História da Literatura Brasileira

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José Veríssimo

Introdução

A LITERATURA QUE SE escreve no Brasil é já a expressão
de um pensamento e sentimento que se não confundem mais com o português,
e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é
mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o Romantismo,
que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente
à nossa independência política. Mas o sentimento que o
promoveu e princi- palmente o distinguiu, o espírito nativista primeiro
e o nacionalista depois, esse se veio formando desde as nossas primeiras manifestações
literárias, sem que a vassalagem ao pensamento e ao espírito
português lograsse jamais abafá-lo. É exatamente essa
persistência no tempo e no espaço de tal sentimento, manifestado
literariamente, que dá à nossa literatura a unidade e lhe justifica
a autonomia.

A nossa literatura colonial manteve aqui tão viva quanto lhe era possível
a tradição literária portuguesa. Submissa a esta e repetindo-lhe
as manifestações, embora sem nenhuma excelência e antes
inferiormente, animou-a todavia desde o princípio o nativo sentimento
de apego à terra e afeto às suas cousas. Ainda sem propósito
acabaria este sentimento por determinar manifestações literárias
que em estilo diverso do da metrópole viessem a exprimir um gênio
nacional que paulatinamente se diferençava.

Necessariamente nasceu e desenvolveu-se a literatura no Brasil como rebento
da portuguesa e seu reflexo. Nenhuma outra apreciável influência
espiritual experimentou no período da sua formação, que
é o colonial. Também do próprio meio em que se ia daquela
formando lhe não proveio então qualquer influxo mental que pudesse
contribuir para distingui-la. E como assim foi até quase acabar o século
XVIII, não apresenta períodos claros e definidos da sua evolução
nesse lapso. As reações que daquele meio porventura sofreu foram
apenas de ordem física, a impressão da terra em seus filhos;
de ordem fisiológica, os naturais efeitos dos cruzamentos que aqui
produziram novos tipos étnicos; e de ordem política e social,
resultantes das lutas com os holandeses e outros forasteiros, das expedições
conquistadoras do sertão, dos descobrimentos das minas e conseqüente
dilatação do país e aumento da sua riqueza e importância.
Estas reações não bastaram para de qualquer modo infirmar
a influência espiritual portuguesa e minguar-lhe os efeitos. Criaram,
porém, o sentimento por onde a literatura aqui se viria a diferençar
da portuguesa. As divisões até hoje feitas no desenvolvimento
da nossa literatura não parece correspondam à realidade dos
fatos. Mostra-o a sua mesma variação e diversidade nos diferentes
historiadores da nossa literatura, e até mesmo no principal deles,
incoerente consigo mesmo. Após acurado estudo desses fatos tenho por
impossível e vão assentá-los em divisões perfeitamente
exatas ou dispô-los em bem distintas categorias. Fazê-lo com êxito
importaria o mesmo que descobrir outros tantos aspectos diversos e característicos
em uma literatura sem autonomia, atividade e riqueza bastantes para se nela
passarem as alterações de inspiração, de estesia
ou de estilo que discriminam e assentam os períodos literários;
uma literatura que em trezentos anos da sua existência apagada e mesquinha
não experimentou outras reações espirituais que as da
Metrópole, servilmente seguida. Assim sendo, é evidente que
os únicos períodos literários aqui verificáveis
seriam os mesmos ali averiguados. Quando começava aqui a literatura,
lá havia terminado, ou estava terminando, o quinhentismo, a melhor
época da portuguesa. Principiava então lá o seiscentismo,
prematura e rápida degradação daquele brilhante momento,
cuja brevidade era aliás consoante com a da época de esplendor
nacional, revendo tudo o que de ocasional e fortuito houvera nos escassos
cem anos da dupla glória portuguesa. Mas, como acertadamente nota um
novo crítico, “o seiscentismo não terminou em 1699, no
último dia do ano, perdurou até a segunda metade do século
XVIII e a Arcádia e suas imitações não encerram
o século XVIII; a Arcádia de Antônio Dinis só se
fundou em 1756. No segundo quartel ainda Antônio José satirizava
o gongorismo, que era uma atualidade”.1

O que, portanto, havia no Brasil era o seiscentismo, a escola gongórica
ou espanhola, aqui amesquinhada pela imitação, e por ser, na
poesia e na prosa, a balbuciante expressão de uma sociedade embrionária,
sem feição nem caráter, inculta e grossa. Que o era,
o mais perfuntório exame, a leitura ainda por alto dos versejadores
e prosistas dessa época o mostrará irrecusavelmente. Não
há descobrir-lhe diferença que os releve na inspiração,
composição, forma ou estilo das obras. Sob o aspecto literário
são todos genuinamente portugueses, por via de regra inferiores aos
reinóis. A única exceção apresentada, a de Gregório
de Matos, é impertinente. Da sua obra a só porção
distinta, e estimável por outras qualidades que as propriamente literárias,
é a satírica ou antes burlesca. A inspiração e
feitio desta não destoa, porém, quando se tem presumido da musa
gaiata portuguesa do tempo, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de
Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João
Sucarelo, Diogo Camacho e quejandos, todos mais ou menos discípulos
e imitadores, como o nosso patrício, do espanhol Quevedo, mas todos
a ele inferiores. Como aos comuns motivos de satirizar de seus êmulos
portugueses juntasse Gregório de Matos o estímulo do seu descontentamento
de colonial gorado nas suas ambições e malogrado na sua vaidade,
é talvez o seu estro satírico mais rico e, para nós,
muito mais interessante que o daqueles. Não é, porém,
nem mais original, nem mais subido. A singularidade, mesmo a superioridade
de Gregório de Matos, ainda quando bem assente, não bastaria
aliás para desabonar o conceito de que o seu exemplo não prejudica
a regra geral da nossa evolução literária no período
colonial. Um só escritor, uma só obra, salvo proeminência
excepcional e de efeitos averiguados, não anula um fato literário
como o verificado. A parte séria das composições de Gregório
de Matos é genuinamente do pior seiscentismo, como pela língua,
estilo e outras feições o é também a sua porção
satírica. De resto o seu caso ficou único e isolado, incapaz,
portanto, de alterar como quer que fosse a continuidade do nosso desenvolvimento
literário. E os fatos provam que em nada o alterou. Simultânea
e posteriormente continuou aquele como se vinha fazendo.

Somente para o fim do século XVIII é que entramos a sentir
nos poetas brasileiros algo que os começa a distinguir. E só
nos poetas. Distinção, porém, ainda muito escassa e limitada
e também parcial. Por um ou outro poema em que se revê a influência
americana, há dezenas de outros em tudo e por tudo portugueses. Os
mesmos poetas do princípio do século XIX, sucessores imediatos
dos mineiros e predecessores próximos dos românticos, são
ainda e sobretudo seiscentistas, apenas levemente atenuados pelo arcadismo.
Esta procrastinação do seiscentismo aqui, como o gongorismo
que lhe era consubstancial, e é acaso congênito à gente
ibérica, além do motivo geral da mais lenta evolução
mental das colônias, poderia talvez explicá-lo o ter aqui vivido,
se exibido e influído o mais poderoso engenho português dessa
época, o Padre Antônio Vieira. A sua singular individualidade,
exaltando-lhe os insignes dotes literários, supera a desprezível
feição literária do período e a ampara e defende
se não legitima. A corroborar-lhe a má influência, continuada
pelos pregadores seus discípulos, vieram as academias literárias,
focos e escolas do mais desbragado gongorismo. Somente com os primeiros românticos,
entre 1836 e 1846, a poesia brasileira, retomando a trilha logo apagada da
Plêiade Mineira entra já a cantar com inspiração
feita dum consciente espírito nacional. Atuando na expressão
principiava essa inspiração a diferençá-la da
portuguesa. Desde então somente é possível descobrir
traços diferenciais nas letras brasileiras. Não serão
já propriamente essenciais ou formais, deixam-se, porém, perceber
nos estímulos de sua inspiração, motivos da sua composição
e principalmente no seu propósito.

As duas únicas divisões que legitimamente se podem fazer no
desenvolvimento da literatura brasileira, são, pois, as mesmas da nossa
história como povo: período colonial e período nacional.
Entre os dois pode marcar-se um momento, um estádio de transição,
ocupado pelos poetas da Plêiade Mineira (1769-1795) e, se quiserem,
os que os seguiram até os primeiros românticos. Considerada,
porém, em conjunto a obra desses mesmos não se diversifica por
tal modo da poética portuguesa contemporânea, que force a invenção
de uma categoria distinta para os pôr nela. No primeiro período,
o colonial, toda a divisão que não seja apenas didática
ou meramente cronológica, isto é, toda a divisão sistemática,
parece-me arbitrária. Nenhum fato literário autoriza, por exemplo,
a descobrir nela mais que algum levíssimo indício de “desenvolvimento
autonômico”, insuficiente em todo caso para assentar uma divisão
metódica. Ao contrário, ela é em todo esse período
inteira e estritamente conjunta à portuguesa. Nas condições
de evolução da sociedade que aqui se formava, seria milagre
que assim não fosse. De desenvolvimento e portanto de formação,
pois que desenvolvimento implica formação e vice-versa, é
todo o período colonial da nossa literatura, porém, apenas de
desenvolvimento em quantidade e extensão, e não de atributos
que a diferençassem.

Certo é que na segunda metade do século XVII e princípio
do XVIII, poetas brasileiros (não foram aliás mais de três),
ocasionalmente, sem intenção nem insistência mostraram-se
impressionados pela sua terra, cantaram-lhe as excelências naturais
com exagero de apreço e entusiasmo em que é lícito perceber
o abrolhar do sentimento nacional, começado a gerar-se com os sucessos
da guerra holandesa. Fizeram-no aliás pouco e mediocremente. Em vez
de seguir e cavar esse veio que se lhes deparava, perseveraram na poética
portuguesa sua contemporânea. Seria desarrazoado, seria forçar
os fatos a acomodarem-se às nossas prevenções, enxergar
mostras de sentimento literário autonômico nessas singularíssimas
exceções. Nem por isso são elas desinteressantes. Testemunham
a influência dos aludidos sucessos no espírito dos brasileiros,
onde criaram ou ativaram o sentimento nativista. Importam-nos ainda como as
primeiras manifestações do impulso de louvar a terra, impulso
que se tornaria logo um sestro literário nosso. A quase dois séculos
de distância o verificaria Casimiro de Abreu, nos seus sentidos e conhecidos
versos:

Todos cantam sua terra

Também vou cantar a minha

Nas débeis cordas da lira

Hei de fazê-la rainha.

Toma outra feição que a puramente portuguesa a nossa literatura
no segundo período, o nacional.

Independente e constituído, desenvolvendo-se menos adstrito à
exclusiva influência da Metrópole e ao seu absorvente predomínio,
entra o país a experimentar o influxo de outras e melhores culturas,
sofre novos contatos e reações, que são outros tantos
estímulos da sua inteligência e capacidade literária.
O maior de todos, porém, não será externo, mas o mesmo
sentimento nacional afinal consciente: o desvanecimento da sua independência,
da sua maioridade de povo, das suas possibilidades de crescimento com as suas
promissoras esperanças de futuro. Por isso a literatura imediatamente
posterior à Independência é ostensivamente, intencionalmente
nacionalista e patriótica. O germe nativista de que a Prosopopéia,
de Bento Teixeira, ao expirar do século XVI, é já o primeiro
indício, e a Ilha de Maré, de Botelho de Oliveira, no final
do século XVII, um mais visível sinal, germe desenvolvido, podemos
dizer nutrido, do calor bairrista de Rocha Pita, e relevado nos poetas do
fim do século XVIII, completa com a primeira geração
romântica a sua evolução. E resulta da índole claramente
nacionalista, mais ainda, patriótica, da literatura de após
a Independência.

Este fato determinara-o a mesma reação literária inaugurada
na Europa com o Romantismo, que em suma era sobretudo, e esta é a sua
mais exata definição, uma revolta contra o que se continuava
a chamar de classicismo. Tanto mais fácil foi à nova escola
encontrar aqui simpatias, entusiasmos e sequazes, quanto sendo um princípio
de independência e liberdade lisonjeava o nosso ardor de ambas no momento.
Teve de fato alvoroçado acolhimento, como era próprio de gente
nova, em pleno fervor da sua mocidade emancipada, irreflexiva e malquerente
de quanto lhe recordava a sua servidão política e mental. Cumpre,
todavia, não exagerar essa malevolência, que por honra dos corifeus
desse nosso movimento literário nunca se desmandou nas suas reivindicações
de autonomia literária, antes guardou nelas uma compostura de bom gosto.

O Romantismo europeu não só influiu os poetas e escritores
de todo o gênero, se não os políticos, os oradores, ainda
sacros, de que é frisante exemplo Monte Alverne, o maior deles, e os
publicistas. Como na Europa, foi também aqui mais que uma escola literária,
uma forma de pensamento geral.

Principalmente assinalaram o nosso Romantismo: a simpatia com o índio,
a intenção de o reabilitar do juízo dos conquistadores
e dos nossos mesmos patrícios coloniais, o errado pressuposto dele
ser o nosso antepassado histórico, o amor da natureza e da história
do país, encarados ambos com sentimentos e intenções
estreitamente nativistas, o conceito sentimentalista da vida, o propósito
manifesto de fazer uma literatura nacional e até uma cultura brasileira.
Inspirado no preconceito dos méritos do índio revelou-se este
propósito em recomendações do ensino da língua
tupi, em parvoinhas propostas de sua substituição ao português
na adoção de apelidos indígenas ou na troca dos portugueses
por estes e no encarecimento de quanto era indígena.2

Com estas feições apenas ligeiramente modificadas por novos
influxos recebidos de fora ou aqui mesmo nascidos, durou o nosso Romantismo,
iniciado pela terceira década do século XIX, até o meado
do decênio de 1870. As últimas obras de vulto que ainda a ele,
com a sua inspiração indianista, se vinculam, são o Evangelho
nas Selvas, de Fagundes Varela, e as Americanas, de Machado de Assis, ambas
em 1875.

Pelo fim do Romantismo, esgotado como acabam todas as escolas literárias,
tanto por enfraquecimento e exaustão dos seus motivos, como pela natural
usura, entram a influir a mente brasileira outras correntes de pensamentos,
outros critérios e até outras modas estéticas européias
de além Pireneus oriundas das novas correntes espirituais, o positivismo
em geral ou o novo espírito científico, o evolucionismo inglês,
o materialismo de Haeckel, Moleschott, Büchner, o comtismo, a crítica
de Strauss, Renan ou Taine, o socialismo integral de Proudhon, o socialismo
literário de Hugo, de Quinet, de Michelet. Outras tendências
e feições, criadas por estas novas formas de pensamento, se
substituem ao ceticismo, ao desalento, ao satanismo, tudo também literário
ou apenas sentimental de Byron, Musset e outros que tanto haviam influenciado
a nossa segunda geração romântica. Verifica-se que nenhuma
das correntes do pensamento europeu que aturaram no brasileiro levou menos
de vinte anos a se fazer aqui sentir. E esta é a regra ainda depois
que as nossas comunicações com a Europa se tornaram mais fáceis
e mais freqüentes. Destas várias influências contraditórias,
e até disparatadas, que todas, porém, simultaneamente atuaram
o nosso pensamento, não saiu, nem podia sair, um composto único
e ainda menos coerente, como até certo ponto fora no período
romântico o espiritualismo cristão ou o puro sentimentalismo
dos nossos românticos, sem exceção. Sob o aspecto literário
o que delas resultou foi o rompimento, mais ou menos intencional, mais ou
menos estrepitoso, mais ou menos peremptório, com o Romantismo. De
tal rotura se não gerou, entretanto, um movimento com bastante ressalto,
caráter ou homogeneidade que possamos defini-lo com um apelido idôneo.
O que se lhe tem dado, como as divisões e subdivisões nele feitas,
afigura-se-me inconseqüente com os fatos literários bem apreciados.
Não ignoro, e menos contesto, a importância e valia das classificações
para compendiar a explicação dos fatos literários. Mas
não basta não ignorá-lo ou praticá-las a torto
e a direito para podermos alardear filosofia de história literária.
Aquele valor e importância só a têm as classificações
perfeitas em que quase nada ou mesmo nada fica ao arbítrio do crítico,
mas tudo obedece lógica e naturalmente a um justo critério bem
estabelecido. Sem isso, que é dificílimo em todas as literaturas
e é positivamente impossível em a nossa, tais classificações
tanto podem inculcar uma digna tendência filosófica, como uma
supina presunção.

O que principalmente distinguiu e afeiçoou este nosso movimento espiritual
ou mais propriamente literário posterior ao Romantismo foi o pensamento
científico e filosófico triunfante por meados do século
XIX — caracterizado pelo preconceito da infalibilidade da ciência
e por uma exagerada opinião da sua importância. Esse pensamento,
aqui como em toda a parte, recebeu a denominação pouco precisa,
mas em suma bastante significativa, de pensamento moderno. Aqui produziu ele
maior e mais raciocinado desapego às crenças tradicionais religiosas
ou políticas, gerou o acatolicismo ou o agnosticismo em grande número
de espíritos e o republicanismo ainda em maior número. Não
chegou, porém, a criar manifestação literária
alguma bastante considerável e homogênea, e suficientemente distinta,
para a podermos nomear com exatidão segundo os seus particulares caracteres
literários. Para sair da dificuldade sem, por iludi-la, cair no erro
de dar a esta fase da nossa literatura algum apelido desapropositado, parece
que o meio mais seguro é lhe verificar a inspiração ou
idéia geral e motriz, e consoante ela denominá-la. Era esta
declaradamente seguir em arte como em filosofia, e ainda em política,
as idéias modernas, o racionalismo científico, o positivismo
filosófico, o transformismo e o evolucionismo como um critério
geral do pensamento, o liberalismo político, que levava de um lado
ao republicanismo, de outro, com duvidosa coerência, ao socialismo.
O “pensamento moderno”, e a sua competente apologia, foram aqui
um tema literário repetido até o fastio e sob esta denominação
ou a ainda mais vaga de “idéia nova” se reuniam desencontrados
conceitos, sentimentos e aspirações. Dava-lhes, todavia, unidade
bastante para ao menos exteriormente os caracterizar. Não sendo possível
descobrir-lhes com toda a certeza o acento predominante, a feição
literária essencial e por evitar a impertinência e vaidade das
tentativas já feitas para grupar em categorias definidas autores e
obras desta última fase da nossa evolução literária,
parece mais prudente crismá-la segundo o seu principal estímulo
mental — a sua superstição das idéias modernas
— e chamar-lhe de modernismo.3 Efetivamente é a influência
cosmopolita e onímoda dessas idéias e dominante em a nossa literatura
nessa fase e, salvo exceções individuais pouco relevantes, não
mais o nacionalismo romântico. Torna-se a poesia — e a poesia
foi sempre em cópia e qualidade a porção mais considerável
da nossa literatura — menos subjetiva, menos ingênua e sentimentalista,
e a diminuição destas suas qualidades acaso, sob o aspecto da
emoção, amesquinhou o nosso lirismo. Ao invés ganhou
ele em dons verbais de expressão e em virtudes de forma e métrica.
A mesma forma aperfeiçoou-se com qualidades de composição
e temperança. Nota-se mais o aparecimento em toda a nossa literatura
de requisitos de que carecia, e que faltaram sempre à antiga literatura
portuguesa, o gosto, o interesse, a capacidade das idéias gerais, preocupações
mais largamente humanas e sociais, em vez de pura sentimentalidade e do estreito
nacionalismo romântico. Alguns dos principais representantes desta última
fase da nossa evolução literária são, sem prejuízo
do seu brasileirismo de raiz, cosmopolitas ou universais. Tais são
Castro Alves, Tobias Barreto, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Eduardo Prado.

Antes da República, ou por espírito de oposição
ao império católico, ou por influência desse pensamento
moderno, eram os intelectuais brasileiros quase todos livres-pensadores, ou
pelo menos espíritos de um larguíssimo liberalismo, que roçava
pelo livre-pensamento. Este liberalismo foi, aliás, a feição
conspícua do espírito brasileiro e da vida pública brasileira
durante todo o reinado de D. Pedro II. Com a República, que não
podia falhar à índole ditatorial e despótica do republicanismo
latino e aos efeitos da sua educação pelo jacobinismo francês,
atenuou-se essa feição e minguou na política, como na
inteligência nacional, aquele espírito liberal.

Uma escola literária não morre de todo porque outra a substitui,
como uma religião não desaparece inteiramente porque outra a
suplanta. Também não acontece que um movimento ou manifestação
coletiva de ordem intelectual, uma época literária ou artística,
seja sempre conforme com o seu princípio e conserve inteira a sua fisionomia
e caráter. É, pois, óbvio que aqui, como sucedeu na Europa,
ficaram germes ou antes restos do Romantismo, como neste haviam ficado do
classicismo. Misturados com o “cientificismo” do momento ou influídos
por ele, esses remanescente do Romantismo confundiram-se na corrente geral
daquele originada, produzindo com outros estímulos e impulsos supervenientes
algumas feições diversas na fisionomia literária desta
fase. Nenhuma, porém, tão distinta que force a discriminação.

A dificuldade geralmente verificada desta discriminação sobe
de ponto aqui, onde por inópia da tradição intelectual
o nosso pensamento, de si mofino e incerto obedece servil e canhestramente
a todos os ventos que nele vêm soprar, e não assume jamais modalidade
formal e distinta. Sob o aspecto filosófico o que é possível
notar no pensamento brasileiro, quanto é lícito deste falar,
é, mais talvez que a sua pobreza, a sua informidade. Esta é
também a mais saliente feição da nossa literatura dos
anos de 70 para cá. Disfarça-as a ambas, ou as atenua, o íntimo
sentimento comum do nosso lirismo, ainda em a nossa prosa manifesto, a sensibilidade
fácil, a carência, não obstante o seu ar de melancolia,
de profundeza e seriedade, a sensualidade levada até a lascívia,
o gosto da retórica e do reluzente. Acrescentem-se como característicos
mentais a petulância intelectual substituindo o estudo e a meditação
pela improvisação e invencionice, a leviandade em aceitar inspirações
desencontradas e a facilidade de entusiasmos irrefletidos por novidades estéticas,
filosóficas ou literárias. À falta de outras qualidades,
estas emprestam ao nosso pensamento e à sua expressão literária
a forma de que, por míngua de melhores virtudes, se reveste. Aquelas
revelam mais sentimentalismo que raciocínio, mais impulsos emotivos
que consciência esclarecida ou alumiado entendimento, revendo também
as deficiências da nossa cultura. Mas por ora, e a despeito da mencionada
reação do espírito científico e do pensamento
moderno dele inspirado, somos assim, e a nossa literatura, que é a
melhor expressão de nós mesmos, claramente mostra que somos
assim.

Literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito
ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios
de invenção e de composição que a constituem é,
a meu ver, literatura. Assim pensando, quiçá erradamente, pois
não me presumo de infalível, sistematicamente excluo da história
da literatura brasileira quanto a esta luz se não deva considerar literatura.
Esta é neste livro sinônimo de boas ou belas letras, conforme
a vernácula noção clássica. Nem se me dá
da pseudonovidade germânica que no vocábulo literatura compreende
tudo o que se escreve num país, poesia lírica e economia política,
romance e direito público, teatro e artigos de jornal e até
o que se não escreve, discursos parlamentares, cantigas e histórias
populares, enfim autores e obras de todo o gênero.4

Não se me impõe o conceito com tal grau de certeza que eu me
não atreva a opor-lhe a minha heresia, quero dizer a minha humilde
opinião. Com o mais recente e um dos mais justamente apreciados historiadores
da literatura francesa, o Sr. G. Lanson, estou que “a literatura destina-se
a nos causar um prazer intelectual, conjunto ao exercício de nossas
faculdades intelectuais, e do qual lucrem estas mais forças, ductilidade
e riqueza. É assim a literatura um instrumento de cultura interior;
tal o seu verdadeiro ofício. Possui a superior excelência de
habituar-nos a tomar gosto pelas idéias. Faz com que encontremos num
emprego o nosso pensamento, simultaneamente um prazer, um repouso, uma renovação.
Descansa das tarefas profissionais e sobreleva o espírito aos conhecimentos,
aos interesses, aos preconceitos de ofício; ela “humaniza”
os especialistas. Mais do que nunca precisam hoje os espíritos de têmpera
filosófica; os estudos técnicos de filosofia, porém,
nem a todos são acessíveis. É a literatura, no mais nobre
sentido do termo, uma vulgarização da filosofia: mediante ela
são as nossas sociedades atravessadas por todas as grandes correntes
filosóficas determinantes do progresso ou ao menos das mudanças
sociais; é ela quem mantém nas almas, sem isso deprimidas pela
necessidade de viver e afogadas nas preocupações materiais,
a ânsia das altas questões que dominam a vida e lhe dão
um sentido ou um alvo. Para muitos dos nossos contemporâneos sumiu-se-lhes
a religião, anda longe a ciência; da literatura somente lhes
advém os estímulos que os arrancam ao egoísmo estreito
ou ao mister embrutecedor”.5 Não se poderia definir com mais cabal
justeza, nem com mais elegante simplicidade, a literatura e sua importância.

Muitos dos escritores brasileiros, tanto do período colonial como
do nacional, conquanto sem qualificações propriamente literárias,
tiveram todavia uma influência qualquer em a nossa cultura, a fomentaram
ou de algum modo a revelam. Bem mereceram, pois, da nossa literatura. Erro
fora não os admitisse sequer como subsidiários, a história
dessa literatura. É também principalmente como tais que merecem
consideradas obras, aliás por outros títulos notáveis,
como a de Gabriel Soares ou os Diálogos das Grandezas do Brasil. Os
portugueses que no Brasil escreveram, embora do Brasil e de cousas brasileiras,
não pertencem à nossa literatura nacional, e só abusivamente
pode a história destas ocupar-se deles. O mesmo sucede com outros estrangeiros
que aqui fizeram literatura como o hispano-americano Santiago Nunes Ribeiro,
o espanhol Pascoal, ou os franceses Emile Adet e Louis Bourgain. Aqueles pelo
caráter e estilo de suas letras eram, como os mesmos brasileiros natos,
portugueses, e como o eram igualmente de nascimento e forçosamente
de sentimento — que este se não naturaliza — como quaisquer
outros estrangeiros, não cabem nesta história. No seu primeiro
período ela é a dos escritores portugueses nascidos no Brasil,
no segundo dos autores brasileiros de nascimento e atividade literária.
Os portugueses que para cá vieram fazer literatura após a Independência,
Castilhos, Zaluares, Novais e outros, nem pela nacionalidade ou sentimento,
nem pela língua ou estilo, não pertencem à nossa literatura,
onde legitimamente não se lhes abre lugar. São por todas as
suas feições portugueses. Assim, os brasileiros que, alheando-se
inteiramente do Brasil, em Portugal exerceram toda a sua atividade literária,
como o infeliz e engenhoso Antônio José e o preclaro Alexandre
de Gusmão, também não cabem nela. Tudo autoriza a crer
que Antônio José e Alexandre de Gusmão não teriam
sido literariamente o que foram se houvessem ficado no Brasil. Foi, pois,
Portugal, a sua pátria literária, como o Brasil foi a pátria
literária de Gonzaga.

Não existe literatura de que apenas há notícia nos repertórios
bibliográficos ou quejandos livros de erudição e consulta.
Uma literatura, e às modernas de após a imprensa me refiro,
só existe pelas obras que vivem, pelo livro lido, de valor efetivo
e permanente e não momentâneo e contingente. A literatura brasileira
(como aliás sua mãe, a portuguesa) é uma literatura de
livros na máxima parte mortos, e sobretudo de nomes, nomes em penca,
insignificantes, sem alguma relação positiva com as obras. Estas,
raríssimas são, até entre os letrados, os que ainda as
versam. Não pode haver maior argumento da sua desvalia.

Por um mau patriotismo, sentimento funesto a toda a história, que
necessariamente vicia, e também por vaidade de erudição,
presumiram os nossos historiadores literários avultar e valorizar o
seu assunto, ou o seu próprio conhecimento dele, com fartos róis
de autores e obras, acompanhados de elogios desmarcados e impertinentes qualificativos.
Não obstante o pregão patriótico, tais nomes e obras
continuaram desconhecidos eles e elas não lidas. Não quero cair
no mesmo engano de supor que a crítica ou a história literária
têm faculdades para dar vida e mérito ao que de si não
tem. Igualmente não desejo continuar a fazer da história da
nossa literatura um cemitério, enchendo-a de autores de todo mortos,
alguns ao nascer. No período colonial haverá esta forçosamente
de ocupar-se de sujeitos e obras de escasso ou até nenhum valor literário,
como são quase todas as dessa época. Não sendo, porém,
esse o único da obra literária, nem o ponto de vista estético
e só de que podemos fazer a história literária, cumpre
do ponto de vista histórico, o mais legítimo no caso, apreciar
autores e livros que, ainda àquela luz medíocres, têm
qualquer importância como iniciadores, precursores, inspiradores ou
até simples indículos de movimentos ou momentos literários.
É justamente naquele período de formação, o mais
insignificante sob o aspecto estético, mas não o menos importante
do ponto de vista histórico, que mais numerosos se nos depararão
obras e indivíduos de todo mofinos. Temos, porém, de contar
com eles, pois nessa formação atuaram sequer com o seu exemplo
e ajudaram a manter a tradição literária da raça.
No segundo período da constituição da literatura a que,
sem maior impropriedade, já podemos chamar de nacional, cumpre-nos
ser ainda mais escassos em admitir tipos de insuficiente representação
literária. Cabe excluir-lhe da história, que deve ser a da literatura
viva, indivíduos e obras que virtudes de ideação ou de
expressão não assinalaram bastante para poderem continuar estimados
além do seu tempo. Obras que apenas o acompanharam, sem nele influírem
ou se distinguirem, ou que nem ao menos lhe representam dignamente o espírito
e capacidade, ou ainda que não sejam a expressão de uma conspícua
personalidade, apenas terão lugar à margem da literatura e da
sua história. Parece um critério, não infalível
mas seguro, de escolha, a mesma escolha feita pela opinião mais esclarecida
dos contemporâneos, confirmada pelo juízo da posteridade. Raríssimo
é que esta seleção, mesmo no Brasil, onde é lícito
ter por menos alumiada a opinião pública, não seja ao
cabo justa, e só os que lhe resistem são dignos da história
literária. Não pode esta, a pretexto de opiniões pessoais
de quem a escreve, desatender à seleção natural que o
senso comum opera nas literaturas. Cumpre-lhe antes acatá-la se não
tem argumentos incontestáveis a opor-lhe. Em que pese à nossa
pretensão de letrados, são os eleitos daquela opinião
os que cabem na história da literatura, que não queira invadir
o domínio da bibliografia nem merecer o reproche de simplesmente impressionista.

A história da literatura brasileira é, no meu conceito, a história
do que da nossa atividade literária sobrevive na nossa memória
coletiva de nação. Como não cabem nela os nomes que não
lograram viver além do seu tempo também não cabem nomes
que por mais ilustres que regionalmente sejam não conseguiram, ultrapassando
as raias das suas províncias, fazerem-se nacionais. Este conceito presidiu
à redação desta história, embora com a largueza
que as condições peculiares à nossa evolução
literária impunham. Ainda nela entram muitos nomes que podiam sem inconveniente
ser omitidos, pois de fato bem pouco ou quase nada representam. Porém
uma seleção mais rigorosa é trabalho para o futuro.

Os elementos biográficos, necessários à melhor compreensão
do autor e da sua época literária, como outros dados cronológicos,
são da maior importância para bem situar nestas obras e autores
e indicar-lhes a ação e reação. A história
literária deve, porém, antes ser a história daquelas
do que destes. Obras e não livros, movimentos e manifestações
literárias sérias e conseqüentes, e não modas e
rodas literárias, eiva das literaturas contemporâneas, são,
a meu ver, o imediato objeto da história da literatura. Um livro pode
constituir uma obra,6 vinte podem não fazê-la. São obras
e não livros, escritores e não meros autores que fazem e ilustram
uma literatura. Em a nossa deparam-se-nos a cada passo sujeitos que sem vocação
nem engenho literário, embora não de todo sem entendimento ou
estro, produziram, geralmente em moços, um livro, um ou mais poemas
ou outra pequena e não repetida obra literária. Outros até
a repetem em maior número de volumes. Mais que a vocação
que não tinham, moveu-os a vaidade, a presunção da notoriedade
que a autoria dá ou quejando passageiro estímulo. No reinado
de D. Pedro II, monarca amador de letras e caroável aos letrados, por
lhe armar à benevolência e patrocínio, foi comum fingirem-se
muitos de amantes daquelas e as praticarem, mesmo assiduamente, mais porventura
do que lhes pedia a vocação ou consentia o talento. Alguma vez
foi esse labor sincero, se bem que efeito de uma inspiração
circunstancial e momentânea, que se não repetindo descobre-lhe
a insuficiência. Tais autores esporádicos, amadores sem engenho
nem capacidade literária, e tais obras casuais, produtos de uma inspiração
fortuita ou interesseira, não pertencem à literatura e menos
à sua história.

Seja qual for o nosso parecer sobre o valor da obra literária, isolada
ou em relação com o seu meio e tempo, prevalece a noção
do senso comum que em todo caso ela precisa de virtudes de pensamento e de
expressão com que logre a estima e agrado geral. A que não as
tiver é obra de nascença morta. As qualidades de expressão,
porém, não são apenas atributos de forma sob o aspecto
gramatical ou estilístico, senão virtudes mais singulares e
subidas de íntima conexão entre o pensamento e o seu enunciado.
Não é escritor senão o que tem alguma cousa interessante
do domínio das idéias a exprimir e sabe exprimi-la por escrito,
de modo a lhe aumentar o interesse, a torná-lo permanente e a dar aos
leitores o prazer intelectual que a obra literária deve produzir.

Confesso haver hesitado na exposição da marcha da nossa literatura,
se pelos gêneros literários, poesia épica, lírica
ou dramática, história, romance, eloqüência e que
tais, consagrados pela retórica e pelo uso, ou se apenas cronologicamente,
conforme a seqüência natural dos fatos literários. Ative-me
afinal a este último alvitre menos por julgá-lo em absoluto
o melhor que por se me antolhar o mais consentâneo com a evolução
de uma literatura, como a nossa, em que os fatos literários, mormente
no período de sua formação, não são tais
e tantos que lhes permitam a exposição e estudo conforme determinadas
categorias. Nesse período e ainda no seguinte aqueles diferentes gêneros
não apresentam bastante matéria à história, sem
perigo desta derramar-se ociosamente. Ao contrário expor esses fatos
na ordem e segundo as circunstâncias em que eles se passam, as condições
que os determinam e condicionam e as feições características
que afetam, parece fará mais inteligível a nossa evolução
literária com a vantagem de guardar maior respeito ao princípio
da última unidade da literatura. Nesta, como na arte e na ciência,
é conspícua a função do fator individual. Um escritor
não pode ser bem entendido na sua obra e ação senão
visto em conjunto, e não repartido conforme os gêneros diversos
em que provou o engenho.

Refugi também à praxe das citações mais ou menos
extensas dos autores tratados, limitando-as a raros exemplos, quando absolutamente
indispensáveis à justificação de algum conceito.
É possível, e até provável, que mais de um deste
livro se encontre e ajuste, com os de outrem. Apesar da diversidade proverbial
dos gostos e da variedade das determinantes das nossas opiniões, não
é infinita a capacidade de variação em assuntos dos quais
o gosto individual não é mais o único juiz. Forçosamente
hão de algumas vezes as nossas opiniões coincidir com alheias.
O importante é que as minhas eu as tenha feito com estudo próprio
e direto dos fatos e monumentos literários e isso protesto ter sempre
feito. Muito presumido e tolo seria o escritor, máxime o historiador
literário, que supusesse não dizer senão cousa de todo
originais e inéditas ou poder evitar os infalíveis encontros
de opiniões:

Il faut être ignorant comme un maître d’école

Pour se flatter de dire une seule parole

Que personne ici-bas n’ait pu dire avant vous.

Por motivos óbvios de discrição literária não
se quisera este livro ocupar senão de mortos. Esta norma, porém,
era quase impossível segui-la na última fase da nossa literatura,
vivendo ainda, como felizmente vivem, alguns dos principais representantes
dos movimentos literários nela ocorridos; calar-lhes os nomes seria
deixar suspensa a história desses movimentos. Ainda assim apenas ocasionalmente,
por amor de completar ou esclarecer a exposição, se dirá
de vivos.

Tal o espírito em que após mais de vinte e cinco anos de estudo
da nossa literatura empreendo escrever-lhe a história. Não me
anima, em toda a sinceridade o digo, a presunção de encher nenhuma
lacuna nem de prevalecer contra o que do assunto há escrito, certamente
com maior cabedal de saber e mais talento. Não há matéria
que dispense novos estudos. Existe sempre, em qualquer uma, lugar para outros
labores. Não desconheço o que devo aos meus beneméritos
predecessores desde Varnhagen até o Sr. Sílvio Romero.

Pela cópia, valia e influência de sua obra de investigação
da nossa história literária, é aquele o verdadeiro fundador
da história da nossa literatura. Depois dele esta, em que pese à
ingrata presunção em contrário, não fez mais que
repeti-lo, ampliando-o. Cronologicamente, não o ignoro, o precederam,
Cunha Barbosa, Norberto Silva, Gonçalves de Magalhães, Pereira
da Silva, Bouterwek, Sismonde de Sismondi e Ferdinand Denis.* Nenhum, porém,
fez investigações originais ou estudos acurados e alguns apenas
se ocuparam da nossa literatura ocasional e episodicamente. E todos, repito,
até o advento de Varnhagen, a fizeram superficialmente, apenas repetindo
parcas noções hauridas em noticiadores portugueses, divagando
retoricamente a respeito, sem nenhum ou com escasso conhecimento pessoal da
obra literária aqui feita. Decididamente o primeiro que o teve cabal
foi Varnhagen. Prestante e estimável como recolta de documentos da
poesia brasileira, que sem ele se teriam talvez perdido, tem somenos mérito
como informação histórica o Parnaso Brasileiro, do Cônego
Januário da Cunha Barbosa. Pereira da Silva nenhuma confiança
e pouca estima merece como historiador literário. Nunca investigou
seriamente coisa alguma e está cheio de erros de fato e de apreciação
já no seu tempo indesculpáveis. Magalhães apenas mostrou
a sua ignorância do assunto, que não estudou, limitando-se a
uma amplificação retórica. Depois de Varnhagen é
Norberto Silva o mais operoso, o mais seguro dos primitivos estudiosos da
nossa literatura, cuja história projetou escrever. As suas numerosas
contribuições para ela, infelizmente na maior parte avulsas
e dispersas em prefácios, revistas e jornais, são geralmente
relevantes. Aproveitando inteligentemente o trabalho destes e de outras fontes
de informação e as notícias e esclarecimentos pessoais
de Magalhães e Porto Alegre, o austríaco Fernando Wolf publicou
(Berlim, 1863) a sua ainda hoje muito estimável Histoire de la Littérature
Brésilienne, a primeira narrativa sistemática e exposição
completa, até aquela data, da nossa atividade literária, compreendendo
o Romantismo. Trouxe-a até os nossos dias o Sr. Dr. Sílvio Romero
numa obra que quaisquer que sejam os seus defeitos não é menos
um distinto testemunho da nossa cultura literária no último
quartel do século passado. A História da Literatura Brasileira
do Sr. Dr. Sílvio Romero é sobretudo valiosa por ser o primeiro
quadro completo não só da nossa literatura mas de quase todo
o nosso trabalho intelectual e cultura geral, pelas idéias gerais e
vistas filosóficas que na história da nossa literatura introduziu,
e também pela influência excitante e estimulante que exerceu
em a nossa atividade literária de 1880 para cá.

Com diverso conceito do que é literatura, e sem fazer praça
de filosofia ou estética sistemática, aponta esta apenas a fornecer
aos que porventura se interessem pelo assunto uma noção tão
exata e tão clara quanto em meu poder estiver, do nosso progresso literário,
correlacionado com a nossa evolução nacional. E foi feita, repito-o
desenganadamente, no estudo direto das fontes, que neste caso são as
mesmas obras literárias, todas por mim lidas e estudadas, como aliás
rigorosamente me cumpria.

Rio, 4 de dezembro de 1912.

José Veríssimo

PERÍODO COLONIAL

Capítulo I

A PRIMITIVA SOCIEDADE COLONIAL

O INÍCIO DA COLONIZAÇÃO do Brasil pelos portugueses
coincidiu com a mais brilhante época da história deste povo
e particularmente com o mais notável período da sua atividade
mental. É o século chamado áureo da sua língua
e literatura, o século dos seus máximos prosadores e poetas,
com Camões à frente.

Essa curta renascença geral e florescimento literário de Portugal
não passou, porém, nem podia passar, à sua grande colônia
americana. Se aquela interessava à massa da nação, que
lhe assistia às manifestações e experimentava os efeitos,
esta apenas tocava o círculo estreito que ali, como então em
toda a Europa, advertia em poetas e literatos. Roda de fidalgo, de cortesãos,
de eclesiásticos, dos quais, justamente os mais cultos, raríssimos
se iam a conquistas e empresas ultramarinas. O grosso dos que se nelas metiam
eram da multidão ignara que constituía a maioria da nação,
o “vulgo vil sem nome” de que, com o seu desdém de fidalgo
e letrado, fala o Camões, chefiados por barões apenas menos
incultos do que eles. Nem o empenho que os cá trazia lhes consentia
outras preocupações que as puramente materiais de a todo o transe
assenhorearem a terra, lhe dominarem o gentio e aproveitarem a riqueza, exagerada
pela sua mesma cobiça.

Não é, pois, de estranhar que em nenhum dos primeiros cronistas
e noticiadores do Brasil, no primeiro e ainda no segundo século da
colonização, mesmo quando já havia manifestações
literárias, se não encontre a menor referência ou alusão
a qualquer forma de atividade mental aqui, a existência de um livro,
de um estudioso ou cousa que o valha. O padre Antônio Vieira, homem
de letras como era, em toda a sua obra, abundante de notícias, referências
e informes do Brasil do século XVII, apenas uma vez, acidental e vagamente
lhe alude à literatura. Foi quando, escrevendo ao mordomo-mor do Reino,
contou, jogando de vocábulo, que na Bahia, “sobre se tirarem as
capas aos homens (por decisão de um novo governador) têm dito
mil lindezas os poetas, sendo maior a novidade deste ano (1682) nestes engenhos
do que nos de açúcar.”1

Entretanto no tempo de Vieira, a maior parte do século XVII, já
no Brasil havia manifestações literárias no medíocre
poema de Bento Teixeira (1601) e nos poemas e prosas ainda então inéditas
mas que circulariam em cópias ou seriam conhecidas de ouvido, de seu
próprio irmão Bernardo Vieira Ravasco, do padre Antônio
de Sá, pregador, de Eusébio de Matos e de seu irmão Gergório
de Matos, o famoso satírico, de Botelho de Oliveira, sem falar nos
que incógnitos escreviam relações, notícias e
crônicas da terra, um Gabriel Soares (1587), um Frei Vicente do Salvador,
cuja obra é de 1627, o ignorado autor dos Diálogos das Grandezas
do Brasil e outros de que há notícia.

Não trouxeram, pois, os portugueses para o Brasil algo do movimento
literário que ia àquela data em sua pátria. Mas evidentemente
trouxeram a capacidade literária já ali desde o século
XIII pelo menos revelada pela sua gente e que naquele em que aqui se começaram
a estabelecer atingia ao seu apogeu. As suas primeiras preocupações
de ordem espiritual, que possamos verificar, produziram-se quase meio século
após o descobrimento com a chegada dos primeiros jesuítas em
1549, e sob a influência destes. As escolas de ler, escrever e contar,
gramática latina, casos de consciência, doutrina cristã
e mais tarde retórica e filosofia escolástica, logo abertas
por esses padres nos seus “colégios”, imediatamente à
sua chegada fundados, foram a fonte donde promanou, no primeiro século,
toda a cultura brasileira e com ela os primeiros alentos da literatura.

A terra achada “por tanta maneira graciosa” pelos seus descobridores,
e que aos primeiros que a descreveram se deparou magnifica, só muito
mais tarde entrou a influir no ânimo dos seus filhos os incitamentos
das suas excelências. E isso de leve e de passagem, embora com repetições
que fariam dessa impressão uma sensação duradoura e característica
em a nossa poesia.

