Lima Barreto
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A literatura nacional possui obras maravilhosas que pouca gente conhece. Os livros conhecidos, citados e estimados, nada valem à vista dos que ficaram esquecidos e à mercê das traças das bibliotecas. Há muitos dessa literatura subjacente que talvez nem tenham chegado aos depósitos oficiais de livros e permaneçam nos desvãos poeirentos dos “sebos”, sem encontrarem mão amiga que os traga para aquela forte luz da grande publicidade a que eles foram destinados ao nascer.
Se me sobrasse fortuna e lazer tivesse eu, havia de andar pelas lojas de livros usados, a fazer descobertas dessas relíquias. Em falta de cronicons e códices manuscritos de antanho, havia de encontrar muita brochura curiosa e reveladora de novos predicados intelectuais de seus autores.
Imagino que tal se desse, porque, entre os meus poucos livros, tenho uma brochura desconhecida, cujo valor é para mim inestimável.
Todos os bibliófilos ricos do Rio de Janeiro podem comprar, nos leilões das livrarias das velhas famílias portuguêsas, manuscritos e “in-fólios”, que interessem a qualquer período da nossa história; mas a minha – A redenção de Tiradentes, pelo Sr. Fernando Pinto
de Almeida Júnior, nunca! É um drama histórico, em um prólogo, quatro atos e quatro quadros, original brasileiro, como diz na capa, e aprovado pelo Conservatório Dramático, tendo o “visto” da polícia. Foi impresso nesta cidade do Rio de Janeiro, na antiga casa Mont’Alverne, à rua Uruguaiana, 47, em 1893.
Trata-se de uma obra filosófica, histórica, crítica, republicana e cívica, mais cívica do que as recentes canções militares que o carnaval fez esquecer. Prefaciado pelo falecido Figueiredo Coimbra, esse encouraçado literário é precedido por uma porção de “vedetas” explicativas e contratorpedeiras de ofertórios significativos. O autor, por longas páginas, com divisas adequadas e outras coisas, oferece o seu drama a Saldanha Marinho, Rui Barbosa, Lopes Trovão e mais sete próceres republicanos; e, além destes, a diversas pessoas de sua família, cuja conta não se pode bem fazer, pois há uma indeterminada dedicatória – “Às minhas filhas…” – o que não impede de chamar o seu único filho varão de “unigênito”…
O seu autor era, ou parece ter sido, capitão do Exército. O Sr. Figueiredo Coimbra, no prefácio, trata-o sempre de Sr. capitão Almeida Júnior. Não tenho documento para afirmar que fosse do Exército; pode bem ser que fosse da Polícia ou da Guarda Nacional, mas tenho muitas razões para acreditar que tivesse passado pela legendária Escola Militar da Praia Vermelha.
A sua obra que, além de abracadabrante e cívica, é sincera, denuncia uma admiração filial pelo Sr. Bote- lho de Magalhães; um sentimento desses ou de qual- quer admiração por esse senhor só pode existir nos que passaram por aquele estabelecimento de ensino militar. Ninguém mais a teve, tinha, tem ou terá.
Não é meu propósito, porém, analisar a peça singular do capitão Almeida Júnior. A sua leitura, eu a fiz em anos passados, e agora não estou disposto a repeti-la. Além de suas singularidades dramáticas e cênicas, ela pode fornecer ao exegeta arguto e ágil de espírito vasta documentação do sentir dos heróicos cadetes de 1889, isto é, do 15 de Novembro, de que nós temos a cortante e eloqüente imagem viva nos Srs. Lauro Müller e Lauro Sodré. Para mim, a peça do Sr. Almeida Júnior é preciosa porque foi onde pela primeira vez vi grafado, com todas as letras, o verbo “engrossar”. Toda a gente sabe que esse verbo de jargão nasceu na velha Escola Militar, dela se propagou pela cidade inteira e chegou até aos jornais e à literatura escrita.
Como este, muitos termos da nossa geringonça, ditos e outras formas de dizer que se tomaram populares, nasceram lá. Há um muito conhecido, mas que não me atrevo a escrever aqui, apesar de muito expressivo e curioso, como processo de formação de palavras novas. Os estudiosos dessas coisas que procurem determinar a sua origem, tanto mais que na Academia Francesa já se tratou há tempos do “argot” parisiense.
A antiga escola da Praia Vermelha, como toda a caserna, terrestre ou flutuante, era muito favorável à formação de termos de gíria, de anedotas picarescas, senão fesceninas, de anexins e sentenças de sainete peculiar.
A sua segregação parcial do total da sociedade, o quase isolamento dos seus alunos do resto dos homens de outras profissões e ofícios, o encontro forçado ali de gente oriunda de vários lugares, de proveniências familiares as mais diferentes, a monotonia da vida que exige conversas, pândegas adequadas entre eles, devia levar os cadetes a criar, sem o sentir, com estes ou aqueles elementos, uns modos de linguagem própria e literatura oral sua.
