Iaiá Garcia

Machado de Assis

Capítulo 1

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Luís Garcia transpunha a soleira da porta, para sair, quando apareceu um criado e lhe entregou esta carta:

5 de Outubro de 1866.

Sr. Luís Garcia — Peço-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas horas da tarde. Preciso de seus conselhos, e talvez de seus obséquios. — Valéria.

— Diga que irei. A senhora está cá no morro?

— Não, senhor, está na Rua dos Inválidos.

Luís Garcia era funcionário público. Desde 1860 elegera no lugar menos povoado de Santa Teresa uma habitação modesta, onde se meteu a si e a sua viuvez. Não era frade, mas queria como eles a solidão e o sossego. A solidão não era absoluta, nem o sossego ininterrompido; mas eram sempre maiores e mais certos que cá embaixo. Os frades que, na puerícia da cidade, se tinham alojado nas outras colinas, desciam muita vez, — ou quando o exigia o sacro ministério, ou quando o governo precisava da espada canônica, — e as ocasiões não eram raras; mas geralmente em derredor de suas casas não ia soar a voz da labutação civil. Luís Garcia podia dizer a mesma cousa; e, porque nenhuma vocação apostólica o incitava a abrir a outros a porta de seu refúgio, podia dizer-se que fundara um convento em que ele era quase toda a comunidade, desde prior até noviço.

No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um anos. Era alto e magro, um começo de calva, barba raspada, ar circunspeto. Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela impassibilidade aparente ou contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e cepticismo, com seus laivos de desdém. O desdém não se revelava por nenhuma expressão exterior; era a ruga sardônica do coração. Por fora, havia só a máscara imóvel, o gesto lento e as atitudes tranqüilas. Alguns poderiam temê-lo, outros detestá-lo, sem que merecesse execração nem temor. Era inofensivo por temperamento e por cálculo. Como um célebre eclesiástico, tinha para si que uma onça de paz vale mais que uma libra de vitória. Poucos lhe queriam deveras, e esses empregavam mal a afeição, que ele não retribuía com afeição igual, salvo duas exceções. Nem por isso era menos amigo de obsequiar. Luís Garcia amava a espécie e aborrecia o indivíduo. Quem recorria a seu préstimo, era raro que não obtivesse favor. Obsequiava sem zelo, mas com eficácia, e tinha a particularidade de esquecer o benefício, antes que o beneficiado o esquecesse: efeito pasmoso em tal gênero de transações.

A vida de Luís Garcia era como a pessoa dele, — taciturna e retraída. Não fazia nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia lá dentro a melancolia da solidão. Um só lugar podia chamar-se alegre: eram as poucas braças de quintal que Luís Garcia percorria e regava todas as manhãs. Erguia-se com o Sol, tomava do regador, dava de beber às flores e à hortaliça; depois recolhia-se e ia trabalhar antes do almoço, que era às oito horas. Almoçado, descia a passo lento até à repartição, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente as gazetas do dia. Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade do método. Fechado o expediente, voltava logo para casa, detendo-se raras vezes em caminho. Ao chegar a casa, já o preto Raimundo lhe havia preparado a mesa, — uma mesa de quatro a cinco palmos, — sobre a qual punha o jantar, parco em número, medíocre na espécie, mas farto e saboroso para um estômago sem aspirações nem saudades. Ia dali ver as plantas e reler algum tomo truncado, até que a noite caía. Então, sentava-se a trabalhar até às nove horas, que era a hora do chá.

Não somente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas também a casa participava dela. Cada móvel, cada objeto, — ainda os ínfimos, — parecia haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa hora, como que se enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, à hora costumada; abriam-se as mesmas janelas e nunca outras. A regularidade era o estatuto comum. E se o homem amoldara as cousas a seu jeito, não admira que amoldasse também o homem. Raimundo parecia feito expressamente para servir Luís Garcia. Era um preto de cinqüenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seus largos dias, um tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e feliz. Quando Luís Garcia o herdou de seu pai, — não avultou mais o espólio, — deu-lhe logo carta de liberdade. Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregara-o ao colo, e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para dilacerar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luís Garcia viu só a generosidade, não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu.

