Macunaíma

Análise de Macunaíma

Macunaíma foi escrita no ano de 1926 e em poucos dias. Para escrevê-la, Mário de Andrade passou anos a fio pesquisando sobre o folclore, mitologia indígena, os costumes e a linguagem dos brasileiros. Numa tentativa de registrar a história, costumes, falares, os ritmos das canções e das danças populares do Brasil, o livro, num clima mítico, acumula exagero de lendas, superstições, frases feitas, provérbios e modismos de linguagem.

Tomando como centro a personagem Macunaíma, o autor faz uma colagem de diversos fragmentos, misturando as lendas estudadas durante anos dos índios com a vida urbana das cidades do Sudeste, as anedotas da história brasileira com os costumes do Nordeste etc.

Tempo e Espaço

Criando uma narrativa fantástica e picaresca, há subversão do tempo e do espaço geográfico, que não obedecem às regras da verossimilhança, de tal forma que o “herói sem nenhum caráter” pode, num mesmo capítulo, estar em São Paulo, e fugir correndo pra Sergipe, Campinas, Bahia, deparando-se em todo esse percurso com personagens reais e lendárias.

Assim, as aventuras de Macunaíma são vividas num espaço diferente, próprio da atmosfera em que se desenvolve a narrativa.

Linguagem

A linguagem também é constituída pelo processo de colagem, pela combinação de vocábulos e torneios sintáticos colhidos dos mais variados sotaques e costumes do Brasil. Com isso, o autor criou um estilo muito pessoal e expressivo, capaz de transmitir lirismo, humor, deboche, comicidade, revelando maturidade literária e domínio estilístico.

Foco Narrativo

O foco narrativo predominante é o de terceira pessoa, mas Mário de Andrade inova ao utilizar uma técnica cinematográfica de cortes bruscos no discurso do narrador para dar lugar à fala dos personagens.

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Mário de Andrade

I – Macunaíma

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente.
Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio
foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia,
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que
chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais
de seis anos não falando. Sio incitavam a falar exclamava: If —
Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada.”] Ficava
no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho
dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho
e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça
de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma
dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família
ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando
mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que
habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã
se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão
nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara.
Porém respeitava os velhos, e freqüentava com aplicação
a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas
danças religiosas da tribo.

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo
de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o
herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então
adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava
patadas no ar.

Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens
do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que “espinho
que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pagelança
Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.

Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma
principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca
ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não
quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma
choramingou dia inteiro. De noite continuou chorando. No outro dia esperou
com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. Então
pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca e
levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não
podia largar o paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê
que levasse o menino. A companheira de Jiguê era bem moça e chamava
Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma
ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém.
A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé
de aninga na beira do rio. A água parará pra inventar um ponteio
de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás
e biguatingas avoando na estrada do furo. A moça botou Macunaíma
na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!…
e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá
dentro do mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas,
tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo
e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito.

Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto
carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado muito
com ela. Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já
chegava de pescar de puçá e a companheira não trabalhara
nada. Jiguê enquizlou e depois de catar os carrapatos deu nela muito.
Sofará agüentou a sova sem falar um isto.

Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando
corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rasto
fresco de anta e queria pegar o bicho na armadilha. Macunaíma pediu
um pedaço de curauá pro mano porém Jiguê falou
que aquilo não era brinquedo de criança. Macunaíma principiou
chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar pra todos.

No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer arma-ilha e enxergando
o menino tristinho falou:

— Bom-dia, coraçãozinho dos outros.

Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo.

— Não quer falar comigo, é? — Estou de mal.

— Por causa?

Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê
olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino,
a moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro
que trançasse uma corda para ele e assoprasse bem nela fumaça
de petum.

Quando tudo estava pronto Macunaíma pediu pra mãe que deixasse
o cachiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não podia
por causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra
sogra que “estava às ordens”. E foi no mato com o piá
nas costas.

Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pequeno foi crescendo
foi crescendo e virou príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar
um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta
armar um laço. Nem bem voltaram do passeio, tardinha, Jiguê já
chegava também de prender a armadilha no rasto da anta. A companheira
não trabalhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos
bateu nela muito. Mas Sofará agüentou a coca com paciência.

No outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvores,
Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem!
que fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!… Porém
ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.

Macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse
uma chegadinha no bebedouro só pra ver. A moça fez e voltou
falando pra todos que de fato estava no laço uma anta muito grande
já morta. Toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência
do curumim. Quando Jiguê chegou com a corda de curauá vazia,
encontrou todos tratando da caça, ajudou. E quando foi pra repartir
não deu nem um pedaço de carne pra Macunaíma, só
tripas. O herói jurou vingança.

No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no
mato até a bôca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço
e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três
feitas,

correram mato fora fazendo festinhas um pro outro. Depois das festinhas de
cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois
se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. Macunaíma
pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás, da piranheira.
Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela.
Fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele.
Puxou-o por uma perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco
gigante. Então a moça abocanhou o dedão do pé
dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com
o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo num
trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho
mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fininho
vergou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou
também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu.
Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará.
Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas não pôde
continuar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até
se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da sapituca
procurou a moça em redor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la
porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível
da suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os olhos
pra ser comido sem ver. Então se escutou um risinho e Macunaíma
tomou com uma gusparada no peito, era a moça. Macunaíma principiou
atirando pedras nela e quando feria, Sofará gritava de excitação
tatuando o corpo dele em baixo com o sangue espirrado. Afinal uma pedra lascou
o canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou do galho
e juque! tombou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo
todo, uivando de prazer. E brincaram mais outra vez.

Já a estrela Papacéia brilhava no céu quando a moça
voltou parecendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém
Jiguê desconfiado seguira os dois no mato, enxergara a transformação
e o resto. Jiguê era muito bobo. Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu
e chegou-o com vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão
imenso que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram
de susto no chão e se transformaram em pedra.

Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu
até a capoeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê
levou Sofará pro pai dela e dormiu folgado na rede.

II – Maioridade

Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxando pela mão
uma cunha. Era a companheira nova dele e chamava Iriqui. Ela trazia sempre
um ratão vivo escondido na maçaroca dos cabelos e faceirava
muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e todas as manhãs
passava coquinho de assai nos beiços que ficavam totalmente roxos.
Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os beiços viravam
totalmente encarnados. Então Iriqui se envolvia num manto de algodão
listrado com preto de acariúba e verde de tatajuba e aromava os cabelos
com essência de umiri, era linda.

Ora depois de todos comerem a anta de Macunaíma a fome bateu no mocambo.
Caça, ninguém não pegava caça mais, nem algum
tatu-galinha aparecia! e por causa de Maanape ter matado um boto pra comerem,
o sapo cunauru chamado Maraguigana pai do boto fitou enfezado. Mandou a enchente
e o milharal apodreceu. Comeram tudo, até a crueira dura se acabou
e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não, era
só pra remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar
nele nem uma isca de jobá.

Então Macunaíma quis se divertir um pouco. Falou prós
manos que inda tinha muita piaba muito jeju muito matrinchão e jatuaranas,
todos esses peixes do rio, fossem bater timbó! Maanape disse:

— Não se encontra mais timbó. Macunaíma disfarçando
secundou:

— Junto daquela grota onde tem dinheiro enterrado enxerguei um despotismo
de timbó.

— Então venha com a gente pra mostrar onde que é.

Foram. A margem estava traiçoeira e nem se achava bem o que era terra
o que era rio entre as mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam
procuravam enlameados até os dentes, degringolando juque! nos barreiros
ocultos pela inundação. E pulavam se livrando dos buracos, aos
berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus safadinhos
querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens
dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não
dava passo não, bem enxutinho no firme. Quando os manos passavam perto
dele, se agachava e gemia de fadiga.

— Deixe de trabucar assim, piá!

Então Macunaíma sentou numa barranca do rio e batendo com
os pés n’água espantou os mosquitos. E eram muitos mosquitos,
piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis borrachudos
varejas, toda essa mosquitada.

Quando foi de tardezinha os manos vieram buscar Macunaíma tiriricas
por não terem topado com nenhum pé de timbó. O herói
teve medo e disfarçou:

— Acharam? — Que achamos nada!

— Pois foi aqui mesmo que enxerguei timbó. Timbó já
foi gente um dia que nem nós… Presenciou que andavam campeando ele
e sorveteu. Timbó foi gente um dia que nem nós…

Os manos se admiraram da inteligência do menino e voltaram os três
pra maloca.

Macunaíma estava muito contrariado por causa da fome. No outro dia
falou pra velha:

— Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio lá
no teso, quem que leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.

A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar mais tempo com os olhos
fechados e carregou tejupar marombas flechas piquás sapiquás
corotes urupemas redes, todos esses trens pra um aberto do mato lá
no teso do outro lado do rio. Quando a velha abriu os olhos estava tudo lá
e tinha caça peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. Então
foi cortar banana.

— Inda que mal lhe pergunte, mãe, porque a senhora arranca
tanta pacova assim!

— Levar pra vosso mano Jiguê com a linda Iriqui e pra vosso mano
Maanape que estão padecendo fome.

Macunaíma ficou muito contrariado. Maginou maginou e disse pra velha:

— Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio no banhado,
quem que leva? Pergunta assim! A velha fez. Macunaíma pediu pra ela
ficar com os olhos fechados e levou todos os carregos, tudo, pro lugar em
que estavam de já-hoje

no mondongo imundado. Quando a velha abriu os olhos tudo estava no lugar
de dantes, vizinhando com os tejupares de mano Maanape e de mano Jiguê
com a linda Iriqui. E todos ficaram roncando de fome outra vez.

Então a velha teve uma raiva malvada. Carregou o herói na
cintura e partiu. Atravessou o mato e chegou no capoeirão chamado Cafundó
do Judas. Andou légua e meia nele, nem se enxergava mato mais, era
um coberto plano apenas movimentado com o pulinho dos cajueiros. Nem guaxe
animava a solidão. A velha botou o curumim no campo onde ele podia
crescer mais não e falou:

— Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e
podes crescer mais não.

E desapareceu. Macunaíma assuntou o deserto e sentiu que ia chorar.
Mas não tinha ninguém por ali, não chorou não.
Criou coragem e botou pé na estrada, tremelicando com as perninhas
de arco. Vagamundou de déu em déu semana, até que topou
com o Currupira inoqueando carne, acompanhado do cachorro dele Papamel. E
o Currupira vive no grelo do tucunzeiro e pede fumo pra gente. Macunaíma
falou:

— Meu avô, dá caça pra mim comer? — Sim,
Currupira fez.

Cortou carne da perna moqueou e deu pro menino, perguntando:

— O que você está fazendo na capoeira, rapaiz!

— Passeando.

— Não diga! — Pois é, passeando…

Então contou o castigo da mãe por causa dele ter sido malévolo
prós manos. E contando o transporte da casa de novo pra deixa onde
não tinha caça deu uma grande gargalhada. O Currupira olhou
pra ele e resmungou:

— Tu não é mais curumi, rapaiz, tu não é mais
curumi não … Gente grande que faiz isso…

Macunaíma agradeceu e pediu pro Currupira ensinar o caminho pro mocambo
dos Tapanhumas. O Currupira estava querendo mas era comer o herói,
ensinou falso:

— Tu vai por aqui, menino-home, vai por aqui, passa pela frente daquele
pau, quebra a mão esquerda, vira e volta por debaixo dos meus uaiariquinizês.

Macunaíma foi fazer a volta porém chegado na frente do pau,
cocou a perninha e murmurou: — Ai! que preguiça!… e seguiu
direito.

O Currupira esperou bastante porém curumim não chegava…
Pois então o monstro amontou no viado, que é o cavalo dele,
fincou o pé redondo na virilha do corredor e lá se foi gritando:
— Carne de minha perna! carne de minha perna! Lá de dentro da
barriga do herói a carne respondeu: — Que foi? Macunaíma
apertou o passo e entrou correndo na caatinga porém o Currupira corria
mais que ele e o menino isso vinha que vinha acochado pelo outro.

— Carne de minha perna! carne de minha perna! A carne secundava: —
Que foi? O piá estava desesperado. Era dia do casamento da raposa e
a velha Vei, a Sol, relampeava nas gotinhas de chuva debulhando luz feito
milho. Macunaíma chegou perto duma poça, bebeu água de
lama e vomitou a carne.

— Carne de minha perna! carne de minha perna! que o Currupira vinha
gritando.

— Que foi? secundou a carne já na poça. Macunaíma
ganhou os bredos por outro lado e escapou.

Légua e meia adiante por detrás dum formigueiro escutou uma
voz cantando assim: “Acuti pita canhém…” lentamente.

Foi lá e topou com a cotia farinhando mandioca num tipiti de j achara.

— Minha vó, dá aipim pra mim comer? — Sim, cotia
fez. Deu aipim pro menino, perguntando: — Quê que você está
fazendo na caatinga, meu neto? — Passeando.

— Ah o quê!

— Passeando, então!

Contou como enganara o Currupira e deu uma grande gargalhada. A cotia olhou
pra ele e resmungou:

— Culumi faz isso não, meu neto, culumi faz isso não. ..
Vou te igualar o corpo com o bestunto.

Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou
a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só
conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói
deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou
do tamanho dum home taludo. Porém a cabeça não molhada
ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.

Macunaíma agradeceu o feito e frechou cantando pro mocambo nativo.
A noite vinha bezourenta enfiando as formigas na terra e tirando os mosquitos
d’água. Fazia um calor de ninho no ar. A velha tapanhumas escutou a
voz do filho no longe cinzado e se espantou: Macunaíma apareceu de
cara amarrada e falou pra ela:

— Mãe, sonhei que caiu meu dente.

— Isso é morte de parente, comentou a velha.

— Bem que sei. A senhora vive mais uma Sol só. Isso mesmo porque
me pariu.

No outro dia os manos foram pescar e caçar, a velha foi no roçado
e Macunaíma ficou só com a companheira de Jiguê. Então
ele virou na formiga quenquém e mordeu Iriqui pra fazer festa nela.
Mas a moça atirou a quenquém longe. Então Macunaíma
virou num pé de urucum. A linda Iriqui riu, colheu as sementes se faceirou
toda pintando a cara e os distintivos, Ficou lindíssima. Então
Macunaíma, de gostoso, virou gente outra feita e morou com a companheira
de Jiguê.

Quando os manos voltaram da caça Jiguê percebeu a troca logo,
porém Maanape falou pra ele que agora Macunaíma estava homem
pra sempre e troncudo. Maanape era feiticeiro. Jiguê viu que a maloca
estava cheia de alimentos, tinha pacova tinha milho tinha macaxeira, tinha
alua e cachiri, tinha maparás e camorins pescados, maracujá-michira
ata abio sapota sapotilha, tinha passoca de viado e carne fresca de cutiara,
todos esses comes e bebes bons… Jiguê conferiu que não
pagava a pena brigar com o mano e deixou a linda Iriqui pra ele. Deu um suspiro
catou os carrapatos e dormiu folgado na rede.

No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui,
saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em
Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com
uma viada parida.

— Essa eu caço! ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu
fácil mas o herói pôde pegar o filhinho dela que nem não
andava quase, se escondeu por detrás duma carapanaúba e cotucando
o viadinho fez ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os olhos
parou turtuveou e veio vindo veio vindo parou ali mesmo defronte chorando
de amor. Então o herói flechou a viada parida. Ela caiu esperneou
um bocado e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória.
Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha
sido uma peça do Anhanga… Não era viada não, era a
própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava
morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus dó
mato.

Quando o herói voltou da sapituca foi chamar os manos e os três
chorando muito passaram a noite de guarda bebendo oloniti e comendo carimã
com peixe. Madrugadinha pousaram o corpo da velha numa rede e foram enterrá-la
por debaixo duma pedra no lugar chamado Pai da Tocandeira. Maanape que era
um catimbozeiro de marca maior, foi que gravou o epitáfio. E era assim:

Jejuaram o tempo que o preceito mandava e Macunaíma gastou o jejum
se lamentando heroicamente. A barriga da morta foi inchando foi inchando e
no fim das chuvas tinha virado num cerro macio. Então Macunaíma
deu a mão pra Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape
deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo.

III – Ci, Mãe do Mato

Uma feita os quatro iam seguindo por um caminho no mato e estavam penando
muito de sede, longe dos igapós e das lagoas. Não tinha nem
mesmo umbu no bairro e Vei, a Sol, esfiapando por entre a folhagem guascava
sem parada o lombo dos andarengos. Suavam como numa pagelança em que
todos tivessem besuntado o corpo com azeite de piquiá, marchavam. De
repente Macunaíma parou riscando a noite do silêncio com um gesto
imenso de alerta. Os outros estacaram. Não se escutava nada porém
Macunaíma sussurrou:

— Tem coisa.

Deixaram a linda Iriqui se enfeitando sentada nas raízes duma samaúma
e avançaram cautelosos. Já Vei estava farta de tanto guascar
o lombo dos três manos quando légua e meia adiante Macunaíma
escoteiro topou com uma cunha dormindo. Era Ci, Mãe do Mala Logo viu
pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de
mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada
pela Nhamundá. A cunha era linda com o corpo chupado pelos vícios,
colorido com genipapo.

O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria.
Fez lança de flecha tridente enquanto Macunaíma puxava da pageú.
Foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os berros dos briguentos
diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. O herói apanhava. Recebera
já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo de txara no rabo.
A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia
era mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam
de medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não
podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos:
— Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu
mato! Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços
dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada
no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira.
Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com
a Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias, muitas araras vermelhas

tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o novo
Imperador do Mato-Virgem.

E os três manos seguiram com a companheira nova. Atravessaram a cidade
das Flores evitaram o rio das Amarguras passando por debaixo do salto da Felicidade,
tomaram a estrada dos Prazeres e chegaram no capão de Meu Bem que fica
nos cerros da Venezuela. Foi de lá que Macunaíma imperou sobre
os matos misteriosos, enquanto Ci comandava nos assaltos as mulheres empunhando
txaras de três pontas.

O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando
formigas taiocas, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava
cantando companhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com
doçura adormecendo as cobras os carrapatos os mosquitos as formigas
e os deuses ruins.

De noite Ci chegava recendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava
na rede que ela mesmo tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois
ficavam rindo um pro outro.

Ficavam rindo longo tempo, bem juntos. Ci aromava tanto que Macunaíma
tinha tonteiras de moleza.

— Puxa como você cheira, benzinho! que ele murmurava gozado.
E escancarava as narinas mais. Vinha uma tonteira tão macota que o
sono principiava pingando das pálpebras dele. Porém a Mãe
do Mato inda não estava satisfeita não e com um jeito de rede
que enlaçava os dois convidava o companheiro para mais brinquedo. Morto
de soneira, infernizado, Macunaíma brincava para não desmentir
a fama só porém quando Ci queria rir com ele de satisfação:
— Ai! que preguiça!…

que o herói suspirava enfarado. E dando as costas para ela adormecia
bem. Mas Ci queria brincar inda mais… Convidava convidava… O herói
ferrado no sono. Então a Mãe do Mato pegava na txara e cotucava
o companheiro. Macunaíma se acordava dando grandes gargalhadas estorcegando
de cócegas.

— Faz isso não, oferecida! — Faço! — Deixa
a gente dormir, meu bem…

— Vamos brincar.

— Ai! que preguiça!…

E brincavam mais outra vez Porém nos dias de muito pajuari bebido,
Ci encontra o Imperador do Mato-Virgem largado por aí num porre mãe.
Iam brincar e o herói esquecia no meio.

— Então, herói! — Então o quê! —
Você não continua? — Continua o quê! — Pois,
meus pecados, a gente está brincando e vai você pára no
meio! — Ai! que preguiça…

Macunaíma mal esboçava de tão chumbado. E procurando
um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz.

Então pra animá-lo, Ci empregava o estratagema sublime. Buscava
no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira
no chuí do herói e na nalachítchi dela. Isso Macunaíma
ficava que ficava um lião querendo. Ci também. E os dois brincavam
que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso.

Mas era nas noites de insônia que o gozo inventava mais. Quando todas
as estrelas incendiadas derramavam sobre a Terra um óleo calorento
que ninguém não suportava de tão quente, corria pelo
mato uma presença de incêndio. Nem a passarinhada agüentava
no ninho. Mexia inquieta o pescoço, voava pro galho em frente e no
milagre mais enorme deste mundo inventava de sopetão uma alvorada preta,
cantacantando que não tinha fim. A bulha era tremenda o cheiro poderoso
e o calor inda mais.

Macunaíma dava um safanão na rede atirando Ci longe. Ela acordava
feito fúria e crescia pra cima dele. Brincavam assim. E agora despertados
inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar.

Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarnado.
Isso, vieram famosas mulatas da Bahia, do Recife, do Rio Grande do Norte e
da Paraíba, e deram pra Mãe do Mato um laçarote rubro
cor de mal, porque agora ela era mestra do cordão encarnado em todos
os Pastoris de Natal. Depois foram-se embora com prazer e alegria, bailando
que mais bailando, seguidas de futebóleres águias pequenos xodós
seresteiros, toda essa rapaziada dorê. Macunaíma ficou de repouso
o mês de preceito porém se recusou a jejuar. O pecurrucho tinha
cabeça chata e Macunaíma inda a achatava mais batendo nela todos
os dias e falando pro guri: — Meu filho, cresce depressa pra você
ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro.

Todas as icamiabas queriam bem o menino encarnado e no primeiro banho dele
puseram todas as jóias da tribo pra que o pequeno fosse rico sempre.
Mandaram buscar na Bolívia uma tesoura e enfiaram ela aberta debaixo
do cabeceiro porque sinão Tutu Marambá vinha, chupava o umbigo
do piá e o dedão do pé de Ci. Tutu Marambá veio,
topou com a tesoura e se enganou: chupou o olho dela e foi-se embora satisfeito.
Todos agora só matutavam no pecurrucho. Mandaram buscar pra ele em
São Paulo os famosos sapatinhos de lã tricotados por dona Ana
Francisca de Almeida Leite Morais e em Pernambuco as rendas “Rosa dos
Alpes”, “Flor de Guabiroba” e “Por ti padeço”
tecidas pelas mãos de dona Joaquina Leitão mais conhecida pelo
nome de Quinquina Cacunda. Filtravam o milhor tamarindo das irmãs Louro
Vieira, de Óbidos, pro menino engolir no refresco o remedinho pra lombriga.
Vida feliz, era bom!… Mas uma feita jucurutu pousou na maloca do imperador
e soltou o regougo agourento. Macunaíma tremeu assustado espantou os
mosquitos e caiu no pajuari por demais pra ver si espantava o medo também.
Bebeu e dormiu noite inteira. Então chegou a Cobra Preta e tanto que
chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo.
E como Jiguê não conseguira moçar nenhuma das icamiabas
o curumim sem ama chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais,
deu um suspiro envenenado e morreu.

Botaram o anjinho numa igaçaba esculpida com forma de jaboti e prós
boitatás não comerem os olhos do morto o enterraram mesmo no
centro da taba com muitos cantos muita dança e muito pajuari.

Terminada a função a companheira de Macunaíma toda
enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã famosa, deu-a pro companheiro
e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive
agora nos trinques pas-seando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda,
toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro.

No outro dia quando Macunaíma foi visitar o túmulo do filho
viu que nascera do corpo uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e
foi o guaraná. Com as frutinhas piladas dessa planta é que a
gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de
Vei, a Sol.

IV – Boiúna Luna

No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci a companheira
pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã
um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu
das icamiabas e partiu.

Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma
imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado
pelo séquito de araras vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura
ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava
no céu a figura faceira de Ci. “Marvada!” que ele gemia…
Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando
cânticos de longa duração.. .

Rudá, Rudá!…

Tu que secas as chuvas, Faz com que os ventos do oceano Desembestem por
minha terra Pra que as nuvens vão-se embora E a minha marvada brilhe
Limpinha e firme no céu!. . .

Faz com que amansem Todas as águas dos rios Pra que eu me banhando
neles Possa brincar com a marvada Refletida no espelho das águas!…

Assim. Então descia e chorava encostado no ombro de Maanape. Jiguê
soluçando de pena animava o togo da caieira pra que o herói
não sentisse frio. Maanape engulia as lágrimas, invocando o
Acutipuru o Murucututu o Ducucu, todos esses donos do sono em acalantos assim:
Acutipuru, Empresta vosso sono Pra Macunaíma Que é muito manhoso!…

Catava os carrapatos do herói e o acalmava balanceando o corpo. O
herói acalmava acalmava e adormecia bem.

No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através
dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito
de araras vermelhas e jandaias.

Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando
a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver.
Andaram légua e meia e encontraram uma cascata chorando sem parada.
Macunaíma perguntou pra cascata: — Que é isso! —
Chouriço! — Conta o que é.

E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela.

— Não vê que chamo Naipi e sou filha do tuxaua Mexô-Mexoitiqui
nome que na minha fala quer dizer Engatinha-Engatinha. Eu era uma boniteza
de cunhatã e todos os tuxauas vizinhos desejavam dormir na minha rede
e provar meu corpo mais molengo que embirossu. Porém quando algum vinha
eu dava dentadas e pontapés por amor de experimentar a força
dele. E todos não agüentavam e partiam sorumbáticos.

Minha tribo era escrava da boiúna Capei que morava num covão
em companhia das saúvas. Sempre no tempo em que os ipês de beira-rio
se amarelavam de flores a boiúna vinha na taba escolher a cunha virgem
que ia dormir com ela na socava cheia de esqueletos.

Quando meu corpo chorou sangue pedindo força de homem pra servir,
a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio
Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas
as flores caíram nos ombros soluçando do moço Titçatê
guerreiro de meu pai. A tristura talqualmente correição de sacassaia
viera na taba e devorara até o silêncio.

Quando o pajé velho tirou a noite do buraco outra vez, Titçatê
ajuntou as florzinhas perto dele e veio com elas pra rede da minha última
noite livre. Então mordi Titçatê.

O sangue espirrou na munheca mordida porém o moço não
fez caso não, gemeu de raiva amando, me encheu a boca de flores que
não pude mais morder. Titçatê pulou na rede e Naipi serviu
Titçatê.

Depois que brincamos feito doidos entre sangue escorrendo e as florzinhas
de ipê, meu vencedor me carregou no ombro me jogou na ipeigara abicada
num esconderijo de aturiás e flechou pro largo rio Zangado, fugindo
da boiúna.

No outro dia quando o pajé velho guardou a noite no buraco outra
vez, Capei foi me buscar e encontrou a rede sangrando vazia. Deu um urro e
deitou correndo em busca nossa. Vinha vindo vinha vindo, a gente escutava
o urro dela perto, mais perto pertinho e afinal as águas do rio Zangado
empinaram com o corpo da boiúna ali.

Titçatê não podia mais remar desfalecido, sangrando
sempre com a mordida na munheca. Por isso que não pudemos fugir. Capei
me prendeu, me revirou, fez a sorte do ovo em mim, deu certo e a boiúna
viu que eu já servira Titçatê.

Quis acabar com o mundo de raiva tamanha, não sei… me virou nesta
pedra e atirou Titçatê na praia do rio, transformado numa planta.
É aquela uma que está lá, lá em baixo, lá!
É aquele mururê tão lindo que se enxerga, bracejando n’água
pra mim. As flores roxas dele são os pingos de sangue da mordida, que
meu frio de cascata regelou.

Capei mora em baixo de mim, examinando sempre si fui mesmo brincada pelo
moço. Fui sim e passarei chorando nesta pedra até o fim do que
não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro
T’çatê… Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma
e ele soluçou tremido.

— Si… si… si a boiúna aparecesse eu… eu matava ela! Então
se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d’água. E Capei
era a boiúna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de heroísmo
e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem
de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos.
O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo, porém
nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói.
Ele agachou distraído com a dor e o rabo passou por cima dele indo
bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa
de Macunaíma. Ele só fez um afastadinho com o corpo, agarrou
num rochedo e juque! decepou a cabeça da bicha.

O corpo dela se estorceu na corrente enquanto a cabeça com aqueles
olhões docinhos vinha beijar vencida os pés do vingador. O herói
teve medo e jogou no viado mato dentro acompanhado pelos manos.

— Vem cá, siriri, vem cá! que a cabeça gritava.

Eles chispavam mais. Correram légua e meia e olharam para trás.
A cabeça de Capei vinha rolando sempre em busca deles. Correram mais
e quando não podiam de fadiga treparam num bacuparizeiro ribeirinho
pra ver si a cabeça continuava pra diante. Mas cabeça parou
por debaixo do pau e pediu bacuparis. Macunaíma sacudiu a árvore.
A cabeça catou as frutas do chão, comeu e pediu mais. Jiguê
sacudiu bacuparis dentro d’água porém a cabeça falou
que lá não ia não. Então Maanape atirou com toda
a força uma fruta longe e enquanto a cabeça ia buscá-la
os manos desceram do pau e se rasparam. Correndo correndo, légua e
meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananéia. O
coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma
falou pra ele: — Como vai, bacharel? — Menos mal, ignoto viajor.

— Tomando a fresca, não? — C’est vrai, como dizem
os franceses.

— Bem, té-logo bacharel, estou meio afobado…

E chisparam outra vez. Atravessaram os sambaquis do Caputera e do Morrete
num respiro. Logo adiante havia um rancho teatino. Entraram e fecharam a borta
bem. Então Macunaíma pôs reparo que perdera o tembetá.
Ficou desesperado porque era a única lembrança que guardava
de Ci. Ia saindo pra campear a pedra porém os manos não deixaram.
Não durou muito a cabeça chegou. Juque! bateu.

— Que há? — Abra a porta pra mim entrar! Porém
jacaré abriu? nem eles! e a cabeça não pôde entrar.
Macunaíma não sabia que a cabeça ficara escrava dele
e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito
porém vendo que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse
ser água os outros bebiam, si fosse mosquito flitavam, si fosse trem
de ferro descarrilava, si fosse rio punham no mapa… Resolveu: “Vou
ser Lua”. Gritou:

— Abram a porta, gente, que quero umas coisas! Macunaíma espiou
pela fresta e avisou Jiguê já abrindo: — Está solta!

Jiguê tornou a fechar a porta. Por isso que existe a expressão
“Tá solto!” indicando que a gente não faz mesmo o que
nos pedem.

Quando Capei viu que não abriam a porta principiou se lamentando
muito e perguntou pra iandu caranguejeira si ajudava a subida pro céu.

— Meu fio Sol derrete, secundou a aranha tatamanha.

Então a cabeça pediu prós xexéus se ajuntarem
e ficou noite escura.

— Meu fio ninguém não enxerga de noite, disse a aranha
tatamanha.

A cabeça foi buscar um cuitê de friagem nos Andes e falou:
— Despeja uma gota cada légua e meia, fio branqueia de geada.
Podemos ir.

— Pois então vamos.

A iandu principiou fazendo fio no chão. Com o primeiro ventinho que
brisou por ali o fio leviano se ergueu no céu. Então a aranha
tatamanha subiu por ele e da ponta lá em riba derramou um bocado de
geada. E enquanto a iandu caranguejeira fazia mais fio de lá pra riba,
o de baixo branqueava todo. A cabeça gritou: — Adeus, meu povo,
que vou pro céu! E lá foi comendo fie sobessubindo pro campo
vasto do céu. Os manos abriram a porta e espiaram. Capei sempre subindo.

— Você vai mesmo pro céu, cabeça? — Uum,
ela fez não podendo mais abrir a boca. Quando foi ali pela hora antes
da madrugada a boiúna Capei chegou no céu. Estava gorducha de
tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela
caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado
é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiúna
mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu.
Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de noite.

No outro dia os manos deram um campo até a beira do rio mas campearam,
campearam em vão, nada de muiraquitã. Perguntaram pra

todos os seres, aperemas sagüis tatus-mulitas tejus mussuãs da
terra e das árvores, tapiucabas chabós matinta-pereras pinica-paus
e aracuãs do ar, pra ave japiim e seu compadre marimbondo, pra baratinha
casadeira, pro pássaro que grita “Taam!” e sua companheira
que responde “Taim!”, pra lagartixa que anda de pique com o ratão,
prós tambaquis tucunarés piracurus curimatás do rio,
os pecaís tapicurus e iererês da praia, todos esses entes vivos
mas ninguém não vira nada, ninguém não sabia de
nada. E os manos bateram pé na estrada outra vez, varando os domínios
imperiais. O silêncio era feio e o desespero também. De vez em
quando Macunaíma parava pensando na marvada… Que desejo batia nele!
Parava tempo. Chorava muito tempo. As lágrimas escorregando pelas faces
infantis, do herói iam lhe batizar a peitaria cabeluda. Então
ele suspirava sacudindo a cabecinha:

— Qual, manos! Amor primeiro não tem companheiro, não!…

Continuava a caminhar. E por toda a parte recebia homenagens e era sempre
seguido pelo séquito sarapintado de jandaias e araras vermelhas.

Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos pescando,
o Negrinho do Pastoreio pra quem Macunaíma rezava diariamente, se apiedou
do panema e resolveu ajudá-lo. Mandou o passarinho uirapuru. Quando
sinão quando o herói escutou um tatalar inquieto e o passarinho
uirapuru pousou no joelho dele. Macunaíma fez um gesto de caceteação
e enxotou o passarinho uirapuru. Nem bem minuto passado escutou de novo a
bulha e o passarinho pousou na barriga dele. Macunaíma nem se amolou
mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando com doçura
e o herói entendeu tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma
estava desinfeliz porque perdera a muiraquitã na praia do rio quando
subia no bacupari. Porém agora, cantava o lamento do uirapuru, nunca
mais que Macunaíma havia de ser marupiara não, porque uma traça
já engulira a muiraquitã e o mariscador que apanhara a tartaruga
tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau
Pietro Pietra. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro e
baludo lá em São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé
Tietê.

Dito isto o passarinho uirapuru executou uma letra no ar e desapareceu. Quando
os manos chegaram da pesca Macunaíma falou pra eles:

— Ia andando por um caminho negaceando um catingueiro e vai, presenciei
um friúme no costado. Botei a mão e saiu uma lacraia mansa que
me falou toda a verdade.

Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e
disse prós manos que estava disposto a ir em São Paulo procurar
esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado.

— … ei cascavel faça ninho si eu não topo com a muiraquitã!
Si vocês venham comigo muito que bem, si não, homem, antes só
do que mal acompanhado! Mas eu tenho opinião de sapo e quando encasqueto
uma coisa agüento firme no toco. Hei de ir só pra tirar a prosa
do passarinho uirapuru, minto! da lacraia.

