostraras que em teu seio inda vibrava
A voz do Criador!
Mostraras que das sombras do martírio
Também rebenta a luz!
Oh! teus grilhões seriam tão sublimes,
Tão santos como a cruz!
Mas morreste sem lutas, sem protestos,
Sem um grito sequer!
Como a ovelha no altar, como a criança
No ventre da mulher!
Morreste sem mostrar que tinhas nalma
Uma chispa do céu!
Como se um crime sobre ti pesasse!
Como se foras réu!
Sem defesa, sem preces, sem lamentos,
Sem círios, sem caixão,
Passaste da senzala ao cemitério!
Do lixo à podridão!
Tua essência imortal onde é que estava?
Onde as leis do Senhor?
Digam-no o tronco, o látego, as algemas
E as ordens do feitor!
Digam-no as ambições desenfreadas,
A cobiça fatal,
Que a eternidade arvoram nos limites
De um círculo mortal!
Digam-no o luxo, as pompas e grandezas,
Lacaios e brasões,
Tesouros sobre o sangue amontoados,
Paços sobre vulcões!
Digam-no as almas vis das prostitutas,
O lodo e o cetim,
O demônio do jogo, a febre acesa
Em ondas de rubim!…
E no entanto tinhas um destino,
Uma vida, um porvir,
Um quinhão de prazeres e venturas
Sobre a terra a fruir!
Eras o mesmo ser, a mesma essência
Que teu bárbaro algoz;
Foram seus dias de rosada seda,
Os teus de atro retroz!…
Pátria, família, idéias, esperanças,
Crenças, religião,
Tudo matou-te, em flor no íntimo d’alma,
O dedo da opressão!
Tudo, tudo abateu sem dó, nem pena!
Tudo, tudo, meu Deus!
E teu olhar à lama condenado
Esqueceu-se dos céus!…
Dorme! Bendito o arcanjo tenebroso
Cuja cifra imortal,
Selando-te o sepulcro, abriu-te os olhos
À luz universal!

A CIDADE

A meu predileto amigo o Sr. Dr. Betoldi
A cidade ali está com seus enganos,
Seu cortejo de vícios e traições,
Seus vastos templos, seus bazares amplos,
Seus ricos paços, seus bordéis salões.
A cidade ali está: sobre seus tetos
Paira dos arsenais o fumo espesso,
Rolam nas ruas da vaidade os coches
E ri-se o crime à sombra do progresso.
A cidade ali está: sob os alpendres
Dorme o mendigo ao sol do meio-dia,
Chora a viúva em úmido tugúrio,
Canta na catedral a hipocrisia.
A cidade ali está: com ela o erro,
A perfídia, a mentira, a desventura…
Como é suave o aroma das florestas!
Como é doce das serras a frescura!
A cidade ali está: cada passante
Que se envolve das turbas no bulício
Tem a maldade sobre a fronte escrita,
Tem na língua o veneno e nalma o vício.
Não, não é na cidade que se formam
Os fortes corações, as crenças grandes,
Como também nos charcos das planícies
Não é que gera-se o condor dos Andes!
Não, não é na cidade que as virtudes,
As vocações eleitas resplandecem,
Flores de ar livre, à sombra das muralhas
Pendem cedo a cabeça e amarelecem.
Quanta cena infernal sob essas telhas!
Quanto infantil vagido de agonia!
Quanto adultério! Quanto escuro incesto!
Quanta infâmia escondida à luz do dia!
Quanta atroz injustiça e quantos prantos!
Quanto drama fatal! Quantos pesares!

Quanta fronte celeste profanada!
Quanta virgem vendida aos lupanares!
Quanto talento desbotado e morto!
Quanto gênio atirado a quem mais der!
Quanta afeição cortada! Quanta dúvida!
Num carinho de mãe ou de mulher!
Eis a cidade! Ali a guerra, as trevas,
A lama, a podridão, a iniqüidade;
Aqui o céu azul, as selvas virgens,
O ar, a luz, a vida, a liberdade!
Ali medonhos, sórdidos alcouces,
Antros de perdição, covis escuros,
Onde ao clarão de baços candeeiros
Passam da noite os lêmures impuros;
E abalroam-se as múmias coroadas,
Corpos de lepra e de infecção cobertos,
Em cujos membros mordem-se raivosos
Os vermes pelas sedas encobertos!
Aqui verdes campinas, altos montes,
Regatos de cristal, matas viçosas,
Borboletas azuis, loiras abelhas,
Hinos de amor, canções melodiosas.
Ali a honra e o mérito esquecidos,
Mortas as crenças, mortos os afetos,
Os lares sem legenda, a musa exposta
Aos dentes vis de perros objetos!
Presa a virtude ao cofre dos banqueiros,
A lei de Deus entregue aos histriões!
Em cada rosto o selo do egoísmo,
Em cada peito um mundo de traições!
Depois o jogo, a embriaguez, o roubo,
A febre nos ladrilhos do prostíbulo,
O hospital, a prisão… Por desenredo
A imagem pavorosa do patíbulo!
Eis a cidade!… Aqui a paz constante,
Serena a consciência, alegre a vida,
Formoso o dia, a noite sem remorsos,
Pródiga a terra, nossa mãe querida!
Salve, florestas virgens! Rudes serras!
Templos da imorredoura liberdade!
Salve! Três vezes salve! Em teus asilos
Sinto-me grande, vejo a divindade!