— És livre, disse Luís Garcia; viverás comigo até quando quiseres.

Raimundo foi dali em diante um como espírito externo de seu senhor; pensava por este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas as suas ações, não menos silenciosas que pontuais. Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar competente. Raimundo, posto fosse o único servidor da casa, sobrava-lhe tempo, à tarde, para conversar com o antigo senhor, no jardinete, enquanto a noite vinha caindo. Ali falavam de seu pequeno mundo, das raras ocorrências domésticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ou outra circunstância exterior. Quando a noite caía de todo e a cidade abria os seus olhos de gás, recolhiam-se eles a casa, a passo lento, à ilharga um do outro.

— Raimundo hoje vai tocar, não é? dizia às vezes o preto.

— Quando quiseres, meu velho.

Raimundo acendia as velas, ia buscar a marimba, caminhava para o jardim, onde se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozes de África, memórias desmaiadas da tribo em que nascera. O canto do preto não era de saudade; nenhuma de suas cantilenas vinha afinada na clave pesarosa. Alegres eram, guerreiras, entusiastas, fragmentos épicos, resíduo do passado, que ele não queria perder de todo, não porque lastimasse a sorte presente, mas por uma espécie de fidelidade ao que já foi. Por fim calava-se. O pensamento, em vez de volver ao berço africano, galgava a janela da sala em que Luís Garcia trabalhava e pousava sobre ele como um feitiço protetor. Quaisquer que fossem as diferenças civis e naturais entre os dous, as relações domésticas os tinham feito amigos.

Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha.

Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia mais festivo da semana. No sábado, à tarde acabado o jantar, descia Raimundo até a Rua dos Arcos, a buscar a sinhá-moça, que estava sendo educada em um colégio. Luís Garcia esperava por eles, sentado à porta ou encostado à janela, quando não era escondido em algum recanto da casa, para fazer rir a pequena. Se a menina o não via à janela ou à porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde não era difícil dar com ele, porque os recantos eram poucos. Então caíam nos braços um do outro. Luís Garcia pegava dela e sentava-a nos joelhos. Depois, beijava-a, tirava-lhe o chapelinho, que cobria os cabelos acastanhados e lhe tapava parte da testa rosada e fina; beijava-a outra vez, mas então nos cabelos e nos olhos, — os olhos, que eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa.

Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá. No colégio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com igual nome, acrescentavam-lhe o apelido de família. Esta era Iaiá Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o pai. Luís Garcia punha-a no chão, tornava a subi-la aos joelhos, até que consentia finalmente em separar-se dela por alguns instantes. Iaiá ia ter com o preto.

— Raimundo, o que é que você me guardou?

— Guardei uma cousa, respondia ele sorrindo. Iaiá não é capaz de adivinhar o que é.

— É uma fruta.

— Não é.

— Um passarinho?

— Não adivinhou.

— Um doce?

— Que doce é?

— Não sei; dá cá o doce.

Raimundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava a lembrança guardada. Era às vezes um confeito, outras uma fruta, um inseto esquisito, um molho de flores. Iaiá festejava a lembrança do escravo, dando saltos de alegria e de agradecimento. Raimundo olhava para ela, bebendo a felicidade que se lhe entornava dos olhos, como um jorro de água virgem e pura. Quando o presente era uma fruta ou um doce, a menina trincava-o logo, a olhar e a rir para o preto, a gesticular, e a interromper-se de quando em quando:

— Muito bom! Raimundo é amigo de Iaiá… Viva Raimundo!