Aquele estabelecimento tinha, além dessa feição peculiar à sua natureza, algumas qualidades e atributos que vieram encontrar a sua expressão máxima em Euclides da Cunha. No seu escrever, pejado de metáforas e comparações científicas, há sempre a preocupação de demonstrar saber universal, desdém pelas impressões do primeiro instante, desejo de esconder a colaboração do inconsciente sob a crosta espessa das leituras. Não se nota, no seu estilo, cambiantes, abandonos, suaves esbatimentos nas transições. A sua alma era seca e árida, e todo ele cheio de um orgulho intelectual desmedido, que a tornava ainda mais seca e mais árida. Tendo estudado difíceis disciplinas e, certamente, as conhecendo, mas literato até à medula, até à tortura de procurar um estilo original e inconfundível, até ao rebuscamento dos vocábulos raros, tinha a pretensão de filósofo, de homem de ciência que despreza o simples escritor, para ele sempre um ignorante.
Nas pequenas revistas da velha escola da Praia Vermelha, pode-se notar esse modo de espírito peculiar a ela, e também nas anedotas e “casos” contados pelos seus ex-discípulos.
Era corrente até bem pouco, entre seus alunos, que aquele instituto de ensino era o primeiro estabelecimento científico do mundo. Uma carta do doutor Audiffrent, discípulo de Augusto Comte, justificava essa crença.
Euclides da Cunha manifestou, nos seus escritos, a influência do seu primeiro meio intelectual e o seu orgulho mental devia tê-lo tomado muito cedo, pois a sua vida, que anda contada de boca em boca, não registra a existência de fortes amizades de moço, de menino, de criança.
O Sr. Alberto Rangel é o único que assim é apontado. Talvez sem fundamento, eu creio mais literária do que simples e espontânea amizade de colegas de mocidade a que existia entre eles. Entretanto, a Escola Militar era de fortes camaradagens, de grande sociabilidade, de dedicações de uns alunos pelos outros, levadas ao extremo.
Daí, talvez, essa capacidade de criar gíria, modificações e derivações na linguagem comum, que sempre foi uma criação do pendor dos homens para o seu agregamento; e ter tido ela influência decisiva nos nossos motins políticos.
Participando da sociedade em geral e sendo habitantes de uma caserna estavam, portanto, os seus alunos muito adequados a trazer para a massa os modismos que o quartel criava. Hoje, esses dizeres pitorescos saem das casas de jogo: “deu o suíte”; “bancou o trouxa”, etc. Sinais dos tempos? Não me compete examinar tal coisa. Voltemos ao assunto.
Entre os soldados propriamente, que entre nós são em geral originários das mais humildes camadas da sociedade, além do calão quarteleiro, há histórias, contos, criados com os elementos que lhes estão à mão, e com um pensamento diretor que lhes acaricia a sua desfavorável situação social, e os consola da sua pobreza e do seu estado de obediência e inferioridade. Nessas historietas e anedotas, há sempre como moralidade a vingança ou a vitória da praça com seu espírito, seus ardis ou esperteza de meios destros, sobre os seus superiores civis ou militares. Entre os nossos jovens oficiais, em que a rigidez de certo positivismo estreito e pedante não domina mais, devia aparecer algum que colhesse da boca dos soldados exemplares dessa literatura plebéia, tanto mais interessante quanto desconhecida do grande público, embora por fragmentos e alusões figure no falar familiar.
Não possuo muitos, mas tenho alguns, dos quais publico hoje um, que me foi fornecido pela ex-praça Francisco José dos Santos, natural de Aracati, no Ceará. Atualmente é contínuo ou servente da Secretaria da Guerra. A sua história, que talvez não tenha muito de original para o comum, com o seu cômico reduzido, é, entretanto, a demonstração das recriminações dos soldados, quanto à exigüidade dos vencimentos de suas reformas.
Não parece muito recente, pois, além do mais, tem aquele velho espírito de antagonismo entre o padre e o soldado, representantes das classes que antigamente disputavam o domínio da sociedade.
Santos, quando me contou a história do “Soldado velho” era ainda cabo efetivo do exército, servindo na Secretaria como “correio”, , isto é, um dos estafetas para entrega da correspondência, que lá não são civis como nas outras secretarias, mas praças de certa graduação, vencendo uma minguada diária.
Eu a dou mais abaixo quase como o ex-cabo ma forneceu por escrito, quando eu era efetivamente oficial da Secretaria da Guerra.