AO RIO DE JANEIRO

Adeus! Adeus! Nas cerrações perdida
Vejo-te apenas, Guanabara altiva,
Mole, indolente, à beira-mar sentada,
Sorrindo às ondas em nudez lasciva.
Mimo das águas, flor do Novo Mundo,
Terra dos sonhos meus,
Recebe azinha no passar dos ventos
Meu derradeiro adeus!
A noite desce, os boqueirões de espuma
Rugem pejados de ferventes lumes,
E os loiros filhos do marinho império
Brotam do abismo em festivais cardumes.
Sinistra voz envia-me aos ouvidos
Um cântico fatal!
Permita o fado que a teu seio eu volte,
Oh! meu torrão natal!
Já no horizonte as plagas se confundem,
O céu e a terra abraçam-se discretos,
Leves os vultos das palmeiras tremem
Como as antenas de sutis insetos.
Agora o espaço, as sombras, a saudade,
O pranto e a reflexão…
A alma entregue a si, Deus nas alturas…
Nos lábios a oração!
Tristes idéias, pensamentos fundos
Nublam-me a fronte descaída e fria,
Como esses flocos de neblina errante
Que os cerros vendam quando morre o dia.
Amanhã, que verei? Talvez o porto,
Talvez o sol… não sei!
Brinco do fado, a dor é minha essência,
O acaso minha lei!…
Que importa! A pátria do poeta o segue
Por toda a parte onde o conduz a sorte,
No mar, nos ermos, do ideal nos braços,

Respeita o selo imperial da morte!
Oceano profundo! Augusto emblema
Da vida universal!
Leva um adeus ainda às alvas praias
De meu torrão natal.

A FLOR DO MARACUJÁ

Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!
Pelo jasmim, pelo goivo,
Pelo agreste manacá,
Pelas gotas de sereno
Nas folhas do gravatá,
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracujá!
Pelas tranças de mãe-dágua
Que junto da fonte está,
Pelos colibris que brincam
Nas alvas plumas do ubá,
Pelos cravos desenhados
Na flor do maracujá!
Pelas azuis borboletas
Que descem do Panamá,
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincorá,
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracujá!
Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas,
Que falam de Jeová!
Pela lança ensangüentada
Da flor do maracujá!
Por tudo o que o céu revela,
Por tudo o que a terra dá
Eu te juro que minh’alma
De tua alma escrava está!…
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá!

Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em – á –
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos, ouve, sinhá!
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracujá!

A ROÇA

O balanço da rede, o bom fogo
Sob um teto de humilde sapé;
A palestra, os lundus, a viola,
O cigarro, a modinha, o café;
Um robusto alazão, mais ligeiro
Do que o vento que vem do sertão,
Negras crinas, olhar de tormenta,
Pés que apenas rastejam no chão;
E depois um sorrir de roceira,
Meigos gestos, requebros de amor,
Seios nus, braços nus, tranças soltas,
Moles falas, idade de flor;
Beijos dados sem medo ao ar livre,
Risos francos, alegres serões,
Mil brinquedos no campo ao sol posto,
Ao surgir da manhã mil canções:
Eis a vida nas vastas planícies
Ou nos montes da terra da Cruz:
Sobre o solo só flores e glórias,
Sob o céu só magia e só luz.
Belos ermos, risonhos desertos,
Livres serras, extensos marnéis,
Onde muge o novilho anafado,
Onde nitrem fogosos corcéis…
Onde a infância passei descuidoso.
Onde tantos idílios sonhei,
Onde ao som dos pandeiros ruidosos
Tantas danças da roça dancei…
Onde a viva e gentil mocidade
Num contínuo folgar consumi,
Como longe avultais no passado!
Como longe vos vejo daqui!

Se eu tivesse por livro as florestas,
Se eu tivesse por mestre a amplidão,
Por amigos as plantas e as aves,
Uma flecha e um cocar por brasão;
Não manchara minh’alma inspirada,
Não gastara meu próprio vigor,
Não cobrira de lama e de escárnios
Meus lauréis de poeta e cantor!
Voto horror às grandezas do mundo,
Mar coberto de horríveis parcéis,
Vejo as pompas e galas da vida
De um cendal de poeira através.
Ah! nem creio na humana ciência,
Triste acervo de enganos fatais,
O clarão do saber verdadeiro
Não fulgura aos olhares mortais!
Mas um gênio impiedoso me arrasta,
Me arremessa do vulgo ao vaivém,
E eu soluço nas sombras olhando
Minhas serras queridas além!

A CRIANÇA

É menos bela a aurora,
A neve é menos pura
Que uma criança loura
No berço adormecida!
Seus lábios inocentes,
Meu Deus, inda respiram
Os lânguidos aromas
Das flores de outra vida!
O anjo de asas brancas
Que lhe protege o sono
Nem uma nódoa enxerga
Naquela alma divina!
Nunca sacode as plumas
Para voltar às nuvens,
Nem triste afasta ao vê-la
A face peregrina!
No seio da criança
Não há serpes ocultas,
Nem pérfido veneno,
Nem devorantes lumes.
Tudo é candura e festas!

Sua sublime essência
Parece um vaso de ouro
Repleto de perfumes!
E ela cresce, os vícios
Os passos lhe acompanham,
Seu anjo de asas brancas
Pranteia ou torna ao céu.
O cálice brilhante
Transborda de absinto,
E a vida corre envolta
Num tenebroso véu!
Depois ela envelhece.
Fogem os róseos sonhos,
O astro da esperança
Do espaço azul se escoa…
Pende-lhe ao seio a fronte
Coberta de geadas,
E a mão rugosa e trêmula
Levanta-se e abençoa!
Homens! O infante e o velho
São dois sagrados seres,
Um deixa o céu apenas,
O outro ao céu se volta,
Um cerra as asas débeis
E adora a divindade…
O outro a Deus adora
E as asas níveas solta!
Do querubim que dorme
Na face alva e rosada
O traço existe ainda
Dos beijos dos anjinhos,
Assim como na fronte
Do velho brilha e fulge
A luz que do infinito
Aponta-lhe os caminhos!
Nestas infaustas eras,
Quando a família humana
Quebra sem dó, sem crenças,
O altar e o ataúde,
Nos olhos da criança
Creiamos na inocência,
E nos cabelos brancos
Saudemos a virtude!