E seguia dali a mudar de roupa, e a visitar o resto da casa e o jardim. No jardim achava o pai já sentado no banco do costume, com uma das pernas sobre a outra, e as mãos cruzadas sobre o joelho. Ia ter com ele, sentava-se, erguia-se, colhia uma flor, corria atrás das borboletas. De noite, não havia trabalho para Luís Garcia; a noite, como o dia seguinte, era toda consagrada à criança. Iaiá referia ao pai as anedotas do colégio, as puerilidades, que não valem mais nem menos que outras da idade madura, as intriguinhas de nada, as pirraças de cousa nenhuma. Luís Garcia escutava-a com igual atenção à que prestaria a uma grande narrativa histórica. Seu magro rosto austero perdia a frieza e a indiferença; inclinado sobre a mesa, com os braços estendidos, as mãos da filha nas suas, considerava-se o mais venturoso dos homens. A narrativa da pequena era como costumam ser as da idade infantil: desigual e truncada, mas cheia de um colorido seu. Ele ouvia-a sem interromper; corrigia, sim, algum erro de prosódia ou alguma reflexão menos justa; fora disso, ouvia somente.

Pouco depois da madrugada todos três estavam de pé. O sol de Santa Teresa era o mesmo da Rua dos Arcos; Iaiá, porém, achava-lhe alguma cousa mais ou melhor, quando o via entrar pela alcova dentro, através das persianas. Ia à janela que dava para uma parte do jardim. Via o pai bebendo a xícara de café, que aos domingos precedia o almoço. Às vezes ia ter com ele; outras vezes ele caminhava para a janela, e, com o peitoril de permeio, trocavam os ósculos da saudação. Durante o dia, Iaiá derramava pela casa todas as sobras de vida que tinha em si. O rosto de Luís Garcia acendia-se de um reflexo de juventude, que lhe dissipava as sombras acumuladas pelo tempo. Raimundo vivia da alegria dos dous. Era domingo para todos três, e tanto o senhor como o antigo escravo não ficavam menos colegiais que a menina.

— Raimundo, dizia esta, você gosta de santo de comer?

Raimundo empertigava o corpo, abria um riso, e dando aos quadris e ao tronco o movimento de suas danças africanas, respondia cantarolando:

— Bonito santo! santo gostoso!

— E santo de trabalhar?

Raimundo, que já esperava o reverso, estacava subitamente, punha a cabeça entre as mãos, e afastava-se murmurando com terror:

— Eh… eh… não fala nesse santo, Iaiá! não fala nesse santo!

— E santo de comer?

— Bonito santo! santo gostoso!

E o preto repetia o primeiro jogo, depois o segundo, até que Iaiá, aborrecida, passava a outra cousa.

Não havia só recreio. Uma parte mínima do dia, — pouco mais de uma hora, — era consagrada ao exame do que Iaiá aprendera no colégio, durante os dias anteriores. Luís Garcia interrogava-a, fazia-a ler, contar e desenhar alguma cousa. A docilidade da menina encantava a alma do pai. Nenhum receio, nenhuma hesitação; respondia, lia ou desenhava, conforme lhe era mandado ou pedido.

— Papai quer ouvir tocar piano? disse ela um dia; olhe, é assim.

E com os dedos na borda da mesa, executava um trecho musical, sobre teclas ausentes. Luís Garcia sorriu, mas um véu lhe empanou os olhos. Iaiá não tinha piano! Era preciso dar-lhe um, ainda com sacrifício. Se ela aprendia no colégio, não era para tocar mais tarde em casa? Este pensamento enraizou-se-lhe no cérebro e turbou o resto do dia. No dia seguinte, Luís Garcia encheu-se de valor, pegou da caderneta da Caixa Econômica e foi retirar o dinheiro preciso para comprar um piano. Eram da filha as poucas economias que ajuntava; o piano era para ela igualmente; não lhe diminuía a herança.

