Memorial de Aires

Memorial de Aires – Machado de Assis

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ADVERTÊNCIA

Quem me leu Esaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio:

“Nos lazeres do ofício escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.”

Referia-me ao Conselheiro Aires. Tratando-se agora de imprimir o Memorial, achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889), se for decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões, — pode dar uma narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem. Não houve pachorra de a redigir à maneira daquela outra, — nem pachorra, nem habilidade. Vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia.

M.de Assis

1888

9 de janeiro

Ora bem, faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores: “Vai vassouras! vai espanadores!” Costumo ouvi-lo outras manhãs, mas desta vez trouxe-me à memória o dia do desembarque, quando cheguei aposentado à minha terra, ao meu Catete, à minha língua. Era o mesmo que ouvi há um ano, em 1887, e talvez fosse a mesma boca.

Durante os meus trinta e tantos anos de diplomacia algumas vezes vim ao Brasil, com licença. O mais do tempo vivi fora, em várias partes, e não foi pouco. Cuidei que não acabaria de me habituar novamente a esta outra vida de cá. Pois acabei. Certamente ainda me lembram cousas e pessoas de longe, diversões, paisagens, costumes, mas não morro de saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.

Cinco horas da tarde

Recebi agora um bilhete de mana Rita, que aqui vai colado:

9 de janeiro

“Mano,

Só agora me lembrou que faz hoje um ano que você voltou da Europa aposentado. Já é tarde para ir ao cemitério de São João Batista, em visita ao jazigo da família, dar graças pelo seu regresso; irei amanhã de manhã, e peço a você que me espere para ir comigo. Saudades da

Velha mana,

Rita.”

Não vejo necessidade disso, mas respondi que sim.

10 de janeiro

Fomos ao cemitério. Rita, apesar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lágrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pai e minha mãe. Ela ainda agora o ama, como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos anos. No caixão do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, enquanto os mais deles ficaram a embranquecer cá fora.

Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples, — a inscrição e uma cruz, — mas o que está é bem feito. Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrário parece sempre da véspera.

Rita orou diante dele alguns minutos, enquanto eu circulava os olhos pelas sepulturas próximas. Em quase todas havia a mesma antiga súplica da nossa: “Orai por ele! Orai por ela!” Rita me disse depois, em caminho, que é seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma prece por todos os que ali estão. Talvez seja a única. A mana é boa criatura, não menos que alegre.

A impressão que me dava o total do cemitério é a que me deram sempre outros; tudo ali estava parado. Os gestos das figuras, anjos e outras, eram diversos, mas imóveis. Só alguns pássaros davam sinal de vida, buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorjeando. Os arbustos viviam calados, na verdura e nas flores.

Já perto do portão, à saída, falei a mana Rita de uma senhora que eu vira ao pé de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, enquanto ela rezava. Era moça, vestia de preto, e parecia rezar também, com as mãos cruzadas e pendentes. A cara não me era estranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma.

— Onde está?

Disse-lhe onde estava. Quis ver quem era. Rita, além de boa pessoa, é curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que esperássemos ali mesmo, ao portão.

— Não! pode não vir tão cedo, vamos espiá-la de longe. É assim bonita?

— Pareceu-me.

Entramos e enfiamos por um caminho entre campas, naturalmente. A alguma distância, Rita deteve-se.

— Você conhece, sim. Já a viu lá em casa, há dias.

— Quem é?

— É a viúva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja.

Já agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que lá apareceu em Andaraí, a quem Rita me apresentou e com quem falei alguns minutos.

— Viúva de um médico, não é?

— Isso; filha de um fazendeiro da Paraíba do Sul, o barão de Santa-Pia.

Nesse momento, a viúva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez quisesse beijar a sepultura, o próprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquela manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: “Eras capaz de levar um daqueles ao morro? Só se fossem quatro como tu”. Tratavam de caixão pesado, naturalmente, mas eu voltei depressa a atenção para a viúva, que se afastava e caminhava lentamente, sem mais olhar para trás. Encoberto por um mausoléu, não a pude ver mais nem melhor que a princípio. Ela foi descendo até o portão, onde passava um bonde em que entrou e partiu. Nós descemos depois e viemos no outro.

Rita contou-me então alguma cousa da vida da moça e da felicidade grande que tivera com o marido, ali sepultado há mais de dous anos. Pouco tempo viveram juntos. Eu, não sei por que inspiração maligna, arrisquei esta reflexão:

— Não quer dizer que não venha a casar outra vez.

— Aquela não casa.

— Quem lhe diz que não?

— Não casa; basta saber as circunstâncias do casamento, a vida que tiveram e a dor que ela sentiu quando enviuvou.