EXPIAÇÃO

Quando cansada da vigília insana
Declino a fronte num dormir profundo,
Por que teu nome vem ferir-me o ouvido,
Lembrar-me o tempo que passei no mundo?
Por que teu vulto se levanta airoso,
Ébrio de almejos de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o peito,
No meu retiro vens tentar-me ainda?
Por que me falas de venturas longas?
Por que me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes à fogueira extinta?
Doces perfumes a polutas flores?
Não basta ainda essa ignóbil farsa,
Páginas negras que a teus pés compus?
Nem estas fundas, perenais angústias,
Dias sem crenças e serões sem luz?
Não basta o quadro de meus verdes anos,
Manchado, roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
Onde pranteio desprezado e só?
Ah! Não me lembres do passado as cenas!
Nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? A quantos outros, dize,
A quantos outros não fizeste o mesmo?
A quantos outros, inda os lábios quentes
De ardentes beijos que eu te dera então,
Não apertaste no vazio peito
Entre promessas de eternal paixão?
Oh! Fui um doido que segui teus passos!
Que dei-te, em versos, da beleza a palma!
Mas tudo foi-se! e esse passado negro
Por que sem pena me despertas nalma?
Deixa-me agora repousar tranqüilo!
Deixa-me agora descansar em paz!…
Ai! com teus risos de infernal encanto
Em meu retiro não me tentes mais!

NOTURNO

Minh’alma é como um deserto
78
78
Por onde romeiro incerto
Procura uma sombra em vão;
É como a ilha maldita
Que sobre as vagas palpita
Queimada por um vulcão!
Minh’alma é como a serpente
Que se torce ébria e demente
De vivas chamas no meio;
É como a doida que dança
Sem mesmo guardar lembrança
Do cancro que rói-lhe o seio!
Minh’alma é como o rochedo
Donde o abutre e o corvo tredo
Motejam dos vendavais;
Coberto de atros matizes,
Lavrado das cicatrizes
Do raio, nos temporais!
Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram,
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!
Tombam as selvas frondosas,
Cantam as aves mimosas
As nênias da viuvez;
Tudo, tudo, vai finando,
Mas eu pergunto chorando:
Quando será minha vez?
No véu etéreo os planetas,
No casulo as borboletas
Gozam da calma final;
Porém meus olhos cansados
São, a mirar, condenados
Dos seres o funeral!
Quero morrer! Este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel!
Minha esperança esvaiu-se,
Meu talento consumiu-se
Dos martírios ao tropel!

Quero morrer! Não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançá-lo ao chão;
Do pó desprender-me rindo
E, as asas brancas abrindo,
Perder-me pela amplidão!
Vem, oh! morte! A turba imunda
Em sua ilusão profunda
Te odeia, te calunia,
Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria!
Virgens, anjos e crianças,
Coroadas de esperanças,
Dobram a fronte a teus pés!
Os vivos vão repousando!
E tu me deixas chorando!
Quando virá minha vez?
Minh’alma é como um deserto
Por onde o romeiro incerto
Procura uma sombra em vão;
É como a ilha maldita
Que sobre as vagas palpita
Queimada por um vulcão!

NARRAÇÃO

Gastei meu gênio, desfolhei sem pena
A flor da mocidade entre os enganos,
E, cansado das lidas deste mundo,
Procurei o deserto aos vinte anos.
A cavalo, sem rumo, o olhar tristonho,
Na boca o saibo de fatal veneno,
Percorria as campinas e as montanhas
Da bela terra de Amador Bueno.
Era no mês de agosto, o mês dos risos,
Das doces queixas, das canções sentidas,
Quando no céu azul, ermo de nuvens,
Passam as andorinhas foragidas.
Quando voltam do exílio as garças brancas,
Quando as manhãs são ledas e sem brumas,
Quando sobre a corrente dos ribeiros
Pende o canavial as alvas plumas;

Quando palram no mato os periquitos,
Quando corre o tatu pelas roçadas,
Quando chilra a cigarra nos fraguedos
E geme a juriti nas assomadas;
Quando os lagartos dormem no caminho,
Quando os macacos pulam nas palmeiras,
Quando se casa o grito da araponga
À triste e surda voz das cachoeiras;
Então que de poemas nas florestas!
Que de sonhos de amor pelas choupanas!
Que de selvagens, místicos rumores
Dos lagos pelas verdes espadanas!
Um brando véu da languidez divina
Paira sobre a cabeça dos viventes,
Vergam-se as maravilhas sobre as hastes,
Refrescam-se os cipós sobre as torrentes.
Quedam-se as borboletas nos pomares,
Gemem os sabiás pelos outeiros,
Chamam-se enamorados os canários,
E os fulvos bem-te-vis nos ingazeiros.
O lavrador recolhe-se à palhoça,
Reclina-se na esteira e se espreguiça,
E entre os folguedos da bendita prole
Se entrega ao doce vício da preguiça.
O viandante pára nas estradas,
Abre os alforjes, e do mato à sombra,
Depois de cheio e farto, fuma e sonha
Da mole grama da macia alfombra.
A natureza inteira ama e soluça,
Ébria de afrodisíacos perfumes,
E a mente solitária do poeta
Se abrasa em chamas de insensatos lumes.
Foi quando vi Mimosa a vez primeira,
Beija-flor do deserto, agreste rosa,
Gentil como a Dalila da Escritura,
Mais ingênua, porém, mais amorosa…
Punha-se o sol; as sombras sonolentas
Mansamente nos vales se alongavam,
Bebiam na taberna os arrieiros

E as bestas na poeira se espojavam.
O fogo ardia vívido e brilhante
No vasto rancho ao lado do jirau,
Onde os tropeiros sobre fulvos couros
Entregavam-se ao culto do pacau.
A cachaça alegrava os olhos todos,
As cuias de café se repetiam,
E as fátuas baforadas dos cachimbos
Nos caibros fumarentos se perdiam.
A viola soava alegremente…
Que meigas notas! Que tanger dorido!
Vida de sonhos, drama de aventuras,
Não, vós não morrereis no mar do olvido!
Mimosa estava em pé sobre a soleira
Da exígua entrada da mesquinha venda,
Saudosa, como à sombra do passado
Um tipo de balada ou de legenda.
Saudosa, sim, cercada do prestígio
Dessa beleza vaga, indefinível,
Cuja expressão completa em vão procura
O pobre pensador sobre o visível!
Que faz lembrar o que existiu, é certo,
Porém aonde e quando? Que tortura
A memória impotente e em vez de um fato
Mostra ao poeta o abismo da loucura!
Indeciso clarão de uma outra vida!
Fugitivo ondular, dobra ligeira
Do manto do ideal estremecendo
Entre bulcões de fumo e de poeira!
Raio de Deus na face da matéria!
Frouxo luzir do sol da poesia!
Eu vos contemplarei a pura essência?
Eu poderei gozar-vos algum dia?
Nada de digressões. Minha heroína
Fumava um cigarrinho branco, leve,
Delgado como um brinco de criança,
Como um torrão de açúcar ou de neve.
E o vapor azulado lhe vendava