Quando no seguinte sábado, Iaiá viu o piano, que o pai lhe foi mostrar, sua alegria foi intensa, mas curta. O pai abrira-o, ela acordou as notas adormecidas no vasto móvel, com suas mãozinhas ainda incertas e débeis. A um dos lados do instrumento, com os olhos nela, Luís Garcia pagava-se do sacrifício, contemplando a satisfação da filha. Curta foi ela. Entre duas notas, Iaiá parou, olhou para o pai, para o piano, para os outros móveis; depois descaiu-lhe o rosto, disse que tinha uma vertigem. Luís Garcia ficou assustado, pegou dela, chamou Raimundo; mas a criança afirmou que estava melhor, e finalmente que a vertigem passara de todo. Luís Garcia respirou; os olhos de Iaiá não ficaram mais alegres, nem ela foi tão travessa como costumava ser.

A causa da mudança, desconhecida para Luís Garcia, era a penetração que madrugava no espírito da menina. Lembrara-se ela, repentinamente, das palavras que proferira e do gesto que fizera, no domingo anterior; por elas explicou a existência do piano; comparou-o, tão novo e lustroso, com os outros móveis da casa, modestos, usados, encardida a palhinha das cadeiras, roído do tempo e dos pés um velho tapete, contemporâneo do sofá. Dessa comparação extraiu a idéia do sacrifício que o pai devia ter feito para condescender com ela; idéia que a pôs triste, ainda que não por muito tempo, como sucede às tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia também irrupção naquela alma até agora isenta da jurisdição da fortuna.

Passou! Bem depressa os sons do piano vieram casar-se ao gorjeio de Iaiá e ao riso do escravo e do senhor. Era mais uma festa aos domingos. Iaiá confiou um dia ao pai a idéia que tinha de ser mestra de piano. Luís Garcia sorria a esses planos da meninice, tão frágeis e fugidios como suas impressões. Também ele os tivera aos dez anos. Que lhe ficara dessas primeiras ambições? Um resíduo inerte e nada mais. Mas assim como as aspirações daquele tempo o fizeram feliz, era justo não dissuadir a filha de uma ambição, aliás inocente e modesta. Oxalá não viesse a ter outras de mais alto vôo! Demais, que lhe poderia ele desejar, senão aquilo que a tornasse independente e lhe desse os meios de viver sem favor? Iaiá tinha por si a beleza e a instrução; podia não ser bastante para lhe dar casamento e família. Uma profissão honesta aparava os golpes possíveis da adversidade. Não se podia dizer que Iaiá tivesse talento musical: que importa? Para ensinar a gramática da arte, era suficiente conhecê-la.

Resta dizer que havia ainda uma terceira afeição de Iaiá; era Maria das Dores, a ama que a havia criado, uma pobre catarinense, para quem só havia duas devoções capazes de levar uma alma ao céu: Nossa Senhora e a filha de Luís Garcia. Ia ela de quando em quando à casa deste, nos dias em que era certo encontrar lá a menina, e ia de S. Cristóvão, onde morava. Não descansou enquanto não alugou um casebre em Santa Teresa, para ficar mais perto da filha de criação. Um irmão, antigo forriel, que fizera a campanha contra Rosas, era seu companheiro de trabalho.

Tal era a vida uniforme e plácida de Luís Garcia. Nenhuma ambição, cobiça ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma. A última dor séria que tivera foi a morte da esposa, ocorrida em 1859, meses antes de ir-se ele esconder em Santa Teresa. O tempo, esse químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias morais, acabou por matar no coração do viúvo, não a lembrança da mulher, mas a dor de a haver perdido. Importa dizer que as lágrimas derramadas nessa ocasião honraram a esposa morta, por serem conquista sua. Luís Garcia não casara por amor nem interesse; casara porque era amado. Foi um movimento generoso. A mulher não era de sua mesma índole; seus espíritos vinham de pontos diferentes do horizonte. Mas a dedicação e o amor da esposa abriram nele a fonte da estima. Quando ela morreu, viu Luís Garcia que perdera um coração desinteressado e puro; consolou-o a esperança de que a filha havia herdado uma parcela dele. Parece que sim; Iaiá não amava, adorava o pai.