— Não quer dizer nada, pode casar; para casar basta estar viúva.

— Mas eu não casei.

—Você é outra cousa, você é única.

Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabeça, como se me chamasse “peralta”. Logo ficou séria, porque a lembrança do marido fazia-a realmente triste. Meti o caso à bulha; ela, depois de aceitar uma ordem de idéias mais alegre, convidou-me a ver se a viúva Noronha casava comigo; apostava que não.

— Com os meus sessenta e dous anos?

— Oh! não os parece; tem a verdura dos trinta.

Pouco depois chegamos a casa e Rita almoçou comigo. Antes do almoço, tornamos a falar da viúva e do casamento, e ela repetiu a aposta. Eu, lembrando-me de Goethe, disse-lhe:

— Mana, você está a querer fazer comigo a aposta de Deus e de Mefistófeles; não conhece?

— Não conheço.

Fui à minha pequena estante e tirei o volume do Fausto, abri a página do prólogo no céu, e li-lha, resumindo como pude. Rita escutou atenta o desafio de Deus e do Diabo, a propósito do velho Fausto, o servo do Senhor, e da perda infalível que faria dele o astuto. Rita não tem cultura, mas tem finura, e naquela ocasião tinha principalmente fome. Replicou rindo:

— Vamos almoçar. Não quero saber desses prólogos nem de outros; repito o que disse, e veja você se refaz o que lá vai desfeito. Vamos almoçar.

Fomos almoçar; às duas horas Rita voltou para Andaraí, eu vim escrever isto e vou dar um giro pela cidade.

12 de janeiro

Na conversa de anteontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a minha mulher, que lá está enterrada em Viena. Pela segunda vez falou-me em transportá-la para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto dela, mas que, em minha opinião, os mortos ficam bem onde caem; redargüiu-me que estão muito melhor com os seus.

— Quando eu morrer, irei para onde ela estiver, no outro mundo, e ela virá ao meu encontro, disse eu.

Sorriu, e citou o exemplo da viúva Noronha que fez transportar o marido de Lisboa, onde faleceu, para o Rio de Janeiro, onde ela conta acabar. Não disse mais sobre este assunto, mas provavelmente tornará a ele, até alcançar o que lhe parece. Já meu cunhado dizia que era seu costume dela, quando queria alguma cousa.

Outra cousa que não escrevi foi a alusão que ela fez à gente Aguiar, um casal que conheci a última vez que vim, com licença, ao Rio de Janeiro, e agora encontrei. São amigos dela e da viúva, e celebram daqui a dez ou quinze dias as suas bodas de prata. Já os visitei duas vezes e o marido a mim. Rita falou-me deles com simpatia e aconselhou-me a ir cumprimentá-los por ocasião das festas aniversárias.

— Lá encontrará Fidélia.

— Que Fidélia?

— A viúva Noronha.

— Chama-se Fidélia?

— Chama-se.

— O nome não basta para não casar.

— Tanto melhor para você, que vencerá a pessoa e o nome, e acabará casando com a viúva. Mas eu repito que não casa.

14 de janeiro

A única particularidade da biografia de Fidélia é que o pai e o sogro eram inimigos políticos, chefes de partido na Paraíba do Sul. Inimizade de familías não tem impedido que moços se amem, mas é preciso ir a Verona ou alhures. E ainda os de Verona dizem comentadores que as famílias de Romeu e Julieta eram antes amigas e do mesmo partido; também dizem que nunca existiram, salvo na tradição ou somente na cabeça de Shakespeare.

Nos nossos municípios, ao norte, ao sul e ao centro, creio que não há caso algum. Aqui a oposição dos rebentos continua a das raízes, e cada árvore brota de si mesma, sem lançar galhos a outra, e esterilizando-lhe o terreno, se pode. Eu, se fosse capaz de ódio, era assim que odiava; mas eu não odeio nada nem ninguém, — perdono a tutti , como na ópera.

Agora, como foi que eles se amaram — os namorados da Paraíba do Sul — é o que Rita me não referiu, e seria curioso saber. Romeu e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura e a advocacia — porque o pai do nosso Romeu era advogado na cidade da Paraíba —, é um desses encontros que importaria conhecer para explicar. Rita não entrou nesses pormenores; eu, se me lembrar, hei de pedir-lhos. Talvez ela os recuse imaginando que começo deveras a morrer pela dama.

16 de janeiro

Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente dele, que para lá ia. Cumprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me notícias de Rita, e falamos durante alguns minutos sobre cousas gerais.

Isso foi ontem. Hoje pela manhã recebi um bilhete de Aguiar, convidando-me, em nome da mulher e dele, a ir lá jantar no dia 24. São as bodas de prata. “Jantar simples e de poucos amigos”, escreveu ele. Soube depois que é festa recolhida. Rita vai também. Resolvi aceitar, e vou.