De quando em quando as faces peregrinas…
Parecia uma fada do Oriente,
Uma visão do ópio entre neblinas.
A saia de ramagens caprichosas
Caía-lhe em prodígios da cintura,
Entre os bordados da infiel camisa
Tremiam dois delírios de escultura.
Sobre a direita a perna esquerda curva,
Capaz de enlouquecer Fídias – o mestre,
Dava um encanto singular ao vulto
Daquela altiva perfeição campestre.
Depois em tamanquinhos amarelos
Pés de princesa, pés diminutivos,
Cútis morena revelando à vista,
Do pêssego e do jambo os tons lascivos.
Olhos ébrios de fogo, vida e gozo,
Sombrias palpitantes mariposas,
Cabelos negros, bastos, enastrados
De roxos manacás e rubras rosas.
Eis Mimosa! Seu corpo trescalava
O quente e vivo aroma da alfazema,
Perfume de cabocla e de roceira,
Porém que para mim vale um poema!

DE CANTOS DO ERMO E DA CIDADE EU AMO A NOITE

Eu amo a noite quando deixa os montes,
Bela, mas bela de um horror sublime,
E sobre a face dos desertos quedos
Seu régio selo de mistério imprime.
Amo o sinistro ramalhar dos cedros
Ao rijo sopro da tormenta infrene,
Quando antevendo a inevitável queda
Mandam aos ermos um adeus solene.
Amo os penedos escarpados onde
Desprende o abutre o prolongado pio,
E a voz medonha do caimã disforme
Por entre os juncos de lodoso rio.

Amo os lampejos verde-azuis, funéreos,
Que às horas mortas erguem-se da terra
E enchem de susto o viajante incauto
No cemitério de sombria serra.
Amo o silêncio, os areais extensos,
Os vastos brejos e os sertões sem dia,
Porque meu seio como a sombra é triste,
Porque minh’alma é de ilusões vazia.
Amo o furor do vendaval que ruge,
Das asas densas sacudindo o estrago,
Silvos de balas, turbilhões de fumo,
Tribos de corvos em sangrento lago.
Amo as torrentes que da chuva túmidas
Lançam aos ares um rumor profundo,
Depois raivosas, carcomendo as margens,
Vão dos abismos pernoitar no fundo.
Amo o pavor das soledades, quando
Rolam as rochas da montanha erguida,
E o fulvo raio que flameja e tomba
Lascando a cruz da solitária ermida.
Amo as perpétuas que os sepulcros ornam,
As rosas brancas desbrochando à lua,
Porque na vida não terei mais sonhos,
Porque minh’alma é de esperanças nua.
Tenho um desejo de descanso, infindo,
Negam-me os homens; onde irei achá-lo?
A única fibra que ao prazer ligava-me
Senti partir-se ao derradeiro abalo!…
Como a criança, do viver nas veigas,
Gastei meus dias namorando as flores,
Finos espinhos os meus pés rasgaram,
Pisei-os ébrio de ilusões e amores.
Cendal espesso me vendava os olhos,
Doce veneno lhe molhava o nó…
Ai! minha estrela de passadas eras,
Por que tão cedo me deixaste só?
Sem ti, procuro a solidão e as sombras
De um céu toldado de feral caligem,
E gasto as horas traduzindo as queixas
Que à noite partem da floresta virgem.

Amo a tristeza dos profundos mares,
As águas torvas de ignotos rios,
E as negras rochas que nos plainos zombam
Da insana fúria dos tufões bravios.
Tenho um deserto de amarguras nalma,
Mas nunca a fronte curvarei por terra!…
Ah! tremo às vezes ao tocar nas chagas,
Nas vivas chagas que meu peito encerra!

A VOLTA

A casa era pequenina…
Não era? Mas tão bonita
Que teu seio inda palpita
Lembrando dela, não é?
Queres voltar? Eu te sigo;
Eu amo o ermo profundo…
A paz que foge do mundo
Preza os tetos de sapê.

Bem vejo que tens saudades…
Não tens? Pobre passarinho!
De teu venturoso ninho
Passaste à dura prisão!

Vamos, as matas e os campos
Estão cobertos de flores,
Tecem mimosos cantores
Hinos à bela estação.

E tu mais bela que as flores…
Não cores… aos almos cantos
Ajuntarás os encantos
De teu gorjeio infantil.
Escuta, filha, a estas horas,
Que a sombra deixa as alturas,
Lá cantam as saracuras
Junto aos lagos cor de anil…

Os vaga-lumes em bando
Correm sobre a relva fria,
Enquanto o vento cicia
Na sombra dos taquarais…
E os gênios que ali vagueiam,
Mirando a casa deserta,
Repetem de boca aberta:
Acaso não virão mais?

Mas, nós iremos, tu queres,
Não é assim? Nós iremos;
Mais belos reviveremos
Os belos sonhos de então.
E, à noite, fechada a porta,
Tecendo planos de glórias,
Contaremos mil histórias,
Sentados junto ao fogão.