Depois que discursou Macunaíma deu uma grande gargalhada imaginando
na peça que pregava no passarinho. Maanape e Jiguê resolveram
ir com ele, mesmo porque o herói carecia de proteção.

V – Piaimã

No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá e deu uma chegada
até a foz do rio Negro pra deixar a consciência na ilha de Marapatá.
Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não ser comida
pelas saúvas. Voltou pro lugar onde os manos esperavam e no pino do
dia os três rumaram pra margem esquerda da Sol.

Muitos casos sucederam nessa viagem por caatingas rios corredeiras, gerais,
corgos, corredores de tabatinga matos-virgens e milagres do sertão.
Macunaíma vinha com os dois manos pra São Paulo. Foi o Araguaia
que facilitou-lhes a viagem. Por tantas conquistas e tantos feitos passados
o herói não ajuntara um vintém só mas os tesouros
herdados da icamiaba estrela estavam escondidas nas grunhas do Roraima lá.
Desses tesouros Macunaíma apartou pra viagem nada menos de quarenta
vezes quarenta milhões de bagos de cacau, a moeda tradicional. Calculou
com eles um dilúvio de embarcações. E ficou lindo trepando
pelo Araguaia aquele poder de igaras, duma em uma duzentas em ajojo que-nem
flecha na pele do rio. Na frente Macunaíma vinha de pé, carrancudo,
procurando no longe a cidade. Matutava roendo os dedos.” agora cobertos
de berrugas de tanto apontarem Ci estrela. Os manos remavam espantando os
mosquitos a cada arranco dos remos repercutindo nas duzentas igaras ligadas,
despejava uma batelada de bagos na pele do rio, deixando uma esteira de chocolate
onde os camuatás pirapitingas dourados piracanjubas uarus-uarás
e bacus se regalavam.

Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma
se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa
das piranhas tão vorazes que de quando em quando na luta pra pegar
um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água
metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio
do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que-nem a marca dum pé-gigante.
Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água
entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque
aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em
que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o
herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água
lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar
nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.

Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão
do Sumé. Porém a água já estava muito suja da
negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco
atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do
bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou: — Olhe, mano
Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se
e antes fanhoso que sem nariz.

Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara
toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá
no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das
mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só
que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por
terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:
— Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não,
mais sofreu nosso tio Judas! E estava lindíssima na Sol da lapa os
três manos um louro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos
e nus. Todos os seres do mato espiavam assombrados. O jacarèuna o jacarètinga,
o jacaré-açu o jacaré-ururau de papo amarelo, todos esses
jacarés botaram os olhos de rochedo pra fora d’água. Nos ramos
das igàzeiras das aningas das mamoranas das embaúbas dos catauaris
de beira-rio o macaco-prego o macaco-de-cheiro o guariba o bugio o cuatá
o barrigudo o coxiú o cairara, todos os quarenta macacos do Brasil,
todos, espiavam babando de inveja. E os sabiás,o sabiàcia o
sabiàpoca o sabiàúna o sabiàpiranga o sabiàgonga
que quando come não me dá, o sabiá-barranco o sabiá-tropeiro
o sabiá-laranjeira o sabiá-gute todos esses ficaram pasmos e
esqueceram de acabar o trinado, vozeando vozeando com eloqüência.
Macunaíma teve ódio. Botou as mãos nas ancas e gritou
pra natureza: — Nunca viu não! Então os seres naturais
debandavam vivendo e os três manos seguiram caminho outra vez.

Porém entrando nas terras do igarapé Tietê adonde o
burbon vogava e a moeda tradicional não era mais cacau, em vez, chamava
arame contos contecos milreis borós tostão duzentorréis
quinhentorreis, cinqüenta paus, noventa bagarotes, e pelegas cobres xenxéns
caraminguás selos bicos-de-coruja massuni bolada calcáreo gimbra
siridó bicha e pataracos, assim, adonde até liga pra meia ninguém
comprava nem por vinte mil cacaus. Macunaíma ficou muito contrariado.
Ter de trabucar, ele, herói. . . Murmurou desolado: — Ai! que
preguiça!. . .

Resolveu abandonar a empresa, voltando prós pagos de que era imperador.
Porém Maanape falou assim: — Deixa de ser aruá, mano!
Por morrer um carangueijo o mangue não bota luto! que diacho! desanima
não que arranjo as coisas! Quando chegaram em São Paulo, ensacou
um pouco do tesouro pra comerem e barganhando o resto na Bolsa apurou perto
de oitenta contos de réis. Maanape era feiticeiro. Oitenta contos não
valia muito mas o herói refletiu bem e falou prós manos: —
Paciência. A gente se arruma com isso mesmo, quem quer cavalo sem tacha
anda de a-pé.. . Com esses cobres é que Macunaíma viveu.
E foi numa bôca-da-noite frio que os manos toparam com a cidade macota
de São Paulo esparramada a beira-rio do igarapé Tietê.
Primeiro foi a gritaria da papagaiada imperial se despedindo do herói.
E lá se foi o bando sarapintado volvendo prós matos do norte.
Os manos entraram num cerrado cheio de inajás ouricuris ubussus bacabas
mucajás miritis tucumãs trazendo no curuatá uma penachada
de fumo em vez de palmas e cocos. Todas as estrelas tinham descido do céu
branco de tão molhado de garoa e banzavam pela cidade. Macunaíma
lembrou de procurar Ci Êh! dessa ele nunca poderia esquecer não,
porque a rede feiticeira que ela armara prós brinquedos, fora tecida
com os próprios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível.
Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terreiros estavam apinhados
de cunhas tão brancas tão alvinhas, tão!… Macunaíma
gemia. Roçava nas cunhas murmurejando com doçura: “Mani!
Mani! filhinhas da mandioca…” perdido de gosto e tanta formosura. Afinal
escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão,
numa maloca mais alta que a Paranaguara. Depois, por causa daquela rede ser
dura, dormiu de atravessado sobre os corpos das cunhas. E a noite custou pra
ele quatrocentos bagarotes.

— A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou
com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as
malocas temíveis. E aquele diacho de sagüi-açu que o carregara
pro alto do tapiri tamanho em que dormira. . . Quê mundo de bichos!
quê despropósito de papões roncando, mauaris juruparis
sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados
por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima,
de certo a filharada da mandioca!… Á inteligência do herói
estava muito perturbada. As cunhas rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu
não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina.
De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros
roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons
campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas
não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés
dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás
as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões
bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis
rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés. . .
Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói
aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel
escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito
cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã famanado
que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que
a Mãe-D’água, em bulhas de sarapantar.

Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também
imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhas deram muitas risadas
e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha
deus não e que com a máquina ninguém não brinca
porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía
os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos
homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com.,
fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré
acreditou? nem o herói! Se levantou na cama e com um gesto, esse sim!
bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo
dentro do outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três
cunhas e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa:
a pacova.

E foi morar numa pensão com os manos. Estava com a boca cheia de sapinhos
por causa daquela primeira noite de amor paulistano. Gemia com as dores e
não havia meios de sarar até que Maanape roubou uma chave de
sacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupou chupou
e sarou bem. Maanape era feiticeiro.

Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só
maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina.
A Máquina era que matava os homens porém os homens é
que mandavam na Máquina… Constatou pasmo que os filhos da mandioca
eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério
sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava
nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço
dum arranha-céu com os manos, Macunaíma concluiu: — Os
filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles
nesta luta. Há empate.

Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com
discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que
a máquina devia de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente
donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável
mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele
sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e
as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande
gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe.
Virou Jiguê na máquina telefone, ligou prós cabarés
encomendando lagosta e francesas.

No outro dia estava tão fatigado da farra que a saudade bateu nele.
Se lembrou da muiraquitã. Resolveu agir logo porque primeira pancada
é que mata cobra.

Venceslau Pietro Pietra morava num tejupar maravilhoso rodeado de mato no
fim da rua Maranhão olhando pra noruega do Pacaembu. Macunaíma
falou pra Maanape que ia dar uma chegadinha até lá por amor
de conhecer Venceslau Pietro Pietra. Maanape fez um discurso mostrando as
inconveniências de ir lá porque a regatão andava com o
calcanhar pra frente e si Deus o assinalou alguma lhe achou. De certo um manuari
malevo… Quem sabe si o gigante Piaimã comedor de gente!… Macunaíma
não quis saber.

— Pois vou assim mesmo. Onde me conhecem honras me dão onde
não me conhecem me darão ou não!

Então Maanape acompanhou o mano.

Por detrás do tejupar do regatão vivia a árvore Dzalaúra-Iegue
que dá todas as frutas, cajus cajás cajàmangas mangas
abacaxis abacates jaboticabas graviolas sapotis pupunhas pitangas guajiru
cheirando sovaco de preta, todas essas frutas e é mui alta. Os dois
manos estavam com fome. Fizeram um zaiacúti com folhagem cortada pelas
saúvas, esconderijo no galho mais baixo da árvore pra flecharem
a caça devorando as frutas. Maanape falou pra Macunaíma: —
Olha, si algum pássaro cantar não secunda não, mano,
sinão adeus minhas encomendas! O herói mexeu a cabeça
que sim. Maanape atirava m a sarabatana e Macunaíma recolhia por detrás
do zaiacúti a caça caindo. Caça caía com estrondo
e Macunaíma aparava os macucos macacos micos mutuns jacus jaós
tucanos, todas essas caças. Porém o estrondo tirou Venceslau
Pietro Pietra do farniente e ele veio saber o que era aquilo. E Venceslau
Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente. Chegou na porta
da casa e cantou feito pássaro: — Ogoró! ogoró!
ogoró! parecendo muito longe. Macunaíma secundou logo: —
Ogoró! ogoró! ogoró! Maanape sabia do perigo e murmurou:
— Esconde, mano! O herói escondeu por detrás do zaiacúti
entre a caça morta e as formigas. Então gigante veio.

— Quem que secundou? Maanape respondeu: — Sei não.

— Quem que secundou? — Sei não.

Treze vezes. Daí o gigante falou: — Foi gente. Me mostra quem
era. Maanape jo^ou um macuco morto. Piaimã engoliu o macuco e falou:
— Foi gente. Me mostra quem era. Maanape jogou um macaco morto. Piaimã
engoliu-o e continuou: — Foi gente. Me mostra quem era.

Então enxergou o dedo mindinho do herói escondido e atirou
uma baníni na direção. Se ouviu um grito gemido comprido,
juuuque! e Macunaíma agachou com a flecha enterrada no coração.
O gigante falou pra Maanape: — Atira a gente que eu cacei! Maanape atirou
guaribas jaós mutuns mutum-de-vargem mutum-de-fava mutuporanga urus
urumutum, todas essas caças porém Piaimã engolia e tornava
a pedir a gente que ele flechara. Maanape não queria dar o herói
e jogava as caças. Levaram muito tempo assim e Macunaíma já
tinha morrido. A final Piaimã deu um berro medonho: — Maanape,
meu neto, deixa de conversa! Atira a gente que eu cacei que sinão te
mato, velho safadinho! Maanape não queria jogar o mano mesmo, pegou
desesperado em seis caças duma vez um macuco um macaco um jacu uma
jacutinga uma picota e uma pia-coça e atirou no chão gritando:
— Toma seis! Piaimã ficou danado. Agarrou quatro paus do mato,
uma acapurana um angelim um apió e um carará, e veio com eles
pra cima de Maanape: — Sai do caminho, por queira! jacaré não
tem pescoço, formiga não tem caroço! comigo é
só quatro paus na ponta da unha, jogador de caça falsa!

Então Maanape ficou com muito medo e jogou, truque! o herói no
chão. Foi assim que Maanape com Piaimã inventaram o jogo sublime
do truco.

Piaimã sossegou.

— Este mesmo.

Agarrou o defunto por uma perna e foi puxando. Entrou na casa. Maanape desceu
da árvore desesperado. Quando ia pra seguir atrás do defunto
mano topou com a formiguinha sarara chamada Cambgique. A sarara perguntou:
— O que você faz por aqui, parceiro! — Vou atrás
do gigante que matou meu mano.

— Vou também.

Então Cambgique sugou todo sangue do herói, esparramado no
chão e nos ramos e sugando sempre as gotas do caminho foi monstrando
o rasto pra Maanape.

Entraram na casa atravessaram o hol e a sala-de-jantar, passaram pela copa
saíram no terraço do lado e pararam na frente do porão.
Maanape acendeu uma tocha de jutaí e puderam descer a escadinha negra.
Bem na porta da adega restejava a última gota de sangue. A porta estava
fechada. Maanape cocou o nariz e perguntou pra Cambgique: — E agora!
Então veio por debaixo da porta o carrapato Zlezlegue e perguntou pra
Maanape: — Agora o quê, parceiro? — Vou atrás do
gigante que matou meu mano. Zlezlegue falou: — Está bom. Então
fecha o olho, parceiro. Maanape fechou.

— Abre o olho, perceiro.

Maanape abriu e o carrapato Zlezlegue tinha virado numa chave yale. Maanape
ergueu a chave do chão e abriu a porta. Zlezlegue virou carrapato outra
vez e ensinou: — Com as garrafas bem de cima você convence Piaimã.

E desapareceu. Maanape tirou dez garrafas, abriu e veio vindo uma aroma
perfeito. Era o cauim famoso chamado quiânti. Então Maanape entrou
na outra sala da adega. O gigante estava aí com a companheira, uma
caapora velha sempre cachimbando que se chamava Ceiuci e era muito gulosa.
Maanape deu as garrafas pra Venceslau Pietro Pietra, um naco de fumo do Acará
pra caapora e o casal esqueceram que havia mundo.

O herói picado em vinte vezes trinta torresminhos bubuiava na polenta
fervendo. Maanape catou os pedacinhos e os ossos e estendeu tudo. no cimento
pra refrescar. Quando esfriaram a sarara Cambgique derramou por cima o sangue
sugado. Então Maanape embrulhou todos os pedacinhos sangrando em folhas
de bananeira, jogou o embrulho num sapiquá e tocou pra pensão.

Lá chegado botou o cesto de pé assoprou fumo nele e Macunaíma
veio saindo meio pamonha ainda, muito desmerecido, do meio das folhas. Maanape
deu guaraná pro mano e ele ficou taludo outra vez. Espantou os mosquitos
e perguntou: — O que foi que sucedeu pra mim? — Mas, meus cuidados,
não falei pra você não secundar cantiga de passarinho!
falei sim, pois então!…

No outro dia Macunaíma acordou com escarlatina e levou todo o tempo
da febre imaginando que carecia da máquina garrucha pra matar Venceslau
Pietro Pietra. Nem bem sarou foi na casa dos Ingleses pedir uma smith-wêsson.
Os Ingleses falaram: — As garruchas inda estão muito verdolengas
porém vamos a ver si tem alguma têmpora.

Então foram em baixo da árvore garrucheira. Os Ingleses falaram:
— Você fica esperando aqui. Se despencar alguma garrucha então
pegue. Mas não deixa ela cair no chão não! — Feito.

Os Ingleses sacudiram sacudiram a árvore e caiu uma garrucha têmpora.
Os Ingleses falaram: — Essa está boa.

Macunaíma agradeceu e foi-se embora. Queria que os outros acreditassem
que ele falava o inglês porém não falava nem sweetheart
não, os manos é que falavam. Maanape também desejava
garrucha balas e uísque. Macunaíma aconselhou: — Você
não fala inglês, bem, mano Maanape, vai lá e a volta é
cruel. É capaz de pedir garrucha e darem conserva. Deixa que eu vou.

E foi falar outra vez com os Ingleses. Debaixo da árvore garrucheira
os Ingleses sacolejaram sacolejaram os ramos porém não caiu
nem uma garrucha não. Então foram debaixo da árvore baleira,
os Ingleses sacudiram e despencou um desperdício de balas que Macunaíma
deixou cair no chão depois catou. — Agora uísque, falou.

Foram debaixo da árvore uisqueira, os Ingleses sacudiram e despencaram
duas caixas que Macunaíma pegou no ar. Agradeceu prós Ingleses
e voltou pra pensão. Lá chegado escondeu as caixas debaixo da
cama e foi falar com o mano: — Falei inglês com eles, mano, porém
não tinha nem garrucha nem uísque por causa que passou uma correiçao
de formiga oncinha e comeu tudo. As balas trago aqui. Agora dou minha garrucha
pra você e quando alguém bulir comigo você atira.

Então virou Jiguê na máquina telefone, ligou pro gigante
e xingou a mãe dele.

VI – A Francesa e o Gigante

Maanape gostava muito de café e Jiguê muito de dormir. Macunaíma
queria erguer um papiri prós três morarem porém jamais
que papiri se acabava. Os puchirões goravam sempre porque Jiguê
passava o dia dormindo e Maanape bebendo café. O herói teve
raiva. Pegou numa colher, virou-a num bichinho e falou: — Agora você
fica sovertida no pó de café. Quando mano Maanape vier beber,
morda a língua dele! Então pegando num cabeceiro de algodão,
virou-o numa tatorana branca e falou: — Agora você fica sovertida
na maqueira. Quando mano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele! Maanape
já vinha entrando na pensão pra beber café outra vez.
O bichinho picou a língua dele. Ai! Maanape fez. Macunaíma bem
sonso falou:

— Está doendo, mano? Quando bichinho me pica não dói
não.

Maanape teve raiva. Atirou o bichinho muito pra longe falando: — Sai,
praga! Então Jiguê entrou na pensão pra tirar um corte.
O marandová branquinho tanto chupou o sangue dele que até virou
rosado.

— Ai! que Jiguê gritou. E Macunaíma: — Está
doendo, mano? Ora veja só! Quando tatorana me chupa até gosto.

Jiguê teve raiva e atirou a tatorana longe falando: — Sai, praga!
E então os três manos foram continuar a construção
do papiri. Maanape e Jiguê ficaram dum lado e Macunaíma do outro
pegava os tijolos que os manos atiravam. Maanape e Jiguê estavam tiriricas
e desejando se vingar do mano. O herói não maliciava nada. Vai,
Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o
numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape qüe estava
mais na frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma.
Esborrachou todo o nariz do herói.

— Ui! que o herói fez.

Os manos bem sonsos gritaram: — Uai! está doendo, mano! Pois
quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve
raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: — Sai,
peste! Veio onde estavam os manos: — Não faço mais papiri,
pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de içás
que tomou São Paulo por três dias.

O bichinho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. A bola caiu
no campo. E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê
a largarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas.

No outro dia, com o pensamento sempre na marvada, o herói percebeu
que xetrara mesmo duma vez e nunca mais que podia aparecer na rua Maranhão
porque agora Venceslau Pietro Pietra já o conhecia bem. Imaginou e
ali pelas quinze horas teve uma idéia. Resolveu enganar o gigante.
Enfiou um membi na goela, virou Jiguê na máquina telefone e telefonou
pra Venceslau Pietro Pietra que uma francesa queria falar com ele a respeito
da máquina negócios. O outro secundou que sim e que viesse agorinha
já porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam
negociar mais folgado.

Então Macunaíma emprestou da patroa da pensão uns pares
de bonitezas, a máquina ruge, a máquina meia-de-sêda,
a máquina combinação com cheiro de cascasacaca, a máquina
cinta aromada com capim cheiroso, a máquina decoletê úmida
e patchuli, a máquina mitenes, todas essas bonitezas, dependurou dois
mangarás nos peitos e se vestiu assim. Pra completar inda barreou com
azul de pau campeche os olhinhos de piá que se tornaram lânguidos.
Era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa francesa tão linda
que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio
no patriotismo pra evitar quebranto. E foi no palácio de Venceslau
Pietro Pietra. E Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor
de gente.

Saindo da pensão Macunaíma topou com um beija-flor com rabo
de tesoura. Não gostou da cagüira não e pensou abandonar
o randevu porém como promessa é dívida fez um esconjuro
e seguiu.

Lá chegado encontrou o gigante no portão, esperando. Depois
de muitos salamaleques Piaimã tirou os carrapatos da francesa e levou-a
pra uma alcova lindíssima com esteios de acaricoara e tesouras de itaúba.
O assoalho era um xadrez de munirapiranga e pau-cetim. A alcova estava mobiliada
com as famosas redes brancas do Maranhão. Bem no centro havia uma mesa
de jacarandá esculpido arranjada com louça branco-encarnada
de Breves e cerâmica de Belém, disposta sobre um toalha de rendas
tecidas com fibra de bananeira. Numas bacias enormes originárias das
cavernas do rio Cunani fumegava tacacá com tucupi, sopa feita com um
paulista vindo dos frigoríficos da Continental, uma jacarezada e polenta.
Os vinhos eram um Puro de Ica subidor vindo de Iquitos, um Porto imitação,
de Minas, uma caiçuma de oitenta anos, champanha de São Paulo
bem gelada e um extrato de jenipapo famanado e ruim como três dias-
de chuva. E inda havia dispostos com arte enfeitadeira e muitos recortados
de papel, os esplêndidos bombons Falchi e biscoitos do Rio Grande empilhados
em cuias dum preto brilhante de cumaté com desenhos esculpidos a canivete,
provindas de Monte Alegre.

A francesa sente i numa rede e fazendo gestos graciosos principiou mastigando.
Estava com muita fome e comeu bem. Depois tomou um copo de Puro pra rebater
e resolveu entrar no assunto de chapéu-de-sol aberto. Foi logo perguntando
si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma
de jacaré. O gigante foi lá dentro e voltou com um caramujo
na mão. E puxou pra fora dele uma pedra verde. Era a muiraquitã!
Macunaíma sentiu um frio por dentro de tanta comoção
e percebeu que ia chorar. Mas disfarçou bem perguntando si o gigante
não queria vender a pedra. Porém Venceslau Pietro Pietra piscou
faceiro dizendo que vendida não dava a pedra não. Então
a francesa pediu suplicando pra levar a pedra de emprestado pra casa. Venceslau
Pietro Pietra mais uma vez piscou faceiro falando que de emprestado não
dava a pedra também não: — Você imagina então
que vou cedendo assim com duas risadas, francesa? Qual! — Mas eu estou
querendo tanto a pedra!…

— Vá querendo! — Pois tanto se me dá como se me
dava, regatão! — Regatão uma ova, francesa! Dobre a língua!
Colecionador é que é! Foi lá dentro e voltou carregando
um grajaú tamanho feito de embira e cheinho de pedra. Tinha turquesas
esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com forma de agulha, crisólita
pingo-d’água tinideira esmeril lapinha ovo-de-pomba osso-de-cavalo
machados facões flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes
petrificados, colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos
mesas mexicanas, ouro guianense, pedras ornitomorfas de Iguape, opalas do
igarapé Alegre, rubis e granadas do rio Gurupi, itamotingas do rio
das Garças, itacolumitos, turmalinas de Vupabuçu, blocos de
titânio do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do Macaco,
fósseis calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá,
o rochedo tamanho que Oaque o Pai do Tucano atirou com a sarabatana lá
do alto daquela montanha, um litóglifo de Calamare, tinha todas essas
pedras no grajaú.

Então Piaimã contou pra francesa que ele era um colecionador
célebre, colecionava pedras. E a francesa era Macunaíma, o herói.
Piaimã confessou que a jóia da coleção era mesmo
a muiraquitã com forma de jacaré comprada por mil contos da
imperatriz das icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E
tudo era mentira do gigante. Vai, ele sentou na rede mui rente da francesa,
muito! e falou murmuriando que com ele era oito ou oitenta, não vendia
não emprestava a pedra mas porém era capaz de dar… “Confrome…”
O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. Quando por causa
do jeito de Piaimã o herói entendeu o que significava o tal
de “conforme”, ficou muito inquieto. Matutou: “Será
que o gigante imagina que sou francesa mesmo!… Cai fora, peruano senvergonha”!
E saiu correndo pelo jardim. O gigante correu atrás. A francesa pulou
numa moita pra se esconder porém estava uma pretinha lá. Macunaíma
cochilou Pra ela: — Caterina, sai daí sim? Caterina nem gesto.
Macunaíma já meio impinimado com ela, cochichou: — Caterina,
sai daí que sinão te bato! A mulatinha ali. Então Macunaíma
deu um bruto dum tapa na peste e ficou com a mão grudada nela.

— Caterina, me larga minha mão e vai-te embora que te dou mais
tapa, Caterina! Caterina era mas uma boneca de cera de carnaúba posta
ali pelo gigante. Ficou bem quieta. Macunaíma deu outro tapa com a
mão livre e ficou mais preso.

— Caterina, Caterina! me larga minhas mãos e vaite embora pixaim!
sinão te dou um pontapé! Deu o pontapé e ficou mais preso
ainda. Afinal o herói ficou inteirinho grudado na Catita. Então
chegou Piaimã com um cesto. Tirou a francesa da armadilha e berrou
pro cesto: — Abra a boca, cesto, abra a vossa grande boca! O cesto abriu
a boca e o gigante despejou o herói nele. O cesto fechou a boca outra
vez, Piaimã carregou-o e voltou. A francesa em vez de bolsa estava
armada com o mênie que serve pra guardar as frechinhas da sarabatana.
O gigante deixou o cesto encostado na porta de entrada e afundou casa a dentro
pra guardar o mênie entre as pedras da coleção. Porém
o mênie era de pano cheirando piche de caça. O gigante desconfiou
daquilo e perguntou: — Vossa mãe é tão cheirosa
e gordinha que nem você, criatura? E revirou os olhos de gosto. Ele
estava maliciando que o mênie era filhinho da francesa. E a francesa
era Macunaíma o herói. Lá do cesto ele escutou a pergunta
e principiou ficando excessivamente inquieto. “Pois então será
mesmo que esse tal de Venceslau imagina que passei por debaixo de algum arco-da-velha
pra ter mundado a natureza? te esconjuro, credo!” Então assoprou
raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o amarrilho
do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o jaguará do
gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo.
O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque adentro.
O cachorro correu atrás. Correram. Passaram Já rente à
Ponta do Calabouço, tomaram rumo de Guajará Mirim e voltaram
pra leste. Em Itamaracá Macunaíma passou um pouco folgado e
teve tempo de comer uma dúzia de manga-jasmim que nasceu do corpo de
dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena o fugitivo
avistou uma vaca no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas.
Lembrou de tomar leite. Subiu esperto pela capistrana pra não cansar
porém a vaca era de raça Guzerá muito brava. Escondeu
o leitinho pobre. Mas Macunaíma fez uma oração assim:

Valei-me Nossa Senhora, Santo Antônio de Nazaré, A vaca mansa
dá leite, A braba dá si quisé!

A vaca achou graça, deu leite e o herói chispou pro sul. Atravessando
o Paraná já de volta dos pampas bem que ele queria trepar numa
daquelas árvores porém os latidos estavam na cola dele e o herói
isso vinha que vinha acochado pelo jaguara. Gritava: — Sai, pau!

E desviava de cada castanheira, de cada pau-d’arco, de cada cumpro bom de trepar.
Adiante da cidade de Serra no Espírito Santo quase arrebentou a cabeça
numa pedra com muitas pinturas esculpidas que não se entendia. De certo
era dinheiro enterrado… Porém Macunaíma estava com pressa e
frechou pras barrancas da ilha do Bananal. Enfim enxergou um formigueiro de
trinta metros abrindo um olho no rés do chão bem na frente. Barafustou
subindo pelo buraco a dentro e se encolheu no alto. O jaguara ficou acuando
ali.

Então o gigante veio e topou com o jaguara acuando o formigueiro.
Bem na entrada a francesa perdera uma correntinha de prata. “Meu tesouro
está aqui” murmurou o gigante. Então o jaguara desapareceu.
Piaimã arrancou da terra com raiz e tudo uma palmeira inajá
e nem deixou sinal no chão. Cortou o grelo do pau e enfiou-o pelo buraco
por amor de fazer a francesa sair. Porém jacaré saiu? nem ela!
Abriu as pernas e o herói ficou como se diz empalado na inajá.
Vendo que a francesa não saía mesmo, Piaimã foi buscar
pimenta. Trouxe uma correição das formigas anaquilãs
que é pimenta de gigante, botou-as no buraco, elas ferraram no herói.
Mas nem assim mesmo a francesa saiu. Piaimã jurou vingança.
Pinchou fora as anaquilãs e gritou pra Macunaíma: — Agora
que te agarro mesmo porque vou buscar a jararaca Elite! Quando ouviu isso
o herói gelou. Com a jararaca ninguém não pode não.
Gritou pro gigante: — Espera um bocado, gigante, que já saio.
Porém pra ganhar tempo tirou os mangarás do peito e botou na
boca do buraco falando: — Primeiro bota isso pra fora, faz favor. Piaimã
estava tão furibundo que atirou os mangarás longe. Macunaíma
presenciou a raiva do gigante.

Tirou a máquina decoletê, pôs ela na boca do buraco,
falando outra vez: — Bota isso pra fora, faz favor.

Piaimã inda atirou o vestido mais longe. Então Macunaíma
botou a máquina cinta, depois a máquina sapatos e foi fazendo
assim com todas as roupas. O gigante isso já estava fumando de tão
danado. Jogava tudo longe sem nem olhar o que era. Então bem de mansinho
o herói pôs o sim-sinhô dele na boca do buraco e falou:
— Agora me bote fora só mais esta cabaça fedorenta.

Piaimã cego de raiva agarrou no sim-sinhô sem ver o que era
e atirou sim-sinhô com herói e tudo légua e meia adiante.
E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longe ganhava
os mororós.

Chegou na pensão tomando a bênção de cachorro
e chamando gato de tio, só vendo! suando esfolado com fogo nos olhos,
botando os bofes pela boca. Descansou um pedaço e como estava arado
de fome bateu uma fritada de sururu de Maceió, um pato seco de Marajó
molhando a janta com mocororó. Descansou.

Macunaíma estava muito contrariado. Venceslau Pietro Pietra era um
colecionador célebre e ele não. Suava de inveja e afinal resolveu
imitar o gigante. Porém não achava graça em colecionar
pedra não porque já tinha uma imundície delas na terra
dele pelos espigões, nos manadeiros nas corredeiras nas seladas e gupiaras
altas. E todas essas pedras já tinham sido vespas formigas mosquitos
carrapatos animais passarinhos gentes e cunhas e cunhatãs e até
as graças das cunhas e das cunhatãs… Praquê mais pedra
que é tão pesado de carregar!… Estendeu os braços com
moleza e murmurou: — Ai! que preguiça!…

Matutou matutou e resolveu. Fazia uma coleção de palavras-feias
de que gostava tanto.

Se aplicou. Num átimo reuniu milietas delas em todas as falas vivas
e até nas línguas grega e latina que estava estudando um bocado.
A coleção italiana era completa, com palavras pra todas as horas
do dia, todos os dias do ano, todas as circunstâncias da vida e sentimentos
humanos. Cada bocagem! Mas a jóia da coleção era uma
frase indiana que nem se fala.

VII – Macumba

Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã
e isso dava ódio. O milhor era matar Piaimã… Então saiu
da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua
e meia e afinal enxergou uma peroba sem fim. Enfiou o braço na sapopemba
e deu um puxão pra ver si arrancava o pau mas só o vento sacudia
a folhagem na altura porém. “Inda não tenho bastante força
não”, Macunaíma, refletiu. Agarrou num dente de ratinho chamado
crô, fez uma bruta incisão na perna, de preceito pra quem é
frouxo e voltou sangrando pra pensão. Estava desconsolado de não
ter força ainda e vinha numa distração tamanha que deu
uma topada.

Então de tanta dor o herói viu no alto as estrelas c entre
elas enxergou Capei minguadinha cercada de névoa. “Quando mingua
a Luna não comeces coisa alguma” suspirou. E continuou consolado.

No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói resolveu
se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar. Porém
por causa de não ter força tinha mas era muito medo do gigante.
Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer
e Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.

Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá
no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo
famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma
chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga
obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita,
gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos,
todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma
tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga
feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia
e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblèzeira imóvel
sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra
velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a
cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita.
Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma
compridez já sonolenta pendependendo, pro chão de terra.

Vai, um rapaz filho de Ochum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição
cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros
marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos,
muitos empregados-públicos! todas essas gentes e apagou o bico de gás
alumiando a saleta.

Então a macumba principiou de deveras se fazendo um çairê
pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de
atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadistas de profissão,
se chamando Olelê Rui Barbosa. Tabaque mexiamexia acertado num ritmo
que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel
com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração.
Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços
puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros
curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas
gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim: —
Va-mo sa-ra-vá!…

Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: v. .. .

— Ôh Olorung! E a gente secundando: — Va-mo sa-ra-vá!…

Tia Ciata continuava: — Ô Boto Tucuchi! E a gente secundando:
— Va-mo sa-ra-vá!…

Docinho numa reza mui monótona.

— Ô Iemanjá! Anamburucu! e Ochum! três Mães-d’água!
— Va-mo sa-ra-vá!…

Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso: — Sai
Exu! porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém
pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando: — Uuum!… uuum!…
Exu! Nosso padre Exu…! E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo
o tamanhão da noite fora. O çairê continuava: —
Ôh Rei Nagô! — Va-mo sa-ra-vá!… Docinho na reza
monótona.

— Ôh Baru! — Va-mo sa-ra-vá!…

Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso: —
Sai Exu! porque Exu era o pé-de-pato, um jananaíra malévolo.
E de novo era o tormento na sala uivando: — Uuuum!… Exu! Nosso padre
Exu!…

E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite.

— Ôh Oxalá! — Va-mo sa-ra-vá!…

Era assim. Saudaram todos os santos da pagelança, o Boto Branco que
dá os amores Xangô, Omulu, Iroco Ochosse, a Boiúna Mãe
feroz, Obatalá que dá força pra brincar muito, todos
esses santos e o çairê se acabou. Tia Ciata sentou na tripeça
num canto e toda aquela gente suando, médicos padeiros engenheiros
rábulas polícias criadas focas assassinos, Macunaíma,
todos vieram botar as velas no chão rodeando a tripeça. As velas
jogaram no teto a sombra da mãe-de-santo imóvel. Já quase
todos tinham tirado algumas roupas e o respiro ficara chiado por causa do
cheiro de mistura budum coty pitium e o suor de todos. Então veio a
vez de beber. E foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez
o cachiri temível cujo nome é cachaça. Provou estalando
com a língua feliz e deu uma grande gargalhada.