Vamos, portanto, lê-la:
“HISTÓRIA DE UM SOLDADO VELHO
“Soldado Velho” deu baixa do serviço do Exército, por não servir mais para o trabalho. O soldado que recebia em recompensa de muitos anos de serviço era um cruzado. Ora, o que fez ele? Comprou um pato e saiu a revendê-lo. Chegando perto de uma casa saiu-lhe uma criada a comprar o pato.
Ele disse que o custo era de dois cruzados; ela, a criada, vai falar à patroa, que manda vir o pato e, por sua vez, manda pagá-lo. O soldado, porém, não saiu mais do portão. Após certo espaço de tempo chega um frade para penetrar na casa e pergunta-lhe o que estava ali fazendo. “Soldado Velho” que bispou alguma coisa no caso disse que estava à espera do pagamento de um pato que vendera à família. O frade logo perguntou quanto era; ele disse o custo de dois cruzados. O religioso puxa do bolso da batina o dinheiro e paga. Dispõe-se depois a entrar na casa; o soldado o acompanha; e ambos entram. Chegando na sala, o frade, que parecia peculiarmente muito íntimo da casa, puxou uma cadeira e sentou-se; o militar fez o mesmo.
A dona da casa vendo o frade entrar, acompanhado por aquele homem desconhecido, ficou interiormente furiosa, mas sem saber o que devia fazer, nem com coragem para perguntar ao frade que homem era aquele. O eclesiástico não lhe explicava o fato, dizendo uma coisa é outra sem relação com ele; e assim vão os três até à hora de jantar, ao qual não faltou o pato de cabidela. O frade tomou lugar na mesa; o “Soldado Velho” também.
A dona da casa continuava furiosa, mas aceitava silenciosamente a situação, fazendo das tripas coração. Já estava a terminar o jantar quando bateram à porta. Era o dono da casa. Estava tudo perdido. À vista disto, a mulher tranca o frade e o soldado em uma alcova. O marido não saiu mais e a mulher cada vez mais ficava amedrontada. Chega a noite.
O frade não tinha dado até ali uma palavra; e o “Soldado Velho” também; mas, quando foi aí pelas 10 horas, a praça reformada, vendo que todos já estavam dormindo, provocou uma conversação com o frade. Pediu-lhe este que não falasse ali, mas o outro continuou a falar.
O frade gratificou-o com um conto de réis para que ele nada mais dissesse. Recebeu o dinheiro o “Soldado Velho”, mas imediatamente continuou a dizer que no dia que comia pato não podia ficar calado.
Deu-lhe o frade mais outro conto de réis ficando sem vintém. “Soldado Velho”, porém, não cessou de falar.
O seu companheiro, para ver se ele se calava, deu-lhe a batina de sêda. “Soldado Velho” teimou em afirmar que no dia em que comia pato não podia estar calado.
O frade já lhe pedia pelo amor de Deus que não falasse mais, pois, se tal fizesse, eles ficariam desgraçados. O dono da casa certamente despertaria e era capaz de matá-los. “Soldado Velho” não queria saber de nada; o seu desejo era só falar. O frade, percebendo que não tinha mais o que dar, despiu-se de toda a roupa e entregou ao tagarela para que ele não falasse mais.
Já sendo meia-noite, na cadeia, a sentinela soltou o brado de alerta; o “Soldado Velho” ouviu e respondeu com outro formidável brado. O frade, com medo, meteu as mãos na porta e saiu nu. “Soldado Velho”, que ainda não estava vestido com a batina, acompanhou o frade. Este pulou uma janela mas o dono da casa pula atrás dele e dá-lhe um tiro. “Soldado Velho” pula em seguida ao dono e o prende. O homem, que era pessoa de grande reputação, não quis logo sujeitar-se à prisão, mas “Soldado Velho” não queria saber de nada.
Estava o “grosso” preso e bem preso, pois ele, soldado, era o rondante e tinha que cumprir o serviço, tanto mais que o preso tinha dado um tiro num homem. Não podia de maneira alguma soltá-lo. O dono da casa, vendo a resolução do “Soldado Velho” e que tinha mesmo de ir à presença das autoridades, vexado, ele que era muito conhecido e respeitado por todos, propôs ao militar, se ele o soltasse, dar-lhe doze contos. “Soldado Velho” aceitou o trato, mas com a condição do dono da casa mandar a sua mulher contar e trazer ali onde estavam, a maquia. O homem chamou a mulher e mandou que ela contasse os contos de réis com toda a pressa e os trouxesse. Assim foi feito. “Soldado Velho”, que só vencia um pobre cruzado por mês, saiu da aventura com 14:OOO$, quatro cruzados, a batina de sêda do frade e todos os seus panos menores.
Quem pagou o pato?
Hoje, 10-4-1919
Fonte: pt.wikisource.org
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