A DESPEDIDA

I

Filha dos cerros onde o sol se esconde,
Onde brame o jaguar e a pomba chora,
São horas de partir, desponta a aurora,
Deixa-me que te abrace e que te beije.
Deixa-me que te abrace e que te beije,
Que sobre o teu meu coração palpite,
E dentro dalma sinta que se agite
Quanto tenho de teu impresso nela.
Quanto tenho de teu impresso nela,
Risos ingênuos, prantos de criança,
E esses tão lindos planos de esperança
Que a sós na solidão traçamos juntos.
Que a sós na solidão traçamos juntos,
Sedentos de emoções, ébrios de amores,
Idólatras da luz e dos fulgores
De nossa mãe sublime, a natureza!
De nossa mãe sublime, a natureza,
Que nossas almas numa só fundira,
E a inspiração soprara-me na lira
Muda, arruinada nos mundanos cantos.
Muda, arruinada nos mundanos cantos,
Mas hoje bela e rica de harmonias,
Banhada ao sol de teus formosos dias,
Santificada à luz de teus encantos!

II

Adeus! Adeus! A estrela matutina
Pelos clarões da aurora deslumbrada
Apaga-se no espaço,
A névoa desce sobre os campos úmidos,
Erguem-se as flores trêmulas de orvalho
Dos vales no regaço.
Adeus! Adeus! Sorvendo a aragem fresca,
Meu ginete relincha impaciente
E parece chamar-me…
Transpondo em breve o cimo deste monte,
Um gesto ainda, e tudo é findo! O mundo
Depois pode esmagar-me.
Não te queixes de mim, não me crimines,
Eu depus a teus pés meus sonhos todos,
Tudo o que era sentir!
Os algozes da crença e dos afetos
Em torno de um cadáver de ora em diante
Hão de embalde rugir.
Tu não mais ouvirás os doces versos
Que nas várzeas viçosas eu compunha,
Ou junto das torrentes;
Nem teus cabelos mais verás ornados,
Como a pagã formosa, de grinaldas
De flores rescendentes.
Verás tão cedo ainda esvaecida,
A mais linda visão de teus desejos,
Aos látegos da sorte!
Mas eu terei de Tântalo o suplício!
Eu pedirei repouso de mãos postas,
E será surda a morte!
Adeus! Adeus! Não chores, que essas lágrimas
Coam-me ao coração incandescentes,
Qual fundido metal!
Duas vezes na vida não se as vertem!
Enxuga-as, pois; se a dor é necessária,
Cumpra-se a lei fatal!

CONFORTO

Deixo aos mais homens a tarefa ingrata
De maldizer teu nome desditoso;
Por mim nunca o farei:
Como a estrela no céu vejo tu’alma,
E como a estrela que o vulcão não tolda,
Pura sempre a encontrei.
Dos juízos mortais toda a miséria
Nos curtos passos de uma curta vida
Também, também sofri,
Mas contente no mundo de mim mesmo,
Menos grande que tu, porém mais forte,
Das calúnias me ri.
A turba vil de escândalos faminta,
Que das dores alheias se alimenta
E folga sobre o pó,
Há de soltar um grito de triunfo,
Se vir de leve te brilhar nos olhos
Uma lágrima só.
Oh! Não chores jamais! A sede imunda,
Prantos divinos, prantos de martírio,
Não devem saciar…
O orgulho é nobre quando a dor o ampara,
E se lágrima verte é funda e vasta,
Tão vasta como o mar.
É duro de sofrer, eu sei, o escárnio
Dos seres mais nojentos que se arrastam
Ganindo sobre o chão,
Mas a dor majestosa que incendeia
Dos eleitos a fronte os vis deslumbra
Com seu vivo clarão.
Curve-se o ente imbele que, despido
De crenças e firmeza, implora humilde
O arrimo de um senhor,
O espírito que há visto a claridade
Rejeita todo o auxílio, rasga as sombras,
Sublime em seu valor.
Deixa passar a doida caravana,
Fica no teu retiro, dorme sem medo,
Da consciência à luz;
Livres do mundo um dia nos veremos,
Tem confiança em mim, conheço a senda
Que ao repouso conduz.

VISÕES DA NOITE

Passai, tristes fantasmas! O que é feito
Das mulheres que amei, gentis e puras?
Umas devoram negras amarguras,
Repousam outras em marmóreo leito!
Outras no encalço de fatal proveito
Buscam à noite as saturnais escuras,
Onde, empenhando as murchas formosuras,
Ao demônio do ouro rendem preito!
Todas sem mais amor! sem mais paixões!
Mais uma fibra trêmula e sentida!
Mais um leve calor nos corações!
Pálidas sombras de ilusão perdida,
Minh’alma está deserta de emoções,
Passai, passai, não me poupeis a vida!

O CANTO DOS SABIÁS

Serão de mortos anjinhos
O cantar de errantes almas,
Dos coqueirais florescentes
A brincar nas verdes palmas,
Estas notas maviosas
Que me fazem suspirar?
São os sabiás que cantam
Nas mangueiras do pomar.
Serão os gênios da tarde
Que passam sobre as campinas,
Cingido o colo de opalas
E a cabeça de neblinas,
E fogem, nas harpas de ouro
Mansamente a dedilhar?
São os sabiás que cantam…
Não vês o sol declinar?
Ou serão talvez as preces
De algum sonhador proscrito,
Que vagueia nos desertos,
Alma cheia do infinito,
Pedindo a Deus um consolo
Que o mundo não pode dar?
São os sabiás que cantam…
Como está sereno o mar!

Ou, quem sabe? As tristes sombras
De quanto amei neste mundo,
Que se elevam lacrimosas
De seu túmulo profundo,
E vêm os salmos da morte
No meu desterro entoar?
São os sabiás que cantam…
Não gostas de os escutar?
Serás tu, minha saudade?
Tu, meu tesouro de amor?
Tu que às tormentas murchaste
Da mocidade na flor?
Serás tu? Vem, sê bem-vinda
Quero-te ainda escutar!
São os sabiás que cantam
Antes da noite baixar.
Mas ah! delírio insensato!
Não és tu, sombra adorada!
Não são cânticos de anjinhos,
Nem de falange encantada,
Passando sobre as campinas
Nas harpas a dedilhar!
São os sabiás que cantam
Nas mangueiras do pomar!