Depois da bebida, entre bebidas, seguiram as rezas de invocação.
Todos estavam inquietos ardentes desejando que um santo viesse na macumba
daquela noite. Fazia já tempo que nenhum não vinha por mais
que os outros pedissem. Porque a macumba da tia Ciata não era que-nem
essas macumbas falsas não, em que sempre o pai-de-terreiro fingia vir
Xangô Ochosse qualquer, pra contentar os macumbeiros. Era uma macumba
séria e quando santo aparecia, aparecia de deveras sem nenhuma falsidade.
Tia Ciata não permitia dessas desmoralizações no zungu
dela e fazia mais de doze meses que Ogum nem Exu não apareciam no Mangue.
Todos desejavam que Ogum viesse. Macunaíma queria Exu só pra
se vingar de Venceslau Pietro Pietra.

Entre golinhos de abrideira, uns de joelhos outros de quatro, todas essas
gentes seminuas rezavam em torno da feiticeira pedindo a aparição
dum santo. À meia-noite foram lá dentro comer o bode cuja cabeça
e patas já estavam lá no pegi, na frente da imagem de Exu que
era um tacuru de formiga com três conchas fazendo olhos e boca. O bode
fora morto em honra do diabo e salgado com pó de chifre e esporão
de galo-de-briga. A mãe-de-santo puxou a comilança com respeito
e três pelossinais de atravessado. Toda a gente vendedores bibliófilos
pés-rapados acadêmicos banqueiros, todas essas gentes dançando
em volta da mesa cantavam: Bamba querê Sai Aruê Mongi gongo Sai
Orobô, Êh!…

ôh mungunzá Bom acaçá Vancê nhamanja De
pai Guenguê, Êh!…

E conversando pagodeando devoraram o bode consagrado e cada qual buscando
o garrafão de pinga dele porque ninguém não podia beber
no de outro, todos beberam muita caninha, muita! Macunaíma dava grandes
gargalhadas e de repente derrubou vinho na mesa. Era sinal de alegrão
pra ele e todos imaginavam que o herói era o predestinado daquela noite
santa. Não era não.

Nem bem reza recomeçou se viu pular no meio da saleta uma fêmea
obrigando todos a silêncio com o gemido meio choro e puxar canto novo.
Foi um tremor em todos e as velas jogaram a sombra de cunha que nem monstro
retorcido procanto do teto, era Exu! Ogã pelejava batendo tabaque pra
perceber os ritmos doidos do canto novo, canto livre, de notas afobadas cheio
de saltos difíceis, êxtase maluco baixinho tremendo de fúria.
E a polaca muito pintada na cara, com as alças da combinação
arrebentadas estremecia no centro da saleta, já com as gorduras quasi
inteiramente nuas. Os peitos dela balangavam batendo nos ombros na cara e
depois na barriga, juque! com estrondo. E a ruiva cantando cantando. Afinal
a espuminha rolou dos beiços desmanchados, ela deu um grito que diminuiu
o tamanhão da noite mais, caiu no santo e ficou dura.

Passou um tempo de silêncio sagrado. Então tia Ciata se levantou
da tripeça que uma mazombinha substituiu no sufragante por um banco
novo nunca sentado, agora pertencendo pra outra. A mãe-de-terreiro
veio vindo veio vindo. Ogã vinha com ela. Todos os outros estavam de
pé se achatando nas paredes. Só tia Ciata veio vindo veio vindo
e chegou junto do corpo duro da polaca no centro da saleta ali. A feiticeira
tirou a roupa ficou nua, só com os colares os braceletes os brincos
de contas de prata pingando nos ossos. Foi tirando da cuia que Ogã
pegava, o sangue coalhado do bode comido e esfregando a pasta na cabeça
da balalaó. Mas quando derramou o efém verdento em riba, a dura
se estorceu gemida e o cheiro iodado embebedou o ambiente. Então a
mãe-de-santo entoou a reza sagrada de Exu, melopéia monótona.

Quando acabou, a fêmea abriu os olhos, principiou se movendo bem diferente
de já-hoje e não era mais fêmea era o cavalo do santo,
era Exu. Era Exu, o romãozinho que viera ali com todos pra macumbar.

O par de nuas executava um jongo improvisado e festeiro que ritmavam os
estralos dos ossos da tia, os juques dos peitos da gorda e o ogã com
batidos chatos. Todos estavam nus também e se esperava a escolha do
Filho de Exu pelo grande Cão presente. Jongo temível. Macunaíma
fremia de esperança querendo o cariapemba pra pedir uma tunda em Venceslau
Pietro Pietra. Não se sabe o que deu nele de sopetão, entrou
gingando no meio da sala derrubou Exu e caiu por cima brincando com vitória.
E a consagração do Filho de Exu novo era celebrada por licenças
de todos e todos se urarizaram em honra do filho novo do icá.

Terminada a cerimônia o diabo foi conduzido pra tripeça, principiando
a adoração. Os ladrões os senadores os jecas os negros
as senhoras os futebóleres, todos, vinham se rojando por debaixo do
pó alaranjando a saleta e depois de batida a cabeça com o lado
esquerdo no chão, beijavam os joelhos beijavam todo o corpo do uamoti.
A polaca vermelha tremendo rija pigando espuminha da boca em que todos molhavam
o mata-piolho pra se benzerem de atravessado, gemia uns roncos regougados
meio choro meio gozo e não era polaca mais, era Exu, o jurupari mais
macanudo daquela religião.

Depois que todos beijaram adoraram e se benzeram muito, foi a hora dos pedidos
e promessas. Um carniceiro pediu pra todos comprarem a carne doente dele e
Exu consentiu. Um fazendeiro pediu pra não ter mais saúva nem
maleita no sítio dele e Exu se riu falando que isso não consentia
não. Um namorista pediu pra pequena dele conseguir o lugar de professora
municipal pra casarem e Exu consentiu. Um médico fez um discurso pedindo
pra escrever com muita elegância a fala portuguesa e Exu não
consentiu. Assim. Afinal veio a vez de Macunaíma o filho novo do fute.
E Macunaíma falou: — Venho pedir pra meu pai por causa que estou
muito contrariado.

— Como se chama? perguntou Exu.

— Macunaíma, o herói.

— Uhum… o maioral resmungou, nome principiado por Ma tem má-sina…

Mas recebeu com carinho o herói e prometeu tudo o que ele pedisse
porque Macunaíma era filho. E o herói pediu que Exu fizesse
sofrer Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de
gente.

Então foi horroroso o que se passou. Exu pegou três pauzinhos
de erva-cidreira benta por padre apóstata, jogou pro alto, fez encruzilhada,
mandando o eu de Venceslau Pietro Pietra vir dentro dele Exu pra apanhar.
Esperou um momento, o eu do gigante veio, entrou dentro da fêmea, e
Exu mandou o filho dar a sova no eu que estava encarnado no corpo polaco.
O herói pegou uma tranca e chegou-a em Exu com vontade. Deu que mais
deu. Exu gritava: — Me espanca devagar Que isto dói dói
dói! Também tenho família E isto dói dói
dói!

Enfim roxo de pancada sangrando pelo nariz pela boca pelos ouvidos caiu desmaiando
no chão. E era horroroso… Macunaíma ordenou que o eu do gigante
fosse tomar um banho salgado e fervendo e o corpo de Exu fumegou molhando
o terreno. E Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse pisando vidro
através dum mato de urtiga e agarra-compadre até as grunhas
da serra dos Andes pleno inverno e o corpo de Exu sangrou com lapos de vidro,
unhadas de espinho e queimaduras de urtiga, ofegando de fadiga e tremendo
de tanto frio. Era horroroso. E Macunaíma ordenou que o eu de Venceslau
Pietro Pietra recebesse o guampaço dum marruá, o coice dum bagual,
a dentada dum jacaré e os ferrões de quarenta vezes quarenta
mil formigas-de-fogo e o corpo de Exu retorceu sangrando empolando na terra,
com uma carreira de dentes numa perna, com quarenta vezes quarenta mil ferroadas
de formiga na pele já invisível, com a testa quebrada pelo casco
dum bagual e um furo de aspa aguda na barriga. A saleta se encheu dum cheiro
intolerável. E Exu gemia:

— Me chifra devagar Que isto dói dói dói! Também
tenho família E isto dói dói dói!

Macunaíma ordenou muito tempo muitas coisas assim e tudo o eu de Venceslau
Pietro Pietra agüentou pelo corpo de Exu. Afinal a vingança do
herói não pôde inventar mais nada, parou. A fêmea
só respirava levinho largada no chão de terra. Teve um silêncio
fatigado. E era horroroso.

Lá no palácio da rua Maranhão em São Paulo tinha
um correcorre sem parada. Vinham médicos veio a Assistência todos
estavam desesperados. Venceslau Pietro Pietra sangrava todo urrando. Mostrava
uma chifrada na barriga, quebrou a testa que parecia coice de potro, queimado
enregelado mordido e todo cheio das manchas e galos duma tremendérrima
sova de pau.

Na macumba continuava o silêncio de horror. Tia Ciata veio maneira
e principiou rezando a reza maior do diabo. Era a reza sacrílega entre
todas, que se errando uma palavra dá morte, a reza do Padre Nosso Exu,
e era assim: — Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno
inferno da esquerda de baixo, nóis te queremo muito, nóis tudo!
— Quereremos! quereremos! — … O pai nosso Exu de cada dia nos
dai hoje, seja feita vossa vontade assim também no terreiro da sanzala
que pertence pro nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!…

Glória pra pátria gêge de Exu! — Glória
pro fio de Exu! Macunaíma agradeceu. A tia acabou: — Chico-t-era
um príncipe gege que virou nosso padre Exu dos século seculóro
pra sempre que assim seja, amém.

— Pra sempre que assim seja, amém! Exu ia sarando sarando,
tudo foi desaparecendo por encanto quando a caninha circulou e o corpo da
polaca virou são outra vez. Se escutou uma bulha tamanha e tomou o
espaço um cheiro de breu queimado enquanto a fêmea deitava pela
boca um anel de azeviche. Então voltou do desmaio vermelha gorda só
que mui fatigada e agora estava só a polaca ali, Exu tinha ido embora.

E pra acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando
um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas
liberdosas. Então tudo acabou se fazendo a vida real. E os macumbeiros,
Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars,
Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros
saíram na madrugada.

VIII – Vei, A Sol

Macunaíma ia seguindo e topou com a árvore Volomã bem
alta. Num galho estava um pitiguari que nem bem enxergou o herói, se
desgoelou cantando — “Olha no caminho quem vem! Olha no caminho
quem vem!” Macunaíma olhou pra cima com intenção
de agradecer mas Volomã estava cheinha de fruta. O he

rói vinha dando horas de tanta fome e a barriga dele empacou espiando
aquelas sapotas sapotilhas sapotis bacuris abricôs mucajás miritis
guabijus melancias ariticuns, todas essas frutas.

— Volomã, me dá uma fruta, Macunaíma pediu. O
pau não quis dar. Então o herói gritou duas vezes: —
Boiôiô, boiôiô! quizama quizu! Caíram todas
as frutas e ele comeu bem. Volomã ficou com ódio. Pegou o herói
pelos pés e atirou-o pra além da baía de Guanabara numa
ilhota deserta, ha bitada antigamente pela ninfa Alamoa que veio com os Holandeses.
Macunaíma pendia tanto de fadiga que pe gou no sono durante o pulo.
Caiu dormindo em baixo duma palmeirinha guairô muito aromada onde um
uru bu estava encarapitado.

Ora o pássaro careceu de fazer necessidades, fez e o herói
ficou escorrendo sujeira de urubu. Já era de madrugadinha e o. tempo
estava inteiramente frio. Ma cunaíma acordou tremendo, todo enlambuzado.
Assim mesmo examinou bem a pedra mirim da ilhota pra ver si não havia
alguma cova com dinheiro enterrado. Não havia não. Nem a correntinha
encantada de prata que indica pro escolhido, tesouro de Holandês. Havia
só as formigas jaquitaguas ruivinhas.

Então passou Caiuanogue, a estrêla-da-manhã. Macunaíma
já meio enjoado de tanto viver pediu pra ela que o carregasse pro céu.
Caiuanogue foi se che gando porém o herói fedia muito.

— Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora. Assim nasceu a
expressão “Vá tomar banho!” que os Brasileiros empregam
se referindo a certos imigran tes europeus.

Vinha passando Capei, a Lua. Macunaíma gritou pra ela: — Sua
bênção, dindinha Lua! — Uhum… que ela secundou.

Então ele pediu pra Lua que o carregasse pra ilha de Marajó.
Capei veio chegando porém Macunaíma estava mesmo fedendo por
demais.

— Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora. E a expressão
se fixou definitivamente. Macunaíma gritou pra Capei que pelo menos
desse um foguinho pra ele aquecer.

— Peça no vizinho! ela fez apontando pra Sol que já
vinha lá no longe remando pelo paraná guaçu. E foi-se
embora.

Macunaíma tremia que mais tremia e o urubu sem pre fazendo necessidade
em riba dele. Era por causa da pedra ser muito pequetitinha. Vei vinha chegando
vermelha e toda molhada de suor. E Vei era a Sol. Foi muito bom pra Macunaíma
porque lá em casa ele sem pre dera presentinhos de bô-lo-de-aipim
pra Sol lamber secando.

Vei tomou Macunaíma na jangada que tinha uma vela cor-de-ferrugem
pintada com muruci e fez as três filhas limparem o herói, catarem
os carrapatos e exa minarem si as unhas dele estavam limpas. E Macunaí
ma ficou alinhado outra vez. Porém por causa dela es tar velha vermelha
e tão suando o herói não malíciava que a coroca
era mesmo a Sol, a boa da Sol poncho dos probres. Por isso pediu pra ela que
chamasse Vei com seu calor porque ele estava lavadinho bem mas tre mendo de
tanto frio. Vei era a Sol mesmo e andava matinando fazer Macunaíma
genro dela. Só que ainda não podia aquentar ninguém não,
porque era cedo por demais, não tinha força. Pra distrair a
espera assobiou dum jeito e as três filhas dela fizeram muitos cafunés
e cosquinhas no corpo todo do herói.

Ele dava risadas chatas, se espremendo de cóce gas e gostando muito.
Quando elas paravam pedia mais estorcendo já de antegozo. Vei pôs
reparo na senvergonhice do herói, teve raiva. Foi ficando sem vontade
de tirar fogo do corpo e esquentar ninguém. Então as cunhatãs
agarraram na mãe, amarraram bem ela e Macunaíma dando muitos
munhecaços na barriga da bruaca saiu que saiu um fogaréu por
detrás e todos se aquentaram.

Principiou um calorão que tomou a jangada, se alastrou nas águas
e dourou a face limpa do ar. Ma cunaíma deitado na jangada lagarteava
numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo…

— Ai… que preguiça…

O herói suspirou. Se ouvia o murmurejo da onda, só. Veio um
enfaro feliz subindo pelo corpo de Ma cunaíma, era bom… A cunhatã
mais moça batia o urucungo que a mãe trouxera da África.
Era vasto o paraná e não tinha uma nuvem na gupiara elevada
do céu. Macunaíma cruzou as munhecas no alto por de trás
fazendo um cabeceiro com as mãos e enquanto a filha-da-luz mais velha
afastava os mosquitos borrachudos em quantidade, a terceira chinoca com as
pontas das trancas fazia estremecer de gosto a barriga do he rói. E
era se rindo em plena felicidade, parando pra gozar de estrofe em estrofe
que ele cantava assim: Quando eu morrer não me chores, Deixo a vida
sem sodade; — Mandu sarará,

Tive pro pai o desterro, Por mãe a infelicidade, — Mandu sarará,

Papai chegou e me disse: — Não hás de ter um amor! —
Mandu sarará,

Mamãe veio e me botou Um colar feito de dor, — Mandu sarará,

Que o tatu prepare a cova Dos seus dentes desdentados, — Mandu sarará,

Para o mais desinfeliz De todos os desgraçados, — Mandu sarará…

Era bom… O corpo dele relumeava de ouro cinzando nos cristaizinhos do sal
e por causa do cheiro da maresia, por causa do remo pachorrento de Vei, e
com a barriga assim mexemexendo com cosquinhas de mu

lher, ah!… Macunaíma gozou do nosso gozo, ah!… “Puxavante! que
filha-duma?… de gostosura, gente!” exclamou. E cerrando os olhos malandros,
com a boca rindo num riso moleque safado de vida boa o herói gostou gostou
e adormeceu.

Quando a jacumã de Vei não embalou mais o sono dele Macunaíma
acordou. Lá no longe se perce bia mais que tudo um arranhacéu
cor-de-rosa. A jan gada estava abicada na caiçara da maloca sublime
do Rio de Janeiro.

Ali mesmo na beira d’água tinha um cerradão comprido cheinho
da árvore pau-brasil e com palácios de cor nos dois lados. E
o cerradão era a avenida Rio Branco. Aí que mora Vei a Sol com
suas três filhas de luz. Vei queria que Macunaíma ficasse genro
dela por que afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto
bôlo-de-aipim pra ela chupar secando, falou: — Meu genro: você
carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é
Oropa França e Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e
não andar assim brincando com as outras cunhas por aí.

Macunaíma agradeceu e prometeu que sim juran do pela memória
da mãe dele. Então Vei saiu com as três filhas pra fazer
o dia no cerradão, ordenando mais uma vez que Macunaíma não
saísse da jangada pra não andar brincando com as outras cunhas
por aí. Macunaí ma tornou a prometer, jurando outra vez pela
mãe.

Nem bem Vei com as três filhas entraram no cer radão que Macunaíma
ficou cheio de vontade de ir brincar com uma cunha. Acendeu um cigarro e a
von tade foi subindo. Lá por debaixo das árvores passavam muitas
cunhas cunhe cunhe se mexemexendo com ta lento e formosura.

— Pois que fogo devore tudo! Macunaíma excla mou. Não
sou frouxo agora pra mulher me fazer mal! E uma luz vasta brilhou no cérebro
dele. Se er gueu na jangada e com os braços oscilando por cima da pátria
decretou solene: — POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES
DO BRASIL SÃO! Pulou da jangada no sufragante, foi fazer conti nência
diante da imagem de Santo Antônio que era ca pitão de regimento
e depois deu em cima de todas as cunhas por aí. Logo topou com uma
que fora varina lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e
inda cheirava no-mais! um fartum bem de peixe. Macunaí ma piscou pra
ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram.
Agora estão se rindo um pro outro.

Quando Vei com suas três filhas chegaram do dia e era a bôca-da-noite
as moças que vinham na frente encontraram Macunaíma e a Portuguesa
brincando mais. Então as três filhas de luz se zangaram: —
Então é assim que se faz, herói! Pois nossa mãe
Vei não falou pra você não sair da jangada e não
ir brincar com as outras cunhas por aí?! — Estava muito tristinho!
o herói fez.

— Não tem que tristinho nem mane tristinho, he rói!
Agora que você vai tomar um pito de nossa mãe Vei! E viraram
muito zangadas pra velha: — Veja, nossa mãe Vei, o que vosso
genro fez! Nem bem a gente foi no cerradão que ele escapuliu, deu em
cima duma boa, trouxe ela na vossa jangada e brin caram até mais não!
Agora estão se rindo um pro outro! Então a Sol se queimou e
ralhou assim: Ara ara, ara, meus cuidados! Pois não falei pra você
não dar em cima de nenhuma cunha não!… Fa lei sim! E inda
por cima você brinca com ela na jan gada minha e agora estão
se rindo um pro outro! — Estava muito tristinho! Macunaíma repetiu.

— Pois si você tivesse me obedecido casava com uma das minhas
filhas e havia de ser sempre moço e bonitão. Agora você
fica pouco tempo moço talqualmente os outros homens e depois vai ficando
mocetudo e sem graça nenhuma.

Macunaíma sentiu vontade de chorar. Suspirou.

— Si eu subesse…

— O “si eu subesse” é santo que nunca não
valeu pra ninguém, meus cuidados! Você o que é mas é
mui to safadinho, isso sim! Não te dou mais nenhuma das minhas filhas
não! Daí Macunaíma pisou nos calos também: —
Pois nem eu queria nenhuma das três, sabe! Três, diabo fez! Então
Vei com as três filhas foram pedir pouso num hotel e deixaram Macunaíma
dormir com a Portuga jangada.

Quando foi ali pela hora antes da madrugada, veio a Sol com as moças
pra darem o passeio na baía e en contraram Macunaíma com a Portuguesa
inda pegados no sono. Vei acordou os dois e fez presente da pedra Vató
pra Macunaíma. E a pedra Vató dá fogo quando a gente
quer. E lá se foi a Sol com as três filhas de luz.

Macunaíma inda passou esse dia brincando com a varina pela cidade.
Quando foi de-noite eles estavam dormindo num banco do Flamengo quando chegou
uma assombração medonha. Era Mianiquê-Teibê que
vinha pra enguilir o herói. Respirava com os dedos, escutava pelo umbigo
e tinha os olhos no lugar das mamicas. A boca era duas bocas e estavam escondidas
na dobra interior dos dedos dos pés. Macunaíma acordou com o
cheiro da assombração e jogou no viado Flamengo fora. Então
Mianiquê-Teibê comeu a varina e se foi.

No outro dia Macunaíma não achou mais graça na capital
da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e
voltou pra taba do igarapé Tietê.

IX – Carta Pras Icamiabas

Às mui queridas súbditas nossas, Senhoras Ama

zonas.

Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo.

Senhoras: Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço
e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas
de saudades e muito amor, com de sagradável nova. É bem verdade
que na boa cidade de São Paulo — a maior do universo, no dizer
de seus pro lixos habitantes — não sois conhecidas por “icamiabas”,
voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós,
se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade
clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator
vosso, tais dislates da erudição porém heis de convir
conosco que, assim, ficais mais heróicas e mais conspícuas,
tocadas por essa platina respeitável da tradição e da
pureza antiga.

Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos
conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos
pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá.

Nem cinco sóis eram passados que de vós nos par tíramos,
quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite
dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que
ou trem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias
esdrú xulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraquéitã,
não sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão
familiar às vossas trompas de Eustáquio, é quase desconhecido
por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias,
grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, masorqueiros, etc; sendo
que alguns desses termos são neologismos absurdos — ba gaço
nefando com que os desleixados e petimetres cons purcam o bom falar lusitano.
Mas não nos sobra já va gar para discretearmos “sub tegmine
fagi”, sobre a lín gua portuguesa, também chamada lusitana.
O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes
que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para
o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente
trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o
vulgo chamará dinheiro — o “curriculum vitae” da Civilização,
a que hoje fazemos ponto de hon ra em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã,
que fere já os ouvidos latinos do vosso Imperador, é desco nhecida
dos guerreiros, e de todos em geral que por estas partes respiram. Apenas
alguns “sujeitos de im portância em virtude e letras”, como
já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Sousa,
citado pelo dou tor Rui Barbosa, ainda sobre as muiraquitãs projetam
as suas luzes, para aquilatá-las de medíocre valia, ori ginárias
da Ásia, e não de vossos dedos, violentos no polir.

Estávamos ainda abatido por termos perdido a nos sa muiraquitã,
em forma de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico,
ou, qui lo sá, provocado por algum libido saudoso, como explica o sábio
tudesco, doutor Sigmundo Freud (lede Fróide), se nos depa rou em sonho
um arcanjo maravilhoso. Por ele sou bemos que o talismã perdido estava
nas diletas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito
do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcântis
de Pernambuco. E como o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem
demora nos partimos para cá, em busca do velocino roubado.

As nossas relações actuais com o doutor Venceslau são
as mais lisonjeiras possíveis; e sem dúvida mui para breve recebereis
a grata nova de que hemos reavido o talismã: e por ela vos pediremos
alvíçaras.

Porque, súbditas dilectas, é incontestável que Nós,
Imperator vosso, nos achamos em precária condição. O
tesouro que daí trouxemos, foi-nos de mister conver tê-lo na
moeda corrente do país; e tal conversão muito nos há
dificultado o mantenimento, devido às oscilações do Câmbio
e à baixa do cacau.

Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas,
nem brincam por brincar, gratuitamente’, senão que a chuvas do vil
metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis,
a que, vul garmente, dão o nome de lagostas. E quê monstros en
cantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça poli da e sobrosada, feita
a modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda remígeros,
de muitos feitios; de modo que o pesado engenho, deposto num prato de porcelana
de Sêvres, se nos antoja qual velejante trirreme a bordeisjar água
de Nilo, trazendo no bojo o corpo inestimável de Cleópatra.

Ponde tento na acentuação deste vocábulo, senho ras
Amazonas, pois muito nos pesara não preferísseis conosco, essa
pronúncia, condizente com a lição dos clássicos,
à pronúncia Cleópatra, dicção mais moderna;
e que alguns vocabulistas levianamente subscrevem, sem que se apercebam de
que é ganga desprezível, que nos trazem, com o enxurro de França,
os galiparlas de má morte.

Pois é com esse dedicado monstro, vencedor dos mais delicados véus
paladinos, que as donas de cá tom bam nos leitos nupciais. Assim haveis
de compreender de que alvíçaras falamos; porque as lagostas
são carís simas, caríssimas súbditas, e algumas
hemos nós adquiridas por sessenta contos e mais; o que, convertido
em nossa moeda tradicional, alcança a vultosa soma de oitenta milhões
de bagos de cacau… Bem podereis conceber, pois, quanto hemos já gasto;
e que já estamos carecido do vil metal, para brincar com tais difíceis
do nas. Bem quiséramos impormos à nossa ardida chama uma abstinência,
penosa embora, para vos pouparmos despesas; porém que ânimo forte
não cedera ante os encantos e galanteios de tão agradáveis
pastoras! Andam elas vestidas de rutilantes jóias e panos fi níssimos,
que lhes acentuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que,
a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre
alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades de monstram,
no brincar, que enumerá-las, aqui seria fàstiendo porventura;
e, certamente, quebraria os manda mentos de discreção, que em
relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades!
Que elegância! Que cachet! Que degagé flamífero, ignívomo,
devorador!! Só pensamos nelas, muito embora não nos descuidemos,
relapso, da nossa muiraquitã.

Nós, nos parece ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em
aprenderdes com elas, as condescendências, os brincos e passes do Amor.
Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por
mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem,
e se demonstra gloriosa, “urbi et orbe”, a subtil força do
Odor di Femina, como escrevem os italianos.

E já que nos detivemos neste delicado assunto, não no abandonaremos
sem mais alguns reparos, que vos poderão ser úteis. As donas
de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não
se contentam com os dons e excelência que a Natura lhes concedeu; assaz
se preo cupam elas de si mesmas; e não puderam acabarem consigo, que
não mandassem vir de todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado
e gentil acrisolou a ciência fescenina, digo, feminina das civilizações
avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de
França, e com elas aprenderam a pas sarem o tempo de maneira bem diversa
da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam
os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem coisa alguma;
e nesses trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que,
em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se entregam
nos braços de Orfeu, como se diz. Mas heis de saber, senhoras minhas,
que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário
belígero; o dia começa quando para vós é o pino
dele, e a noute, quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro,
é o mais reparador.

Tudo isso as donas paulistanas aprenderam com as mestras de França;
e mais o polimento das unhas e cres cimento delas, bem como aliás “horjesco
referens”, das demais partes córneas dos seus companheiros legais.
Deixai passe esta flórida ironia! E muito há que vos diga ainda
sobre o jeito com que cortam as comas, de tal maneira gracioso e viril, que
mais se assemelham elas a efebos e Antinous, de perversa memória, que
a matronas de tão directa progênie latina. Todavia, convireis
conosco, no desacerto de longas trancas por cá, si atenderdes ao que
mais atrás ficou dito; pois que os doutores de São Paulo não
derribam as suas requestadas pela força, senão que a troco de
oiro e de iocustas, as ditas comas são de somenos, acrescendo ainda
que assim se amainam os ma les, que tais comas acarretam, de serem moradia
e pas to habitual de insectos mui daninho como entre vós se dá.

Pois não contentes de terem aprendido de França, as subtilezas
e passes da galanteria à Luís XV, as do nas paulistanas importam
das regiões mais inóspitas c que lhes acrescente ao sabor, tais
como pezinhos nipônicos, rubis da Índia, desenvolturas norteamericanas;
e muitas outras sabedorias e tesoiros internacionais.

Já agora vos falaremos ainda, bem que por alto, dum nitente armento
de senhoras, originárias da Polô nia, que aqui demoram e imperam
generosamente. São elas mui alentadas no porte e mais numerosas que
as areias do mar oceano. Como vós, senhoras Amazonas, tais damas formam
um gineceu; estando os homens que em suas casas delas habitam, reduzidos escravos
e con denados ao vil ofício de servirem. E por isso não se lhes
chamam homens, sinão que à voz espúria de garçons
respondem; e são assaz polidos e silentes, e sempre do mesmo indumento
gravebundo trajam.

Vivem essas damas encasteladas num mesmo lo cal, a que chamam por cá
de quarteirão, e mesmo de pensões ou “zona estragada”;
sobrelevando notar que a derradeira destas expressões não caberia,
por indina nesta notícia sobre as coisas de São Paulo, não
fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém si, como vós,
formam essas queridas senhoras um clã de mulheres, muito de vós
se apartam do físico, no gênero de vida e nas ideais. Assim vos
diremas que vivem à noute, e se não dão aos afazeres
de Marte nem quei mam o destro seio, mas a Mercúrio cortejam tão
so mente; e quanto aos seios, deixam-nos envolverem, à feição
de gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam
ao donaire, servem para numerosos e ár duos trabalhos de excelente
virtude e prodigiosa excitação.

Ainda lhes difere o físico, tanto ou quanto mons truoso, bem que
de amável monstruosidade, por terem elas o cérebro nas partes
pudendas, e como tão bem se diz em linguagem madrigalesca, o coração
nas mãos. Falam numerosas e mui rápidas línguas; são
via jadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por igual, embora.ricamente
díspares entre si, quais loiras, quais morenas, quais fôsse-maigres,
quais rotundas; e de tal sorte abundantes no número e diversidade,
que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, ori ginais
dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhes dão o excitante,
embora injusto, epíteto de “fran cesas”. A nossa desconfiança
é que essas damas não se originaram todas da Polônia,
porém que faltam à ver dade, e são iberas, itálicas,
germânicas, turcas, argenti nas, peruanas, e de todas as outras partes
férteis de um e outro hemisfério.

Muito estimaríamos que compartilhásseis da nossa desconfiança,
senhoras Amazonas; e que convidásseis também algumas dessas
damas para demorarem nas vossas terras e Império nosso, por que aprendais
com elas um moderno e mais rendoso gênero de vida, que muito fará
avultar os tesoiros do vosso Imperador. E mesmo, si não quiserdes largar
mão da vossa solitária Lei, sempre a existência de algumas
centenas dessas da mas entre vós, muito nos facilitará o “modus
in rebus”, quando for no nosso retorno ao Império do Mato Vir
gem, cujo este nome, aliás, proporíamos se mudasse para Império
da Mata Virgem, mais condizente com a lição dos clássicos.

Todavia para terminar negócio tão principal, hemos por bem
advertir-vos dum perigo que essa impor tação acarretara, si
não aceitásseis alguns doutores pos santes nos limites do Estado,
enquanto dele estivermos apartado. Com serem essas damas mui fogosas e livres;
bem pudera pesar-lhes em demasia o seqüestro incon seqüente em que
viveis, e, por não perderem elas as ciências e segredos que lhes
dão o pão, bem poderiam ir ao extremo de utilizarem-se das bestas
feras, dos bogios, dos tapires e dos solertes candirus. E muito mais ainda
nos pesaria à consciência e sentimento nobre do dever; que vós,
súbditas nossas, aprendásseis com elas certas abusões,
tal como foi com as companheiras da gentil declamadora Safo na ilha rósea
de Lesbos — vícios esses que não suportam crítica
à luz das possi bilidades humanas, e muito menos o escalpelo da rígida
e sã moral.

Como vedes, assaz hemos aproveitada esta demora na ilustre terra bandeirante,
e si não descuidamos do nosso talismã, por certo que não
poupamos esforços nem vil metal, por aprendermos as coisas mais principais
desta eviterna civilização latina, por que iniciemos quando
for do nosso retorno ao Mato Virgem, uma sé rie de milhoramentos, que,
muito nos facilitarão a exis tência, e mais espalhem nossa prosápia
de nação culta entre as mais cultas do Universo. E por isso
agora vos diremos algo sobre esta nobre cidade, pois que preten demos construir
uma igual nos vossos domínios e Im pério nosso.

É São Paulo construída sobre sete colinas, à
fei ção tradicional de Roma, a cidade cesárea, “capita”
da Latinidade de que provimos; e beija-lhes os pés a grácil
e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas,
os ares tão amenos quanto os de Aquisgrana ou de Anver-res, e a área
tão a eles igual em salubridade e abundân cia, que bem se pudera
afirmar, ao modo fino dos cro nistas, que de três AAA se gera espontaneamente
a fauna urbana.

Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada
de ruas habilmente estreitas e tomadas por es tátuas e lampiões
graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia
o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a
população. Assim se obtém o efeito dum grande acúmulo
de gentes, cuja estimativa pode ser aumentada à vontade, o que é
pro pício às eleições que são invenção
dos inimitáveis mi neiros; ao mesmo tempo que os edis dispõem
de largo assunto com que ganhem dias honrados e a admiração
de todos, com surtos de eloqüência do mais puro es tilo e sublimado
lavor.

As ditas artérias são todas recamadas de ricocheteantes papeizinhos
e velívolas cascas de fruitos; e em principal duma finíssima
poeira, e mui dançarina, em que se despargem diariamente mil e uma
espécimens de vorazes macróbios, que dizimam a população.
Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação;
pois que tais insectos devoram as mes quinhas vidas da ralé; e impedem
o acúmulo de deso cupados e operários; e assim se conservam
sempre as gentes em número igual. E não contentes com essa poeira
ser erguida pelo andar dos pedestrianistas e por urrantes máquinas
a que chamam “automóveis” e “eléctricos”,
(empregam alguns a palavra Bond, voz espúria, vinda certamente do inglês)
contrataram os diligentes edis, uns antropóides, monstros hipocentáureos
azulegos e monótonos, a que congloba o título de Limpeza Pública;
que “per amica silencia lunae”, quando cessa o movimento e o pó
descansa inócuo, saem das suas mansões, e, com os rabos girantes
a modo de vassouras cilíndricas, puxadas por muares, soerguem do asfalto
a poeira e tiram os insetos do sono, e os concitam à actividade com
largos gestos e grita formidanda. Estes afazeres nocturnos são discretamente
conduzidos por pequeninas luzes, dispostas de longe em longe, de ma neira
a permanecer quase total a escuridade, não per turbem elas os trabalhos
de malfeitores e ladrões.