A gente que a habitava, broncos selvagens sem sombra de literatura, e cujos
mitos e lendas passaram de todo despercebidos aos primeiros colonizadores
e a seus imediatos descendentes, não podia de modo algum influir na
primitiva emoção poética brasileira. Só com o
tempo e muito lentamente, pelo influxo de sua índole, do seu temperamento,
da sua idiossincrasia na gente resultante dos seus primeiros cruzamentos com
os europeus, viria ela a atuar no sentimento brasileiro. Mas ainda por forma
que ninguém pode, sem petulância ou inconsciência, gabar-se
de discriminar e explicar. É da mesma natureza indireta, reflexa, imponderável,
a influência que possa haver tido e que certamente teve no mesmo sentimento
o elemento africano, que desde o primeiro século se caldeou com os
portugueses e o índio para a constituição do nosso povo.
Ainda que o gentio selvagem, com quem entraram os conquistadores em contato,
tivesse uma poesia de forma métrica, o que é mais que duvidoso,
não se descobre meio de demonstrar não só que ela houvesse
em tempo algum influído na inspiração dos nossos primeiros
poetas, ou como poderia ter influído. Absolutamente se não descobriu
até hoje, mau grado as asseverações fantasistas e gratuitas
em contrário, não diremos um testemunho, mas uma simples presunção
que autorize a contar quer o índio, quer o negro, como fatores da nossa
literatura. Apenas o teriam sido mui indiretamente como fatores da variedade
étnica que é o brasileiro. Mas ainda assim a determinação
com que cada um deles entrou para a formação da psique brasileira,
e portanto das suas emoções em forma literária, é
impossível, se não nos queremos pagar de vagas palavras e conceitos
especiosos. Há bons fundamentos para supor que os primeiros versejadores
e prosistas brasileiros eram brancos estremes, e até de boa procedência
portuguesa. É, portanto, o português, com a sua civilização,
com a sua cultura, com a sua língua e literatura já feita, e
até com o seu sangue, o único fator certo, positivo e apreciável
nas origens da nossa literatura. E o foi enquanto se não realizou o
mestiçamento do país pelo cruzamento fisiológico e psicológico
dos diversos elementos étnicos que aqui concorreram, do qual resultou
o tipo brasileiro diferenciado por várias feições físicas
e morais do seu principal genitor, o português. Forçosamente
lenta em fazer-se, e ainda mais em atuar espiritualmente, não podia
esta mestiçagem haver influído na mente brasileira senão
superficial, indefinida e morosamente. Em todo caso as duas raças inferiores
apenas influíram pela via indireta da mestiçagem e não
com quaisquer manifestações claras de ordem emotiva, como sem
nenhum fundamento se lhes atribuiu.

A sociedade que aqui existiu no primeiro século da conquista e da
colonização (1500-1600) e a que desta se foi desenvolvendo pela
sua multiplicação, logo aumentada pelo cruzamento com aquelas
raças, era em suma a mesma de Portugal nesse tempo, apenas com o amesquinhamento
imposto pelo meio físico em que se encontrava. A todos os respeitos
nela predominava o português. Índios e negros eram apenas o instrumento
indispensável ao seu propósito de assenhorear e explorar a terra
e à necessidade de sua preparação. Salvo exceções
diminutas, esse português pertencia às classes inferiores do
Reino, e quando acontecia não lhes pertencer pela categoria social,
era-o de fato pelas condições morais e econômicas. Soldados
de aventura, fidalgos pobres e desqualificados, assoldadados de donatários,
capitães-mores e conquistadores, tratantes ávidos de novas mercancias,
clérigos de nenhuma virtude, gente suspeita à polícia
da Metrópole, além de homiziados, de degradados, eram, em sua
maioria, os componentes da sociedade portuguesa, para aqui transplantada.
Os seus costumes dissolutos, a sua indisciplina moral e mau comportamento
social são o tema de acerbas queixas não só dos jesuítas,
que acaso no seu rigor de moralistas austeros lhes exageravam os defeitos,
mas das autoridades régias dos cronistas e mais noticiadores. Justamente
ao tempo da constituição das capitanias gerais a sociedade portuguesa
tinha descido ao último grau de desmoralização e relaxamento
de costumes.2 Um dos mais perspicazes observadores da primitiva sociedade
colonial brasileira, o autor incógnito dos Diálogos das Grandezas
do Brasil, explicando em 1618 por que apesar da abundância da terra
era tanta a carestia das cousas de maior necessidade, atribui a culpa à
negligência e pouca indústria dos moradores que todos não
pensavam senão em voltar ao Reino sem cuidarem do adiantamento e futuro
da mesma terra. “O Estado do Brasil todo em geral, escreve ele no seu
estilo ingenuamente vernáculo, se forma de cinco condições
de gente a saber: marítima, que trata de suas navegações
e vem aos portos das capitanias deste Estado com suas naus e caravelas carregadas
de fazendas que trazem por seu frete, aonde descarregam e adubam as suas naus
e as tornam a carregar, fazendo outra vez viagem com carga de açúcares,
pau do Brasil e algodão para o Reino, e de gente desta condição
se acha, em qualquer tempo do ano, muita pelos portos das capitanias. A segunda
condição de gente são os mercadores, que trazem do Reino
as suas mercadorias a vender a esta terra, e comutar por açúcares,
do que tiram muito proveito; e daqui nasce haver muita gente dessa qualidade
nela com as suas lojas de mercadorias abertas, e tendo correspondência
com outros mercadores do Reino que lhas mandam. Como o intento destes é
fazerem-se somente ricos pela mercancia, não tratam do aumento da terra,
antes pretendem de a esfolarem tudo quanto podem. A terceira condição
de gente são oficiais mecânicos de que há muitos no Brasil
de todas as artes, os quais procuram exercitar, fazendo seu proveito nelas,
sem se lembrarem de nenhum modo do bem comum. A quarta condição
de gente é de homens que servem a outros por soldada que lhe dão,
ocupando-se em encaixotamento de açúcar, feitorizar canaviais
de engenho e criarem gados, com nome de vaqueiros, servirem de carreiros e
acompanharem seus amos, e de semelhante gente há muita por todo este
Estado, que não tem nenhum cuidado do bem geral. A quinta condição
é daqueles que tratam da lavoura e estes tais se dividem ainda em duas
espécies: uma a dos que são mais ricos, têm engenhos com
o título de senhores deles, nomes que lhes cede Sua Majestade e suas
cartas e provisões, e os demais têm partidos de canas; a outra,
cujas forças não abrangem a tanto, se ocupam em lavrar mantimentos,
legumes, e todos, assim uns como os outros, fazem as suas lavouras e granjearias
com escravos da Guiné……; e como o de que vivem é somente
do que granjeiam com os tais escravos, não lhes sofre o ânimo
ocupar a nenhum deles em cousa que não seja tocante a lavoura, que
professam de maneira que têm por tempo perdido o que gastam em plantar
uma árvore que lhes haja de dar fruto em dois ou três anos, por
lhes parecer que é muita demora; porque se ajunta a isto o cuidar cada
um deles que logo em breve tempo se hão de embarcar para o Reino, e
não basta a desenganá-los desta opinião mil dificuldades
que a olhos vistos lhe impedem podê-la fazer; por maneira que este pressuposto
que têm todos em geral de se haverem de ir para o Reino com a cobiça
de fazerem mais quatro pães de açúcar, quatro covas de
mantimentos, não há homem em todo este Estado que procure nem
se disponha a plantar árvores frutíferas nem fazer as benfeitorias
das plantas que se fazem em Portugal e pelo conseguinte se não dispõem
a fazerem criações de gado e outras, e se algum o faz é
em muita pequena quantidade e tão pouca que a gasta toda consigo mesmo
e com a sua família. E daí resulta a carestia e falta destas
coisas…”3

É o depoimento de uma testemunha de vista, inteligente, bem intencionada
e insuspeita por sua nacionalidade, sobre os elementos de que se ia formando
a vida econômica da nova sociedade portuguesa na América, e a
primeira delegação do desapego à terra pelos seus mesmos
povoadores, daquilo que um historiador nosso chamou transoceanismo (Capistrano
de Abreu). Ainda mesmo para a apreciação do presente, não
perderam todo o interesse estas suas observações, cuja exatidão
aliás outros documentos contemporâneos confirmam.

Assim escreve no começo do século XVII o nosso historiador
Frei Vicente do Salvador: “E deste modo se hão os povoadores,
os quais, por mais arraizados que na terra estejam e mais ricos que sejam,
tudo pretendem levar a Portugal, e se as fazendas e bem que possuem souberam
falar também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos
quais a primeira coisa que ensinam é Papagaio Real, para Portugal,
porque tudo querem para lá. E isto não têm só os
que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros
usam da terra não como senhores mas como usufrutuários, só
para a desfrutarem e a deixarem destruída.”4

Não numera o autor do Diálogos nem os oficiais públicos
da governança, nem a clerezia, nem os homens d’armas da conquista
e defesa da colônia. Eram a gente parasita sempre suspirosa por tornar
à terra, sem nenhum ânimo de ficada aqui. Oficiais e mecânicos
e ainda somenos indivíduos, mal aqui chegados tornavam-se de uma filáucia
que deu na vista a mais de um observador. A escravidão exonerando-os
de trabalhar e habituando-os a viver como no Reino viam viverem os fidalgos,
insuflavam-se das fumaças destes. Brandônio, no terceiro Diálogo,
observava ao seu interlocutor Alviano que a gente do Brasil era mais afidalgada
do que ele imaginava, e aos seus escravos incumbia todo o trabalho. Com estes
informes devemos crer não andam muito longe da verdade os noticiadores
da corrupção que logo eivou a primitiva sociedade colonial brasileira.

O seu primeiro estabelecimento foi, com a única exceção
de São Paulo, todo no litoral, à beira-mar. As suas vilas e
cidades primitivas, desde São Vicente e Olinda até a do Salvador,
enquanto não entraram a construir casas de adobe à moda de Portugal,
não se diferenciariam notavelmente das aldeias indígenas aqui
encontradas, construídas de paus toscos ou folhagens. E como ali continuariam
a viver desconfortavelmente, incomodamente, sordidamente, faltos de móveis,
de alfaias e de asseio, segundo viviam os mesmos fidalgos e burgueses no Reino.5

As mulheres brancas eram raras, as donas e senhoras raríssimas. As
famílias existentes na maior parte teriam vindo constituídas
de Portugal e muito poucas seriam. As formadas aqui, por motivo de escassez
de mulheres brancas, seriam ainda menos. As demais resultavam de uniões
irregulares dos colonos com as suas negras, conforme principiaram os portugueses
a chamar às índias, ou do seu casamento com estas, como começou
a acontecer por influência dos jesuítas, e mais tarde foi acoroçoado
pelo rei. As numerosas filhas ilegítimas ou legitimadas do Caramuru
casaram com fidalgos e soldados da conquista e seriam mamelucas ainda escuras,
do primeiro sangue, e umas broncas caboclas. Ao contrário do que passou
na América inglesa, excetuando algum eclesiástico ou alto funcionário,
quase não veio para o Brasil nenhum reinol instruído, e ainda
incluindo estes pode dizer-se que no primeiro século da colonização
não houve aqui algum representante da boa cultura européia dessa
gloriosa era.

O mais antigo assento da primeira sociedade brasileira, que não desmereça
o nome de civilizada, foi a capitania de Pernambuco de Duarte Coelho. Este
fidalgo da primeira nobreza portuguesa e ilustrado por bizarros feitos militares
na Índia desde 1534 se estabeleceu na sua capitania com a sua mulher,
da casa dos Albuquerques, um cunhado, outros fidalgos e cavaleiros de suas
relações ou parentescos, e muitos colonos, os melhores talvez
dos que nesses tempos vieram ao Brasil. A sua colônia foi a mais bem
ordenada e a mais em governada de todas e a que mais prosperou. Mas mesmo
aí não faltam testemunhos da descompostura dos costumes coloniais.
Jerônimo de Albuquerque, cunhado do austero donatário, quando
casou de ordem da rainha escandalizada com a sua libertinagem, fêz-se
acompanhar de onze filhos naturais que tivera, uns da filha do tuxaua Arco
Verde, outros de suas mancebas índias.6 A ordem e polícia material
criada pela forte e esclarecida vontade de Duarte Coelho parece ter aí
correspondido ao princípio da maior homogeneidade social, nos elementos
mais coerentes da colonização e no maior número e melhor
qualidade dos primeiros colonos. Também as da terra favoreciam-lhe
o aproveitamento, facilitando ainda, com o seu adiantamento e a obra do seu
donatário, pela maior proximidade do Reino e mais freqüentes e
rápidas comunicações com ele. Duarte Coelho não
parece ter sido um fidalgo sem letras, e as apreciaria porque elas, com João
de Barros, o tinham celebrado e a parentes seus por suas façanhas na
Índia. Dois dos seus descendentes e sucessores na capitania-mor de
Pernambuco foram homens de letras. Não admira, pois, que desta sociedade
onde já havia sociabilidade e luxo, saísse a mais antiga obra
literária brasileira, a Prosopopéia, de Bento Teixeira, em 1601.

A fundação do governo-geral da Bahia e conseqüente centralização
da vida colonial da cidade do Salvador, expressamente fundada para esse efeito,
criou na segunda metade do século XVI, quando justamente começava
a definhar a prosperidade de Pernambuco, a segunda sociedade menos grosseira
que houve no Brasil. Não era tão escolhida como a de Duarte
Coelho a colônia trazida por Tomé de Sousa. Era, porém,
mais numerosa e compunha-se de mais variados e a certos respeitos mais prestáveis
elementos de colonização, oficiais e mestres de ofícios,
mecânicos, técnicos, artesãos, além dos agricultores
e obreiros comuns. Trouxe mais o governador-geral a primeira leva daqueles
padres que iam ser o principal instrumento da civilização do
país, como ela somente se podia fazer aqui — os jesuítas.
A cidade cresceu em número e importância de prédios e
aumentou em população. Os jesuítas fundaram colégio
e outros religiosos conventos distribuindo todos instrução aos
meninos portugueses e indígenas. Ao redor da cidade fizeram-se engenhos.
Todo o Recôncavo se foi povoando, contribuindo para o aumento de Salvador,
que se fazia uma pequena corte tão disparatada nos seus vários
aspectos, costumes e vestuários, quanto o eram os elementos que a formavam:
fidalgos, cavaleiros, funcionários, mecânicos, soldados, índios,
negros, bem trajados uns, maltrapilhos outros, seminus aqueles. Gibões
de veludo e seda bordados de ouro e enfeites de penas à guisa de roupa.
Muitos frades, padres em demasia.

Por divertimentos comuns, ou jogos ilícitos ou festas de igreja, e
extraordinariamente touradas, cavalhadas, canas. Soltura de costumes, viver
desregrado, hábitos de ociosidade. Enfim a vida das sociedades coloniais
incipientes, compostas de elementos disparatados, e dispostos a desforrarem-se
da disciplina e constrangimento das metrópoles por uma vida à
manga lassa. Procuravam conter-lhe os ímpetos e desmandos, aliás
com pouca eficácia, o governador e seus auxiliares e os padres, principalmente,
a acreditá-los, os jesuítas, que aliás constantemente
ralham contra esta sociedade. O decorrer dos tempos lhe não modificou
consideravelmente a constituição política e moral. Ela
permaneceu essencialmente a mesma na sua feição étnica,
na sua constituição fisiológica, como na sua formação
psicológica, isto é, permaneceu portuguesa, ao menos até
as guerras holandesas, na primeira metade do século XVII. Por isso
é que durante todo o período colonial, salvo algumas raras,
mofinas e intermitentes manifestações de nativismo, a literatura
aqui é inteiramente portuguesa, de inspiração, de sentimento
e de estilo. Não faz senão imitar inferiormente, sem variedade
nem talento, a da mãe pátria. E milagre seria se assim não
fosse.


Capítulo II

PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES LITERÁRIAS

OS VERSEJADORES

AS LITERATURAS COMEÇAM sempre por um livro, que freqüentemente
não tem outro mérito que o da prioridade. Literatura oral, como
foi primeiramente a nossa, é apenas uma acepção particular,
larga demais e abusiva desse vocábulo. Não importa que esse
livro seja uma obra-prima ou sequer estimável; basta que tenha a intenção,
o feitio e o caráter da obra literária. E que se lhe possa descobrir,
ou mesmo emprestar, uma representação da sociedade ou da vida
que o produziu. Mas o só fato de ser o ponto de partida de uma literatura
lhe marca na história dela um lugar irrecusável.

Qual foi o brasileiro que, quando ainda mal se esboçava aqui uma sociedade,
escreveu e publicou uma obra literária?

Há várias e incertas notícias de uma crônica escrita
em Pernambuco talvez antes do século de 600. Seria porventura o primeiro
escrito feito no Brasil. Sobre se não saber nada a seu respeito, nem
do seu autor, sequer se era brasileiro, é duvidoso tivesse essa obra
alguma importância para a história da nossa literatura. Mas independentemente
da sua existência e qualificação literária “foi
Pernambuco o lugar em que abrolhou a flor literária em nossa pátria”.7

“Para este resultado — explana o insigne sabedor que o verificou
— concorreu mais de um fator. Pernambuco desenvolveu-se regularmente;
Duarte Coelho desde o desembarque e empossamento da terra domou os índios,
que nunca mais fizeram-lhe frente com bom êxito; os colonos viram logo
remunerados os seus labores; o solo era fértil; a vida fácil;
a sociabilidade e o luxo consideráveis; a população branca
em geral de origem comum (Viana) apresentando menos elementos disparatados,
mais depressa tendia à unificação; o sentimento característico
do nosso século XVI — o desprezo e desgosto pela terra brasileira,
o transoceanismo… ali primeiro arrefeceu. Acrescente-se a facilidade e freqüência
de viagens à Europa, a conseqüente abundância de comodidades,
cuja ausência algures tornava o país detestado e detestável;
o natural versar de livros históricos, como o de João de Barros,
em que fulgiam os nomes de Albuquerque e Duarte Coelho, a tendência
literária dos capitães-mores de terra… que escreveram livros.”8

Em 1601 saía em Lisboa, da imprensa de Antônio Alvarez, um opúsculo
de dezoito páginas, in-4º, trazendo no alto da primeira do texto
este título: Prosopopéia Dirigida a Jorge Dalbuquerque Coelho,
Capitão, e Governador de Pernambuco, Nova Lusitana, etc. O nome do
autor Bento Teyxeyra vinha, assim escrito, embaixo do Prólogo, no qual
fazia ao seu herói o oferecimento da obra.

É um poema de noventa e quatro oitavas, em verso endecassílabo,
sem divisão de cantos, nem numeração de estrofes, cheio
de reminiscências, imitações, arremedos e paródias
dos Lusíadas. Não tem propriamente ação, e a prosopopéia
donde tira o nome está numa fala de Proteu, profetizando post facto,
os feitos e a fortuna, exageradamente idealizados, dos Albuquerques, particularmente
de Jorge, o terceiro donatário de Pernambuco, ao qual é consagrado.

Não tem mérito algum de inspiração, poesia ou
forma. Afora a sua importância cronológica de primeira produção
literária publicada de um brasileiro, pouquíssimo valor tem.
No meio da própria ruim literatura poética portuguesa do tempo
— aliás, a só atender à data em que possivelmente
foi este poema escrito, a melhor época dessa literatura — não
se elevaria este acima da multidão de maus poetas iguais.

O poeta ou era de si medíocre, ou bem novo e inexperiente quando o
escreveu. Confessa aliás no seu Prólogo, já gongórico
antes do gongorismo (tanto o vício é da nossa raça) que
eram as suas “primeiras primícias”. Não se sabe se
veio a dar fruto mais sazonado. Nos seus setecentos e cinqüenta e dois
versos apenas haverá algum notável, pela idéia ou pela
forma. São na maioria prosaicos, como banais são os seus conceitos.
A língua não tem a distinção ou relevo, e o estilo
traz já todos os defeitos que maculam o pior estilo poético
do tempo, e seriam os distintivos da má poesia portuguesa do século
seguinte, o vazio ou o afetado da idéia e a penúria do sentimento
poético, cujo realce se procurava com efeitos mitológicos e
reminiscências clássicas, impróprios e incongruentes,
sem sombra do gênio com que Camões, com sucesso único,
restaurara esses recursos na poesia do seu tempo.

Conforme a regra clássica, começa o poema pela invocação.
É de justiça reparar que começa com uma novidade, a invocação
é desta vez dirigida ao Deus dos cristãos. Além do Deus,
invoca a Jorge de Albuquerque “o sublime Jorge em que se esmalta a estirpe
de Albuquerque excelente” com versos diretamente imitados do Lusíadas.
A memória fresca do poema de Camões está por todo o poema
do nosso patrício, em que não há só reminiscências,
influências mas versos imitados, parodiados, alguns quase integralmente
transcritos, e ainda alusões à grande epopéia portuguesa.
Nada porém comparável ao gênio criador com que Camões
soube imitar e superar os seus modelos.

Depois da invocação preceitual segue-se no poema de Bento Teixeira,
como também era de regra, a “narração” expressamente
designada do livro.

A ação do poema é falada ou narrada. Proteu a diz de
sobre o recife de Pernambuco. Seis estrofes o descrevem, de um modo insípido,
pura e secamente topográfico:

Para a parte do sul onde a pequena

Ursa, se vê de guardas rodeada,

Onde o Céu luminoso mais serena,

Tem sua influição, e temperada.

Junto da nova Lusitânia ordena,

A natureza, mãe, bem atentada,

Um porto tam quieto e tam seguro,

Que pera as curvas naus serve de muro.

E assim por diante sem nada que lhe eleve o tom até à poesia.

Dali, por ordem de Netuno, profetiza Proteu, num largo canto em louvor dos
Albuquerques e nomeadamente de Jorge, a quem se endereça esta prosopopéia.
Vê Proteu

A opulenta Olinda florescente

Chegar ao cume do supremo estado

Será de fera e belicosa gente

O seu largo distrito povoado

Por nome terá, Nova Lusitânia,

Das leis isenta da fatal insônia.

Esta Lusitânia será governada por Duarte Pacheco “o grão
Duarte” que o poeta, pela voz de Proteu, compara a Enéias, a Públio
Cipião, a Nestor e a Fábio. E tudo o que até então
tinha passado com os Pachecos e Albuquerques, já celebrados por Camões,
ocorre a Proteu que o profetiza posteriormente desmedindo-se no louvor e encarecimento.
Acaba o poema pouco originalmente, com as despedidas do poeta, repetindo a
promessa de voltar com um novo canto,

Por tal modo que cause ao mundo espanto.

Jorge de Albuquerque Coelho, o motivo senão o herói deste poema,
era filho de Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco, onde
Jorge nasceu, em Olinda, em 1539. O enfático padre Loreto Couto9, falando
dele como de sujeito verdadeiramente extraordinário, assevera que “ainda
que Pernambuco não tivera produzido outro filho bastaria este para
a sua imortal glória”. E mais, que “foi este insigne pernambucano
um daqueles espíritos raros para cuja produção tarda
séculos inteiros a natureza, pois à sua rara virtude e insigne
valor, acrescentou uma erudição rara e conhecimento das letras
humanas”.

Uma e outro não teriam sido adquiridos no Brasil. Se são exatas,
como parece, as notícias de Jaboatão,10 Jorge Albuquerque criou-se
em Portugal, onde aos 14 anos se achava. Com 20 voltou a Pernambuco, donde
tornou ao Reino, em 1555, aos 26 anos, após a sua brilhante campanha
contra os índios da capitania. Nesta viagem para Portugal sofreu o
naufrágio célebre da nau Santo Antônio que o levava, cuja
relação, escrita pelo piloto Afonso Luís e reformada
por Antônio de Castro, foi atribuída a Bento Teixeira.11 Em Portugal
“foi de todos aplaudido de cortesão, generoso, discreto, liberal,
afável e modesto”.12 Em suma, se havemos de crer os seus panegiristas
mais próximos dele e os que os copiaram, teria sido um portento de
gentilezas guerreiras e de virtudes civis.

Poemas como a Prosopopéia do nosso patrício, que este herói
motivou, em tudo medíocre, endereçados a potentados e magnates,
armando-lhes à benevolência e proteção, eram freqüentíssimos
e superabundavam na bibliografia da época.

Em todos os tempos poetas e literatos foram inclinadíssimos à
bajulação dos poderosos. Casando-se geralmente pouco o seu gênio
com o árduo de uma existência de trabalho e esforço próprio,
e amando sobretudo os lazeres da vida ociosa, propícios às suas
invenções e imaginações, para o haverem sacrificam
de boa mente à vaidade dos grandes dos quais sem mais fadiga que a
de contá-los e louvá-los, esperam lucrar tais ócios,
muito seus queridos. Igualmente caroáveis da grandeza, pompa e luxo
desses magnates, com os quais facilmente se embevecem, à satisfação
desse gosto imolam brios e melindres. Em Portugal tais poetas e literatos
faziam até parte da domesticidade da corte ou das grandes casas fidalgas
e ricas, que os aposentavam e pensionavam, em troca dos poemas e escrituras
com que infalivelmente celebravam a família em cada um dos seus sucessos
domésticos, nascimentos, casamentos, mortes, façanhas guerreiras,
vantagens sociais obtidas, aniversários. Como havia destes poetas efetivos,
privados, caseiros, os havia também ocasionais, mas não menos
prontos ao louvor hiperbólico, à lisonja enfática, à
bajulação rasteira, em câmbio da proteção
solicitada ou em paga de alguma graça obtida. Na sociedade de então
o homem de letras, ainda sem público que o pudesse manter, e até
forçado e apenas muito limitadamente exercer a sua atividade, quase
só dos principais pelo poderio e riqueza, que acaso lhes estimassem
as prendas sem os estimar a eles, podia viver. Freqüentemente eram estes
que lhe mandavam imprimir as obras, que sem tais patronos dificilmente achariam
editores. Tais costumes, explicáveis e porventura desculpáveis
pelas condições do tempo, passaram naturalmente do Reino à
sua colônia da América, onde os vice-reis, governadores e capitães-generais
e mores faziam de reis pequenos, e os fazendeiros, senhores de engenho e outros
magnates locais substituíram e arremedavam os grãos-senhores
da Metrópole. Tanto passaram que desde as suas primeiras manifestações,
a poesia, e depois toda a espécie de literatura, inspirou-se grandemente
aqui daqueles motivos, e foi consideravelmente áulica. Aulicismo, arcadismo,
gongorismo foram sempre aliás traços característicos
das letras portuguesas.

Quer em Portugal, quer no Brasil duraram estes costumes até o século
XVIII. Não sei aliás se é possível dizer estejam
de todo extintos. Mais certo será tenham antes variado e se transformado
do que desaparecido completamente as formas e modos com que poetas e literatos
sempre atiraram ao patrocínio dos poderosos, adulando-os em prosa e
verso. Seja que ainda pesa sobre eles essa herança, seja porque continuam
a preferir alcançar por tais meios o que só com fadiga e dificuldade
lhes daria trabalho mais honesto, certo é não desapareceu o
costume de todo. Bento Teixeira fica, pois, sendo, não só o
primeiro em data dos poetas brasileiros, mas o patriarca dos nossos “engrossadores”
literários. E de ambos os modos progenitor fecundíssimo de incontável
prole.

É muito provável que simultaneamente com ele, se não
antes, houvesse o Brasil produzido outros versejadores áulicos, isto
é, cujo principal motivo de inspiração fosse angariar
o patrono de algum poderoso da terra. O mundo dividiu-se sempre entre patronos
e clientes. Todavia não sabemos de nenhum que o antecedesse ou viesse
ao seu tempo.

Conjetura-se com bons fundamentos houvesse composto o seu poema nos últimos
anos do século, com certeza depois do desastre de D. Sebastião
em África, em 1578, a que já o poema se refere. Talvez nos arredores
de 1596, que neste ano ainda vivia Jorge de Albuquerque e o poema foi composto
quando ele vivo.

De Bento Teyxeyra, como ele o assinou, ou Bento Teixeira Pinto, como também
lhe escreveram o nome, nada mais se sabe além da parca notícia
do bibliógrafo Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, publicada
em 1741; que nasceu em Pernambuco e era “igualmente perito na poética
e na história”. Não diz nem o lugar nem a data do nascimento.
Um cronista pernambucano, posterior a Barbosa Machado, o citado padre Couto,
noticiador geralmente de segunda mão, apenas acrescenta que era de
Olinda.13 Dele não há nenhuma notícia contemporânea,
e estas mesmas vagas informações de mais de um século
posteriores, não foram jamais verificadas ou ampliadas por quaisquer
investigações ulteriores. Outras notícias que dele há
em escritores mais modernos são de pura inventiva de seus autores.

Chama-lhe de “perito na história” o bibliógrafo Machado,
e com este o padre Couto, que apenas o repete, por lhe atribuírem ambos
a obra em prosa Diálogos das grandezas do Brasil. Como começou
a provar Varnhagen em 1872,14 e pode-se hoje ter por incontestável,
essa obra, porventura a mais interessante da primitiva literatura do Brasil,
não é de Bento Teixeira.15 E é pena, pois vale mais do
que a sua trivial e insípida Prosopopéia. Como quer que seja,
marca esta o primeiro passo dos brasileiros na vida literária, é
o primeiro documento da sua vontade e capacidade de continuar na América
a atividade espiritual da Metrópole.

Publicada ali, ali mesmo se teria sumido, confundida na massa enorme de quejandas
produções. Talvez ficasse até desconhecida no Brasil.
Não só não há menção ou memória
dela além das duas indicadas, ambas em suma de origem portuguesa, mas
outro poeta brasileiro, Manoel Botelho de Oliveira, dando à luz um
livro de versos um século depois, gabava-se de ser o primeiro brasileiro
que os publicava. E dos dois únicos exemplares originais que se lhe
conhecem, o único existente no Brasil, na Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro, veio de Portugal (onde está o outro na Biblioteca Nacional
de Lisboa) na coleção de livro do citado Barbosa Machado.16

O apreço da terra, mesmo uma exagerada admiração dela,
da sua natureza, das suas riquezas e bens, é uma impressão comum
nos primeiros que do Brasil escreveram, estranhos e indígenas. Como
veremos, será essa impressão que, fazendo-se emoção
e estímulo de inspiração, imprimir à nossa literatura
o primeiro traço da sua futura diferenciação da portuguesa.
Não é desapropositado notar que a primeira manifestação
do gênio literário brasileiro é um poema relativo a cousas
da terra embora ainda sem emoção que lhe dê maior relevo
e significação.

Antes, porém, de Bento Teixeira e de versejadores de igual jaez, que
porventura houve, ou simultaneamente com aquele, versejaram também
padres jesuítas compondo cantigas devotas para os seus catecúmenos.
Esta primitiva literatura jesuítica se não limitava, entretanto,
a tais cantigas. Desde que esses padres aqui se estabeleceram, por meado do
século XVI, compreendia discursos em prosa e verso, epigramas ou poemas
conceituosos alusivos aos motivos das festividades, diálogos em verso
ou prosa ou misturados de ambos e cenas dialogadas representadas em tablados
ou ramadas à guisa dos autos no Reino, infalivelmente sobre um assunto
de devoção e edi-ficação. Comumente misturavam-se
neste autos o latim e o português e também o castelhano. Serviam-lhe
de atores ou recitadores os índios amansados e menos broncos, algum
discípulo europeu dos jesuítas e até um destes padres.
Das festividades em que tinham lugar estas manifestações literárias
— se tal se lhes pode chamar — dá repetidas notícias
o padre Fernão Cardim, deixando ver quão freqüentes e gerais
eram em toda a costa brasílica.17 Dos autores de tais produções
o mais, ou antes o único, conhecido é o padre José de
Anchieta, figura tão verdadeiramente venerável que não
conseguiu desmerecê-la a admiração carola com que tem
sido exalçado. Noticia o seu confrade padre Simão de Vasconcelos
que Anchieta “compôs com vivo e raro engenho, muitas obras poéticas,
em toda a sorte de metro, em que era mui fácil, todas ao divino e a
fim de evitar abusos e entretenimentos menos honestos. Entre estes foram a
de mais tomo o livro da vida e feitos de Mem de Sá, terceiro governador
que foi deste Estado, em verso heróico latino; várias comédias,
passos, éclogas, descrições devotíssimas que ainda
hoje andam na sua mesma letra; e a vida da Virgem Senhora Nossa em verso elegíaco”.18
Em a sua Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, em 1663,
já o mesmo padre assim informava da particular atividade literária
do seu eminente companheiro: “Era destro em quatro línguas: portuguesa,
castelhana, latina e brasílica; em todas elas traduziu em romances
pios com muita graça e delicadeza, as cantigas profanas que então
andavam em uso; com fruto das almas, porque deixadas as lascívias não
se ouvia pelos caminhos outra cousa senão cantigas ao divino, convidados
os entendimentos a isso do suave metro de José”.19

17Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela
Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambucano, Espírito Santo, Rio
de Janeiro, São Vicente, etc., pelo P. Fernão Cardim. Lisboa,
1847, passim.

18Vida do Padre Joseph de Anchieta. Lisboa, 1672. Apud Teixeira de Melo,
P. Joseph de Anchieta, Anais da Biblioteca Nacional, I, 51.

19Crônica, etc., segunda edição. Rio de Janeiro, 1864,
2ª parte, 84.

Das suas comédias, ou melhor autos sacros, a mais considerável
é a Pregação Universal, circunstancialmente mencionada
pelo seu biógrafo, e da qual são conhecidos alguns trechos,
como o são algumas outras, bem poucas aliás, composições
suas. São puras obras de catequização, devoção
e edificação sem intuitos nem qualidades literárias,
apenas conhecidas de fragmentos e sem unidade de estilo ou sequer de língua,
pois as escrevia, consoante o interesse do momento, em português, latim
ou castelhano e ainda em tupi e até misturava estes idiomas. Mas estas
mesmas composições, como o seu poema da Vida de Mem de Sá
ou da Vida da Virgem Maria, ambos em latim, o que basta para excluí-los
da nossa literatura, e mais as suas notícias e informações
do Brasil e do trabalho de catequese e colonização que aqui
ao seu tempo se fazia, e até a sua Gramática da língua
mais usada na costa do Brasil (Coimbra, 1596) estão manifestamente
revelando no piedoso jesuíta uma vocação de escritor.
Foi seguramente um poeta, menos, porém, nestas obras, a que apenas
salva a ingenuidade da intenção e a pureza do sentimento que
lhas inspirou, que pelo seu ardente e esquisito sentimento do divino e profunda
simpatia com o gentio cuja se fez apóstolo. A sua obra poética,
a sua criação é, com a sua puríssima vida, toda
votada ao ideal da sua vocação, esse apostolado, que foi simultâneo
um milagre de entendimento e de ingenuidade. Quanto às suas composições
poéticas, essas apenas lhe autorizam a menção do nome,
por outros e melhores títulos glorioso, entre os nossos primitivos
versejadores. São tanto literatura como os diversos catecismos bilíngües
escritos no período colonial.

OS PROSISTAS

I — PORTUGUESES

A prosa portuguesa chamada, não se sabe ao certo por que, de clássica
é do século XVI. Não são, porém, dessa
era, mas da seguinte, os seus mais acabados modelos. Apreciada sem os comuns
preconceitos do casticismo, verifica-se não atingiu ainda então
a expressão cabal e perfeita de um pensamento que por largo e humano
merecesse viver.

Desde o século anterior, o sentimento português com as suas
especiais qualidades exprimiu-se em magníficas formas poéticas
que iniciavam o peculiar lirismo nacional e entravam a dar à poesia
portuguesa a sua distinção. Quiçá essa raça
sentimental e poética carecia de um pensamento tão particular
quanto o era o seu sentimento. Não se lhe encontra a expressão
na prosa. O seu foi aliás sempre mesquinho e de repetição.
Faltou-lhe imaginação criadora, poder de generalização,
faculdades filosóficas. A prosa, a linguagem apropriada ao revelar
ficou-lhe em todo o tempo inferior à poesia. Mesmo no período
apelidado áureo da literatura portuguesa, a prosa vacilou entre o “estilo
metafísico bárbaro dos rudes escritores do século XV”,
segundo a qualificação de Herculano, e o falso polimento culto
do século XVII. Sincretizam-se as duas feições ainda
nos melhores escritores dessa época, deparam-se-nos ambas sem grande
esforço de procura nos mais afamados.

No Brasil, desde que se começou a escrever prosa a que já possamos
chamar de literária, foram justamente os defeitos dessa prosa portuguesa,
a dureza e simultaneamente o amaneirado do frasear, o inchado e o retorcido
da expressão, com o sacrifício intencional da sua correnteza
e naturalidade, que predominaram. Quando aqui se começou a fazer prosa,
a feição dominante da portuguesa era o gongorismo, o hipérbaton,
as construções arrevesadas e rebuscadas, os trocadilhos. Um
estilo presumidamente poético ou eloqüente, mas de fato apenas
túmido e enfático. Era esse o estilo culto do qual o padre Vieira,
inconsciente de que era por muito o seu, dizia, praticando-o na sua mesma
censura: “Este desventurado estilo de que hoje se usa, os que o querem
honrar chamam-lhe culto, e os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda
lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é
negro boçal e muito cerrado.”20 Se tal era ainda nos melhores
escritores da Metrópole e estilo literário da época em
que se começou a escrever no Brasil, que podia ele ser na grossa colônia
nascente?

Do século XVI escrito no Brasil, se não por brasileiro nato,
por brasileiro adotivo, nacionalizado por longa residência no país
e enraizamento nele por família aqui constituída e bens aqui
adquiridos, só nos resta um livro, o Tratado descritivo do Brasil,
por Gabriel Soares de Sousa, terminado em 1587. Nem pelo estímulo que
o originou, nem pelo seu propósito, nem pelo estilo é o livro
de Gabriel Soares obra literária. Era, como diríamos hoje, um
memorial de concessão apresentado ao Governo, como justificativa dos
favores que para a sua empresa de exploração do país
lhe pedia o autor. A obra, porém, lhe excedeu o propósito. Deu
a este memorial desusada extensão e uma amplitude que o fez abranger
a história e a geografia, no seu mais largo sentido, da grande colônia
americana então sob o domínio espanhol. A sinceridade da sua
longa, minuciosa e exata informação não chegam a prejudicar-lhe
os gabos e encarecimentos da terra, que no forasteiro aclimado revêem
uma viva e tocante afeição ao seu exótico país
de adoção, onde passara da pobreza à abastança,
a que consagrara o melhor da sua existência e atividade, onde amara
e fora amado, fizera família e iria morrer na busca aventurosa e dura
das suas riquezas nativas. Podíamos portanto adotá-lo por nosso
se acaso este simpático feitio de sua obra não revisse também
o propósito de empreiteiro de facilitar-se a mercê impetrada,
justificando-a sobejamente com a notícia interesseira da terra que
se propunha a explorar.

Como não era um letrado e a sua “tenção, conforme
declara, não foi escrever história que deleitasse com estilo
e boa linguagem”, e não esperava “tirar louvor desta escritura”,
saiu-lhe a obra, embora rude de feitura e pouco castigada de linguagem, menos
eivada dos vícios literários do tempo, e, por virtude do próprio
assunto, muito mais interessante e proveitosa ainda hoje do que a maior parte
das que então mais classicamente se escreviam, sermonários,
vidas de santos, crônicas de reis, de príncipes e magnates, livros
de devoção e milagrices.

Nunca publicada antes que o fizesse sem ainda lhe saber o autor, em 1825,
a Academia Real das Ciências de Lisboa,21 a obra de Gabriel Soares,
sem embargo de inédita, não passou desapercebida aos curiosos
do seu objeto, imediatos ou posteriores ao inteligente e laborioso reinol.
Se a não compulsou o nosso primeiro cronista nacional, Frei Vicente
do Salvador, conheceram-na e versaram-na o clássico autor dos Diálogos
de vária história, Pedro de Mariz, Jaboatão, o perluxo
cronista franciscano, Simão de Vasconcelos, o não menos difuso
e não menos gongórico cronista jesuíta, o bom autor da
Corografia brasileira, Aires de Casal, e depois, mas ainda em antes dela impressa,
outros historiadores e noticiadores do Brasil, Roberto Southey, Ferdinand
Denis, Martius. As numerosas cópias manuscritas (Varnhagen dá
notícia de vinte) que sem embargo do seu volume (de mais de trezentas
páginas impressas in 8º) desta obra se fizeram, indicam que se
permaneceu inédita não foi porque a houvessem por desinteressante
ou somenos. Somente o suspicaz ciúme com que a metrópole evitava
a divulgação das suas colônias pode explicar assim ter
permanecido obra de tanta valia.

Gabriel Soares de Sousa, nascido em Portugal pelos anos de 1540, veio para
o Brasil pelos de 1565 a 1569. Na Bahia estabeleceu-se como colono agrícola.
Ali casou e prosperou a ponto de nos dezessete anos de estada se fazer senhor
de um engenho de açúcar, e abastado, como do seu testamento
se depreende. Ganhando com a fortuna posição, foi dos homens
bons da terra e vereador da Câmara do Salvador. Um irmão seu
que, parece, o precedera no Brasil havia feito explorações no
sertão de São Francisco, onde presumira haver descoberto minas
preciosas. Falecido ele, quis Gabriel Soares prosseguir as suas explorações
e descobrimentos. Com este propósito passou à Europa em 1584,
a fim de solicitar da Corte da Madri autorização e favores para
o seu empreendimento de procura e exploração de tais minas.
Por justificar os seus projetos e requerimentos, e angariar-se a boa vontade
dos que podiam fazer-lhe as graças pedidas, nomeadamente do Ministro
D. Cristóvão de Moura, redigiu nos quatro anos de 1584 a 1587
o longo memorial, como ele próprio lhe chamou, que conservado inédito
até o século passado, foi nele publicado sob títulos
diferentes, o qual constitui uma verdadeira enciclopédia do Brasil
à data da sua composição.

Gabriel Soares, sujeito de bom nascimento se não fidalgo de linhagem,
suficientemente instruído, sobreinteligente, era curioso de observar
e saber, e excelente observador como revela o seu livro. Embora determinado
por uma necessidade de momento, não foi este composto de improviso
e de memória. Para o redigir serviu-se, como declara, das “muitas
lembranças por escrito” que nos dezessete anos da sua residência
no Brasil fez do que lhe pareceu digno de nota. Obtidas as concessões
e favores requeridos, nomeado capitão-mor e governador da conquista
que fizesse e das minas que descobrisse, partiu para o Brasil em 1591, com
uma expedição de trezentos e sessenta colonos e quatro frades.
Malogrou-se-lhe completamente a empresa, pois não só naufragou
nas costas de Sergipe mas depois veio, com o resto da expedição
que conseguira salvar do naufrágio e reconstituíra na Bahia,
a perecer nos sertões pelos quais se internara. Seus ossos, mais tarde
trazidos para a Bahia, foram e se acham sepultados na capela-mor da igreja
do mosteiro de S. Bento, tendo sobre a lápide que os recobre o epitáfio:
“Aqui jaz um pecador” segundo o disposto no seu testamento.22 Deste
documento induz-se que era homem abastado, devoto, nimiamente cuidadoso da
salvação da sua alma, mediante esmolas, obras pias, missas e
quejandos recursos que aos católicos se deparam para o conseguir.

Não é propriamente a obra de Gabriel Soares literária,
nem pela inspiração, nem pelo propósito, nem pelo estilo.
Só o é no sentido, por assim dizer material, da palavra literatura.
O estilo é, como pertinentemente mostrou Varnhagen, aliás achando-lhe
encanto que lhe não conseguimos descobrir rude, primitivo e pouco castigado,
mas em suma menos viciado dos defeitos dos somenos escritores contemporâneos,
mais desartificioso do que o começavam a usar os seus coevos, como
de homem que não fazia literatura e não cuidava de imitar os
que a faziam.

É grande, porém, o mérito especial dessa obra. Varnhagen
se o encareceu não o exagerou demasiado escrevendo, ele que mais do
que ninguém a estudou e conheceu: “Como corógrafo o mesmo
é seguir o roteiro de Soares que o de Pimentel ou de Roussin; em topografia
ninguém melhor do que ele se ocupou da Bahia; como fitólogo
faltam-lhe naturalmente os princípios da ciência botânica;
mas Dioscórides ou Plínio não explicam melhor as plantas
do velho mundo que Soares as do novo, que desejava fazer conhecidas. A obra
contemporânea que o jesuíta José de Acosta publicou em
Sevilha em 1590, com o título de História natural e moral das
Índias e que tanta celebridade chegou a adquirir, bem que pela forma
e assuntos se possa comparar à de Soares, é-lhe muito inferior
quanto à originalidade e cópia de doutrina. O mesmo dizemos
das de Francisco Lopes de Câmara e de Gonçalo Fernandez de Oviedo.
O grande Azara, com o talento natural que todos lhe reconhecem, não
tratou instintivamente, no fim do século passado, da zoologia austro-americana
melhor que o seu predecessor português; e numa etnografia geral de povos
bárbaros, nenhumas páginas poderão ter mais cabida pelo
que respeita ao Brasil, o que nos legou o senhor do engenho das vizinhanças
de Jequiriçá. Causa pasmo como a atenção de um
só homem pôde ocupar-se em tantas cousas “que juntas se
vêem raramente”, como as que se contêm na sua obra, que trata
a um tempo, em relação ao Brasil, de geografia, de história,
de topografia, de hidrografia, de agricultura entretrópica, de horticultura
brasileira, de matéria médica indígena em todos os seus
ramos e até de mineralogia”.23 Não é excessivo este
juízo, e quem o emitia tinha competência para o fazer.