O RESPLENDOR DO TRONO

Que vale a pompa e o resplendor do trono!
Triste vaidade! O alvergue de um colono
Mais encantos encerra e mais doçuras!
De calma consciência à sombra amiga
Floresce o riso e o júbilo se abriga,
Livre de enganos e visões escuras.
Quem não aspira da grandeza aos combros
Tem segura a cabeça sobre os ombros,
E a vereda conhece onde caminha;
Dorme sem medo, acorda sem pesares,
E vê, feliz, a prole junto aos lares
Vigorosa estender-se como a vinha.
Sob os dosséis dos sólios a mentira
Boceja e o corpo sensual estira
No tapete macio dos degraus…

São sempre incertos do reinante os passos!
Ame embora a verdade, ocultos laços
Prendem-o cego aos cálculos dos maus!
Oh! Ditoso mil vezes o operário!
Ama o trabalho, e o módico salário
De prantos nem de sangue está manchado!
Combates não planeja em vasta liça!
Nem das vítimas ouve da injustiça
A queixa amarga e o clamoroso brado!
Não desperta alta noite em sobressalto!
Nem dos cuidados ao cruento assalto
Sobre o ouro e o cetim geme e delira!
Qual manso arroio sobre a terra corre,
E no meio dos seus tranqüilo morre
Como a nota de um canto em branda lira!
Não invejeis as pompas das alturas!
O raio deixa os vales e as planuras,
A tempestade preza as serranias!…
Quereis saber da majestade a glória?
Lede nos régios túmulos a história
Dos soberanos de passados dias!

EM VIAGEM

A vida na cidades me enfastia,
Enoja-me o tropel das multidões,
O sopro do egoísmo e do interesse
Mata-me nalma a flor das ilusões.
Mata-me nalma a flor das ilusões
Tanta mentira, tão fingido rir,
E cheio e farto de tristeza e tédio
Rejeito as glórias de falaz porvir!
Rejeito as glórias de falaz porvir,
Galas e festas, o prazer talvez,
E busco altivo as solidões profundas
Que dormem quedas do Senhor aos pés.
Que dormem quedas do Senhor aos pés,
Ao doce brilho dos clarões astrais,
Ricas de gozos que não tem o mundo,
Pródigas sempre de beleza e paz!

A SOMBRA

Longe, longe das águas-marinhas,
Sobre vastas campinas pousada,
Sempre aos raios de um sol resplendente,
Se ostentava risonha morada.

Nas planícies que a vista não vence
Espalhadas pastavam cem reses,
Ora junto das fontes tranqüilas,
Escondidas no mato outras vezes…
Ao portão, de manhã, reunidas,
Meio ocultas no véu da neblina,
O senhor esperar pareciam
Sempre amigo da luz matutina.
E, depois que seu vulto bondoso
Da janela sorrindo as olhava,
Se afastavam contentes, pulando
Sobre a grama que o orvalho banhava.
Quando além das montanhas o dia
Apagava seu raio final,
Acudindo do amo aos clamores
Todo o gado se achava no val.
E em torno dele um círculo formando
Humildes e silentes,
Cada qual por sua vez se adiantando,
Vinham lamber o sal que apresentavam
As mãos benevolentes,
As mãos benevolentes que adoravam.
E o manso gado as falas lhe entendia
E os tenros bezerrinhos
Saltitavam trementes de alegria
A seus meigos carinhos…
Talvez sondasse nesses pobres brutos,
Sob esses pêlos ríspidos, hirsutos,
Um oculto clarão,
Raio de encarcerada inteligência,
Que a doida, pobre e mísera ciência,
Trucidando sem pena a criação,
Procura sempre, mas procura em vão.
Passaram tempos, e o vaqueiro é morto…
Da velha habitação só muros restam,
E às já despidas, murchas laranjeiras
Espinheiros entestam.
Sobre montões de pedra as lagartixas
Leves se arrastam sobre o musgo vil.
Traidoras vespas nos esteios podres

Formaram seu covil.
O sol, que outrora derramava em torno
Raios de luz, torrentes de alegria,
Hoje atira do espaço ao lar deserto
Um riso de ironia.
Não mais perfumes pelos ares giram,
Não mais os ventos suspirando passam,
Somente impuro odor, silvo de serpes
No ambiente perpassam.
Parece que ao pairar nesses lugares
Todo o seu ódio o estrago sacudira,
E o espírito do mal no chão gretado
A saliva cuspira.
Viajor, viajor, não te aproximes
Do ermo sítio que o terror marcou,
A mão de Deus talvez ardendo em iras
Pesada ali tocou.
Porém quando no ocidente
Vai baixando o orbe imortal,
As reses sempre constantes
Se ajuntam todas no val.
E nessa mesma paragem,
Onde as chamava o senhor,
Talvez do defunto à sombra
Reúnem-se ao derredor.
E mugem, mugem debalde,
Tristonhas cavando o chão,
Fitando doridos olhos
No astro rei da amplidão.
Mas o sol não as escuta,
Mas o sol caindo vai,
Imagem de um deus cruento,
Cruenta imagem de pai.
E o caminheiro, que ao longe
Das serras descendo vem,
Não passa perto das ruínas,
Procura outra senda além.