A cópia destes se nos afigura realmente excessiva; e temos que são
a única usança que não se coaduna com nosso temperamento,
ordeiro e pacífico de seu na tural. Porém, longe de nós
qualquer reproche aos admi nistradores de São Paulo, pois sabemos muito
bem que aos valerosos Paulistas, são aprazíveis tais malfeitores
e suas artes. São os Paulistas gente ardida e avalentoada, e muito
afeita às agruras da guerra. Vivem em combates singulares e colectivos,
todos armados da ca beça aos pés; assim assaz numerosos são
os distúrbios por cá, em que, não raro, tombam na arena
da luta, centenas de milhares de heróis, chamados bandeirantes. – Pelo
mesmo motivo São Paulo, está dotada de mui aguerrida e vultosa
Polícia, que habita palácios bran cos de custosa engenharia.
A essa Polícia compete ain da equilibrar os excessos da riqueza pública,
por se não desvalorizar o oiro incontável da Nação;
e tal diligên cia emprega nesse afã, que, por todos os lados
devora os dinheiros nacionais, quer em paradas e roupagens luzidas, quer em
ginásticas da recomendável Eugênia, que inda não
tivemos o prazer de conhecermos; quer finalmente atacando os incautos burgueses
que regres sam do seu teatro, do seu cinema, ou “dão a sua volta
de automóvel pelos vergéis amenos que circundam a ca pital.
A essa Polícia ainda lhe compete divertir a classe das criadinhas paulistanas;
e para seu lustre se diga que o faz com jornaleiro préstimo, em parques,
cons truídos “ad hoc”, tais como o parque de Dom Pedro Se
gundo e o Jardim da Luz. E quando o numerário des sa Polícia
avulta, são os seus homens enviados para as rechãs longínquas
e menos férteis da pátria, para se rem devorados por súcias
de gigantes antropófagos, que infestam a nossa geografia, na inglória
tarefa de ruir por terra Governos honestos; e de pleno gosto e assentimento
geral da população, como se descrimina das urnas e dos ágapes
governamentais. Esses masorqueiros pegam nos polícias, assam-nos e
comem-nos ao jeito alemão; e as ossadas caídas na terra maninha
são exce lente adubo de futuros cafezais.

Assim tão bem organizados vivem e prosperam os Paulistas na mais
perfeita ordem e progresso; e lhes não é escasso o tempo para
construírem generosos hos pitais, atraindo para cá todos os
leprosos sulamericanos, Mineiros, Paraibanos, Peruanos, Bolivianos, Chilenos,
Paraguaios, que, antes de ir morarem nesses lindíssimos leprosários,
e serem servidos por donas de duvidosa e decadente beldade — sempre
donas! — animam as es tradas do Estado e as ruas da capital, em garridas
co mitivas eqüestres ou em maratonas soberbas que são o orgulho
de nossa raça desportiva, em cujo conspeito pul sa o sangue das heróicas
bigas e quadrigas latinas! Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra,
por este grandioso país, de doenças e insectos por cui dar!
… Tudo vai num descalabro sem comedimento, e estamos corroídos pelo
morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colônia
da Inglaterra ou da América do Norte!… Por isso e para eterna lem
brança destes Paulistas, que são a única gente útil
do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho
de metrificarmos um dístico, em que se en cerram os segredos de tanta
desgraça:

“POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO.”

Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de
Visitantes Ilustres do Instituto Butantã, quando foi da nossa visita
a esse estabelecimento famo

so na Europa.

Moram os Paulistanos em Palácios alterosos de cin qüenta, cem
e mais andares, a que, nas épocas da procreação, invadem
umas nuvens de mosquitos pernilongos, de vária espécie, muito
ao gosto dos nativos, mor dendo os homens e as senhoras com tanta propriedade
nos seus distintivos, que não precisam eles e elas das cáusticas
urtigas para as massagens da excitação, tal como entre os selvícolas
é de uso. Os pernilongos se encarregam dessa faina; e obram tais milagres
que, nos bairros miseráveis, surge anualmente uma incontável
multidão de rapazes e raparigas bulhentos, a que cha mamos ‘italianinhos”;
destinados a alimentarem as fá bricas dos áureos potentados,
e a servirem, escravos, o descanso aromático dos Cresos.

Estes e outros multimilionários é que ergueram em torno da
urbs as doze mil fábricas de seda, e no recesso dela os famosos Cafés
maiores do mundo, todos de obra de talha em jacarandá folhado de oiro,
com embutidos de salsas tartarugas.

E o Palácio do Governo é todo de oiro, à feição
dos da Rainha do Adriático; e, em carruagens de prata, for radas de
peles finíssimas, o Presidente, que mantém muitas esposas, passeia,
ao cair das tardes, sorrindo com vagar.

De outras c muitas grandezas vos poderíamos ilus trar, senhoras Amazonas,
não fora perlongar demasia do esta epístola; todavia, com afirmar-vos
que esta é, por sem dúvida, a mais bela cidade terráquea,
muito hemos feito em favor destes homens de prol. Mas cair-nos-iam as faces,
si ocultáramos no silêncio, uma curio sidade original deste povo.
Ora sabereis que a sua ri queza de expressão intelectual é tão
prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. Assim chegado
a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos
da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou,
por cer to não foi das menores tal originalidade lingüística.
Nas conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bár baro e multifário,
crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não
deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e também
nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e
nos será grata em presa vo-las ensinarmos aí chegado. Mas si
de tal des prezível língua se utilizam na conversação
os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade,
e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui
próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que,
com imperecível galhardia, se intitula: língua de Ca mões!
De tal originalidade e riqueza vos há-de ser grato ter ciência,
e mais ainda vos espantareis com saberdes, que à grande e quase total
maioria, nem essas duas lín guas bastam, senão que se enriquecem
do mais lídimo italiano, por mais musical e gracioso, e que por todos
os recantos da urbs é versado. De tudo nos inteiramos satisfatoriamente,
graças aos deuses; e muitas horas hemos ganho, discretando sobre o
z do termo Brazil e a questão do pronome “se”. Outrossim,
hemos adquiri do muitos livros bilíngües, chamados “burros”,
e o di cionário Pequeno Larousse; e já estamos em condições
de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos
e os testículos da Bíblia.

Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida
civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores,
também chamados de políticos. Com este apelativo se designa
uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos
de vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade
mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiência,
da honestidade e da moral; e embora algo com os ho mens se pareçam,
originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm de humanos.
Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar,
e que demora na oceânica cidade do Rio de Janeiro — a mais bela
do mundo, na opinião de todos os es trangeiros, e que por meus olhos
verifiquei.

Finalmente, senhoras Amazonas e muito amadas súbditas, assaz hemos
sofrido e curtido árduos e cons tantes pesares, depois que os deveres
da nossa posição, nos apartaram do Império do Mato Virgem.
Por cá tu do são delícias e venturas, porém nenhum
gozo tere mos e nenhum descanso, enquanto não rehouvermos o perdido
talismã. Hemos por bem repetir entretanto que as nossas relações
com o doutor Venceslau são as milhores possíveis; que as negociações
estão entaboladas e perfeitamente encaminhadas; e bem poderíeis
enviar de antemão as alvíçaras que enunciamos atrás.
Com pouco o vosso abstêmio Imperador se contenta; si não puderdes
enviar duzentas igaras cheias de bagos de ca cau, mandai, cem, ou menos cinqüenta!
Recebei a bênção do vosso Imperador e mais saúde
e fraternidade. Acatai com respeito e obediência estas mal traçadas
linhas; e, principalmente, não vos esque çais das alvíçaras
e das polonesas, de que muito hemos mister.

Ci guarde a Vossas Excias.

Macunaíma, Imperator.

X – Pauí-Pódole

Venceslau Pietro Pietra ficara muito doente com a sova e estava todo envolvido
em rama de algodão. Passou meses na rede. Macunaíma não
podia nem dar passo pra conseguir a muiraquitã agora guardada den tro
do caramujo por debaixo do corpo do gigante. Ima ginou botar formiga cupim
no chinelo do outro porque isso traz morte, dizem, porém Piaimã
tinha pé pra trás e não usava chinelo. Macunaíma
estava muito contra riado com aquele chove-não-molha e passava o dia
na rede mastigando beiju membeca entre codórios longos de restilo.
Nesse tempo veio pedir pousada na pensão o índio Antônio,
santo famoso com a companheira dele, Mãe de Deus. Foi visitar Macunaíma,
fez discurso e ba

tizou o herói diante do deus que havia de vir e tinha forma nem bem de
peixe nem bem de anta. Foi assim que Macunaíma entrou pra religião
Caraimonhaga que estava fazendo furor no sertão da Bahia.

Macunaíma aproveitava a espera se aperfeiçoando nas duas línguas
da terra, o brasileiro falado e o por tuguês escrito. Já sabia
nome de tudo. Uma feita era dia da Flor, festa inventada prós Brasileiros
serem ca ridosos e tinha tantos mosquitos carapanãs que Ma cunaíma
largou do estudo e foi na cidade refrescar as idéias. Foi e viu um
despropósito de coisas. Parava em cada vitrina e examinava dentro dela
aquela porção de monstros, tantos que até parecia a serra
do Ererê onde tudo se refugiou quando a enchente grande inundou o mundo.
Macunaíma passeava passeava e encontrou uma cunhatã com uma
urupema carregadinha de ro sas. A mocica fez ele parar e botou uma flor na
lapela dele, falando: — Custa milréis.

Macunaíma ficou muito contrariado porque não sabia como era
o nome daquele buraco da máquina roupa onde a cunhatã enfiara
a flor. E o buraco chama va botoeira. Imaginou escarafunchando na memória
bem, mas nunca não ouvira mesmo o nome daquele buraco. Quis chamar
aquilo de buraco porém viu logo que confundia com os outros buracos
deste mundo e ficou com vergonha da cunhatã. “Orifício”
era palavra que a gente escrevia mas porém nunca ninguém não
falava “orifício” não. Depois de pensamentear pensamentear
não havia meios mesmo de descobrir o nome daquilo e pôs reparo
que da rua Direita onde topara com a cunhatã já tinha ido parar
adiante de São Ber nardo, passada a moradia de mestre Cosme. Então
vol tou, pagou pra moça e falou de venta-inchada: — A senhora
me arrumou com um dia-de-judeu! Nunca mais me bote flor neste… neste puíto,
dona! Macunaíma era desbocado duma vez. Falara uma bocagem muito porca,
muito! A cunhatã não sabia que puíto era palavra-feia
não e enquanto o herói voltava aluado com o caso pra pensão,
ficou se rindo, achando graça na palavra. “Puíto…”
que ela dizia. E repetia gozado: “Puíto… Puíto”…
Imaginou que era moda. Então se pôs falando pra toda a gente
si queriam que ela botasse uma rosa no puíto deles. Uns quiseram ou
tros não quiseram, as outras cunhatãs escutaram a pa lavra,
a empregaram e “puíto” pegou. Ninguém mais não
falava em boutonnière por exemplo; só puíto, puíto
se escutava.

Macunaíma ficou de azeite uma semana, sem co mer sem brincar sem
dormir só porque desejava saber as línguas da terra. Lembrava
de perguntar prós ou tros como era o nome daquele buraco mais tinha
ver gonha de irem pensar que ele era ignorante e moita. • Afinal chegou
o domingo pé-de-cachimbo que era dia do Cruzeiro, feriado novo inventado
prós Brasileiros descansarem mais. De manhã teve parada na Mooca,
ao meio-dia missa campal no Coração de Jesus, às dezes
sete corso e batalha de confetes na avenida Rangel Pes tana e de-noite, depois
da passeata dos deputados e desocupados pela rua Quinze, ia queimar um fogo-de-artifício
no Ipiranga. Então pra espairecer Macunaí ma foi no parque ver
os fogos.

Nem bem saiu da pensão topou com uma cunha clara, louríssima,
filhinha-da-mandioca bem, toda de branco e o chapéu de tucumã
vermelho coberto de margaridinhas. Chamava Fráulein e sempre carecia
de pro teção. Foram juntos e chegaram lá. O parque estava
uma boniteza. Tinha tantas máquinas repuxos mistu radas com a máquina
luz elétrica que a gente se en costava um no outro no escuro e as mãos
se agarra vam pra agüentar a admiração. Assim a dona fez
e Macunaíma sussurrou docemente: — Mani… filhinha da mandioca!…

Pois então a alemãzinha chorando comovida, se vi rou e perguntou
pra ele si deixava ela afincar aquela margarida no puíto dele. Primeiro
o herói ficou muito assarapantado, muito! e quis zangar porém
depois li gou os fatos e percebeu que fora muito inteligente. Ma cunaíma
deu uma grande gargalhada.

Mas o caso é que “puíto” já entrara pras
revistas estudando com muita ciência os idiomas escrito e falado e já
estava mais que assente que pelas leis de catalepse elipse síncope
mentonímia metafonia metátese próclise prótese
aférese apócope haplologia etimologia popular todas essas leis,
a palavra “botoeira” viera a dar em “puíto”, por
meio duma palavra intermediária, a voz latina “rabanitius”
(botoeira-rabanitius-puíto), sendo que rabanitius embora não
encontrada nos documentos medievais, afirmaram os doutos que na certa existira
e fora corrente no sermo vulgaris.

Nesse momento um mulato da maior mulataria tre pou numa estátua e
principiou um discurso entusias mado explicando pra Macunaíma o que
era o dia do Cruzeiro. No céu escampado da noite não tinha uma
nuvem nem Capei. A gente enxergava os conhecidos, os pais-das-árvores
os pais-das-aves os pais-das-caças e o parentes manos pais mães
tias cunhadas cunhas cunhatãs, todas essas estrelas piscapiscando bem
felizes nessa terra sem mal, adonde havia muita saúde e pouca saúva,
o firmamento lá. Macunaíma escutava muito agradecido, concordando
com a fala comprida que o discursador fazia pra ele. Só depois do homem
apontar muito e descrever muito é que Macunaíma pôs reparo
que o tal de Cruzeiro era mas eram aquelas quatro es trelas que ele sabia
muito bem serem o Pai de Mutum morando no campo do céu. Teve raiva
da mentira do mulato e berrou: — Não é não! —
… Meus senhores, que o outro discursava aquelas quatro estrelas rutilantes
como lágrimas arden tes, no dizer do sublime poeta, são o sacrossanto
e tra dicional Cruzeiro que…

— Não é não! — Psiu! — … o símbolo
mais…

— Não é não! — Apoiados! — Fora!
— Psiu!… Psiu!…

— … mais su-sublime e maravilhoso da nossa amarmada pátria
é aquele misterioso Cruzeiro lucilante que…

— Não é não! — … ve-vedes com…

— Nan sculhàmba! — … suas… qua… tro claras lantejoulas
de prat…

— Não é não! — Não é não!
que outros gritavam também. Com tanta bulha afinal o mulato entrupigaitou
e todos os presentes animados pelo “Não é não!”
do he rói estavam com muita vontade de fazer um chinfrim. Porém
Macunaíma tremia tão tiririca que nem perce beu. Pulou em riba
da estátua e principiou contando a história do Pai do Mutum.
E era assim: — Não é não! Meus senhores e minhas
senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do Mutum! juro
que é o Pai do Mutum, minha gente, que pára no campo vasto do
céu!… Isso foi no tempo em que os animais já não eram
mais homens e sucedeu no grande mato Fulano. Era uma vez dois cunhados que
moravam mui to longe um do outro. Um chamava Camã-Pabinque e era catimbozeiro.
Uma feita o cunhado de Camã-Pabin que entrou no mato por amor de caçar
um bocado. Es tava fazendo e topou com Pauí-Pódole e seu compadre
o vaga-lume Camaiuá. E Pauí-Pódole era o Pai do Mu tum.
Estava trepado no galho alto da acapu, descan sando. Vai, o cunhado do feiticeiro
voltou pra maloca e falou pra companheira dele que tinha topado com Pauí-Pódole
e seu compadre Camaiuá. E o Pai do Mutum com seu compadre num tempo
muito de dantes já foram gente que nem nós. O homem falou mais
que bem que tinha querido matar Pauí-Pódole com a sarabatana
porém não alcançara o poleiro alto do Pai do Mutum na
acapu. E então pegou na frecha de pracuuba com ponta de taboca e foi
pescar carataís. Logo Camã-Pabinque chegou na maloca do cunhado
e falou: — Mana, o que foi que vosso companheiro falou pra você?
Então a mana contou tudo pro feiticeiro e que Pauí-Pódole
estava empoleirado na acapu com seu com padre o vaga-lume Camaiuá.
No outro dia manhãzinha Camã-Pabinque saiu do papiri dele e
achou Pauí-Pódole piando na acapu. Então o catimbozeiro
virou na tocandeira Ilague e foi subindo pelo pau mas o Pai do Mutum enxergou
a formigona e soprou um pio forte. Bateu um ventarão tamanho que o
feiticeiro despencou do pau, caindo nas capituvas da serrapilheira. Então
virou na tacuri Opalá menorzinha e foi subindo outra vez, porém
Pauí-Pódole tornou a enxergar a formiga. Soprou e veio um ventinho
brisando que sacudiu Opalá nas trapoerabas da serrapilheira. Então
Camã-Pabin que virou na lavapés chamada Megue, pequetitinha,
su biu na acapu, ferrou o Pai do Mutum bem no furinho do nariz, enrolou o
corpico e trazendo o não-se-diz entre os ferrões, juque! esguichou
ácido-fórmico aí. Chi! mi nha gente! Isso Pauí-Pódole
abriu um vôo esparra mado com a dor e espirrou Megue longe! O feiticeiro
nem não pôde sair mais do corpo de Megue, do susto que pegou.
E ficou mais essa praga da formiguinha la vapés pra nós… Gente!.

“Pouca saúde e muita saúva, Os males do Brasil são!”

já falei… No outro dia Pauí-Pódole quis ir morar no
céu pra não padecer mais com as formigas da nossa terra, fez.
Pediu, pro compadre vaga-lume alumiar o ca minho na frente com as lanterninhas
verdes bem ace sas. O vaga-lume Cunavá sobrinho do outro foi na fren
te alumiando caminho pra Camaiuá e pediu pro mano que fosse na frente
alumiando pra ele também. O man0 pediu pro pai, o pai pediu pra mãe,
a mãe pediu pra toda a geração, o chefe-de-polícia
e o inspetor do quarteirão e muitos muitos, uma nuvem de valumes foram
alumiando caminho uns prós outros. Fizeram, gostaram de lá e
sempre uns atrás dos outros nunca mais voltaram do campo vasto do céu.
É aquele ca

minho de luz que daqui se enxerga atravessando o espaço. Pauí-Pódole
então avoou pro céu e ficou lá. Minha gente! aquelas quatro
estrelas não é Cruzeiro, que Cruzeiro nada! É o Pai do
Mutum! É o Pai do Mutum, minha gente! É o Pai do Mutum, Pauí-Pódole
que pára no campo vasto do Céu!… Tem mais não”.

Macunaíma parou fatigado. Então se ergueu do povaréu
um murmurejo longo de felicidade fazendo relumear mais ainda as gentes, os
pais-dos-pássaros os pais-dos-peixes os pais-dos-insetos os pais-das-árvores,
todos esses conhecidos que param no campo do céu. E era imenso o contentamento
daquela paulistanada man dando olhos de assombro pras gentes, pra todos esses
pais dos vivos brilhando morando no céu. E todos esses assombros de-primeiro
foram gente depois foram os as sombros misteriosos que fizeram nascer todos
os seres vivos. E agora são as estrelinhas do céu.

O povo se retirou comovido, feliz no coração cheio de explicações
e cheio das estrelas vivas. Ninguém não se amolava mais nem
com dia do Cruzeiro nem com as máquinas repuxos misturadas com a máquina
luz elé trica. Foram pra casa botar pelego por debaixo do len çol
porque por terem brincado com fogo aquela noite, na certa que iam mijar na
cama. Foram todos dormir. E a escuridão se fez.

Macunaíma parado em riba da estátua ficara so zinho ali. Também
estava comovido. Olhou pra altura. Que Cruzeiro nada! Era Pauí-Pódole
se percebia bem daqui… E Pauí-Pódole estava rindo pra ele,
agradecendo. De repente piou comprido parecendo trem-de-ferro. Não
era trem era piado e o sopro apagou todas as luzes do parque. Então
o Pai do Mutum mexeu uma asa mansamente se despedindo do herói. Macunaíma
ia agradecer, porém o pássaro erguendo a poeira da neblina largou
numa carreira esparramando pelo campo vasto do céu.

XI – A Velha Ceiuci

No outro dia o herói acordou muito constipado. Era porque apesar do
calorão da noite ele dormira de roupa com medo da Caruviana que pega
indivíduo dor mindo nu. Mas estava muito gangento com o sucesso do
discurso da véspera. Esperou impaciente os quinze dias da doença
resolvido a contar mais casos pro povo. Porém quando se sentiu bom
era manhãzinha e quem conta história de dia cria rabo de cotia.
Por isso con

vidou os manos pra caçar, fizeram.

Quando chegaram ao bosque da Saúde o herói murmurou: —
Aqui serve.

Dispôs os manos nas esperas, botou fogo no bos que e ficou também
amoitado esperando que saísse al gum viado mateiro pra ele caçar.
Porém não tinha nenhum viado lá e quando queimada acabou,
jacaré saiu? pois nem viado mateiro nem viado catingueiro, saíram
só dois ratos chamuscados. Então o herói caçou
os ratos chamuscados, comeu-os e sem chamar os ma nos voltou pra pensão.

Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhas datilógrafos
estudantes empregados-públicos, muitos empregados-públicos!
todos esses vizinhos e con tou pra eles que tinha ido caçar na feira
do Arouche e matara dois…

— … mateiros, não eram viados mateiros não, dois viados
catingueiros que comi com os manos. Até vinha trazendo um naco pra
vocês mas porém escor reguei na esquina, caí derrubei
o embrulho e cachorro comeu tudo.

Toda a gente se sarapantou com o sucedido e des confiaram do herói.
Quando Maanape e Jiguê volta ram, os vizinhos foram perguntar pra eles
si era ver dade que Macunaíma caçara dois catingueiros na feira
do Arouche. Os manos ficaram muito inquizilados por que não sabiam
mentir e exclamaram irritadíssimos: — Mas que catingueiros esses!
O herói nunca ma tou viado!- Não tinha nenhum viado na caçada
não! Gato miador, pouco caçador, gente! Em vez foram dois ratos
chamuscados que Macunaíma pegou e comeu.

Então os vizinhos perceberam que tudo era mentira do herói,
tiveram raiva e entraram no quarto dele pra tomar satisfação.
Macunaíma estava tocando numa flautinha feita de canudo de mamão.
Parou o sopro, aparou o bocal da flautinha e se admirou muito sos segado:
— Praquê essa gentama no meu quarto, agora!… Faz mal pra saúde,
gente! Todos perguntaram pra ele: — O que foi mesmo que você caçou,
herói? — Dois viados mateiros.

Então os criados as cunhas estudantes empregados-públicos.
todos esses vizinhos principiaram rindo dele. Macunaíma sempre aparando
o bocal da flauti nha. A patroa cruzando os braços ralhou assim: —
Mas, meus cuidados, praquê você fala que fo ram dois viados e
em vez foram dois ratos chamuscados! Macunaíma parou assim os olhos
nela e secundou: — Eu menti.

Todos os vizinhos ficaram com cara de André e cada um foi saindo
na maciota. E André era um vizi nho que andava sempre encalistrado.
Maanape e Jiguê se olharam, com inveja da inteligência do mano.
Maa nape inda falou pra ele: — Mas praquê você mentiu, herói!
— Não foi por querer não… quis contar o que ti nha sucedido
pra gente e quando reparei estava men tindo. ..

Jogou a flautinha fora, pegou no ganzá pigarreou e descantou. Descantou
a tarde inteirinha uma moda tão sorumbática mas tão sorumbática
que os olhos dele choravam a cada estrofe. Parou porque os soluços
não deixaram mais continuar. Largou do ganzá. Lá fora
a vista era uma tristura de entardecer dentro da cerração. Macunaíma
sentiu-se desinfeliz e teve saudades de Ci a inesquecível. Chamou os
manos pra se conso larem todos juntos. Maanape e Jiguê sentaram junto
dele na cama e os três falaram longamente da Mãe do Mato. E espalhando
a saudade falaram dos matos e cobertos cerrações deuses e barrancas
traiçoeiras do Uraricoera. Lá que eles tinham nascido e se rido
pela primeira vez nos macurus… Encostados nas maquiras pra lá do
limpo do mocambo os guirás cantavam o que não dava o dia e eram
pra mais de quinhentas as famí lias dos guirás… Perto de quinze
vezes mil espécies de animais assombravam o mato de tantos milhões
de paus que não tinham mais conta… Uma feita um branco trouxera da
terra dos Ingleses, dentro dum sapiquá gó tico, a constipação
que fazia agora Macunaíma tanto chorar de sodades. E a constipação
tinha ido morar no antro das formigas mumbucas mui pretas. Na escureza o calor
se amaciava como saindo das águas; pra trabalhar se cantava; nossa
mãe ficara virada numa coxilha mansa no lugar chamado Pai do Tocandeira.
>. Ai, que preguiça… E os três manos perceberam per tinho
o murmurejo do Uraricoera! Oh! como era bom por lá… O herói
se atirou pra trás chorando largado na cama.

Quando a vontade de chorar parou, Macunaíma afastou os mosquitos
e quis espairecer. Se lembrou de ofender a mãe do gigante com uma bocagem
novinha vinda da Austrália. Virou Jiguê na máquina telefone
porém o mano inda estava muito confundido com o caso da mentira do
herói e não houve meios de ligar. O apa relho tinha defeito.
Então Macunaíma fumou fava de paricá pra ter sonhos gostosos
e adormeceu bem.

No outro dia lembrou que precisava se vingar dos manos e resolveu passar
um pealo neles. Levantou madrugadinha e foi esconder no quarto da patroa.
Brin cou pra fazer tempo. Depois voltou falando afobado prós manos:
— Oi, manos achei rasto fresco de tapir bem na frente da Bolsa de Mercadorias!
— Que me diz, perdiz! — Pois é. Quem que havia de dizer!
Ninguém inda não matara tapir na cidade. Os ma nos se sarapantaram
e foram com Macunaíma caçar o bicho. Chegaram lá, principiaram
procurando o rasto e aquele mundão de gente comerciantes revendedores
baixistas matarazos, vendo os três manos curvados pro asfalto procurando,
principiaram campeando também, todo aquele mundão de gente.
Procuraram procura ram, você achou? nem eles! Então perguntaram
pra Macunaíma: — Onde que você achou rasto de tapir? Aqui
não tem rasto nenhum não! Macunaíma não parava
de campear falando sem pre: — Tetápe, dzónanei pemonéite
hêhê zeténe netaíte.

E os manos regatões zanguões tequeteques mada lenas e Hungareses
recomeçavam procurando o rasto. Quando cansavam e paravam pra perguntar,
Macunaí ma campeando sempre secundava: — Tetápe, dzónanei
pemonéite hêhê zeténe netaíte.

E todo aquele mundão de gente procurando. Era já perto da
noite quando pararam desacorçoados. En tão Macunaíma
se desculpou: — Tetápe dzónanei pemo…

Não deixaram nem que ele acabasse, todos pergun tando o que significava
aquela frase. Macunaíma res pondeu: — Sei não. Aprendi
essas palavras quando era pe queno lá em casa.

E todos se queimaram muito. Macunaíma fastou disfarçado falando:
— Calma gente! Tetápe hêhê! Não falei que
tem rasto de tapir não falei que tinha! Agora não tem mais não.

Foi pior. Um dos comerciantes se zangou de ver dade e o repórter
que estava ao pé dele vendo o outro zangado zangou também por
demais.

— Isso não vai assim não! Pois então a gente
vi ve trabucando pra ganhar o pão-nosso e vai um indi víduo
tira a gente o dia inteiro do trabalho só pra cam pear rasto de tapir!
— Mas eu não pedi pra ninguém procurar rasto, moço,
me desculpe! Meus manos Maanape e Jiguê é que andaram pedindo,
eu não! Culpa é deles! Então o povo que já estava
todo zangado virou contra Maanape e contra Jiguê. Já todos, e
eram mui tos! estavam com vontade de armar uma briga. Então um estudante
subiu na capota dum auto e fez discurso contra Maanape e contra Jiguê.
O povo estava ficando zangadíssimo.

— Meus senhores, a vida dum grande centro ur bano como São
Paulo já obriga a uma intensidade tal de trabalho que não permite-se
mais dentro da magní fica entrosagem do seu progresso siquer a passagem
mo mentânea de seres inócuos. Ergamo-nos todos una você
contra os miasmas deletérios que conspurcam o nosso organismo social
e já que o Governo cerra os olhos e delapida os cofres da Nação,
sejamos nós mesmos os justiçadores…

— Lincha! lincha! que o povo principiou gritando.

— Quê lincha nada! exclamou Macunaíma to mando as dores
pelos manos.

E todos se viraram contra ele outra vez. E agora já estavam zangadíssimos.
O estudante continuava pra si: — … e quando o trabalho honesto do
povo é perturbado por um desconhecido…

— O quê! quem que é desconhecido! berrou Macunaíma
desesperado com a ofensa.

— Você! — Não sou, tá’í! —
É! — Ora vá desmamar jacu com alpiste, moço! Des
conhecida é a senhora vossa mãe, ouviu! — e virando pro
povo: O que vocês estão pensando, hein! Não te nho medo
não! nem de um nem de dois nem de dez mil e daqui a pouco eu arraso
tudo isto aqui! Uma madalena que estava na frente do herói, virou pro
comerciante atrás dela e zangou: — Não bolina, senvergonha!
O herói estava cego de raiva, pensou que era com ele e: — Quê
“não bolina” agora! não estou bolinando ninguém,
sua lambisgóia! — Lincha o bolina! Pau nele! — Pois venham,
cafajestes! E avançou pra multidão. O advogado quis fugir porém
Macunaíma atirou um pontapé nas costas dele e entrou pelo povo
distribuindo rasteiras e cabeçadas. De repente viu na frente um homem
alto loiro mui lindo. E o homem era um grilo. Macunaíma teve ódio
de tanta boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo.
O grilo berrou, e enquanto falava uma frase em língua estrangeira agarrou
o herói pelo congote.

— Prrrêso! O herói gelou.

— Preso por quê? O polícia secundou uma porção
de coisas em lín gua estrangeira e segurou firme.

— Não estou fazendo nada! que o herói murmu rava com
medo.

Porém o grilo não quis conversa e foi descendo a ladeirinha
com o povo todo atrás. Outro grilo chegou e os dois falaram muitas
frases, muitas! em língua estran geira e lá foram empurrando
o herói ladeira abaixo. Uma testemunha de tudo contou o sucedido pra
um se nhor que estava na porta duma casa de frutas e o se nhor penalizado
atravessou a multidão e fez os grilos pararem. Era já na rua
Libero. Então o senhor fez um discurso prós grilos, que eles
não deviam de levar Ma cunaíma preso porque o herói não
fizera nada. Tinha ajuntado uma porção de grilos mas nenhum
não enten dia o discurso porque nenhum não pescava nada de bra
sileiro. As mulheres choravam com dó do herói. Os gri los falavam
por demais numa língua estrangeira e uma voz gritou: — Não
pode! Então o povo ficou com muita vontade de pelear outra vez e de
todos os lados agora estavam gritando: “Larga!”. “Não
leva!”. “Não pode!”. “Não pode!”, um
chinfrim, “Solta!”. Um fazendeiro estava disposto a fa zer discurso
insultando a Polícia. Os grilos não enten diam nada e gesticulavam,
muito atrapalhados falando em língua estrangeira. Formou-se um furdunço
temível. Então Macunaíma se aproveitou da trapalhada
e pernas praquê vos quero! Vinha um bonde na carreira badalando. Macunaíma
pongou o bonde e foi ver como passava o gigante.

Venceslau Pietro Pietra já principiava convales cendo da sova apanhada
na macumba. Fazia um calorão dentro da casa porque era hora de cozinharem
a polenta e fora a fresca era boa por causa do vento sulão. Por isso
o gigante com a velha Ceiuci as duas filhas e a criadagem pegaram cadeiras
e vieram sentar na por ta da rua pra gozar a frescata. O gigante ainda não
saíra do algodão e estava talequal um fardo caminhan do. Sentaram.

O curumi Chuvisco andava librinando pelo bairro e encontro Macunaíma
negaceando da esquina. Pa rou e ficou olhando o herói. Macunaíma
virou-se: — Nunca viu não! — Quê que você está
fazendo aí, conhecido! — Estou assustando o gigante Piaimã
com sua fa mília.

Chuvisco debicou: — Qual! não vê que gigante tem medo
de ti! Macunaíma encarou o curumi empalamado e teve raiva. Quis bater
nele porém lembrou de cor: “Quando você estiver embrabecendo
conta três vezes os botões da vossa roupa”, contou e ficou
manso de novo. Então secundou: — Quer apostar? Eu faço
e aconteço e garanto que Paiamã vai pra dentro com medo de mim.
Esconde lá perto pra escutar só o que eles falam.

Chuvisco avisou: — Oi, conhecido, tome tento com gigante! Você
já sabe do que ele é capaz. Piaimã está fraco
está fraco porém canudo que teve pimenta guarda o ardume.. Si
você não tem medo mesmo, aposto.

Virou numa gota e pingou rente de Venceslau Pie tro Pietra com a companheira
as filhas e a criadagem. Então Macunaíma pegou na primeira palavra-feia
da coleção e jogou na cara de Piaimã. O palavrão
bateu de rijo porém Venceslau Pietro Pietra nem se incomo dou, direitinho
elefante. Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na caapora. A ofensa
bateu rijo po rém se incomodar é que ninguém se incomodou.
Então Macunaíma jogou toda a coleção de bocagens
e eram dez mil vezes dez mil bocagens. Venceslau Pietro Pietra falou pra velha
Ceiuici, bem quieto: — Tem algumas que a gente não conhece inda
não, guarda pra nossas filhas.

Então Chuvisco voltou pra esquina. O herói garganteou: —
Tiveram medo ou não tiveram! — Medo nada, conhecido! Até
o gigante mandou guardar as bocagens novas pras filhas brincarem. De mim que
eles têm medo, ocê aposta? Vá lá perto e escute
só.

Macunaíma virou num caxipara que é o macho da formiga saúva
e foi se enroscar na rama de algodão acolchoando o gigante. Chuvisco
amontou numa nebli na e quando ia passando em riba da família deu uma
mijadinha no ar. Principiou peneirando uma chuva-de-preguiça. Quando
os pingos vieram caindo o gigante olhou pra um agarrado na mão dele
e teve paúra de tanta água.