20 de janeiro

Três dias metido em casa, por um resfriamento com pontinha de febre. Hoje estou bom, e segundo o médico, posso já sair amanhã; mas poderei ir às bodas de prata dos velhos Aguiares? Profissional cauteloso, o Dr. Silva me aconselhou que não vá; mana Rita, que tratou de mim dous dias, é da mesma opinião. Eu não a tenho contrária, mas se me achar lépido e robusto, como é possível, custar-me-á não ir. Veremos; três dias passam depressa.

Seis horas da tarde

Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa de Shelley e também de Thackeray. Um consolou-me de outro, este desenganou-me daquele; é assim que o engenho completa o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito.

Nove horas da noite

Rita jantou comigo; disse-lhe que estou são como um pero, e com forças para ir às bodas de prata. Ela, depois de me aconselhar prudência, concordou que, se não tiver mais nada, e for comedido ao jantar, posso ir; tanto mais que os meus olhos terão lá dieta absoluta.

— Creio que Fidélia não vai, explicou.

— Não vai?

— Estive hoje com o desembargador Campos, que me disse haver deixado a sobrinha com a nevralgia do costume. Padece de nevralgias. Quando elas lhe aparecem é por dias, e não vão sem muito remédio e muita paciência. Talvez vá visitá-la amanhã ou depois.

Rita acrescentou que para o casal Aguiar é meio desastre; contavam com ela, como um dos encantos da festa. Querem-se muito, eles a ela, e ela a eles, e todos se merecem, é o parecer de Rita e pode vir a ser o meu.

— Creio. Já agora, se me não sentir impedido, irei sempre. Também a mim parece boa gente a gente Aguiar. Nunca tiveram filhos?

— Nunca. São muito afetuosos, D. Carmo ainda mais que o marido. Você não imagina como são amigos um do outro. Eu não os freqüento muito, porque vivo metida comigo, mas o pouco que os visito basta para saber o que valem, ela principalmente. O desembargador Campos, que os conhece desde muitos anos, pode dizer-lhe o que eles são.

— Haverá muita gente ao jantar?

— Não, creio que pouca. A maior parte dos amigos irá de noite. Eles são modestos, o jantar é só dos mais íntimos, e por isso o convite que fizeram a você mostra grande simpatia pessoal.

— Já senti isso, quando me apresentaram a eles, há sete anos, mas então supus que era mais por causa do ministro que do homem.

Agora, quando me receberam, foi com muito gosto. Pois lá vou no dia 24, haja ou não haja Fidélia.

25 de janeiro

Lá fui ontem às bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as minhas impressões da noite.

Não podiam ser melhores. A primeira delas foi a união do casal. Sei que não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memória dos tempos passados, e a afeição dos outros como que ajuda a duplicar a própria. Mas não é isso. Há neles alguma cousa superior à oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os anos tinham ali reforçado e aparado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma só e única. Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite.

Aguiar veio receber-me à porta da sala — eu diria que com uma intenção de abraço, se pudesse havê-la entre nós e em tal lugar; mas a mão fez esse ofício, apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta anos feitos (ela tem cinqüenta), o corpo antes cheio que magro, ágil, ameno e risonho. Levou-me à mulher, a um lado da sala, onde ela conversava com duas amigas. Não era nova para mim a graça da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu cumprimento davam-lhe à expressão do rosto algo que tolera bem a qualificação de radiante. Estendeu-me a mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de relance para o marido.

Senti-me objeto dos cuidados de ambos. Rita chegou pouco depois de mim; vieram vindo outros homens e senhoras, todos de mim conhecidos, e vi que eram familiares da casa. Em meio da conversação, ouvi esta palavra inesperada a uma senhora, que dizia à outra:

— Não vá Fidélia ter ficado pior.

— Ela vem? perguntou a outra.

— Mandou dizer que vinha; está melhor; mas talvez lhe faça mal.

O mais que as duas disseram, relativamente à viúva, foi bem. O que me dizia um dos convidados apenas foi ouvido por mim, sem lhe prestar atenção maior que o assunto nem perder as aparências dela. Pela hora próxima do jantar supus que Fidélia não viesse. Supus errado. Fidélia e o tio foram os últimos chegados, mas chegaram. O alvoroço com que D. Carmo a recebeu mostrava bem a alegria de a ver ali, apenas convalescida, e apesar do risco de voltar à noite. O prazer de ambas foi grande.