A LENDA DO AMAZONAS

Quando vestido de brilhante púrpura
Surgia o sol no céu,
Deixei a medo os majestosos píncaros
Onde habita o condor,
E guardando do frio os seios trêmulos
Nas dobras do brial,
Como errante cegonha ou pomba tímida,
Às planícies voei.
Em meus cabelos ciciavam, lânguidos,
Os sopros da manhã,
Clarões e névoas, iriantes círculos,
Giravam-me ao redor…
Mas sobre o leito de tecidos flácidos,
Inclinada a sorrir,
Deixava-me rolar aos doces cânticos
Dos gênios do arrebol.
Já perdendo de vista os Andes túrbidos
Sobre rochas pousei…
Sobre rochas pousei… as virgens cândidas,
Louras filhas do ar,
Trocaram-me do corpo a etérea túnica
Por manto de cristal,
Cantaram-me ao ouvido um hino mágico
Que falava de amor,
Tão meigo e triste como a voz da América
Em seu berço de luz.
Cingiram-me a cabeça dos mais límpidos
Diamantes e rubins;
Das borboletas leves e translúcidas
Do verde Penamá
Formaram-me sutil, brilhante séquito;
Aspergeram-me os pés
Do perfume das flores mais balsâmicas
Das savanas sem fim,
E, me apontando da floresta os dédalos
Pejados de frescor
Deram-me abraços mil, ardentes ósculos,
E deixaram-me só…
E deixaram-me só; nos vastos âmbitos
Sem rumo, me perdi,
Meus olhos inundaram-se de lágrimas,
Quis aos montes voltar…
Mas o treno saudoso dos espíritos
À minh’alma falou,
E ao grato acento dessas queixas místicas
De novo me alentei.
Desci das brenhas pensativa, atônita,
Olhos fitos além,
Meu manto sobre a rocha um surdo estrépido

Desprendia ao roçar…
E meus cabelos borrifados, úmidos
De sereno estival,
Salpicavam, ao sol, de infindas pérolas
O desnudado chão.
Os velhos cedros com seus ramos ásperos,
Saudaram-me ao passar,
Os cantores das matas, em miríades,
Os coqueirais senis
Bradaram numa voz: – oh! filha esplêndida
Da eterna criação,
Corre, que ao lado do soberbo tálamo
Por ti suspira o mar!…
Ao meio-dia, extenuada, mórbida
Pelo intenso calor,
De um mundo ignoto sob a imensa cúpula
Solitária me achei.
Argênteas fontes, sonorosos zéfiros,
Rumores divinais,
Grutas de sombra e de frescura próvidas,
Multicores dosséis,
A cujo abrigo um turbilhão de pássaros
Cruzava a trinar
Um não sei quê de vago e melancólico,
De infinito talvez,
Acenderam-me ao seio a chama insólita
De estranha sensação!
Sentei-me ao lado de um rochedo côncavo
E procurei dormir…
E procurei dormir; – as plagas túmidas,
O indizível amor
Que transudava dos sussurros épicos
Dos sombrios pinhais,
Em cujas grimpas ramalhavam séculos,
Dormia a tradição;
Da rola do deserto as flébeis súplicas,
A tênue, frouxa luz
Coando entre os rasgados espiráculos
Desse zimbório audaz
Por mil colunas desmarcadas, ríspidas,
Sustentado ante o céu,
Vedaram-me o repouso, e a mente estática.
Em santa reflexão
Senti volver-se as cenas de outras épocas.
Ah! que tudo passou!
Como o sol era belo e a terra lúcida!
Como era doce a paz!
Da família indiana em noite plácida

Junto ao fogo a dançar!
Como era calmo e belo e vivo o júbilo
Das filhas de Tupã
Depondo junto ao fogo os anchos cântaros
E atrás dos colibris
Correndo alegres nos relvosos páramos!
E a voz do pescador
Sobre as águas plangentes e diáfanas
De ameno ribeirão!
E o rápido silvar das setas rápidas
Os urros do jaguar,
A volta da caçada, os hinos férvidos
Nos festins anuais!
Tudo findou-se! A mão cruel, mortífera,
De uma idade feroz
Tantas glórias varreu, e nem um dístico
Deixou no chão sequer!
Apenas no deserto ermos sarcófagos
Sem mais cinzas, nem pó,
Negras imagens de figuras híbridas,
Soltas aqui e ali,
Resistem do destino ao rijo látego!…
Mas das eras de então
Nada revelam no silêncio gélido!…
Meu Deus e meu Senhor!
Eu que vi construir-se o imenso pórtico
Do edifício imortal,
Donde ao vivo luzir dos astros fúlgidos
Todo o ser rebentou,
Eu que pelas planícies inda cálidas
De vosso bafejar,
Vi deslizar o Tigre, o Eufrates célebre,
O sagrado Jordão…
Eu sem nome, sem glórias e sem pátria,
Entre os densos cocais,
Ia, bem como as gerações sem número,
Absorta escutar
Dos santos querubins a voz melódica!…
Eu que pobre e sem guia,
Pobre e sem guia nos desertos áridos,
Teu poder, grande Deus,
Pressentia no ar, no céu, nos átomos…
Vi também sob o sol
Afogarem-se os orbes no crepúsculo
De uma noite fatal,
E à lareira da vida erguer-se impávido
O nada aterrador!
Vi num combate pavoroso e tétrico,

Torva, escura epopéia,
O fantasma do estrago, a morte esquálida
Vencer a criação,
Devorar-lhe sem penas as quentes vísceras,
Dilacerar sem dó
Da madre natureza as fibras íntimas!
Vi à luz dos fuzis,
Do abutre da tormenta a insana cólera
A floresta cair;
Vi negras feras e serpentes pérfidas,
Demônios de furor,
Alastrarem a terra de cadáveres
De pobres animais;
E deste solo de imundícias lúbrico,
Também vi se elevar
A própria vida de destroços pútridos!…
Meu Deus e meu Senhor,
O que diz esta lei crua e fatídica?…
Sobre o vale da dor,
Sobre o vale da dor mirando as nuvens,
Cismando no porvir,
Eu também moça sinto-me decrépita!
Vê-me a aurora nascer,
Mas ouve a noite meus cantares fúnebres!
A alvorada outra vez
Das cinzas de meus restos inda tépidas
Rediviva me vê!…
Eu murmurava assim triste e perplexa
Cortando a solidão…
As estrelas surgiam belas, nítidas
No céu de puro anil,
O bando vagabundo das lucíolas,
Rastejando os pauís
Derramavam clarões débeis e fátuos
Nas plantas ao redor,
Línguas de fogo verde-azul fosfórico
Cruzavam-se no ar…
A terra e os astros num sorrir recíproco
Pareciam se unir,
Uma para beijar o azul sidéreo,
Outros para verter
No seio que sofre um doce bálsamo.
A branca lua
Pura se erguia na celeste abóbada,
Tudo era paz e amor,
Vozes e saudações, hinos angélicos!
Um tênue, langue véu
Senti passar-me pelos olhos ávidos;

Um perfume feliz
Ungiu-me a fronte de venturas ébria,
Pensei adormecer!
Mas ah! Quando de novo abri as pálpebras,
Reclinado a meus pés,
Coroado de espumas e chamas vívidas,
Prostrado estava o Mar.
Como a noite era bela e a terra lúcida!