Assim vivia esse homem céptico, austero e bom, alheio às cousas estranhas, quando a carta de 5 de outubro de 1866 veio chamá-lo ao drama que este livro pretende narrar.

Capítulo 2

A hora aprazada era incômoda para Luís Garcia, cujos hábitos de trabalho mal sofriam interrupção. Não obstante, foi à Rua dos Inválidos.

Valéria Gomes era viúva de um desembargador honorário, falecido cerca de dous anos antes, a quem o pai de Luís Garcia devera alguns obséquios e a quem este prestara outros. Opulenta e grande senhora, não havia entre eles relações assíduas ou estreitas; mas a viúva e seu finado marido sempre o tiveram em boa conta e o tratavam com muito carinho. Defunto o desembargador, Valéria recorrera duas ou três vezes aos serviços de Luís Garcia; contudo, era a primeira vez que o fazia com tamanha solenidade.

Valéria recebeu-o afetuosamente, estendendo-lhe a mão, ainda fresca, apesar dos anos, que subiam de quarenta e oito. Era alta e robusta. A cabeça, forte e levantada, parecia protestar pela altivez da atitude contra a moleza e tristura dos olhos. Estes eram negros, a sobrancelha basta, o cabelo abundante, listrado de alguns fios de prata. Posto não andasse alegre nos últimos tempos, estava naquele dia singularmente preocupada. Logo que entraram na sala, deixou-se ela cair numa poltrona; caiu e ficou silenciosa alguns instantes. Luís Garcia sentou-se tranqüilamente na cadeira que ela lhe designou.

— Sr. Luís Garcia, disse a viúva; esta guerra do Paraguai é longa, e ninguém sabe quando acabará. Vieram notícias hoje?

— Não me consta.

— As de ontem não me animaram nada, continuou a viúva depois de um instante. Não creio na paz que o Lopez veio propor. Tenho medo que isto acabe mal.

— Pode ser, mas não dependendo de nós…

— Por que não? Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as mães um grande esforço e darem exemplos de valor, que não serão perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para que vá alistar-se como voluntário; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou tenente; voltará major ou coronel. Ele, entretanto, resiste até hoje; não é falta de coragem nem de patriotismo; sei que tem sentimentos generosos. Contudo, resiste…

— Que razão dá ele?

— Diz que não quer separar-se de mim.

— A razão é boa.

— Sim, porque também a mim custaria a separação. Mas não se trata do que eu ou ele podemos sentir: trata-se de cousa mais grave, — da pátria, que está acima de nós.

Valéria proferiu estas palavras com certa animação, que a Luís Garcia pareceu mais simulada que sincera. Não acreditou no motivo público. O interesse que a viúva mostrava agora em relação à sorte da campanha era totalmente novo para ele. Excluído o motivo público, algum haveria que ela não quisera ou não podia revelar. Justificaria ele semelhante resolução? Não se atreveu a formular a suspeita e a dúvida; limitou-se a dissuadi-la, dizendo que um homem de mais ou de menos não pesaria nada na balança do destino, e desde que ao filho repugnava a separação era mais prudente não insistir. Valéria redargüia a todas essas reflexões com algumas idéias gerais acerca da necessidade de dar fortes exemplos às mães. Quando foi preciso variar de resposta, declarou que entrava no projeto um pouco de interesse pessoal.

— Jorge está formado, disse ela; mas não tem queda para a profissão de advogado nem para a de juiz. Goza por enquanto a vida; mas os dias passam, e a ociosidade faz-se natureza com o tempo. Eu quisera dar-lhe um nome ilustre. Se for para a guerra, poderá voltar coronel, tomar gosto às armas, segui-las e honrar assim o nome de seu pai.

— Bem; mas vejamos outra consideração. Se ele morrer?

Valéria empalideceu e esteve alguns minutos calada, enquanto Luís Garcia olhava para ela, a ver se lhe adivinhava o trabalho interior da reflexão, esquecendo que a idéia de um desastre possível devia ter-lhe acudido, desde muito, e se não recuara diante dela, é porque a resolução era inabalável.