Fidélia não deixou inteiramente o luto; trazia às orelhas dous corais, e o medalhão com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. O mais do vestido e adorno escuro. As jóias e um raminho de miosótis à cinta vinham talvez em homenagem à amiga. Já de manhã lhe enviara um bilhete de cumprimentos acompanhando o pequeno vaso de porcelana, que estava em cima de um móvel com outros presentinhos aniversários.

Ao vê-la agora, não a achei menos saborosa que no cemitério, e há tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa também. Parece feita ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma idéia de rigidez; ao contrário, é flexível. Quero aludir somente à correção das linhas — falo das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal à viuvez. Foi o que vi logo à chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veio vindo pela noite adiante, até que ela se foi embora. Não era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que relera dias antes em casa, como lá ficou dito atrás, e tirado de uma das suas estâncias de 1821:

I can give not what men call love.

Assim disse comigo em inglês, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho da minha composição: “Eu não posso dar o que os homens chamam amor… e é pena!”

Esta confissão não me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo veio tomar-me o braço, segui como se fosse para um jantar de núpcias. Aguiar deu o braço a Fidélia, e sentou-se entre ela e a mulher. Escrevo estas indicações sem outra necessidade mais que a de dizer que os dous cônjuges, ao pé um do outro, ficaram ladeados pela amiga Fidélia e por mim. Desta maneira pudemos ouvir palpitar o coração aos dous — hipérbole permitida para dizer que em ambos nós, em mim ao menos, repercutia a felicidade daqueles vinte e cinco anos de paz e consolação.

A dona da casa, afável, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz naquela data; não menos o marido. Talvez ele fosse ainda mais feliz que ela, mas não saberia mostrá-lo tanto. D. Carmo possui o dom de falar e viver por todas as feições, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres, ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto dão à velhice um relevo particular, e fazem casar nela todas as idades. Não sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de solitário.

De quando em quando, ela e o marido trocavam as suas impressões com os olhos, e pode ser que também com a fala. Uma só vez a impressão visual foi melancólica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas — sempre há indiscretos —, no brinde que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo “que Deus lhos negara para que eles se amassem melhor entre si”. Não falou em verso, mas a idéia suportaria o metro e a rima, que o autor talvez houvesse cultivado em rapaz; orçava agora pelos cinqüenta anos, e tinha um filho. Ouvindo aquela referência, os dous fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita me disse depois que essa era a única ferida do casal. Creio que Fidélia percebeu também a expressão de tristeza dos dous, porque eu a vi inclinar-se para ela com um gesto do cálix e brindar a D. Carmo cheia de graça e ternura:

— À sua felicidade.

A esposa Aguiar, comovida, apenas pôde responder logo com o gesto; só instantes depois de levar o cálix à boca, acrescentou, em voz meia surda, como se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de agradecimento:

— Obrigada.

Tudo foi assim segredado, quase calado. O marido aceitou a sua parte do brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia.

De noite vieram mais visitas; tocou-se, três ou quatro pessoas jogaram cartas. Eu deixei-me estar na sala, a mirar aquela porção de homens alegres e de mulheres verdes e maduras, dominando a todas pelo aspecto particular da velhice de D. Carmo, e pela graça apetitosa da mocidade de Fidélia; mas a graça desta trazia ainda a nota da viuvez recente, aliás de dous anos. Shelley continuava a murmurar ao meu ouvido para que eu repetisse a mim mesmo: I can give not what men call love.

Quando transmiti esta impressão a Rita, disse ela que eram desculpas de mau pagador, isto é, que eu, temendo não vencer a resistência da moça, dava-me por incapaz de amar. E pegou daqui para novamente fazer a apologia da paixão conjugal de Fidélia.

— Todas as pessoas daqui e de fora que os viram — continuou — podem dizer a você o que foi aquele casal. Basta saber que se uniram, como já lhe disse, contra a vontade dos dous pais, e amaldiçoados por ambos. D. Carmo tem sido confidente da amiga, e não repete o que lhe ouve por discreta, resume só o que pode, com palavras de afirmação e de admiração. Tenho-as ouvido muita vez. A mim mesma Fidélia conta alguma cousa. Converse com o tio… Olhe, ele que lhe diga também da gente Aguiar…

Neste ponto interrompi:

— Pelo que ouço, enquanto eu andava lá fora, a representar o Brasil, o Brasil fazia-se o seio de Abraão. Você, o casal Aguiar, o casal Noronha, todos os casais, em suma, faziam-se modelos de felicidade perpétua.

— Pois peça ao desembargador que lhe diga tudo.

— Outra impressão que levo desta casa e desta noite é que as duas damas, a casada e a viúva, parecem amar-se como mãe e filha, não é verdade?

— Creio que sim.

— A viúva também não tem filhos?

— Também não. É um ponto de contacto.