Um outro português, o padre Jesuíta Fernão Cardim, que
também viveu no Brasil, deixou dois escritos de pouco tomo, pelos quais
tem sido, a meu ver impertinentemente, incluído na história
da nossa literatura como um dos seus primitivos escritores. Menores são
ainda que os de Gabriel Soares os seus títulos a pertencer à
nossa literatura. O a todos os respeitos mais considerável e melhor
dos seus dois escritos são duas cartas que desde o Brasil endereçou
ao Provincial da Companhia em Portugal, recontando-lhe, miudamente, e de modo
verdadeiramente interessante, uma viagem de inspeção jesuítica
por algumas de nossas capitanias. Varnhagen, que as descobriu, publicou-as
em 1847 com o título factício de Narrativa epistolar de uma
viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro,
Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, etc., desde o ano de 1583
ao de 1590.24 Embora documento interessantíssimo para o estudo das
missões jesuíticas e da mesma vida colonial no primeiro século,
não tem a obra de Fernão Cardim, se obra se lhe pode chamar,
o interesse bem mais geral, a importância e a valia da de Gabriel Soares.
A sua inclusão na nossa literatura é tão legítima
como o seria a de toda a correspondência jesuítica daqui desde
Nóbrega até o padre Antônio Vieira, e ainda além.
No desenvolvimento da nossa literatura não teve esta de Fernão
Cardim sequer a parte que é lícito atribuir à de Gabriel
Soares, pelo que desta aproveitaram os posteriores autores brasileiros.

Outro escrito que se lhe imputa com fundados motivos mas sem absoluta certeza
é a monografia, como lhe chamaríamos hoje, Do princípio
e origem dos índios do Brasil e dos seus costumes, adorações
e cerimônias, título também factício.25

Pertence a esta primeira fase da literatura colonial e a mesma sorte destes,
o curioso escrito Diálogos das grandezas do Brasil, descobertos e divulgados
por Varnhagen.

Ignora-se-lhe ainda hoje o autor. Ao invés do que primeiramente supôs
Varnhagen, que o atribuiu a brasileiro, nomeadamente a Bento Teixeira, o poeta
da Prosopopéia, deve de tê-lo escrito em português. Mas
um português, como tantos aqui houve, e dos quais é Gabriel Soares
ótimo exemplar, naturalizado por longo estabelecimento na terra, afeiçoado
a ela, identificado com ela, a ponto de tomar-lhe calorosamente a defesa contra
um patrício recém-chegado e de exagerar-lhe as excelências
como um zeloso patriota. Quem quer que fosse, era homem instruído,
grande conhecedor do Brasil, simpaticamente curioso dos seus aspectos naturais
e sociais e de todas as exóticas feições da nova terra.
Instruído, esclarecido e judicioso, as suas muitas observações
sobre a administração, os hábitos, a economia e mais
faces do país, são geralmente bem feitas e acertadas. Algumas
surpreendem-nos pela agudeza e perspicácia. Tais são, em 1618,
apenas passado um século do descobrimento e não acabado ainda
o da colonização, os seus reparos da indolência, indiferença
e índole afidalgada dos moradores do Brasil que tudo fiavam do escravo,
escusando-se ao trabalho. Mais notável é ainda que tenha desde
então verificado a influência civilizadora da América
na Europa, ou ao menos no europeu, para cá imigrado e aqui tornado,
graças à riqueza adquirida e à sua indistinção
de classes, de rústico em policiado. Realmente a parte da América
na civilização, na polícia, como diziam os nossos clássicos,
e escreve o autor dos Diálogos das grandezas, é muito maior
do que se não pensa. São milhões os europeus que tendo
para ela vindo de todo broncos, grosseiramente trajados, sem nenhuns hábitos
de asseio, conforto ou civilidade, e com as manhas inerentes à sua
miserável posição na mãe pátria, logram
com a fortuna crescer de situação e emparelhar com as melhores
classes americanas. Destas tomam estilos de vida, imitadas por elas das melhores
da Europa, das quais acolá os preconceitos de casta, aqui desconhecidos,
os traziam afastados. A transformação começada pelo que
podemos chamar o hábito externo se completa pelo convívio dessas
classes, cujo comércio lhes é facilitado pela fortuna e posição
aqui facilmente adquiridas. Muitíssimos além desta educação
indireta, a fazem formalmente freqüentando as nossas escolas ou particularmente
tomando mestres, o que lhes seria muito mais difícil nos seus países
de origem. E a América restitui à Europa desbastados da sua
grosseria originária, limpos, no rigor da expressão, civilizados,
polidos, com o melhor feitio físico e social, milhões de sujeitos
que lhe vêm boçais e crassos. Devolve-lhe cavalheiro quem lhe
chegou labrego. É admirável que este fato interessantíssimo
não tenha escapado ao perspicaz observador dos Diálogos das
grandezas, que, notando-o, do mesmo passo o atesta aqui desde o começo
do século XVII. “O Brasil é praça do mundo, assenta-se
ele, se não fazemos agravo a algum reino ou cidade em lhe darmos tal
nome, e juntamente academia pública, onde se aprende com muita facilidade
toda a polícia, bom modo de falar, honra dos termos de cortesia, saber
bem negociar e outros atributos desta qualidade”. E como seu interlocutor
lhe retorquisse que não devia de ser assim, e antes pelo contrário,
pois o Brasil se povoara primeiramente com “degradados e gente de mau
vier” e por conseguinte pouco político, pois carecendo de nobreza
lhe faltava necessariamente a polícia, Brandônio, pseudônimo
com que se disfarça o autor, retruca-lhe: “Nisso não há
dúvida, mas deveis saber que esses povoadores, que primeiramente vieram
povoar o Brasil, a poucos lanços pela largueza da terra, deram em ser
ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades
e pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar, e os filhos de tais já
entronizados com a mesma riqueza e governo da terra despiram a pele velha,
como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos com se ajuntarem
a isso o haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos
e fidalgas, os quais casaram nele e se liaram em parentesco com os da terra,
em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobres.
Então como neste Brasil concorrem de todas as partes diversas condições
de gente a comerciar, e este comércio o tratam com os naturais da terra,
que geralmente são dotados de muita habilidade, ou por natureza do
clima, ou do bom céu de que gozam, tomam dos estrangeiros tudo o que
acham bom, de que fazem excelente conserva para a seu tempo usarem dela.”

Literariamente estes Diálogos, sem serem romance ou novela, são
uma ficção, a primeira escrita no Brasil. O processo de diálogos,
já o notou Varnhagen, estava então em moda em Portugal, para
a exposição de idéias e noções de ordem
moral, política ou econômica. São principalmente desta
ordem as que intenta divulgar o autor deste, com o propósito manifesto
de propaganda, como hoje diríamos, do Brasil, por um português
que laços diversos de interesse e amor apegariam à terra, da
qual fala carinhosamente. Pela língua e estilo, embora não sejam
nem uma nem outro primorosos, são estes Diálogos o que melhor
nos legou a escrita portuguesa no Brasil nesta primeira fase da produção
literária aqui. Por ambos é de um quinhentista que, justamente
por não ser um literato, não trazia ainda a eiva do século
literário que começava. Escrevendo, com interesse e amor, de
cousas novas, inéditas, bem conhecidas suas, fê-lo com maior
objetividade, inteligência e simpleza do que era comum em livros portugueses
contemporâneos. E, ao menos para nós brasileiros, mais interessantemente.
Em nenhum outro sobre o Brasil e aqui escrito na mesma época ou ainda
imediatamente depois, se encontram tantos testemunhos de mestiçagem
que aqui se começava a operar, e já ia mesmo relativamente adiantada,
da comunhão das gentes diversas que neste país se encontraram.
E como ao cabo é tal mestiçagem, não só fisiológica
senão psicológica também, que distinguirá o grupo
brasileiro, dar-lhe-á feição própria e atuará
a sua expressão literária, são os Diálogos das
grandezas um estimável subsídio da nossa história literária.

II — BRASILEIROS

O primeiro brasileiro conhecido que escreveu prosa num gênero literário,
qual é a história, e de feitio a se lhe poder qualificar a obra
de literária, foi Frei Vicente do Salvador. É por ele que começa
a nossa literatura em prosa.

Vicente Rodrigues Palha, como no século se chamava Frei Vicente, segundo
as escassas notícias que dele temos, nasceu em Matuim, umas seis léguas
ao norte da cidade da Bahia, em 1564. Como a maioria dos homens instruídos
da época, estudou com os jesuítas no seu colégio de São
Salvador, e depois em Coimbra, em cuja Universidade se formou em ambos os
direitos e doutorou-se. Voltando ao Brasil ordenou-se sacerdote, chegou a
cônego da Sé baiana e vigário-geral. Aos trinta e cinco
anos fêz-se frade, vestindo o hábito de São Francisco
e trocando o nome pelo de Frei Vicente de Salvador. Missionou na Paraíba,
residiu em Pernambuco e cooperou na fundação da casa franciscana
do Rio de Janeiro, em 1607, sendo o seu primeiro prelado. Tornou posteriormente
a Pernambuco, onde leu um curso de artes, no convento da ordem, em Olinda.
Regressando à Bahia aí foi guardião do respectivo convento,
em 1612. Eleito em Lisboa custódio da Custódia franciscana brasileira,
no mesmo ano de 1612 teve de voltar a Pernambuco. Após haver estado
em Portugal, regressado novamente à Bahia, como guardião, tornado
ao Rio e mais uma vez à Bahia, aí faleceu entre os anos de 1636
a 1639. Estas diferentes viagens, este trato de diversas terras e populações
devia ter-lhe completado a educação escolar com aquela, a certos
respeitos melhor, que se faz no comércio do mundo. A ela podemos atribuir
a singular objetividade do seu estilo. Foram grandes e bons os seus serviços
à sua ordem e à sua pátria por vários lugares
e postos da sua atividade. Passou por excelente religioso e bom letrado. A
sua obra faz acreditar merecida esta reputação.

Essa obra, História do Brasil, concluída a 20 de dezembro de
1627, ficou inédita até 1888. Escreveu-a o bom e douto frade
a pedido, poderíamos dizer por encomenda, de Manoel Severim de Faria,
um dos mais considerados eruditos portugueses contemporâneos, que lhe
prometera publicá-la à sua custa.

Como ninguém melhor que Varnhagen conheceu o Tratado descritivo do
Brasil de Gabriel Soares, ninguém melhor que o sr. Capistrano de Abreu
conhece a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, cujo foi
se não o revelador, glória que cabe também a Varnhagen,
o divulgador a capacíssimo editor. Com igual autoridade ao seu ciente
predecessor na historiografia brasileira, julga assim o sr. Capistrano de
Abreu a obra do frade baiano: “Sua história prende-se antes ao
século XVII que ao século XVI, neste com as dificuldades das
comunicações, com a fragmentação do território
em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito municipal:
brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se não
ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo simples
fato de aqui ter nascido — um mazombo, se de algum corpo se reconheciam
membros, não estava aqui mas no ultramar: portugueses diziam-se os
que o eram e os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa
a reação contra a tendência dominante: Brasil significa
para ele mais que expressão geográfica, expressão histórica
e social. O século XVII é a germinação desta idéia
como o século XVIII é a maturação.

“A sua História não repousa sobre os estudos arquivais.
Haveria dificuldade em examinar arquivos? ou não era o seu espírito
inclinado a leitura penosa de papéis amarelecidos pelo tempo? Daí
certa laxidão no seu livro: muitos fatos omitidos que hoje conhecemos
e que ele com mais facilidade e mais completamente poderia ter apurado, contornos
enfumados, datas flutuantes, dúvidas não satisfeitas. Até
certo ponto a História de Frei Vicente é comparável à
geografia do meritíssimo padre Mateus Soares, um século mais
tarde: correta onde determinava posições astronômicas;
em outros pontos fundada sobre roteiros de bandeirantes e mineiros.

“Mas esta pecha resgata-a por qualidades superiores. A História
possui um tom popular, quase folclórico; anedotas, ditos, uma sentença
do bispo de Tucumã, uma frase do Rei do Congo, uma denominação
de Vasco Fernandes. Mais ainda: vê-se o Brasil qual era na realidade,
aparece o Branco, aparece o Índio, aparece o Negro; o preto Bastião
percebe-se que fez rir a boas gargalhadas o nosso autor. Informações
por que suspirávamos, e que não esperávamos encontrar,
ele as oferece às mãos cheias, ora num traço fugitivo,
ora demoradamente: leia-se por exemplo o último capítulo do
livro IV, relativo a construção de engenhos: antes nada se sabia
a tal respeito. Há também o pensamento que a prosperidade do
Brasil está no sertão, que é preciso penetrar o oeste,
deixar de ser caranguejo, apenas arranhando praias, a oposição
do bandeirismo ao transoceanismo: e daí a porção de roteiros
que debalde se procuraria em outras obras.”26

Dos mesmos méritos que do seu ponto de vista de historiador lhe verifica
o sr. Capistrano de Abreu, pode concluir a crítica literária
para lhe avaliar os quilates nesta espécie. É um livro que poderíamos
chamar de clássico se não nos agarrássemos à estreita
concepção gramatical e retórica que o vocábulo
tomou em Portugal. A sua língua correta, expressiva e até às
vezes colorida, mais porventura do que o costuma ser a dos escritores seus
contemporâneos, tem sobre a destes a superioridade da singeleza e da
naturalidade, virtudes neles raras. E poderíamos acrescentar da familiaridade,
como o mostram o já aludido simile da exploração dos
portugueses limitada à costa com o arranhar das praias pelos caranguejos,
e que tais, tirados das novidades que à sua pena inteligente ofereciam
os aspectos inteiramente inéditos do país que historiava e descrevia.
É muito mais agradável de ler que Gabriel Soares e para nós
brasileiros ao menos do que muitos dos chamados clássicos portugueses,
cronistas como ele. Tem espírito, tem chiste, quase poderíamos
dizer que às vezes tem até humour. Há sobretudo nele
uma desenvoltura de pensar e de dizer que aumentam o sabor literário
à sua História. Sirvam de exemplo estas suas reflexões
sobre o nome do Brasil: É porventura por isso (refere-se à troca
do nome de Terra de Santa Cruz pelo de Brasil), ainda que ao nome de Brasil
ajuntarem o de estado e lhe chamem estado do Brasil, ficou ele tão
pouco estável, que, com não haver hoje cem anos, quando isto
escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoado
alguns lugares, e sendo a terra tão grande e fértil, como adiante
veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.

“Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores;
aos reis pelo pouco caso que hão feito deste tão grande estado,
que nem o título quiseram dele, pois intitulando-se senhores da Guiné
por uma caravelinha que lá vai e vem, como disse o rei do Congo, do
Brasil que não quiseram intitular. Nem depois da morte de el-rei Dão
João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve
outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos.”

É do mesmo espírito e tom a sua observação, já
atrás citado do desapego dos moradores à terra.

Não é só historiador que reconta, observa e reflexiona,
é também moralista avisado que sem biocos fradescos, compara,
aprecia e generaliza, e sabe fazê-lo com graça natural e frase
que desta mesma naturalidade tira a elegância. São outro documento
destes seus dotes, e até da sua perspicácia psicológica,
estas suas finas observações sobre a obra da catequese, com
que também inculca o que era no fundo a superficial cristianização
do selvagem. Soube o seu espírito realista discernir, e dizer sem os
rebuços que lhe punham os jesuítas, alguns motivos da passividade
com que o índio se prestava a certas práticas religiosas. É
demais dizê-lo com uma deliciosa sem-cerimônia. “Confesso
que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância,
porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção
com que acudiam à igreja e quando lhes tangiam o sino, à doutrina
ou à missa, corriam com um ímpeto e estrépido que pareciam
cavalos, mas em breve tempo começaram a esfriar de modo que era necessário
levá-los à força, e se iam morar nas suas roças
e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só
acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia,
porque são muito amigos de novidades; como dia de São João
Batista por causa das fogueiras e capelas, dia da comemoração
geral dos defuntos, para ofertarem por eles, dia de Cinza e de Ramos e principalmente
das endoenças para se disciplinarem, porque o tem por valentia. E tanto
é isto assim que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão
Jorge de Albuquerque, estando ausente uma semana santa, chegando à
aldeia nas oitavas da Páscoa e dizendo-lhe os outros que se haviam
disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então presidia,
dizendo: “Como havia de haver no mundo que se disciplinasse até
os meninos e ele sendo tão grande e valente, como de feito era, ficasse
com o seu sangue no corpo sem o derramar.” Respondia-lhe eu que todas
as coisas tinham seu tempo, e que nas endoenças se haviam disciplinado
em memória dos açoutes que Cristo senhor nosso por nós
havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa ressurreição
com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias
dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário
dizer-lhe que fizesse o que quisesse, com que logo se foi açoutar rijamente
por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros
estavam por festas metendo de vinhos nas ilhargas.”27

27Obr. cit., 169.

É precioso o texto, assim pela arguta observação de
certos característicos hoje muito conhecidos do selvagem, a sua inconstância
de propósito, o seu amor da novidade, o seu ponto de honra de valentia
bruta, como pela língua que sendo boa, conforme a melhor do tempo,
escapa entretanto aos feios vícios desta do empolado, das construções
arrevesadas e do estilo presumidamente pomposo. A sua frase é ao contrário
chã, sem artifício e já, como viria legitimamente a ser
brasileira, quando não se propusesse indiscretamente a arremedar a
portuguesa, menos invertida, mais direta do que esta. Mais um exemplo para
acabar com a comprovação das qualidades do nosso primeiro prosador.
Descreve-nos no cap. XLIV a primeira missão jesuítica à
Ibiapaba, dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira.

“Estes se partiram de Pernambuco o ano de mil seiscentos e sete em o
mês de janeiro, com alguns gentios das suas doutrinas, ferramenta e
vestidos, com que os ajudou o Governador para darem aos bárbaros. Começaram
seu caminho por mar e prosseguiram ao longo da costa cento e vinte léguas
para o norte o Rio de Jaguaribe, onde desembarcaram. Daí caminharam
por terra e com muito trabalho outras tantas léguas até os montes
de Ibiapaba, que será outras tantas aquém do Maranhão,
perto dos bárbaros que buscavam, mas acharam o passo impedido de outros
mais bárbaros e cruéis do gentio tapuia, aos quais tentearam
os padres pelos índios seus companheiros com dádivas, para que
quisessem sua amizade, e os deixassem passar adiante, porém não
fizeram mas antes mataram os embaixadores, reservando somente um moço
de dezoito anos que os guiasse aonde estavam os padres, como o fez seguindo-os
muito número deles. Saindo o padre Francisco Pinto da sua tenda, onde
estava rezando, a ver o que era, por mais que com palavras cheias de amor
e benevolência os quisesse quietar, e os seus poucos índios com
flechas pretendiam defendê-lo, eles, com a fúria com que vinham
mataram o mais valente, com que os mais não puderam resistir-lhe nem
defender o padre, que lhe não dessem com um pau roliço tais
e tantos golpes na cabeça que lha quebraram e o deixaram morto. O mesmo
quiseram fazer ao padre Luís Figueira, que não estava longe
do Companheiro, mas um moço da sua companhia, sentindo o ruído
dos bárbaros o avisou, dizendo em língua portuguesa: “Padre,
padre, guarda a vida” e o padre se meteu à pressa em os bosques,
onde, guardado da Divina Providência, o não puderam achar, por
mais que o buscaram, e se foram contentes com os despojos que acharam dos
ornamentos que os padres levavam para dizer missa, e alguns outros vestidos
e ferramenta para darem, com o que teve lugar o padre Luís Figueira
de recolher seus poucos companheiros, espalhados com medo da morte, e de chegar
ao lugar daquele ditoso sacrifício, onde acharam o corpo estendido,
a cabeça quebrada e desfigurado o rosto, cheio de sangue e lodo, limpando-o
e levando-o. E composto o defunto em uma rede em lugar de ataúde lhe
deram sepultura ao pé de um monte, que não permitia então
outro aparato maior o aperto em que estavam; porém nem Deus permitiu
que estivesse assim muito tempo, antes me disse Martins Soares, que agora
é capitão daquele distrito, que o tinham já posto em
uma igreja, onde não só os portugueses e cristãos, que
ali moram, é venerado, mas ainda dos mesmos gentios.”28

28As citações são respectivamente de págs. 7,
169 e 178 da edição dos Anais da Biblioteca Nacional, cit. É
claro que modernizei a ortografia e pontuação. Desta malograda
missão jesuítica e martírio do padre Francisco Pinto,
tão sucinta, clara e simplesmente narrada por Frei Vicente do Salvador,
conheço três versões, duas mais ou menos contemporâneas,
outra do século XVIII, É a primeira a do padre Fernão
Guerreiro na sua obra Relação anual das causas que fizeram os
padres da Companhia, etc. (Lisboa, 1605) na parte Das cousas do Brasil, “apud”
as Memórias para a história do extinto estado do Maranhão,
por Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, 1874, II, 551 e seg.
A segunda é a da Relação da missão da serra de
Ibiapaba, pelo padre Antônio Vieira, escrita em 1660, publicada nas
mesmas Memórias de Cândido Mendes, II, 455. Vem finalmente a
terceira do cap. IV da História da Companhia de Jesus da província
do Pará e Maranhão do padre José de Morais, escrita em
1759 e publicada em tomo I das mesmas citadas Memórias. Se concordam
no fato essencial da morte do padre Francisco Pinto às mãos
dos índios por ele convocados, divergem estas versões e a de
Frei Vicente nas circunstâncias que o acompanharam.

As três outras versões deste fato existentes na literatura da
nossa língua, principalmente a dos padres Antônio Vieira e José
de Morais, fornecem-nos oportunidades de avaliarmos de Frei Vicente do Salvador
como escritor. Neste passo ao menos não lhe sai mal o confronto, mesmo
com o do muito maior deles, o grande exemplar dos melhores escritores portugueses,
Vieira. Ao passo que a dos dois jesuítas é nesse estilo que
o padre Manuel Bernardes, com tanto sal e a propósito chamou de “fraldoso
e dilatado”, a do modesto frade brasileiro, embora sem a correção
gramatical daqueles, é simultaneamente precisa, sucinta e sóbria,
sem sacrifício da clareza. Do que sabemos de Frei Vicente do Salvador
e do que nos revela a sua obra, foi ele, no melhor sentido do qualificativo,
de ânimo ingênuo. Como escritor é este ainda o que mais
lhe assenta, e que o sobreleva, com outros dons já ditos, a todos os
escritores do Brasil, nacionais ou portugueses, nesta primeira fase da literatura
aqui. Se houvéramos nós brasileiros de fazer a lista dos nossos
clássicos, isto é, daqueles escritores que sobre bem escreverem
a sua língua, conforme o uso do seu tempo, melhor nos representassem
o sentimento, o entendimento e a vontade que faz de nós uma nação,
o primeiro dessa lista seria por todos os títulos Frei Vicente do Salvador
com a sua História do Brasil.

É ele o único prosista brasileiro da fase inicial da nossa
literatura.

A prosa brasileira assim tão dignamente estreada não se continuou
pelo resto do século. À copiosa produção poética
desse momento de modo algum correspondem escritos em prosa, que não
sejam papéis e documentos de administração ou de informação
do país, já oficiais, já particulares, estes oriundos
na maior parte das ordens religiosas, maiormente da Companhia de Jesus. Esses
mesmos permaneceram inéditos, ou são apenas de notícia
conhecidos. Nenhum foi reduzido a livro. Informa o bibliógrafo português
Barbosa Machado, escrevendo aliás um século depois, que um dos
poetas dessa época, que também foi funcionário real e
militara pela metrópole na colônia, Bernardo Vieira Ravasco,
irmão do padre Antônio Vieira, deixara manuscrita uma Descrição
topográfica, eclesiástica, civil e natural do Estado do Brasil.
Esta obra não veio jamais a lume e ninguém a conhece. A julgar
pelo título seria uma repetição no século XVII
do Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares, do século XVI,
com a diferença de ser feita por brasileiro, porventura mais completa
e com certeza piorada pela presunção literária e pelo
estilo gongórico do autor, que era o da época.

Escreveu mais Vieira Ravasco em Discurso político sobre a neutralidade
da coroa de Portugal nas guerras presentes das coroas da Europa e sobre os
danos que da neutralidade podem resultar a essa coroa e como se devem e podem
obviar (1692?) e remédios políticos com que se evitarão
os danos que no discurso antecedente se propõem (datado da Bahia, 10
de junho de 1693). Estes dois papéis, respectivamente de 13 e 16 folhas,
apareceram em cópia moderna na Exposição de História
do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1881.29
À falta de outros méritos, esses escritos fariam de Vieira Ravasco
o primeiro em data dos nossos publicistas.

Exceto estes escritos de Ravasco, e aqueles outros supostos ou apenas referidos,
os quais aliás não são propriamente literários,
a única prosa que se fazia na colônia, afora a da conversação,
era a dos sermões.

Admitindo, mais por seguir o uso que por convicção, seja o
sermão um gênero literário, e haja de fazer parte da história
da literatura, parece incontestável que só o será e só
caberá nela quando tenha sido posto por escrito. Sem isto pertenceria
quando muito à literatura oral, e desta não há história.30

O sermão, porém, teve no passado uma importância, mesmo
literária, muito grande, muito maior do que tem hoje. Social ou mundanamente
foi um divertimento, um espetáculo que, conforme o pregador, podia
despertar interesse e atrair concurso tão alvoroçado ou numeroso
de ouvintes como outros quaisquer do tempo: um auto de fé, uma corrida
de touros, um jogo de canas, uma representação teatral ou alguma
solenidade da Corte. Mas, como espetáculo gratuito e aberto ao povo,
era mais concorrido do que estes, só a abastados ou favorecidos acessíveis.
Tanto mais que não constituía o sermão só por
si o espetáculo, mas era apenas um “número” nos que
a igreja oferece aos seus fiéis, com a prodigalidade, a pompa, a encenação
semipagã das suas pitorescas cerimônias. Ajudava, pois, o sermão
a sociabilidade de uma gente de natureza retraída e triste, qual a
portuguesa, em tempo em que à sociabilidade se deparavam poucos ensejos
de exercer-se. Servia de elemento de instrução pela discussão
de problemas morais e noções de toda a ordem, que ao redor deles
forçosamente surgiam, e mais pela forma de os expor. De um ou de outro
modo, excitavam as inteligências, punham e resolviam questões,
assentavam ou retificavam opiniões, suscitavam emoções
e forneciam, como os discursos acadêmicos ou parlamentares de hoje,
temas às conversações. Foi a sua repetição
importuna e corriqueira, a sua vulgarização, a trivialidade
dessaborida e fatigante dos seus processos, dos seus estilos, dos seus “truques”
a inópia do pensamento, invariavelmente o mesmo, que o alimentava,
e da língua constantemente a mesma que falava, com o mesmo arranjo
e corte do assunto, o mesmo aparelho de erudição, idênticos
recursos retóricos, e até iguais entonações e
gestos no orador, que acabaram com o sermão, como gênero literário
estimável. Prejudicou-o também a sua cada vez mais crescente
incoerência com os tempos. Foi um grande expediente de propaganda e
edificação religiosa, e ainda moral, não só quando
as almas eram mais sensíveis a tal recurso de lição oral
bradada de cima de um púlpito, mas quando, sendo pouco vulgar a imprensa,
e menos ainda a capacidade de leitura, encontrava o sermão nas massas
analfabetas ou pouco lidas, ou ainda com poucas facilidades de ler, ouvintes
numerosos e de boa vontade. Com a multiplicação dos livros,
mesmo religiosos, à literatura parenética oral se foi substituindo
a literatura piedosa escrita. Ceci tuera cela. E a decadência do sermão
acompanhada com grande avanço pela da oratória sagrada, não
diminuiu apenas a importância do gênero; teve ainda uma influência
retrospectiva. Amesquinhou lançou no olvido os produtos do seu bom
tempo.

Na língua portuguesa o único orador sagrado que porventura
ainda tem leitores é o padre Antônio Vieira. Tem-nos aliás
antes como clássico muito apreciado da língua, como exemplar
de escrita vernácula e numerosa, que como professor de religião
ou moral. Nem há já, mesmo entre as pessoas piedosas, se não
são de todo ignaras, quem lhe sofra a filosofia inconsistente ou a
ciência e erudição atrasadíssimas ainda para o
seu tempo, além dos obsoletos e até ridículos processos
retóricos. Na língua francesa também não há
mais de três oradores sagrados com leitores. Bossuet, Massillon e Bourdaloue.
Destes mesmo o que mais se lê, quiçá o único ainda
em verdade lido, é Bossuet. Nenhum deles é, aliás, como
também não foi Vieira, apenas orador sagrado. Foram personagens
consideráveis no seu tempo, e, além de ações memoráveis,
deixaram obras literárias pelas quais se recomendam e à sua
obra oratória. São justamente tais ações, o papel
que desempenharam e a influência que tiveram na sua época os
dois maiores deles, Bossuet e Vieira, que mais que os seus méritos
literários lhes fazem viver os sermões.

Nenhum dos sermonistas brasileiros coloniais exerceu no seu meio e tempo
ação ou influência que se lhes refletisse nos sermões,
dando-lhes a vida e emoção que ainda descobrimos nos de Vieira.
Nenhum, também, em que pese aos seus excessivos elogiadores, possui
qualidades essenciais ou formais que lhe dessem aos sermões publicados,
— que os inéditos esses de todo não pertencem à
literatura — aquilo que lhes não pôde emprestar a sua existência
obscura.

Desses o que, parece, teve mais talento, melhor língua estilo e mais
força oratória foi o padre Antônio de Sá (1620-1678),
jesuíta, natural do Rio de Janeiro. Exerceu o Ministério do
púlpito no Brasil e em Portugal e, parece, também ocasionalmente
em Roma, ao mesmo tempo em que ilustrava o púlpito português
o padre Vieira. Deste foi, como acontecia com todos os pregadores da época,
discípulo e seguidor. Dos seus sermões, avulsamente publicados
ainda em sua vida, e depois coligidos em 1750,31 se verifica que por alguns
aspectos o foi superiormente. Para o nosso gosto atual, talvez sobrelevando
ao mestre e êmulo no estilo nimiamente ornado e culto do tempo, e notavelmente
de Vieira, com quem o nosso bairrismo literário o tem querido emparelhar.
Nem pela cópia, número e mais excelência de linguagem,
nem pelo teso, vigoroso e pessoal do estilo, nem pelo arrojo, riqueza e variedade
da imaginação e dos tropos acompanha Antônio de Sá
a Vieira, do qual é, ainda com valor próprio que se lhe não
pode negar, pálido reflexo. Mas também o não acompanha
no gongorismo, no abuso dos trocadilhos e menos no atrevimento e despejo de
conceitos e comparaçõotilde;es com que o celebrado orador português,
no seu materialismo religioso, roça não raro pela chocarrice
e pela indecência, senão pela blasfêmia.32 Não obstante
os seus reais méritos, a boa qualidade da sua língua e estilo,
mesmo o talento que revela em seus sermões, Antônio de Sá
é apenas um nome que se encontra nas antologias didáticas e
cuja obra, fora dos curtos trechos destas, ninguém mais lê e
quase todos ignoram inteiramente.

É que de fato, a despeito do nosso catolicismo consuetudinário,
os sentimentos que o inspiraram não têm mais a virtude de interessar-nos
e comover-nos. E só vive a obra literária cuja emoção
geradora persiste apesar do tempo, sempre capaz de provocar em nós
emoção idêntica. Isto é que o sermão, quando
se não misturam nele, como nos de Bossuet ou Vieira, interesses verdadeiramente
humanos, ou bocados da nossa vida e das nossas paixões, quando é
apenas expediente de edificação religiosa, não mais consegue.
Perdeu, pois, o essencial dos atributos literários: o dom da emoção.

Numerosos nomes de pregadores podem, no período colonial, juntar-se
ao do padre Antônio de Sá e os nossos historiadores literários
não se têm poupado a fazê-lo. Uns viram as suas obras publicadas,
as de outros o foram posteriormente. Alguns são apenas mencionados
por noticiadores, às vezes posteriores de um século, o que não
impediu fossem por aqueles julgados e elogiados, como se os houveram conhecido
mais que por vagas notícias. Nem há como verificar as versões
que uma vez inventadas vão sendo repetidas sem crítica por quantos
do assunto têm escrito. Se o maior deles, como parece ter sido Antônio
de Sá, sumiu-se de todo no recesso escuro de alguma livraria pública,
onde apenas lhe freqüentem a obra insetos bibliófagos, e não
há descobrir-lhes o influxo na mentalidade do seu tempo na sua literatura,
parece inútil, ou vão alarde de facílima erudição,
nomear os outros.

A oratória sagrada no Brasil foi sem dúvida, no período
colonial e no início do nacional, uma revelação e porventura
um estimulante, em estreitos limites aliás, da cultura do momento.
Era uma das formas por que se manifestava a inteligência e cultura brasileira,
principalmente eclesiástica. Mas como outras dessas formas de expressão,
a poesia, a história, os panegíricos pessoais ou da terra, os
escritos morais, tinham os sermões a mesma inferioridade de toda essa
literatura convencional, retórica, sem alguma relevância de engenho,
sentimento ou expressão. Só mais tarde, quando os oradores sagrados
se fizeram também, sob a influência do momento histórico,
oradores e até tribunos políticos, e exprimiam ou ressumavam
as paixões nacionais na época da Independência, se nos
deparam alguns, bem poucos aliás, cuja obra, somente por este aspecto,
ainda não morreu de todo.


Capítulo III

O GRUPO BAIANO

A ATIVIDADE LITERÁRIA dos brasileiros, na segunda fase do período
colonial, particularmente na última metade do século XVII, manifesta-se
quase exclusivamente pela poesia. Aliás em todo esse período
a literatura brasileira compôs-se em grandíssima parte de poesia.
“O Brasil foi uma Arcádia antes de ser uma nação”,
verificou finalmente um crítico de meados do século passado.33
O que não é, no século XVII, poesia, e poesia de bem
pouca poesia, é sermão ou literatura oficial, crônicas,
relações, memoriais de caráter estilo burocrático.
A natural pobreza da primeira fase do mesmo período, da qual só
ficou um nome de poeta e um poema, sucede a sua anormal abundância na
segunda metade do século XVII. Anormal pela sua desproporção
com o meio, uma sociedade embrionária, incoerente, apenas policiada,
e inculta, e anormal ainda pela sua correlação com a prosa,
de todo muda nesse momento. Relaciona a poesia quase uma dúzia de poetas.
A que atribuir-lhes a gênese?

Primeiro ao natural incentivo da própria inspiração,
inconscientemente estimulada pela tradição literária
da metrópole, sobretudo poética. A estes primeiros incitamentos
juntou-se o aumento da cultura colonial, pela educação distribuída
dos colégios dos jesuítas. Fazia-se esta principalmente nos
poetas latinos lidos, comentados, aprendidos de cor. Dessa educação,
sempre e em toda a parte literária, e apontando apenas ao brilhante
e vistoso, eram elementos principais exercícios retóricos de
poesia, o que aliás não obstou a que da Companhia jamais saísse
um verdadeiro poeta, em qualquer língua.34 Influíam mais para
a produção poética brasileira, em época em que
as preocupações eram forçosamente muito outras que as
literárias, as solenidades oficiais, celebrando faustos sucessos da
monarquia, os abadessados e outeiros desde que aqui houve conventos, isto
é, desde o fim do século XVI, as festividades escolásticas
inventadas ou pelo menos sistematicamente praticadas pelos jesuítas,
quase sempre acompanhadas de representações teatrais, das quais
há notícia desde aquele século, as academias ou assembléias
de letrados que reciprocamente se liam versos e prosas — versos sobretudo
— e conversavam de letras, ainda em antes de se fundarem como sociedades
constituídas, no século XVIII.35 Eram tudo costumes da metrópole
logo transplantados para a colônia. Em tais festas e solenidades, como
nessas academias, havia sempre recitação de versos inspirados
pelos mesmos motivos delas e consagrados a lhes louvar os objetos ou promotores.
É justamente nessas festas que, com certeza desde os princípios
do século XVIII, se verifica a influência do indígena
e do negro em costumes e práticas do Brasil36 e porventura do seu sentimento
no sentimento brasileiro.

Além do natural gosto de se publicarem, e da vaidade, muito de raiz
em poetas e literatos, de aparecerem e luzirem, estimulava-os o empenho ou
a necessidade de angariarem a benevolência e a proteção
dos promotores ou patronos dessas festividades ou objetos delas, governadores,
capitães-generais, capitães-mores, prelados.

Ainda em fins do século XVI começou o descobrimento das minas
de ouro, que, continuado pelo XVII e seguido do achado dos diamantes, criou
no país uma riqueza maior, mais fácil e mais pronta que o pau-brasil,
o açúcar e mais produtos indígenas da sua primitiva exportação.
Simultaneamente deu-se a interpresa dos holandeses contra a colônia.
O primeiro ouro, e até a só bem fundada esperança dele,
com a cata cobiçosa das esmeraldas, entrara a influir nos moradores,
quer nativos, mamelucos e mazombos, quer adventícios, reinóis
ou emboabas, a opinião das grandezas da terra. Disso à bem-querença
e orgulho dela, com a conseqüente presunção dos merecimentos
deles próprios seus moradores, ia apenas um passo. Não distaria
muito este sentimento de um incipiente patriotismo. De 1624 a 1654 sofrera
o Brasil, da Bahia ao Maranhão, assaltos, ocupações e
conquistas dos holandeses. Salvador, com o seu Recôncavo, fora duas
vezes investida e de uma tomada. Relativamente, na expugnação
do invasor maior fora a parte dos colonos que a da metrópole. Disso
houveram eles clara consciência. Os nossos sucessos nessas lutas, com
as suas conseqüências políticas e sociais, e ainda morais,
haviam exaltado a nascente alma brasileira com os primeiros ardores daquele
sentimento, então apenas existente sob a forma rudimentar de apego
à terra natal, a que temos chamado nativismo. Essas lutas dão
lugar a uma copiosa literatura histórica: O valeroso Lucideno, de Fr.
Manoel Calado (1648), O castrioto lusitano, de Fr. Rafael de Jesus (1679),
as Memórias diárias, de Duarte de Albuquerque (1654) e ainda
a Jornada… para se recuperar a cidade do Salvador, do P. Bartolomeu Guerreiro
(1625) e menores e menos importantes escritos relativos a essas guerras. A
esses cumpre juntar as numerosas genealogias que posteriormente a essa época
se começaram a escrever, umas hoje publicadas, outras ainda inéditas,
provando histórias e genealogias o acordar de uma consciência
coletiva nos naturais da terra e a satisfação que a si mesmo
se queriam dar da sua valia presente e passada, e de que não era tão
somenos a sua prosápia. Não obstante todos estrangeiros, portugueses,
os seus autores falaram da terra e dos seus naturais com tanta estima e encômio
que lhes aumentara a consciência que começavam a ter de si e
do seu torrão natal, por eles defendido com boa vontade, resolução,
denodo verdadeiramente admiráveis. Não só admiráveis
mas fecundos, porque principalmente desse padecer por ela lhes viria a certeza
de quanto a amavam e quanto lhes ela merecia o seu amor. O nacionalismo brasileiro
dataria daí.

Não há entretanto nos poetas nomeados qualquer revelação
formal de haverem sido estimulados por essa exaltação patriótica.
É, porém, quase inadmissível que não a tenham
ainda inconscientemente experimentado, sentindo-se, como todos os seus patrícios,
mais dignos e maiores, levantados como foram os brasileiros no próprio
conceito e até no da metrópole, pela galhardia com que em tão
apertada conjuntura se houveram. Não deve ser inteiramente fortuita
a coincidência do florescimento, mofino embora, da nossa poesia na segunda
metade do século XVII sucedendo ao nosso esforço e triunfo nas
guerras com os flamengos. Apenas haverá nesses poetas alguma esquiva
referência ou alusão a tais sucessos ainda frescos. É,
porém, seguramente notável que as primeiras manifestações
do nacionalismo brasileiro sob a forma ainda primitiva do apego por assim
dizer material à terra, da ufania das suas excelências e belezas
nativas, como sob a forma grosseira da animadversão ao reinol, datem
justamente de após esses acontecimentos.

Nesse momento também a Bahia, a cidade do Salvador e a sua comarca,
berço da civilização brasileira, pátria e domicílio
desses poetas, crescera e se desenvolvera, avantajando-se a todos os respeitos
aos demais centros de população da colônia. A crer os
cronistas coevos, propensos aliás todos, pois que o hiperbólico
e o pomposo estavam na feição do tempo, ao exagero, era a cidade,
desde o primeiro século da sua fundação, uma povoação
adiantada, de muita comodidade e riqueza. “A Bahia é a cidade
de El-Rei e a Corte do Brasil” — escrevia o padre Fernão
Cardim, já em 1585. Tudo é relativo. A nós hoje a Bahia
se nos afigura ainda uma cidade atrasada, de escasso conforto, comparada a
outras mesmo do Brasil, como Rio de Janeiro e S. Paulo. Como quer que seja
a cidade do Salvador, na sua extravagância e incoerência de todas
as primitivas cidades americanas, meios aldeamentos de índios, meios
acampamentos militares, meias povoações civis, aglomerações
de choupanas, fortalezas, casas de moradia, residências oficiais, todas
mesquinhas e feias, era a sede do Governo-Geral e assento dos seus membros,
autoridades civis e militares, cujas funções aliás ainda
se confundiam. Dessas autoridades o maior número eram fidalgos de condição
e tratamento. Era também a sede do único bispado do país,
com a sua sé e o que ela implica de cônegos e mais dignidades.
Possuía já muitas igrejas, alguns conventos e um colégio
dos jesuítas, cujas aulas quase todos os letrados do tempo haviam freqüentado.
No seu tempo se fazia justamente ouvir a voz eloqüente e florida do padre
Antônio Vieira e a sua palavra de um tão literário sabor.
Tinha “muitas casas sobradadas e de pedra e cal, telhadas e forradas
como as do Reino” das quais ao tempo de Gandavo, que o diz, “havia
ruas muy cumpridas e formosas”.37 No tempo daqueles poetas teria de uns
mil ou mil e quinhentos moradores, e os seus arredores dois mil e quinhentos
a três mil.38 Desde meio século antes destes poetas, havia na
cidade uma boa praça em que se corriam touros, e nela “umas nobres
casas” onde residiam os governadores. Numa outra praça faziam-se
cavalhadas, que, continuadas no século XVII, Gregório de Matos
devia de celebrar em suas sátiras. Não faltavam moradores ricos
de bens de raiz, peças de prata e ouro, arreios de montaria e tais
alfaias de casa, que muitos possuíam dois a três mil cruzados
em jóias de ouro e prata lavrada. Mais de cem deles usufruíam
rendas de mil a cinco mil cruzados e mais, não faltando capitais de
vinte e sessenta mil. Tratavam-se grandemente. Tinham cavalos, criados e escravos.
Vestiam-se, principalmente o mulherio, com grandeza e luxo, não usando
elas, “por não ser fria a terra” senão sedas. Mesmo
a gente somenos acompanhava este luxo. Os peões usavam calção
e gibão de cetim e damasco e traziam as mulheres com vasquinhas e gibões
da mesma fazenda. Eram bem arranjadas as casas, e nas mesas comum o serviço
de prata, andando as senhoras ataviadas de jóias de ouro.39 Fernão
Cardim, descrevendo as boas recepções feitas ao visitador jesuíta
e seu séquito na Bahia e arredores, não lhe esquece nem de mencionar
os grandes repastos que lhes ofereciam e as iguarias servidas, galinhas, perus,
patos, cabritos, leitões, todo o gênero de pescado e mariscados
de toda a sorte, como lhe não esquece notar a limpeza e concerto do
serviço, na maioria de prata, nem os ricos leitos de seda, etc.40 Quem
conhece as nossas cidades sertanejas de hoje em dia, ou as conheceu há
trinta anos ou mais, não terá dificuldade em imaginar o que
seria a Bahia dos fins do século XVI e do século XVII: um misto
incongruente de civilização e barbaria, de luxo e desconforto.
Já então havia nela uma grande população negra
e mestiça. Os costumes não eram de forma alguma austeros, antes
soltos, como foram sempre os das sociedades incipientes, quando os não
continha uma severa disciplina moral, qual a dos puritanos da Nova Inglaterra.
Afora de guerrear o indígena, que às vezes ainda ameaçava
a cidade ou o Recôncavo, ou de ir atacá-lo nos seus sertões
para o descer ou reduzir, além da preocupação de agressões
possíveis de estrangeiros cobiçosos do Brasil, resumia-se a
atividade daquelas populações na cultura dos engenhos de açúcar
vizinhos da cidade ou espalhados pelo Recôncavo. Mas esse trabalho como
qualquer outro, e também a granjearia dos alimentos naturais —
caça, pesca, frutos da terra, era todo exclusivamente feito por escravos,
o que criava para a população livre, indígena ou forasteira,
ócio propícios aos vícios e mais costumes. “Os encargos
de consciência são muitos, escrevia o padre Cardim ao seu Provincial,
os pecados que se cometem neles (engenhos) não têm conta: quase
todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; (e jogando de
vocábulo com o açúcar, principal riqueza da terra) bem
cheio de pecados vai esse doce, por que tanto fazem, grande é a paciência
de Deus que tanto sofre”.41 É também a impressão
de Froger 42 como de outros viajantes estrangeiros, citados por Southey,43
que pela Bahia passaram aquele tempo. E a obra satírica, como a mesma
vida de Gregório de Matos, confirma essa descompostura de costumes.
A essa população mistura incongruente de fidalguia e de ralé
portuguesa, de negros e mulatos, e índios e mamelucos, de numerosa
soldadesca e não menos copiosa clerezia, ocupavam-na também
as devoções festivais nas sessenta e tantas igrejas da cidade
e seus subúrbios.44

Afora as festas de igreja, em cuja freqüência e esplendor emulariam
as diversas religiões, missas solenes, procissões, ladainhas,
novenas, vias-sacras e outras da bela e rica liturgia católica, espetáculos
diletos da gente ibérica, tinha os moradores da Bahia para diverti-los
touros, não menos dela prezados, as cavalhadas, as festividades por
motivos de júbilos nacionais da metrópole, representações
teatrais dos colégios dos jesuítas ou acompanhando essas festividades,
os abadessados, obrigados aos tradicionais outeiros poéticos da península.
Na cidade e nos seus arredores era comum fazerem-se comédias. A essas
representações consagrou Gregório de Matos mais de um
dos seus poemas.45 A escravatura africana muito numerosa, com a facilidade
e despejo de costumes produzidos pela escravidão, a soltura da vida
colonial devia dar a esses divertimentos, a que cumpre juntar os batuques,
candomblés, cateretês e outras importações d’África,
já aqui mestiçadas com quejandas de Portugal e do país,
um singular pico de talvez maior licença que a da sociedade portuguesa
da época.