— Pensei na morte, disse Valéria daí a pouco; e, na verdade, antes a obscuridade de meu filho que um desastre… mas repeli essa idéia. A consideração superior de que lhe falei deve vencer qualquer outra.

Em seguida, como para impedir que ele insistisse nas reflexões apresentadas antes, disse-lhe claramente que, diante da recusa de Jorge, contava com o influxo de seus conselhos.

— O senhor é nosso amigo, explicou ela; seu pai também foi nosso amigo. Sabe que um e outro sempre nos mereceram muita consideração. Em todo caso, não quisera recorrer a outra pessoa.

Luís Garcia não respondeu logo; não tinha ânimo de aceitar a incumbência e não queria abertamente recusar; procurava um meio de esquivar-se à resposta. Valéria insistiu por modo que era impossível calar mais tempo.

— O que me pede é muito grave, disse ele; se o Dr. Jorge der algum peso a meus conselhos e seguir para a guerra, assumo uma porção de responsabilidade, que não só me há de gravar a consciência, como influirá para alterar nossas relações e diminuir talvez a amizade benévola que sempre achei nesta casa. O obséquio que hoje exige de mim, quem sabe se mo não lançará em rosto um dia como ato de leviandade?

— Nunca.

— Nesse dia, observou Luís Garcia sorrindo levemente, há de ser tão sincera como hoje.

— Oh! o senhor está com idéias negras! Eu não creio na morte; creio só na vida e na glória. A guerra começou há pouco e há já tanto herói. Meu filho será um deles.

— Não creio em pressentimentos.

— Recusa?

— Não me atrevo a aceitar.

Valéria ficou abatida com a resposta. Após alguns minutos de silêncio, ergueu-se e foi buscar o lenço que deixara sobre um móvel, ao entrar na sala. Enxugou o rosto, e ficou a olhar para o chão, com um dos braços caídos, em atitude meditativa. Luís Garcia entrou a refletir no modo de a dissuadir eficazmente. Seu cepticismo não o fazia duro aos males alheios, e Valéria parecia padecer naquele instante, qualquer que fosse a sinceridade de suas declarações. Ele quisera achar um meio de conciliar os desejos da viúva com a sua própria neutralidade, — o que era puramente difícil.

— Seu filho não é criança, disse ele; está com vinte e quatro anos; pode decidir por si, e naturalmente não me dirá outra cousa… Demais, é duvidoso que se deixe levar por minhas sugestões, depois de resistir aos desejos de sua mãe.

— Ele respeita-o muito.

Respeitar não era o verbo pertinente; atender fora mais cabido, porque exprimia a verdadeira natureza das relações entre um e outro. Mas a viúva lançava mão de todos os recursos para obter de Luís Garcia que a ajudasse em persuadir o filho. Como ele lhe dissesse ainda uma vez que não podia aceitar a incumbência, viu-a morder o lábio e fazer um gesto de despeito. Luís Garcia adotou então um meio-termo:

— Prometo-lhe uma cousa, disse ele; irei sondá-lo, discutir com ele os prós e os contras do seu projeto, e se o achar mais inclinado…

Valéria abanou a cabeça.

— Não faça isso; desde já lhe digo que será tempo perdido. Jorge há-de repetir-lhe as mesmas razões que me deu, e o senhor as aceitará naturalmente. Se alguma cousa lhe mereço, se não morreu em seu coração a amizade que o ligou a nossa família, peço-lhe que me ajude francamente neste empenho, com a autoridade de sua pessoa. Entre nisto, como eu mesma, disposto a vencê-lo e convencê-lo. Faz-me este obséquio?

Luís Garcia refletiu um instante.

— Faço, disse ele frouxamente.