— Há um ponto de desvio; é a viuvez de Fidélia.

— Isso não; a viuvez de Fidélia está com a velhice de D. Carmo; mas se você acha que é desvio tem nas suas mãos consertá-lo, é arrancar a viúva à viuvez, se puder; mas não pode, repito.

A mana não costuma dizer pilhérias, mas quando lhe sai alguma tem pico. Foi o que eu lhe disse então, ao metê-la no carro que a levou a Andaraí, enquanto eu vim a pé para o Catete. Esqueceu-me dizer que a casa Aguiar é na Praia do Flamengo, ao fundo de um pequeno jardim, casa velha mas sólida.

Sábado

Ontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomático e prometi ir jantar com ele amanhã em Petrópolis. Subo hoje e volto segunda-feira. O pior é que acordei de mau humor, e antes quisera ficar que subir. E daí pode ser que a mudança de ar e de espetáculo altere a disposição do meu espírito. A vida, mormente nos velhos, é um ofício cansativo.

Segunda -feira

Desci hoje de Petrópolis. Sábado, ao sair a barca da Prainha, dei com o desembargador Campos a bordo, e foi um bom encontro, porque daí a pouco o meu mau humor cedia, e cheguei a Mauá já meio curado. Na estação de Petrópolis estava restabelecido inteiramente.

Não me lembra se já escrevi neste Memorial que o Campos foi meu colega de ano em S. Paulo. Com o tempo e a ausência perdemos a intimidade, e quando nos vimos outra vez, o ano passado, apesar das recordações escolásticas que surgiram entre nós, éramos estranhos. Vimo-nos algumas vezes, e passamos uma noite no Flamengo; mas a diferença da vida tinha ajudado o tempo e a ausência.

Agora na barca fomos reatando melhor os laços antigos. A viagem por mar e por terra eram de sobra para avivar alguma cousa da vida escolar. Bastante foi; acabamos lavados da velhice.

Ao subir a serra as nossas impressões divergiram um tanto. Campos achava grande prazer na viagem que íamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava-lhe que tivera maior gosto quando ali ia em caleças tiradas a burros, umas atrás das outras, não pelo veículo em si, mas porque ia vendo, ao longe, cá embaixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos aspectos pinturescos. O trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até a própria estação de Petrópolis. E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, ali para beber água na fonte célebre, e finalmente a vista do alto da serra, onde os elegantes de Petrópolis aguardavam a gente e a acompanhavam nos seus carros e cavalos até à cidade; alguns dos passageiros de baixo passavam ali mesmo para os carros onde as famílias esperavam por eles.

Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro, como prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa! Eu, se retorquisse dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma espécie de debate que faria a viagem ainda mais sufocada e curta. Preferi trocar de assunto e agarrei-me aos derradeiros minutos, falei do progresso, ele também, e chegamos satisfeitos à cidade da serra.

Os dous fomos para o mesmo hotel (Bragança). Depois de jantar saímos em passeio de digestão, ao longo do rio. Então, a propósito dos tempos passados, falei do casal Aguiar e do conhecimento que Rita me disse que ele tinha da vida e da mocidade dos dous cônjuges. Confessei achar nestes um bom exemplo de aconchego e união. Talvez a minha intenção secreta fosse passar dali ao casamento da própria sobrinha dele, suas condições e circunstâncias, cousa difícil pela curiosidade que podia exprimir, e aliás não está nos meus hábitos, mas ele não me deu azo nem tempo. Todo este foi pouco para dizer da gente Aguiar. Ouvi com paciência, porque o assunto entrou a interessar-me depois das primeiras palavras, e também porque o desembargador fala mui agradavelmente. Mas agora é tarde para transcrever o que ele disse; fica para depois, um dia, quando houver passado a impressão, e só me ficar de memória o que vale a pena guardar.

4 de fevereiro

Eia, resumamos hoje o que ouvi ao desembargador em Petrópolis acerca do casal Aguiar. Não ponho os incidentes, nem as anedotas soltas, e até excluo os adjetivos que tinham mais interesse na boca dele do que lhes poderia dar a minha pena; vão só os precisos à compreensão de cousas e pessoas.

A razão que me leva a escrever isto é a que entende com a situação moral dois e prende um tanto com a viúva Fidélia. Quanto à vida deles ei-la aqui em termos secos, curtos e apenas biográficos. Aguiar casou guarda-livros. D. Carmo vivia então com a mãe, que era de Nova Friburgo, e o pai, um relojoeiro suíço daquela cidade. Casamento a grado de todos. Aguiar continuou guarda-livros, e passou de uma casa a outra e mais outra, fez-se sócio da última, até ser gerente de banco, e chegaram à velhice sem filhos. É só isto, nada mais que isto. Viveram até hoje sem bulha nem matinada.