— Vam’bora, gente! E todos com muito medo foram correndo pra den tro.
Então Chuvisco desapeou e disse pra Macunaíma: — Está
vendo? E assim até hoje. A família do gigante tem medo de Chuvisco
mas de palavra-feia não.

Macunaíma ficou muito despeitado e perguntou pro rival: — Me
diga uma coisa: você conhece a língua do lim-pim-gua-pá?
— Nunca vi mais gordo! — Pois então, rival: Vá-pá
à-pá mer-per-da-pá! E abriu o pala até a pensão.

Mas estava muito contrariado por ter perdido a aposta e se lembrou de fazer
uma pescaria. Porém não podia pescar nem de frecha nem com timbó
nem cunambi nem tiguí nem macerá nem no pari nem com linha nem
arpão nem juquiaí nem sararaca nem gaponga nem de poita nem
de cassuá nem itapuá nem de giqui nem de grozera nem de gererê
guê tresmalho aparador gungá cambango arinque batebate gradeira
caicai penca anzol de vara covo, todos esses objetos armadilhas e ve nenos
porque não possuía nada disso não. Fez um anzol com cera
de mandaguari mas bagre mordia, le vava anzol e tudo. Porém tinha ali
perto um Inglês pes cando aimarás com anzol de verdade. Macunaíma
vol tou pra casa e falou pra Maanape: — Quê que havemos de fazer!
Carecemos de to mar anzol de Inglês. Vou tirar aimará de mentira
pra enganar o bife. Quando ele me pescar e der a batida na minha cabeça
então faço “juque!” enganando que morri. Ele me atira
no samburá, você pede o peixe mais grande pra comer e sou eu.

Fez. Virou num aimará pulou na lagoa, o Inglês pescou-o e bateu
na cabeça dele. O herói gritou “Ju que!” Mas o Inglês
tirou o anzol da goela do peixe po rém. Maanape veio vindo e muito
disfarçado pediu pro Inglês: — Dá peixe pra mim,
seu Yes? — Ali right. E deu um lambari de rabo vermelho.

— Ando padecendo de fome, seu Inglês! dá um macota, vá!
esse um gordinho do samburá! Macunaíma estava com o olho esquerdo
dormindo porém Maanape conheceu-o bem. Maanape era feiticei ro. O Inglês
deu o aimará pra Maanape que agradeceu foi-se embora. Quando estava
légua e meia longe o limará virou Macunaíma outra vez.
Assim três vezes, Inglês sempre tirando anzol da goela do herói.
Macunaíma segredou pro mano: — Quê que havemos de fazer!
Carecemos de tomar anzol de Inglês. Vou virar piranha de mentira e arranco
anzol da vara.

Virou numa piranha feroz pulou na lagoa arrancou anzol e desvirando outra
vez légua e meia abaixo no lugar chamado Poço do Umbu onde tinha
umas pedras cheias de letreiros encarnados da gente fenícia sacou anzol
da goela bem contente porque agora podia pescar corimã piraíba
aruana pirara piaba todos esses’pei tes. Os dois manos iam-se quando escutaram
Inglês falando pra Uruguaio: — Que posso fazer agora! Não
possuo mais anzol que a piranha engoliu. Vou pra vossa terra, conhecido.

Então Macunaíma fez um grande gesto com os dois braços
e gritou: — Espera um bocado, tapuitinga! O Inglês se voltou e
Macunaíma só de caçoada virou-o na máquina London
Bank.

No outro dia falou prós manos que ia pescar peixões no igarapé
Tietê. Maanape avisou: — Não vá, herói, que
você topa com a velha Ceiuci mulher do gigante. Te come, heim! —
Não tem inferno pra quem já navegou no Ca choeira! que Macunaíma
exclamou. E partiu.

Nem bem lançou a linha de cima dum mutá que veio vindo a velha
Ceiuci pescando de tarrafa. A caapora viu a sombra de Macunaíma refletida
n’água jogou depressa a tarrafa e só pescou sombra. O herói
nem não achou graça porque estava tremendo de medo, vai, pra
agradecer falou assim: — Bom-dia, minha vó.

A velha virou a cara pro alto e descobriu Macunaí ma em riba do mutá.

— Vem cá, meu neto.

— Não vou lá não.

— Pois então mando marimbondos.

Fez. Macunaíma arrancou um molho de pataqueira e matou os marimbondos.

— Desce, meu neto, que sinão mando novatas! Fez. As formigas
novatas ferraram em Macunaí ma e ele caiu n’água. Então
a velha tarrafiou, envolveu o herói nas malhas e foi pra casa. Lá
chegada pôs o em brulho na sala-de-visitas que tinha um abajur encarna
do e foi chamar a filha mais velha que era bem habilidosa, pras duas comerem
o pato que ela caçara. E o pato era Macunaíma o herói.
Porém a filhona estava muito ocupada porque era mesmo habilidosa e
a velha pra adiantar serviço foi fazer fogo. A caapora possuía
duas filhas e a mais nova que não era nada habilidosa e só sabia
suspirar, enxergando a velha fazer fogo, ima ginou: “Mãe quando
vem da pescaria conta logo o que pescou, hoje não. Vou ver”. Desenrolou
a tarrafa e saiu dela um moço bem do gosto. O herói falou: —
Me esconde! Então a moça que estava mui bondosa porque vi via
desocupada desde tempo, levou Macunaíma pro quarto e brincaram. Agora
estão se rindo um pro outro.

Quando fogo ficou bem quente a velha Ceiuci veio com a filhona habilidosa
pra depenarem o pato porém acharam só tarrafa. A caapora embrabeceu:
— Isso há-de ser minha filhinha nova que é muito bondosa…

Bateu no quarto da moça, gritando: — Minha filhinha nova, entrega
já meu pato que sinão enxoto você da casa minha pra todo
o sempre! A moça ficou com medo e mandou Macunaíma ati rar vinte
milréis por debaixo da porta pra ver si con tentava a gulosa. Macunaíma
de medo já atirou cem que viraram em muitas perdizes lagostas robalos
vidros-de-perfume e caviar. A velha gulosa engoliu tudo e pediu mais. Então
Macunaíma atirou um conto de réis por debaixo da porta. O conto
virou em mais lagostas coelhos pacas champanha rendas cogumelos rãs
e a ve lha sempre comendo e pedindo mais. Então a moça bondosa
abriu a janela dando pro Pacaembu deserto e falou: — Vou dizer três
adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é que é:
É comprido roliço e perfu rado, entra duro e sai mole, satisfaz
o gosto da gente e não é palavra indecente? — Ah! isso
é indecência sim! — Bobo! é macarrão! —
Ahn… é mesmo!… Engraçado, não? — Agora o que
é que é: Qual o lugar onde as mulheres têm cabelo mais
crespinho? — ôh, que bom! isso eu sei! é aí! —
Cachorro! É na África, sabe! — Me mostra, por favor! —
Agora é a última vez. Diga o quê que é:

Mano, vamos fazer Aquilo que Deus consente: Ajuntar pêlo com pêlo,
Deixar o pelado dentro.

E Macunaíma: — Ara! Também isso quem não sabe!
Mas cá pra nós que ninguém nos ouça, você
é bem senvergonha, dona! — Descobriu. Não é dormir
ajuntando os pêlos das pestanas e deixando o olho pelado dentro que
você está imaginando? Pois si você não acertasse
pelo menos uma das advinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora
fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu. Na esquina
você encontra uns cavalos. Tome o castanho-escuro que pisa no mole e
no duro. Esse é bom. Si você escuta um passarinho gritando “Baúa!
Baúa!” en tão é a velha Ceiuci chegando. Agora fuja
sem escar céu, serei expulsa, voarei pro céu! — Macunaíma
agradeceu e pulou pela janela. Na esquina estavam dois cavalos, um castanho-escuro
e ou tro cardão-pedrez. “Cavalo cardão-pedrez pra carreira
Deus o fez” Macunaíma murmurou. Pulou nesse e abriu na galopada.
Caminhou caminhou caminhou e já per to de Manaus ia correndo quando
o cavalo deu uma to pada que arrancou chão. No fundo do buraco Macunaí
ma enxergou uma coisa relumeando. Cavou depressa e descobriu o resto do deus
Marte, escultura grega acha da naquelas paragens inda na Monarquia e primeiro-de-abril
passado no Araripe de Alencar pelo jornal cha mado Comércio do Amazonas.
Estava contemplando aquele torso macanudo quando escutou “Baúa!
Baúa!”. Era a velha Ceiuci chegando. Macunaíma esporeou
o cardão-pedrez e depois de perto de Mendoza na Argen tina quasi dar
um esbarrão num galé que também vi nha fugindo da Guiana
Francesa, chegou num lugar on de uns padres estavam melando. Gritou: —
Me escondam, padres!

Nem bem os padres esconderam Macunaíma num pote vazio que a caapora chegou
montada no tapir.

— Não viram meu neto passar por aqui no seu ca valinho comendo
capim? — Já passou.

Então a velha apeou do tapir e. montou num ca valo gazeo-sarará
que nunca prestou nem prestará e se guiu. Quando ela virou a serra
do Pafanacoara os pa dres tiraram o herói do pote, deram pra ele um
cavalo melado-caxito que tanto é bom como é bonito e man daram
ele embora. Macunaíma agradeceu e galopou. Logo adiante encontrou uma
cerca de arame porém era cavaleiro: deu um sacalão, esbarrou
o pongo e ajuntan do as mãos do animal caído com um jeito forte
fez o cavalo girar e passar por debaixo do arame. Então o herói
pulou a cerca e amontou de novo. Galopeou galopeou galopeou. Passando no Ceará
decifrou os letreiros indígenas do Aratanha; no Rio Grande do Norte
costeando o serrote do Cabelo-não-tem decifrou outro. Na Paraíba,
indo de Manguape pra Bacamarte passou na Pedra-Lavrada com tanta inscrição
que dava um ro mance. Não leu por causa da pressa e nem a da Barra
do Poti do Piauí, nem a de Jajeú em Pernambuco, nem a dos Apertados
do Inhamum, que já era no quarto dia e se escutava no ar rentinho:
“Baúa! Baúa!” Era a ve lha Ceiuci chegando. Macunaíma
pernas pra que vos quero pelo eucaliptal. Mas o passarinho sempre mais perto
e Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela velha. Afinal topou
com a biboca dum surucucu que tinha parte com o canhoto.

— Me esconde, surucucu! O surucucu nem bem escondeu o herói
no buraco da latrininha, a velha Ceiuci chegou.

— Não viram meu neto passar por aqui no seu ca valinho comendo
capim? — Já passou.

A gulosa apeou do gazeo-sarará que nunca prestou nem prestará
e montou num cavalo bebe-em-branco que é cavalo manco e seguiu.

Então Macunaíma escutou surucucu tratando com a companheira
pra fazerem um moquém do herói. Pu lou do buraco do quartinho
e jogou no terreiro o anel com brilhantão que dera de presente pro
dedo Mindinho. O brilhantão virou em quatro contos de carros de milho,
adubo Polisu e uma fordeca de segunda mão. Enquanto o surucucu olhava
pra aquilo tudo satisfeito, Macunaíma pro melado-caxito descansar,
amontou num bagual cardão-rodado que nunca pode estar parado e galopeou
através de varjões e varjotas. Varou num áti mo o mar
de areia do chapadão dos Parecis e por der rames e dependurados entrou
na caatinga e assustou as galinhas com pintos de ouro do Camutengo perto de
Natal. Légua e meia adiante abandonando a mar gem do São Francisco
emporcalhada com a enchente-da-páscoa, entrou por uma brecha aberta
no morro al to. Ia seguindo quando escutou um “psiu” de cunha. Parou
morto de medo. Então saiu do meio da catinga-de-porco uma dona alta
e feiosa com trança até o pé. E a dona perguntou cochichando
pro herói: — Já se foram? — Se foram, quem! —
Os Holandeses! — Você está caducando, quê Holandês
esse! Não tem Holandês nenhum, dona! Era Maria Pereira cunha
portuga amufumbada na quela brecha de morro desde a guerra com os Holande
ses Macunaíma não sabia bem mais em que parte de Brasil estava
e lembrou de perguntar.

— Me diga uma coisa, filho de gambá é raposa, como chama
este lugar? A cunha secundou emproada: — Aqui é o Buraco de Maria
Pereira. Macunaíma soltou uma grande gargalhada e escafedeu enquanto
a mulher amoitava outra vez. O herói segui de carreira e enfim passou
pra outra banda do rio Chuí. Foi lá que topou com o tuiuiú
pescando.

— Primo Tuiuiú, você me leva pra casa? — Pois não!
Logo o tuiuiú se transformou na máquina aeroplano, Macunaíma
escanchou no aturiá vazio e ergueram vôo. Voaram sobre o chapadão
mineiro de Urucuia, fi zeram o circuito de Itapecerica e bateram pro Nordeste.
Passando pelas dunas de Mossoró, Macunaíma olhou pra baixo e
enxergou Bartolomeu Lourenço de Gusmão, batina arregaçada,
pelejando pra caminhar no areão. Gritou pra ele: — Venha aqui
com a gente, ilustre! Porém o padre gritou com um gesto imenso: —
Basta! Depois que pulando a serra do Tombador no Mato Grosso deixaram pra
esquerda as cochilhas de SantAna do Livramento, o tuiuiu-aeroplano e Macunaíma
subi ram até o Telhado do Mundo, mataram a sede nas águas novas
do Vilcanota e na última etapa voando so bre Amargosa na Bahia, sobre
o Gurupá e sobre o Gurupi com sua cidade encantada, enfim toparam de
novo com o mocambo ilustre do igarapé Tietê. Daí a pouqui
nho estavam na porta da pensão. Macunaíma agrade ceu muito e
quis pagar o ajutório porém se lembrou que estava carecendo
de fazer economia. Virou pro tuiuiú e falou: — Olha, primo, pagar
não posso não mas vou te dar um conselho que vale ouro: Neste
mundo tem três barras que são a perdição dos homens:
barra de rio, barra de ouro e barra de saia, não caia! Porém
estava tão acostumado a gastar que esque ceu-se da economia. Deu dez
contos pro tuiuiú, subiu satisfeito pro quarto e contou tudo prós
manos já muito ressabiados com a demora. O caso afinal custara uns
bons pacotes. Maanape então virou Jiguê num telefone e deu queixa
pra Polícia que deportou a velha gulosa. Porém Piaimã
tinha muita influência e ela voltou na companhia lírica.

A filha expulsa corre no céu, batendo perna de déu em déu.
É uma cometa.

XII – Tequeteque, Chupinzão e a Injustiça dos Homens

No outro dia Macunaíma acordou febrento. Tinha mesmo delirado a noite
inteira e sonhado com navio.

— Isso é viagem por mar, falou a dona da pensão. Macunaíma
agradeceu e de tão satisfeito virou logo Jiguê na máquina
telefone pra insultar a mãe de Venceslau Pietro Pietra. Mas a sombra
telefonista avisou que não secundavam. Macunaíma achou aquilo
esqui sito e quis se levantar pra ir saber o que era. Porém sentia
um calorão cocado no corpo todo e uma moleza de água. Murmurou:
— Ai… que preguiça…

Virou a cara pro canto e principiou falando bocagens. Quando os manos vieram
saber o que era, era sarampão. Maanape logo foi buscar o famoso Bento
curandeiro em Beberibe que curava com alma de índio e água de
pote. Bento deu uma agüinha e fez reza can tada. Numa semana o herói
já estava descascando. En tão se levantou e foi saber o que
tinha sucedido pro gigante.

Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vi zinho
contou que Piaimã com toda a família fora na Europa descansar
da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado e se contrariou bem. Brincou
com a co peira muito aluado e voltou macambúzio pra pensão.
Maanape e Jiguê encontraram o herói na porta da rua e perguntaram
pra ele: — Quem matou seu cachorrinho, meus cuidados? Então Macunaíma
contou o sucedido e principiou chorando. Os manos ficaram bem tristes de ver
o he rói assim e levaram ele visitar o Leprosário de Guapira,
porém Macunaíma estava muito contrariado e o passeio não
teve graça nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e
todos já estavam desesperados. Tiraram uma porção enorme
de tabaco dum cornimboque imitando cabeça de tucano e espirraram bem.
Então puderam pensamentear.

— Pois é, meus cuidados, você andou lerdeando, cozinhando
galo, cozinhando galo, o gigante é que não havia de esperar,
foi-se. Agora agüente a massada! Nisto Jiguê bateu na cabeça
e exclamou: — Achei! Os manos levaram um susto. Então Jiguê
lembrou que eles podiam ir na Europa também, atrás da muiraquitã.
Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma
aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou imaginou e concluiu:
— Tem coisa milhor.

— Pois então desembuxe! — Macunaíma finge de pianista,
arranja uma pen são do Governo e vai sozinho.

— Mas praquê tanta complicação si a gente pos
sui dinheiro à bessa e os manos podem me ajudar na Europa! —
Você tem cada uma que até parece duas! Po der a gente pode sim
porém mano seguindo com arame do Governo não é milhor?
É. Pois então! Macunaíma estava refletindo e de repente
bateu na testa: — Achei! Os manos levaram um susto.

— Quê foi! — Pois então finjo de pintor que é
mais bonito! Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho
meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor.

No outro dia pra esperar a nomeação matou o tem po fazendo
pinturas. Assim: Agarrou num romance de Eça de Queiroz e foi na Cantareira
passear. Então pas sou perto dele um cotruco andarengo muito marupiara
porque possuía folhinha de picapau. Macunaíma dei tado de bruços
divertia-se amassando os tacurus das for migas tapipitingas. O tequeteque
saudou: — Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obriga do, bem. Trabalhando,
não? — Quem não trabuca não manduca.

— É mesmo. Bom, té-loguinho.

E passou. Légua e meia adiante topou com um mi-cura e lembrou de
trabucar também um bocado. Pe gou no gambazinho, fez ele engolir dez
pratas de dois milréis e voltou com o bicho debaixo do braço.
Chegan do perto de Macunaíma mascateou: — Bom-dia, conhecido,
como le vai, muito obriga do, bem. Si você quer te vendo meu micura.

— Quê que vou fazer com um bicho tão pichento! Macunaíma
secundou botando a mão no nariz.

— Tem aca mas é coisa muito boa! Quando faz necessidade só
prata que sai! Vendo barato pra você! — Deixe de conversa, turco!
Onde que se viu mi cura assim! Então o tequeteque apertou a barriga
do gambá e o bicho desistiu as dez pratinhas.

— Está vendo! Faz necessidade é prata só! Ajuntando
a gente fica riquíssimo! Barato pra você! — Quanto que
custa? — Quatrocentos contos.

— Não posso comprar, só tenho trinta.

— Pois então pra ficar freguês deixo por trinta contos
pra você! Macunaíma desabotoou as calças e por debaixo
da camisa tirou o cinto que carregava dinheiro. Porém só tinha
a letra de quarenta contos e seis fichas do Cassi no de Copacabana. Deu a
letra e teve vergonha de re ceber o troco. Até inda deu as fichas de
inhapa e agra deceu a bondade do tequeteque.

Nem bem o mascate sorvetera entre as sapupiras guarubas e parinais do mato
que já o micura quis fa zer necessidade outra feita. O herói
arrendondou o bol so aparando e a porcaria caiu toda ali. Então Macunaíma
percebeu o logro e abriu numa gritaria desgraçada, caminho da pensão.
Virando uma esquina encontrou o José Prequeté e gritou pra ele:
— Zé Prequeté, tira bicho do pé pra comer com café!
José Prequeté ficou com ódio e insultou a mãe
do herói porém este não fez caso não, deu uma
grande gargalhada e foi seguindo. Mais adiante lembrou que ia indo pra casa
zangado e pegou na gritaria outra vez.

Os manos inda não tinham voltado da maloca do Governo e a patroa
veio no quarto pra consolar Macunaíma, brincaram. Depois de brincarem
o herói pe gou no choro. Quando os manos chegaram toda a gen te se
sarapantou porque eles tinham cinco metros de altura. Não vê
que o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra
mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só
no dia de São Nunca. Ficava muito longe. O invento tinha favado e os
manos ficaram compridos por causa do de saponto. Quando enxergaram o mano
chorando, se as sustaram bem e quiseram saber a causa. E como es queceram
o desaponto voltaram pro tamanho de dan tes, Maanape já velhinho e
Jiguê na força do homem.

O herói fazia: — Ihihih! tequeteque me embromou! Ihihih! Com
prei micura dele, quarenta contos me custou! Então os irmãos
se descabelaram. Agora não era possível mais irem na Europa
não, porque possuíam só a noite e o dia. Levaram na prantina
enquanto o he rói esfregava o óleo de andiroba no corpo prós
mosqui tos não amolarem e adormecia bem.

No outro dia amanhaceu fazendo um calorão temí vel e Macunaíma
suava que mais suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça
do Governo. Quis sair pra espairecer porém aquela roupa tanta aumentando
o calor… Teve mais raiva. Teve raiva por demais e maliciou que ia ficar
com o butecaiana que é doença da raiva. Então exclamou:
— Ara! Ande eu quente, ria-se a gente! Tirou as calças pra refrescar
e pisou em cima. A raiva se acalmou no sufragante e até que muito satis
feito Macunaíma falou prós manos: — Paciência, manos!
não! não vou na Europa não. Sou Americano e meu lugar
é na América. A civiliza ção européia de
certo esculhamba a inteireza do nosso caráter.

Durante uma semana os três vararam o Brasil to do pelas restingas
de areia marinha, pelas restingas de mato ralo, barrancas de paranãs,
abertões, corredeiras carrascos carrascões e chavacais, coroas
de vazante bo queirões mangas e fundões que eram ninhos de geada,
espraiados pancadas pedrais funis bocainas barroqueiras e rasouras, todos
esses lugares, campeando nas ruí nas dos conventos e na base dos cruzeiros
pra ver si não achavam alguma panela com dinheiro enterrado. Não
acharam nada.

— Paciência, manos! Macunaíma repetiu macambúzio.
Jogamos no bicho! E foi na praça Antônio Prado meditar sobre
a in justiça dos homens. Ficou lá encostado num plátano
muito bem. Todos os comerciantes e aquele despropósito de máquina
passavam rentinho do herói grugunzando sobre a injustiça dos
homens. Macunaíma já es tava disposto a mudar o dístico
pra: “Pouca saúde e muitos pintores os males do Brasil são”
quando escutou um “Ihihih!” chorando atrás. Virou e viu no
chão um ticotico e um chupim.

O ticotico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum
lado pra outro acompanhado sempre do chupinzão chorando pro outro dar
de comer pra ele. Fazia raiva. O ticotiquinho imaginava que o chupinzão
era filhote dele mas não era não. Então voa va, arranjava
um decumê por aí que botava no bico do chupinzão. Chupinzão
engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih! mamãe… telo decumê!…
telo decumê!…” lá na língua dele. O ticotiquinho
ficava azaranzado porque estava padecendo fome e aquele nhenhenhén-nhenhenhén
azucrinando ele, atrás, diz-que “Telo decumê!… telo decumê!…”
não podia com o amor sofrendo. Largava de si, voava buscar um bichi
nho uma quirerinha, todos esses decumês, botava no bico do chupinzão,
chupinzão engolia e principiava atrás do ticotiquinho outra
vez. Macunaíma estava meditan do na injustiça dos homens e teve
um amargor imenso da injustiça do chupinzão. Era porque Macunaíma
sa bia que de primeiro os passarinho foram gente feito nós… Então
o herói pegou num porrete e matou o ticotiquinho.

Foi-se embora. Depois que andou légua e meia sen tiu calor e lembrou
de beber pinga pra refrescar. Tra zia sempre num bolso do paletó uma
garrafinha de pin ga presa ao puíto por uma corrente de prata. Desarrolhou
e chupitou de manso. Eis sinão quando escutou atrás um “Ihihih!”
chorando. Virou sarapantado. Era o chupinzão.

— Ihihih! papai… telo decumê!… telo decu mê!… lá
na língua dele.

Macunaíma ficou com ódio. Abriu o bolso onde es tava guardado
aquilo do micura e falou: — Pois coma então! Chupinzão
pulou na beira do bolso e comeu tudo sem saber. Foi engordando engordando,
virou num pás saro preto bem grande e voou prós matos gritando
“Afinca! Afinca!”. É o Pai do Vira.

Macunaíma seguiu caminho. Légua e meia adian te estava um
macaco mono comendo coquinho baguaçu. Pegava no coquinho, botava no
vão das pernas junto com uma pedra, apertava e juque! a fruta quebrava.
Macunaíma veio e esgurejou com a boca cheia d’água. Falou: —
Bom-dia, meu tio, como lhe vai? — Assim assim, sobrinho.

— Em casa todos bons? — Na mesma.

E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O outro enquizilou
assanhado: — Não me olhe de banda que não sou quitanda,
não me olhe de lado que não sou melado! — Mas o quê
você está fazendo aí, titio! O macaco mono soverteu o
coquinho na mão fe chada e secundou: — Estou quebrando os meus
toaliquiçus pra comer.

— Vá mentir na praia! — Uai, sobrinho, si tu não
dá crédito então pra-quê pergunta! Macunaíma
estava com vontade de acreditar e in dagou: — É gostoso é?
O mono estalou a língua: — Chi! prove só! Quebrou de escondido
outro coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçus e deu pra Macunaíma
comer. Macunaíma gostou bem.

—- É bom mesmo, tio! Tem mais? — Agora se acabou mas
si o meu era gostoso que fará os vossos! Come eles, sobrinho! O herói
teve medo: — Não dói não? — Qual, si até
é agradável!…

O herói agarrou num paralelepípedo. O macaco mono rindo por
dentro inda falou pra ele: — Você tem mesmo coragem, sobrinho?
— Boni-t-ó-tó macaxeira comotó! o herói
excla mou empafioso. Firmou bem o paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus.
Caiu morto. O macaco mono caçoou assim: — Pois, meus cuidados,
não falei que tu morrias! Falei! Não me escutas! Estás
vendo o que sucede prós desobedientes. Agora: sic transit! Então
calçou as luvas de balata e foi-se. Daí a pouco veio uma chuvarada
que refrescou a carne verde do herói, impedindo a putrefação.
Logo se formou um poder de correições de formigas guajuguajus
e muru-petecas pro corpo morto. O advogado Fulano atraído pelas correições
topou com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadáver porém
só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o defunto
pra pensão, fez. Carre gou Macunaíma nas costas e foi andando.
Porém o de funto pesava por demais e o advogado viu que não
po dia com o peso. Então arreou o cadáver e deu uma coca de
vara nele. O defunto ficou levianinho e o advo gado Fulano pôde levá-lo
pra pensão.

Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do mano. Depois descobriu
o esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu de emprestado pra patroa
dois côcos-da-Bahia, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçus
amassados e assoprou fumaça de ca chimbo no defunto herói. Macunaíma
foi se erguendo muito desmerecido. Deram guaraná pra ele e daí
a pou co matava sozinho as formigas que inda o mordiam. Es tava tremendo muito
porque por causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma
tirou a garrafinha do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar. Depois
pediu uma centena pra Maanape e foi até um chalé jogar no bicho.
De-tarde quando viram, a cente na tinha dado mesmo. E assim eles viveram com
os pal pites do mano mais velho. Maanape era feiticeiro.

XIII – A Piolhenta do Jiguê

No outro dia por causa da machucadura Macunaíma amanheceu com uma
grosseira pelo corpo todo. Fo ram ver e era a erisipa, doença comprida.
Os manos trataram dele bem e traziam diariamente pra casa to dos esses remédios
pra erisipela que os vizinhos e co nhecidos, todos esses Brasileiros aconselhavam.
O he rói passou uma semana de cama. De-noite sonhava sempre com embarcações
e a dona da pensão quando vinha de-manhã por amor de saber como
ia o herói dizia sempre que embarcação significava na
certa viagem por mar. Depois saía deixando sobre a cama do enfer mo
o Estado de São Paulo. E o Estado de São Paulo era um jornal.
Então Macunaíma gastava o dia lendo todos esses anúncios
de remédios pra erisipa. E eram muitos anúncios! No fim da semana
o herói estava descascando bem e foi na cidade buscar sarna pra se
cocar. Andou ban zando banzando, e muito fatigado por causa da fraqueza parou
no parque do Anhangabaú. Chegara bem de baixo do monumento a Carlos
Gomes que fora um mú sico muito célebre e agora era uma estrelinha
do céu. O ruído da fonte murmurejando na tardinha dava pro herói
a visagem das águas do mar. Macunaíma sentou no parapeito da
fonte e assuntou os baguais marinhos de bronze chorando água. E lá
na escureza da gruta por detrás da tropilha presenciou uma luz. Fixou
mais e distinguiu uma embarcação muito linda que vinha boiando
sobre as águas. “É uma vigilenga” murmurou. Porém
a nau vinha chegando cada vez maior. É um gaiola” murmurou. Mas
o gaiola vinha chegando tão granto tão! que o herói deu
um salto sarapantado e gritou na bôca-da-noite ecoada “É
um vaticano!” O navio já vinha bem visível por detrás
dos baguais de bronze. Tinha o corte da velocidade no casco de prata e os
mastros inclinados pra trás estavam cheios de bandeiras que o vento
da correria imprensava entre as lâminas de ar. O grito chamara os choferes
da espla nada e todos curioseavam o gesto parado do herói e se

guiam o risco do olhar dele batendo na fonte escura.

— Quê foi, herói? — Olha lá!… Olha o vaticano
macota que vem vindo sobre as águas imensas do mar! — Aonde!
— Por detrás do cavalo de estibordo! Então todos viram
por detrás do cavalo de estibor do o navio chegando. Já estava
bem perto e ia passar entre o cavalo e a parede de pedra, já estava
na boca da gruta. E era um navio guaçu.

— Não é vaticano não! é o transatlântico
fazendo viagem por mar! gritou um chofer japonês que já fi zera
muita viagem por mar. E era um transatlântico enorme. Vinha iluminado,
relampeava todo de ouro e prata embandeirado e festeiro. Os óculos
das cabinas eram colares no casco e nos cinco deques empoleirados corria música
entre a gentana dançando mexida no cururu. A choferada comentava: —
É do Lóide! — Não, é da Hamburgo! —
Vá saindo! tou percebendo! então! É il piróscafo
Conte Verde em vez! E era o piróscafo Conte Verde sim. E era a Mãe
D’água que vinha bancando piróscafo pra atentar o herói.

— Gente! adeus, gente! Vou pra Europa que é milhor! Vou em
busca de Venceslau Pietro Pietra que é o gigante Piaimã comedor
de gente! que o herói dis cursava.

E toda a choferada abraçava Macunaíma se despe dindo. O vapor
estava ali e Macunaíma já pulara no cais da fonte pra subir
a escadinha do piróscafo Conte Verde. Todos os tripulantes na frente
da música ace navam chamando Macunaíma e eram marujos forçudos,
eram Argentinos finíssimos e eram tantas donas lindís simas
pra gente brincar até enjoar com os balangos das ondas.

— Desce a escadinha, capitão! que o herói ex clamou.

Então o capitão tirou o cocar e executou uma le tra no ar.
E todos, os marujos os Argentinos finíssimos e as cunhas lindíssimas
pra Macunaíma brincar, todos esses tripulantes soltaram vaias macotas
caçoando do herói enquanto o navio manobrando sem parar dava
a popa pra terra e flechava de novo pro fundo da gruta. E todos aqueles tripulantes
viraram doentes com erisipa sempre caçoando do herói. E quando
o piróscafo atra vessou o estreito entre a parede da gruta e o bagual
de bombordo a chaminèzona guspiu uma fumaçada de pernilongos,
de borrachudos mosquitos-pólvora mutucas marimbondos cabas potós
môsca-de-ura, todos es ses mosquitos afugentando os motoristas.

O herói sentado no rebordo da fonte penava todo mordido e com mais
erisipa, mais, todo erisipelado. Sentiu frio e veio febre. Então espantou
com um gesto os mosquitos e caminhou pra pensão.

No outro dia Jiguê entrou em casa com uma cunhatã, fez ela
engolir três bagos de chumbo pra não ter filhos e os dois dormiram
na rede. Jiguê tinha se amulherado. Ele era muito valente. Passava o
dia limpan do a espingarda e afiando a lamparina. A companheira de Jiguê
todas as manhãs ia comprar macaxeira prós quatro comerem e se
chamava Suzi. Porém Macunaíma que era o namorado da companheira
de Jiguê, to dos os dias comprava uma lagosta pra ela, punha no fundo
do jamachi e por cima esparramava a macaxeira pra ninguém não
maliciar. Suzi era bem feiticeira. Quando chegava em casa deixava a cesta
na saleta e ia dormir pra sonhar. Sonhando ela falava pra Jiguê: —
Jiguê, meu companheiro Jiguê, estou sonhando que tem lagosta por
debaixo da macaxeira.

Jiguê ia ver e tinha. Todos os dias era assim e Jiguê tendo
amanhecido com dor-de-cotovelo descon fiou. Macunaíma percebeu a dor
do mano e fez uma mandinga pra ver si passava. Pegou numa cuia e de-noite
deixou-a no terraço, rezando manso:

“Água do céu Vem nesta cuia, Paticl vem nesta água,
Moposêru vem nesta água, Sivuoímo vem nesta água,
Omaispopo vem nesta água, Os Donos da Água enxotem a dor-de-corno!
Aracu, Mecumecuri, Pai que venham nesta água, E enxotem a dor-de-corno
si o doente beber esta água Em que estão encantados os Donos
da Água!”

Deu pra Jiguê beber no outro dia porém não sur

tiu efeito não e o mano andava muito desconfiado.

Quando Suzi se vestia pra ir na feira, assobiava o foxtrote da moda pro
namorado ir também. O na morado era Macunaíma, ia. A companheira
de Jiguê saía e Macunaíma saía atrás. Andavam
brincando por aí e quando chegava a hora da volta já não
tinha macaxeira mais na feira. Pois então Suzi disfarçando ia
atrás da casa, sentava no jamachi e puxava uma por ção
de macaxeira de dentro do maissó. Todos comiam muito bem, só
Maanape resmungava: — Caboclo de Taubaté, cavalo pangaré,
mulher que mija em pé, libera nós Dominé! e empurrava
a co mida.