Valéria mostrou-se reanimada com a resposta; disse-lhe que fosse lá jantar naquele mesmo dia ou no outro. Ele recusou duas vezes; mas não pôde resistir às instâncias da viúva, e prometeu ir no dia seguinte. A promessa era um meio, não só de pôr termo à insistência da viúva, mas também de encaminhar-se a saber qual era a mola secreta da ação daquela senhora. A honra nacional era certamente o colorido nobre e augusto de algum pensamento reservado e menos coletivo. Luís Garcia abriu velas à reflexão e conjecturou muito. Afinal não duvidava do empenho patriótico de Valéria, mas perguntava a si mesmo se ela quereria colher da ação que ia praticar alguma vantagem especialmente sua.

— O coração humano é a região do inesperado, dizia consigo o céptico subindo as escadas da repartição.

Na repartição soube da chegada de tristes notícias do Paraguai. Os aliados tinham atacado Curupaity e recuado com grandes perdas; o inimigo parecia mais forte do que nunca. Supunha-se até que as propostas de paz não tinham sido mais do que um engodo para fortalecer a defesa. Assim, a sorte das armas vinha reforçar os argumentos de Valéria. Luís Garcia adivinhou tudo o que ela lhe diria no dia seguinte.

No dia seguinte foi ele jantar à Rua dos Inválidos. Achou a viúva menos consternada do que deveria estar, à vista das notícias da véspera, se porventura os sucessos da guerra a preocupassem tanto como dizia. Pareceu-lhe até mais serena. Ela ia e vinha com um ar satisfeito e resoluto. Tinha um sorriso para cada cousa que ouvia, um carinho, uma familiaridade, uma intenção de agradar e seduzir, que Luís Garcia estudava com os olhos agudos da suspeita.

Jorge, pelo contrário, mostrava-se retraído e mudo. Luís Garcia, à mesa do jantar, examinava-lhe a furto a expressão dos olhos tristes e a ruga desenhada entre as sobrancelhas, gesto que indicava nele o despeito e a irritação. Na verdade, era duro enviar para a guerra um dos mais belos ornamentos da paz. Naqueles olhos não morava habitualmente a tristeza, é certo, mas eles eram, de costume, brandos e pacíficos. A mão fina pedia antes a bengala que a espada. Um bigode negro e basto, obra comum da natureza e do cabeleireiro, cobria-lhe o lábio e dava ao rosto a expressão viril que este não tinha. A estatura esbelta e nobre era a única feição que absolutamente podia ser militar. Elegante, ocupava Jorge um dos primeiros lugares entre os dandies da Rua do Ouvidor; ali podia ter nascido, ali poderia talvez morrer.

Valéria acertava quando dizia não achar no filho nenhum amor à profissão de advogado. Jorge sabia muita cousa do que aprendera; tinha inteligência pronta, rápida compreensão e memória vivíssima. Não era profundo; abrangia mais do que penetrava. Sobretudo, era uma inteligência teórica; para ele, o praxista representava o bárbaro. Possuindo muitos bens, que lhe davam para viver à farta, empregava uma partícula do tempo em advogar o menos que podia — apenas o bastante para ter o nome no portal do escritório e no almanaque de Laemmert. Nenhuma experiência contrastava nele os ímpetos da juventude e os arroubos da imaginação. A imaginação era o seu lado fraco, porque não a tinha criadora e límpida, mas vaga, tumultuosa e estéril, dessa que dá ao escrito a indecisão dos contornos, e à vida a confusão dos atos. Era generoso e bom, mas padecia um pouco de fatuidade, vício de terceira ordem que diminui a bondade nativa. Havia ali a massa de um homem futuro, à espera que os anos, cuja ação é lenta, oportuna e inevitável, lhe dessem fixidez ao caráter e virilidade à razão.

Não foi alegre nem animado o jantar. Falaram a princípio de cousas indiferentes; depois Valéria fez recair a conversação nas últimas notícias do Paraguai. Luís Garcia declarou que lhe não pareciam tão más, como diziam as gazetas, sem contudo negar que se tratava de um sério revés.

— É guerra para seis meses, concluiu ele.

— Só?