Os moradores mais abonados mandavam os filhos estudar a Coimbra, depois de
os haverem feito cursar as aulas preparatórias locais, mormente as
dos jesuítas, que eram as mais recomendadas e freqüentadas. Além
das matérias de religião e teologia, estudavam-se nessas aulas
o latim e sua literatura e conjuntamente a história e geografia antigas
e a mitologia. Nelas explicou e comentou Sêneca, está-se a ver
com que abuso de sutilezas e desmancho de trocadilhos, o padre Antônio
Vieira. Os jesuítas mantinham em seu colégio uma livraria, ou
biblioteca como hoje chamamos, em que certamente com livros de religião
e teologia se achariam os poetas antigos e os portugueses e espanhóis
de mais nomeada e estimação. Por citações de Botelho
de Oliveira, um dos poetas maiores do grupo baiano, verifica-se que eram aí
conhecidos entre os letrados, Tasso, Marini, Gongora, Lope de Vega, Camões,
Jorge de Montmor, Gabriel Pereira de Castro. E o seriam com certeza ainda
outros, famosos naquele tempo. A educação jesuítica,
quase a única dos nossos primeiros poetas e letrados, é essencialmente
formalística, apenas vistosa, de mostra e aparato, parecendo não
apontar senão a ornamentar a memória. Não é porventura
temerário atribuir-lhe a feição geral, abundante destes
estigmas, do século da decadência literária portuguesa,
já bem estreada, e o caráter incolor, e dessaborido como um
tema de escolar, da primeira poesia brasileira.

Nesta cidade e sociedade, simultaneamente rudimentar e gastada, nasceram,
criaram-se, viveram e produziram no século XVIII os poetas que se convencionou
reunir sob o vocábulo de grupo baiano. Além de os juntar o acidente
de existirem no mesmo lugar e momento, associa-os a comunhão na mesma
poética portuguesa da época. São eles, por ordem de nascimento:
Bernardo Vieira Ravasco (1617-1697), irmão do padre Antônio Vieira;
Frei Eusébio de Matos (1629-1692); Domingos Barbosa (1632-1685); Gonçalo
Soares da França (1632-1724?); Gregório de Matos, irmão
de Eusébio (1633-1696); Manoel Botelho de Oliveira (1636-1711); José
Borges de Barros (1657-1719); Gonçalo Ravasco Cavalcanti de Albuquerque,
primo do outro Ravasco (1659-1725) e João de Brito Lima (1677?). Com
a só exceção de Botelho de Oliveira, nenhum deixou livro
impresso, sendo que dos outros, excetuado Gregório de Matos, de quem
existe manuscrita parte considerável da sua produção,
apenas nos restam amostras, resguardadas em antologias e repertórios
do século XVIII. Dessas amostras não podemos induzir senão
o medíocre engenho desses versejadores. Nenhuma autoriza a sentir a
perda do resto. Apenas se haveria perdido com ele mais algum sinal, como o
da Ilha de Maré, de Botelho de Oliveira, da impressão da terra
e dos seus últimos sucessos nesses poetas, e, portanto, a confirmação
interessante do despontar do nosso nacionalismo.

Cento e quatro anos depois da Prosopopéia de Bento Teixeira, saía
à luz em Lisboa outro livro de brasileiro, uma coleção
de poemas líricos, com este título, muito do tempo: Música
do Parnaso em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e
latinas com seu descante cômico reduzido em duas comédias, oferecida
ao Excelentíssimo Senhor Dom Nuno Álvares Pereira de Melo, Duque
do Cadaval, etc., e entoada por Manuel Botelho de Oliveira, Fidalgo da Casa
de Sua Majestade. Na oficina de Miguel Menescal, Impressor do Santo Ofício,
Ano de 1705, in 4º, 240 págs.

Manoel Botelho de Oliveira é o único desses poetas cuja obra
foi publicada ainda no seu tempo. Daí lhe vem a relativa, e ainda assim
muito apoucada, notoriedade. Há nessa obra, aliás num só
dos seus poemas, o primeiro sintoma de emoção estética
produzida pela terra em um dos seus naturais, e literariamente exprimida.
E a expressão não é, sob este aspecto, de todo somemos.
Entre os poemas do tempo é acaso o único que ainda leiamos com
aprazimento.

Segundo a mais antiga e única notícia que do poeta existe,
Botelho de Oliveira “nasceu na cidade da Bahia, capital da América
portuguesa, no ano de 1636, filho de Antônio Álvares Botelho,
capitão de infantaria paga, fidalgo da Casa de Sua Majestade. Estudou
na Universidade de Coimbra jurisprudência cesárea (direito romano),
exercitando na sua pátria a advocacia das causas forenses por muitos
anos com grande crédito da sua literatura. Foi vereador do Senado da
sua pátria e capitão-mor de uma das comarcas dela. Teve grande
instrução da língua latina, castelhana, italiana, como
também da poesia, metrificando com suavidade e cadência. Faleceu
a 5 de janeiro de 1711”.46

O livro de Botelho de Oliveira, a primeira coleção de poesias
publicada por brasileiro, contém, afora os poemas em português,
espanhol, latim e italiano (os quatro coros de rimas a que alude o título),
duas comédias em castelhano: Hay amigo para amigo e amor—engaños
y zelos, das quais a primeira parece havia já sido impressa antes de
sair novamente no volume Música do Parnaso.

Não há neste principal documento dos começos da nossa
poesia, ou melhor, da poesia portuguesa no Brasil, distinção
notável, é pobre de sentimento e inspiração. A
língua, como a metrificação, é correta, ainda
boa, se bem não escapem ambas aos vícios e defeitos do tempo.
O chamado catálogo da Academia de Lisboa inclui a Música do
Parnaso nos livros que se haviam de ler para a organização do
dicionário da língua, projetado pela mesma Academia. Os poemas,
sonetos, canções madrigais e quejandas composições
nas fórmulas da poética em moda, ou são laudatórios,
endereçados a diversas personagens, geralmente próceres da república,
por vários motivos, nenhum bastante comovente para inspirar um poeta,
ou são versos de amor, mas do amor obrigatório dos poetas, versos
frios, sem paixão, a certa Anarda, a amante proverbial que lhos inspira.
Também os há simplesmente galantes, endereçados a outras
damas ou a conta de outras: Pintura dos olhos de uma dama, pintura de uma
dama namorada de um letrado e quejandos… O nosso cronologicamente primeiro
lírico (já que Bento Teixeira presume-se de épico) não
foi, pois, senão um correto e vernáculo versejador como os teve
a nossa língua às dezenas na mesma época e depois. Esta
sua obra poética apenas lhe daria direito a uma menção
na história da nossa literatura, como um nome desvalioso e desinteressante
à sua evolução não fora o acidente feliz do seu
poema A Ilha de Maré, que unicamente o salva de um esquecimento completo
e merecido. Ao inconsciente estímulo do nativismo, gerado dos acontecimentos
no meio dos quais nasceu e se fez homem, sentiu-se um dia Botelho de Oliveira
sinceramente tocado pelas belezas e dons do seu torrão natal, e sob
esta comoção cantou-o ingenuamente, caso então extraordinário,
e não sem lindeza. Aquela insignificante ilha da baía de Todos
os Santos, provavelmente o seu berço, não podia conter ela só
tanta cousa como ele lhe põe no poema em que a celebra, tantas e tão
boas prendas. É a sua Bahia, é o mesmo Brasil, que o poeta embevecido
resume na sua ilha natal e que, cantando-a, canta com manifesta satisfação
e ufania:

Esta ilha de Maré, ou de alegria

Que é termo da Bahia

Tem quase tudo quanto o Brasil todo,

Que de todo o Brasil é breve apodo.

Dele embevecido faz já, o que é a mesma marca do nativismo
brasileiro, ingênuas comparações desfavoráveis
a Portugal e à Europa, dando a primazia à sua terra:

Tenho explicado as fruitas e legumes

Que dão a Portugal muitos ciúmes;

Tenho recopilado

O que o Brasil contém para invejado

E para preferir a toda a terra.

………………………………………

Este poema, que pode ainda hoje ser lido com aprazimento, graças ao
seu pitoresco, à sua cor local e simplicidade, inicia na poesia brasileira
o seu tocante sestro de cantar a terra natal. Meio século depois, Santa
Rita Durão pouco mais fará que repetir e desenvolve com mais
largo estro e mais advertido sentimento, a inspiração da Ilha
de Maré, quando no canto VII do Caramuru celebra as riquezas naturais
e produções do Brasil.

Esta emoção, que não é mais a simples impressão
da terra do versejador da Prosopopéia, Botelho de Oliveira foi o primeiro
a exprimi-la. Outro poeta baiano, o Anônimo Itaparicano, a repetiria
no século XVIII, e ela nunca mais desapareceria da poesia brasileira.
Antes permaneceria nesta como uma das suas emoções mais peculiares
e um dos seus mais comuns motivos de inspiração, concorrendo
para dar-lhe as feições que pouco a foram distinguindo da portuguesa.
Justamente no momento em que, com o Romantismo, a separação
entre as duas literaturas se estabelece e acentua, o maior poeta brasileiro,
Gonçalves Dias, lhe achará a forma definitiva e sublime na sua
ingenuidade, na Canção do Exílio. E apenas haverá
poeta no nosso Romantismo em que se não ouça essa nota amorável
da terra pátria.

Botelho de Oliveira é, com a sua Ilha de Maré, o mais frisante
exemplo, em nossa primitiva literatura, ao conceito da gênese do sentimento
brasileiro após os sucessos da primeira parte do século XVII,
os acrescimentos geográficos e econômicos da colônia e
as suas lutas vitoriosas contra

Holanda pérfida e nociva

como ele disse.

O que nos legaram os outros, excetuando sempre Gregório de Matos,
é muito pouco para lhe podermos avaliar com segurança o mérito.
Mas sobre insignificante tem tudo o mesmo ar de família da pior poesia
contemporânea.


Capítulo IV

GREGÓRIO DE MATOS

DO GRUPO BAIANO o mais conhecido, o mais interessante e curioso e ainda,
em suma, o mais distinto, é Gregório de Matos. Se, como parece,
são realmente suas as numerosas composições métricas
que, em cópias do século XVIII, chegaram até nós,
foi ele também o nosso mais copioso poeta dos tempos coloniais. Há
vários volumes manuscritos de obras suas. São umas sérias,
outras satíricas e burlescas, a máxima parte aliás, mais
burlescas do que satíricas. São estas não só as
mais porém as únicas conhecidas, tanto dos historiadores da
nossa literatura como do vulgo dos letrados.

Da porção séria da obra de Gregório de Matos
não julgaram aqueles dever ocupar-se. Deste descuido resultou uma noção
imperfeita e uma idéia errada do poeta. Fizeram dele um herói
literário, um precursor do nosso nacionalismo, um antiescravagista,
um gênio poético, um repúblico austero, quiçá
um patriota revoltado contra a miséria moral da colônia. Houvessem
procurado conhecer a parte não satírica de sua obra, ou sequer
lido atentamente a parte satírica publicada,47 única que conheceram,
haveriam escusado cair em tantos erros como juízos.

47Obras poéticas de Gregório de Matos Guerra… Tomo I (único
publicado). Rio de Janeiro. Na Tipografia Nacional, 1882. A publicação
foi feita por Alfredo do Vale Cabral, da Biblioteca Nacional, editor em quem
era muito maior o amor das letras nacionais e do trabalho bibliográfico
do que a capacidade crítica. Vale Cabral, aliás, publicou apenas
uma pequena parte da obra satírica de Gregório de Matos.

Único entre os poetas e escritores coloniais, coube a Gregório
de Matos a fortuna de ter um biógrafo ainda, quase seu contemporâneo.
Esta sua biografia48 escrita por volta do meado do século XVIII, mais
de quarenta anos depois dele morto, e o fato das numerosas cópias dos
seus poemas provam a fama que havia adquirido e a estima em que era tido.
Uma e outra não deixaram de atuar nos que modernamente o estudaram,
aliás com preconceitos nacionalistas já de todo desapropositados.
É também ele acaso o único dos nossos poetas de quem,
antes dos mineiros, encontramos lembrança em autores portugueses. O
bispo do Pará, D. Fr. João de S. José, nas suas Memórias,
de meados do século XVIII, consagra-lhe um parágrafo.49

O seu parcialíssimo biógrafo noticiou, e todos o têm
repetido, que o padre Antônio Vieira dizia que “maior fruto faziam
as sátiras de Matos que os sermões de Vieira”. Pode ser,
mas em toda a obra de Vieira referente ao Brasil se não encontra a
mais vaga alusão ao poeta, e não é de crer o asserto
na boca do soberbo jesuíta.

Filho de um escudeiro fidalgo emigrado da província portuguesa e proprietário
na Bahia de uma senhora brasileira de boa geração e afazendada,
Gregório de Matos cedo foi mandado estudar a Portugal. Ali se doutorou
em leis em Coimbra,50 onde se lhe revelou o engenho poético e a índole
satírica. Na indisciplina geral da sociedade portuguesa, mais do que
estreada naqueles princípios do século XVII, teria a Universidade,
isto é, a corporação de seus alunos, como sempre teve,
parte conspícua. Não se precisa de grande esforço de
imaginação para ver o nosso brasileiro, naturalmente com boa
mesada, reputação de rico, desenvolto, talentoso, chistoso e
trêfego, representando saliente papel nas famosas troças e tropelias
daquela rapaziada irrequieta e bulhenta. “Anda aqui, escrevia desde Coimbra
a um amigo da Corte um seu condiscípulo, Belchior da Cunha Brochado,
ao depois desembargador na Bahia, anda aqui um estudante brasileiro tão
refinado na sátira que com suas imagens e seus tropos parece que baila
Momo às cançonetas de Apolo.” Imagina-se o furor que ele
faria em Coimbra.

Dali já conhecido e estimado pelo engenho poético e gênio
folgazão, parece saiu também com bons créditos de leguleio,
confirmados pouco depois na prática de advocacia com um bom letrado,
com quem trabalhou em Lisboa. A metrópole foi-lhe, como a tantos outros
brasileiros, caroável e propícia. Teve em Lisboa os lugares
de juiz do crime e de juiz de órfãos. Como tal uma de suas sentenças
figura nos Comentários de Pegas às ordenações
do Reino. Cresceu em créditos e considerações de jurista
e jurisperito, com bons augúrios de aumentos na magistratura, quando
de súbito se viu baldado nas suas pretensões a maiores cargos
e, ao que parece, malquisto da Corte ou do Governo. O seu biógrafo,
o licenciado Pereira Botelho, cujas são estas notícias, duvidosas
por serem de uma única testemunha, que não era sequer presencial,
não diz claramente o motivo deste desfavor.

Das suas retorcidas explicações, no mais sesquipedal estilo
do tempo, pode-se porém induzir sem risco de erro que à sua
veia satírica, tão bem iniciada em Coimbra, deveu Gregório
de Matos a sua desgraça. Deu-lhe provavelmente curso e criou-se inimigos
entre os poderosos. Mas ainda nesta conjuntura não lhe foi a fortuna
de todo adversa, pois lhe deparou um favorecedor no primeiro arcebispo nomeado
para a Bahia. Sem obstáculo de não ter Gregório de Matos
mais que as ordens menores, o nomeou tesoureiro-mor da sua catedral, acrescentando-lhe
o cargo de vigário-geral. De Lisboa veio Matos amatalotado com um patrício,
que recolhia à terra como desembargador da Relação. Se
são exatos os dados do seu biógrafo, teria Gregório de
Matos, quando regressou à terra natal para nela viver, 58 anos feitos.
Era já um pouco tarde para se lhe afazer e afeiçoar. Não
seria uma natureza afetiva, como não o são em geral os satíricos.
Mostra-o se ter deixado ficar em Portugal, donde só saiu obrigado das
circunstâncias. Voltando do desterro de Angola, deixou-se também,
por puro espírito de boêmia, ficar em Pernambuco, sem mais se
lhe dar da família que na Bahia fizera e abandonara. É certo
que entre os seus poemas alguns há à sua futura mulher e à
morte de seus filhos. São porém os versos de praxe dos poetas
enamorados. Nos feitos aos filhos a retórica do tempo escondeu o sentimento
real que porventura os inspirou.

Pelo seu gênio malédico e satírico, pela irritação
com que deixara Portugal, pelo desapego da terra, onde se encontrava deslocado
e contrafeito, e a qual não cuidou de afeiçoar-se, achou-se
naturalmente mal e contrariado nesta, e em oposição com ela.
Mais de trinta anos de Portugal lhe tornaram insuportável a mesquinha
vida da sua mesquinha Bahia.

Muito vaidoso, como soem geralmente ser poetas e literatos, era-o extremamente
do seu título de doutor, do seu saber jurídico, da posição
que tivera no Reino, e até de ser branco. Sentia-se, pois, afrontado
com a indiferença dos seus patrícios e vizinhos, insensíveis
a estas suas superioridades. Acham-se-lhe fartos documentos deste seu estado
d’alma, em todo caso revelador de pouco espírito, em vários
passos de sua obra. Na Epístola ao Conde do Prado, filho do governador-geral
Marquês das Minas, claramente o descobre:

Era eu em Portugal

Sábio, discreto, entendido,

Poeta melhor que alguns

Douto como os meus vizinhos.

E chegando a esta terra

Logo não fui nada disto

Porque um direito entre tortos

Parece que anda torcido.

Desvanece-se grandemente do seu título de doutor e de vez em quando
o alardeia. No Benze-se o poeta de várias ações que observava
na sua pátria, ralha:

Que pregue um douto sermão

Um alarve, um asneirão;

E que esgrima em demasia

Quem nunca lá da Sofia

Soube ler um argumento

Anjo bento!

A Sofia é a Universidade de Coimbra, alcunha que lhe veio da rua desse
nome ficava. Nas Verdades lastima-se:

Os doutos estão nos cantos

Os ignorantes na praça.

Nos Milagres do Brasil exprobra:

Um branco muito encolhido,

Um mulato muito ousado,

Um branco todo coitado,

Um canaz todo atrevido.

O saber muito abatido

A ignorância e ignorante

Muito ufano e mui farfante

Sem pena ou contradição:

Milagres do Brasil são.

Mostra Gregório de Matos particular ojeriza a negros e mulatos, aos
quais por via de regra chama de cães. Tinha consciência e orgulho
de sua prosápia e sangue estreme. Lastima, é certo, os negros
e teve uma vez expressões de comiseração pelos escravos
(pelo que já o deu a crítica indígena por abolicionista),
mas a conta que de uns e outros fazia era a do reinol do mazombo, isto é,
do branco filho de português como ele. Nos citados Milagres do Brasil
sobram exemplos desta sua ojeriza. E na também citada Epístola
ao Conde do Prado:

Pois eu por limpo e por branco

Fui na Bahia mofino

Não suporta o menospreço da gente da Bahia à sua superioridade,
e não lhe sofre a paciência a este jurista que a sua qualidade
de branco e outras partes lhe não dêem insenções
e regalias:

Não sei para que é nascer

Neste Brasil empestado

Um homem branco e honrado

Sem outra raça.

Terra tão grosseira e crassa

Que a ninguém se tem respeito

Salvo se mostra algum jeito

De ser mulato!

…………….

Os brancos aqui não podem

Mais que sofrer e calar

E se um negro vão matar

Chovem despesas.

Não lhe valem as defesas.

Do atrevimento de um cão,

Porque acorda a Relação

Sempre faminta.

E, mais, ainda nos Citados Milagres do Brasil:

Que vos direi do mulato,

Que vos não tenha já dito,

Se será amanhã delito

Falar dele sem recato?

………….

Imaginais que o insensato

Do canzarrão fala tanto

Porque sabe tanto ou quanto?

Não, se não por ser mulato;

Ter sangue de carrapato,

Seu estoraque de congo

Cheirar-lhe a roupa a mondongo.51

Ao revés era extremamente caroável de mulatas e crioulas. O
sátiro que nele descobriu a crítica imaginosa de Araripe Júnior,
prodigalizou-se em versos amantéticos, babosos, de velho femeeiro,
a esse tipo feminino, de que a Bahia teve sempre a primazia. Mas ainda nestes
requebros não é raro revelar-se-lhe, na ironia com que insensivelmente
descambam em sátira, aquela quizília de raça. Os seus
apetites grosseiros eram, porém, mais fortes que esta sua idiossincrasia,
e ele é sobretudo o cantor da mulata.

Na Bahia, o seu primeiro ato inconsiderado foi andar a secular, apenas revestindo
as vestes sacerdotais, a que o obrigavam as suas funções, quando
as exercia, o que foi motivo de escândalo. Se como sujeito douto, que
se vira bem aceito no Reino, onde ocupara boa posição, se encontrou
mal aqui, por outro lado a sua índole desabusada, solta devia achar
a terra à sua feição. Que importa que ele tenha deblaterado
contra ela e contra os seus vícios e defeitos quando da sua mesma obra
verificamos, de modo a não deixar dúvida, que se compôs
perfeitamente com tudo aquilo de que ralha e viveu deleitosamente a mesma
vida que tão crua e insistentemente reprova aos seus concidadãos?
O capadócio que era de índole e condição, achou
na sua terra onde expandir os seus instintos nativos se não atávicos,
influídos de mais a mais pelo meio. Gregório de Matos é
a mais perfeita e mais ilustre expressão desse tipo essencialmente
nacional, do qual foi e continua a ser a Bahia a fecunda progenitora, o capadócio.

É ele o seu mais eminente protótipo, como é também
o primeiro boêmio da nossa literatura, com a vantagem sobre os aqui
procriados pelo romantismo de o ser de nascença e originalmente, e
não de macaqueação de Paris. Porque nele se completasse
cabalmente o tipo do capadócio, era também insigne cantador
de modinhas, tocador de viola, um solfista, como então se chamava.
Ao último remate da sua caracterização, só lhe
faltou ser mestiço, se com efeito não era, o que quase custa
a crer. Mas se a indolência, o desleixo, a incúria, certas qualidades
brilhantes mas superficiais de espírito, a debilidade de caráter,
a lascívia exuberante, são os sinais mais comuns e aparentes
do mestiço, ele moralmente o era, apesar da sua presunção
de branco puro, da sua vaidade de douto, dos seus muitos anos de Portugal
e da educação portuguesa.

Quis, talvez, conciliar duas cousas incompatíveis, e de o não
ter, por impossível, conseguido, resultou o seu profundo desgosto da
terra, manifestado com uma reiteração e variedade de formas
que lhe estão revendo a sinceridade fundamental. As duas cousas que
quis acordar eram a consideração pública pelos seus talentos,
letras e graduação social com a vida dissoluta que, a despeito
dos péssimos costumes locais, seria ainda assim escandalosa, segundo
ressalta das anedotas da sua vida e o deixa de manifesto a sua obra. Como
não o conseguisse, e por hora da moralidade humana que jamais soçobra
totalmente não o podia alcançar, rebelou-se, fazendo-se ao mesmo
tempo o flagelo e o divertimento dos seus concidadãos, o “boca
do inferno”, como é de tradição o alcunhavam. Não
se limitava a versejar por sua conta, se não que fazia versos para
outros. Como fosse de fato quem satíricos e malédicos mais e
melhor os fazia, atribuíam-lhe quantos neste gênero apareciam,
de autoria desconhecida. Não é, pois, improvável que
dos existentes com o seu nome, os haja que não sejam seus. Só
se empresta aos ricos. Disso queixa-se ele, deixando na sua mesma queixa a
marca da sua vaidade:

Saiu a sátira má

E empurraram-me os perversos,

Porque enquanto a fazer versos

Só eu tenho jeito cá.

Noutras obras de talento

Só eu sou o asneirão

Mas sendo sátira, então

Só eu tenho entendimento.

Achou-se, portanto, em guerra com a sociedade cujo era, de cujos vícios
e manhas comparticipava, para cuja imoralidade contribuía com o seu
exemplo de vida desregrada e ainda torpe, como o testemunham os seus poemas
publicados e inéditos. Tinha aliás consciência da animadversão
recíproca dele e de sua cidade:

Querem-me aqui todos mal,

E eu quero mal a todos,

Eles e eu por nossos modos

Nos pagamos tal por tal:

E querendo eu mal a quantos

Me têm ódio tão veemente

O meu ódio é mais valente

Pois sou só e eles tantos.

E noutro passo dos inéditos da Biblioteca Nacional (Cod. 34-29, pág.
403) malsina assim cinicamente da terra:

Porque esta negra terra

Nas produções, que erra,

Cria venenos mais que boa planta:

Comigo a prova ordeno

Que me criou para mortal veneno.

É estranho que aquela confissão tão pessoal seja apenas
o desenvolvimento, feito aliás com vantagem, destes versos do espanhol
Quevedo, tantas vezes imitado e até plagiado por Gregório de
Matos:

Muchos dicen mal de mi,

Y yo digo mal de muchos;

Mi decir es más valiente

Por ser tantos y yo ser uno.52

Foi justamente esta situação singular em que o puseram a sua
índole e o seu engenho que deu a Gregório de Matos a sua feição
particular e distinta e o singularizou em a nossa literatura colonial. Enganaram-se
redondamente os que pretenderam fazer dele ou quiseram ver nele um precursor
da nossa emancipação literária, cronologicamente o primeiro
brasileiro da nossa literatura. É de todo impertinente supor-lhe filosofias
e intenções morais ou sociais. É simplesmente um nervoso,
quiçá um nevrótico, um impulsivo, um espírito
de contradição e denegação, um malcriado rabugento
e malédico. Mas estes mesmos defeitos, se lhe não permitem figurar
com a fisionomia com que o fantasiaram, serviram grandemente à sua
feição literária e lha revelaram, embora parcialmente,
sobre todas as do seu tempo. Em todo caso, mereceria Gregório de Matos
aquela apreciação se houvera apenas sido o poeta satírico
de sua obra e da tradição, o díscolo que só ele
entre os seus contemporâneos malsinou do regime colonial e dos vícios
públicos e particulares que o pioravam, e que, num impulso de despeito
pessoal, foi o único a sentir aquilo que devia, volvidos dois séculos,
ser o germe do pensamento da nossa independência:

Que os brasileiros são bestas

E estarão a trabalhar

Toda a vida por manterem

Magamos de Portugal.

E mais, se a esse feitio pessoal do seu estro juntasse traços literários
que o diferençassem de qualquer modo da poesia portuguesa contemporânea.
Mas isto justamente não acontecia. O sátiro era bifronte, e
o poeta, ainda na sátira, seguia sem discrepância apreciável
a moda poética ali em voga sem nenhuma espécie de originalidade,
senão a de ser aqui o único que ralhava do meio.

Numa face tinha o riso escarninho e petulante e o jeito obsceno do capadócio,
na outra a compostura cortesã acadêmica, devota, do doutor de
Coimbra, do magistrado, do vigário-geral, do procurador da mitra. Com
uma zomba, ri, chalaceia, maldiz, descompõe, injuria, enxovalha, ridiculariza
a terra e sociedade a que pertence, e faz praça desavergonhada dos
seus amores reles, da sua vida despejada e indecorosa; com a outra, tal qual
os seus confrades em musa do tempo, louvaminha, bajula, incensa a magnates
e poderosos, ou verseja motivos e temas futilíssimos, com tropos, imagens,
trocados e jogos de vocábulos em nada destoantes da poética
do tempo, da qual a sua se não afasta em cousa alguma. Como satírico,
não destoa Gregório de Matos, nem pela inspiração,
nem pela expressão da musa gaiata portuguesa coeva, ilustrada ou deslustrada
por D. Tomás de Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão
de Castro, João Sucarelo, Fr. Vahia, Diogo Camacho e quejandos, todos
como eles, sequazes do espanhol Quevedo, de quem foi o nosso patrício
servil imitador. Também não há, nem na inspiração,
nem na expressão da poesia não satírica de Gregório
de Matos algum sinal que o estreme entre os seiscentistas e gongoristas seus
contemporâneos. Emparelha em tudo e por tudo com eles.

Salvo o pouco que dela publicou Varnhagem no seu Florilégio (I,17-104),
esta feição da obra poética de Gregório de Matos
ficou até hoje desconhecida, mesmo dos que sobre ele mais longamente
discorreram. Existe entretanto na Biblioteca Nacional material manuscrito
mais que bastante para o estudo completo do poeta, sem o qual não podemos
ter dele uma noção cabal. Desse estudo, que fizemos, resultará
a certeza de que Gregório de Matos é antes um poeta burlesco,
picaresco, até chulo, à maneira de Quevedo, seu modelo, e dos
satíricos portugueses seus contemporâneos, do que satírico
ao modo de um Horácio, de um Juvenal ou de um Boileau.

E não porque não houvesse nele talento para o ser. Que o havia
mostram-no os seus poemas Aos vícios, belo de conceito e forma, os
dous Retratos dos governadores Câmara Coutinho e Sousa de Menezes, e,
acaso sobre todos a sátira que começa

Que néscio que eu era então

Quando cuidava o não era!

São todos modelos de boa poesia do gênero, em que podemos admirar
imaginação, chiste e conceito, além da beleza métrica
e da excelente língua, numerosa e propriíssima. Estas mesmas
qualidades se nos deparam em outros seus poemas, já burlescos, já
sérios, mas apenas parcialmente, em alguma estrofe, em algum verso.
Geralmente, porém, ele é o tipo do poeta descuidado, desmazelado,
como foi o tipo do homem desleixado. Versejava a torto e a direito, por conta
própria ou alheia, sem escolha do momento ou do assunto, sem respeito
ao próprio estro, nem decoro de quem era. Prodigalizava a veia inesgotável
em temas como “A uma briga que teve certo vigário com um ouvires
por causa de uma mulata”, “A prisão de duas mulatas por uma
querela que delas deu o célebre capitão… de alcunha o Mangará
pelo furto de um papagaio”, “A mulata… que chamava seu um vestido
que trazia de sua senhora”, “A mulata Vicência amando ao mesmo
tempo a três sujeitos”, “A um crioulo chamado o Luzia a quem
vasaram um olho por causa de uma negra” e quejandas. Dele se conta que
vendo em Pernambuco duas mulatas engalfinhadas numa briga que as pôs
ridiculamente descompostas, pôs-se a gritar: “Aqui d’El-Rei,
contra o Sr. Caetano de Melo!”. A razão de seu grito, explicava
depois, era ter o governador deste nome lhe defendido versejar, quando se
lhe deparavam assuntos como aquele. A historieta é interessante por
muito significativo do estímulo e feitio poético de Gregório
de Matos. E crescidíssimo número das suas composições
chamadas satíricas não têm motivos diversos daquele que
se lastimava de perder.

Não são melhores se não por menos indecorosos, os móveis
de sua inspiração de outra ordem que a burlesca. Verseja por
governadores, potentados, bispos e arcebispos, com louvores e enaltecimentos
hiperbólicos e peditórios indignos. Verseja também por
espetáculos de comédias a que assiste, por festas a que vai,
por sucessos sem nenhuma importância, por beldades diversas, e por fim
verseja devotamente como um libertino arrependido ou antes medroso do inferno.

Ao mesmo governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara
Coutinho, de quem fez numa das suas temíveis e melhores sátiras
o célebre retrato, endereçou Gregório de Matos um Memorial
em forma de soneto pedindo uma esmola (sic), o qual assim termina:

Seguiram os três reis planeta louro,

Guie-me a minha estrela o peditório

Com que na vossa mão ache um tesouro.

Entre vários sonetos seus a arcebispos, todos destoantes da reputação
que lhe fizeram de poeta isento e homem de brios, depara-se-nos este a D.
João Franco de Oliveira, que do bispado de Angola passava ao arcebispado
da Bahia, e que reproduzimos por dar a medida da poética de Gregório
de Matos:

Hoje os Matos incultos da Bahia

Se não suave for, ruidosamente

Cantem a boa vinda do eminente

Príncipe desta sacra monarquia.

Hoje em Roma de Pedro se lhe fia

Segunda vez a barca e o tridente

Porque a pesca que fez já no Oriente

O destinou para a do meio-dia.

Oh se quisesse Deus que sendo ouvida

A musa bronca dos incultos Matos

Ficasse vossa púrpura atraída

Oh se como Aream, que a doces tratos

Uma pedra atraiu endurecida

Atraísse eu, Senhor, vossos sapatos!

Não esqueçamos que o poeta que assim saudava o arcebispo era
vigário-geral e procurador da mitra. A estes versos de louvor a poderosos,
vezo muito corriqueiro nos poetas contemporâneos, juntava Gregório
de Matos alguns poemas de inspiração mais alta, como este soneto:

À Instabilidade das Coisas do Mundo:

Nasce o sol, e não dura mais que um dia

Depois da luz se segue a noite escura

Em tristes sonhos morre a formosura,

Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o sol, por que nascia?

Se é tão formosa a luz, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no sol e na luz falte a firmeza

Na formosura não se dê constância

E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância

E tem qualquer dos bens por natureza

E firmeza somente na inconstância.

Ou como este sobre A vida solitária, último paradeiro dos varões
prudentes:

Ditoso tu que na palhoça agreste

Viveste moço e velho respiraste,

Berço foi em que moço te criaste

Essa será, que para morto ergueste.

Aí do que ignoravas aprendeste

Aí do que aprendeste me ensinaste,

Que os desprezos do mundo que alcançaste

Armas são com que a vida defendeste.

Ditoso tu que longe dos enganos

A que a Corte tributa rendimentos

Tua vida dilatas e deleitas

Nos palácios reais se encurtam anos

Porém tu, sincopando os aposentos

Mais te dilatas quando mais te estreitas.53

Estas transcrições dão a medida do valor poético
de Gregório de Matos e, parece, justificam o nosso conceito de que
ele se não distingue notavelmente dos poetas portugueses e brasileiros
seus contemporâneos. Que não teve a mínima influência
literária no seu tempo ou posteriormente, provam-no de sobejo as obras
dos seus confrades de grupo e as do século XVIII, o século das
Academias literárias e, ao menos até antes dos mineiros, de
extrema pobreza poética.

A importância literária da sua copiosa obra poética é
singularmente levantada por lances interessantíssimos à história
dos nossos costumes e da sociedade do seu tempo. Desta nos deixou, mormente
na parte satírica ou burlesca, precioso elemento de estudo, das suas
maneiras e hábitos, dos seus mesmos sentimentos e feições
morais. A sua língua, que julgamos poder qualificar de clássica,
tem modalidades, idiotismos, adágios, fraseados, muito peculiares,
e alguns certamente já brasileiros. O seu vocabulário, que está
a pedir um estudo especial, é abundante em termos castiços,
arcaicos e raros, espanholismos e brasileirismos. Costumes, usos e manhas
nossas aparecem-lhe nos versos em alusões, referências, expressões,
que documentam o grau adiantado da mestiçagem entre os três fatores
da nossa gente que aqui se vinha operando desde o primeiro século da
nossa existência. É sobretudo esta feição documental
da sociedade do seu tempo que sobreleva Gregório de Matos aos seus
contemporâneos e ainda a todos os poetas coloniais antes dos mineiros,
todos eles sem fisionomia própria. O único que em suma a tem
é ele.


Capítulo V

ASPECTOS LITERÁRIOS DO SÉCULO XVIII

LITERARIAMENTE, O SÉCULO XVIII se caracteriza pela escassez de poetas
na sua primeira metade, pela fundação das academias literárias
do fim do seu primeiro quartel aos começos do último, pela abundância
da sua literatura histórica, e, o que principalmente o ilustra, pelo
advento, no seu terço final, de um grupo de poetas, que foram os melhores
no período colonial.

Excluído Antônio José da Silva, o engenhoso e mal-aventurado
judeu fluminense, queimado pela Inquisição de Lisboa, em 1739,
nenhum poeta de algum valor se nos depara no Brasil naquele momento. Antônio
José, de brasileiro só teve, porém, o acidente do nascimento.
Sua formação e atividade literária foi toda portuguesa,
e não há no seu estilo, quer de prosador quer de poeta, bem
como na sua inspiração, nada que não seja genuinamente
português. E o que porventura não é português é
antes italiano (como as coplas de que misturou as suas óperas) ou espanhol
do que brasileiro.

Não houve nesse tempo nenhum poeta equivalente a Gregório de
Matos ou mesmo a Botelho de Oliveira. É, entretanto, crescido o número
de escrevedores e versificadores do século XVIII, de que se encontram
menções. Só Jaboatão, e unicamente na sua ordem
franciscana, nomeia perto de trinta e lhes menciona as obras, muitas impressas,
outras manuscritas: de devoção, panegíricos de santos,
sermões e também versos e história.54 O mesmo sucedia
nas outras ordens religiosas. A prosa, porém, tirante a dos pregadores,
nenhum de mérito que mereça recordação, e a de
algum memorialista ou noticiador da terra, igualmente somenos, não
deixou de si lembrança estimável.

Dos poetas do século XVII anteriores aos mineiros, não há
nenhum que se salve por uma inspiração feliz como a da Ilha
de Maré, ou por qualquer feição particular como a satírica
de Gregório de Matos. Somenos sob todos os aspectos, o poeta dos Eustáquidos,
Fr. Manoel de Santa Maria Itaparica, merece todavia comemorado pela sua Descrição
versejada da ilha de Itaparica. Os Eustáquidos são um “poema
sacro e tragicômico” da vida de S. Eustáquio. Esta classificação
do próprio autor e o seu objeto já deixam ver que sensaboria
metrificada não é. Vem-lhe apensa a Descrição,
interessante somente por ser a segunda manifestação na poesia
brasileira da mesma emoção nativista, patriótica se quiserem,
que produziu a Ilha de Maré e que constituiria um rasgo particular
da nossa poesia.55

54Novo Orbe Seráfico Brasílico. Rio de Janeiro, 1858, I, 345.

55Descrição da Ilha de Itaparica em oitavas endecassílabas
junta aos Eustáquidos, poema sacro e tragicômico em que se contém
a vida de Santo Eustáquio mártir, chamado antes plácido,
e sua mulher e filhos. Por um anônimo da ilha de Itaparica, termo da
cidade da Bahia. Dado à luz por um devoto do Santo. Varnhagem, a quem
se deve a revelação deste poema, alcunhado de Anônimo
Itaparicano o autor dos Eustáquidos e da Descrição anexa,
identificou-o primeiramente com o padre Francisco de Souza, natural daquela
ilha, e autor do Oriente conquistado. Acabou, porém, identificando-o
com Fr. Manoel de Santa Maria Itaparica (Florilégio, I, 152 e Introdução).
A publicação total do Novo orbe seráfico de Jaboatão
(2ª parte, I, 38) veio confirmar esta legítima presunção
de Varnhagen, e permitir-nos inferir que a impressão dos Eustáquidos
é posterior ao ano de 1768. Fr. Itaparica, segundo o mesmo Jaboatão,
viveu entre 1704 e 1768, ano em que o historiador da ordem franciscana no
Brasil ainda o dá como vivo e a sua obra como inédita. Segundo
a mesma autoridade, teria Fr. Itaparica escrito epigramas, canções,
sonetos, e mais um canto heróico e um penegírico em oitavas
por ocasião das festas realizadas pelo casamento de príncipes
de Portugal e Castela, em 1728, na Paraíba. Tudo isto, creio que sem
grande perda para as nossas letras, ficou inédito.

Como na Prosopopéia de Bento Teixeira e geralmente em todos os versejadores
do período colonial, é manifesta neste poema de sessenta e cinco
oitavas a lição de Camões. Esta infelizmente revela-se
apenas na imitação canhestra e até na paródia
de algum verso do grande épico ou ainda no arremedo de situações
ou passos dos Lusíadas.

Não sem galanteria invoca o poeta a Musa, como sua companheira de
todos os tempos, bons e maus:

Musa que no florido de meus anos

Teu furor tantas vezes me inspiraste

E na idade em que vêm os desenganos

Também sempre fiel me acompanhaste,

Tu, que influxos repartes soberanos

Deste monte Helicon, que já pisaste,

Agora me concede o que te peço

Para seguir seguro o que começo.

O seu verso tem quase sempre esta facilidade e correção. A
descrição da sua ilha natal, mais vasada nos moldes clássicos
que a de Botelho de Oliveira, tem, conquanto topográfica, a emoção
nativista que falta a Bento Teixeira. Pinta a vida dos pescadores da ilha,
a pescaria da baleia, sua principal indústria, a fabricação
do seu azeite, e noticia os produtos, dons e bens da terra, seus frutos e
novidades. E terminando, frouxamente aliás, a descrição
da ilha que fica no

Porto em que está hoje situada

A opulenta e ilustrada Bahia

assim conclui:

Até aqui Musa: não me é permitido

Que passe mais avante a veloz pena;

A minha pátria tenho definido

Com esta descrição breve e pequena;

E se o tê-la tão pouco engrandecida

Não me louva mas antes me condena,

Não usei termos de poeta esperto,

Fui historiador em tudo certo.

Com o mesmo sentimento nativista sensível, embora sem emoção
notável, desde a Prosopopéia e mais manifesto em Botelho de
Oliveira, precedeu este poema de alguns anos o de Santa Rita Durão.
Também no canto V do seu poema Eustáquidos, Fr. Santa Maria
Itaparica, num sonho que finge, põe certo Postero a profetizar o advento
do Brasil e nascimento do poeta, anunciando o poema da Descrição
da sua ilha natal, que ele

Há de cantar em lira temperada.

Tudo isto com grande insulsez. O tal poema sacro e herói-cômico
por si só não daria ao nome do frade poeta o mínimo relevo
se lho não levantasse a emoção simpática com que
cantou a sua pátria, como à ilha do seu nascimento chamou, e
não documentasse a continuidade da inspiração que se
ia criando e ficaria na poesia brasileira como um dos seus traços distintivos.
Sob aspecto da língua não deixa de ser interessante a medíocre
produção de Fr. Itaparica. A língua literária
do Brasil ainda era então e seria por todo o período colonial,
apenas talvez com menos arte e menos número, a mesma de Portugal. Não
havia ainda tempo para que os cruzamentos e outras influências mesológicas
houvessem modificado o falar brasileiro, e menos para que as modificações
porventura havidas passassem do falar corrente à língua dos
escritores educados por portugueses e feitos só, ou muito principalmente,
na leitura de livros portugueses ou latinos. A de Fr. Itaparica é,
pois, a língua do tempo, gongórica, empolada e sobretudo amaneirada.
Todas as impressões e idéias se lhe reduzem em adjetivos, que
apenas com variações sinonímicas se repetem copiosamente
com pouca propriedade. Aliás o defeito não é raro, mesmo
nos chamados clássicos. Usa abundantemente de termos pouco vulgares
ou já então obsoletos e também de espanholismos e neologismos,
tudo denotando rebusca de linguagem. Encontram-se-lhe: elado, fenestras, temblar,
gateando, lesura, trufatil(?), olorizar, cláveo, estúpeo (do
grego stupeo, caule, mas feito adjetivo?), pevidosa, ahulidos(?). Descrevendo
o preparo do azeite da baleia em Itaparica, fala dos negros empregados nesse
serviço:

Cujos membros de azeite andam untados

Daquelas cirandagens salpicados.

em que a palavra cirandagem desviada do seu sentido vernáculo (=sarandalha)
alimpaduras que se apartam cirandando (joeirando) e se lançam fora,
tem já a acepção brasileira de restos imprestáveis,
imundície miúda, guloseimas vis.

Nenhum outro poeta que mereça lembrado ou mesmo que o não mereça,
mas com obra conhecida, nos depara este sáfaro período da poesia
no Brasil. A música do parnaso foi publicada em 1705, mas os seus poemas
são incontestavelmente dos últimos anos do século anterior,
nos quais passou também a atividade literária do seu autor.
Outrossim poetou nesta época Sebastião da Rocha Pita, acaso
a melhor figura literária dela. A sua produção poética,
porém, nos seria totalmente desconhecida não foram os documentos
relativos às academias literárias de que fez parte, existentes
na Biblioteca Nacional e as transcrições deles feitas por Fernandes
Pinheiro.56 Há notícia vaga e insegura de que escrevera também
um romance em verso castelhano. É como historiador que ele tem um lugar
na nossa literatura colonial.

Só para o fim da terceira década do século XVIII, se
nos antolham alguns escritores em prosa mais estimáveis que os aludidos.
Seguindo de perto o seu aparecimento o das academias literárias aqui
fundadas desde meados da segunda década, não é porventura
indiscreto ver neles influências destas.