Maanape era feiticeiro. Não queria saber daquela macaxeira não
e como andava curtindo fome passava o tempo mastigando ipadu pra enganar.
De-noite quan do Jiguê queria pular na rede a companheira dele prin
cipiava gemendo, falando que estava empanzinada de tanto engolir caroço
de pitomba. Era só pra Jiguê não brincar com ela. Jiguê
teve raiva.

No outro dia ela foi na feira e assobiou o foxtrote da moda. Macunaíma
saiu atrás. Jiguê era muito va lente. Pegou numa mirassanga enorme
e foi devagari nho atrás deles. Procurou procurou e encontrou Suzi
com Macunaíma de, mãos dadas no Jardim da Luz. Já estavam
se rindo um pro outro. Jiguê desceu a miras sanga nos dois, levou a
companheira pra pensão e dei xou o mano fatigado na beira da lagoa
entre cisnes.

Do outro dia em diante Jiguê é que fazia as com pras deixando
a companheira presa no quarto. Suzi sem quefazer passava o tempo contrariando
a morali dade mas uma feita o santo Anchieta vindo ao mundo passou pela casa
dela e por piedade ensinou-a a catar piolhos. Suzi possuía uns cabelos
ruivos à la garçonne e sustentava muitos piolhos, muitos! Agora
não so nhava mais que tinha lagostas por debaixo da macaxeira nem não
fazia imoralidades. Quando Jiguê par tia ela tirava os cabelos e espetando-os
no porrete do companheiro, catava piolhos. Mas tinha muitos piolhos, muitos!
Então com medo que o companheiro apanhas se ela no trabalho, falou
assim: — Jiguê, meu companheiro Jiguê, quando você
volta do mercado bate primeiro na porta, bate todos os dias uma porção
de tempo pra mim ficar contente e ir cozinhar a macaxeira.

Jiguê falou que sim. Todos os dias ia no mercado comprar macaxeira
e quando voltava batia demorado na porta. Então a cunha botava os cabelos
na cabeça e ficava esperando Jiguê.

— Suzi, minha companheira Suzi, bati uma por ção de
vezes na porta, será que você alegrou? — Muito! ela fez.
E foi cozinhar a macaxeira.

E todos os dias eram assim. Mas tinha muitos pio lhos, muitos! É
que ela contava os catados um por um e por isso os piolhos aumentavam. Uma
feita Jiguê matutou no que ficava fazendo a companheira quando ele ia
no mercado e teve vontade de assustá-la, fez. Vi rou de pernas pro
ar e veio andando nas pontas das mãos. Abriu a porta e assustou Suzi.
Isso ela gritou botando afobada a cabeleira na cabeça. E os cabelos
da testa ficaram no cangote e os cabelos do cangote fi caram na testa escorrendo.
Jiguê xingou Suzi de porca e deu nela até escutar alguém
subindo a escada. Era Chico vindo de baixo. Então Jiguê parou
e foi afiar a bicuda.

No outro dia Macunaíma estava outra vez com von tade de brincar com
a companheira de Jiguê. Falou prós manos que ia numa caçada
longe porém não foi não. Comprou duas garrafas de licor
de butiá catarinense uma dúzia de sanduíches dois abacaxis
de Pernambuco e se amoitou no quartinho. Passado tempo saiu de lá e
falou pra Jiguê, mostrando o embrulho: — Mano Jiguê, no
fim de muitas ruas, você indo, tem uma fruteira trilhada. Vi um poder
de caça, vá ver! O mano espiou desconfiado pra ele porém
Ma cunaíma disfarçou bem: — Olhe, tem paca tatu cotia…
Minto, cotia não enxerguei nenhuma. Paca tatu, cotia não.

Jiguê emprenhava pelas oiças mesmo, foi logo pe gando na espingarda
e falou: — Então vou porém mano jura primeiro que não
brinca com minha obrigação.

Macunaíma jurou pela memória da mãe que nem olhava
pra Suzi. Então Jiguê tornou a pegar na espingarda-pá
e na faca de ponta-tá tatatá e partiu. Ma cunaíma nem
bem Jiguê virou a esquina ajudou Suzi abrindo os embrulhos e botando
uma toalha da renda famosa chamada “Ninho de Abelha” cujo papelão
fora roubado em Muriú do Ceará-Mirim pela danada Geracina da
Ponta do Mangue. Quando tudo ficou pronto os dois pularam na rede e brincaram.
Agora estão se rindo um pro outro. Depois de rirem bastante, Ma cunaíma
falou: — Desarrolha uma garrafa pra gente beber.

— Sim, ela fez. E beberam a primeira garrafa de licor de butiá
que era muito gostoso. Os dois estala ram a língua e pularam na rede
outra vez. Brincaram quanto quiseram. Agora estão se rindo um pro outro.

Jiguê andou légua e meia, foi até no fim das ruas, campeou
a fruteira uns pares de vezes, muito tempo, jacaré achou? nem ele!
Não tinha fruteira nenhuma e Jiguê voltou campeando sempre por
todos os fins das ruas. Afinal chegou subiu no quarto e encontrou mano Macunaíma
com a Suzi já rindo. Jiguê teve raiva e deu uma coca na companheira.
Agora ela está chorando. Jiguê agarrou o herói e chegou
o porrete com vontade nele. Deu que mais deu até Manuel chegar. Manuel
era o criado da pensão, um ilhéu. Agora o herói está
fatigado. E Jiguê que vinha padecendo de fome. então comeu as
sanduíches os abacaxis e bebeu o licor de butiá.

Os dois sovados passaram a noite se lastimando. No outro dia Jiguê
enfarado pegou na sarabatana e saiu pra ver si encontrava à tal de
fruteira. Jiguê era muito bobo. Suzi viu ele sair, enxugou os olhos
e falou pro namorado: — Choremos não.

Então Macunaíma desamarrou a cara e se arran jou pra ir falar
com mano Maanape. Jiguê de volta na pensão perguntou pra Suzi:
— Onde anda o herói? Porém ela estava zangadíssima
e principiou asso biando. Então Jiguê agarrou no porrete, se
chegou pra companheira e disse muito triste: — Vai embora, perdição!
Daí ela sorriu feliz. Catou sem contar todos os pio lhos que restavam
e eram muitos piolhos, atrelou-os a uma cadeira-de-balanço, sentou
nela, os piolhos pu laram e Suzi foi pro céu virada na estrela que
pula. É uma zelação.

O herói nem bem viu Maanape de longe pegou se lastimando. Se atirou
nos braços do mano e contou uma história bem triste provando
que Jiguê não tinha razão nenhuma pra sová-lo tanto.
Maanape ficou zan gado e foi falar com Jiguê. Mas Jiguê também
já vinha pra falar com Maanape. Se encontraram no corredor. Maanape
contou pra Jiguê e Jiguê contou pra Maanape. Então eles
verificaram que Macunaíma era muito safa do e sem caráter. Voltaram
pro quarto de Maanape e toparam com o herói se lastimando. Pra consolar
le varam ele passear na máquina automóvel.

XIV – Muiraquitã

No outro dia de manhã nem bem Macunaíma abriu a janela, enxergou
um passarinho verde. O herói ficou satisfeitíssimo e inda estava
ficando satisfeito quando Maanape entrou no quarto contando que as máquinas
jornais anunciavam a volta de Venceslau Pietro Pietra. Então Macunaíma
resolveu não ter mais contemplação com o gigante e matá-lo.
Saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua
e meia e afinal topou com uma peroba com a sapopemba do ta manho dum bonde.
“Esta serve” ele fez. Enfiou o bra ço na sapopemba, deu arranco
e o pau saiu da terra não deixando nem sinal. “Agora sim que tenho
força!” Macunaíma exclamou. Tornou a ficar satisfeito e
vol tou pra cidade. Porém não podia nem andar porque estava
cheio de carrapatos. Macunaíma com muita pa chorra falou pra eles:
— Ara, carrapatos! vão embora, pessoal. Não de vo nada
pra vocês não! Então a carrapatada caiu no chão
por encanto e foi-se embora. Carrapato já foi gente que nem nós…
Uma feita botou uma vendinha na beira da estrada e fazia muitos negócios
porque não se incomodava de vender fiado. Tanto fiou tanto fiou, tanto
Brasileiro não pagou que afinal carrapato quebrou e foi posto pra fora
da vendinha. Ele agarra tanto na gente por

que está cobrando as contas.

Quando Macunaíma chegou na cidade já era noite fechada e ele
foi logo tocaiar a casa do gigante. Tinha neblina sobre o mundo e a casa estava
sem ninguém de tanta que era a escureza. Macunaíma se lembrou
de procurar uma criada pra brincar mas tinha estacionamento das máquinas
táxis na esquina e as cunhas já estavam brincado por aí.
Macunaíma se lembrou de armar arapuca prós curiós mas
faltava isca. Não havia que fazer e sentiu sono. Porém dormir
não que ria não porque estava esperando Venceslau Pietro Pietra.
Imaginou: “Agora vou vigiar e quando Sono vier enforco ele”. Não
demorou muito viu um vulto chegan do. Era Emoron-Pódole, o Pai do Sono.
Macunaíma fi cou muito parado entre os ninhos de cupim pra não
espantar o Pai do Sono e poder matá-lo. Emoron-Pó dole veio
vindo veio vindo e quando já estava pertinho, o herói cochilou,
bateu com o queixo no peito, mordeu a língua e gritou: — Que
susto! O Sono fugiu logo. Macunaíma seguiu andando muito desapontado.
“Ora veja só! não peguei mas qua se… Vou esperar outra
vez e macacos me lambam si agora não pego o Pai do Sono e enforco ele!”
Assim que o herói refletiu. Tinha um corgo perto com um pau caído
por cima servindo de pinguela. Mais pra lon ge uma lagoa branquejava de luar
porque a neblina já tinha ido-se embora. A vista era quieta e muito
suave por causa da agüinha cantando o acalanto dos pobres. O Pai do Sono
devia de estar amoitado por ali. Ma cunaíma cruzou os braços
e com o olho esquerdo dor mindo ficou imóvel entre os ninhos de cupim.
Não de morou muito enxergou Emoron-Pódole chegando. O Pai do
Sono veio vindo veio vindo e de repente parou. Macunaíma ouviu que
ele falava: — Aquele sujeito não tá morto não.
Morto que não arrota onde se viu! Então o herói arrotou
“juque!” — Onde se viu morto arrotar, gentes! o Sono ca çoou
e fugiu logo.

Por isso que o Pai do Sono inda existe e os homens por castigo não
podem dormir em pé.

Macunaíma ia ficar desapontado com o sucedido quando escutou uma
bulha e enxergou do outro lado do corgo um chofer gesticulando feito chamado.
Ficou muito sarapantado e gritou tiririca: — Isso é comigo, colega!
Sou francesa não! — Sai azar! o rapaz fez.

Então Macunaíma pôs reparo numa criadinha com um vestido
de linho amarelo pintado com extrato de tatajuba. Ela já ia atravessando
o corgo pelo pau. De pois dela passar o herói gritou pra pingela: —
Viu alguma coisa, pau? — Vi a graça dela! — Quá!
quá! quá quaquá!…

Macunaíma deu uma grande gargalhada. Então seguiu atrás
do par. Eles já tinham brincado e descan savam na beira da lagoa. A
moça estava sentada na borda duma igarité encalhada na praia.
Toda nua inda do banho comia tambiús vivos, se rindo pro rapaz. Ele
deitara de bruços na água rente do pés da moça
e ti rava os lambarizinhos da lagoa pra ela comer. A crilada das ondas amontava
nas costas dele porém escor regando no corpo nu molhado caía
de novo na lagoa com risadinhas de pingos. A moça batia com os pés
n’água e era feito um repuxo roubado da Luna espirrando jeitoso, cegando
o rapaz. Então ele enfiava a cabeça na lagoa e trazia a boca
cheia de água. A moça apertava com os pés as bochechas
dele e recebia o jato em cheio na barriga, assim. A brisa fiava a cabeleira
da moça esticando de um em um os fios lisos na cara dela. O mo ço
pôs reparo nisso. Firmando o queixo no joelho da companheira ergueu
o busto da água, estirou o braço pro alto e principiou tirando
os cabelos da cara da moça pra que ela pudesse comer sossegada os tamiús.
Então pra agradecer ela enfiou três lambarizinhos na boca dele
e rindo muito fastou o joelho depressa. O busto do rapaz não teve apoio
mais e ele no sufragante focinhou n’água até o fundo, a moça
inda forçando o pes coço dele com os pés. Ela ia escorregando
sem perce ber de tanta graça que achava na vida. Ia escorregan do e
afinai a canoa virou. Pois deixai ela virar! A moça levou,um tombo
engraçado por cima do rapaz e ele enrolou-se nela talqualmente um apuizeiro
cari nhoso. Todos os tamiús fugiram enquanto os dois brincavam n’água
outra vez.

Macunaíma chegava. Sentou no .fundo da igarité virada, esperando.
Quando viu que eles tinham acaba do de brincar, falou pro chofer: —
Faz três dias que não como, Semana que não escarro, Adão
foi feito de barro, Sobrinho, me dá um cigarro.

O chofer secundou:

— Me desculpe, meu parente, Si cigarro não lhe dou; A palha
o fosfre e o goiano Caiu n’água, se molhou.

— Não se incomode que eu tenho, respondeu Ma cunaíma.
Tirou uma cigarreira de tartaruga feita por Antônio do Rosário
no Pará, ofereceu cigarros de pa lha de tauari pro moço e pra
criadinha, acendeu um fósforo prós dois e outro pra ele. Depois
afastou os mosquitos e principiou contando um caso. Assim a noi te passava
depressa e a gente não se amolava com o canto da sururina marcando
as horas da escuridão. E era assim; — No tempo de dantes, moços,
o automóvel não era uma máquina que nem hoje não,
era a onça parda. Se chamava Palauá e parava no grande mato
Fulano. Vai, Palauá falou prós olhos dela: — Vão
na praia do mar, meus verdes olhos, de pressa depressa depressa! Os olhos
foram e a onça parda ficou cega. Porém levantou o focinho, fez
ele cheirar o vento e percebeu que Aimalá-Pódole, o Pai da Traíra
estava andando lá no longe do mar e gritou: — Venham da praia
do mar, meus verdes olhos, depressa depressa depressa! Os olhos vieram e Palauá
ficou enxergando outra vez. Passava por ali a tigre preta que era muito feroz
e falou pra Palauá: — O que você está fazendo, comadre!

— Estou mandando meus olhos olharem o mar.

— É bom? — Prós cachorros! — Então
manda os meus também, comadre! — Mando não porque Aimalá-Pódole
está na praia do mar.

— Manda que sinão te engulo, comadre! Então Palauá
falou assim: — Vão na praia do mar, amarelos olhos de minha comadre
tigre, depressa depressa depressa! Os olhos foram e a tigre preta ficou cega.
Aimalá-Pódole estava lá e juque! engoliu os olhos da
tigre. Palauá maliciou tudo porque o Pai da Traíra estava cheirando
mui forte. Foi tratando de se raspar. Porém a tigre preta que era mui
feroz presenciou a fugida e falou pra onça parda: — Espera um
pouco, comadre! — Não vê que careço de buscar janta
pra meus fi lhos, comadre. Então até outro dia.

— Primeiro manda meus olhos voltarem, comadre, que já tomei
um fartão de escureza.

Palauá gritou: — Venham da praia do mar, amarelos olhos de
minha comadre tigre, depressa depressa depressa! Porém os olhos não
voltaram não e a tigre preta ficou feito fúria.

— Agora que te engulo, comadre! E correu atrás da onça
parda. Foi uma chispada mãe por esses matos que chii! os passarinhos
se tor naram pequetitinhos pequetitinhos de medo e a noite levou um susto
tamanho que ficou paralítica. Por isso que quando faz dia em riba das
árvores, dentro do ma to é sempre noite. A coitada não
pode mais andar…

Quando Palauá correu légua e meia olhou pra trás fatigada.
A tigre preta vinha perto. Vai, Palauá che gou num morro chamado Ibiraçoiaba
e topou com um bigorna gigante, aquela uma que pertencia à fundição
de Afonso Sardinha no princípio da vida brasileira. Junto da bigorna
estavam quatro rodas esquecidas. En tão Palauá amarrou elas
nos pés pra poder deslizar sem muito esforço e, como se diz:
desatou o punho da rede outra vez, uma chispada mãe! A onça
engoliu num átimo légua e meia de terreno porém isso
vinha que vi nha acochada pela tigre. Faziam um barulhão tama nho que
os passarinhos estavam pequetitinhos pequeti tinhos de medo e a noite mais
pesada por causa que não podia andar. E a bulha inda era assombrada
pelos gemidos do noitibó… Noitibó é Pai da Noite, moços,
e chorava a miséria da filha.

Bateu fome em Palauá. A tigre na cola dela. Mas Palauá nem
não podia mais correr assim com o estôma go nas costas, vai»
em de mais longe quando passou pela barra do Boipeba onde o cuisarruim morou,
viu um mo tor perto e engoliu o tal. Nem bem motor caiu na barriga da onça
que a pobre criou força nova e chispou. Fez légua e meia e olhou
pra trás. Isso a tigre preta vinha feita pra cima dela. Estava uma
escureza que só vendo por causa da malinconia da noite e bem na frente
dum feixo a onça deu uma trombada temível no derrame dum morrete,
que por um triz, era uma vez Palauá! Vai, ela abocanhou dois vagalumões
e seguiu com eles nos dentes pra alumiar caminho. Nem bem fez outra légua
e meia olhou pra trás. A tigre junto. Era por causa que a onça
parda cheirava muito e a peste da cega tinha faro de perdigueiro. Vai, Palauá
ingeriu um purgante de óleo de mamona, pegou numa lata da essência
chamada gasolina, despejou no x e lá foi fuomfuom! fuom! que nem burro
peidorreiro por aí. A bulha foi tamanha que nem se escutou o tinido
as sombrado dos pratos partidos do morro do Assobio ali. A tigre preta ficou
toda atrapalhada por causa que era cega e não cheirava mais a catinga
da comadre. Palauá correu mais muito e olhou pra trás. Não
enxergou a tigre. Também nem não podia mais correr com as fuças
fumegando de quentura. Tinha ali perto um bana nal macota com um pauê
na faixa porque Palauá já tinha chegado no porto de Santos.
Vai, a bicha der ramou água cansada no focinho e desesquentou. De pois
cortou uma folha açu de banana-figo e se escon deu botando ela por
riba feito capote. Dormiu assim. A tigre preta que era muito feroz até
passou por ali, onça nem pio. E a outra passou não presenciando
a comadre. Então de medo a onça nunca mais que lar gou de tudo
o que tinha ajudado ela fugir. Anda sem pre com roda nos pés, motor
na barriga, purgante de óleo na garganta, água nas fuça?,
gasolina no osso-de-Pai-João, os dois vaga-lumes na boca e o capote
de fo lha de banana-figo cobrindo, ai ai! prontinha pra chispar. Principalmente
si pisa nalguma correição da for miga chamada taxi e alguma
trepando no pelame luzido morde a orelha dela, qual! chispa que nem Deus!
E inda tomou nome estranho pra disfarçar mais. É a máquina
automóvel.

Mas por causa que bebeu água cansada Palauá te ve estupor.
Possuir automóvel de seu é ter estupor em casa, moços.’
Dizem que mais tarde a onça pariu uma ninhada enorme. Teve filhos e
filhas. Uns machos outros fêmeas. Por isso que a gente fala “um
forde” e fala “uma chevrolé”…

Tem mais não.” Macunaíma parou. Chorava comoção
pela boca dos moços. Sobre as águas a fresca boiava de barriga
pro ar. O rapaz mergulhou á cabeça pra disfarçar a lá
grima e trouxe um tabiú nos dentes rabejando danadinho. Repartiu a
comida com a moça. Então lá na porta da casa uma onça
fíate abriu a goela e urrou pra Lua: — Baúa, Baúa!
Se escutou uma bulha formidável e tomou conta do ar um pitium sufocado.
Era Venceslau Pietro Pietra que chegava. O motorista se ergueu logo e a criada
também. Estenderam a mão pra Macunaíma, convi dando:
— Seu gigante chegou de viagem, vamos todos saber como está?
Fizeram. Encontraram Venceslau Pietro Pietra na porta-da-rua conversando com
repórter. O gigante rio prós três e falou pro motorista:
— Vamos lá dentro? — Pois não! Piaimã possuía
orelhas furadas por causa dos brin cos. Enfiou uma perna do rapaz na orelha
direita, a outra na esquerda e foi carregando o moço nas costas. Atravessaram
o parque e entraram na casa. Bem no meio do hol de acapu mobiliado com sofás
de cipó-titica feitos por um judeu alemão de Manaus, se via
um buraco enorme tendo por cima um cipó de japecanga feito ba lanço.
Piaimã sentou o moço no cipó e perguntou pra ele si queria
balançar um bocado. O moço fez que sim. Piaimã balançou
balançou, de repente deu um arranco. Japecanga tem espinho… Os espinhos
entraram na carne do chofer e principiou escorrendo sangue no buraco.

— Chega! já estou satisfeito! que o chofer gritava.

— Balança que vos digo! secundava Piaimã.

Sangue escorrendo. A caapora companheira do gi gante estava lá em
baixo do buraco e o sangue pingava numa tachada de macarrão que ela
preparava pro com panheiro. O rapaz gemia no balanço: — Ah, si
eu possuísse meu pai e minha mãe a meu lado não estava
padecendo nas mãos deste malvado!…

Então Piaimã deu um arranco muito forte no cipó e o
rapaz caiu no molho da macarronada.

Venceslau Pietro Pietra foi buscar Macunaíma. O herói já
estava se rindo com a criadinha. O gigante fa lou pra ele: — Vamos lá
dentro? Macunaíma estendeu os braços sussurrando: — Ai!…
que preguiça!.. .

— Ora vamos!… Vamos? — Pois sim…

Então Piaimã fez pra ele como fizera pro chofer, carregou
o herói nas costas de cabeça pra baixo pren didos os pés
nos buracos das orelhas. Macunaíma apru mou a sarabatana e assim de
cabeça pra baixo era ver um atirador malabarista de circo, acertando
nos ovinhos do alvo. O gigante ficou muito incomodado virou e percebeu tudo.

— Faz isso não, patrício! Tomou a sarabatana e jogou
longe, Macunaíma agarrava quanto ramo caía na mão dele.

— Que você está fazendo? perguntou o gigante ressabiado.

— Não vê que os ramos estão batendo na minha cara!
Piaimã virou o herói de cabeça pra cima. Então
Macunaíma fez cócegas com os ramos nas orelhas do gigante. Piaimã
dava grandes gargalhadas e pulava de gozo.

— Não amola mais, patrício! ele fez. Chegaram no hol.
Por debaixo da escada tinha uma gaiola de ouro com passarinhos cantadores.
E os passarinhos do gigante eram cobras e lagartos. Ma cunaíma pulou
na gaiola e principiou muito disfarçado comendo cobra. Piaimã
convidava-o pra vir no balanço porém Macunaíma engolia
cobras contando: — Falta cinco…

E engolia mais outra bicha. Afinal as cobras se^ acabaram e o herói
cheio de raiva desceu da gaiola com o pé direito. Olhou cheio de raiva
pro gatuno da muiraquitã e rosnou: — Hhhm… que preguiça!
Mas Piaimã insistia pro herói balangar.

— Eu até que nem não sei balançar. . . Milhor
você vai primeiro, que Macunaíma rosnou.

— Que eu nada, herói! É fácil que-nem beber água
Assuba na japecanga, pronto: eu balanço! — Então aceito
porém você vai primeiro, gigante. Piaimã insistiu, mas
ele sempre falando pro gigante balançar primeiro. Então Venceslau
Pietro Pietra amontou no cipó e Macunaíma foi balançando
cada vez mais forte. Cantava:

“Bão-ba-lão Senhor capitão, Espada na cinta Ginete
na mão!”

Deu um arranco. Os espinhos ferraram na carne do gigante e o sangue espirrou.
A caapora lá em baixo não sabia que aquela sangueira era do
gigante dela e aparava a chuva na macarronada. Molho engrossando.

Pára! Pára! Piaimã gritava.

— Balança que vos digo! secundava Macunaíma. Balançou
até o gigante ficar bem tonto e então deu um arranco fortíssimo
na japecanga. Era porque tinha comido cobra e estava furibundo. Venceslau
Pietro Pie tra caiu no buraco berrando cantado: — Lem lem lem… si
desta escapar, nunca mais como ninguém! Enxergava a macarronada fumegando
lá em baixo e berrou pra ela.

— Afasta que vos engulo! Porém jacaré fastou? nem tacho!
O gigante caiu na macarronada fervendo e subiu no ar um cheiro tão
forte de couro cozido que matou todos os ticoticos da cidade e o herói
teve uma sapituca. Piaimã se debateu muito e já estava morre-não-morre.
Num esforço gi gantesco inda se ergueu no fundo do tacho. Afastou os
macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu
a bigodeira: — Falta queijo! exclamou… E faleceu.

Este foi o fim de Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã
comedor de gente.

Macunaíma quando voltou da sapituca foi buscar a muiraquitã
e partiu na máquina bonde pra pensão. E chorava gemendo assim:
— Muiraquitã, muiraquitã de minha bela, vejo você
mas não vejo ela!…

XV – A Pacuera de Oibê

Então os três manos voltaram pra querência deles.

Estavam satisfeitos porém o herói inda mais con tente que
os outros porque tinha os sentimentos que só um herói pode ter:
uma satisfa imensa. Partiram. Quando atravessaram o pico do Jaraguá
Macunaíma virou pra trás contemplando a cidade macota de São
Paulo. Maginou sorumbático muito tempo e no fim sacudiu a cabeça
murmurando: — Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil
são…

Enxugou a lágrima, consertou o beicinho tremendo. Então fez
um caborge: Sacudiu os braços no ar e virou a taba gigante num bicho
preguiça todinho de pedra. Partiram.

Depois de muito refletir, Macunaíma gastara o ara me derradeiro comprando
o que mais o entusiasmara na civilização paulista. Estavam ali
com ele o revólver Smith-Wesson o relógio Pathek e o casal de
galinha Legorne. Do revólver e do relógio Macunaíma fizera
os brincos das orelhas e trazia na mão uma gaiola com o galo e a galinha.
Não possuía mais nem um tostão do que ganhara no bicho
porém lhe balangando no beiço furado pendia a muiraquitã.

E por causa dela tudo ficara mais fácil. Desciam de rodada o Araguaia
e quando Jiguê remava Maanape manejava o joão-de-pau. Se sentiam
marupiaras outra vez. Pois então Macunaíma adestro na proa tomava
nota das pontes que carecia construir ou consertar pra facilitar a vida do
povo goiano. Noite chegada, enxer gando as luzinhas dos afogados sambando
manso nas ipueiras da cheia, Macunaíma olhava olhava e adormecia bem.
Acordava esperto no outro dia e erguido na proa da igarité com o argolão
da gaiola enfiado no braço esquerdo, repinicava na violinha botando
a boca no mundo cantando saudades da querência, assim: Antianti é
tapejara, — Pirá-uauau, Ariramba é cozinheira, —
Pirá-uauau, Tapera, onde a tapera.

Da beira do Uraricoera? — Pirá-uauau.

E o olhar dele espichando espichando descia a pele do rio em busca dos pagos
da infância. Descia e cada cheiro de peixe cada moita de craguatá
cada tudo pu nha entusiasmo nele e o herói botava a boca no mundo feito
maluco fazendo emboladas e traçados sem sentido: Tapera tapejara, —
Caboré, Arapaçu passoca, — Caboré, Manos, vamos-se
embora Pra beira do Uraricoera! — Caboré!

As águas araguaias murmurejavam chamando a reta da igarité
com gemidinho e lá do longe vinha a cantiga pequenta das uiaras. Vei,
a Sol, dava lambadas no costado relumeando suor de Maanape e Jiguê remeiros
e no cabeludo corpo em pé do herói. Era um calorão molhado
fazendo fogo no delírio dos três. Macunaíma se lembrou
que era imperador do Mato-Virgem. Riscou um gesto na Sol, gritando: —
Eropita boiamorebo! Logo o céu se escurentou de sopetão e uma
nuvem ruivor subiu do horizonte entardecendo a calma do dia. A ruivor veio
vindo veio vindo e era o bando de araras vermelhas e jandaias, todos esses
faladores, era o papagaio-trombeta era o papagaio-curraleiro era o periquito
cutapado era o xarã o peito-roxo o ajuru-curau o ajuru-curica arari
ararica araraúna araraí araguaí arara-taua maracana maitaca
arara-piranga catorra teriba camiranga anaca anapura canindés tuins
periquitos, todos esses, o cortejo sarapintado de Macunaíma im perador.
E todos esses faladores formaram uma tenda de asas e de gritos protegendo
o herói do despeito vingarento da Sol. Era uma bulha de águas
deuses e pas sarinhos que nem se escutava mais nada e a igarité meio
parava atordoada. Mas Macunaíma assustando os legornes riscava de quando
em vez um gesto diante de tudo e gritava: — Era uma vez uma vaca amarela,
quem falar primeiro come a bosta dela! Dem-de-lem chegou! O mundo ficava mudo
não falando um isto e o si lêncio vinha amulegar a mornidão
da sombra na iga rité. E se escutava lá no longe lá no
longe baixinho baixinho o ruidejar do Uraricoera. Então dava mais entusiasmo
no herói. A violinha repinicava tremida. Macunaíma pigarreava
atirando gusparadas no rio e en quanto o guspe afundava transformado em mata-matás
nojentos, o herói botava a boca no mundo feito maluco sem nem saber
o que cantava, assim:

Panapaná pá-panapaná, Panapaná pá-panapanema:
Papa de papo na popa, — Maninha, Na beira do Uraricoera!

Depois a bôca-da-noite engoliu todas as bulhas e o mundo adormeceu.
Tinha só Capei, a Lua, enorme de gorda, rechonchuda que-nem cara das
polacas depois duma noite daquelas, puxavante! quanta sacanagem fe liz quanta
cunha bonita e quanto cachiri… Então Macunaíma teve saudades
do sucedido na taba grande paulistana. Viu todas aquelas donas de pele alvinha
com quem brincara de marido e mulher, foi tão bom!… Sussurrou docemente:
“Mani! Mani! filhinhas da man dioca!” … Deu um tremor comovido
no beiço dele que quase a muiraquitã cai no rio. Macunaíma
tornou a enfiar o tembetá no beiço. Então pensou muito
sério na dona da muiraquitã, na briguenta, na diaba gostosa
que batera tanto nele, Ci. Ah! Ci, Mãe do Mato, marvada que tornara-se
inesquecível porque fizera ele dormir na rede tecida com os cabelos
dela!… “Quem tem seus amores longe, passa trabalhos trianos…”
parafusou. Quê caborge da marvada!… E estava lá no campo do
céu banzando nuns trinques toda enfeitada passean do brincando quem
sabe com quem… Teve ciúmes. Ergueu os braços pro alto assustando
os legornes e re zou pro Pai do Amor:

Rudá! Rudá! Tu que estás no céu

E mandas nas chuvas.

Rudá! faz com que minha amada Por mais companheiros que arranje Ache
que todos são frouxos! Assopra nessa marvada Sodades do seu marvado!
Faz com que ela se lembre de mim amanhã Quando a Sol for-se embora
no poente !…

Olhou bem pro ar. Não tinha Ci não, Capei só, gordanchona,
tomando tudo. O herói deitou de comprido na igarité, fez um
cabeceiro da gaiola e ador

meceu entre maruins piuns muriçocas.

A noite já estava amarelando quando Macunaíma acordou com
os gritos dos viras num bambuzal. Assun tou a vista e deu um pulo na praia,
falando pra Jiguê: — Espera um bocadinho.

Entrou no mato bem, légua e meia. Foi buscar a linda Iriqui, companheira
dele que já fora companheira de Jiguê e esperava se enfeitando
e cocando mucuim assentada nas raízes da samaúma. Os dois se
festeja ram, muito brincaram e vieram pra igarité.

Quando foi ali pelo meio-dia a papagaiada se es tendeu de novo resguardando
Macunaíma. E assim por muitos dias. Uma tarde o herói estava
muito enfarado e se lembrou de dormir em terra firme, fez. Nem bem pisou na
praia e se ergueu na frente dele um mons tro. Era o bicho Ponde um jucurutu
do Solimões que virava gente de-noite e engolia os estradeiros. Porém
Macunaíma pegou na flecha que tinha na ponta a ca beça chata
da formiga santa chamada curupê e nem fez pontaria, acertou que foi
uma beleza. O bicho Ponde estourou virando coruja. Mais pra diante depois
de atravessado um chato quando subia por um espigão cheio de crocas
topou com o Monstro Mapinguari macaco-homem que anda no mato fazendo mal pràs
moças. O monstro agarrou Macunaíma porém o herói
tirou o toaquiçu pra fora e mostrou pro Mapinguari.

— Não confunde não, parceiro! O monstro riu e deixou
Macunaíma passar. O he rói andou légua e meia procurando
um pouso sem for miga. Subiu na ponta dum cumaru de quarenta me tros e afinal
depois de muito campear descobriu uma luzinha longe. Foi lá e topou
com um rancho. E era o rancho de Oibê. Macunaíma bateu e uma
vozica mui doce gemeu de lá dentro: — Quem vem lá! —
É de paz! Então a porta se abriu e apareceu um bicho tama nho
que sarapantou o herói. Era o monstro Oibê o minhocão
temível. O herói sentiu friagem por dentro mas se lembrou do
smith-wesson, criou coragem e pediu pou sada.

— Entre que a casa é sua.

Macunaíma entrou, sentou numa canastra e ficou assim. Afinal perguntou:
— Vamos conversar? — Vamos.

— Sobre o quê? Oibê cocou a barbicha matutando e de repente
des cobriu satisfeito: — Vamos conversar porcaria? — Chi! gosto
disso que é um horror! o herói ex clamou: E conversaram uma
hora de porcariada.

Oibê estava cozinhando a comidinha dele. Ma cunaíma não
tinha fome nenhuma porém botou a gaiola no chão e só
de embusteiro esfregando a mão na barriga fez: — Juque! Oibê
resmungou: — Que é isso, gente! — É fome é
fome! Oibê pegou numa gamela, botou cará com feijão dentro,
encheu uma cuia com farinha-d’água e ofere ceu pro herói. Mas
não deu nem um tiquinho de pacuera assando no espeto de canela de sassafrás
e aro mando bem. Macunaíma engoliu tudo sem mastigar e não tinha
fome nenhuma porém a boca dele ficou cheia de água por causa
da pacuera assando. Esfregou a mão na barriga e fez: .

