Limites e protocolo

Lima Barreto

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O Sr. Noronha Santos, diretor do Arquivo Municipal desta cidade, acaba de imprimir e publicar, por ordem e conta da respectiva Prefeitura, uma excelente memória sobre os limites desta leal e heróica “urbs” com o Estado do Rio.

À vontade para falar dessas questões de limites estaduais, a propósito de sua curiosa obra, porquanto sou carioca, aproveito a ocasião para o fazer de um modo geral.

O seu trabalho, que é exaustivo e minucioso, sofre do mesmo erro de visão que os demais referentes a tais questões.

Todos eles querem ir buscar, como argumento decisivo da validade de tal ou qual linha divisória entre as antigas províncias, os documentos oficiais, decretos, portarias, avisos e outros atos administrativos.

Um trabalho desses, que revela esforço e paciência, se não inteligência e capacidade, tem, entretanto, o pequeno defeito de esquecer que nem o Império e, muito menos, o governo colonial, tinham em mira, quando dividiram e subdividiram o Brasil, criar nele nacionalidades. O seu fito era outro: era obter províncias, comarcas, capitanias, termos, que, por meio de delegados seus, neles prepostos, permitissem ser mais bem dirigidas estas terras. O Amazonas e o Paraná nasceram ontem…

Não se trata de linhas rígidas e imobilizadas no tempo. A precisão era-lhes então absolutamente indiferente, por muitas razões. Uma delas é que eles, ambos os governos, podiam alterá-las quando quisessem; uma outra é que a topografia do interior brasileiro devia ser mal conhecida, baralhada de denominações e corruptelas de denominações tupaicas, que cada um pronunciava a seu modo; e há outras causas que agora me escapam, para dar a tais documentos um valor muito relativo e sem valor para nós outros, agora que queremos organizar pequenas pátrias.

Podem objetar que, quanto aqui, o Distrito Federal, segundo a terminologia republicana, não militam tais causas. Não há tal. Nós podemos bem imaginar o que era tudo isto, há cerca de cem anos, quando a Regência criou, em 1833, o Município Neutro. Era o indistinto. A barafunda devia ter sido a mesma, como nas outras partes do Brasil, tanto assim que um Ministro de Estado, o Conselheiro Chichorro da Gama, aludindo a obras do canal da Pavuna relatou-as à Assembléia Geral do Império, como estando sendo efetuados na Província do Rio de Janeiro e no Município do Iguaçu.

Os limites do atual Distrito Federal, entretanto, já haviam sido fixados no ano anterior. Aprendi tudo isto na obra do amigo Noronha Santos (o da Prefeitura), e não quero com isso de forma alguma diminuir-lhe o trabalho e o mérito.

O que me parece, entretanto, é que semelhantes trabalhos, que demandam tantas qualidades de inteligência e caráter, podiam ser mais bem empregados para um mais perfeito conhecimento da fisionomia do nosso povoamento, dos seus caminhos, das razões de fixação da população aqui e ali, onde e por que influíram os índios e as suas denominações locais, onde e por que aconteceu tal coisa com os negros e onde e por que se deu tal com os portugueses, não esquecendo as pequenas localidades onde todos estes três elementos se misturaram.

Considerações ligeiras sobre trabalho de tanta monta, elas só têm por fim justificar ao meu ilustre amigo, Dr. Noronha Santos, as palavras que lhe disse, no Arquivo Municipal, há dias:

— Estas questões não têm, para mim, senão uma importância mínima. Deviam ser resolvidas por amigável acordo.
Temo muito transformar esta minha colaboração no A.B.C., em crônica literária; mas recebo tantas obras e a minha vida é de tal irregularidade, a ponto de atingir as minhas próprias algibeiras, que, na impossibilidade de acusar logo o recebimento das obras, me vejo na contingência de fazê-lo por este modo, a fim de não parecer inteiramente grosseiro.