Esta pergunta foi a primeira de Jorge, que até então não fizera mais do que ouvir e comer. Valéria tomou a outra ponta do diário, e confirmou a opinião de Luís Garcia. Mas o filho continuou a não intervir. Acabado o jantar, Valéria ergueu-se; Luís Garcia fez o mesmo; mas a viúva, pousando-lhe a mão no ombro, disse em tom familiar e intencional:

— Sem cerimônia; eu volto já.

Uma vez sós os dous homens, Luís Garcia achou de bom aviso ir de ponto em branco ao assunto que ali os reunira.

— Não tem vontade de ir também ao Paraguai? perguntou ele logo que Valéria desapareceu no corredor.

— Nenhuma. Contudo, acabarei por aí.

— Sim?

— Mamãe não deseja outra cousa, e o senhor mesmo sei que é dessa opinião.

Uma resposta negativa roçou os lábios de Luís Garcia; a tempo a reprimiu, confirmando com o silêncio a pia fraude de Valéria. Tinha nas mãos o meio de inutilizar o efeito do equívoco: era mostrar-se indiferente. Jorge distraía-se em equilibrar um palito na borda de um cálice; o interlocutor, depois de olhar para ele, rompeu enfim a larga pausa:

— Mas por que motivo cede hoje, depois de recusar tanto tempo?

Jorge ergueu os olhos, sem dizer palavra, mas desejoso de referir tudo. Venceu-o o desejo. A um sinal de Jorge, acompanhou-o Luís Garcia até o terraço. Entrados no terraço, Jorge não pôde ter mão à língua.

— O senhor é amigo velho de nossa casa, disse ele; posso confiar-lhe tudo. Mamãe quer mandar-me para a guerra, porque não pode obstar os movimentos do meu coração.

— Algum namoro, concluiu friamente Luís Garcia.

— Uma paixão.

— Está certo do que diz?

— Estou.

— Não creio, tornou Luís Garcia depois de um instante.

— Por que não? Ela conta com a distância e o tempo, para matar um amor que supõe não haver criado raízes profundas.

Luís Garcia dera alguns passos, acompanhado pelo filho de Valéria; parou um instante, depois continuaram ambos a passear de um para outro lado. O primeiro refletia na explicação, que lhe pareceu verossímil, se o amor do rapaz era indigno de seu nome. Essa pergunta não se animou a fazê-la; mas procurou uma vereda tortuosa para ir dar com ela.

— Uma viagem à Europa, observou Luís Garcia depois de curto silêncio, produziria o mesmo resultado, sem outro risco mais que…

— Recusei a viagem, foi então que ela pensou na guerra.

— Mas se ela quisesse ir à Europa, o senhor recusaria acompanhá-la?

— Não; mas mamãe detesta o mar; não viajaria nunca. É possível que, se eu resistisse até à última, em relação à guerra, ela vencesse a repugnância ao mar e iríamos os dous…

— E por que não resistiu?

— Primeiramente, porque estava cansado de recusar. Há mês e meio que dura esta luta entre nós. Hoje, à vista das notícias do Sul, falou-me com tal instância que cedi de uma vez. A segunda razão foi um sentimento mau — mas justificável. Escolho a guerra, a fim de que se alguma cousa me acontecer, ela sinta o remorso de me haver perdido.

Luís Garcia parou e encarou silenciosamente o mancebo.

— Sei o que quer dizer esse olhar, continuou este; acha-me feroz, e eu sou apenas natural. O sentimento mau teve só um minuto de duração. Passou. Ficou-me uma sombra de remorso. Não acuso mamãe; sei as lágrimas que lhe vai custar a separação…

— Ainda é tempo de recuar.

— O que está feito, está feito, disse Jorge erguendo os ombros.

— Sabe que mais? Acho mau gosto dar a este negócio um desenlace épico. Que tem que fazer nisto a guerra do Paraguai? Vou sugerir-lhe um meio de arranjar as cousas. Ceda metade somente, vá à Europa sozinho, volte no fim de dous ou três anos…

 

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