— Juque! Oibê resmungou: — Que é isso, gente! —
É sede é sede! Oibê pegou no balde e foi buscar água
no poço. Enquanto ia, Macunaíma tirou a canela de sassafrás
das brasas engoliu a pacuera inteira sem mastigar e fi cou bem sossegado esperando.
Quando o minhocão trouxe o balde Macunaíma bebeu um coco cheio.
De pois se espreguiçando suspirou: — Juque! O monstro se sarapantou:
— Que mais que é, gente! — É sono é sono!
Então Oibê levou Macunaíma pro quarto-de-hóspedes
deu boa-noite e fechou a porta por fora. Foi cear. Macunaíma botou
a gaiola num canto, cobrindo o ca sal de galinhas com umas chitas. Assuntou
o quarto bem. Tinha uma bulhinha sem parada vinha de todos os lados. Macunaíma
bateu a pedra do isqueiro e viu que eram baratas. Trepou assim mesmo na rede
não sem espiar mais uma vez si não faltava nada prós
legornes. O casal estava até bem satisfeito comendo barata. Macunaíma
se riu pra ele, arrotou e adorme ceu. Daí a pouco estava coberto de
baratas lambendo.

Quando Oibê pôs reparo que Macunaíma tinha comido a pacuera,
teve raiva. Agarrou num sininho, se embrulhou num lençol branco e foi
fazer assombra ção pro hóspede. Mas era só de
brincadeira. Bateu na porta e manejou o sininho, de-lem! — Oi? —
Vim buscar minha pacuera-cuera-cuera-cuera-cuera, de-lem! Abriu a porta. Quando
o herói enxergou a assom bração ficou com tanto medo
que nem se mexeu. Ele não sabia que era Oibê não. A fantasma
vinha vindo: — Vim buscar minha pacuera-cuera-cuera-cuera cuera, de-lem!
Então Macunaíma percebeu que não era assom bração
nada, era mas o monstro Oibê minhocão temível. Criou coragem
pegou no brinco da orelha esquerda que era a máquina revólver
e deu um tiro na assombração. Porém Oibê não
fez caso e veio vindo. O herói tornou a ter medo. Pulou da rede agarrou
a gaiola e escafedeu pela janela, jogando baratas no caminho todo. Oibê
correu atrás. Mas era só de brincadeira que ele queria comer
o herói. Macunaíma desembestara agres te fora mas isso ia que
ia acochado pelo minhocão. Então botou o furabolo na goela,
fez cosquinha e lan çou a farinha engolida. A farinha virou num areão
e enquanto o monstro pelejava pra atravessar aquele mundo de areia escorregando,
Macunaíma fugia. To mou pela direita, desceu o morro do Estrondo que
soa de sete em sete anos seguiu por uns caponetes e depois de cortar um travessão
encapelado fez o Sergipe de ponta a ponta e parou ofegando num agarrado muito
pedregoso. Na frente havia uma lapa grande furada por uma furna com um altarzinho
dentro. Na boca da socava um frade. Macunaíma perguntou pro frade:
— Como se chama o nome de você? O frade pôs no herói
uns olhos frios e secundou com pachorra: — Eu sou Mendonça Mar
pintor. Desgostoso da injustiça dos homens faz três séculos
que afastei-me deles metendo cara no sertão. Descobri esta gruta ergui
com minhas mãos este altar do Bom Jesus da Lapa e vivo aqui perdoando
gente mudado em frei Francisco da Soledade.

— Está bom, Macunaíma falou. E partiu na chispada.

Mas o terreno era cheio de socavas e logo adiante estava outro desconhecido
fazendo um gesto tão bobo que Macunaíma parou sarapantado. Era
Hercules Florence. Botara um vidro na boca duma furna mirim, tapava e destapava
o vidro com uma folha de taioba. Macunaíma perguntou: — Ara,
ara ara! Mas você não me dirá o quê que está
fazendo aí, siô! O desconhecido virou pra ele e com os olhos
relumeando de alegria falou: — Gardez cette date: 1927! Je viens d’inventer
Ia photographie! Macunaíma deu uma grande gargalhada.

— Chi! Isso já inventaram que anos, siô! Então
Hercules Florence caiu estuporado sobre a folha de taioba e principiou anotando
com música uma memória científica sobre o canto dos passarinhos.
Es tava maluco. Macunaíma chispou.

Depois que correu légua e meia olhou pra trás e viu que Oibê
já vinha perto. Botou o furabolo na goela e lá foi pro chão
todo o cará engolido que virou num tartarugal mexemexendo. Oibê
custou pra virar aquela imundície de tartaruga e Macunaíma fugiu.
Légua e meia adiante olhou pra trás. Isso Oibê vinha na
cola dele. Então tornou a botar o furabolo na goela e lan çou
que era só feijão e água. Tudo virou num lamedo cheio
de sapos-bois e quanto Oibê se debatia atraves sando aquilo, o herói
catava umas minhocas pras ga linhas e partia afobado. Ganhou muita dianteira
e pa rou pra descansar. Ficou bem admirado porque tinha corrido tanto que
estava outra feita na porta do rancho de Oibê. Resolveu se esconder
no pomar. Tinha um pé de carambola e Macunaíma principiou arrancando
ra mos do caramboleiro pra se amoitar por debaixo. Os ramos cortados agarram
pingando água de lágrima e se escutou o lamento do caramboleiro:

Jardineiro de meu pai, Não me, cortes meus cabelos, Que o malvado
me enterrou Pelo figo da figueira

Que passarinho comeu…

— Chó, chó, passarinho!

Todos os passarinhos choraram de pena gemida nos ninhos e o herói
gelou de susto. Agarrou no patuá que trazia entre os berloques do pescoço
e traçou uma mandinga. O caramboleiro virou numa princesa muito chique.
O herói teve um desejo danado de brincar com a princesa porém
Oibê já devia de estar estourando por aí. De-fato: —
Vim buscar minha pacuera-cuera-cuera-cuera-cuera, de-lem! Macunaíma
deu a mão pra princesa e fugiram na disparada. Mais adiante havia uma
figueira com a sapopemba enorme. Oibê estava já no calcanhar
deles e Macunaíma não tinha tempo mais pra nada. Então
se meteu com a princesa no buraco da sapopemba. Mas o minhocão enfiou
o braço e inda agarrou a perna do herói. Ia puxar mas Macunaíma
deu uma grande gar galhada de experiência e falou: — Você
está maginando que pegou minha gâmbia, pegou não! Isso
é raiz, bocó! O minhocão largou. Macunaíma gritou:
— Pois era a perna mesmo bocó-de-mola! Oibê tornou a enfiar
o braço mas o herói já, tinha encolhido a perna e o minhocão
só achou raiz. Tinha uma garça perto. Oibê falou pra ela:

— Comadre garça, bote sentido no herói. Não deixa
ele sair que vou buscar uma enxada pra cavar.

A garça ficou guardando. Quando Oibê já estava longe
Macunaíma falou pra ela: — Então, sua palerma, é
assim que se bota sen tido num herói! Fique bem perto arregalando os
olhos! A garça fez. Então Macunaíma atirou um punha do
de formigas-de-fogo nos olhos dela e enquanto a gar ça gritava de cega
ele saiu do buraco com a princesa e escafederam outra vez. Perto de Santo
Antônio do Mato Grosso toparam com uma bananeira e estavam morrendo
de fome. Macunaíma falou pra princesa: — Assobe, come as verdes
que são boas e atira as amarelas pra mim.

Ela fez. O herói se fartou enquanto a princesa dançava de
eólicas pra ele apreciar. Oibê já vinha che gando e eles
desataram o punho da rede outra vez.

Depois de correrem mais légua e meia, enfim che garam num firme pontudo
do Araguaia. Porém a igarité estava abicada bem mais pra baixo
na outra mar gem com Maanape Jiguê a linda Iriqui, todos esses companheiros
dormindo. Macunaíma olhou pra trás. Oibê quase ali. Então
botou o furabolo na goela pela última vez, fez cosquinha e alojou a
pacuera n’água. A pacuera virou num periantã muito fofo de ervas.
Macunaíma botou a gaiola com jeito no fofo, atirou a princesa lá
e dando um arranco na margem com o pé, afastou da praia o periantã
que as águas levaram. Oibê chegou mas os fugitivos iam longe.
Então o minhocão que era um lobisomem famoso principiou tremelicando
criou rabo e virou cachorro-do-mato. Escancarou a goela desencantada e saiu
da barriga dele uma bor boleta azul. Era alma de homem presa no corpo do lobo
por artes do Carrapatu medonho que pára na gruta do Iporanga.

Macunaíma e a princesa brincando desciam a cor rente do rio. Agora
estão se rindo um pro outro.

Quando passaram rente da igarité os manos se acordaram com os gritos
de Macunaíma e foram atrás. Iriqui ficou logo enciumada porque
o herói não queria saber mais dela e só brincava com
a princesa. E pra ver si reconquistava o herói abriu num bué
famoso. Jiguê teve logo muita pena dela e falou pra Macunaíma
ir brincar com Iriqui um poucadinho. Jiguê era muito bobo. Mas o herói
que já andava impinimando com Iriqui secundou pra ele: — Iriqui
é muito relambória, mano, mas a prin cesa, upa! Não dê
credito pra Iriqui não! Oi que Sol de inverno chuva de verão
choro de mulher palavra de ladrão, eieiei… ninguém não
caia não! E foi brincar com a princesa. Iriqui ficou triste triste,
bem triste, chamou seis araras canindés e subiu com elas pro céu,
chorando luz virada numa estrela. As canindés amarelinhas também
viraram estrelas. É o Setestrêlo.

NO outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma febrinha sem
parada. Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de abacate, imagi
nando que o herói estava hético. Em vez era impalu dismo, e
a tosse viera só por causa da laringite que toda a gente carrega de
São Paulo. Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco
na proa da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa
não podia mais e vinha pra brincarem, o herói até uma
vez recusou suspirando: — Ara… que preguiça…

No outro dia atingiram as cabeceiras dum rio e escutaram perto o ruidejar
do Uraricoera. Era ali. Um passarinho serigaita trepado na munguba, enxergando
o farrancho gritou logo: — Sinhá dona do porto, dá caminho
pra mim passar! Macunaíma agradeceu feliz. De pé ele assuntava
a paisagem passando. Veio vindo o forte São Joaquim erguido pelo mano
do grande Marquês. Macunaíma deu um té-logo pro cabo e
pro soldado que só possuíam um naco esfarrapado de culote e
o boné na cabeça e viviam guardando as saúvas dos canhões.
Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Se enxergou o cerro manso que fora
mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, se enxergou o pauê
trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os puraquês
e os pitiús e pra diante do be bedouro da anta se viu o roçado
velho agora uma tigüera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma
chorou.

Abicaram e entraram na tapera. Vinha a bôca-da-noite. Maanape com
Jiguê resolveram fazer uma facheada pra pegarem algum peixe e a princesa
foi ver si topava com algum arezi pra comerem. O herói ficou descansando.
Estava assim quando sentiu no ombro um peso de mão. Virou a cara e
olhou. Junto dele estava um velho de barba. O velho falou: — Quem és
tu, nobre estrangeiro? — Não sou estranho não, conhecido.
Sou Macunaíma o herói e vim parar de novo na terra dos meus.
Você quem é? O velho afastou os mosquitos com amargura e secundou:
— Sou João Ramalho.

Então João Ramalho enfiou dois dedos na boca e assoviou. Apareceram
a mulher dele as quinze famí lias de escadinha. E lá partiram
de mudança buscando pagos novos sem ninguém.

No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado
Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou,
subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra
buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré
achou? nem ele. Então o herói pegou na cons ciência dum
hispanoamericano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma.

Passava uma piracema de jaraquis. Macunaíma agarrou pescando e distraído
distraído quando viu es tava em Óbidos, a montaria cheinha de
peixes frescos. Mas o herói foi obrigado a atirar tudo fora porque
em Óbidos “quem come j ar aqui fica aqui” falam e ele ti
nha que voltar pro Uraricoera. Voltou e como era ainda o pino do dia deitou
na sombra da ingazeira catou os carrapatos e dormiu. Tarde chegando todos
voltaram pra tapera só Macunaíma não. Os outros saíram
pra esperar. Jiguê se acocorou botando a orelha no chão pra ver
si escutava o passinho do herói, nada. Maanape trepou no grelo duma
inajá pra ver si enxer gava o brilho dos brincos do herói, nada.
Então saíram por mato e capoeira gritando: — Macunaíma,
nosso mano!…

Nada. Jiguê chegou debaixo da ingazeira e gritou: — Nosso mano!
— Que foi! — Você, aposto que já estava dormindo!
— Dormindo nada, então! Estava mas era nega ceando um inambu-guaçu.
Você fez bulha, nhambu escapoliu! Voltaram. E assim todos os dias. Os
manos an davam muito desconfiados. Macunaíma percebeu e disfarçou
bem: — Eu caço porém não acho nada não.
Jiguê nem caça nem pesca, passa o dia dormindo.

Jiguê teve raiva porque peixe andava rareando e caça inda mais.
Foi na praia do rio pra ver si pescava alguma coisa e topou com o feiticeiro
Tzaló que tem uma perna só. O catimbozeiro possuía uma
cabaça encantada feita com a metade duma casca de gerimum. Mergulhou
a cabaça no rio, encheu de água até o meio e despejou
na praia. Caiu um despropósito de peixe. Jiguê reparou bem como
que o feiticeiro fazia. Tzaló largou da cabaça por aí
e principiou matando peixe com um porrete. Então Jiguê roubou
a cabaça do fei ticeiro Tzaló que tem uma perna só.

Mais pra diante fez que-nem tinha reparado e veio muito peixe, veio pirandira
veio pacu veio cascudo veio bagre jundiá tucunaré, todos esses
peixes e Jiguê vol tou carregado pra tapera depois de esconder a cabaça
na raiz do cipó. Todos ficaram sarapantados com aquele mundo de peixe
e comeram bem. Macunaíma desconfiou.

No outro dia esperou com o olho esquerdo dor mindo que Jiguê fosse
pescar, saiu atrás. Descobriu tudo. Quando o mano foi-se embora Macunaíma
lar gou da gaiola com os legornes no chão pegou na cabaça escondida
e fez que-nem o mano. Isso vieram muitos peixes, veio acará veio piracanjuba
veio aviú guri-juba, piramutaba mandi surubim, todos esses peixes.
Macunaíma atirou a cabaça por aí, na pressa de matar
todos os peixes, cabaça caiu numa lapa e juque! mer gulhou no rio.
Passava a pirandira chamada Padzá. Imaginou que era abobra e engoliu
a cabaça que virou na beixiga de Padzá. Então Macunaíma
enfiou a gaiola no braço voltou pra tapera e contou o sucedido. Jiguê
teve raiva.

— Cunhada princesa, eu que pesco, seu compa nheiro fica dormindo em
baixo da ingazeira e inda atra palha os outros! — Mentira! — Então
o que você fez hoje? — Cacei viado.

— Quê-dele ele! — Comi, uai! Fui andando por um caminho,
vai, topei rasto dum… catingueiro não era não mas era mateiro.
Me agachei e fui no rasto. Olhando olhando, sabe, dei uma cabeçada
numa coisa mole, que engra çado! sabem o que era! pois a bunda do viado,
gente! (Macunaíma deu uma grande gargalhada). Viado per guntou pra
mim: — Que está fazendo aí, parente!, — Te campeando!
secundei. E vai, matei o catingueiro que comi com tripa e tudo. Vinha trazendo
um naco pra vocês, vai, escorreguei atravessando o ipu, dei um tombo,
naco foi parar longe e tanajura sujou nele.

A peta era tamanha que Maanape desconfiou. Maanape era feiticeiro. Chegou
bem rente do mano e perguntou: — Você foi na caça? —
Quer dizer… fui sim.

— O quê você caçou? — Viado.

— Qual! Maanape fez um grande gesto. O herói piscou de medo
e confessou que tudo era lorota.

No outro dia Jiguê estava procurando a cabaça quando topou
com o tatu-canastra feiticeiro chamado Caicãe que nunca teve mãe.
Caicãe sentado na porta da toca puxou a violinha dele feita com a outra
metade da abobra encantada e agarrou cantando assim:

“Vote vote coandu! Vote vote cuati! Vote vote taiçu! Vote vote
pacari! Vote vote canguçu! Êh!…”

Assim. Vieram muitas caças. Jiguê, reparando. Caicãe
atirou a violinha encantada por aí, pegou num porrete e foi matar todo
aquele poder de caças que esta vam feito bobas. Então Jiguê
roubou a violinha do feiticeiro Caicãe que nunca teve mãe.

Mais pra diante cantou que nem tinha escutado e veio um dilúvio de
caça parando na frente dele. Jiguê voltou carregado pra tapera
depois de esconder a violi nha na raiz de outro cipó. Todos tornaram
a se espan tar e comeram bem. Macunaíma tornou a desconfiar.

No outro dia esperou com o olho esquerdo dor mindo que Jiguê partisse,
foi atrás. Descobriu tudo. Quando o mano voltou pra tapera Macunaíma
pegou na violinha, fez talequal reparara e veio uma imundície de caça,
viados cotias tamanduás capivaras tatus aperemas pacas graxains lontras
muçuãs catetos monos tejus queixadas antas, a anta sabatira,
onças, a onça pinima a papa-viado a jaguatirica, suçuarana
canguçu pixuna, isso era uma imundície de caças! O herói
teve medo daquela bicharada tamanha e saiu numa carreira mãe pinchando
a violinha longe. A gaiola enfiada no braço dele ia batendo nos paus
e o galo com a galinha faziam um cacarejo de ensurdecer. O herói imaginava
que era a bicharia e disparava mais.

A violinha caiu no dente de um queixada que tinha umbigo nas costas e se
partiu em dez vezes dez pedaços que os bichos engoliram pensando que
era gerimum. Os pedaços viraram nas bexigas das caças.

O herói estourou tapera a dentro feito um desespe rado botando os
bofes pela boca. Nem bem pôde res pirar contou o sucedido. Jiguê
teve ódio e falou: — Agora que não caço nem pesco
mais! E foi dormir. Todos principiaram curtindo fome. Bem que pediam porém
Jiguê pulava na rede e fechava os olhos. O herói jurou vingança.
Fingiu um anzol com presa de sucuri e falou pro feitiço: — Anzol
de mentira, si mano Jiguê vier experi mentar você, então
entra na mão dele.

Jiguê não podia dormir de tanta fome e enxer gando o anzol
falou pro mano: — Mano, esse anzol é bom? — Xispeteó!
Macunaíma fez e continuou lim pando a gaiola.

Jiguê decidiu ir numa pescaria porque estava mes mo curtindo fome,
falou: — Deixa ver si anzol é bom.

Pegou no feitiço e experimentou na palma da mão. O dente de
sucuri entrou na pele e despejou todo o veneno lá. Jiguê correu
pro matinho e bem que mastigou e engoliu maniveira, não vale de nada.
Então foi bus car uma cabeça de anhuma que fora encostada em
pi cada de cobra. Pôs na mão. Não valeu de nada. Ve neno
virou numa ferida leprosa e principiou comendo Jiguê. Primeiro comeu
um braço depois metade do corpo depois as pernas depois a outra metade
do corpo depois o outro braço depois o pescoço e a cabeça.
Só ficou a sombra de Jiguê.

A princesa teve ódio. É que ela andava ultima mente brincando
com Jiguê. Macunaíma bem que per cebeu porém imaginou:
“Plantei mandioca nasceu maniva, de ladrão de casa ninguém
se priva, paciên cia! …” E tinha encolhido os ombros. A princesa
raivosa falou pra sombra: — Quando o herói for passear de fome
você vira num cajueiro numa bananeira e num churrasco de viado.

A sombra era envenenada por causa da lepra e a princesa queria matar Macunaíma.

No outro dia o herói acordou com tanta fome que foi espairecer passeando.
Topou com um cajueiro cheio de frutas. Quis comer porém presenciou
que era a sombra leprosa e passou adiante. Légua e meia depois topou
com um churrasco de viado fumegando. Já estava roxo de fome porém
pôs reparo que o chur rasco era a sombra leprosa e passou adiante. Légua
e meia depois topou com uma bananeira carregadinha de pencas maduras. Mas
agora o herói já estava que vinha vesgo de tanta fome. A vesgueira
fez ele enxergar dum lado a sombra do mano e do outro a bananeira.

— Arre que posso comer! fez.

E devorou todas as pencas. E as bananas eram a sombra leprosa do mano Jiguê.
Macunaíma ia morrer. Então se lembrou de passar a doença
nos outros pra não morrer sozinho. Pegou numa formiga saúva
e es fregou bem ela na ferida do nariz, formiga já foi gente que nem
nós e a saúva ficou leprosa. Então o herói agarrou
a formiga jaguataci e fez o mesmo. Jaguataci ficou leprosa também.
Então foi a vez da formiga aqueque devoradora de sementes e da formiga
guiquém, da formiga tracuá e da formiga mumbuca bem preta, todas
ficaram leprosas. Não tinha mais formigas em redor do herói
sentado. Ele ficou com preguiça de es tender o braço porque
já estava moribundo. Esperou a visita da saúde, criou força
e pegou no mosquito birigüi mordendo o joelho dele. Passou a doença
no mosquito birigüi. Por isso que agora quando esse mosquito morde a
gente, entra na pele, atravessa o corpo e sai do outro lado enquanto o furinho
de entrada vira na bereva medonha chamada chaga-de-Bauru.

Macunaíma tinha passado a lepra em sete outras gentes e ficou são
no sufragante, voltando pra tapera. A sombra de Jiguê conferiu que o
herói era muito inte ligente e quis voltar desesperada pra junto da
família. Era já de-noite e se confundindo com a escureza a som
bra não achava mais o caminho perto. Sentou numa pedra e berrou: —
Foguinho, cunhada princesa! A princesa coxeando muito porque estava doente
de zamparina veio com um tição aluminando caminho. A sombra
engoliu o fogo e a cunhada. Berrou de novo: — Foguinho, mano Maanape!
Maanape veio logo com outro tição alumiando ca minho. E se arrastava
molengo porque barbeiro chu para sangue dele e Maanape estava opilado. A som
bra engoliu fogo e mano Maanape. Berrou: — Foguinho, mano Macunaíma!
Queria engolir o herói também mas Macunaíma percebendo
o que sucedera pro mano e pra companheira encostou a porta e ficou bem quieto
na tapera. A som bra pedia foguinho, pedia porém não recebendo
res posta se lastimou até madrugada”. Então Capei apare
ceu iluminando a terra e a leprosa pôde chegar na tapera. Sentou na
cangerana da soleira e esperou o dia pra se vingar do mano.

De-manhã inda estava acocorada ali. Macunaíma acordou e escutou.
Não se ouvia nada e ele concluiu: — Arre! Foi-se! E saiu passear.
Quando passou pela porta a sombra trepou no ombro dele. O herói não
maliciou nada. Estava padecendo de fome porém a sombra não.
deixava ele comer. Tudo o que Macunaíma pegava ela engolia, tamorita
mangarito inhame biribá cajuí guiambê guacá uxi
ingá bacuri cupuaçu pupunha tape-rebá graviola grumixama,
todas essas comidas do mato. Então Macunaíma foi pescar porque
agora não tinha mais ninguém que pescasse pra ele não.
Mas cada peixe que tirava do anzol e jogava no paneiro, a som bra pulava do
ombro, engolia o peixe e voltava pro poleiro outra vez. O herói matutou:
“Deixa estar que te arranjo!” Quando peixe pegou, Macunaíma
fez um esforço heróico, deu um bruto arranco na vara de for
mas que o impulso fez o peixe ir parar lá na Guiana. A sombra correu
atrás do peixe. Então Macunaíma gavionou mato fora no
sentido oposto. Quando a sombra voltou, não achando mais o mano disparou
no rasto dele. Depois de correr um pouco, atravessar a terra dos índios
tatus-brancos e pegar um susto tama nho que passou sem pedir licença
entre a sombra de Jorge Velho e a sombra do Zumbi que estavam dis cutindo,
o herói fatigadíssimo, olhou pra trás e viu que a sombra
já vinha chegando. Estava na Paraíba e tão sem vontade
de chispar que parou. Era por causa do herói estar impaludado. Perto
havia uns trabalhadores destruindo formigueiros para construir um açude.
Macunaíma pediu água pra eles. Não tinha nem gota porém
deram raiz de umbu. O herói matou a sede dos legornes, agradeceu e
gritou: Diabo leve quem trabalha! Os trabalhadores estumaram a cachorrada
no he rói. Isso mesmo que ele queria porque teve medo e chispou bem.
Na frente abria a estrada das boiadas. Macunaíma isso vinha que vinha
acochado pela som bra, nem turtuveou: meteu pelo estradão. Mais adiante
estava dormindo um boi malabar chamado Espácio que viera do Piauí.
O herói deu um trompaço nele de tanta fúria. Isso o boi
saiu numa galopada louca de susto e lá foi cego manadeiro abaixo. Então
Macunaíma que brou por uma picada sem jeito e se amoitou por de baixo
dum mucumuco. A sombra escutava a bulha do marruá galopeando e imaginou
que era Macunaíma, foi atrás. Alcançou o boi e pra não
perder a pernada fez poleiro no costado dele. E cantava satisfeita: “Meu
boi bonito, Boi Alegria, Dá um adeus Pra toda a família!

ôh… êh bumba, Folga meu boi! Ôh… êh bumba, Folga
meu boi!”

Porém nunca mais que o boi pôde comer, a sombra engolia tudo
antes do bicho. Então o marruá foi fican do jururu ficando jururu
magruço e lerdo. Quando passou pelo rincão chamado Água
Doce perto de Guarapes, o boi mirou sarapantado bem no meio do areão
a vista linda, um laranjal cheio de sombra com a ga linha ciscando por baixo.
Era sinal de morte… A sombra desenganada cantava agora: “Meu boi bonito,
Boi desengano, Dá um adeus, Até para o ano!

– ôh.-.. êh bumba, Folga meu boi!” ôh… êh
bumba, Folga meu boi!

No outro dia o marruá estava morto. Foi esverdeando esverdeando…
A sombra muito penarosa se consolava cantando assim:

“O meu boi morreu, Quê será de mim? Manda buscar outro,
— Maninha, Lá no Bom Jardim…”

E o Bom Jardim era uma estância do Rio Grande do Sul. Então
veio vindo uma giganta que gostava de brincar com o marruá. Viu o boi
morto,-chorou bem e quis levar o cadáver pra ela.

A sombra teve raiva e cantou:

“Arretira-te, giganta, Que o caso está perigoso! Quem se arretirou
amante az ação de generoso!”

A giganta agradeceu e foi-se embora dançando. Então passou
por ali o indivíduo chamado Manuel da Lapa carregado de folha de cajueiro
e de rama de al godão. A sombra saudou o conhecido: “Seu Manué
que vem do Açu, Seu Manué que vem do Açu, Vem carregadinho
de folha de caju!

Seu Manué que vem do sertão, Seu Manué que vem do sertão,
Vem carregadinho de rama de algodão!”

Manuel da Lapa ficou muito concho com a sauda ção e pra agradecer
dançou um sapateado e cobriu o cadáver com a folha de caju e
a rama de algodão.

O velho já estava tirando a noite do buraco e a sombra toda confundida
não via mais o boi debaixo dos flocos e da folhagem. Principiou dançando
à procura dele. Um vaga-lume se admirou daquilo e cantou per guntando:

“Linda pastorinha Que fazeis aqui?”

“Vim buscar meu gado, Maninha, Que eu aqui perdi”.

Foi como a sombra secundou cantando. Então o vaga-lume dançando
voou do tronco pra baixo e mos trou o boi pra sombra. Ela trepou na barriga
verde do morto e ficou chorando ali.

No outro dia o boi estava podre. Então vieram muitos urubus, veio
o urubu-camiranga, veio o urubu-jeregua o urubu-peba o urubu-ministro o urubu-tinga
que só come olhos e língua, todos esses cabeças-peladas
e principiaram dançando de contentes. O mai& grande puxava a dança
cantando: “Urubu é passo feio feio feio! Urubu é passo
limpo limpo limpo”!

E era o urubu-ruxama, urubu-rei, o Pai do Urubu. Então mandou um urubuzinho
piá entrar dentro do boi para ver si já estava bem podre. O
urubuzinho fez. En trou por uma porta e saiu por outra dizendo que sim e todos
fizeram a festa juntos dançando e cantando: “Meu boi bonito, Boi
Zebedeu, Corvo avoando, Boi que morreu.

Ôh… êh bumba, Folga meu boi! Ôh… êh bumba, Folga
meu boi!”

E foi assim que inventaram a festa famanada do Bumba-meu-Boi, também
conhecida por Boi-Bumbá.

A sombra teve raiva de estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubu-ruxama.
O Pai do Urubu ficou muito satisfeito e gritou: — Achei companhia pra
minha cabeça, gente! E vou pra altura. Desde esse dia o urubu-ruxama
que é o Pai do Urubu possui duas cabeças. A som bra leprosa
é a cabeça da esquerda. De primeiro o urubu-rei tinha só
uma cabeça.

XVI – Uraricoera

NO outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma febrinha sem
parada. Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de abacate, imagi
nando que o herói estava hético. Em vez era impalu dismo, e
a tosse viera só por causa da laringite que toda a gente carrega de
São Paulo. Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco
na proa da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa
não podia mais e vinha pra brincarem, o herói até uma
vez recusou suspirando: — Ara… que preguiça…

No outro dia atingiram as cabeceiras dum rio e escutaram perto o ruidejar
do Uraricoera. Era ali. Um passarinho serigaita trepado na munguba, enxergando
o farrancho gritou logo: — Sinhá dona do porto, dá caminho
pra mim passar! Macunaíma agradeceu feliz. De pé ele assuntava
a paisagem passando. Veio vindo o forte São Joaquim erguido pelo mano
do grande Marquês. Macunaíma deu um té-logo pro cabo e
pro soldado que só possuíam um naco esfarrapado de culote e
o boné na cabeça e viviam guardando as saúvas dos canhões.
Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Se enxergou o cerro manso que fora
mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, se enxergou o pauê
trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os puraquês
e os pitiús e pra diante do be bedouro da anta se viu o roçado
velho agora uma tigüera e a maloca velha agora uma tapera. Macunaíma
chorou.

Abicaram e entraram na tapera. Vinha a bôca-da-noite. Maanape com
Jiguê resolveram fazer uma facheada pra pegarem algum peixe e a princesa
foi ver si topava com algum arezi pra comerem. O herói ficou descansando.
Estava assim quando sentiu no ombro um peso de mão. Virou a cara e
olhou. Junto dele estava um velho de barba. O velho falou: — Quem és
tu, nobre estrangeiro? — Não sou estranho não, conhecido.
Sou Macunaíma o herói e vim parar de novo na terra dos meus.
Você quem é? O velho afastou os mosquitos com amargura e secundou:
— Sou João Ramalho.

Então João Ramalho enfiou dois dedos na boca e assoviou. Apareceram
a mulher dele as quinze famí lias de escadinha. E lá partiram
de mudança buscando pagos novos sem ninguém.

No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado
Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou,
subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra
buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré
achou? nem ele. Então o herói pegou na cons ciência dum
hispanoamericano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma.

Passava uma piracema de jaraquis. Macunaíma agarrou pescando e distraído
distraído quando viu es tava em Óbidos, a montaria cheinha de
peixes frescos. Mas o herói foi obrigado a atirar tudo fora porque
em Óbidos “quem come j ar aqui fica aqui” falam e ele ti
nha que voltar pro Uraricoera. Voltou e como era ainda o pino do dia deitou
na sombra da ingazeira catou os carrapatos e dormiu. Tarde chegando todos
voltaram pra tapera só Macunaíma não. Os outros saíram
pra esperar. Jiguê se acocorou botando a orelha no chão pra ver
si escutava o passinho do herói, nada. Maanape trepou no grelo duma
inajá pra ver si enxer gava o brilho dos brincos do herói, nada.
Então saíram por mato e capoeira gritando: — Macunaíma,
nosso mano!…

Nada. Jiguê chegou debaixo da ingazeira e gritou: — Nosso mano!
— Que foi! — Você, aposto que já estava dormindo!
— Dormindo nada, então! Estava mas era nega ceando um inambu-guaçu.
Você fez bulha, nhambu escapoliu! Voltaram. E assim todos os dias. Os
manos an davam muito desconfiados. Macunaíma percebeu e disfarçou
bem: — Eu caço porém não acho nada não.
Jiguê nem caça nem pesca, passa o dia dormindo.

Jiguê teve raiva porque peixe andava rareando e caça inda mais.
Foi na praia do rio pra ver si pescava alguma coisa e topou com o feiticeiro
Tzaló que tem uma perna só. O catimbozeiro possuía uma
cabaça encantada feita com a metade duma casca de gerimum. Mergulhou
a cabaça no rio, encheu de água até o meio e despejou
na praia. Caiu um despropósito de peixe. Jiguê reparou bem como
que o feiticeiro fazia. Tzaló largou da cabaça por aí
e principiou matando peixe com um porrete. Então Jiguê roubou
a cabaça do fei ticeiro Tzaló que tem uma perna só.

Mais pra diante fez que-nem tinha reparado e veio muito peixe, veio pirandira
veio pacu veio cascudo veio bagre jundiá tucunaré, todos esses
peixes e Jiguê vol tou carregado pra tapera depois de esconder a cabaça
na raiz do cipó. Todos ficaram sarapantados com aquele mundo de peixe
e comeram bem. Macunaíma desconfiou.

No outro dia esperou com o olho esquerdo dor mindo que Jiguê fosse
pescar, saiu atrás. Descobriu tudo. Quando o mano foi-se embora Macunaíma
lar gou da gaiola com os legornes no chão pegou na cabaça escondida
e fez que-nem o mano. Isso vieram muitos peixes, veio acará veio piracanjuba
veio aviú guri-juba, piramutaba mandi surubim, todos esses peixes.
Macunaíma atirou a cabaça por aí, na pressa de matar
todos os peixes, cabaça caiu numa lapa e juque! mer gulhou no rio.
Passava a pirandira chamada Padzá. Imaginou que era abobra e engoliu
a cabaça que virou na beixiga de Padzá. Então Macunaíma
enfiou a gaiola no braço voltou pra tapera e contou o sucedido. Jiguê
teve raiva.

— Cunhada princesa, eu que pesco, seu compa nheiro fica dormindo em
baixo da ingazeira e inda atra palha os outros! — Mentira! — Então
o que você fez hoje? — Cacei viado.