Como assembléia ocasional de literatos que reciprocamente se recitavam
os seus versos e prosas, havia academias no Brasil ainda em antes do século
XVIII. Gregório de Matos, notavelmente, e elas se refere nos seus versos
satíricos.57 Mas como associações literárias e
regularmente organizadas datam de 1724. Foi nesta era criada a primeira, a
Academia Brasileira dos Esquecidos. Para em tudo imitar as da metrópole,
cujo arremedo era, fundava-se conforme aquelas com a proteção
real, sob os auspícios do vice-rei, ou antes estabelecida por ele no
seu próprio palácio. Nestes termos, imagem acabada do estilo
da época e seu, lhe noticia a fundação Rocha Pita, que
foi um dos seus membros mais conspícuos:

“A nossa portuguesa América (e principalmente a província
da Bahia), que na produção de engenhosos filhos pode competir
com Itália e Grécia, não se achava com as academias introduzidas
em todas as repúblicas bem organizadas, para apartarem a idade juvenil
do ócio contrário das virtudes e origem de todos os vícios
e apurarem a sutileza dos engenhos. Não permitiu o vice-rei que faltasse
no Brasil esta pedra de toque no estimável oiro dos seus talentos,
de mais quilates que o das suas minas. Erigiu uma doutíssima academia,
que se faz em palácio na sua presença. Deram-lhe fama as pessoas
de maior graduação e entendimento que se acham na Bahia, tomando-o
por seu protetor. Têm presidido nela eruditíssimos sujeitos.
Houve graves e discretos assuntos, aos que se fizeram elegantes e agudíssimos
versos; e vai continuando nos seus progressos, esperando que em tão
grande proteção se dêem ao prelo os seus escritos, em
prêmio das suas fadigas.”58

A Academia dos Renascidos fundava-se em 1759 com quarenta sócios de
número, ou efetivos, e oitenta supranumerários, ou correspondentes.
A maioria versejava ou fazia prosa oficial ou acadêmica. Glosando motes,
versificando temas preestabelecidos ou também amplificando retoricamente
assuntos oferecidos aos seus curtos engenhos, nenhum destes versejadores ou
prosistas tinham virtudes literárias por que perdurasse na memória
dos homens e as suas obras, ainda as impressas, é como se não
existissem.

No Rio de Janeiro foi instituída em 1736 a Academia dos Felizes, e
mais tarde, em 1752, a dos Seletos, que de fato se resumiu a uma sessão
magna literária, como diríamos hoje, consagrada a celebrar o
governador e capitão-general Gomes Freire de Andrade, que a presidiu.59
Tinham estas reuniões a vantagem de serem prazo dado e auditório
fácil e benévolo de letrados e poetas e portanto um estímulo
oferecido ao seu estro.

Criadas quando acaso já não correspondiam às condições
da sua origem européia, mais por imitação das do Reino,
vontade e inspiração oficial do que como uma exigência
e produto na incipiente cultura indígena, tiveram as academias literárias
no Brasil, uma existência transitória e inglória. Mas
não de todo inútil e sem efeito nessa cultura e na literatura
que a devia representar. Apesar da origem oficial, e de serem um arremedo,
havia porventura nelas um sentimento de emulação com a metrópole,
e portanto um primeiro e leve sintoma do espírito local de independência.
Acaso a denominação da primeira, de Academia Brasileira dos
Esquecidos, revê o despeito dos seus fundadores contra o esquecimento
dos letrados coloniais na formação das academias portuguesas
anteriores. O propósito que não só essa, mas a dos Renascidos
e a dos Felizes declaradamente tiveram, de estudar sob os seus diversos aspectos
o Brasil e a sua história, traduz evidentemente um íntimo sentimento
de apego à terra, com a intenção, ainda certamente pouco
consciente, da parte que no seu desenvolvimento devia caber aos seus letrados.

A qualificação que todas, apesar do oficialismo da sua origem
ou existência, se deram de Brasileiras (brasílica), quando ainda
não existia ou não era vulgar o patronímico da terra,
porventura já revela um sentimento de separação, do qual
não tinham quiçá esses acadêmicos consciência,
mas que o despeito ou motivos menos egoísticos, como a ufania da sua
terra, criara. Como quer que seja apontavam todas ao progresso das letras
e da cultura espiritual do Brasil, e trabalhando, ainda mal, como trabalharam,
por esse propósito, trabalharam primeiro pela nossa emancipação
intelectual e, por esta, sem aliás disso se aperceberem, pela nossa
emancipação nacional. Isso, entretanto, não as impediu
de continuarem a fazer a mesma obra literária dos portugueses, e fazerem-na
inferiormente. Sobre haverem iniciado o comércio e trato recíproco
dos homens de letras do Brasil, convocando-os de toda a parte dele para se
lhes associarem, tiveram o efeito imediatamente útil de chamar a atenção
e despertar o gosto e o amor do estudo da nossa história e das nossas
cousas. São testemunho desse seu influxo a História da América
Portuguesa, com que Rocha Pita realizou um dos propósitos da Academia
Brasílica dos Esquecidos, e a História militar do Brasil, de
José de Mirales, sócio da dos Renascidos, e confessadamente
escrita por sua influência.60

Estes, com Nuno Marques Pereira, o autor do Peregrino da América,
são os escritores de prosa mais conhecidos desta fase da nossa literatura.
Deles, porém, só merecem a atenção da história
literária Rocha Pita e Marques Pereira.

De Nuno Marques Pereira não sabem os biógrafos senão
que nasceu em Cairu, na Bahia, em 1652, e faleceu em Lisboa em 1728. Dos seus
estudos, vida e feitos nada se conhece, que não seja suspeito de infundado.
Era presbítero secular. No intuito piedoso de denunciar ou de emendar
os costumes do Estado, que se lhe antolhavam péssimos, escreveu o livro
citado, único lavor literário que se lhe sabe, e cujo título
completo lhe define o estímulo e propósito. Chama-se compridamente:
Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam
vários discursos espirituais e morais com muitas advertências
e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela milícia
diabólica no Estado do Brasil.61

O Peregrino da América, como abreviadamente se lhe chama, não
é de modo algum um conto ou novela, não tem o menor parentesco
com a chamada literatura de cordel, cousa que no Brasil é do século
XIX, quando aqui apareceu como imitação seródia ou contrafação
da portuguesa, então já em decadência. Não se pode
dizer que o livro de Marques Pereira haja iniciado o gênero romanesco
ou novelístico no Brasil. É, porém, uma ficção,
como o são também os Diálogos das grandezas do Brasil.
Uma ficção de fim e caráter religioso, obra de devoção
e edificação. Consiste totalmente a ficção em
o autor, ou quem finge escrever a narrativa, dizer-se um peregrino ou viajor
que trata da sua salvação (p. 3, ed. 1728) e que andando pelo
mundo aproveita ensejos e oportunidades de doutrinar cristãmente os
diversos interlocutores que se lhe deparam, e esse mundo que, segundo um destes,
o Ancião do cap. I, “é estrada de peregrinos e não
lugar nem habitação de moradores, porque a verdadeira pátria
é o Céu”. Este pensamento do misticismo cristão
é o de todo o livro. Nem ele tem outra fabulação que
os repetidos fingidos encontros do Peregrino com indivíduos com quem
troca reflexões morais e religiosas, no propósito manifesto
de os doutrinar. Seria ele de todo desinteressante para nós, que não
nos compadecemos mais com estas exortações parenéticas,
se o autor lhes não houvesse freqüentemente misturado cousas da
vida real, contado anedotas, citado ditos e reflexões profanas, aplicado
a sua doutrina e moralidade a casos concretos, revendo a vida e os costumes
do tempo e lugar, referido fatos da sua experiência e feito considerações
através das quais divisamos sentimentos e idéias contemporâneas
e aspectos da existência colonial. Infelizmente esta feição
do seu livro, que seria para nós hoje a mais importante e aprazível,
é de muito excedida pela de prédica de moral caturra e trivialíssima,
na pior maneira do mau estilo da época. Os moralistas só os
sofremos em literatura com originalidade, agudeza e bom estilo. Nada salva,
pois, o Peregrino da América de ser a sensaboria que se tornou mal
passado o século em cujo primeiro terço foi publicado. Não
pensavam assim os seus contemporâneos. Este livro, que raros serão
capazes de ler integralmente, foi um dos mais lidos no seu tempo e no imediatamente
posterior, como provam as cinco edições que dele se fizeram
em menos de quarenta anos, número considerável para a época.

Não era romance ou novela, mas em prosa e impressa era a primeira
obra de imaginação escrita por natural da terra. E dizia de
cousas desta, e de envolta com referências aos seus costumes, notações
de sua vida, alusões aos seus moradores, derramava-se em considerações
de suas manhas. Talvez esteja principalmente nesta atualidade o segredo da
sua estimação e sucesso. Já não era, todavia,
tanta a dos letrados seus patrícios para o fim do século, pois
Silva Alvarenga, no canto V do seu poema herói-cômico O desertor
das letras (1774), enumerando livros então considerados somenos e desprezíveis,
cita entre eles o Peregrino da América.62

Ao Peregrino da América excedem sem dúvida muito em valor literário,
em distinção de pensamento e excelência de expressão
as Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires da Silva de
Eça, publicada em Lisboa em 1752. Entretanto são quase desconhecidas,
mesmo dos eruditos e dos historiadores mais minuciosos da nossa literatura,
não obstante o apreço que parece haverem merecido dos contemporâneos,
se tal se pode inferir das quatro edições que teve até
1768. Matias Aires nasceu em São Paulo a 27 de março de 1705,
de José Ramos da Silva, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da
Casa da Moeda de Lisboa, e de sua mulher D. Catarina de Horta. Não
se lhe conhece a data da morte. Na companhia de seus pais foi para Portugal
com menos de 12 anos, ali graduou-se de mestre em artes na Universidade de
Coimbra e substituiu o pai na Provedoria da Casa da Moeda, e, parece, nunca
mais tornou ao Brasil. Seria, pois, um espírito de pura formação
portuguesa, apenas melhorando, ou somente modificado, quanto à cultura,
pela estadia em França, onde se formou em direito canônico e
direito civil. Pode ser estivesse também em outros países europeus.
Além das Reflexões sobre a vaidade dos homens ou discursos morais
sobre os efeitos da vaidade, com o mesmo objeto de filosofia moralizante escreveu
mais uma Carta sobre a fortuna, que saiu anexa à 4ª edição
das Reflexões (1786). Há também da sua lavra, mas já
em outra ordem de idéias, o Problema de arquitetura civil, por que
os edifícios antigos têm mais duração e resistem
mais ao tremor de terra que os modernos? (Lisboa, 1777) e um Discurso congratulatório
pela felicíssima convalescença e real vida de El-Rei D. José,
saído em 1759.

Como moralista, Matias Aires ainda seria hoje benemérito de leitura
e estima, sequer pela maior isenção do seu espírito das
estreitezas do moralismo eclesiástico dominante no seu tempo, e também
pela sua expressão mais desempeçada dos vícios estilísticos
do tempo, mais livre, menos pesada e até mais elegante. Encontra-se-lhe
mesmo, não obstante não fazer senão glosar a velha lição
judaico-cristã sobre a vaidade, um ou outro conceito menos vulgar finamente
enunciado. Ele seria o melhor dos nossos moralistas se de fato a sua obra
não valesse principalmente ou quase somente como uma curiosidade literária
daqueles tempos, sem tal superioridade de pensamento ou de expressão
que lhe determine a integração nas nossas letras, e menos qualquer
repercussão ou influxo nelas.63

63Sobre este quase ignorado escritor nascido no Brasil, v. Inocêncio,
Dic Bibl., VI; Solidônio Leite, Clássicos esquecidos, e um artigo
do Sr. Nestor Vítor no Correio da Manhã.

Sacramento Blake também o noticia com espécies novas, mas para
mim duvidosas.

O aparecimento destas duas obras é um acontecimento literário
acaso mais importante que a numerosa produção poética
anterior. A prosa é a linguagem da virilidade e da razão. Entrando
a exprimir-se também em prosa quando até aí, salvo o
exemplo isolado de Fr. Vicente do Salvador, só em verso se exprimira,
dava a mentalidade que se ia formando, mostra de maior madureza e variedade
de aptidões. O versar das letras históricas e outras, no mesmo
século, pelos Mirales, Jaboatões, Taques, Madres de Deus, Borges
da Fonseca, Velosos, sem embargo da insuficiência literária dos
seus produtos, mais claramente o comprova.

Sebastião da Rocha Pita nasceu na cidade da Bahia a 3 de maio de 1660.
Foram seus pais João Velho Godin e D. Brites da Rocha Pita, filha do
Capitão-Mor Sebastião da Rocha Pita, “uma das primeiras
e mais poderosas pessoas de Pernambuco”, informa, justamente desvanecido
da sua prosápia, o neto. Estudou com os jesuítas no seu colégio
da Bahia, até os dezesseis anos. Como no tempo faziam tantos rapazes
da colônia de famílias abastadas, da Bahia foi estudar a Coimbra,
em cuja Universidade se bacharelou em cânones. De volta à terra,
foi feito coronel de um regimento de infantaria de ordenanças. Casando
com uma patrícia, retirou-se para uma rica fazenda às margens
do Paraguaçu, perto da Cachoeira, onde fez vida de cavalheiro agricultor,
dando-se também às letras. Além de um romance em verso,
que parece haver merecido pouca estimação, deu à luz,
em Lisboa, duas obras pequenas, e de assunto mais de reportagem que de literatura,
Breve compêndio e narração do fúnebre espetáculo
que na cidade da Bahia se viu na morte d’El-Rei D. Pedro II, em 1709,
e Sumário da vida e morte da Ex.ma Srª D. Leonor Josefa de Vilhena
e das exéquias que se celebraram à sua memória na cidade
da Bahia, em 1721. Com estas obrinhas teria tomado gosto das notícias
da sua terra. A fundação contemporânea da Academia Brasílica
dos Esquecidos porventura o estimularia nesse sentido.

Seus sócios deviam “tomar por matéria geral dos seus estudos
a história brasileira”, segundo dizia o próprio auto da
sua fundação.64 Rocha Pita, que fora dos seus fundadores e dos
mais conspícuos, empreendeu escrever a do Brasil, mais cabalmente do
que havia sido ainda escrita. Para realizar o seu intento passou-se a Lisboa
e aí publicou, no dito ano de 1730, a História da América
portuguesa.

Nem pela intuição e sentimento histórico, nem pelo sabor
literário, emparelha a História de Rocha Pita com a do Fr. Vicente
do Salvador. Está em tudo e por tudo obsoleta, e além da feição
por assim dizer oficial da sua composição, é perluxa,
enfática e inchada de pensamento e linguagem. Justamente o excessivo
floreio de estilo com que foi intencionalmente escrita, e que no-la torna
desagradável, fazia-a no seu tempo estimável e foi, não
de todo sem razão, estimada.

Escrita em estilo de prosa poética, como se fora um poema em louvor
do Brasil, com mais entusiasmo e arroubo de sentimento patriótico do
que com a serenidade e o bom juízo da história, marca justamente
a transição da poesia a que quase exclusivamente se reduzia
a nossa produção literária para a prosa em que íamos
começar a mais freqüentemente exprimir-nos. Os seus censores oficiais,
sujeitos dos mais doutos do tempo, cobriram-na de louvores, não só
à sua composição, mas ao seu merecimento de obra histórica.
Gostava-se então do que ora nos despraz. A frase de Rocha Pita acham-na
eles “verdadeiramente portuguesa, desafetada, pura, concisa e conceituosa”.
Afora o casticismo, aliás de mau cunho, não pode a crítica
hoje senão verificar-lhe as qualidades opostas, isto é, a prolixidade,
a afetação, o inchado do frasear e o abuso de conceitos corriqueiros
ou rebuscados. De seu valor histórico disseram os censores cousas justas
e boas, se bem prejudicadas pelo seu tom hiperbólico, aliás
consoante com o do livro.

O mérito incontestável da História de Rocha Pita, ainda
com as restrições que do ponto de vista das exigências
da história se lhe possam fazer, o de ser a mais completa publicada,
como lhe reconheceram os censores oficiais, não o era só para
os portugueses que assim podiam melhor informar-se dos sucessos da sua grande
colônia. Aos brasileiros, o livro do historiador baiano, escrito num
estilo que lhes seria muito grato ao paladar literário e sentimento
nativista, ensinava-lhes a história da sua terra, sublimando-a por
tal forma, que eles se ufanariam de serem seus filhos.

A velha tendência de apreço e gabo da terra, primeiro vagido
do nosso brasileirismo, gosto e louvor não artificial e de estudo,
mas natural e espontâneo, por inspirá-lo realmente a grandeza
e opulência dela, tendência manifesta, como temos visto, desde
os primeiros representantes espirituais do povo aqui em formação,
aparecia agora na obra de Rocha Pita como que raciocinada, sistematizada na
prosa túmida e florida do seu primeiro historiador publicado. E desde
então esse feitio empolado e hiperbólico de dizer da nossa pátria
(casando-se aliás perfeitamente com o excesso de detratação
ela) seria um rasgo notável do nosso sentimento nacional, manifestando-se
literariamente. Apenas haverá d’ora avante poeta ou prosador
que não a celebre e cante com os arroubos líricos do seu historiador
Rocha Pita. Graças à sua influência, tão consoante
com o nosso próprio gênio, será ela magnificada sobre
posse, a exata noção da sua natureza deturpada, a sua geografia
falsificada, as suas verdadeiras feições escondidas ou desfiguradas
sob postiços e arrebiques de patriotismo convencional ou simplório.
Das nossas mofinas montanhas, pouco mais que colinas comparadas com as do
antigo continente, ou com as de outras regiões do nosso, não
teve Rocha Pita pudor de escrever que “umas parecem ter os ombros no
céu, outras penetrá-lo com a cabeça”. E os demais
aspectos naturais do Brasil são assim por ele engrandecidos.

Ufana-se e embevece-se na enumeração hiperbólica da
nossa fauna e flora, e no seu ingênuo entusiasmado aceita e propala
as noções errôneas que ainda viciam a nossa história
natural popular com a existência de feras temíveis, de gados
que se alimentam de terra, cobras que trituram o “maior touro” e
o devoram. Muitas das nossas abusões e enganos da opulência e
feracidade da nossa terra, ilusões umas porventura auspiciosas, outras
certamente funestas, vieram de Rocha Pita e de sua influência.

Em meio onde a história era apenas um tema literário e até
retórico, sem disciplina científica ou rigoroso método
de investigação e crítica, não era despicienda
a obra do escritor brasileiro. Compendiava e ordenava não sem capacidade
e num estilo ao sabor da época, as dispersas e desconcertadas noções
da história do país e vulgarizava-as em forma acessível
e simpática. Os seus defeitos e falhas não seriam aos contemporâneos
tão patentes quanto avultam para nós.

Poder-se-ia incluir aqui, e não deixaram de fazê-lo os historiadores
da nossa literatura, um outro brasileiro, o padre Francisco de Souza, natural
da ilha de Itaparica, na Bahia, onde nasceu em 1628, falecido em Goa, na Índia
portuguesa, em 1713. Em Lisboa publicou ele em 1710 o seu grosso livro Oriente
conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus na província
de Goa, notável exemplar da historiografia e da linguagem e estilo
do tempo. Tendo vivido mais de 80 anos, dos quais a máxima parte em
Portugal e na Ásia, e escrito de cousas de todo estranhas ao Brasil
e segundo o espírito e a maneira portuguesa, esse nosso patrício
apenas o é pelo acidente do nascimento. Literariamente ainda nos pertence
menos que Gabriel Soares ou o autor dos Diálogos das grandezas.

Da mesquinheza poética da maior parte do século XVIII, surde
entretanto, pelo seu último terço, uma por todos os títulos
considerável produção poética. Também,
ao menos pelo número e mérito particular de informação,
aparecem trabalhos históricos que constituem contribuição
notável à prosa brasileira. No momento assinalado, uma plêiade
de poetas brasileiros entram a concorrer dignamente com os poetas portugueses
contemporâneos, a fazerem-se bem aceitos da literatura mãe. Mais
brasileiros que nenhuns outros até aí, por mais vivo sentimento
da terra natal ou adotiva, ao qual já porventura podemos chamar de
nacional, estabelecem esses poetas a transição da fase puramente
portuguesa da nossa literatura para a sua fase brasileira. Esta, iniciada
pelo romantismo ao cabo do primeiro terço do seguinte século,
terá nalguns deles os seus inconscientes precursores.

São em suma esses poetas, reunidos sob a denominação,
a meu ver imprópria, de “escola mineira”, quando apenas formam
um grupo literário, sem algum rasgo característico que coletivamente
os distinga, os que enchem esse período de transição
e o constituem. Com a criação das academias literárias,
o crescimento da população, o seu desenvolvimento mental e econômico
e mais o das comunicações da colônia com o Reino, aumentou
consideravelmente o número de versejadores, cujos nomes constam de
repertórios e livros de consulta especiais. Da multidão desses
sobressaem, com qualidades que lhes asseguram um lugar à parte, aqueles
a quem, não obstante não passarem de seis, me proponho a chamar
englobadamente de plêiade mineira: Santa Rita Durão, Cláudio
Manoel da Costa, Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto, Tomás Gonzaga
e Silva Alvarenga. Estes merecem lugar separado nesta História.

Outros contemporâneos seus, Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), Antônio
Mendes Bordalo (1750-1806), Domingos Vidal de Barbosa (1760-1793?), Bartolomeu
Antônio Cordovil (1746-1810?), Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811),
e que tais versejadores que impertinentemente têm sido anexados à
chamada escola mineira, de todo não pertencem ao grupo de poetas com
que indiscretamente a formaram. Alguns lhe não pertencem sequer cronologicamente,
como Tenreiro Aranha, nascido quando este grupo já ia em adiantada
formação. São demais tão insignificantes que podemos
dispensar-nos de os levar em conta no estudo da nossa evolução
literária. Deles é um dos de melhor engenho o mulato ou crioulo
Caldas Barbosa. Nasceu no Rio de Janeiro por volta de 1740 ou nesse ano, e
faleceu em Lisboa em 1800. Passou o maior tempo da sua vida em Portugal, como
familiar, parasita, quase fâmulo dos condes de Pombeiro, capelão
e poeta mercenário dessa família fidalga e generosa. Não
tem nenhuma superioridade, porém apenas valerá menos que muitos
dos poetas portugueses seus contemporâneos com quem conviveu e emulou.
Vivendo a vida portuguesa, conservou, entretanto, alerta, o sentimento íntimo
da poética popular brasileira revelado no estilo de algumas composições
suas em que desce até as formas indecorosas ou delambidas do verso
popular:

Meu bem está mal com eu

Gentes de bem pegou nele

Tape, tape, tipe, tipe,

Ai Céu

Ela é minha iaiá

O seu moleque sou eu.

E que tais modos triviais do nosso lirismo popular de mistura com reminiscências,
sentimento e sensações de cousas brasileiras.

Cuidei que o gosto de amar

Sempre o mesmo gosto fosse

Mas um amor brasileiro

Eu não sei por que é mais doce.

Gentes como isto

Cá é temperado

Que sempre o favor

Me sabe a salgado:

Nós lá no Brasil

A nossa ternura

A açúcar nos sabe

Tem muita doçura

Ó! se tem! tem

Tem um mel mui saboroso

É bem bom, é bem gostoso.

Cantados à viola, com os requebros e denguices da musa mulata, e o
sotaque meloso do brasileiro, versos tais teriam em Portugal o sainete do
exótico, para resgatar-lhes a mesquinhez da inspiração
e da forma. Não enriquecem a poesia brasileira. Na história
desta, Caldas Barbosa apenas terá a importância de testemunhar
como se havia já operado no fim do século XVIII a mestiçagem
luso-brasileira, que, primeiro física, acabara por influir a psique
nacional. Era natural que essa influência no domínio mental se
principiasse a manifestar num mestiço de primeiro sangue, como parece
era o “fulo Caldas”, dos apodos dos seus rivais portugueses. Depois
de Gregório de Matos, na segunda metade do século XVII, o qual
pode ser, apesar da sua jactância do contrário, não fosse
branco estreme, é com Caldas Barbosa que expressamente se revela na
poesia brasileira, a musa popular brasileira na sua inspiração
dengosamente erótica e no seu estilo baboso.

Ao contrário da poesia, a prosa aqui escrita no mesmo momento, a prosa
a que, sequer pelo seu gênero e intuitos, possamos chamar de literária,
não deixou documentos que a valorizassem. Os que existem são
todavia, relativamente numerosos, e alguns meritórios no tocante à
nossa historiografia e informação geral do país. Mas
como escritores minguam a todos, ou pouco avultam em todos, os atributos que
lhes valeria essa qualificação. De outros a atividade mental
e literária foi inteiramente portuguesa e passou-se em Portugal. Estão
neste caso os irmãos Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724)
e Alexandre de Gusmão (1695-1753), ambos paulistas, de Santos. O primeiro
nada tem de comum com a literatura, senão uns medíocres sermões
nunca mais lidos; o segundo, alto e versátil engenho, pertence por
toda a sua formação e atividade à literatura portuguesa,
que justificadamente o adotou.

Os brasileiros a que primeiro nos referimos como autores de obras em prosa
são: Pedro Taques de Almeida Pais Leme (17..-1777);65 Fr. Gaspar da
Madre Deus (1730-1800);66 Antônio José Vitorino Borges da Fonseca
(1718-1786);67 Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-176.).68
São todos estes autores de crônicas e relações
históricas de nenhum ou de ruim sabor literário ou de secas
e insípidas genealogias, acaso subsídios valiosos para a nossa
história, mas somenos como boas letras. Sobre o aspecto literário
os sobreleva Fr. Vicente do Salvador com a sua História do Brasil,
e o mesmo Rocha Pita com a da América portuguesa. Entretanto esta abundância
de escritos históricos e outros que poderíamos citar, no século
XVIII, não é sem importância e significação
na história da nossa literatura, como expressão da nacionalidade.
Testemunha que se continuava a operar aqui o trabalho íntimo e lento
de uma consciência nacional que buscava apoio e estímulo na indagação
dos fastos da terra, da prosápia e feitos de seus filhos, de que já
tirara desvanecimento. Também provava a nossa capacidade para lucubrações
que no Reino haviam dado renome e consideração aos seus cultores.
Se tivessem sido então publicados, houveram esses escritos podido ser
um fator do sentimento de solidariedade nacional, que é o mesmo fundamento
das nações. Eram em todo caso prova desse sentimento manifesto
neles no apreço exagerado e na ufania, não raro indiscreta,
dela. O isolamento completo e a separação dos que aqui cultivaram
letras não eram já tão completas graças à
fundação das academias literárias, que os chamaram donde
quer que viessem, para si, como supranumerários ou correspondentes.
A literatura dessa época, tomada a expressão do seu mais lato
sentido, revela a formação vagarosa e ainda obscura mas certa
de uma gente que começa a ter o sentimento de si mesma, que dá
provas de inteligência e capacidade mental e que, tendo a confiada opinião
da excelência da sua pátria, não tardará muito
que não entre a pensar na sua autonomia política. O estímulo
daquilo que, na obscuridade dos seus rincões pátrios, escreviam
e guardavam esses historiógrafos desinteressados e modestos, andaria
já recôndito no sentimento popular. É por isso que, sem
embargo da sua formação portuguesa e do seu respeito e apego
às tradições espirituais da metrópole, os poetas
brasileiros das últimas décadas do século XVIII foram,
com espontaneidade que lhes explica a distinção, os intérpretes
de tal sentimento. Fato significativo, a poesia de então, pelo estro
de Santa Rita Durão, propõe-se claramente a cantar o Brasil,
com a mesma intenção patriótica com que Camões
cantara Portugal.


Capítulo VI

A PLÊIADE MINEIRA

DAS CAPITANIAS BRASILEIRAS era certamente a de Minas a que mais motivos dava
ao surto deste sentimento e aspiração. Nos povos como nos indivíduos,
o principal estímulo à autonomia é a consciência,
que lhes dá a abastança, de se poderem prover a si mesmos. Descobertas
na segunda metade do século XVII, as minas que denominaram a região,
e grandemente incrementada nesta a mineração do ouro e do diamante,
aflui-lhe das capitanias vizinhas, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo,
toda a gente, e foi muita, para quem aquelas julgadas fáceis riquezas
eram irresistível chamariz. Assim se começou a fazer a população
da Capitania de Minas Gerais, desde então a mais avultada, a mais densa
e logo depois a mais rica do Brasil. Como a riqueza cria a cultura, pelas
facilidades que lhes proporciona, também a mais culta.

Por disposição geográfica do país, e pela variedade
dos sítios minerais descobertos, a vida local, longe de se concentrar
exclusivamente numa cidade capital, dispersava-se por vários pontos
importantes, Sabará, São João del Rei, Diamantina, Mariana,
Serro. Com as suas escolas avulsas, seminários episcopais, colégios
de jesuítas ou aulas de outros religiosos, também atraídos
pelo engodo das minas, eram tais vilas e cidades outros tantos pequenos focos
de instrução, e contribuíam para difundi-la pelas comarcas
cujo centro eram e pela capitania. Valeriam ainda porventura mais como estímulo
do espírito de autonomia, do municipalismo, que devia contrastar o
oficialismo reinícola da capital. A riqueza feita a muitos dos seus
moradores pela mineração, do mesmo passo que os excitava a uma
vida larga e de luxo, largueza e luxo relativos mas consoantes com o meio,
e para ele até ostentoso, movia-os a mandarem os filhos não
só a Portugal, mas também a outros países europeus, seguir
estudos superiores. No século XVIII, mormente na sua segunda metade,
o número de doutores, leigos e eclesiásticos, e de clérigos
com estudos superiores dos seminários, era com certeza em Minas Gerais
maior do que em qualquer outra capitania. Já então, devido justamente
a serem principalmente de religiosos os estabelecimentos de ensino e as aulas
avulsas de latim criadas em várias localidades pelas reformas de Pombal,
andava muito espalhado o estudo do latim e sabê-lo era vulgar em Minas.
A ciência do latim constituía ainda, mesmo na mais adiantada
Europa, o fundamento e o essencial de toda a cultura. Nas festividades feitas
em Mariana, em 1748, por ocasião da ereção do bispado
e posse do seu primeiro prelado, nos outeiros e academias realizadas como
partes das festas, numerosos versejadores e letrados recitaram, além
de discursos congratulatórios e sermões penegíricos,
grávidos de erudição latina e hidrópicos de hipérboles,
dúzias de poemas, curtos e longos, décimas, sonetos, elegias,
acrósticos, cantos heróicos, glosas, silvas, epigramas, em latim
e em português.69 Da lição e cultura da capitania podemos
fazer idéia pelas livrarias particulares nela àquele tempo existentes.
Dão-nos informação a respeito os autos de seqüestros
feitos nos bens dos implicados na chamada Conjuração Mineira.
Além dos livros profissionais de estudo e consulta, constituíam-nas
geralmente os melhores autores latinos no original e gregos no original e
em traduções latinas, e mais os franceses Descartes, Condillac,
Corneille, Racine, Bossuet, Montesquieu, Voltaire, tratados e dicionários
de história e erudição, as décadas de Barros e
Couto, os poetas clássicos portugueses, e também Tasso, Milton,
Metastásio, Quevedo, afora dicionários de várias línguas,
obras de matemáticas, ciências naturais e físicas e outras.70

Ainda em antes de findar o primeiro quartel do século, começaram
a manifestar-se em Minas sintomas de descontentamento da metrópole
e de hostilidades aos seus propostos à governança da capitania.
Contam-se desde então alguns alvorotos e motins, pomposa e impropriamente
apelidados de revoltas e até de revoluções pelos historiadores
indígenas, contra o governo colonial. Reprimidos alguns com a bruta
violência com que em todos os tempos todos os governos presumem impedir
o natural levante contra os seus desmandos, a sua repressão apenas
serviu para desenvolver ou acirrar a animadversão do brasileiro contra
o reinol. Dos governadores da capitania os houve fidalgos da melhor nobreza
portuguesa, homens de corte e de sociedade, talvez com os vícios e
defeitos nessas comuns, mas em todo caso com as prendas que eram o apanágio
de sua classe. Acompanhavam-nos outros gentis-homens, que com os filhos da
terra mais graduados por educação, haveres, famílias
e postos, faziam em Vila Rica, a pitoresca capital de Minas, uma pequena corte.
Festas de igreja, freqüentes e pomposas, cavalhadas, canas e outros divertimentos
do Reino para aqui, a que acudiam os vizinhos desde Diamantina, Mariana e
mais longe, e animavam.

Mais numerosa e mais densa que nenhuma outra do Brasil, a população
de Minas, aquela ao menos que tinha Vila Rica por centro imediato, sentia-se
melhor o contacto recíproco, criador da solidariedade. Sendo a mais
rica, era também a mais isenta, a mais desvanecida de suas possibilidades.
Este desvanecimento bairrista tinha-o Tiradentes em sumo grau. O espírito
localista, feição congênita dos mineiros, oriundos das
condições físicas e morais do desenvolvimento da capitania,
fortificava ali o nativismo ou nacionalismo regional. O sentimento da liberdade
e da independência, atribuído geralmente aos montanheses, parece
ter em Minas mais uma vez justificado o conceito. Foi este meio que produziu
a floração de poetas que é a plêiade mineira. Em
qualquer outro do Brasil o seu aparecimento se não compreenderia.

Esses poetas são: Santa Rita Durão (17…-1784), Cláudio
da Costa (1729-1780), Basílio da Gama (1741-1795), Alvarenga Peixoto
(1744-1793), Tomás Gonzaga (1744-1807?), Silva Alvarenga (1749-1814).
Estes são os que formam o grupo até aqui impropriamente chamado
de escola mineira, e que chamaremos, porventura, com mais propriedade, a plêiade
mineira. Além destes, e pelo mesmo tempo, produziu Minas muitos outros
poetas, somenos a este, meros versejadores ocasionais, como sempre os houve
aqui, dos quais nenhum ultrapassou a fama local contemporânea. Os mais
miúdos noticiadores nomeiam: Joaquim Inácio de Seixas Brandão,
Joaquim José Lisboa, Antônio Caetano Vilas Boas da Gama, irmão
de Basílio, Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, Francisco Gregório
Pires Monteiro Bandeira, Miguel Eugênio da Silva Mascarenhas, Silvério
Ribeiro de Carvalho, Francisco e Domingos Barbosa, Matias Alves de Oliveira.
São nomes sem outra significação e valia que o de servirem
para atestar a existência em Minas de forças poéticas
que ajudam a explicar a formação daquela plêiade.

Mas a só influência deste meio, onde nasceram e se criaram,
não bastaria a explicar-lhes o estro e surto poético, e menos
a atividade literária. A esse primeiro influxo pátrio juntou-se
preponderantemente o de sua longa permanência na Europa, do seu convívio
em um ambiente social e literário mais estimulante dos seus dons nativos
do que seria a sua terra e o meio, em suma acanhado, em que se haviam criado.
O contrário aliás passou com Tomás Gonzaga, do grupo
o único que não era brasileiro, e o único de quem se
pode dizer que foi o Brasil que o fez poeta. Não se conhece com efeito
nenhuma produção anterior às liras de Marília
de Dirceu, e estas resultaram de seus amores malfadados com uma brasileira,
e, concomitantemente, de sucessos em que se achou envolvido no Brasil, que
aos seus louros de poeta juntaram a coroa de mártir da liberdade.

I — OS LÍRICOS

Quando se lhes formou o espírito aos poetas mineiros ou começavam
eles a poetar, viçava em Portugal o arcadismo, movimento propositadamente
iniciado ali por meados do mesmo século XVIII contra o gongorismo do
século antecedente. O arcadismo, porém, foi mais que uma escola,
um estilo literário. Ao contrário dos seus manifestos intuitos
não conseguiu, se não muito parcialmente, nem desbancar o seiscentismo,
nem fazer regressar as letras portuguesas, como era o seu propósito,
à natureza e ao natural, à nobre simplicidade, à pureza
da frase, à verossimilhança dos pensamentos. Aliás estas
virtudes nunca foram comuns nessas letras. E no arcadismo ficaram ainda ressaibos
demasiados do sescentismo contra o qual se organizara.

Os poetas mineiros, como os demais poetas brasileiros da mesma época,
nenhum benemérito de menção particular, são antes
de tudo Arcades, ainda quando não pertencem efetivamente a alguma das
Arcádias do Reino. No Brasil nenhuma houve com existência real
de sociedade organizada de poetas. As de que se fala não passaram de
imaginações e fingimentos seus. Como Árcades portugueses,
eles não foram somente ao geral dos seus contemporâneos da metrópole,
antes, como reconheceu Garrett e o têm verificado outros historiadores
da literatura portuguesa, contribuíram para lhe avultar e enriquecer
a poesia naquela época. O que decididamente os sobreleva àqueles
e os torna mais notáveis e, para nós ao menos, mais interessantes,
são as suas novas contribuições à poesia portuguesa,
com as quais também entra a nossa a se distinguir dela. Introduzem
um novo elemento de emoção, o seu nativismo comovido, o seu
patriotismo particular; um novo assunto, a gente e a natureza americana, e
com isto, e resultante disto, novos sentimentos e sensações,
indefiníveis talvez mais sensíveis, que o meio novo de que eram,
do qual ou no qual cantavam, lhes influía nas almas. Escapando, pelo
seu mesmo exotismo ao predomínio absoluto das tradições
literárias portuguesas, ao rigor da moda poética então
na metrópole vigente, puderam ser e foram mais naturais, mais isentos
dos defeitos e vícios em que se desmanda ali essa moda. São,
em suma, menos gongóricos que os portugueses, sacrificam muito menos
à mitologia e ao trem clássico do que eles.

Segundo a ordem cronológica de sua manifestação, Cláudio
da Costa é o primeiro destes poetas. Nasceu no Sítio da Vargem,
distrito da cidade de Mariana, aos 5 de junho de 1729, de João Gonçalves
da Costa, português, e Teresa Ribeiro de Alvarenga, mineira. Seu pai
ocupava-se de mineração e lavoura. Por parte de pai, seus avós
eram portugueses, e de mãe brasileiros, de São Paulo e de boa
geração. Eram gente abonada, pois quatro dos seus cinco filhos
cursaram a Universidade de Coimbra. Tinha em Minas um tio frade e doutor,
Fr. Francisco Vieira, que fora opositor daquela Universidade e era agora procurador-geral
da Religião da SS. Trindade no Brasil. Com ele iniciou os primeiros
estudos de latim em Ouro Preto, donde aos quatorze anos se passou ao Rio de
Janeiro. Aqui, no colégio dos jesuítas, estudou filosofia. Com
vinte anos embarcou para Portugal, com destino a Coimbra, em cuja Universidade
se formou em cânones. Entre 1753 e 54 recolheu ao Brasil, dando-se à
advocacia em Vila Rica, onde também exerceu o importante cargo de secretário
do Governo. Por sua idade, boa lição clássica, fama de
douto e crédito de autor publicado, exerceu Cláudio da Costa
ali uma espécie de magistério entre os seus confrades em musa,
maiores e menores, que todos lhe liam as suas obras e lhe escutavam os conselhos.
Aos sessenta anos foi comprometido na chamada Conjuração Mineira.
Preso, e sem dúvida apavorado com as conseqüências da tremenda
acusação de réu de inconfidência, suicidou-se na
prisão.71

Na minuta manuscrita de seus escritos que acompanha os citados apontamentos,
declara Cláudio que “aplicado desde os primeiros anos ao estudo
das belas-letras” conservava inéditos em 1759: Rimas nas línguas
latina, italiana, portuguesa, castelhana e francesa em poesia heróica
e lírica, dois tomos in 4º. É preciosa a confissão,
menos como testemunho da capacidade poética do nosso patrício
em cinco línguas, que por mostrar quanto, com mais de meio século
de permeio, e a despeito da Arcádia, estava ainda perto de Botelho
de Oliveira, o poeta seiscentista da Música do Parnaso em quatro coros
de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas. Cláudio Manoel
da Costa é aliás, e ficaria, o mais português dos poetas
mineiros, o mais seiscentista e simultaneamente o mais arcádico, o
mais achegado à inspiração e poética portuguesa
tradicional e a do momento em que se lhe formou o espírito, em suma,
o menos brasileiro do grupo. Di-lo bastantemente o só título
de seus escritos inéditos e publicados, Rimas pastoris ou Musa bucólica,
centúria sacra, poema ao glorioso parto de Maria Santíssima,
Monúsculo poético, Culto métrico a certa abadessa, e
quejandos.

Poetou e escreveu com abundância segundo se vê das suas mesmas
citadas informações, e o testemunha a parte publicada de sua
obra.72

Nos citados “Apontamentos” figuram entre os seus manuscritos Poesias
dramáticas que se têm muitas vezes representado nos teatros de
Vila Rica, Minas em geral e Rio de Janeiro e Várias traduções
de dramas de Metastásio. Alguns destes dramas em rima solta, outros
em prosa, proporcionados ao teatro português. Sobre confirmarem a variedade
de aptidões poéticas de Cláudio da Costa, seriam estas
obras contribuição porventura estimável para a história
da nossa literatura dramática e ainda do nosso teatro. Parece que se
perderam todas. De sua copiosa obra poética, a porção
verdadeiramente insigne são os Sonetos, entre os quais os há
rivalizando os mais excelentes da língua. Obedecendo à poética
preconizada pelos fautores da Arcádia, embora com sobrevivências
do seiscentismo, duas feições distinguem os sonetos de Cláudio
Manuel da Costa: um vago perfume camoniano e uma sensibilidade particular
porventura a primeira manifestação da nostalgia brasileira,
depois repetida por tantos poetas nossos. São amostras destes dois
traços os sonetos:

Se os poucos dias que vivi contente

Foram bastantes para o meu cuidado,

Que pode vir a um pobre desgraçado

Que a idéia do seu mal não acrescente!

Aquele mesmo bem, que me consente,

Talvez propício, meu tirano fado

Esse mesmo me diz, que o meu estado

Se há de mudar em outro diferente.

Leve pois a fortuna os seus favores;

Eu os desprezo já; porque é loucura

Comprar a tanto preço as minhas dores:

Se quer que me não queixe, a sorte escura

Ou saiba ser mais firme nos rigores ou saiba ser constante na brandura.

* * *

Onde estou! este sítio desconheço;

Quem fez tão diferente aquele prado!

Tudo outra natureza tem tomado;

E em contemplá-las tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço

De estar a ela um dia reclinado:

Ali em vale um monte está mudado:

Quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes

Que faziam perpétua a primavera:

Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era:

Mas que venho a estranhar, se estão presentes,

Meus males com que tudo degenera!

* * *

Este é o rio, a montanha é esta,

Estes os troncos, estes os rochedos,

São estes inda os mesmos arvoredos;

Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,

Rio, montanhas, troncos e penedos

Que de amor nos suavíssimos enredos

Foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh! quam lembrado estou de haver subido

Aquele monte, e às vezes, que baixando

Deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;

Que na mesma saudade do infame ruído

Vem as mortas espécies despertando.

* * *

Memórias do presente, e do passado

Fazem guerra cruel dentro em meu peito;

E bem que ao sofrimento ando já feito,

Mais que nunca desperta hoje o cuidado.

Que diferente, que diversos estado

É este, em que somente o triste efeito

Da pena, a que meu mal me tem sujeito,

Me acompanha entre aflito e magoado!

Tristes lembranças! e que em vão componho

A memória da vossa sombra escura!

Que néscio em vós a ponderar me ponho!

Ide-vos; que em tão mísera loucura

Todo o passado bem tenho por sonho;

Só é certa a presente desventura.

Adorador fiel das musas européias, age não obstante nele o
incoersível império da terra natal, para onde quisera trazer
e onde quisera aclimatar aquelas musas, e o seu cortejo clássico de
“ninfas, o pastor, a ovelha, o touro”:

Musas, canoras Musas, este canto

Vós me inspirastes, vós meu tenro alento

Erguestes brandamente àquele assento.

Que tanto, ó Musas, prezo, adoro tanto.

Lágrimas tristes são, mágoas e pranto,

Tudo o que entoa o músico instrumento;

Mas se o favor me dais, ao mundo atento

Em assunto maior farei espanto.

Se em campos não pisados algum dia

Entre a Ninfa, o Pastor, a ovelha, o touro,

Efeitos são da vossa melodia;

Que muito, ó Musas, pois, que em fausto agouro

Cresçam do pátrio rio à margem fria

A imarcescível hera, o verde louro!

Sem embargo dos seus poemas de intuitos nativistas, como a Fábula
do Ribeirão do Carmo e Vila Rica, faltou-lhe infelizmente talento para
desta transplantação fazer melhor do que instalar na paisagem
e no ambiente americano os estafados temas e motivos da cansada poesia pastoril
portuguesa, sem ter ao menos, como Gonzaga, alguma forte paixão que
os reviçasse. Influenciado sem dúvida pelo exemplo de Basílio
da Gama e de Durão, compôs o seu poema brasileiro, se não
pelo sentimento e inspiração, pelo assunto, Vila Rica. É
uma obra medíocre, indigna do poeta dos Sonetos e ainda de outros versos,
a qual apenas revê o apego à tradição que fazia
anacronicamente viver esse gênero na literatura da nossa língua.

Vernáculo nesta e correto na forma e estilo poético de fino
e delicado sentimento, com tons bastante pessoais, apenas um todo nada gongórico,
Cláudio Manoel da Costa é, todavia, julgando-o pelo conjunto
da sua obra, o mais árcade dos árcades brasileiros. Não
tem alguma emoção grande ou profunda, poetiza por poetizar,
academicamente, seguindo de perto a escola na inspiração, nos
temas preferidos, nas formas métricas. É um virtuose e um diletante,
se podemos juntar os dois termos, mas o é com engenho e não
raro, nos Sonetos, formosamente. Nenhum dos seus poemas em que se pode enxergar
algo de sentimento pátrio, ou de influxo da terra natal, se distingue
na sua obra. Revelam, porém, todos, ainda que vagamente, como tais
motivos começavam a impor-se aos engenhos brasileiros, dos quais volvido
meio século se iam tornar prediletos.