Está neste caso o trabalho do Sr. Orris Soares, a quem aqui muito conheci, mas que me chega da atualmente benfazeja Paraíba. Chama-se Rogério e é um drama em três atos.

O Sr. Soares é autor de mais quatro outras peças, das quais três consideráveis, sendo que uma destas, – A Cisma – foi aqui muito elogiada, quando publicada, porque o dramaturgo não tem tido a felicidade de obter a representação das suas produções teatrais. E é pena, porquanto, pela leitura – estou julgando por esta do Rogério – elas deviam ser merecedoras dessa experiência.

Na atual o autor intenta o estudo do drama íntimo que se deve passar no peito de um revolucionário, generoso e sincero, originado pelo choque e luta entre a violência e a brandura, com os respectivos cortejos de sentimentos derivados.

Ele, o autor, simbolizava uma em Débora – espécie de Thervigne, – a outra, em Malvina.

Admirei muito a peça, o estudo dos personagens, da protagonista, embora me parecesse ela não possuir uma certa fluidez. Isto nada quer dizer, porque é qualidade que se adquire. As que não se adquirem são as que ele têm: poder de imaginar, de criar situações e combiná-las.

A cena final da loucura do terrível revolucionário – Rogério – julgando-se rei e coroando-se com uma caixa de papelão, é maravilhosa, e intensa.

É uma peça revolucionária, inspirada nos acontecimentos da atual revolução russa – o que se denuncia por alusões veladas e claras no decorrer dela.

O autor não esconde a sua antipatia pelos revolucionários não só russos, como os de todo o jaez. Isto ele o faz com o pensamento geral da peça, como também nos detalhes, principalmente no cerimonial, nas atitudes governamentais e imperiais que eles tomam quando assumem o mando.

Não é só com os de hoje que tal se dá, mas com os de sempre. Esses homens podem ser para nós ridículos, mas o motivo é porque os julgamos fora do seu tempo ou longe dele.

Quando nos transportamos à efervescência das idéias do meio que os criou, eles não se parecem assim. São talvez plantas de estufa, mas são plantas imponentes e grandiosas, mesmo aquecidas artificialmente.

Eu não aconselharia a Orris Soares a leitura das Origines de Taine nem o recentíssimo Les Dieux ont soif, para sentir como me julgo com razão e para encontrar o motivo por que, depois de passada a borrasca, eles nos aparecem medíocres.

E assim é sempre quando se trata de grandes movimentos de sentimentos e de idéias que apaixonam as multidões. Compreendo muito mal as “Cruzadas” e seus barões e ainda menos as guerras de religião de Luteranos, Católicos, Calvinistas, etc.

Quanto ao cerimonial e ao protocolo de que se fazem cercar os recém-chegados ao poder, os há de muitas espécies, e os mais grotescos.

Não tenho à mão nenhum exemplar de livro que me informe dos que os reis do Haiti se fizessem cercar; mas dois casos curiosos conheço fora dos revolucionários.

Um é o do ditador do Paraguai, Carlos Antônio Lopez, que, para inaugurar um teatro feito por ele e construído por um literato espanhol, se apresentou na sala de espetáculo, no dia da inauguração, disforme de gordura, mamútico. A cabeça completamente unida ao rosto prosseguia numa imensa papada, sem linhas nem contornos e como que tinha a forma de uma pêra. Cobria-a colossal chapéu de palha, com quase um metro de alto, verdadeiramente carnavalesco na sua feição de quiosque.

Quem conta isto é um escritor argentino, Heitor Varela, que esteve em Assunção, no tempo; e a citação eu a tiro de artigos que o ilustrado Sr. Afonso de Taunay publicou, com o título “Álbum de Elisa Lynch”, na Revista do Brasil.

Há, porém, outros, os de certos magnatas sul-americanos vaidosos que se fazem escoltar por navios de guerra quando dão passeios pelos lagos azuis e plácidos do país.

Portanto, ainda se pode repetir: cá e lá más fadas há.

A.B.C., 2-5-1920

Fonte: pt.wikisource.org

 

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