— Quê-dele ele! — Comi, uai! Fui andando por um caminho,
vai, topei rasto dum… catingueiro não era não mas era mateiro.
Me agachei e fui no rasto. Olhando olhando, sabe, dei uma cabeçada
numa coisa mole, que engra çado! sabem o que era! pois a bunda do viado,
gente! (Macunaíma deu uma grande gargalhada). Viado per guntou pra
mim: — Que está fazendo aí, parente!, — Te campeando!
secundei. E vai, matei o catingueiro que comi com tripa e tudo. Vinha trazendo
um naco pra vocês, vai, escorreguei atravessando o ipu, dei um tombo,
naco foi parar longe e tanajura sujou nele.

A peta era tamanha que Maanape desconfiou. Maanape era feiticeiro. Chegou
bem rente do mano e perguntou: — Você foi na caça? —
Quer dizer… fui sim.

— O quê você caçou? — Viado.

— Qual! Maanape fez um grande gesto. O herói piscou de medo
e confessou que tudo era lorota.

No outro dia Jiguê estava procurando a cabaça quando topou
com o tatu-canastra feiticeiro chamado Caicãe que nunca teve mãe.
Caicãe sentado na porta da toca puxou a violinha dele feita com a outra
metade da abobra encantada e agarrou cantando assim:

“Vote vote coandu! Vote vote cuati! Vote vote taiçu! Vote vote
pacari! Vote vote canguçu! Êh!…”

Assim. Vieram muitas caças. Jiguê, reparando. Caicãe
atirou a violinha encantada por aí, pegou num porrete e foi matar todo
aquele poder de caças que esta vam feito bobas. Então Jiguê
roubou a violinha do feiticeiro Caicãe que nunca teve mãe.

Mais pra diante cantou que nem tinha escutado e veio um dilúvio de
caça parando na frente dele. Jiguê voltou carregado pra tapera
depois de esconder a violi nha na raiz de outro cipó. Todos tornaram
a se espan tar e comeram bem. Macunaíma tornou a desconfiar.

No outro dia esperou com o olho esquerdo dor mindo que Jiguê partisse,
foi atrás. Descobriu tudo. Quando o mano voltou pra tapera Macunaíma
pegou na violinha, fez talequal reparara e veio uma imundície de caça,
viados cotias tamanduás capivaras tatus aperemas pacas graxains lontras
muçuãs catetos monos tejus queixadas antas, a anta sabatira,
onças, a onça pinima a papa-viado a jaguatirica, suçuarana
canguçu pixuna, isso era uma imundície de caças! O herói
teve medo daquela bicharada tamanha e saiu numa carreira mãe pinchando
a violinha longe. A gaiola enfiada no braço dele ia batendo nos paus
e o galo com a galinha faziam um cacarejo de ensurdecer. O herói imaginava
que era a bicharia e disparava mais.

A violinha caiu no dente de um queixada que tinha umbigo nas costas e se
partiu em dez vezes dez pedaços que os bichos engoliram pensando que
era gerimum. Os pedaços viraram nas bexigas das caças.

O herói estourou tapera a dentro feito um desespe rado botando os
bofes pela boca. Nem bem pôde res pirar contou o sucedido. Jiguê
teve ódio e falou: — Agora que não caço nem pesco
mais! E foi dormir. Todos principiaram curtindo fome. Bem que pediam porém
Jiguê pulava na rede e fechava os olhos. O herói jurou vingança.
Fingiu um anzol com presa de sucuri e falou pro feitiço: — Anzol
de mentira, si mano Jiguê vier experi mentar você, então
entra na mão dele.

Jiguê não podia dormir de tanta fome e enxer gando o anzol
falou pro mano: — Mano, esse anzol é bom? — Xispeteó!
Macunaíma fez e continuou lim pando a gaiola.

Jiguê decidiu ir numa pescaria porque estava mes mo curtindo fome,
falou: — Deixa ver si anzol é bom.

Pegou no feitiço e experimentou na palma da mão. O dente de
sucuri entrou na pele e despejou todo o veneno lá. Jiguê correu
pro matinho e bem que mastigou e engoliu maniveira, não vale de nada.
Então foi bus car uma cabeça de anhuma que fora encostada em
pi cada de cobra. Pôs na mão. Não valeu de nada. Ve neno
virou numa ferida leprosa e principiou comendo Jiguê. Primeiro comeu
um braço depois metade do corpo depois as pernas depois a outra metade
do corpo depois o outro braço depois o pescoço e a cabeça.
Só ficou a sombra de Jiguê.

A princesa teve ódio. É que ela andava ultima mente brincando
com Jiguê. Macunaíma bem que per cebeu porém imaginou:
“Plantei mandioca nasceu maniva, de ladrão de casa ninguém
se priva, paciên cia! …” E tinha encolhido os ombros. A princesa
raivosa falou pra sombra: — Quando o herói for passear de fome
você vira num cajueiro numa bananeira e num churrasco de viado.

A sombra era envenenada por causa da lepra e a princesa queria matar Macunaíma.

No outro dia o herói acordou com tanta fome que foi espairecer passeando.
Topou com um cajueiro cheio de frutas. Quis comer porém presenciou
que era a sombra leprosa e passou adiante. Légua e meia depois topou
com um churrasco de viado fumegando. Já estava roxo de fome porém
pôs reparo que o chur rasco era a sombra leprosa e passou adiante. Légua
e meia depois topou com uma bananeira carregadinha de pencas maduras. Mas
agora o herói já estava que vinha vesgo de tanta fome. A vesgueira
fez ele enxergar dum lado a sombra do mano e do outro a bananeira.

— Arre que posso comer! fez.

E devorou todas as pencas. E as bananas eram a sombra leprosa do mano Jiguê.
Macunaíma ia morrer. Então se lembrou de passar a doença
nos outros pra não morrer sozinho. Pegou numa formiga saúva
e es fregou bem ela na ferida do nariz, formiga já foi gente que nem
nós e a saúva ficou leprosa. Então o herói agarrou
a formiga jaguataci e fez o mesmo. Jaguataci ficou leprosa também.
Então foi a vez da formiga aqueque devoradora de sementes e da formiga
guiquém, da formiga tracuá e da formiga mumbuca bem preta, todas
ficaram leprosas. Não tinha mais formigas em redor do herói
sentado. Ele ficou com preguiça de es tender o braço porque
já estava moribundo. Esperou a visita da saúde, criou força
e pegou no mosquito birigüi mordendo o joelho dele. Passou a doença
no mosquito birigüi. Por isso que agora quando esse mosquito morde a
gente, entra na pele, atravessa o corpo e sai do outro lado enquanto o furinho
de entrada vira na bereva medonha chamada chaga-de-Bauru.

Macunaíma tinha passado a lepra em sete outras gentes e ficou são
no sufragante, voltando pra tapera. A sombra de Jiguê conferiu que o
herói era muito inte ligente e quis voltar desesperada pra junto da
família. Era já de-noite e se confundindo com a escureza a som
bra não achava mais o caminho perto. Sentou numa pedra e berrou: —
Foguinho, cunhada princesa! A princesa coxeando muito porque estava doente
de zamparina veio com um tição aluminando caminho. A sombra
engoliu o fogo e a cunhada. Berrou de novo: — Foguinho, mano Maanape!
Maanape veio logo com outro tição alumiando ca minho. E se arrastava
molengo porque barbeiro chu para sangue dele e Maanape estava opilado. A som
bra engoliu fogo e mano Maanape. Berrou: — Foguinho, mano Macunaíma!
Queria engolir o herói também mas Macunaíma percebendo
o que sucedera pro mano e pra companheira encostou a porta e ficou bem quieto
na tapera. A som bra pedia foguinho, pedia porém não recebendo
res posta se lastimou até madrugada”. Então Capei apare
ceu iluminando a terra e a leprosa pôde chegar na tapera. Sentou na
cangerana da soleira e esperou o dia pra se vingar do mano.

De-manhã inda estava acocorada ali. Macunaíma acordou e escutou.
Não se ouvia nada e ele concluiu: — Arre! Foi-se! E saiu passear.
Quando passou pela porta a sombra trepou no ombro dele. O herói não
maliciou nada. Estava padecendo de fome porém a sombra não.
deixava ele comer. Tudo o que Macunaíma pegava ela engolia, tamorita
mangarito inhame biribá cajuí guiambê guacá uxi
ingá bacuri cupuaçu pupunha tape-rebá graviola grumixama,
todas essas comidas do mato. Então Macunaíma foi pescar porque
agora não tinha mais ninguém que pescasse pra ele não.
Mas cada peixe que tirava do anzol e jogava no paneiro, a som bra pulava do
ombro, engolia o peixe e voltava pro poleiro outra vez. O herói matutou:
“Deixa estar que te arranjo!” Quando peixe pegou, Macunaíma
fez um esforço heróico, deu um bruto arranco na vara de for
mas que o impulso fez o peixe ir parar lá na Guiana. A sombra correu
atrás do peixe. Então Macunaíma gavionou mato fora no
sentido oposto. Quando a sombra voltou, não achando mais o mano disparou
no rasto dele. Depois de correr um pouco, atravessar a terra dos índios
tatus-brancos e pegar um susto tama nho que passou sem pedir licença
entre a sombra de Jorge Velho e a sombra do Zumbi que estavam dis cutindo,
o herói fatigadíssimo, olhou pra trás e viu que a sombra
já vinha chegando. Estava na Paraíba e tão sem vontade
de chispar que parou. Era por causa do herói estar impaludado. Perto
havia uns trabalhadores destruindo formigueiros para construir um açude.
Macunaíma pediu água pra eles. Não tinha nem gota porém
deram raiz de umbu. O herói matou a sede dos legornes, agradeceu e
gritou: Diabo leve quem trabalha! Os trabalhadores estumaram a cachorrada
no he rói. Isso mesmo que ele queria porque teve medo e chispou bem.
Na frente abria a estrada das boiadas. Macunaíma isso vinha que vinha
acochado pela som bra, nem turtuveou: meteu pelo estradão. Mais adiante
estava dormindo um boi malabar chamado Espácio que viera do Piauí.
O herói deu um trompaço nele de tanta fúria. Isso o boi
saiu numa galopada louca de susto e lá foi cego manadeiro abaixo. Então
Macunaíma que brou por uma picada sem jeito e se amoitou por de baixo
dum mucumuco. A sombra escutava a bulha do marruá galopeando e imaginou
que era Macunaíma, foi atrás. Alcançou o boi e pra não
perder a pernada fez poleiro no costado dele. E cantava satisfeita: “Meu
boi bonito, Boi Alegria, Dá um adeus Pra toda a família!

ôh… êh bumba, Folga meu boi! Ôh… êh bumba, Folga
meu boi!”

Porém nunca mais que o boi pôde comer, a sombra engolia tudo
antes do bicho. Então o marruá foi fican do jururu ficando jururu
magruço e lerdo. Quando passou pelo rincão chamado Água
Doce perto de Guarapes, o boi mirou sarapantado bem no meio do areão
a vista linda, um laranjal cheio de sombra com a ga linha ciscando por baixo.
Era sinal de morte… A sombra desenganada cantava agora: “Meu boi bonito,
Boi desengano, Dá um adeus, Até para o ano!

– ôh.-.. êh bumba, Folga meu boi!” ôh… êh
bumba, Folga meu boi!

No outro dia o marruá estava morto. Foi esverdeando esverdeando…
A sombra muito penarosa se consolava cantando assim:

“O meu boi morreu, Quê será de mim? Manda buscar outro,
— Maninha, Lá no Bom Jardim…”

E o Bom Jardim era uma estância do Rio Grande do Sul. Então
veio vindo uma giganta que gostava de brincar com o marruá. Viu o boi
morto,-chorou bem e quis levar o cadáver pra ela.

A sombra teve raiva e cantou:

“Arretira-te, giganta, Que o caso está perigoso! Quem se arretirou
amante az ação de generoso!”

A giganta agradeceu e foi-se embora dançando. Então passou
por ali o indivíduo chamado Manuel da Lapa carregado de folha de cajueiro
e de rama de al godão. A sombra saudou o conhecido: “Seu Manué
que vem do Açu, Seu Manué que vem do Açu, Vem carregadinho
de folha de caju!

Seu Manué que vem do sertão, Seu Manué que vem do sertão,
Vem carregadinho de rama de algodão!”

Manuel da Lapa ficou muito concho com a sauda ção e pra agradecer
dançou um sapateado e cobriu o cadáver com a folha de caju e
a rama de algodão.

O velho já estava tirando a noite do buraco e a sombra toda confundida
não via mais o boi debaixo dos flocos e da folhagem. Principiou dançando
à procura dele. Um vaga-lume se admirou daquilo e cantou per guntando:

“Linda pastorinha Que fazeis aqui?”

“Vim buscar meu gado, Maninha, Que eu aqui perdi”.

Foi como a sombra secundou cantando. Então o vaga-lume dançando
voou do tronco pra baixo e mos trou o boi pra sombra. Ela trepou na barriga
verde do morto e ficou chorando ali.

No outro dia o boi estava podre. Então vieram muitos urubus, veio
o urubu-camiranga, veio o urubu-jeregua o urubu-peba o urubu-ministro o urubu-tinga
que só come olhos e língua, todos esses cabeças-peladas
e principiaram dançando de contentes. O mai& grande puxava a dança
cantando: “Urubu é passo feio feio feio! Urubu é passo
limpo limpo limpo”!

E era o urubu-ruxama, urubu-rei, o Pai do Urubu. Então mandou um urubuzinho
piá entrar dentro do boi para ver si já estava bem podre. O
urubuzinho fez. En trou por uma porta e saiu por outra dizendo que sim e todos
fizeram a festa juntos dançando e cantando: “Meu boi bonito, Boi
Zebedeu, Corvo avoando, Boi que morreu.

Ôh… êh bumba, Folga meu boi! Ôh… êh bumba, Folga
meu boi!”

E foi assim que inventaram a festa famanada do Bumba-meu-Boi, também
conhecida por Boi-Bumbá.

A sombra teve raiva de estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubu-ruxama.
O Pai do Urubu ficou muito satisfeito e gritou: — Achei companhia pra
minha cabeça, gente! E vou pra altura. Desde esse dia o urubu-ruxama
que é o Pai do Urubu possui duas cabeças. A som bra leprosa
é a cabeça da esquerda. De primeiro o urubu-rei tinha só
uma cabeça.

XVII – Ursa Maior

Macunaíma se arrastou até a tapera sem gente agora. Estava
muito contrariado porque não com preendia o silêncio. Ficara
defunto sem choro, no aban dono completo. Os manos tinham ido-se embora trans
formados na cabeça esquerda do urubu-ruxama e nem siquer a gente encontrava
cunhas por ali. O silêncio principiava cochilando a beira-rio do Uraricoera.
Que enfaro! E principalmente, ah!… que preguiça!…

Macunaíma foi obrigado a abandonar a tapera cuja última parede
trançada com palha de catolé estava caindo. Mas o impaludismo
não lhe dava coragem nem pra construir um papiri. Trouxera a rede pro
alto dum teso onde tinha uma pedra com dinheiro enterrado por debaixo. Amarrou
a rede nos dois cajueiros frondejando e não saiu mais dela por muitos
dias dormindo caceteado e comendo cajus. Que solidão! O próprio
séquito sarapintado se dissolvera. Não vê que um ajuru-catinga
passara muito afobado por ali. Os papa gaios perguntaram pro parente onde
que ia.

— Madurou milho na terra dos Ingleses, vou pra lá! Então
todos os papagaios foram comer milho na terra dos Ingleses. Porém primeiro
viraram periquitos porque assim, comiam e os periquitos levavam a fama. Só
ficara um aruaí muito falador. Macunaíma se con solou pensamenteando:
“O mal ganhado, diabo leva… paciência”. Passava os dias
enfarado e se distraía fa zendo o pássaro repetir na fala da
tribo os casos que tinham sucedido pro herói desde infância.
Aaah … Macunaíma bocejava escorrendo caju, muito mole na rede, com
as mãos pra trás fazendo cabeceiro, o casal de legornes empoleirado
nos pés e o papagaio na bar riga. Vinha a noite. Aromado pelas frutas
do cajuei ro o herói ferrava no sono bem. Quando a arraiada vinha o
papagaio tirava o bico da asa e tomava o café da manhã devorando
as aranhas que de-noite fiavam as teias dos ramos pro corpo do herói.
Depois falava: — Macunaíma! O dorminhoco nem se mexia.

— Macunaíma! ôh Macunaíma! — Deixa a gente
dormir, aruaí…

— Acorda, herói! É de-dia! — Ah… que preguiça!..
.

— Pouca saúde e muita saúva, Os males do Brasil são!…

Macunaíma dava uma grande gargalhada e cocava a cabeça cheia
de pixilinga que é piolho-de-galinha. Então o papagaio repetia
o caso aprendido na véspera e Macunaíma se orgulhava de tantas
glórias passadas. Dava entusiasmo nele e se punha contado pro aruaí
outro caso mais pançudo. E assim todos os dias.

Quando a Papaceia que é a estrela Vésper apa recia falando
pras coisas irem dormir, o papagaio zan gava por causa da história
parando no meio. Uma feita ele insultou a estrela Papaceia. Então Macunaíma
contou: — “Não insulta ela não, aruaí! Taína-Cã
é bom. Taína-Cã que é a estrela Papaceia tem pena
da Terra e manda Emoron-Pódole dar o sossego do sono deste mundo pra
todas essas coisas que podem ter sossego porque não possuem pensamento
que nem nós. Taína-Cã é indivíduo também…
Relumeava lá no campo vasto do céu e a filha mais velha do morubixaba
Zo zoiaça da tribo carajá, solteirona chamada Imaerô fa
lou assim: — Pai, Taína-Cã relumeia tão bonito
que eu quero me amulherar com ele.

Zozoiaça riu bem por causa que não podia dar Taína-Cã
de casamento pra filha velha não. Vai, de-noite veio descendo o rio
uma piroga de prata, um remeiro saltou dela, bateu no poial e falou pra Imaerô:
— Eu sou Taína-Cã. Escutei vosso pedido e vim numa piroga
de prata. Casa comigo por favor? — Sim, ela fez contentíssima.

Deu a rede pro noivo e foi dormir com a mana mais nova se chamando Denaquê.

No outro dia quando Taína-Cã pulou da rede to dos se sarapantaram.
Era uma coroca enrugado enru gado, tremelicando tanto feito a luz da estrela
Papa ceia. Vai, Imaerô falou: — Cai fora, coroca! Vê lá
si vou casar com velho! Pra mim há-de ser um moço mui brabo
mucudo e de nação carajá! Taína-Cã ficou
jururu jururu e principiou imagi nando na injustiça dos homens. Porém
a filha mais nova do morubixaba Zozoiaça teve pena do coroca e falou:
— Eu caso com você…

Taína-Cã brilhou de gozo. Ficaram ajustados. Denaquê
preparando o enxoval cantava noite e dia: — Amanhã por estas
horas, furrum-fum-fum… Zozoiaça respondia: — Eu também
com vossa mãe, furrum-fum-fum …

Depois que se acabaram os dedos das vossas mãos, papagaio, que são
de espera pra noivo, na rede trança da por Denaquê se brincou
dança de amor, furrum-fum-fum.

Nem bem o dia estava rompendo a barra, Taína-Cã pulou da rede
e falou pra companheira: — Vou derrubar mato pra fazer roçado.
Agora você fica no mocambo e nunca não vai na roça me
espiar.

— Sim, ela fez.

E ficou na rede, matutando gozada naquele velhi nho esquisito que dera pra
ela a noite mais gostosa de amor que a gente imagina.

Taína-Cã derrubou mato, botou fogo em todos os macurus de
formiga e preparou a terra. Naquele tem po inda a nação carajá
não conhecia as plantas boas. Era só peixe e bicho que carajá
engolia.

Na outra madrugada Taína-Cã falou pra compa nheira que ia
buscar sementes pra semear e repetiu a proibição. Denaquê
ficou deitada na rede inda um bo cado, matutando nas gostosuras valentes das
noites de amor que o bom do coroca dava pra ela. E foi fiar.

Taína-Cã deu uma chegadinha no céu, foi até
o corgo Berô, fez oração e botando uma perna em cada barreira
do corgo esperou assuntando a água. Daí a pouco vieram vindo
no pêlo da agüinha as sementes do milho cururuca, o fumo, a maniveira,
todas essas plan tas boas. Taína-Cã apanhou o que passava, desceu
do céu e foi no roçado plantar. Estava trabucando na Sol quando
Denaquê apareceu. Era por causa que ela de sodosa quis ver o companheiro
dando gostosuras tão valentes pra ela nas noites de amor. Denaquê
deu um grito de alegria. Taína-Cã* não era coroca não!
Taína-Cã era mas um rapaz muito brabo mucudo e de nação
carajá. Fizeram um macio de fumo e de maniva e brincaram pulado na
Sol.

Quando voltaram pro mocambo muito se rindo um pro outro, Imaerô ficou
tiririca. Gritou: — Taína-Cã é meu! Foi pra mim
que ele veio do céu! — Sai azar! que Taína-Cã falou.
Quando eu quis você não quis, pois agora brinque-se! E trepou
na rede com Denaquê. Imaerô desinfeliz suspirou assim: —
Deixe estar jacaré, que a lagoa há-de secar!… E saiu gritando
pelo mato. Virou na ave araponga que grita amarelo de inveja no quiriri do
mato diurno. Desde então por causa da bondade de Taína-Cã
é que Carajá come mandioca e milho e possui fumo pra se animar.

E tudo o que Carajá carecia, Taína-Cã ia no céu
e voltava trazendo. Pois não é que Denaquê, de ambicio
sa, deu pra namorar com todas as estrelinhas do céu! Deu sim, e Taína-Cã
que é a Papaceia enxergou tudo. Isso, até se orvalhou de tão
triste, pegou nos teréns e foi-se embora pro vasto campo do céu.
Ficou lá, trouxe mais nada não. Si a Papaceia continuasse trazendo
as coisas do outro lado de lá, céu era aqui, nosso todinho.
Agora é só do nosso desejo. Tem mais não”. O papagaio
dormia.

Uma feita janeiro chegado Macunaíma acordou tarde com o pio agourento
do tincuã. No entanto era dia feito e a cerração já
entrara pro buraco… O herói tremeu e apalpou o feitiço que
trazia no pescoço, um ossinho de piá morto pagão. Procurou
o aruaí, desapa recera. Só o galo com a galinha brigando por
causa duma aranha derradeira. Fazia um calorão parado tão imenso
que se escutava o sininho de vidro dos gafanho tos. Vei, a Sol, escorregava
pelo corpo de Macunaíma, fazendo cosquinhas, virada em mão de.
moça. Era mal vadeza da vingarenta só por causa do herói
não ter se amulherado com uma das filhas de luz. A mão de moça
vinha e escorregava tão de manso no corpo… Que vontade nos músculos
pela primeira vez espetados depois de tanto tempo! Macunaíma se lembrou
que fazia muito não brincava. Água fria diz que é bom
pra es pantar as vontades… O herói escorregou da rede, tirou a penugem
de teia vestindo todo o corpo dele e descendo até o vale de Lágrimas
foi tomar banho num sacado perto que os repiquetes do tempo-das-águas
ti nham virado num lagoão.

Macunaíma depôs com delicadeza os legornes na praia e se chegou
pra água. A lagoa estava toda cober ta de ouro e prata e descobriu
o rosto deixando ver o que tinha no fundo. E Macunaíma enxergou lá
no fun do uma cunha lindíssima, alvinha e padeceu de mais vontade.
E a cunha lindíssima era a Uiara.

Vinha chegando assim como quem não quer, com muitas danças,
piscava pro herói, parecia que dizia — “Cai fora, seu nhonhô
moço!” e fastava com muitas danças assim como quem não
quer. Deu uma vontade no herói tão imensa que alargou o corpo
dele e a boca umideceu: — Mani!. . .

Macunaíma queria a dona. Botava o dedão n’água e num
átimo a lagoa tornava a cobrir o rosto com as teias de ouro e prata.
Macunaíma sentia o frio da água, retirava o dedão.

Foi assim muitas vezes. Se aproximava o pino do dia e Vei estava zangadíssima.
Torcia pra Macunaíma cair nos braços traiçoeiros da moça
do lagoão e o herói tinha medo do frio. Vei sabia que a moça
não era moça não, era a Uiara. E a Uiara vinha chegando
outra vez com muitas danças. Quê boniteza que ela era!… Mo
rena e coradinha que-nem a cara do dia e feito o dia que vive cercado de noite,
ela enrolava a cara nos ca belos curtos negros como as asas da graúna.
Tinha no perfil duro um narizinho tão mimoso que nem servia pra respirar.
Porém como ela só se mostrava de frente e festava sem virar
Macunaíma não via o buraco no cangote por onde a pérfida
respirava.. E o herói inde ciso, vai-não-vai. Sol teve raiva.
Pegou num rabo-de-tatu de calorão e guascou o lombo do herói.
A dona ali, diz-que abrindo os braços mostrando a graça fe chando
os olhos molenga. Macunaíma sentiu fogo no espinhaço, estremeceu,
fez pontaria, se jogou feito em cima dela, juque! Vei chorou de vitória.
As lágrimas caíram na lagoa num chuveiro de ouro e de ouro.
Era o pino do dia.

Quando Macunaíma voltou na praia se percebia que brigara muito lá
no fundo, Ficou de bruços um tem pão coma vida dependurada nos
respiros fatigados. Es tava sangrando com mordidas pelo corpo todo, sem per
na direita, sem os dedões sem os côcos-da-Bahia sem orelhas sem
nariz sem nenhum dos seus tesouros. Afinal pôde se erguer. Quando deu
tento das perdas teve ódio de Vei. A galinha cacarejava deixando um
ovo na praia. Macunaíma pegou nele e chimpou-o no carão feliz
da Sol. O ovo esborrachou bem nas bochechas dela que \ sujou-se de amarelo
pra todo o sempre. Entardecia.

Macunaíma sentou numa lapa que já fora jaboti nos tempos de
dantes e andou contando os tesouros per didos em baixo d’água. E eram
muitos, era uma perna os dedões, eram os côcos-da-Bahia eram
as orelhas os dois brincos feitos com a máquina pathek e a máquina
smith-wesson, o nariz todos esses tesouros… O herói pulou dando um
grito que encurtou o tamanho do dia. As piranhas tinham comido também
o beiço dele e a muiraquitã! Ficou feito louco.

Arrancou uma montanha de timbó de assacú de tingui de canambí,
todas essas plantas e envenenou pra sempre o lagoão. Todos os peixes
morreram e ficaram boiando com a barriga pra cima, barrigas azuis barrigas
amarelas barrigas rosadas, todas as barrigas sara) pintando a face da lagoa.
Era de-tardinha.

Então Macunaíma destripou todos esses peixes, todas as piranhas
e todos os botos, caqueando a muraquitã nas barrigas. Foi uma sangueira
mãe escorrendo sobre a terra e tudo ficou tinto de sangue. Era bôca-da-noite.

Macunaíma campeava campeava. Achou os dois brincos achou os dedões
achou as orelhas os nuquiiri o nariz, todos esses tesouros e prendeu todos
nos lugares deles com sapé e cola de peixe. Porém a perna e
a muiraquitã não achou não. Tinham sido engolidos pelo
monstro Ururau que não morre com timbó nem pau. O sangue coalhara
negro cobrindo a praia e o lagoão. Era de-noite.

Macunaíma campeava campeava. Soltava grite de lamentação
encurtando com a bulha o tamanho da bicharada. Nada. O herói varava
o campo, saltando na perna só. Gritava: — Lembrança! Lembrança
da minha marvada não vejo nem ela nem você nem nada! E pulava
mais. As lágrimas pingavam dos olhinhos azuis dele sobre as florzinhas
brancas do campo. As florzinhas tingiram de azul e foram os miosótis.
O herói não podia mais, parou. Cruzou os braços num desespero
tão heróico que tudo se alargou no espaço pra conter
o silêncio daquele penar. Só um mosquitinho raquitiquinho infernizava
inda mais a disgra do herói, zumbindo fininho: “Vim di Minas…
vim di Minas…” Então Macunaíma não achou mais
graça nesta terra. Capei bem nova relumeava lá na gupiara do
céu. Macunaíma cismou inda meio indeciso, sem saber si morar
no céu ou na ilha de Marajó. Um momento pensou mesmo em morar
na cidade da Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia, porém lhe
faltou ânimo. Pra vi ver lá, assim como tinha vivido era impossível.
Até era por causa disso mesmo que não achava mais graça
na Terra… Tudo o que fora a existência dele apesar de tantos casos
tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofri: mento tanto heroísmo,
afinal não fora sinão um se dei xar viver; e pra parar na cidade
do Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta Terra carecia
de ter um sen tido. E ele não tinha coragem pra uma organização.
Decidiu: — Qua o quê!… Quando urubu está de caipora o
de baixo caga no de cima, este mundo não tem jeito mais e vou pro céu.

Ia pro céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito mas inútil
porém de mais uma constelação. Não fazia mal que
fosse brilho inútil não, pelo menos era o mesmo de todos esses
parentes de todos os pais dos vivos da sua terra, mães pais manos cunhas
cunhadas cunhatãs, todos esses conhecidos que vivem agora do brilho
inútil das estrelas.

Plantou uma semente do cipó matamatá, filho-da-luna, e enquanto
o cipó crescia agarrou numa itá pontuda escreveu na lage que
já fora jaboti num tempo muito de dantes:

NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA

A planta já tinha crescido e se agarrava numa pon ta de Capei. O herói
capenga enfiou a gaiola dos legornes no braço e foi subindo pro céu.
Cantava triste: — “Vamos dar a despedida, — Tapera, Taleqüal
o passarinho,.

— Tapera, Bateu asa foi-se embora, — Tapera, Deixou a pena no
ninho.

— Tapera…”

Lá chegando bateu na maloca de Capei. A Lua desceu no terreiro e perguntou:
— Quê que quer, saci? — Abênção minha
madrinha, me dá pão com fa rinha? Então Capei reparou
que não era saci não, era Macunaíma o herói. Mas
não quis dar pensão pra ele, se lembrando do fedor antigo do
herói. Macunaíma enfe zou. Deu uma porção de munhecaços
na cara da Lua. Por isso que ela tem aquelas manchas escuras na cara.

Então Macunaíma foi bater na casa de Caiuano gue, a estrêla-da-manhã.
Caiuanogue apareceu na janelinha pra ver quem era e confundida pelo negrume
da noite e a capenguice do herói, perguntou: — Que é que
quer, saci? Mas logo pôs reparo que era Macunaíma o herói
e nem esperou resposta se lembrando que ele cheirava muito fedido.

— Vá tomar banho! falou fechando a janelinha.

Macunaíma tornou a enfezar e gritou.

— Vem pra rua, cafajeste! Caiuanogue raspou um susto enorme e ficou
tre mendo espiando pelo buraco da fechadura. Por isso que a bonita da estrelinha
é tão pecurrucha e tremelica tanto.

Então Macunaíma foi bater na casa de Pauí-Pódole,
o Pai do Mutum. Pauí-Pódole gostava muito dele porque Macunaíma
o defendera daquele mulato da maior mulataria na festa do Cruzeiro. Mas exclamou:
— Ah, herói, tarde piaste! Era uma honra grande pra mim receber
no meu mosqueiro um descendente de jaboti, raça primeira de todas..
. No princípio era só o Jaboti Grande que existia na vida…
Foi ele que no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo
e sua cunha. Estes foram os primeiros fulanos vivos e as pri meiras gentes
da vossa tribo… Depois, que os outros vieram. Chegaste tarde, herói!
Já somos em doze e com você a gente ficava treze na mesa. Sinto
muito mas chorar não posso! — Que pena, sinh’Helena! que o herói
exclamou. Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma.
Fez uma feitiçaria. Agarrou três pauzinhos jogou pro alto fez
encruzilhada e virou Macunaíma com todo o estenderete dele, galo galinha
gaiola revólver relógio, numa constelação nova.
É a constelação da Ursa Maior.

Dizem que um professor naturalmente alemão an dou falando por aí
por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci… Não
é não! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira
e traçando crina de bagual… A Ursa Maior é Macunaíma.
É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde
e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e ban za solitário
no campo vasto do céu.

Epílogo

Acabou-se a história e morreu a vitória.

Não havia mais ninguém lá. Dera tangolo-mangolo na
tribo Tapanhumas e os filhos dela se acabaram de um em um. Não havia
mais ninguém lá. Aqueles lu gares aqueles campos furos puxadouros
arrastadouros meios-barrancos, aqueles matos misteriosos, tudo era a solidão
do deserto… Um silêncio imenso dormia a beira-rio do Uraricoera.

Nenhum conhecido sobre a terra não sabia nem falar na falta da tribo
nem contar aqueles casos tão pançudos. Quem que podia saber
do herói? Agora os manos virados na sombra leprosa eram a segunda cabe
ça do Pai do Urubu e Macunaíma era a constelação
da Ursa Maior. Ninguém jamais não podia saber tanta história
bonita e a fala da tribo acabada. Um silêncio imenso dormia a beira-rio
do Uraricoera.

Uma feita um homem foi lá. Era madrugadinha e Vei mandara as filhas
visar o passe das estrelas. O deserto tamanho matava os peixes e os passarinhos
de pavor e a própria natureza desmaiara e caíra num gesto largado
por aí. A mudez era tão imensa que espichava o tamanhão
dos paus no espaço. De repente no peito doendo do homem caiu uma voz
da ramaria: — Currr-pac, papac! currr-pac, papac!…

O homem ficou frio de susto feito piá. Então veio brisando
um guanumbi e boleboliu no beiço do homem: — Bilo, bilo, bilo,
lá… tetéia! E subiu apressado pras árvores. O homem
seguin do o vôo do guanumbi, olhou pra cima.

— Puxa rama, boi! o beija-flor se riu. E escafedeu.

Então o homem descobriu na ramaria um papagaio verde de bico dourado
espiando pra ele. Falou: — Dá o pé, papagaio.

O papagaio veio pousar na cabeça do homem e os dois se acompanheiraram.
Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova,
muito! que era canto e que era cachiri com mel-de-pau, que era boa e possuía
a traição das frutas desconhecidas do mato.

A tribo se acabara, a família virará sombras, a ma loca ruíra
minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu, porém
ficara o aruaí do séquito daqueles tempos de dantes em que o
herói fora o grande Macunaíma im perador. E só o papagaio
no silêncio do Uraricoera pre servava do esquecimento os casos e a fala
desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases
e feitos do herói.

Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa ru mo de Lisboa. E o homem
sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso
que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei
na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura
as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente.

Tem mais não.

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