Nasceu Tomás Antônio Gonzaga em Portugal, na cidade do Porto,
em 1744, de pai fluminense e mãe portuguesa, filha de inglês.
Como o pai houvesse exercido a magistratura na Bahia, Tomás Gonzaga
passou algum tempo da adolescência nessa cidade, ainda então
a principal do Brasil. Voltando com a família a Portugal, aos vinte
e quatro anos bacharelou-se em leis em Coimbra. Por ter sido opositor a cadeiras
da faculdade jurídica, fez jus ao título de desembargador. Com
essa graduação veio para o Brasil, em 1782, nomeado ouvidor
de Vila Rica, a pitoresca e sombria capital de Minas Gerais. Afora a declaração
de uma de suas liras, de que por amor de Marília destruíra os
versos que antes de a conhecer consagrara a outras mulheres, declaração
que apenas será gentileza de namorado, não se conhece testemunho
de que Gonzaga houvesse poetado antes de vir para o Brasil. Ao contrário,
nenhum indício há de o ter feito.73 Foi o Brasil que o fez poeta,
e é isto que o naturaliza brasileiro. Aqui se lhe depararam os motivos
do seu poetar, primeiro a mulher que parece ter amado de um grande e terno
amor, principal estímulo do seu estro até então adormecido;
depois os sucessos que, a despeito da sua inocência, o envolveram na
chamada Conjuração Mineira. Despedaçando-lhe a existência,
que se lhe antolhava auspiciosamente fagueira, esses sucessos ajuntaram às
emoções dolorosas dos seus contrariados amores o abalo cruel
de uma calamidade inaudita: a acusação do crime de lesa-majestade,
a prisão, os ferros, os maus tratos, a masmorra, um longo e martirizante
processo, a perspectiva da forca, em suma o desmoronar súbito e brutal
de todas as suas risonhas esperanças de namorado e funcionário,
em via de realização. De sua dor fez as formosas canções
que o imortalizaram, como um dos bons poetas do amor da nossa língua.
A brasileira sua amada era uma jovem matuta, sem outra cultura e espírito
que as suas graças naturais. Para ser dela entendido e tocá-la,
versejou-lhe naturalmente, simplesmente, com o mínimo de artifícios
clássicos possível à poética portuguesa, quase
sem arrebiques literários, nem rebuscas de expressão, que ela
pudesse desentender. Assim como lhe forneceu o motivo e o estímulo
de inspiração, deu-lhe o Brasil também o estilo que o
distingue e sobreleva aos seus pares. Como poeta é, pois, Gonzaga um
lídimo produto brasileiro.

Comutada a pena de morte, imposta pela alçada que julgou a presumida
conspiração, em degredo para Angola, em África, ali morreu
de miséria moral e física pelos anos de 1807 a 1809. A primeira
edição de suas liras, sob o título que se devia tornar
famoso de Marília de Dirceu, apareceu em Lisboa, em 1792, no mesmo
ano da sua condenação e desterro. E desde então se tem
feito delas, aumentadas de suas partes, cuja autenticidade é questionável,
trinta e quatro edições.74 Nenhum outro poema da nossa língua,
com a só exceção dos Lusíadas, teve tão
grande número de edições.

Marília de Dirceu, o título consagrado das liras de Gonzaga,
é a mais nobre e perfeita idealização do amor da nossa
poesia. Clássica embora de língua e poética, é
uma obra pessoal, escapa e superior às fórmulas e competências
das escolas. Canta de amor numa toada sinceramente sentida e por isso tocante,
do amor como a grande e fecunda e honesta paixão humana nas suas relações
com a vida, ainda nos seus aspectos prosaicos, a existência e os sentimentos
vulgares ou sublimes. Por essa expressão é Gonzaga um grande
poeta.

No que em Gonzaga se revê o português, como aliás em Cláudio
da Costa, brasileiro nato, é nos afeites portugueses de sua poesia,
os fingimentos pastoris, imagens e tropos de ambos derivados. Isso mesmo,
porém, não é mais essencialmente português do que
italiano ou espanhol, se não puramente arcádico. Mas a realidade
da sua situação, a verdade do seu sentimento, a sinceridade
da sua emoção, sobrelevaram as máculas postas no seu
poema pelos inevitáveis estigmas da poética em voga e quase
as apagaram. Se o Brasil o naturalizou seu, fazendo-o poeta, ele por sua vez
foi o principal agente de naturalização aqui da sentimentalidade
voluptuosa do lirismo português. Foi ele, com efeito, o primeiro que
no Brasil cantou tão constante, tão exclusiva e tão ternamente
de amor.

Dos poetas desta plêiade, o de obra menos considerável é
Inácio José de Alvarenga Peixoto.75 Natural do Rio de Janeiro,
filho de Simão de Alvarenga Braga e de D. Ângela Micaela da Cunha,
que ignoramos se eram brasileiros ou portugueses, gente se não de bom
nascimento, abonada. Feitos os primeiros estudos com os jesuítas, na
sua cidade natal, por volta de 1760 foi concluí-los em Portugal. Em
Coimbra formou-se em leis, em Cintra foi juiz de fora e no Reino demorou-se
até depois de 1775. Neste ano ainda se encontrava ali, onde, com outros
poetas e versejadores brasileiros, Basílio da Gama e seu irmão
Antônio Caetano Vilas Boas da Gama, Joaquim Inácio de Seixas,
da família da futura namorada de Gonzaga, Silva Alvarenga e outros
mais versejou à inauguração da estátua de D. José
I. De Portugal voltou despachado ouvidor da Comarca do Rio das Mortes. Este
cargo, e o seu posterior casamento com uma senhora mineira de família
paulista, levou Alvarenga Peixoto a domiciliar-se e estabelecer-se em Minas,
onde trocou a profissão de magistrado pela de fazendeiro e minerador
e o título acadêmico de doutor pelo de coronel, pelo qual ficou
mais conhecido. Dera-lhe esta patente, com o comando do regimento de cavalaria
da campanha do Rio Verde, o Governador D. Luís da Cunha Menezes. Vivendo
em São João del Rei, ia freqüentemente a Vila Rica, onde
era hóspede habitual de Gonzaga, de quem devia ter sido companheiro
em Coimbra e era ainda parente. Estes dois poetas e Cláudio da Costa
encontravam-se em fraternal convívio, comunicando-se mutuamente as
suas composições e conversando de letras e, naturalmente, das
cousas da capitania. Destas conversações, em que tomariam parte
outros homens de letras ou de alguma representação na capitania,
mal entendidas por uns, deturpadas por outros, originou-se a suspeita de uma
conjuração contra o domínio português, com o intento
de conflagrar a capitania e proclamar a sua independência. Não
obstante o seu aulicismo e a constância de suas manifestações
bajulatórias de veneração a soberanos e magnates portugueses
seus delegados, foi Alvarenga Peixoto comprometido nela, preso e, com Gonzaga
e seus outros companheiros de suspeição, trazido algemado para
as lôbregas masmorras do Rio de Janeiro. Após um longo processo
de três anos, delas saiu para o desterro de Ambaca em África,
onde pouco depois morreu em 1793.

A crermos os seus biógrafos, incluindo o melhor deles, Norberto Silva,
Alvarenga Peixoto escreveu muito maior número de composições
do que as que se lhe conhecem, e que Norberto foi quem mais completa e cuidadosamente
colecionou.76 Voltando de Portugal ao Rio de Janeiro, aqui o acolheu benignamente
o vice-rei Marquês de Lavradio. No teatro ou “casa da ópera”,
como lhe chamavam, criado por este vice-rei, fez Alvarenga Peixoto, sempre
chegado aos magnates, representar uma tradução em versos de
Mérope, tragédia de Maffei e também um drama original,
igualmente em versos, Enéias no Lácio. Tal é ao menos
a versão de Cunha Barbosa77 propalada por Norberto, ignoramos com que
fundamento. Infelizmente essas tentativas, como as de Cláudio da Costa,
e outros que porventura houve, perderam-se totalmente. Assim também
se teriam perdido, levadas no tufão da devassa e seqüestros de
que foram objeto os acusados de inconfidência e seus bens, muitas outras
composições de Alvarenga Peixoto. No que dele nos resta —
vinte sonetos, duas liras, três odes incompletas, uma cantata e um canto
em oitava rima78 — percebe-se um bom poeta, de seu natural fácil
e fluente. Não lhe falta imaginação nem conceito. Infelizmente
o motivo principal de sua inspiração no que dele nos ficou,
versos na maior parte de encômios a magnates, versos de cortesão,
lhe haveria prejudicado dotes que mais se adivinham que se sentem. Passa como
um dos seus melhores sonetos A saudade, feito depois da sua sentença
de morte. Não lhe seriam inferiores A lástima, composta “na
masmorra da Ilha das Cobras, lembrando-se da família”, nem o feito
à Rainha D. Maria I suplicando-lhe a comutação da pena
de morte, se não houvesse em ambas demasiados traços da ruim
poética do tempo, empolada e campanuda. Comparticipa Alvarenga Peixoto
do sentimento comum a estes poetas de afeto, pode mesmo dizer-se de ufania,
da terra natal, unido a um sincero apego a Portugal. Manifesta-se na maior
parte dos poemas que lhe conhecemos, particularmente na ode à Rainha
D. Maria I, da qual se poderia inferir ter havido aqui a esperança
de que ela cá viesse, em visita à sua colônia:

Se o Rio de Janeiro

Só a glória de ver-vos merecesse

Já era vosso mundo novo inteiro

……

Vinde, real senhora

Honrar os nossos mares por dous meses

Vinde ver o Brasil que vos adora

…..

Vai, ardente desejo,

Entra humilhado na real Lisboa

Sem ser sentido do invejoso Tejo

Aos pés augusto voa,

Chora e faze que a mãe compadecida

Dos saudosos filhos se condoa

…..

Da América o furor

Perdoai, grande augusta; é lealdade

São dignos de perdão crimes de amor.

Este sentimento, que é manifesto em todos os poetas, desdiz do que
lhes imputou a torva e suspicaz política dos governadores e vice-reis
portugueses, cujo excessivo zelo lhes transformou apenas indiscretas conversações
em conjuração e fez destes árcades ideológicos
réus de inconfidência, destruindo estúpida e maldosamente
três destes amáveis poetas. Este íntimo sentimento casava-se-lhes
na fantasia com a ambição patriótica de que se aumentasse
na monarquia portuguesa a importância de sua terra e que as nobres estirpes
daquela dessem aqui rebentos que lhe quisessem como a sua. Estas e outras
quimeras, vagos e indecisos sonhos de poetas, se encontram no Sonho e no Canto
genetlíaco, de Alvarenga Peixoto, em que, a propósito do filho
do governador D. Rodrigo de Menezes, se rejubila de que

Os heróis das mais altas cataduras

Principiam a ser patrícios nossos.

Chegamos ao último, na ordem do tempo, dos líricos deste belo
grupo. É Manoel Inácio da Silva Alvarenga, natural de Vila Rica,
em Minas, onde nasceu em 1749, donde saiu apenas adolescente e aonde não
mais voltou. Era filho de um homem pardo, Inácio Silva Alvarenga, músico
de profissão, como têm sido tantíssimos de sua raça
no Brasil, e pobre, e de mãe desconhecida. A benevolência de
pessoas a quem a sua inteligência e vocação estudiosa
interessava, deveu poder vir para o Rio estudar, e daqui, feitos os preparatórios,
seguir para Coimbra, onde se bacharelou em cânones, sempre com as melhores
aprovações, em 1775 ou 76, com 27 anos de idade. Em Portugal
relacionou-se com alguns patrícios, como Alvarenga Peixoto e Basílio
da Gama, mais velhos do que ele e também poetas. Do último,
parece, foi grande amigo. Celebrou-o mais de uma vez, e efusivamente, em seus
versos. No círculo destes e de outros brasileiros dados às musas,
ter-se-ia primeiro feito conhecido. Em 1774 publicara em Coimbra o poema herói-cômico.
O Desertor (8º, 69 págs.), metendo à bulha o escolasticismo
coimbrão, pouco antes desbancado pelas reformas pombalinas, e celebrando
estas reformas. Franco é o mérito literário deste poema.
Não é, todavia, despiciendo como documento de um novo estado
de espírito, mais literal e desabusado, da sociedade portuguesa sob
a ação de Pombal, e do caminho que havia feito em espíritos
literários brasileiros o sentimento pátrio, manifestado no poema
em alusões, referências, lembranças de cousas nossas.
Quando foi do dilúvio poético da inauguração da
estátua eqüestre de D. José I, em 1775, Silva Alvarenga
o engrossou com um soneto e uma ode. O mesmo motivo inspirou-lhe ainda a epístola
em alexandrinos de treze sílabas Ao sempre augusto e fidelíssimo
rei de Portugal o Senhor D. José I no dia da colocação
de sua real estátua eqüestre. Era então estudante, e tal
se declara no impresso da obra. Dois anos depois vinha a lume o Templo de
Netuno, poemeto (idílio) de sete páginas em tercetos e quartetos,
muito bem metrificados, com que, ao mesmo tempo que celebra a aclamação
da Rainha D. Maria I:

Possa da augusta filha o forte braço

Por longo tempo sustentar o escudo,

Que ampara tudo o que seu reino encerra

E encher de astros o céu, de heróis a terra.

se despede sinceramente sentido de seu amigo o patrício Basílio
da Gama:

Ainda me parece que saudoso

Te vejo estar da praia derradeira

Cansando a vista pelo mar undoso.

Sei que te hão de assustar de quando em quando

Os ventos, os vários climas e o perigo

De quem tão longos mares vai cortando.

Vive, Termindo, e na inconstante estrada

Pisa a cerviz da indômita fortuna,

Tendo a volúbil roda encadeada

Aos pés do trono em sólida coluna.

Com este conselho baixamente prático ao recém-protegido de
Pombal para que angarie também o patrocínio da rainha de pouco
aclamada, e que ia ser o centro da reação contra aquele, termina
Silva Alvarenga o seu poema. Antes de lhes exprobrarmos a vileza do sentimento,
consideremos que era muito menor e muito mais desculpável do que iguais
que agora vemos em todo o gênero de plumitivos. Ele procedia consoante
o tempo e o uso geral de poetas e literatos, que ainda não tinham outro
recurso que a proteção dos poderosos. Precede imediatamente
esta quadra menos digna, e acaso por isso mesmo menos bela, o formoso e sentido
terceto:

Se enfim respiro os puros climas nossos,

No teu seio fecundo, ó Pátria amada,

Em paz descansem os meus frios ossos,

que revê o sentimento do amor da terra natal comum a todos estes poetas,
que todos o manifestaram de forma a lhe sentirmos o trabalho de transformação
do limitado nativismo, se não apenas bairrismo, de seus predecessores
em um patriotismo mais consciente e amplo. Vinha este poema assinado por “Alcindo
Palmireno, árcade ultramarino” e era endereçado a “José
Basílio da Gama, Termindo Sepílio”. Estas alcunhas arcádicas,
e outras que tomaram vários poetas do mesmo grupo, como a de Dirceu,
de Gonzaga, não indicam nos que as traziam a qualidade de associados
de alguma das sociedades literárias então existentes com o nome
de Arcádias. Somente de Cláudio e Basílio se pode crer
que a tais sociedades pertencessem. Na maioria dos outros, do grupo mineiro
ou não, era apenas um apelido genérico. Arcádia quer
dizer assento de poetas, e por extensão poesia, e, em Portugal e aqui,
a poesia na época vigente. Árcade valia, pois, o mesmo que poeta.
“Árcade ultramarino” não dizia mais que poeta do ultramar,
sem de forma alguma indicar a existência no Brasil dessas sociedades,
que de fato nunca aqui existiram.

Foi Silva Alvarenga um dos mais fecundos e melhores poetas da plêiade
mineira. Desde o Desertor das letras, o seu poema herói-cômico
contra o carrancismo do ensino universitário, não cessou de
versejar. Em folhas avulsas, folhetos, coleções e florilégios
diversos, jornais literários portugueses e brasileiros (pois ainda
foi contemporâneo dos que primeiro aqui apareceram), foram publicadas
as suas muitas obras. A de mais vulto, o poema madrigalesco Glaura, saiu em
Lisboa em 1799 e 1801. As notas de aprovação obtidas em Coimbra
por Silva Alvarenga lhe argúem hábitos de estudo sério,
que tudo faz supor conservasse depois de graduado e pela vida adiante. Era
seguramente homem de muito boas letras, com a melhor cultura literária
que então em Portugal se pudesse fazer. Quanto a ela, juntava, além
do engenho poético, talento real, espírito e bom gosto pouco
vulgar no tempo; sobejam-lhe as obras para o provar, nomeadamente os seus
prefácios e poemas didáticos. Assenta consigo mesmo, embora
segundo a Arcádia e Garção, que na “imitação
da natureza consiste toda a força da poesia”, e a sua Epístola
a José Basílio, insistindo nesta opinião, está
cheia de discretos conceitos de bom juízo literário. Se nem
sempre os praticou, é que mais pode com ele a influência do momento
literário que as excelentes regras da sua arte poética. Lera
Aristóteles, Platão, Homero. Lida com eles e os cita de conhecimento
direto, e a propósito. Conhece as literaturas modernas mais ilustres,
inclusive a inglesa. Não lhe são estranhas as ciências
matemáticas, físicas ou naturais. No seu poema As artes, as
figura, ou se lhes refere com apropriadas alegorias ou pertinentes alusões.

Formado em cânones voltou Silva Alvarenga ao Rio de Janeiro em 1777,
e aqui se deixou ficar, talvez porque nenhum afeto ou interesse de família,
que não a tinha regular, o chamasse a Minas, sua terra natal. Vários
poemas seus, nomeadamente a sua Ode à mocidade portuguesa, a epístola
a Basílio da Gama e As artes, acima citado, mostram em Silva Alvarenga
um espírito ardoroso de cultura, de progresso intelectual, e entusiasta
de letras e ciências. Ele traria para o Brasil desejos e impulsos de
promover tudo isto aqui. Angariando a boa vontade do vice-rei de então,
Marquês do Lavradio, fundou, com outros doutos que aqui encontrou, uma
sociedade científica, cujo objeto principal “era não esquecerem
os seus sócios as matérias que em outros países haviam
aprendido, antes pelo contrário adiantar os seus conhecimentos”.79
Foi efêmera a existência desta sociedade. Num outro vice-rei,
Luís de Vasconcelos e Sousa, encontrou igualmente o nosso poeta animação
e patrocínio. Por ele teve a nomeação de professor régio
de uma aula de retórica e poética, solenemente inaugurada em
1782, e sob os seus auspícios restaurou, em 1786, com a denominação
agora de Sociedade Literária, a associação extinta. Dela
foi secretário e porventura a alma.80 A mal conhecida existência
destas duas associações literárias fundadas por Alvarenga
deu azo às hipóteses e imaginações que têm
aliás ocorrido como certezas, de uma Arcádia Ultramarina, criada
por ele com o concurso de Basílio da Gama, que entretanto estava em
Portugal, donde nunca mais saiu. Dos sócios destas duas sociedades,
médicos, letrados, padres, o único nome que escapou ao completo
esquecimento e a história literária recolheu além do
de Silva Alvarenga, foi o de Mariano José Pereira da Fonseca, o futuro
Marquês de Maricá, autor das Máximas. A esta atividade
literária juntava Alvarenga a profissão de advogado. Mudado
o vice-rei liberal pelo Conde de Rezende, que não o era (1790), este,
tornado mais desconfiado pelos recentes sucessos da Inconfidência Mineira,
enxergou nessa reunião de estudiosos e homens de letras não
sei que sinistros projetos de conjura contra o poder real. Preso em 1794,
após múltiplos interrogatórios e mais de dois anos de
prisão nas lôbregas masmorras da fortaleza de Santo Antônio,
foi Silva Alvarenga restituído sem julgamento à liberdade. Teve
sorte. Não eram acaso mais culpados do que ele os seus confrades de
Minas, dois anos antes, comutada a sentença de morte em desterro, mandados
morrer nas inóspitas areias africanas. Faltou apenas um pouco mais
de zelo ao vice-rei Rezende e ao principal juiz da nova alçada, o poeta
do Hissope, Dinis. Viveu até 1814 e colaborou ainda no Patriota, a
revista literária que fomentou o movimento intelectual anterior à
independência.

Pelo espírito, pelo temperamento literário, pelo estilo tanto
como pela idade, é Silva Alvarenga o mais moderno dos poetas do grupo,
o menos iscado dos vícios da época, o mais livre dos preconceitos
da escola, cujas alusões e ridículo não desconhecia,
como se vê na sua Epístola a José Basílio. Tem
além disso bom humor, espírito e, em suma, revê melhor
que os outros a emancipação produzida em certos espíritos
pela política antijesuítica de Pombal. Com ser mestre de retórica,
evita mais que os outros os recursos do arsenal clássico e mitológico.
E quando cede à corrente, o faz com muito mais personalidade senão
originalidade, mesmo com desembaraço e liberdade rara no tempo. É
disso prova a sua formosa heróide Teseu e Ariana, uma das melhores
amostras da nossa poesia, naquela época.

II — OS ÉPICOS

É principalmente na épica que os brasileiros, se não
sobrelevam aos portugueses da segunda metade do século XVIII, concorrem
dignamente com eles. Os dois poemas brasileiros, o Uraguai,* de Basílio
da Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão, não desmerecem das
melhores epopéias portuguesas da época.

José Basílio da Gama nasceu nos arredores da antiga Vila de
S. José do Rio das Mortes, depois S. José de El-Rei, hoje Tiradentes,
1741. Foram seus pais o capitão-mor Manoel da Costa Vilas Boas, português,
e D. Quitéria Inácia da Gama, brasileira, ambos de bom nascimento.
A mãe descendia da nobre família Gama de Portugal, motivo por
que talvez o filho lhe preferisse o apelido ao do pai. De seus ascendentes
somente eram brasileiros a mãe e a avó materna. Órfão
de pai em anos verdes, e talvez minguado de bens, veio para o Rio de Janeiro
cursar de favor o colégio dos jesuítas. Estava para professar
na Companhia quando foi esta dissolvida e seus membros expulsos dos domínios
portugueses. Aproveitando a exceção em favor dos não
professos, abandonou Basílio da Gama a Companhia. Do Brasil passou
a Portugal e daí a Roma, onde foi admitido à Arcádia
Romana. De Roma voltou ao Brasil em fins de 1766 ou princípios de 1767.
Em meados do ano seguinte tornava a Portugal, com destino à Universidade
de Coimbra. Preso em Lisboa como ex-jesuíta, esquivou o conseqüente
desterro para Angola consagrando um formoso poema ao casamento de uma filha
do Marquês de Pombal, ministro todo-poderoso de D. José I. No
próprio ano (1769) desse Epitalâmio, saiu da Impressão
régia o Uraguai. Como no mesmo volume vinha a Relação
abreviada, famosa diatribe contra os jesuítas, obra pessoa de Pombal,
é legítimo conjeturar que por conta deste correra a publicação
do poema. Dedicado no texto ao irmão de Pombal, ex-governador do Pará,
Maranhão, era oferecido ao marquês em um soneto preliminar. Desde
então não saiu mais Basílio da Gama de Portugal, sendo
inexata a notícia corrente de uma segunda vinda ao Brasil depois da
publicação do Uraguai. Além deste, que é a sua
obra capital, compôs mais de trinta poemas, entre maiores e menores,
sem contar algumas glosas. Em 1754 foi nomeado oficial da Secretaria do Reino.
Sucessivamente obteve mais tarde o título de escudeiro fidalgo da Casa
Real (1787) e o hábito de Santiago da Espada. Emprego e mercê
lhe davam uma renda anual que não só o punha ao abrigo de privações,
mas lhe facultava viver com relativa largueza. Aos cinqüenta e quatro
anos, ou perto deles, faleceu em Lisboa, solteiro, a 31 de julho de 1795.81

Pouco adequado a um poema épico segundo os moldes clássicos,
era o assunto de Basílio da Gama: a guerra que Portugal, auxiliado
pela Espanha, fez aos índios dos Sete Povos das Missões do Uruguai,
rebelados contra o tratado de 1750, que os passava ao domínio português,
tirando-os aos seus padres os jesuítas que os haviam descido, amansado
e aldeado, e os despejava de suas terras. Tal tema, ainda exagerado por uma
imaginação épica, daria apenas um episódio em
poema de mais vulto. Demais faltava ao poeta o recuo do tempo para uma possível
idealização do acontecimento, cujos autores ainda viviam. A
epopéia tinha, pois, de ser uma simples narrativa histórica
em versos de fatos recentíssimos, a que uma animosidade contra os jesuítas,
que se manifestava já na Espanha e Portugal, e iria breve resultar
nos atos de Pombal e de Aranda, dava um desmesurado relevo. Limitado pela
realidade material do acontecimento, ainda a todos presente, peado pela contemporaneidade
das personagens, de todos conhecidas, não podia o poeta dar à
sua imaginação a liberdade e o alor necessários à
idealização do seu tema. Pelas circunstâncias da sua composição,
tinha fatalmente o seu poema de lhe sair limitado no tempo e no espaço,
e sobretudo despido das roupagens e feições propriamente épicas.
Varnhagen notou que a ação não chega a durar um ano,
e o leitor atento observará como o poeta se cinge à realidade
prosaica dos sucessos.

Ao poeta não prejudicou, antes serviu, esta situação
que lhe criou o assunto. Obrigou-o a limitar as proporções do
seu poema e impediu-o de seguir os moldes clássicos, inventando ao
redor do fato principal os desenvolvimentos que a coetaneidade deles não
comportava. Fossem estas causas mais que o engenho do poeta que deram ao Uraguai
a sua feição particular entre os últimos poemas ainda
oriundos da corrente camoniana, em lhes haver cedido o patenteou ele. O gênio
não é a emancipação absoluta das condições
que nos rodeiam e limitam. Consiste principalmente em compreendê-las
no que elas têm de mais sutil, de mais fugaz e de mais difícil.
A superioridade de Basílio da Gama está em ter compreendido,
ou antes sentido, que os poetas são principalmente entes de sensação,
que o assunto não lhe dava para uma epopéia como aquelas que
então, à cola da de Camões, se faziam, e haver, contra
o gosto, a voga, a corrente do seu tempo avançado muito além
dele e dado à literatura portuguesa o seu primeiro poema romântico.
Com efeito, não se parece o Uraguai com qualquer outro poema do tempo.
Desvia-se do trilho costumeiro da poética em vigor. Não começa
pela invocação, antes entre ex-abrupto na matéria do
poema, o que era absolutamente novo:

Fumam ainda nas desertas praias

Lagos de sangue tépidos e impuros,

Em que ondeiam cadáveres despidos,

Pasto de corvos.

Não obedece à quase indefectível prática da oitava
endecassílaba; é em verso branco, e os demais deles belíssimos.
Não recorre ao maravilhoso pagão ou outro, não se encontra
mácula de gongorismo. A língua é a do seu tempo, castiça,
sem rebusca, clara, límpida, e o estilo natural e simples, apenas com
o mínimo de artifício que a mesma composição exigia.
Não refuge a misturar o burlesco com o grave, nem disfarça as
feições realistas do seu reconto épico. Por todos estes
rasgos, e por alguns outros sinais intrínsecos de metrificação,
linguagem e estilo e mais pela liberdade espiritual e sentimentos liberais
e humanos que o animam, é já o Uraguai um poema romântico,
o precursor na poesia do tempo do romantismo americano, o iniciador do indianismo,
que viria a ser no século XIX o traço mais distinto e significativo
da renascença literária do Brasil.

Basílio da Gama tem de raiz a inspiração épica.
Além do Uraguai, em que a provou excelentemente, do Quitubia (1791),
que é, com pouca sorte aliás, outra demonstração
dela, afetava o poeta o tom épico de preferência a outro, ainda
em poemas de natureza a o não pedirem. Quase não cantou de amor,
faltando por isso ao seu lirismo esse poderoso elemento sentimental e estético.
É, porém, um espírito livre e um coração
terno. Da liberdade de seu espírito que faz dele um liberal de antes
dos tempos, há indícios sobejos não só no Uraguai,
mas em vários poemas seus. Revela-se ainda o seu gosto por Voltaire,
de quem traduziu a tragédia Mahomet, e a sua desafeição
à guerra e às mesmas façanhas e glórias militares,
insólitas no seu tempo. Não sabemos de outro poeta contemporâneo
que haja tão declaradamente anteposto os labores e artes da paz, “às
bélicas fadigas” e augurado uma futura era pacífica, em
que fugissem do mundo

as guerras sanguinosas

Detestadas das mães e das esposas,

e em que

No capacete a abelhas os favos cria,

Curva-se em foice a espada reluzente.

Também da sua ternura há exemplos bastantes nos seus versos,
particularmente nas lembranças do seu amigo Alpoim, no Uraguai, e de
outro amigo seu, o árcade romano Mireu, no mesmo poema, e em vários
outros menores, aludindo enternecido a amigos e benfeitores. A sua obra deixa
uma grata impressão de admirativa simpatia.

Na história literária, a importância de Basílio
da Gama é o maior do que a de qualquer outro da mesma plêiade.
Sobre se revelar no Uraguai porventura o melhor engenho de entre esses poetas,
foi o primeiro a tomar por motivos de inspiração cousas americanas
e pátrias. Soube demais cantá-las com um raro espírito
de liberdade cívica e poética, sem as escravizar a fórmulas
consagradas e ainda com peregrinas qualidades de invenção e
estilo. Observou Costa e Silva que foi Santa Rita Durão o fundador
da poesia brasileira, por ser “o primeiro que teve o bom senso de destacar-se
das preocupações européias que havia bebido nas escolas,
para compor uma epopéia brasileira pela ação, pelos costumes,
pelos sentimentos e idéias e pelo colorido local”. Esqueceu-lhe
que o Uraguai precedera o Caramuru de doze anos e que mais do que estes se
mostrava estreme de preocupações européias bebidas nas
escolas.

Deste grupo de poetas é Frei José de Santa Rita Durão
o mais velho, pois nasceu em Cata Preta, distrito de Mariana, no qual também
viu a luz Cláudio da Costa, pelos anos de 1717 a 1720. Seu pai, o sargento-mor
Paulo Rodrigues Durão, era português e abastado. Ignoramos a
nacionalidade da mãe, D. Ana Garcêz de Morais. Era o pai homem
religioso e nimiamente devoto. Por sua morte deixou importantes legados para
quantidade de objetos e esmolas por sua alma e pelas de seus pais, escravos
e outros. Iguais sentimentos piedosos seriam os da família, consoante
era então comum em Minas. Explica-se assim a vocação
religiosa de seu filho José, o nosso poeta, que depois de estudos preparatórios
no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro, onde a vocação
incipiente se lhe teria desenvolvido, passou-se a Portugal. Ali, na ordem
de Santo Agostinho, entrou, fez o noviciado e, em 1738, entre os vinte e vinte
três anos, professou. Para seus alimentos dera o pai à ordem
dois mil cruzados. Já professo num colégio desta, em Coimbra,
fez os estudos para a formatura na Universidade, onde se doutorou em teologia.
Foi lente na sua Ordem e teve o título de substituto na Universidade.
Viveu uma vida feliz de estudos e alguns pequenos trabalhos literários.
Cultivou então a amizade do célebre erudito português,
o futuro arcebispo de Évora, Frei Manoel do Cenáculo, que associou
o nosso patrício aos seus estudos das línguas orientais contra
o estreito confinamento dos jesuítas na só literatura latina.
Não se sabe ao certo por que se achou Durão na contingência
de deixar Portugal, retirando-se, senão fugindo, para Espanha. Na carta
em que conta a Fr. Manoel do Cenáculo a sua escapula e lhe reclama
o apoio, apenas diz: “As minhas desgraças me levaram inconsideradamente
à Cidade… em 1762”, sem explicar quais desgraças foram.
Após alguns vexames que por motivo de estado de guerra entre a Espanha
e Portugal ali sofreu, inclusive a prisão, pôde transferir-se
à Itália, onde se achava já em 1764. Em Roma soube fazer-se
patrocinar por alguns figurões da Cúria, entre os quais o famoso
Ganganeli, o futuro papa Benedito XIV, que lhe arranjou o lugar de bibliotecário
da livraria pública Lancisiana, onde esteve por nove anos, bem aceito
dos literatos romanos, que o meteram em várias das suas sociedades
literárias. É notável que ele não figure com algum
nome arcádico, indicando ter pertencido à Arcádia Romana.
Naquele cargo aposentou-se, no propósito de concorrer a uma cadeira
das que se esperava vagassem na Universidade de Coimbra com a iminente expulsão
dos jesuítas. Graças, parece, ao apoio de Cenáculo e
à benevolência do nosso compatriota D. Francisco de Lemos, amigo
de Durão, recém-nomeado por Pombal reitor da Universidade, realizou-se-lhe
aquele propósito, pois o encontramos em 1778 recitando como opositor
a oração de sapiência na abertura das aulas.82

Por esse tempo teria começado o seu poema, cuja composição
continuaria quando, acaso receoso da reação antipombalina, recolheu
à casa de sua ordem em Lisboa, em 1779. Aí concluído
ou limado, foi publicado em 1781.

Em nenhum dos poetas da plêiade mineira, ou quaisquer outros seus contemporâneos,
o nativismo que preludiou aqui o nacionalismo e o patriotismo, como estímulo
de inspiração literária, manifesta-se tão claramente
como em Santa Rita Durão. O seu poema tinha já, por volta de
1778 a 80, quando foi imaginado e escrito, um propósito patriótico.
“Os sucessos do Brasil, escreveu o poeta nas Reflexões prévias,
antepostas ao seu livro, não mereciam menos um poema que os da Índia.
Incitou-me a escrever este o amor da pátria.” Como por trás
de Camões, trazido aqui à memória por Durão, vemos
a João de Barros, o insigne historiador do descobrimento e conquista
da Índia, assim atrás de Santa Rita Durão enxergamos
Rocha Pita, o autor vanglorioso da História da América portuguesa.
Não precisava Durão confessar que o lera. O seu poema bastaria
para o atestar e certificar-nos de que dele principalmente derivam não
só passos, incidentes e digressões do Caramuru, mas principalmente
o seu entusiasmo patriótico. Patriotismo, porém, que não
era ainda o brasileirismo estreme, senão um sentimento misto, comum
a todos esses poetas, de lealdade portuguesa e de amor à terra natal,
sentimento que se dividia entre a nação, que era Portugal, e
a pátria, que era o Brasil.

Sobre ser impertinente fazer do descobrimento da Bahia, ou ainda do Brasil,
uma epopéia, à luz da estética não era muito melhor
que o de Basílio da Gama o tema de Durão. Tinha, porém,
sobre o daquele a vantagem do maior recuo do tempo, menor precisão
ou maior incerteza histórica, dando ao poeta ensanchas a desenvolvimentos
em que aproveitou a História do Brasil do descobrimento ao governo-geral
e ainda a previsão da luta contra os holandeses. Como todos sabem,
o assunto do poema do episódio meio histórico, meio lendário,
do naufrágio do aventureiro português Diogo Álvares Correia,
que, soçobrando nas costas orientais do Brasil, justamente no recôncavo
da Bahia, escapou do naufrágio e caiu nas mãos dos índios
que aí havia. Guardado para servir-lhes de repasto, conseguiu esquivar
a sua triste sorte e dominar-lhes com o pavor que lhes causou matando no vôo
um pássaro, e fazendo outras façanhas com um arcabuz que acertara
salvar da catástrofe. Sobre esse fato verossímil, e que se teria
repetido entre navegadores e selvagens, ignorantes das armas de fogo, bordou
a imaginação popular circunstâncias e acrescentou desenvolvimentos
que a história mais tarde, por mão do operosíssimo Varnhagen,
provaria lendários, como a viagem de Diogo Álvares à
França em companhia da gentia Paraguaçu, sua noiva, o batismo
desta em Paris e o casamento deste casal, sendo padrinhos em ambas as cerimônias
Henrique II e a sua mulher, a célebre Catarina de Médicis, que
deu o seu nome à sua exótica afilhada. Diogo Álvares,
dizia a lenda, perfilhada pelos cronistas, recebeu dos índios, por
causa da arma flamante com que dava a morte, a alcunha de Caramuru. Este nome,
que é simplesmente o de um peixe, e que lhe deram por o terem apanhado
no mar, a nossa fantasia etnológica o interpretou de vários
modos, todos evidentemente falsos. Não havia aliás em Diogo
Álvares, nem houve nos seus atos, os predicados de um herói
de epopéia, e a mesma lenda não lhos dá. Nem o poeta
lhos soube emprestar que os relevassem.

Pela sua concepção e execução era o Caramuru,
mais do que o Uraguai, um dos muitos poemas saídos da fonte camoniana.
Sem embargo desta falta de originalidade inicial, da mesma forma e estilo
poético, e de reminiscências do poema de Camões, tem o
Caramuru qualidades próprias e estimáveis. Como poema nacional
leva a primazia ao Uraguai, apesar da sua inferioridade poética. Além
da intenção manifesta que o gerou como a epopéia do descobrimento
do Brasil, é o Caramuru mais nosso pela sua ação e teatro
dela, o Recôncavo, o berço por assim dizer da nacionalidade que
se ia criar aqui, e ainda pelos múltiplos testemunhos do seu interesse
e amor do país. Descreve-o e conta-o Durão já com o desvanecimento
de sua grandeza e excelência e a previsão de seus altos destinos.
Estes, porém, se lhe não antolhavam ainda na formação
de uma nacionalidade distinta, mas apenas no concurso decisivo que a sua pátria
de nascimento traria à restauração da grandeza da nação
cuja era parte

O Brasil aos lusos confiado

Será, cumprindo os fins do alto destino,

Instrumento talvez neste hemisfério

De recobrar no mundo o antigo império.

Infelizmente o modo, imposto pelo seu estado de frade, e frade de bons costumes,
por que tratou o drama amoroso, e que serve de núcleo ao seu poema,
privou-o de dar-lhe a emoção que nos poderia ainda comover.
Gravíssima falta de senso estético foi o fazer de Diogo Álvares
e Paraguaçu, o aventureiro português e a índia sua namorada
e depois sua mulher, um casal de castos amantes. É uma situação
contra a natureza, contra os fatos, contra a verossimilhança, e mais
que tudo inestética. Não se imagina um rude aventureiro português
do século XVI, ardente e voluptuoso, quais se mostraram na conquista,
na situação singular, e como quer que seja esquerda, descrita
por Durão, com uma formosa índia, moça e amorosa, em
meio desta natureza excitante e dos fáceis costumes indígenas,
e sem nenhum estorvo social, comportando-se qual se comportou o seu, isto
é, como um santo ou um lendário cavaleiro cristão, e
a reservando, num milagre de continência, para sua esposa segundo a
Santa Madre Igreja e ainda em cima doutrinando-a que nem um missionário
profissional sobre as excelências da castidade. Não obstante
o seu profundo catolicismo, Camões não caiu neste erro, e ao
contrário enalteceu o seu poema com os conhecidos passos de uma tão
artística voluptuosidade.

Como o Uraguai, o Caramuru insinua o americanismo na poesia portuguesa, abre
aos índios e às cousas indígenas maior espaço
na brasileira do que o fizera aquele, e funda o primeiro indianismo. Não
os acompanharam os outros poetas do grupo. Nestes mesmos, porém, sentimentos
e inspirações mais nativos e mais nativistas do que até
aí, as suas repetidas alusões ou referências a cousas
pátrias, a nostalgia dela em alguns deles entremostrada, procedem incontestavelmente
de Basílio da Gama e Durão, mormente do primeiro, do qual há
claras impressões em quase todos estes poetas. Durão parece
não os haver tocado tanto. Não se encontram reminiscências,
e menos memória deles, em seus poemas. É que o seu trazia ainda
muito da velha fórmula que o arcadismo desses poetas menosprezava.
Sem embargo do propósito patriótico de Durão, e das manifestações
eloqüentes do seu brasileirismo, eles, mais artistas que patriotas, lhe
preferiram, como nós hoje, Basílio da Gama, a quem Cláudio
da Costa, Alvarenga Peixoto e Silva Alvarenga louvaram com admirativa estimação
e imitaram, mostrando sentirem o que de novo, inspirado e alto havia no seu
gênio.

A três dos representantes da plêiade mineira, Cláudio
da Costa, Alvarenga Peixoto e Tomás Gonzaga, tem sido atribuído
o poema satírico das Cartas Chilenas, composto em Minas, na segunda
metade do século XVIII. É mais que uma sátira, uma diatribe
contra o governador D. Luís da Cunha Menezes e sua administração.
Ele figura como o herói burlesco sob o pseudônimo de Fanfarrão
Minésio. Fingem-lhe a ação e sucessos passados em Santiago
do Chile, nomes que, conforme já notara Varnhagen, cabem no verso tanto
como Vila Rica e Minas.

Escrito em forma de cartas dirigidas por um tal Critilo e certo Doroteo,
ambos poetas, tem este poema, se assim se lhe pode chamar, real valor literário.
Saíram à luz pela primeira vez, em edição da revista
Minerva Brasiliense, no Rio de Janeiro, em 1845, em número de sete.
Deu uma segunda, mais completa do que esta, com treze cartas ou cantos, a
Livraria Laemmert, desta cidade, em 1863. Dirigiu-a Luís Francisco
da Veiga, autor conhecido de vários estimáveis trabalhos históricos,
o qual, entre os papéis de seu pai, encontrara um manuscrito do poema.
Nesse manuscrito, que aliás não era um autógrafo, ocorre
a assinatura de Tomás Antônio Gonzaga (sic) sob a data: Vila
Rica, 9 de fevereiro de 1798, no fim da dedicatória em prosa, que precede
imediatamente o “Prólogo” igualmente em prosa. O pai do editor
literário, Saturnino da Veiga, ainda contemporâneo daqueles poetas,
o acreditava de Gonzaga. O primeiro editor das Cartas Chilenas, o escritor
chileno aqui residente e redator da Minerva Brasiliense, Santiago Nunes Ribeiro,
com a sua edição publicara um outro testemunho da autoria de
Gonzaga. É o de Francisco das Chagas Ribeiro, abonado por Nunes Ribeiro
como “ancião entusiasta da literatura brasileira, depositário
de muitos dos seus tesouros e cujo testemunho, se não é irrecusável,
é muito poderoso e digno de respeito”. (Apud Cartas Chilenas,
edição Laemmert, introdução de L. F. da Veiga).
Francisco das Chagas Ribeiro, sobre o qual se me não deparou outra
informação, pôs no seu manuscrito esta declaração:
“Tenho motivos para certificar que o Dr. Tomás Antônio Gonzaga
é o autor das Cartas Chilenas”. E assinou.

Estas duas atribuições, por sujeitos ainda contemporâneos
do poeta, e ao que parece respeitáveis, bastariam, em boa crítica,
para dirimir a questão, se não houvesse contra elas valiosos
testemunhos ou documentos.

Depois de estudo mais atento das Cartas, eu, que de primeiro não acreditava
fossem de Gonzaga, pendo hoje a crer que dele são, e não vejo
razão entre as muitas dadas, que prevaleça contra a atribuição
que de sua autoria lhe fazem Saturnino da Veiga e Chagas Ribeiro. Ao contrário,
militam a favor do seu testemunho os seguintes motivos: a) pelo seu valor
literário e poético (que é muito maior do que se tem
dito) não podem essas Cartas ser senão de algum dos poetas conhecidos
que viviam em Minas na época da sua composição, não
sendo provável a existência de nenhum outro capaz de as escrever
e que ficasse de todo incógnito; b) esse poeta devia reunir duas condições,
manifestas no contexto do poema: ser português e ser inimigo rancoroso
do governador satirizado. Que o autor das Cartas Chilenas é português
de naturalidade mostram-no os versos 5 e 15 da pág. 149 da edição
Laemmert, em que positivamente alude à sua vinda da Europa e ao seu
nascimento em Portugal. Revela-se ainda português nas suas várias
alusões todas pouco simpáticas à terra e às suas
cousas, e em que, atacando acrimoniosamente o governador e a sua administração,
não malsina jamais do regime ou do governo colonial. Revê-se
ainda o reinol, branco estreme e de categoria fina, na sua manifesta antipatia
aos mulatos, a quem não perde ensejo de apodar (págs. 106, 203,
312 e passim). A sua linguagem nimiamente castiça, de boleio de frase
e vocabulário muito de Portugal, e outros sinais idiomáticos
que uma análise miúda revelaria, traem também o português.
Ora, como o único português do grupo era Gonzaga, a ele se deve
atribuir o poema, onde aliás se encontram pensamentos, imagens e expressões
que coincidem com as da Marília de Dirceu. (Cp. pág. 100: “Que
importa que os acuses…” com a lira XXXVI da 1ª parte).