Queriam-se, sempre se quiseram muito, apesar dos ciúmes que tinham um do outro, ou por isso mesmo. Desde namorada, ela exerceu sobre ele a influência de todas as namoradas deste mundo, e acaso do outro, se as há tão longe. Aguiar contara uma vez ao desembargador os tempos amargos em que, ajustado o casamento, perdeu o emprego por falência do patrão. Teve de procurar outro; a demora não foi grande, mas o novo lugar não lhe permitiu casar logo, era-lhe preciso assentar a mão, ganhar confiança, dar tempo ao tempo. Ora, a alma dele era de pedras soltas; a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que as uniram naqueles dias de crise. Copio esta imagem que ouvi ao Campos, e que ele me disse ser do próprio Aguiar. Cal e cimento valeram-lhe logo em todos os casos de pedras desconjuntadas. Ele via as cousas pelos seus próprios olhos, mas se estes eram ruins ou doentes, quem lhe dava remédio ao mal físico ou moral era ela.

A pobreza foi o lote dos primeiros tempos de casados. Aguiar dava-se a trabalhos diversos para acudir com suprimentos à escassez dos vencimentos. D. Carmo guiava o serviço doméstico, ajudando o pessoal deste e dando aos arranjos da casa o conforto que não poderia vir por dinheiro. Sabia conservar o bastante e o simples; mas tão ordenadas as cousas, tão completadas pelo trabalho das mãos da dona que captavam os olhos ao marido e às visitas. Todas elas traziam uma alma, e esta era nada menos que a mesma, repartida sem quebra e com alinho raro, unindo o gracioso ao preciso. Tapetes de mesa e de pés, cortinas de janelas e outros mais trabalhos que vieram com os anos, tudo trazia a marca da sua fábrica, a nota íntima da sua pessoa. Teria inventado, se fosse preciso, a pobreza elegante.

Criaram relações variadas, modestas como eles e de boa camaradagem. Neste capítulo a parte de D. Carmo é maior que a de Aguiar. Já em menina era o que foi depois. Havendo estudado em um colégio do Engenho Velho, a moça acabou sendo considerada a primeira aluna do estabelecimento, não só sem desgosto, tácito ou expresso, de nenhuma companheira, mas com prazer manifesto e grande de todas, recentes ou antigas. A cada uma pareceu que se tratava de si mesma. Era então algum prodígio de talento? Não, não era; tinha a inteligência fina, superior ao comum das outras, mas não tal que as reduzisse a nada. Tudo provinha da índole afetuosa daquela criatura.

Dava-lhe esta o poder de atrair e conchegar. Uma cousa me disse Campos que eu havia observado de relance naquela noite das bodas de prata, é que D. Carmo agrada igualmente a velhas e a moças. Há velhas que não sabem fazer-se entender de moças, assim como há moças fechadas às velhas. A senhora de Aguiar penetra e se deixa penetrar de todas; assim foi jovem, assim é madura.

Campos não os acompanhou sempre, nem desde os primeiros tempos; mas quando entrou a freqüentá-los, viu nela o desenvolvimento da noiva e da recém-casada, e compreendeu a adoração do marido. Este era feliz, e para sossegar das inquietações e tédios de fora, não achava melhor respiro que a conversação da esposa, nem mais doce lição que a de seus olhos. Era dela a arte fina que podia restituí-lo ao equilíbrio e à paz.

Um dia, em casa deles, abrindo uma coleção de versos italianos, Campos achou entre as folhas um papelinho velho com algumas estrofes escritas. Soube que eram do livro, copiadas por ela nos dias de noiva, segundo ambos lhe disseram, vexados; restituiu o papel à página, e o volume à estante. Um e outro gostavam de versos, e talvez ela tivesse feito alguns, que deitou fora com os últimos solecismos de família. Ao que parece, traziam ambos em si um gérmen de poesia instintiva, a que faltara expressão adequada para sair cá fora.

A última reflexão é minha, não do desembargador Campos, e leva o único fim de completar o retrato deste casal. Não é que a poesia seja necessária aos costumes, mas pode dar-lhes graça. O que eu fiz então foi perguntar ao desembargador se tais criaturas tiveram algum ressentimento da vida. Respondeu-me que um, um só e grande; não tiveram filhos.

— Mana Rita disse-me isso mesmo.

— Não tiveram filhos, repetiu Campos.