ESTÂNCIAS

O que eu adoro em ti não são teus olhos,
Teus lindos olhos cheios de mistério,
Por cujo brilho os homens deixariam
Da terra inteira o mais soberbo império.
O que eu adoro em ti não são teus lábios,
Onde perpétua juventude mora,
E encerram mais perfumes do que os vales
Por entre as pompas festivais da aurora.
O que eu adoro em ti não é teu rosto
Perante o qual o marmor descorara,
E ao contemplar a esplêndida harmonia
Fídias, o mestre, seu cinzel quebrara.
O que eu adoro em ti não é teu colo,
Mais belo que o da esposa israelita,
Torre de graças, encantado asilo,
Aonde o gênio das paixões habita.
O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto vôo duma abelha
Cheias de medo em seu abrigo tremem.
O que eu adoro em ti, ouve, é tu’alma,
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança.
São as palavras de bondade infinda
Que sabes murmurar aos que padecem,
Os carinhos ingênuos de teus olhos
Onde celestes gozos transparecem!…
Um não sei quê de grande, imaculado,
Que faz-me estremecer quando tu falas,
E eleva-me o pensar além dos mundos
Quando, abaixando as pálpebras, te calas.

E por isso em meus sonhos sempre vi-te
Entre nuvens de incenso em aras santas,
E das turbas solícitas no meio
Também contrito hei-te beijado as plantas.
E como és linda assim! Chamas divinas
Cercam-te as faces plácidas e belas,
Um longo manto pende-te dos ombros
Salpicado de nítidas estrelas!
Na doida pira de um amor terrestre
Pensei sagrar-te o coração demente…
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio…
Tinhas nos olhos o perdão somente!

O ARREPENDIMENTO

Tens razão: já, soberana,
Viste-me curvo a teus pés!
Alma que do mal se ufana,
Tarde conheço quem és!
Mas a imagem que eu buscava,
Por quem meu ser suspirava…
Nem pressentiste sequer,
Quando uma fada invocando
Me vergava soluçando,
Prestava culto à mulher.
Tens razão, por grata estrela
Tomei teu brilho falaz,
Sinistra luz da procela,
Círio das horas fatais!
Segui-te através de enganos,
Cheio de sonhos insanos,
Cheio de amor e de afã!
Sombra de arcanjo caído!
Busto inda quente, incendido
Pelos beijos de Satã!
Na fronte cor de açucena
Tinhas brilho sedutor,
Mas eras qual essa flor,
Cujo perfume envenena!
Tinhas nos olhos brilhantes
Os reflexos cambiantes
De uma aurora de verão,
Mas como a charneca escura
Só podridão, lama impura,
Guardavas no coração!

Na negra esteira dos vícios
Que os decaídos formaram,
Teus funestos artifícios
Iludido me arrojaram!
Amei-te: amar foi perder-me!
Foi beijar da terra o verme,
Crendo-o Deus da vastidão…
Em vez do sol que buscava,
Louco afoguei-me na lava
De medonho, atroz vulcão!
Da vida estraguei por ti
Das quadras a mais risonha;
Mas hoje sinto a peçonha
Que nos teus lábios bebi!
Em meio de minha idade
Tenho nalma a soledade,
Na fronte o gelo eternal;
Sinto a morte nas artérias,
E ao medir minhas misérias
Me orgulho de ser mortal!

ENOJO

Vem despontando a aurora, a noite morre,
Desperta a mata virgem seus cantores,
Medroso o vento no arraial das flores
Mil beijos furta e suspirando corre.
Estende a névoa o manto e o val percorre,
Cruzam-se as borboletas de mil cores,
E as mansas rolas choram seus amores
Nas verdes balsas onde o orvalho escorre.
E pouco a pouco se esvaece a bruma,
Tudo se alegra à luz do céu risonho
E ao flóreo bafo que o sertão perfuma.
Porém minh’alma triste e sem um sonho
Murmura, olhando o prado, o rio, a espuma:
– Como isto é pobre, insípido, enfadonho!

O MESMO

Desde a quadra mais antiga
De que rezam pergaminhos,
Cantam a mesma cantiga
Na floresta os passarinhos.
Têm o mesmo aroma as flores,
Mesma verdura as campinas,
A brisa os mesmos rumores,
Mesma leveza as neblinas.

Tem o sol as mesmas luzes,
Tem o mar as mesmas vagas,
O deserto as mesmas urzes,
A mesma dureza as fragas.
Os mesmos tolos o mundo,
A mulher o mesmo riso,
O sepulcro o mesmo fundo,
Os homens o mesmo siso.
E neste insípido giro,
Neste vôo sempre a esmo,
Vale a pena, em seu retiro,
Cantar o poeta, mesmo?

A UM MONUMENTO

Triste negra vassalagem
Do mais baixo servilismo,
Negreja no espaço a imagem
Consagrada ao despotismo.
E em torno dela agrupados,
Vergonha de nossa idade!
Estão os vultos sentados
Dos filhos da liberdade!
O povo curva-se e passa,
Porque não vê a ironia
Que encerra essa brônzea massa
Indigna da luz do dia.
Porque nunca leu a história
Das turvas eras passadas,
Folhas brilhantes de glória,
Mas de sangue borrifadas.
Porque não conhece o drama
Do mártir que ali morrera,
Por zelar a sacra chama
Que a liberdade acendera.
Pobre turba! Néscia e fátua,
Na sua soberania,
Beija os pés à fria estátua
Que há de esmagá-la algum dia!

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