As Cartas são evidentemente de um inimigo acérrimo do governador,
a quem não poupam as mais terríveis acusações
e convícios. Ora, dos três poetas que somente podiam ser os seus
autores, e únicos a quem têm sido atribuídas, só
Gonzaga era sabidamente inimigo dele. Alvarenga Peixoto, ao contrário,
é um favorecido, um protegido de Cunha Menezes, que o fez coronel,
honraria que o desvaneceu mais que o seu título de doutor, e lhe concedeu
adiasse o pagamento de certa dívida à Fazenda Real.83

Cláudio era personagem quase oficial, ligado ao governo da Capitania,
que por duas vezes (1762-1765 e 1769-1773) secretariara, era já setuagenário,
idade menos apropriada às violências da sátira. Gonzaga,
ao contrário, como ouvidor da comarca e deputado à Junta de
Fazenda, achou-se em conflito com aquele governador, quando foi da arrematação
do Contrato das entradas no triênio de 785 a 787, em que Cunha Menezes
“de sua própria particular autoridade”, segundo o Ministro
do Reino, Martinho de Melo e Castro (V. Rev. do Inst., VI, 54 e seg.) e contra
o voto fundamentado de Gonzaga, mandou adjudicar ao seu protegido José
Pereira Marques, o Marquesio das Cartas Chilenas, aquele contrato. Foi esta
questão do contrato das entradas, em que, talvez, tanto o governador
como o ouvidor estavam empenhados por martes diversas, que criou a recíproca
hostilidade de Cunha Menezes e Gonzaga, e principalmente motivou as Cartas
Chilenas, e que fez o poeta tomá-lo “entre dentes”, segundo
a sua expressão, muito portuguesa, do início da 4ª. E a
8ª é inteiramente consagrada à prevaricação
do governador em contratos e despachos, de que o poeta o acusa e malsina quase
com as mesmas razões e palavras que a Gonzaga ouvidor atribuiu o Ministro
Melo e Castro no documento acima citado. Repetirei que é notável
que, maldizendo este poema tão afrontosamente do governador e da sua
roda, jamais deixa perceber o menor sentimento de desgosto da metrópole
e do regime colonial. Um português qualquer poderia aliás deixá-lo
transparecer; não o podia Gonzaga, que, como magistrado reinol e vogal
da Junta da Real Fazenda, fazia parte conspícua do governo da Capitania.
Não obstante esta sua cautela, só a sua autoria conhecida, ou
desconfiada, de tão terrível libelo contra um recente governador
e vários funcionários seus parciais explica que ele fosse, contra
a sua manifesta inocência, comprometido numa conspiração,
se conspiração houve, de que tudo — os seus sentimentos
de português, a sua lealdade de funcionário, o seu interesse
pessoal e a sua situação de noivo amorosíssimo —
forçosamente o afastava. O argumento de que o poeta sentimental e mimoso
de Marília não podia escrever aquelas violentas Cartas, de virulenta
sátira, roçando às vezes pela obscenidade, é de
uma pobre psicologia, contradita por mil exemplos da história literária.84

Todos os poetas deste grupo, o que talvez se não reproduza mais na
história da nossa literatura com qualquer dos grupos literários
que nela possamos distinguir, além do estro, tinham a mais completa
cultura literária do tempo. Todos fizeram com aproveitamento as suas
humanidades, todos, exceto Basílio da Gama, tinham o seu curso universitário,
eram doutores em leis ou cânones. Todos parecem a par do saber da sua
época, ao menos do que, sem estudos especiais, se adquire com aquela
cultura. Os brasileiros do grupo todos saíram do seu país, estanciaram
largos anos em Portugal e alguns, como Durão e Basílio, estiveram
em Espanha e Itália. Liam os enciclopedistas franceses. Quase todos,
além do latim, sabiam o grego, e de ambas as línguas versavam
os poetas no original. Durão, afora essas duas línguas clássicas,
sabia o hebraico. A todos eram familiares os escritores antigos, particularmente
os poetas, e os principais escritores e poetas modernos, italianos, franceses
e espanhóis, e ainda alguns ingleses. Cláudio da Costa poetava
em italiano, acaso não menos excelentemente que em português,
e o podia fazer ainda em castelhano e francês; traduziu Voltaire e cantou
a Milton. Basílio da Gama também traduziu Voltaire.

Conheceram-se, trataram-se, foram camaradas ou amigos quase todos. Ligou-os
o sentimento da pátria comum, o mesmo amor às letras, a irmandade
do estro, e mais, o mesmo espírito liberal, comum a todos e manifesto
na obra de todos. Silva Alvarenga compreendia e admirava a Basílio
da Gama e o cantou com entusiasmo, pode dizer-se patriotismo. Cláudio
da Costa, com igual entusiasmo, consagrou uma ode aos árcades seus
patrícios e endereçou poemas a Alvarenga Peixoto. Serviu também
de centro não só a este e a Gonzaga, mas a outros menores que
poetavam em Vila Rica, que todos, segundo a verídica tradição,
lhe submetiam ao saber e experiência os seus versos. Gonzaga alude carinhosamente
em suas liras a Cláudio e a Alvarenga Peixoto, seus íntimos.
Naquela época de acesa briga de poetas, se não sabe que hajam
os nossos entre si brigado.

Todas essas coincidências e circunstâncias não foram certamente
alheias à constituição deste grupo de poetas e à
feição e distinção que os assinalam na nossa literatura
e ainda na poesia portuguesa. Para alguns deles ao menos, a sua justa celebridade
foi grandemente ajudada, sem quebra aliás no seu merecimento, pelos
desgraçados sucessos em que foram envolvidos. Aureolando-os de martírio,
não serviriam pouco, e justo é que assim fosse, à sua
glória de poetas.


Capítulo VII

OS PREDECESSORES DO ROMANTISMO

I — OS POETAS

VERDADEIRAMENTE É DO SÉCULO XIX que podemos datar a existência
de uma literatura brasileira, tanto quanto pode existir literatura sem língua
própria.

Se a Independência do Brasil oficialmente começa em 1822, de
fato a sua autonomia, e até hegemonia no sistema político português,
data de 1808, quando, emigrando para cá, a dinastia portuguesa, na
realidade, fez do Rio de Janeiro a capital da monarquia. Virtualmente o Império
do Brasil estava criado desde que o príncipe regente, D. João,
realizando um velho, intermitente mas nunca desvanecido pensamento político
português, proclamou que o seu protesto contra a violência napoleônica
se erguia do seio de um novo império.

Ardores e alentos novos criou então o povo que há três
séculos se vinha aqui formando e cuja consciência nacional, desde
o século XVII, com as guerras holandesas, entrara a despontar. O fato
do Ipiranga, precedido da singular situação resultante da estada
aqui da família real e conseqüente transformação
da colônia em reino unido ao de Portugal, perfizera essa consciência
e lhe influíra a vontade de existir com a vida distinta que faz as
nações. Em tais momentos, como em todos os partos, são
infalíveis as roturas. Deu-se aqui o rompimento entre brasileiros e
portugueses, pode dizer-se o levante de uns contra outros, fenômeno
necessário da separação dos dois povos. Para completá-la
devia esse sentimento forçosamente interessar a todos aos aspectos
da vida do brasileiro, até aí comum com a do português,
e as várias feições do seu pensamento e sentimento. Não
foi maior a rotura porque o fato político que a produziu foi antes
uma transação que uma revolução e por se haver
passado justamente no momento em que a metrópole se afeiçoava
ao mesmo modelo político adotado pela colônia. Em todo caso,
foi suficiente para diferençar desde então como entidades políticas
distintas portugueses e brasileiros.

Exageravam estes a ruindade da administração colonial, aumentavam-lhe
com as mais deslavadas hipérboles de um patriotismo exaltado os vexames
e as incapacidades. Aos seus olhos, com a importância de metrópole,
perdia também Portugal o prestígio moral e mental, de criador,
educador e guia dessa sociedade que aqui se emancipava.

Era precisamente a hora em que na Europa, na verdadeira Europa, em Alemanha,
em Inglaterra, em França, manifestavam-se claramente já os sinais
da renovação literária que iria interessar todos os aspectos
do pensamento e ainda do sentimento europeu: o Romantismo. Quaisquer que hajam
sido os seus motivos e característicos, sejam quais forem as definições
que comporte (e inúmeras lhe tem sido dadas), o Romantismo foi sobretudo
um movimento de liberdade espiritual, primeiro, se lhe remontarmos às
últimas origens, filosófica, literária e artística
depois, e ainda social e política. Em arte e literatura seu objetivo
foi fazer algo diferente do passado e do existente, e até contra ambos.
Excedeu o seu propósito, e em todos os ramos de atividade mental, até
nas ciências, foi uma reação contra o espírito
clássico, que, embora desnaturado, ainda dominava em todos.

Iniciou-se na Alemanha pelos últimos vinte e cinco anos do século
XVIII. Reinava então em Portugal o pseudo-classicismo da Arcádia.
No Brasil cantavam os poetas mineiros, alguns deles românticos por antecipação,
mas em suma era o mesmo Arcadismo o tom dominante nas letras. Da Alemanha
irradiou por Inglaterra e França. Nestes países as suas primeiras
manifestações consideráveis são já do princípio
do século XIX. Só quase vinte e cinco anos mais tarde começaria
a sua influência a se fazer sentir em Portugal, onde as suas ainda indecisas
manifestações datam exatamente do princípio do segundo
quartel do século. Com a sua terceira década entra ele no Brasil.
Não foi, entretanto, de Portugal que o recebemos, senão de França,
que ia ser e permanecer a principal fornecedora de idéias, de sentimentos
e até de estilo à nossa literatura.

Mas entre o fim do renascimento poético aqui operado (dentro aliás
só de si mesmo e sem irradiação notável) pela
plêiade mineira e as primeiras manifestações do nosso
Romantismo, isto é, entre o último decênio do século
XVIII e o terceiro do XIX, dá-se na poesia brasileira uma paralisação
do movimento que parecia prenunciar-lhe a autonomia. Pode mesmo dizer-se que
se dá um regresso ao estafado Arcadismo português. Nunca tivera
o Brasil tantos poetas, se a esses versejadores se pode atribuir o epíteto.
Relativamente aos progressos que já fizéramos, nunca os tivera
tão ruins, tão insípidos e incolores.

Nesta fase arrolam os historiadores ou simples noticiadores da nossa literatura
mais de vinte. Na vã presunção de lhes emprestarem valor,
pois não é crível que efetivamente lho encontrem, sobre
nomeá-los adjetivam-nos com qualificativos que a leitura dos seus poemas
não só desabona mas prejudica.

São, calando ainda bastantes nomes, e na ordem cronológica,
Francisco de Melo Franco (1757-1823), Antônio Pereira de Sousa Caldas
(1762-1814), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838),
Silvério Ribeiro de Carvalho (1746-1843?), José Elói
Otôni (1764-1851), Fr. Francisco de S. Carlos (1768-1829), Francisco
Vilela Barbosa (marquês de Paranaguá) (1769-1846), Luís
Paulino Pinto da França (1771-1824), Paulo José de Melo Azevedo
e Brito (1779-1848), Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), Domingos
Borges de Barros (visconde de Pedra Branca) (1780-1855), João Gualberto
Ferreira dos Santos Reis (1787-185?), Manoel Alves Branco (visconde de Caravelas)
(1797-1854), Joaquim José da Silva (?), Ladislau dos Santos Titara
(1802-1861), Álvaro Teixeira de Macedo (1807-1849?), Antônio
Augusto de Queiroga (1812-1855), Francisco Bernardino Ribeiro (1815-1837),
Joaquim José Lisboa (?).

A máxima parte destes compridos nomes não despertará
na memória do leitor, ainda ilustrado, reminiscência literária
alguma. É como se lhe citassem poetas chineses. Os que não morreram
de todo, de morte aliás merecidíssima, vivem apenas numa vaga
e indefinida tradição, mantida pelos professores de literatura.
Algum raro amador das letras pátrias, mais por curiosidade que por
gozo literário, lerá ainda, ou melhor terá lido, José
Bonifácio, Elói Otôni, Fr. Francisco de S. Carlos, Sousa
Caldas, talvez Pedra Branca. Os outros nem mais essa curiosidade despertam.
Tais como Pinto de França e algum outro, que, idos moços e até
crianças para Portugal, lá se criaram, educaram e deixaram ficar,
são de educação e sentimento portugueses, e português
é o seu estro e estilo poético. Custa a reconhecer nesta lista
um verdadeiro poeta. Na grande maioria, são apenas versejadores de
mais ou menos engenho e arte, os melhores com a erudição poética
e literária comum aos doutos do tempo, com a qual, a custo e raro,
conseguem realçar a penúria do seu estro, sem disfarçar
entretanto a trivialidade do seu estilo poético, repetição
insulsa e fraco arremedo do da metrópole, então igualmente miserável.
Já entrado o século XIX, versejavam copiosamente odes, sonetos,
epitalâmios, cantatas, glosas, liras, epigramas, ditirambos, metamorfoses,
epístolas, enfim toda a farta e extravagante nomenclatura dos séculos
passados. Versejavam sem inspiração nem sentimento, artificialmente,
por ofício ou presunção. Repetiam sem o talento de os
renovar os tropos e imagens da mitologia clássica e as formas estafadas
de uma poética anacrônica e obsoleta. Natividade Saldanha, com
a falsa eloqüência que de bom grado confundimos com poesia, celebra
os feitos e vultos patrícios com reminiscência, epítetos,
figuras e apelidos clássicos e pagão. É “a fatigante
ênfase do ditirambo histórico”, de que fala Morley, aqui
vulgaríssima. A fecundidade poética de alguns é assombrosa.
Ladislau Titara, de 1827 a 1852, publicou oito tomos em formato de 8.º
de Obras poéticas, somando 1819 páginas de versos, e o seu irmão
Gualberto, em seis anos, quatro tomos do mesmo formato. Que exemplo a futuros
escritores!

À imitação do seu Horácio, que sabem talvez de
cor, mas cujo íntimo sentimento mal alcançam, e de cujo talento
andam afastadíssimos, e seguindo velhos hábitos arraigados dos
poetas portugueses, são-lhes motivos de inspiração fatos
e datas de pessoas gradas, a cuja benevolência armam com lisonjas metrificadas,
elogios poéticos, epitalâmios por casamentos, nascimentos e quejandos.

Sousa Caldas é certamente o melhor deles todos, o mais vigoroso lírico
dos predecessores imediatos do Romantismo. Ele fez um trabalho considerável
de erudito e poeta traduzindo em vernáculo os Salmos atribuídos
a Davi.85 Algumas dessas traduções não são em
verdade indignas dos louvores que é de praxe fazer-lhes. Não
teria, porém, idéia muito exata da poesia hebraica quem por
elas houvesse de julgá-la. Mas, ainda excelente, perderia o lavor do
nosso patrício muito do seu valor pelo mesmo desinteresse com que hoje
a maioria dos leitores se dispensam de ler traduções dos poemas
de pura invenção religiosa e de uso devoto. Conquanto se digam
católicos, não é certamente neles que procuram nem acham
a emoção estética de que acaso sintam necessidade. Os
Salmos de Davi, traduzidos pelo padre Sousa Caldas para língua falada
por muitos milhões de católicos, ficaram na primeira e única
edição. Publicados há noventa anos, não são
ainda um livro raro. Escreveu também Sousa Caldas Poesias sacras e
profanas, impressas no tomo II das Obras poéticas. Padecem as primeiras
do mesmo percalço dos Salmos, pois não é mais, se alguma
vez foi, sob as formas e maneiras da poesia profana, odes, cantatas e outras
tais que buscamos a edificação religiosa ou a satisfação
estética para a nossa piedade. De resto, em nossa gente o sentimento
religioso não foi jamais tal que comportasse a espécie de deleite
proveniente da leitura e meditação dos poemas bíblicos
versificados em vulgar. Mais devotos que religiosos, preferimos sempre as
aparências e exteriorizações da religião sob a
forma oral dos sermões ou visual e sensitiva das pompas cultuais.

Como poeta profano, Sousa Caldas se não extrema dos portugueses seus
contemporâneos, se bem valha mais que qualquer dos seus patrícios
coevos. E, salvo os mineiros, mais que todos os poetas seus antecessores.
É mais correto e mais rico versejador que estes, e sobretudo mais vernáculo.
Sob o aspecto da língua pode, entre os brasileiros, passar por distinto.
As suas produções originais consideradas melhores são
a cantata Pigmalião e a ode Ao Homem Selvagem. Àquela infelizmente
se depara na cantata Dido, de Garção, um desfavorável
confronto. A ode Ao homem selvagem, essa é realmente formoso transunto
das idéias de Rousseau, em sustentação das quais foi
escrita. Os seis sonetos que nos deixou Sousa Caldas, sem distinção
alguma, antes lhe desabonam que lhe acreditam o estro.

À imitação das Lettres Persannes, de Montesquieu, Sousa
Caldas escrevera uma obra em prosa de filosofia prática e moral em
forma epistolar. Dela apenas nos restam duas cartas que não bastam
para autorizar um juízo do seu trabalho. Revela-se contudo aí
escritor fácil, castiço e, para o seu tempo, meio e estado,
espírito liberal e tolerante. Versam justamente essas duas cartas sobre
a atitude da Igreja perante os escritos contrários à sua moral
e dogmas, o que o leva a considerar o tema geral geral da livre expressão
do pensamento. Fá-lo Sousa Caldas com aquele latitudinarismo que foi
sempre a marca do ultramontanismo franco-italiano.86

Não pode divergir muito o juízo que devemos fazer de José
Elói Otôni, que, como Sousa Caldas, foi poeta sacro e profano.
Mas o foi com menos talento, e principalmente, com menos vigor. As suas traduções
dos pseudos Provérbios de Salomão e do Livro de Jó, feitos
do latim da Vulgata, são antes paráfrases que traduções.
Não há achar-lhes o sabor que do original parecem guardar algumas
traduções diretamente feitas em prosa ou verso. As poesias originais
de Otôni não destoam da comum mediocridade da poesia sua contemporânea.87
José Elói Otôni nasceu na cidade do Serro, em Minas Gerais,
em 1764. Depois dos primeiros estudos em sua terra, esteve na Itália
e em Portugal, onde ainda voltou duas vezes em outras épocas de sua
vida, vindo a falecer no Rio de Janeiro, num emprego público subalterno,
em 1851.

86V. essas cartas na Ver. Do Inst., III, 144 e 216.

87Jó, traduzido em verso por José Elói Otôni,
etc. Rio de Janeiro, 1852, in 8.º gr., XXXIX, 42, 104 págs. É
longa a lista de produções de Elói Otôni, começadas
a publicar em Lisboa desde 1801, Cf. Inocência, Dic. Bibliográfico,
IV, 309 e seg.

Um frade franciscano fluminense, Fr. Francisco de S. Carlos, compôs
pela mesma época, “em honra da Santa Virgem”, segundo reza
o título, um poema, A Assunção, que é uma das
mais insulsas e aborridas produções da nossa poesia. Em oito
estirados cantos de versos decassílabos, rimados uniformemente em parelha,
monotonia que é aumentada pela pobreza das rimas e geral mesquinheza
da forma, descreve o poeta a Assunção da Virgem desde a ressurreição
do seu túmulo, em Éfeso, até à sua chegada ao
Paraíso, através de várias peripécias maravilhosas
por ele imaginadas. O poema é do princípio ao fim prosaico,
sem se lhe poder tirar algum episódio ou trecho realmente belo, a inventiva
pobre, balda de novidades ou grandeza, a língua mesquinha e vulgar.
Entretanto críticos houve que o acharam digno de rivalizar com o Paraíso
Perdido, de Milton, e a Messíada, de Klopstock, e não duvidaram
de qualificá-lo de “poema eminentemente nacional” e de considerá-lo
como “um dos monumentos que nos legou a geração passada
(do princípio do século XIX) para a formação da
nossa literatura”. Chamar-lhe “poema eminentemente nacional”,
porque introduziu nas suas descrições frutas, plantas e animais
do Brasil e alguns aspectos da natureza brasileira, é equivocar-se
sobre o sentido da expressão. O vezo de cantar as cousas da terra,
de nomeá-las, citá-las ou descrevê-las, às vezes
comovidamente, mas também às vezes sem emoção
alguma, era velho na nossa poesia. Vinha, conforme mostramos, dos fins do
século XVI; praticou-o Durão no Caramuru, cultivaram-no alguns
dos poetas mineiros e outros. Tal sestro revia o despontar do sentimento nativista
e o seu sucessivo desenvolvimento. Ao tempo de Fr. Francisco de S. Carlos
era já tão comum o emprego desse recurso poético, que
nada tinha de particularmente notável. Tanto mais que o usou o franciscano
poeta sem a menor distinção. Apenas continuava uma tradição
criada, da qual há exemplos noutros poetas seus contemporâneos
deste infausto período das nossas letras, como na Discrição
curiosa, do ruim poeta mineiro Joaquim José Lisboa. E como a continuava
sem a relevar por quaisquer virtudes de fundo ou de forma, fazendo apenas
nomenclaturas áridas, não sabendo tirar desse expediente nenhum
partido estético, não lhe pode servir isso de recomendação
ao seu insípido poema. O que era nos seus predecessores novidade interessante,
reveladora de um sentimento, uma emoção, uma inspiração
nova na poesia portuguesa, era nele simples repetição, não
levantada por algum talento superior de expressão.

Destas duas dúzias de poetas menores, o único, além
de Sousa Caldas, que porventura se destaca por uma inspiração
mais sincera e dons de expressão que o extremam, é José
Bonifácio de Andrada e Silva, o José Bonifácio, principal
cooperador da nossa independência nacional. As circunstâncias
que o fizeram e em que foi poeta, lhe explicam o destaque.

José Bonifácio nasceu em Santos, São Paulo, aos 13 de
junho de 1763. Feitos os seus primeiros estudos no Brasil e completos os seus
dezoito anos, passou-se a Portugal, e ali, em Coimbra, se formou em filosofia
e leis. Fundada em 1774, pelo duque de Lafões, a Academia Real das
Ciências de Lisboa, foi, com o patrocínio daquele magnate, seu
membro e depois secretário. Ao mesmo apoio deveu a comissão
especial de estudar nos principais centros científicos europeus ciências
naturais e metalurgia. Dez anos empregou nestes estudos, percorrendo os principais
países da Europa, onde os podia com mais proveito fazer. De volta a
Portugal, foi nomeado intendente geral das minas, com a graduação
de desembargador, recebendo também o grau de doutor em ciências
naturais e o encargo de inaugurar na Universidade de Coimbra uma cadeira de
metalurgia e geognosia, a qual regeu até à invasão francesa
de 1807. Criado, por motivo desta invasão, um batalhão acadêmico,
foi dele José Bonifácio major e logo depois tenente-coronel.
Mais tarde serviu o cargo de intendente de polícia do Porto. Em 1819
retirou-se, com licença, para o Brasil. Vivia em S. Paulo, sua província
natal, quando sobrevieram os acontecimentos de 1820 e 1821 e começaram
no Rio de Janeiro os primeiros movimentos da Independência. Estes despertaram-lhe
o sentimento nacional, acaso adormecido por cerca de quarenta anos de existência
portuguesa. Fez-se parte conspícua nesse movimento, do qual foi, com
D. Pedro, o principal protagonista. Como ministro e conselheiro muito ouvido
do recém fundado império e deputado à sua assembléia
constituinte, teve um grande papel nessa primeira fase da construção
do país sob o novo regime, sendo, pelos seus talentos e capacidades,
a primeira figura dela. A excessiva energia que, como primeiro-ministro, empregou
contra os seus oposicionistas, ia comprometendo a causa que tão bem
servira. Em todo caso motivou a excitação dos ânimos que
produziu os sucessos donde resultou a demissão de José Bonifácio
e o seu exílio.

Era José Bonifácio uma natureza pessoalíssima, de índole
autoritária e violenta. Como todos os políticos do seu temperamento,
tanto era despótico no poder como abominava o despotismo em não
sendo ele o déspota. Nimiamente orgulhoso e demasiado convencido da
sua superioridade, aliás real, no meio político donde o expulsavam,
doeu-lhe profundamente o exílio a que o constrangiam os seus adversários,
desterrando-o da pátria cuja independência, com mais presunção
que razão, exclusivamente se atribuía. Encheu-se de despeito
e raiva contra o soberano, a quem com mau gosto reprochou de ingrato, contra
os políticos seus adversários, e até contra a pátria.
Foi neste estado d’alma de homem que se crê indispensável
e a quem dispensam, de homem soberbo de si e humilhado pelos mesmos a quem
se julgava proeminente e tinha por seus devedores, que repontou em José
Bonifácio, aos sessenta e dois anos, o estro poético de que
já dera amostras quando estabelecido em Portugal. Facit indignatio
versum. Em Bordéus, em cujos arredores se fixara durante o exílio,
publicou o volume das Poesias avulsas, de Américo Elísio, em
1825. A sua forte e não comum cultura literária e científica,
e grandes experiências da vida, fortificaram-lhe o engenho poético.
A paixão real fez o resto. Era um apaixonado e estava apaixonado. Aquela
deu-lhe aos versos, não obstante o ressaibo arcádico que se
lhe descobre no estilo, no feitio e até na alcunha com que se disfarçou
o autor, uma vida, uma emoção, uma sinceridade como se não
encontra em nenhum dos poetas seus patrícios e contemporâneos,
e que fazem dele acaso o único que tem personalidade e que, por isso,
possamos ouvir ainda hoje. Ao contrário de toda a poesia do tempo,
a sua, ao menos a inspirada da sua situação atual, é
pessoal, vibrante das suas paixões políticas e patrióticas
e dos seus mesmos sentimentos egoístas, do seu orgulho, da sua soberba,
da sua vaidade malferida, e que ele não procura dissimular. Soam nelas
queixas, reproches, imprecações e brados pela liberdade que
ele próprio, de essência despótico, recusara aos seus
antagonistas quando no poder. E mais, sem embargo de queixas e exprobrações
que chegam à negação da pátria,

Morrerei no desterro em terra estranha,

Que no Brasil só vis escravos medram:

Para mim o Brasil não é mais pátria,

Pois faltou à justiça.

Vivíssimo amor dela e fervorosos anseios por ela. Ainda quando, por
distrair-se das suas angústias de repúblico despeitado, recorre
aos prazeres reais ou imaginários de que Baco era o patrono clássico,
o pensamento saudoso e amargurado se lhe volve à pátria distante:

Em bródio festivo

Mil copos retinam;

Que a nós não nos minam

Remorsos cruéis;

Em júbilo vivo

Juremos constantes

De ser como dantes

À pátria fiéis

…………………………………..

Gritemos unidos

Em santa amizade

Salve, ó liberdade!

E viva o Brasil!

Sim, cessem gemidos,

Que a pátria adorada

Veremos vingada

Do bando servil.

A sua forte cultura, desempeçada do caturrismo português por
longo comércio com a melhor da Europa, e aliviada do aparelho escolástico
e clássico pela sua paixão, deu-lhe à expressão
poética mais calor, mais vida e movimento do que tinha a do tempo.
Há versos seus que, pela liberdade e personalismo da sua inspiração,
pelo subjetivismo dos sentimentos, exuberância usual da expressão
e despejo de apetites, como que aventam já o Romantismo. A sua ode
A Natureza, no seu sincretismo do pseudoclássico com o que se chamava
romântico nas terras por onde José Bonifácio peregrinou,
é exemplo e testemunho de que nele a nova corrente literária
começava, ainda a despeito seu, a influir. Lembre-se que José
Bonifácio traduziu para nova língua, em verso, o pseudo Ossian,
um dos ídolos do Romantismo.

Manifestações patrióticas como as de José Bonifácio,
mas sem a vibração das suas, são aliás comuns
na poesia desta fase. Raro será dos citados o poeta em que se não
deparem. Ainda portugueses pela retórica, são já brasileiros
pelo coração. Vimos como Caldas Barbosa, predecessor imediato
desses poetas, não obstante as condições em que se lhe
desenvolveu o engenho e em que poetou, conservou um íntimo sentimento
da sua terra e espontaneamente o exprimia. O poema de Fr. Francisco de S.
Carlos superambunda de manifestações do mesmo sentimento. Joaquim
Lisboa consagra à terra natal uma descrição em verso,
da qual aliás só se salva a intenção. Bartolomeu
Cordovil celebra em seus poemas as cousas e melhorias do seu Goiás.
Natividade Saldanha, esse mais que todos, canta as glórias do seu Pernambuco
e os seus heróis, comparando-os aos da poesia e história clássicas.
De envolta, celebrando o Brasil, proclama aos brasileiros:

Ó jovens brasileiros,

Descendentes de heróis, heróis vós mesmos

Pois a raça de heróis não degenera,

Eis o vosso modelo:

O valor paternal em vós reviva

A pátria que habitais comprou seu sangue,

Que em vossas veias pulsa.

Imitai-os, porque eles no sepulcro

Vos chamem com prazer seus caros filhos.

Vilela Barbosa festeja a primavera do seu “pátrio Brasil”,
retoricamente ainda, mas revendo o sentimento, desajudado de engenho, que
o inspirava. O mesmo é exato dizer do Cônego Januário
da Cunha Barbosa, cujo talento era também muito inferior às
suas boas intenções e cuja obra, em todos os gêneros medíocre,
apenas tem o mérito destas. A poesia brasileira deve-lhe entretanto
um inestimável serviço, a compilação e publicação
do Parnaso brasileiro,88 com que salvou de total perda grande número
de produções dos nossos poetas da época colonial.

A atividade destes poetas é toda dos últimos anos do século
XVIII e dos trinta primeiros do XIX. Muitos deles viram as suas obras publicadas,
já em volume, já em coleções ou periódicos,
na mesma época em que as compuseram. As de outros correram manuscritas
ou impressas em folhas avulsas. Afora a tendência assinalada de celebrar
a terra, com um mais vivo sentimento do que se pode chamar a sua capacidade
política, com que continuavam a inspiração nativista
de desde o início da nossa poesia, não há nesta fase
nada que a distinga da ruim poesia portuguesa contemporânea, ou que
a aproxime do que nesta havia de melhor. Excetuados José Bonifácio
e Sousa Caldas, cuja obra é mais sólida e revela mais talento,
os mais são de fato insignificantes. Em José Bonifácio
só tem aliás valor os poemas inspirados da sua paixão
de repúblico fundamente ferido na sua soberba, ou em que ele mais misturou
essa paixão. O resto se não sobreleva à mediocridade
comum. É de um árcade imbuído de filintismo. Predecessores
do Romantismo, não lhe são os precursores, pois bem pouco é
o que se lhes possa descobrir pronunciando o movimento que aqui se ia em breve
iniciar, e do qual alguns destes poetas foram contemporâneos, inadvertidos.
Não souberam sequer continuar os mineiros, dos quais não há
neles outro sinal que o apontado, nem preceder os românticos. Ocupam
apenas um vazio, a fase entre os dois movimentos poéticos, sem o preencherem.
E tomados em conjunto, não se lhes sente na poesia impressão
ou influxo da evolução que desde a chegada da família
real portuguesa se operava aqui, nem mesmo da independência cujos contemporâneos
e testemunhas muitos deles foram. Árcades de decadência, mostraram-se
verdadeiramente impassíveis, muito antes que o desinteligente parnasianismo
houvesse importado de Paris a moda de o ser de caso pensado.

II — PROSADORES

Sob o aspecto literário, tão mesquinha e despicienda como a
poesia foi a prosa da fase que precedeu imediatamente o Romantismo. Nenhuma
grande ou sequer notável obra literária produziu. Foi, porém,
como a poesia, fértil em escrevedores de assunto que só remota
e subsidiariamente poderão dizer com a literatura: economia política
e social, direito público e administrativo, questões políticas,
comércio e finanças. A história, que também fizeram,
a trataram em mofino estilo, e mesquinhamente, à moda de anais e crônicas.
O número relativamente grande dos que destes assuntos e de outros congêneres
escreveram e a cópia dos escritos publicados neste período,
são um documento precioso da nossa vida intelectual e da nossa cultura
nessa época. Se os poetas, com raras exceções, ficaram
alheios às circunstâncias precursoras da independência,
os prosadores, ao contrário, mostram-se influenciados e interessados
pelo que aqui se passava, e, de boa vontade e ânimo puro, lhe trouxeram
ao seu concurso. Toda a sua obra, mal construída sob o aspecto literário,
com pouco ou sem algum mérito de fundo ou forma que a fizesse sobreviver
ao seu tempo, ou que lhe desse nele qualquer proeminência literária,
obra de publicistas e de jornalistas de ocasião, apontando a fins imediatamente
práticos, serviu ou procurou servir à constituição
de nossa nação, a qual já tinha como certa e definitiva.
Não se pode todavia incorporar ao nosso patrimônio propriamente
literário.

Uma das manifestações espirituais mais interessantes do sentimento
público brasileiro no momento que precedeu a independência é
o aparecimento, em 1813, no Rio de Janeiro, do Patriota, jornal literário,
político, mercantil, etc. Fundou-o e dirigiu, e publicou-o na Impressão
Régia, criada em 1808 pelo príncipe regente, Manoel Ferreira
de Araújo Guimarães, polígrafo baiano, formado em Portugal,
matemático, engenheiro, economista, poeta e jornalista, homem, como
tantos outros naquele fecundo período da nossa formação
nacional, cheio de boa vontade. Como com muita razão reparava outro
publicista nacional, Hipólito José da Costa Pereira, o famoso
redator do célebre Correio Brasiliense, de Londres, que à só
publicação de um jornal com o nome de Patriota era um sinal
dos tempos. “Há dez anos, escrevia ele no seu Correio, em 1813,
estando a Corte em Lisboa, que ninguém se atreveria a dar a um jornal
o nome de Patriota, e a Henríada, de Voltaire, estava no número
dos livros que se não podiam ler sem correr o risco de passar por ateu,
pelo menos por jacobino. E temos agora em tão curto espaço já
se assenta que o povo do Brasil pode ler a Henríada, de Voltaire, e
pode ter um jornal com o título de Patriota, termo que estava proscrito
como um dos que tinham o cunho revolucionário”.89 Nos dois anos
completos que durou, foi o Patriota um centro de convergência do trabalho
mental brasileiro, particularmente aplicado ao estudo das cousas do país,
e nele colaboraram, com alguns dos poetas citados, Pedra Branca, Silva Alvarenga,
José Bonifácio e todos os homens doutos do tempo que deixaram
qualquer sinal de si nas nossas letras, marqu&eecirc;s de Maricá, Camilo
Martins Lage, Pedro Francisco Xavier de Brito, Silvestre Pinheiro Ferreira,
José Saturnino da Costa Pereira, etc. O Brasil e tudo quanto lhe interessava
o conhecimento e o progresso eram os seus assuntos prediletos.

José de Sousa de Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830), José
da Silva Lisboa (visconde de Cairu) (1756-1835), Baltazar da Silva Lisboa
(1761-1840), Luís Gonçalves dos Santos (1764-1844), Mariano
José Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) (1773-1848),
José Feliciano Fernandes Pinheiro (visconde de S. Leopoldo) (1774-1847),
além de somenos nomes com que facilmente se alongaria esta lista, formam
como prosistas o exato pendant dos poetas nomeados seus contemporâneos.
Tem, porém, sobre estes a superioridade de uma obra que ao tempo foi
mais útil e serviu melhor à causa da nação e particularmente
da sua cultura. A de alguns deles tem ainda o mérito de haverem iniciado
qualquer cousa na cultura ou nas letras brasileiras: assim a de Cairu estréia
aqui os estudos econômicos e de direito público e mercantil,
a de Maricá a literatura moralista. É o que lhes dá direito
ao menos à menção dos seus nomes na história da
nossa literatura. Com exceção de um ou outro, não são
propriamente escritores com idéias e dons de expressão literária,
ou que representem o espírito ou o sentimento do seu povo, nem as suas
obras têm qualidades que nos permitam lê-las sem fastio e displicência
e pelas quais se incorporassem no patrimônio das nossas boas letras.
São, porém, expoentes ingênuos e expositores sinceros
da cultura da sua época no Brasil, seus promotores e fautores aqui.
Tais são principalmente o visconde de Cairu, o marquês de Maricá,
o visconde de S. Leopoldo e o mesmo Aires de Casal, se não fora português.

José da Silva Lisboa, a quem seus grandes méritos literários
e relevantes serviços públicos mereceram o título de
visconde de Cairu, pelo qual é mais conhecido, é certamente
pela extensão e solidez dos seus conhecimentos, e fecundidade do seu
labor, a figura mais proeminente das nossas letras, tomada a expressão
no seu sentido mais lato da fase que vamos historiando. Nasceu na Bahia em
1756, completou os estudos secundários e fez superiores em Portugal,
onde lecionou grego e hebraico no Colégio das Artes, de Coimbra, e
após uma longa e bem preenchida existência no Brasil como professor,
publicista, funcionário público, magistrado e parlamentar, faleceu
no Rio de Janeiro em 1836. O seu mérito é muito maior como jurista,
economista, comercialista e publicista ou sabedor e escritor de questões
públicas, políticas e administrativas, do que como literato,
se bem tenha sido o visconde de Cairu um dos brasileiros de mais vasta literatura.
Contemporâneo de Adam Smith, o criador da economia política,
parece foi o nosso patrício o primeiro que nas línguas neolatinas
escreveu dessa nova ciência, divulgando desde 1798 as idéias
do pensador inglês. As três principais obras de Silva Lisboa sobre
a matéria são Princípios de direito mercantil (1798-1803),
Princípios de economia política (1804) e Estudos de bem comum
(1819-1820). Conta-se que Monte Alverne, mais que seu adversário teórico,
seu inimigo pessoal e inimigo rancoroso como saía ser, entrando na
sua aula de filosofia do seminário de S. José no dia da morte
de Cairu, com um gesto desabrido, com que acaso escondia o sentimento, declarara
“que não dava aula porque morrera um grande homem, apesar de que
a sua cabeça não passava de uma gaveta de sapateiro”. Também
a antipatia, em que pese a Carlyle, aguça a inteligência e facilita
a compreensão. A frase atribuída ao soberbo frade90 traduz na
sua vulgaridade uma impressão exata da copiosa, desigual e disforme
obra do douto e laboriosíssimo escritor que foi Cairu. Consta-lhe a
produção impressa ou manuscrita de setenta e sete números
de obras maiores ou menores de direito, economia política ou social,
história, questões do dia e públicas, didascálica,
jornalismo, polêmica, pedagogia, moral.91 Como composição,
fatura, estilo, esta produção é irregular, desigual e
ainda extravagante e disparatada, revendo à pressa e até à
precipitação do trabalho, a excitação ou a paixão
do momento, o produto de ocasião. A literatura dela só podia
aproveitar pequeníssima parte, a História dos principais sucessos
políticos do Brasil por exemplo, a Vida de Wellington e pouco mais.
Esta mesma, porém, carece de predicados literários que a recomendem
à nossa estima. Em todos os gêneros produtos das circunstâncias,
as obras de Cairu não sobrevivem às que as produziram.

Mariano José Pereira da Fonseca, quase somente conhecido pelo seu
título de marquês de Maricá, vinha do tempo dos últimos
vice-reis do Brasil, um dos quais o Conde de Resende, sob a inculpação
de inconfidente, o teve preso por mais de dois anos. No vice-reinado de Luís
de Vasconcelos fundaram alguns homens de estudo e letras do Rio de Janeiro,
o doutor Manoel Inácio da Silva Alvarenga, mestre régio de retórica
e conhecido poeta da plêiade mineira, João Marques Pinto, mestre
régio de grego, o médico Jacinto José da Silva, o nosso
Mariano José Pereira da Fonseca e outros letrados, uma sociedade literária.
As reuniões periódicas destes homens de letras, em tempos em
que ainda estava fresca a lembrança da chamada Conjuração
Mineira, cujos sócios eram em maioria também homens de letras,
foram havidas por suspeitas, dissolvida a sociedade e presos e processados
os seus membros.

Mariano da Fonseca nasceu no Rio de Janeiro em 1773, e na mesma cidade faleceu
em 1848. Formou-se em matemática e filosofia em Coimbra, o que correspondia
à profissão de engenheiro. Como aconteceu geralmente a todos
os brasileiros de instrução e mérito da época
da Independência, teve importante situação política
e social no primeiro reinado, distinções honoríficas
e altos cargos, senador, conselheiro de Estado. Aos quarenta ou quarenta e
um anos começou a publicar no Patriota, de Araújo Guimarães,
as suas Máximas, pensamentos e reflexões, sob o pseudônimo
de Um brasileiro. Porventura para lhes dar o peso da autoridade de maior experiência,
mais tarde, em nova edição que delas fez, declarou havê-las
escrito dos sessenta aos setenta e três. Norberto lhe reparou no equívoco
e o corrigiu com razão.92 De 1837 a 1841 publicou, já sob o
título de marquês de Maricá, as suas Máximas, pensamentos
e reflexões em três partes respectivamente, distribuindo-as gratuitamente.
Como ele tenha depois facultado a todos a reimpressão das suas obras,
devemos crer que esta rara generosidade obedecia a um pensamento de interesse
pela doutrinação moral dos seus patrícios. O marquês
de Maricá, como La Rochefoucauld, com quem mui indevidamente o comparou
uma crítica mais patriótica que esclarecida, não escreveu
em sua vida senão máximas. Ele próprio as computou, na
última coleção que delas imprimiu, em 1845. É,
pois, segundo a qualificação moderníssima e depois do
autor do Compêndio do peregrino da América e de Matias Aires,
o primeiro moralista da nossa literatura. Não tinha, porém,
uma filosofia sua ou sequer alheia afeiçoada pela sua própria
experiência e meditação. Repete os lugares comuns da ética
contemporânea, mistura de cristianismo sentimental e de liberalismo
político. A sua psicologia, escolástica e vulgar, jamais vai
ao fundo das cousas, nem descobre na alma humana novidades ou aspectos recônditos
ou inéditos. À sua observação falta finura e penetração,
ou originalidade. Faz parte da vulgar sabedoria comum e ele não a soube
relevar pelos dons singulares de expressão que o gênero requer,
e que são porventura o principal mérito dos seus grandes modelos
franceses. Máximas e pensamentos, valem talvez principalmente pela
forma que revestem. São o imprevisto, o ressalto, junto à concisão
e à justeza desta que os valoriza. O escolho do gênero é
a banalidade, clara ou mascarada com o paradoxo ou a singularidade. Neste
escolho bateu freqüentemente o marquês de Maricá. Nem por
isso perdem as suas Máximas a importância que lhe assinalei de
primeiro exemplar do moralismo leigo e literário em a nossa literatura.
E para o comum dos leitores que dispensam no assunto refinamentos, sutilezas
de idéias e expressão, podem ser leitura agradável e
proveitosa, porque o essencial é são e a forma escorreita, sem
rebusca indiscreta de purismo e já do nosso tempo e gosto.

José Feliciano Fernandes Pinheiro, visconde de S. Leopoldo, nascido
em Santos (S. Paulo) em 1774 e falecido em Porto Alegre (Rio Grande do Sul)
em 1847, foi sujeito considerável pela sua ilustração
e alta situação social e política no reinado do primeiro
imperador. Formado em direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal fez
os seus primeiros trabalhos literários, traduções e compilações
de assuntos de imediata utilidade prática, ali publicados de 1799 a
1801. No Brasil, após haver exercido diversas comissões de serviço
público, foi eleito em 1821, deputado às Cortes da nação
portuguesa quando da reforma governamental por que esta passou, e como tal
tornou a Portugal. Espírito conservador e moderado, foi dos poucos
deputados brasileiros que juraram a constituição por elas feita.
De volta ao Brasil em seguida à declaração da Independência,
foi aqui deputado geral, presidente de província, ministro do Império,
senador e ocasionalmente encarregado de uma missão de caráter
diplomático. Por estes serviços teve o título de visconde
de S. Leopoldo, nome por que ficou quase exclusivamente conhecido. Além
de memórias biográficas de compatriotas ilustres ou sobre limites
do Brasil e ainda monografias interessantes para a nossa história literária,93
escreveu uma obra notável para o tempo e ainda hoje estimável,
Anais da Capitania de S. Pedro.94 Como livro, quero dizer, sob o puro aspecto
bibliográfico, o mais bem feito dessa época, o mais perfeito
de composição e estrutura. Não obstante algumas incorreções
de linguagem, galicismos e alguns mais graves defeitos de estilo, a sua redação
revê o homem educado em Portugal e a leitura dos portugueses. A língua
é geralmente melhor do que aqui comumente escrita. Como historiador
distingue-se já o visconde de S. Leopoldo por bom critério histórico,
aptidões críticas, capacidade de apurar os sucessos nos documentos
autênticos de preferência originais ou inéditos, informação
segura das fontes ou informes impressos do assunto ou a ele aproveitáveis,
arte de dispor e referir os fatos e, notavelmente, menos prolixidade como
era, e continuou a ser, de costume. As suas Memórias, publicadas postumamente
na Revista do Instituto Histórico (tomos 37-38), conquanto lhes falte
o interesse das revelações inéditas e mesmo das indiscrições,
que principalmente dão relevo e pico a este gênero de literatura,
sem que lho levante também um estilo mais literário, são
todavia, até pela raridade delas nas nossas letras, estimáveis.

Todos os mais autores de prosa desta mesma fase ainda menos consideráveis
são. Nenhum é um escritor que se faça todavia ler com
aprazimento.