Ambos queriam um filho, um só que fosse, ela ainda mais que ele. D. Carmo possuía todas as espécies de ternura, a conjugal, a filial, a maternal. Campos ainda lhe conheceu a mãe, cujo retrato, encaixilhado com o do pai, figurava na sala, e falava de ambos com saudades longas e suspiradas. Não teve irmãos, mas a afeição fraternal estaria incluída na amical, em que se dividia também. Quanto aos filhos, se os não teve, é certo que punha muito de mãe nos seus carinhos de amiga e de esposa. Não menos certo é que para essa espécie de orfandade às avessas, tem agora um paliativo.

— D. Fidélia?

— Sim, Fidélia; e teve ainda outro que acabou.

Aqui referiu-me uma história que apenas levará meia dúzia de linhas, e não é pouco para a tarde que vai baixando; digamo-la depressa.

Uma das suas amigas tivera um filho, quando D. Carmo ia em vinte e tantos anos. Sucessos que o desembargador contou por alto e não valia a pena instar por eles, trouxeram a mãe e o filho para a casa Aguiar durante algum tempo. Ao cabo da primeira semana tinha o pequeno duas mães. A mãe real precisou ir a Minas, onde estava o marido; viagem de poucos dias. D. Carmo alcançou que a amiga lhe deixasse o filho e a ama. Tais foram os primeiros liames da afeição que cresceu com o tempo e o costume. O pai era comerciante de café — comissário —, e andava então a negócios por Minas; a mãe era filha de Taubaté, S. Paulo, amiga de viajar a cavalo. Quando veio o tempo de batizar o pequeno, Luísa Guimarães convidou a amiga para madrinha dele. Era justamente o que a outra queria; aceitou com alvoroço, o marido com prazer, e o batizado se fez como uma festa da família Aguiar.

A meninice de Tristão, — era o nome do afilhado, — foi dividida entre as duas mães, entre as duas casas. Os anos vieram, o menino crescia, as esperanças maternas de D. Carmo iam morrendo. Este era o filho abençoado que o acaso lhes deparara, disse um dia o marido; e a mulher, católica também na linguagem, emendou que a Providência, e toda se entregou ao afilhado. A opinião que o desembargador achou em algumas pessoas, e creio justa, é que D. Carmo parecia mais verdadeira mãe que a mãe de verdade. O menino repartia-se bem com ambas, preferindo um pouco mais a mãe postiça. A razão podiam ser os carinhos maiores, mais continuados, as vontades mais satisfeitas e finalmente os doces, que também são motivos para o infante, como para o adulto. Veio o tempo da escola, e ficando mais perto da casa Aguiar, o menino ia jantar ali, e seguia depois para as Laranjeiras, onde morava Guimarães. Algumas vezes a própria madrinha o levava.

Nas duas ou três moléstias que o pequeno teve, a aflição de D. Carmo foi enorme. Uso o próprio adjetivo que ouvi ao Campos, conquanto me pareça enfático, e eu não amo a ênfase. Confesso aqui uma cousa. D. Carmo é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer que são “doidas por morangos”, nem que “morrem por ouvir Mozart”. Nela a intensidade parece estar mais no sentimento que na expressão. Mas, enfim, o desembargador assistiu à última das moléstias do menino, que foi em casa da madrinha, e pôde ver a aflição de D. Carmo, os seus afagos e sustos, alguns minutos de desespero e de lágrimas, e finalmente a alegria do restabelecimento. A mãe era mãe e sentiu decerto, e muito, mas diz ele que não tanto; é que haverá ternuras atadas, ou ainda moderadas, que se não mostram inteiramente a todos.

Doenças, alegrias, esperanças, todo o repertório daquela primeira quadra da vida de Tristão foi visto, ouvido e sentido pelos dous padrinhos, e mais pela madrinha, como se fora do seu próprio sangue. Era um filho que ali estava, que fez dez anos, fez onze, fez doze, crescendo em altura e graça. Aos treze anos, sabendo que o pai o destinava ao comércio, foi ter com a madrinha e confiou-lhe que não tinha gosto para tal carreira.

— Por quê, meu filho?

D. Carmo usava este modo de falar, que a idade e o parentesco espiritual lhe permitiam, sem usurpação de ninguém. Tristão confessou-lhe que a sua vocação era outra. Queria ser bacharel em Direito. A madrinha defendeu a intenção do pai, mas com ela Tristão era ainda mais voluntarioso que com ele e a mãe, e teimou em estudar Direito e ser doutor. Se não havia propriamente vocação, era este título que o atraía.

— Quero ser doutor! quero ser doutor!

A madrinha acabou achando que era bom, e foi defender a causa do afilhado. O pai deste relutou muito. “Que havia no comércio que não fosse honrado, além de lucrativo? Demais, ele não ia começar sem nada, como sucedia a outros e sucedeu ao próprio pai, mas já amparado por este”. Deu-lhe outras mais razões, que D. Carmo ouviu sem negar, alegando sempre que o importante era ter gosto, e se o rapaz não tinha gosto, melhor era ceder ao que lhe aprazia. Ao cabo de alguns dias o pai de Tristão cedeu, e D. Carmo quis ser a primeira que desse ao rapaz a boa nova. Ela própria sentia-se feliz.

Cinco ou seis meses depois, o pai de Tristão resolveu ir com a mulher cumprir uma viagem marcada para o ano seguinte — visitar a família dele; a mãe de Guimarães estava doente. Tristão, que se preparava para os estudos, tão depressa viu apressar a viagem dos pais, quis ir com eles. Era o gosto da novidade, a curiosidade da Europa, algo diverso das ruas do Rio de Janeiro, tão vistas e tão cansadas. Pai e mãe recusaram levá-lo; ele insistiu. D. Carmo, a quem ele recorreu outra vez, recusou-se agora, porque seria afastá-lo de si, ainda que temporariamente; juntou-se aos pais do mocinho para conservá-lo aqui. Aguiar desta vez tomou parte ativa na luta; mas não houve luta que valesse. Tristão queria à fina força embarcar para Lisboa.

— Papai volta daqui a seis meses; eu volto com ele. Que são seis meses?

— Mas os estudos? dizia-lhe Aguiar. Você vai perder um ano…

— Pois que se perca um ano. Que é um ano que não valha a pena sacrificá-lo ao gosto de ir ver a Europa?

Aqui D. Carmo teve uma inspiração; prometeu-lhe que, tão depressa ele se formasse, ela iria com ele viajar, não seis meses, mas um ano ou mais; ele teria tempo de ver tudo, o velho e o novo, terras, mares, costumes… Estudasse primeiro. Tristão não quis. A viagem se fez, a despeito das lágrimas que custou.

Não ponho aqui tais lágrimas, nem as promessas feitas, as lembranças dadas, os retratos trocados entre o afilhado e os padrinhos. Tudo se afirmou de parte a parte, mas nem tudo se cumpriu; e, se de lá vieram cartas, saudades e notícias, quem não veio foi ele. Os pais foram ficando muito mais tempo que o marcado, e Tristão começou o curso da Escola Médica de Lisboa. Nem comércio nem jurisprudência.

Aguiar escondeu quanto pôde a notícia à mulher, a ver se tentava alguma cousa que trocasse as mãos à sorte, e restituísse o rapaz ao Brasil; não alcançou nada, e ele próprio não podia já disfarçar a tristeza. Deu a dura novidade à mulher, sem lhe acrescentar remédio nem consolação; ela chorou longamente. Tristão escreveu comunicando a mudança de carreira e prometendo vir para o Brasil, apenas formado; mas daí a algum tempo eram as cartas que escasseavam e acabaram inteiramente, elas e os retratos, e as lembranças; provavelmente não ficaram lá saudades. Guimarães aqui veio, sozinho, com o único fim de liquidar o negócio, e embarcou outra vez para nunca mais.

5 de fevereiro

Relendo o que escrevi ontem, descubro que podia ser ainda mais resumido, e principalmente não lhe pôr tantas lágrimas. Não gosto delas, nem sei se as verti algum dia, salvo por mana, em menino; mas lá vão. Pois vão também essas que aí deixei, e mais a figura de Tristão, a que cuidei dar meia dúzia de linhas e levou a maior parte delas. Nada há pior que a gente vadia — ou aposentada, que é a mesma cousa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste.

Entretanto, não disse tudo. Verifico que me faltou um ponto da narração do Campos. Não falei das ações do Banco do Sul, nem das apólices, nem das casas que o Aguiar possui, além dos honorários de gerente; terá uns duzentos e poucos contos. Tal foi a afirmação do Campos, à beira do rio, em Petrópolis. Campos é homem interessante, posto que sem variedade de espírito; não importa, uma vez que sabe despender o que tem. Verdade é que tal regra levaria a gente a aceitar toda a casta de insípidos. Ele não é destes.

6 de fevereiro

Outra cousa que também não escrevi no dia 4, mas essa não entrou na narração do Campos. Foi ao despedir-me dele, que lá ficou em Petrópolis três ou quatro dias. Como eu lhe deixasse recomendações para a sobrinha, ouvi-lhe que me respondeu:

— Está em casa da gente Aguiar; passou lá a tarde e a noite de ontem, e conta ficar até que eu desça.

6 de fevereiro, à noite

Diferença de vocações: o casal Aguiar morre por filhos, eu nunca pensei neles, nem lhes sinto a falta, apesar de só. Alguns há que os quiseram, que os tiveram e não souberam guardá-los.

 

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