Capítulo VIII

O ROMANTISMO E A PRIMEIRA GERAÇÃO ROMÂNTICA

TIVESSE O PRÍNCIPE regente de Portugal, logo depois rei D. João
VI, o propósito de preparar o Brasil para a independência, não
haveria porventura procedido tão atilada e eficazmente. Por uma série
de medidas econômicas e políticas, mal chegado ao Brasil havia
ele começado a reforma completa do velho regime colonial, naquilo justamente
que mais devia concorrer para despertar nos brasileiros o sentimento da sua
personalidade e importância e lhes acoroçoar veleidades porventura
latentes de autonomia e emancipação. A autonomia nos dera de
fato a transplantação da realeza para cá, a elevação
do Brasil a reino e a ereção do Rio de Janeiro em capital da
monarquia portuguesa. A emancipação surgiria do conflito dessa
autonomia com a insensata contrariedade que lhe criou a reação
recolonizadora portuguesa.

Da geração que testemunhou, acompanhou e até fomentou
ou promoveu os sucessos da nossa independência política, surgiu
um seleto grupo de homens de estudo e letras que lhe completaram o feito insigne,
dando à recente nação o abono indispensável da
sua capacidade de cultura. É esse grupo que, sob o aspecto literário,
chamo a primeira geração romântica, quero dizer os escritores
que, influenciados pelo Romantismo europeu e seguindo-lhe aqui os ditames,
apareceram de 1836 em diante e cuja atividade se dilatou por um quarto de
século.

Além de Monte Alverne (1784-1858), que foi de algum modo um precursor
do movimento como o mais escutado preceptor filosófico dos seus principais
fautores, e de Magalhães, o seu iniciador, mormente constituem essa
geração intelectual, Porto Alegre (1806-1879), amigo e êmulo
de Magalhães; Teixeira e Sousa (1812-1861); Pereira da Silva (1817-1898);
Varnhagen (1819-1882); Norberto da Silva (1820-1891) e, o maior deles, Gonçalves
Dias (1823-1864). Outros nomes podiam alongar esta lista, nenhum, porém,
com a significação e importância de quaisquer destes.

Distingue-se esta geração pela versatilidade dos talentos,
variedade da obra e propósito patriótico da sua atividade mental.
Quase todos eles, senão todos, são poetas, dramaturgos, novelistas,
eruditos, críticos, publicistas, e Porto Alegre será demais
pintor e arquiteto. No seu ardor pelos créditos intelectuais de sua
pátria, parecia quererem completa a sua literatura; que se não
limitasse, como até então, quase exclusivamente à poesia.

Quando todos eles se faziam homens, o cônego Januário da Cunha
Barbosa, que com grandes créditos de literato e orador sagrado vinha
da geração anterior, zeloso dos interesses mentais da novel
pátria, fundou com outros letrados e homens de boa vontade o Instituto
histórico, geográfico e etnográfico brasileiro. Com a
publicação do Parnaso Brasileiro (1829), foi este o melhor serviço
prestado por Januário Barbosa, não só às nossas
letras, mas à nossa cultura. Teve o Instituto histórico, em
verdade, o papel de uma Academia que, sem restrições de especialidades,
se abrisse a todos as capacidades nacionais e a todos as lucubrações
por pouco que interessassem ao Brasil. E assim, de propósito ou não,
deu ao movimento espiritual que se aqui operava uma base racional no estudo
da história, da geografia e da etnografia do país, compreendidas
todas largamente. Os principais românticos foram todos seus sócios
conspícuos e colaboradores da Revista que desde 1839 começou
o Instituto histórico a publicar trimensalmente. A todos os literatos
brasileiros do tempo serviu esta instituição de traço
de união e confraternidade literária e de estímulo.

Além de patriótica, ostensivamente patriótica, a primeira
geração romântica é religiosa e moralizante. Estas
feições fazem que seja triste, como aliás será
a segunda. Somente a tristeza desta é a do ceticismo, do desalento
e fastio da vida, segundo Byron, Musset, Espronceda e quejandos mestres seus.
A melancolia de Magalhães e seus parceiros é a tristeza de que
penetrou a alma humana o sombrio catolicismo medieval. Na alma portuguesa,
donde deriva a nossa, aumentou-a a forçada beataria popular, sob o
terror da Inquisição e o jugo, acaso pior, do jesuitismo. Rematava-a
o descontentamento criado nesses brasileiros pela desconformidade entre as
suas ambições intelectuais e o meio. Já em prosa, já
em verso, todos eles lastimam-se da pouca estima e mesquinha recompensa do
gênio que, parece, acreditavam ter e do desapreço do seu trabalho
literário. Não tinha aliás razão. Era inconsiderado
pretender que um povo em suma inculto, e de mais a mais ocupado com a questão
política, a organização da Monarquia, a manutenção
da ordem, de 1817 a 1848 alterada por todo o país, cuidasse de seus
poetas e literatos. Não é, todavia, exato que, apesar disso,
os descurasse por completo. O povo amava esses seus patrícios talentosos
e sabidos, revia-se gostosamente neles, acatava desvanecido os louvores que
mereciam aos que acreditava mais capazes de os apreciar. Supria-lhe esta capacidade,
o sentimento patriótico restante dos tempos ainda próximos da
Independência, e a ingênua vaidade nacional com ela nascida. O
imperador começou então o seu mecenato, nem sempre esclarecido,
mas sempre cordial, em favor dessa geração que lhe vinha ilustrar
o reinado. D. Pedro II, que por tantos anos devia ser a única opinião
pública que jamais houve no Brasil, iniciou por esse tempo a sua ação,
ao cabo utilíssima, na vida intelectual da nação. Prezando-se
de literato e douto, apreciou pelo seu povo incapaz de fazê-lo, e acoroçoou
e premiou esses seus representantes intelectuais. Se não todos, a maioria
da primeira geração romântica, com muitos outros depois
dela, em todo o reinado, mereceram-lhe decidido patrocínio. Revestia
este não só a forma de sua amizade pessoal, que aliás
nunca chegava ao valimento, porém a mais concreta e prestadia de empregos,
comissões, honrarias. E, louvados sejam, não lhe foram ingratos.
As principais obras em todos os gêneros dessa época são-lhe
dedicadas, em termos que revêem o reconhecimento da munificência
imperial. Todos eles foram fervorosos e sinceros monarquistas, menos aliás
por amor do princípio que do monarca. E se não pode malsinar-lhes
ou sequer suspeitar-lhes a dedicação, sabendo-se quão
escrupuloso era o imperante nos seus favores e quão parco era deles.
Mas a vaidade, infalível estigma profissional, destes literatos, se
não contentava desta alta estima; quisera mais, quisera o impossível,
que, como nas principais nações literárias da Europa,
dessem às letras aqui consideração, glória e fortuna.
Foi esse, aliás, um dos rasgos do Romantismo, o exagero da vaidade
nos homens de letras e artistas, revendo a intensidade do descomedido individualismo
da escola. Os dessa geração, porém, ainda tiveram pudor
de não aludir sequer à feição material das suas
ambições, pudor que, passado o Romantismo, desapareceria de
todo, principalmente depois da emigração de literatos estrangeiros,
industriais das letras, e da invasão do jornalismo pela literatura
ou da literatura pelo jornalismo. A desconformidade entre aqueles nossos primeiros
homens de letras e o meio, essa, porém, era real, continuou e acaso
tem aumentado com o tempo. E basta para, com a mofineza sentimental que, sobre
ser muito nossa, era também da época, explicar o matiz de tristeza
da primeira geração romântica, no tom geral do seu entusiasmo
político literário. Aumentando na segunda geração
romântica, nunca mais desapareceria esse matiz das nossas letras, sob
este aspecto expressão exata do nosso humor nacional.

Ao contrário do que até então se passava, a educação
literária da maioria dos escritores dessa geração se
fizera aqui mesmo. Por desgosto da metrópole, entraram a abandonar-lhe
a escola, até aí assídua e submissamente freqüentada.
Falavam, pois, a língua que aqui se falava, e naturalmente a escreviam
como a falavam, sem mais arremedo do casticismo reinol. A que escreveram,
e não é por ventura este um dos seus somenos méritos
do ponto de vista da nossa evolução geral, mérito que
avultará quando de todo nos emanciparmos literariamente de Portugal,
não é mais a que aqui antes deles se escrevia. É outro
o boleio da frase, a construção mais direta, a inversão
menos freqüente. Usam mais comumente dos tempos compostos dos verbos,
à francesa ou à italiana. Refogem ao hábito clássico
português de nas suas orações de gerúndio começá-las
por ele. Colocam os pronomes oblíquos segundo lhes pede o falar do
país e não conforme a prosódia portuguesa, que entra
então a ser aqui motivo de chufa e troça. Usam de extrema e
até abusiva liberdade no colocá-los. Dão maior extensão
a certas preposições. A forma do modo finito seguido de um infinitivo
com preposição à maneira portuguesa, preferem a do infinito
seguido de gerúndio. E propositadamente, ou propositalmente, como escrevem
segundo aqui soa, empregam vocábulos de origem americana ou africana,
já perfilhados pelo povo. Aceitam as deturpações ou modificações
de sentido das formas castiças aqui popularmente operadas, e começam
a dar foros de literários a todos esses vocábulos ou dizeres,
de fato lidimamente brasileiros e para nós vernáculos, por serem
de cunho do povo que aqui se constituía em nação distinta
e independente. São, entretanto, parcos de estrangeirismos, quer de
vocabulário, quer de sintaxe. O fundo da língua conserva-se
neles mais puro, embora sem afetação de casticismo. Sua linguagem
e estilo são por via de regra nativos, infelizmente até sem
as qualidades essenciais à boa composição literária.
Sempre crescendo e avultando segue esta maneira, que começou com eles,
até depois da segunda geração romântica. Só
na segunda fase do que chamamos modernismo, com a introdução
dos estudos filológicos segundo o seu novo conceito, e da sua reação
sobre o da língua nacional, consoante os mesmos programas do ensino
oficial entraram a chamar à nossa, inicia-se aqui um movimento em contrário
àquela indiferença pelo apuro desta. Começa-se então
a fazer timbre de escrever bem segundo os ditames gramaticais e os modelos
chamados clássicos. A mesma crítica, que até aí
descarava este relevante aspecto da obra literária, principia a prestar-lhe
atenção e a notá-lo, ainda quando ela própria
o desatende. Não sei quem ao cabo tem razão. Foi mais firme
já o meu parecer da necessidade de conservarmos o português castiço
estreme quanto possível nas modificações que o seu novo
habitáculo americano lhe impõe. Começo a convencer-me
da impossibilidade de tal propósito. Não o poderíamos
realizar senão artificialmente como uma reação erudita,
sem apoio nas razões íntimas da mentalidade nacional e com sacrifício
da nossa espontaneidade e originalidade. Nem teria tal reação
probabilidade de definitivamente vingar numa população que será
amanhã de muitos milhões, originariamente de várias e
diversas línguas. Não se pode admitir que a gente brasileira
se submeta a uma disciplina lingüística de todo oposta aos instintos
profundos das suas necessidades de expressão determinadas pela variedade
de seus falares ancestrais e pelas exigências imediatas da sua situação
social e moral.

Apenas a literatura não deve esquecer que ela é, sobre o aspecto
da expressão, uma força conservadora. Sem oferecer resistência
caprichosa e desarrazoada à natural evolução da língua
que lhe serve de instrumento, cumpre-lhe não se lhe submeter enquanto
os seus resultados não tiverem a generalidade de fatos lingüísticos
indisputáveis. A intromissão inoportuna da literatura nessa
evolução, sobretudo para lhe aceitar indiscretamente todas as
novidades inventadas com pretexto dela, não pode senão prejudicá-la
naquilo que justamente é importante da sua existência, a sua
faculdade de expressão. Se ela, porém, por outro lado, se ativesse
rigorosamente ao casticismo português, no genuíno sentido deste
vocábulo, o brasileiro acabaria por ficar alheio aos seus escritores
e estes aos seus patrícios, por motivo da descorrelação
entre a língua falada por uns e a escrita por outros.

E é talvez esta a mais íntima causa da falta de simpatia —
agora talvez maior do que dantes — entre os nossos escritores e o nosso
povo. Nesta sociedade descomedidamente igualitária, como talvez outra
não exista, o escritor e o público vivem inteiramente alheados
um do outro pelo pensamento e pela expressão. A reação
vernaculista dos maranhenses durante justamente esta primeira fase romântica,
não obstante os preclaros modelos de Sotero dos Reis, João Lisboa,
Odorico Mendes e Gonçalves Dias, ficou estéril. Destes nomes,
o único que sobrevive na memória do povo é o de Gonçalves
Dias, o poeta dos versos simples e populares da Canção do Exílio.

Também o segredo da popularidade persistente dos poetas da segunda
geração romântica não está somente em que
eles foram os de mais rico e sincero sentimento que jamais tivemos, mas em
que o exprimiram numa língua e forma poética ao alcance de todos,
sem artifício de métrica nem arrebiques de estilo. O mesmo acontece
com os principais romancistas dessa fase. Macedo e Alencar, como o documentam
os registros da Biblioteca Nacional e vos informarão os livreiros e
mais que tudo o provam as suas constantes reimpressões, continuam a
ter mais leitores do que os romancistas de hoje, apesar de não terem
por si os reclamos do noticiário camaradeiro e das parcerias de elogio
mútuo.

Os nossos escritores da primeira geração romântica, se
não menos artistas, são também em suma menos artificiosos
que os do mesmo período em Portugal. A sua arte literária, quando
a têm, é ingênua e canhestra, o que lhes dá ao estilo
algo, não de todo desagradável, dos primitivos. Com exceção
do pomposo Porto Alegre e de certos poetas menores, como Norberto em algumas
das sua infelizes tentativas épicas e dramáticas, os melhores
deles escrevem se não singelamente, o que parece incompatível
com o nosso gênio literário, todavia em estilo menos torcido
e enfático que o geral da ex-metrópole, e do qual não
escaparam no mesmo período os melhores dali, porventura com a única
exceção relevante de Garrett. Esta relativa simplicidade é
uma das virtudes mais estimáveis dos bons poetas da segunda geração
romântica. Pecam, entretanto, os de ambas estas gerações
pelo excesso de sentimentalismo e de romanesco que, principalmente na ficção
em prosa, roça neles pela pieguice e pelo amaneirado do pensamento
e da expressão. Não tem ainda as preocupações
de forma que chamamos de artísticas. E não eram desses artistas
natos da palavra escrita que, sem intenção nem rebusca, acham
a forma excelente. Apenas Gonçalves Dias na maior parte da sua obra,
e Porto Alegre no seu tão mal julgado quanto desconhecido Colombo,
e alguma vez na sua prosa característica, a encontraram. Porto Alegre,
cujo bom gosto era menos apurado que o de Gonçalves Dias, prejudicou-se
no entanto pela sua inclinação bárbara, mas muito da
índole literária nacional, ao pomposo e reluzente do estilo
e ao rebuscado do pensamento e da forma.


Capítulo IX

MAGALHÃES E O ROMANTISMO

FAVORECIDO PELA AUTONOMIA de fato resultante da mudança da Corte portuguesa
para cá, pelo apartamento intelectual da metrópole começado
a operar com a criação de faculdades, escolas, institutos de
instrução e da imprensa, e, sobretudo, pela total independência
política proclamada em 1822, e efervescência cívica por
ela produzida, manifestou-se no Brasil, por volta de 1840, o movimento de
reforma literária chamado o Romantismo.

É aos Suspiros poéticos e saudades, coleção de
poesias publicada em Paris, em 1836, por Domingos José Gonçalves
de Magalhães, que ele próprio, os críticos e leitores
contemporâneos atribuíram o início do Romantismo aqui.
Razoavelmente se não pode discordar deste conceito. O leitor de hoje,
entretanto, só com esforço e aplicação encontrará
nesse livro o que plenamente o justifique. E somente da comparação
com o que era aqui a poesia antes dele, lhe virá a certeza de que não
é errado.

Tem um duplo caráter a inspiração desses poemas, patriótico
e religoso. O patriotismo, significando com esta palavra não só
o amor e devoção da terra, mas o sentimento da sua distinção
de Portugal, já era, desde os mineiros, e aumentada pelos poetas difíceis
de dominar que lhes sucederam, a feição particularmente notável
da poesia brasileira. Era aliás apenas o desenvolvimento do nativismo
nela manifestado desde o século XVII, que se acentuava na proporção
do progresso do país. A religião, ou melhor a religiosidade
poética de Magalhães, era o produto direto da revivescência
religiosa operada na Alemanha pelo idealismo filosófico de Kant e Hegel,
em França pelo sentimentalismo católico de Chateaubriand. E
mais o resultado imediato da influência de Monte Alverne, o facundo
professor dessa filosofia, mestre muito querido e admirado do poeta.

Em nenhum destes dois rasgos da poética de Magalhães há
mais que traços, como se diria em química, do movimento de emancipação
estética desde o fim do século anterior iniciado na Europa.
Traços iguais encontram-se em José Bonifácio e, apenas
mais apagados, em Sousa Caldas. O impressionismo poético dos Suspiros
e saudades, revelado no livro por poemas inspirados das ruínas romanas,
da meditação sobre a sorte dos impérios, dos grandes
espetáculos da natureza ou das magníficas fábricas humanas,
gerando o assombro da grandeza de Deus e dos prodígios do Cristianismo,
a nostalgia curtida entre túmulos e ciprestes, a cisma dos destinos
da pátria, nas paixões humanas e no nada da vida, todos temas
aqui novos, já é certamente, por mais de um aspecto da inspiração
e da expressão, romântico, como romântico é o subjetivismo
de que procede essa impressão poética. Mas o é sem clara
consciência ou intuição profunda. Se do prefácio
que sob o vocábulo de “Lede” lhe pôs o poeta, páginas
de pouco valor filosófico ou estético, algo pode tirar-se é
que o poeta não concebia a poesia senão como um “aroma
d’alma”, que “deve de contínuo subir ao Senhor”;
“som acorde da inteligência” “deve santificar as virtudes
e amaldiçoar o vício”. “O poeta, resume ele em um
vazio anfiguri, empunhando a lira da Razão, cumpre-lhe vibrar as cordas
eternas do Santo, do Justo e do Belo.” E logo abaixo exprobra “à
maior parte dos nossos poetas” e “ao mesmo Caldas, o primeiro dos
nossos líricos” “não se terem apoderado desta idéia”.
Essas páginas anódinas, mal pensadas e mal escritas, nada têm
do ardor dos iniciadores ou neófitos da nova escola fora daqui. Delas
se não deduz nenhuma idéia clara da estética do poeta
e do seu conceito dessa escola. Procurou dá-la desde o aparecimento
do livro, Sales Tôrres Homem, o futuro Visconde de Inhomirim, que então
ainda fazia literatura, num artigo da Niterói, Revista Brasiliense,
ao tempo publicada em Paris. Apenas, porém, com um pouco mais de clareza
que o mesmo poeta. Sales Tôrres Homem via o Romantismo como uma reação
contra o paganismo e a literatura deste derivada, assim como via que da mesma
fonte cristã bebiam inspirações “não só
a poesia, como as artes e a filosofia, irmã da teologia”. E põe
de manifesto a inspiração religiosa e patriótica do poeta,
que é também a da sua crítica. Como a patriótica,
a inspiração religiosa não era uma novidade na poesia
brasileira. Estavam frescos os exemplos de Sousa Caldas e de Elói Otôni,
além de mostras acidentais de outros poetas contemporâneos destes
ou seus antecessores. Deus, sob vários vocábulos (até
o de Tupá: “Tupá, ó Númen dos meus pais”,
de Firmino Rodrigues Silva) e perífrases, bem como a religião
e seus mistérios entravam freqüentemente em tropos, imagens, figuras
e em toda a poética daquela fase intermédia. Erraria quem destas
manifestações inferisse um íntimo e forte sentimento
religioso nesses poetas e no povo cujos órgãos eram. É
um simples vezo, um cacoete literário, oriundo da sua educação,
inteiramente eclesiástica. Desde que se iniciou, com o primeiro estabelecimento
dos portugueses, até o começo da segunda metade do século
XIX, a instrução aqui foi toda e exclusivamente dada por padres
nas escolas, colégios e seminários, e ainda nas famílias.
Os homens mais instruídos, os letrados que encheram as listas de sócios
das academias literárias coloniais, eram em sua maioria padres ou frades,
doutores em cânones, homens de igreja em suma. A forma oral e popular
da literatura tinha a sua mais alta, mais freqüente e mais autorizada
expressão no sermão. Desta educação recebida,
na escola e fora dela, de eclesiásticos, mais do que um real sentimento
religioso resultou o hábito de expressões de caráter
religioso não só em a nossa conversação corrente,
mas em nossos escritos, discursos, poesias. São antes tropos, frases
feitas, locuções proverbiais que a expressão de verdadeiro
sentimento religioso. Justamente nesta fase, os dois sentimentos, patriótico
e religioso, misturavam-se aqui. Nas crises nacionais graves, como nos transes
individuais, o espírito humano apavorado, revendo a origem deste sentimento,
faz-se religioso. Aqui, demais, eram em grande número eclesiásticos
os principais adeptos e fatores da revolução que se operava.
Do púlpito, as vozes mais ou menos eloqüentes de Januário
Barbosa, de S. Carlos, de Sampaio e de Monte Alverne pregavam ao mesmo tempo
pela religião e pela pátria. Nas aulas, mestres, em maioria
clérigos regulares ou seculares, juntavam às suas lições
fundamentalmente religiosas as suas excitações patrióticas.
No Rio de Janeiro, o principal centro de cultura e de vida literária
do país, como o principal foco do movimento da independência
nacional, Fr. Francisco de Monte Alverne fazia do púlpito ou da cátedra
estrado de tribuno político, misturando constantemente, com eloqüência
retumbante, havida então por sublime, a religião e a pátria.
De resto, o Romantismo europeu, mesmo na Alemanha, foi em seus princípios,
não só uma reação religiosa, mas até católica.
Esta sua feição bastava para o tornar simpático aqui,
onde o elemento eclesiástico era mentalmente preponderante.

Foi este meio e momento que produziu Magalhães. Nascido em 1811 no
Rio de Janeiro, a sua infância, adolescência e juventude passaram-se
na quadra mais ativa e efervescente da nossa vida política, que justamente
então em verdade começava. Era menino de onze anos pela Independência,
e pelo 7 de abril entrava em plena juventude. Coincidiu-lhe a idade viril
com a da pátria. Se houvesse em Magalhães maior personalidade,
mais caráter, quero dizer qualidades morais salientes e ativas que
lhe estimulassem o engenho, o momento e o meio teriam podido fazer dele um
grande poeta. Não logrou ser senão um distinto poeta, cujo sentimento
se ressente das circunstâncias em que se criou, cujo estro e inspiração
revêem aquele meio e momento, mas sem o relevo e a distinção
que foi de moda atribuir-lhe. Não se veja, aliás, nessa atribuição
apenas a mesquinhez do gosto e do senso crítico do tempo ou um efeito
das camaradagens literárias do autor, senão a conseqüência
dos mesmos exaltados sentimentos nacionais do momento. Nem foi ele o único
a quem esta circunstância aproveitou. Ao contrário, ela influiu
preponderantemente na admiração ingênua e desavisado apreço
que os nossos avós da primeira geração após a
Independência tiveram por todos os seus poetas e literatos. A sua vaidade
patriótica, então exagerada, desvanecia-se deles, como prova
da nossa capacidade mental a opor às presunções e preconceitos
portugueses da nossa inferioridade. E, ou fosse porque candidamente estivessem
persuadidos do mérito dos escritores patrícios, ou por despique
da opinião da metrópole, lho encareciam descomedidamente. Que,
por Magalhães, não era a manifestação de uma parceria
ou conventículo de literatos, mas o sentimento geral e sincero mostra-o
o terem dele aproveitado ainda os mais medíocres. Tal sentimento é
o inspirador da crítica nimiamente laudatória e até louvaminheira
da época, e que se continuaria até nós em virtude de
um hábito adquirido. É também esse sentimento, ininteligente
certamente, mas ao cabo respeitável, que levaria os primeiros historiadores
das nossas letras, que justamente então começam a aparecer,
à enumeração fastidiosa e inútil de nomes e nomes,
e a juntar-lhes os mais descabidos encômios.

Antes dos Suspiros poéticos e saudades, publicara Magalhães,
em 1832, um volume de Poesias, reproduzido mais tarde nas Poesias avulsas
(Rio de Janeiro, Garnier, 1864). Superabunda de provas de que àquela
data estava ainda Magalhães no subarcadismo reinante em Portugal e
aqui em todo o primeiro quartel do XIX século e continuado até
o pleno advento do Romantismo. Sob a influência desse subarcadismo ou
pseudoclassicismo, como se lhe tem chamado, conservou-se Magalhães
ainda nas duas décadas seguintes. E acaso se pudesse dizer que, salvo
a exceção da Confederação dos Tamoios e de parte
a intenção do seu teatro, nunca se lhe emancipou de todo. Como
o seu amigo e êmulo Porto Alegre, era Magalhães de temperamento
mais um árcade que um romântico, e mais do que àquele
acontecia, lhe iam contra a índole as audácias do Romantismo,
naturais e necessárias nos movimentos revolucionários como foi
esse. Há poemas seus dos anos de 40, e até de 60, de todo em
todo arcádicos, odes pindáricas, com os obsoletos cortes clássicos
de estrofes, épodos e antiestrofes, a terminologia mitológica,
os tropos e figuras da velha retórica quintilianesca, com que os pseudoclássicos
de todos os países desde a Renascença ingenuamente presumiram
emular com os latinos e gregos e reproduzi-los. Nessas poesias avulsas bem
pouco há que, ao menos pela inspiração e estilo, eleve
Magalhães acima dos poetas seus imediatos predecessores, nem que o
separe deles. Apenas na composição e forma desses poemas é
possível notar alguma diferença na maior objetividade dos assuntos
e ainda nos títulos de diversas composições. Ao amor
da pátria, à liberdade, à guerra, ao dia 25 de março,
ao dia 7 de abril e quejandos, não são comuns na poesia anterior.
Talvez se pudesse dizer que pronunciam o individualismo romântico assuntos
e títulos como À saudade, A volta do exílio e outras
inspiradas de motivos pessoais, assim como as Noites melancólicas,
se o seu íntimo sentimento e estilo não fossem ainda os da poética
dominantes antes do Romantismo. Compõe elogios dramáticos em
verso, como o da Independência do Brasil, tal qual Tenreiro Aranha,
e cartas amistosas em prosa e verso, tal qual Sousa Caldas. Escreve epicédios,
liras, epístolas, copiosamente, perluxamente mas sem engenho que revigore
e alente essas formas de todo gastas. Aliás o vinco dessas categorias
poéticas era profundo na poesia da nossa língua, e o próprio
Golçalves Dias ainda capitulou com ele quando já era de todo
anacrônico e impertinente o seu emprego.

No mesmo ano em que, com 21 de idade, estreara com as Poesias (1832), partiu
Magalhães para a Europa, em viagem de instrução e recreio.
Para ser doutor, título aqui indispensável de recomendação,
formara-se antes em medicina no Rio de Janeiro. Quatro anos depois apareciam
em Paris os Suspiros poéticos e saudades.95

Nesse período percorrera a França, a Bélgica, a Itália,
a Suíça. Não foi grande a modificação que
o contato de cousas novas e sugestivas operou na sua índole poética.
Em suma os Suspiros poéticos, acolhidos e saudados como uma renovação
literária, não se distinguem com tal relevo das Poesias do ano
de 32, que sem mais exames possamos atribuir-lhe aquele efeito. Teve-o entretanto.

As formas poéticas eram outras, já a dos poemas soltos não
sujeitos a uma nomenclatura preestabelecida. Bania o poeta, ou ao menos olvidava,
as odes com as suas repartições clássicas, e o resto
daquelas categorias, e quando se endereçava aos amigos não mais
lhes trocava os nomes por apelidos arcádicos, como nas Poesias avulsas.
O soneto, forma estrófica de que os árcades usaram e abusaram,
e numerosos na primeira coleção, desaparece totalmente desta,
onde não se nos depara nenhum. O Romantismo foi parco em sonetos. Há
mais variedade, mais liberdade nas formas métricas e quase nenhum socorro
aos recursos mitológicos ou clássicos. O próprio título
da coleção indica uma subjetividade, um sentimentalismo maior,
e da leitura verifica-se que é de fato maior e influi na emoção
dos próprios poemas objetivos. O poeta refere e reporta a si, o que
é bem romântico, todas as comoções que lhe vêm
dos aspectos da natureza, da contemplação dos sucessos humanos,
das meditações sobre temas e ficções abstratas.
Mistura-lhes constantemente a sua nostalgia, o seu pesar, os sofrimentos que
experimenta ou cisma. Da biografia conhecida de Magalhães não
parece tenha sido desventurado ou tido grandes penas na vida. Ao invés,
quanto dele sabemos, foi um mimoso da fortuna. Dos seus poemas, entretanto,
resultaria a presunção contrária. É talvez ele
quem inaugura na poesia brasileira o estilo lamuriento dos que já algures
chamei de nostálgicos da desgraça, moda poética que tanto
floresceu aqui. Não achou, no entanto, a sua dor, talvez por não
ser verdadeiramente sentida, nenhuma expressão bastante forte para
nos comover também a nós. O abstrato do seu estilo, porventura
a sua característica, sob o aspecto do estilo, concorreu ainda mais
para diminuir-lhe a intensidade da emoção já de si, parece,
pouco profunda e o calor da expressão, apenas altieloqüente. Daí,
e da prolixidade, outra feição do seu poetar, o desmaio e o
banal da sua poesia, apesar dos seus propósitos filosóficos.
É que ele lhe pôs não os seus íntimos sentimentos
atuados pela sua filosofia, as suas emoções apenas influídas
por ela, senão os próprios ditames da escola e do livro, e levou
para a sua arte intenções pedagógicas. Os passos de inspiração
filosófica dos seus poemas são puramente didáticos e
não a expressão de uma simples emoção poética:

Não, o medo não foi quem sobre a terra

Os joelhos dobrou ao homem primeiro,

E as mãos aos céus ergueu-lhe. Não, o medo

Não foi o criador da Divindade!

Foi o espanto, o amor, a consciência,

E a sublime efusão d’alma e sentidos,

Viu o homem seu Deus por toda a parte,

E a sua alma exaltou-se de alegria.

Todo esse poema O Cristianismo, cujos são estes desenxabidos versos,
é didático, sem que um sentimento poético, inspirado
embora do religioso, se nele manifeste de maneira a tocar-nos. Noutro seu
poema, muito celebrado, todo ele justificativo deste conceito, se nos deparam
trechos como o seguinte, antes versos de professor de filosofia que de poeta
filósofo:

Assaz, oh Deus, o homem sobre a terra

Revela teu poder, tua grandeza,

A Razão, és tu mesmo; a liberdade,

Com que prendaste o homem, não, não pode

Dominar a Razão, que te proclama!

Se muda para mim fosse a Natura,

Na Razão que me aclara, e não é minha,

Senhor, tua existência eu descobrira.

Em arte não basta não imitar para ser original. Não
se descobre em Magalhães imitações, nem predileção
por algum dos mestres do Romantismo. Mas também se lhe não lobriga
originalidade. Se alguma tinha, prejudicou-a a sua filosofia de escola, o
seu demasiado respeito das tradições literárias, e obliterou-lha
o abstrato e o fluido do seu estilo poético. A diplomacia, carreira
em que apenas estreado em letras entrou, com a sua gravidade protocolar, a
sua artificialidade, a sua futilidade, a sua compostura de mostra, não
devia ter pouco contribuído para sufocar em Magalhães, ou amesquinhá-los,
os dons poéticos mais vivazes que porventura recebera na natureza.
Influências de filosofia escolástica e livresca e do decoro da
situação social fazem-no versejar os mais triviais lugares-comuns:

Um Deus existe, a Natureza o atesta:

A voz do tempo a sua glória entoa,

De seus prodígios se acumula o espaço;

E esse Deus, que criou milhões de mundos,

Mal queira, num minuto

Pode ainda criar mil mundos novos.

Se a sua emoção poética, a sua inspiração,
carece de profundeza, pobre é também a sua expressão.
Raro se faz nalguma forma sintética, conceituosa ou intuitiva. Por
via de regra se derrama em um longo fraseado, com exclamações
e apóstrofes. Roma lhe não inspira senão banalidades
da sua história corriqueira e dos seus mais triviais aspectos:

Roma é bela, é sublime, é um tesouro

De milhões de riquezas; toda a Itália

É um vasto museu de maravilhas.

Eis o qu’eu dizer possa; esta é a Pátria

Do pintor, do filósofo, do vate.

O prosaico escandaloso destes versos não é uma exceção
ou uma raridade. De todo este grosso volume dos Suspiros poéticos (mais
de 350 páginas) apenas vive hoje, e merece viver, o Napoleão
em Waterloo, que sem ter a profundeza, a intensa emoção humana
e poética do Cinque magio, de Manzoni, salva-se por um alevantado sopro
épico e sem embargo de alguns desfalecimentos, uma bela forma eloqüente
e comovida.

O que os contemporâneos acharam de novo no livro, e o pelo que ele
os impressionou, foi, com a ausência dos fastidiosos e safados assuntos
antes preferidos, mitológicos e clássicos, dos rançosos
tropos da caduca retórica, a personalidade do autor. Não se
revelava esta no vigor do sentimento ou no ressalto da expressão, como
com Victor Hugo em França ou Garrett em Portugal, mas se apresentava
nas numerosas referências a si mesmo, nas suas declarações
de fé e de princípios, nas suas confissões e lástimas.
Por pouco que tudo isso fosse realmente, ou por pouco que nos pareça
a nós, foi então, com ajuda do sentimento nacionalista predominante,
achado muito. A despeito das restrições que podemos fazer hoje,
havia ainda nos Suspiros poéticos, e se não enganaram os contemporâneos,
a exalação de uma alma, tocada da nova graça romântica,
influída, por pouco que fosse, pelo sopro da liberdade estética
que agitava a atmosfera européia e tão bem se casava com o de
liberdade política que soprava em sua pátria. E às vezes
exalava-se linda e sentidamente:

Castas Virgens da Grécia,

Que os sacros bosques habitais do Pindo!

Oh Numes tão fagueiros,

Que o berço me embalastes

Com risos lisonjeiros

Assaz a infância minha fascinastes.

Guardai os louros vossos,

Guardai-os, sim, qu’eu hoje os renuncio.

Adeus ficções de Homero!

Deixai, deixai minha alma

Em seus novos delírios engolfar-se,

Sonhar com as terras do seu pátrio Rio;

Só de suspiros coroar-me quero,

De saudades, de ramos de cipreste;

Só quero suspirar, gemer só quero.

E um cântico formar co’os meus suspiros.

Assim pela aura matinal vibrado

O Anemocórdio, o ramo pendurado,

Em cada corda geme,

E a selva peja de harmonia estreme.

Renunciando às musas clássicas, é, entretanto, na sua
língua que lhes refoge. Distingue o Magalhães dos Suspiros poéticos
da geração poética precedente e do mesmo Magalhães
dos versos de 32, outra feição muito do Romantismo, a soberba
do poeta, o senso da nobreza da sua missão, a alevantada ambição
que se lhe gera deste pressuposto. São manifestações
do individualismo romântico, embora nele contidas, mais discretas do
que acaso cumpria, sem os entusiasmos, transbordantes até à
descompostura, de muitos dos corifeus da escola. Leiam-se o Vate, A Poesia,
A Mocidade. Este poema sobretudo revê, e não sem intensidade,
aquela “tragédia da ambição” que, segundo Brandes,
se apresentava na alma da juventude romântica francesa. Como quer que
seja, esse grosso volume de poesias teve, de 1836 a 1865, três edições,
fato aqui extraordinário.

Que no fundo de Magalhães, porém, havia permanecido o árcade
retardatário das Poesias de 1832, provam-no os poemas posteriores a
1836, publicados sob o título de Poesias várias, como segunda
parte das Poesias avulsas, em 1864. Neles volta à poética apenas
esquecida nos Suspiros. Prova-o mais, de desde o título, a sua posterior
coleção de versos, Urânia, em que tudo lembra mais a poética
obsoleta que a em voga.

A inspiração poética, como a forma que a realiza, ou
o estilo, é função do temperamento do poeta que a condiciona.
O de Magalhães era evidentemente mais consoante ao pensamento geral
e à poética dos últimos cinqüenta anos, do que com
as idéias e a poética do seu tempo. Pode ser que, como ele próprio
insinua através de Wolf, fosse o Romantismo alemão, simplesmente
como expressão do sentimento nacional, como revolta contra a servidão
de todo o mundo ao classicismo francês, que lhe atuasse o estro. Em
todo caso, sob uma forma comedida e reportada, revendo o seu medíocre
entusiasmo pelo movimento, cujo promotor e chefe, mais por força das
cousas quer por íntima persuação, foi aqui.

Se Magalhães houvera ficado nos Suspiros poéticos, talvez fosse
apenas um nome a mais no comprido rol dos nossos poetas. Quaisquer que fossem
os méritos dessa coleção, não eram tais que só
por ela pudesse o autor tomar na literatura brasileira a importância
que alcançou. Deu-lha mui justamente o volume e a variedade da sua
obra, provando nele capacidades que, sem serem sublimes, eram menos comuns,
aptidões literárias diversas e vocação literária
incontestável.

Magalhães, e o seu exemplo influiria os seus companheiros e discípulos
da primeira geração romântica, sentiu que o renovamento
literário de que as circunstâncias o faziam o principal promotor,
carecia de apoiar-se em um labor mental mais copioso, mais variado e mais
intenso, do que até então aqui feito, e que uma literatura não
pode constar somente de poesia, e menos de pequenos poemas soltos. Com esta
intuição, senão inteligência clara do problema,
que para ele e os jovens intelectuais seus patrícios se estabelecia,
Magalhães colaborou em revistas com ensaios diretamente interessantes
ao movimento literário e ao pensamento brasileiro, criou, com Martins
Pena, o teatro nacional, iniciou, com Teixeira e Sousa, o romance, reatou
com os Tamoios a tradição da poesia épica do Caramuru
e do Uraguai, fez etnografia e história brasileiras, deu à filosofia
do Brasil o seu primeiro livro que não fosse um mero compêndio,
e ainda fez jornalismo político e literário, e crítica.
Pela sua constância, assiduidade, dedicação às
letras, que a situação social alcançada no segundo reinado,
ao contrário do que foi aqui comum, nunca lhe fez abandonar, é
Magalhães o primeiro em data dos nossos homens de letras, e um dos
maiores pela inspiração fundamental, volume, variedade e ainda
mérito da sua obra. Pode dizer-se que ele inicia, quanto é ela
possível aqui, a carreira literária no Brasil, e ainda por isso
é um fundador.

Os preconceitos pseudoclássicos de Magalhães e a sua índole
literária, sempre mais arcádica que romântica, levaram-no
no teatro à tragédia, na poesia ao poema épico. Em ambos
os casos inspirou-o o espírito nacionalista da época, o propósito
de fazer literatura nacional, de assunto e sentimento. Declara ele próprio
o seu desejo de encetar a carreira dramática com um assunto nacional.
A sua estética confessada no prefácio da tragédia de
Antônio José lhe oscila entre “o rigor dos clássicos
e o desalinho dos românticos”. Como eclético de temperamento
e de filosofia, admirador fervoroso de Cousin, Magalhães toma a posição
soberba de um artista alheio e superior a escolas, emancipado. “O poeta
independente, diz ele no seu magro Discurso sobre a história da literatura
do Brasil, citando Schiller,96 não reconhece por lei senão as
inspirações de sua alma, e por soberano o seu gênio.”
Gênio é uma palavra de que Magalhães abusava, metendo-a
até um passo onde forçosamente se referia a si próprio.
Infelizmente, gênio não tinha nenhuma, e a postura de poeta independente
que alardeava não lhe calhava ao modesto engenho. Era a formação
pseudoclássica do seu espírito, consoante com a sua índole
literária, e o seu ecletismo filosófico que lhe impunham essa
atitude. O próprio título de tragédia que deu às
suas peças de teatro contrastava o parecer do Romantismo, que em nome
da liberdade da arte, e da verdade humana, refugava a velha fórmula
clássica.

96Opúsculos históricos e literários, 2.ª edição.
Rio de Janeiro, Garnier, 1865,270.

O renovador do teatro, e simultaneamente principal fautor do Romantismo português,
Garrett, não por simples imitação, mas com razões
excelentes, chamou ao seu admirável Frei Luís de Sousa de “drama”,
não obedeceu à regra dos cinco atos e escreveu-o em prosa, porventura
a mais bela que jamais se fez em nossa língua. Magalhães, que
tem sobre Garrett o mérito da prioridade na introdução
do teatro moderno em português,97 ao invés deliberadamente chamava
à sua de tragédia, punha-lhe os cinco atos clássicos,
embora para isso tivesse de derramar a composiç&atatilde;o, e fazia-a
em verso, segundo a fórmula consagrada. Distinguem-na, porém,
do mesmo passo revendo a influência do Romantismo, o assunto moderno
e nacional, a familiaridade da expressão apesar do verso clássico,
e o pensamento liberal que a inspira, não obstante o catolicismo do
autor. Não será o Antônio José, sob o puro aspecto
literário e estético, uma perfeita ou sequer notável
obra d’arte, mas é sem dúvida um documento muito apreciável
da capacidade do poeta, e não de todo sem força dramática
ou beleza de expressão. E, o que muito importa, no conjunto da nossa
literatura dramática, sobre a iniciar, não é despecienda.
Sente-se ainda que é uma obra feita de inspiração. Põe-no
de manifesto o contraste com o Olgíato, obra prolixa, difusa e declamatória.
O Otelo é apenas a tradução em verso da incolor tragédia
do pseudoclássico francês Ducis, a qual nesta dinamização
já nada conserva da fortíssima emoção shakespeariana.

Como quer que seja, o impulso da literatura dramática estava dado.
Em outubro do mesmo ano de 1838, Martins Pena, engenho teatral mais nativo
que Magalhães, fazia representar a sua primeira comédia, O juiz
de paz na roça, lidimamente brasileira, por figurar com toda a verdade
um aspecto cômico da nossa vida. Seguindo o exemplo de Magalhães,
todos os românticos escreverão teatro. Nenhum, porém,
antes da segunda geração, com o talento, a arte e o sucesso
dele.

Da impressão feita na mente portuguesa pela epopéia de Camões,
resultou não só em Portugal mas no Brasil a criação
épica, que é um dos mais curiosos aspectos da literatura da
nossa língua. Desvaneceram-se dela por tal forma os portugueses, que
é de ver o filaucioso entono com que presumiram amesquinhar a literatura
francesa, reprochando-lhe a carência de uma epopéia. Ao contrário,
eles as tinham em demasia. Desta opinião resultou mais o parvoinho
pressuposto de que um poeta, para merecer inteira estimação,
cumpria-lhe escrever um poema épico. Aos brasileiros herdaram o seu
preconceito. Os nossos românticos encontravam-no sancionado pelos exemplos
de Bento Teixeira, de Santa Rita Durão, de Basílio da Gama,
de Cláudio da Costa e de outros poetas autores de poemas épicos
mais ou menos consideráveis. No propósito deliberado de fomentar
a literatura da nação estreante, Magalhães fizera poesia,
fizera teatro, fizera novela, escrevera ensaios filosóficos, históricos
e literários. Em 1856 coroou, segundo seria a sua mesma persuasão,
a sua obra de renascença com um poema épico, em dez cantos,
em endecassílabos soltos, de assunto e de inspiração
nacional, a Confederação dos Tamoios.

O aparecimento desta obra foi um acontecimento literário. Contra ela
escreveu José de Alencar, então estreante, uma crítica
acerba, e o que é pior, freqüentemente desarrazoada. Saíram-lhe
em defesa ninguém menos que Monte Alverne e o próprio Imperador
D. Pedro II, que fora, às ocultas, o editor do poema. Tinha razão
Magalhães quando do seu citado estudo sobre a história da nossa
literatura notava que no começo daquele século “uma só
idéia absorve todos os pensamentos, uma idéia até então
quase desconhecida; é a idéia da pátria; ela domina tudo,
e tudo se faz por ela e em seu nome. Independência, liberdade, instituições
sociais, reformas políticas, todas as criações necessárias
em uma nova nação, tais são os objetos que ocupam as
inteligências, que atraem a atenção de todos, e os únicos
que ao povo interessam”. Continuava verdadeira a sua observação,
e desse sentimento menos de são patriotismo que de vaidade patriótica
aproveitou ele largamente, e aproveitava agora no sucesso da Confederação
dos Tamoios. O que principalmente disseram do poema os seus defensores é
que era uma obra de inspiração patriótica. Este errado
critério de juízo de uma obra literária ou artística
permaneceria nos nossos costumes, como um vício de crítica irradicável,
e ainda não desapareceu de todo. O próprio Alencar, três
lustros depois, defendendo obras suas dos ataques da crítica ou da
opinião pública, apelava para o sentimento patriótico
que lhas inspirava. Este indiscreto sentimento, principalmente, ajudou a nomeada
que no seu tempo teve a Confederação dos Tamoios, como em geral
favoreceu a obra dos nossos primeiros românticos, dele inspirada.

O poema de Magalhães apareceu um ano antes dos quatro cantos dos Timbiras,
de Gonçalves Dias. Parece, entretanto, que os contemporâneos
não repararam que a Confederação dos Tamoios, voltando
ao índio estreado na poesia brasileira por Basílio da Gama e
Durão, nada criava, mas apenas seguia a sua retauração
nela, desde 1846 feita por Gonçalves dias nos seus Primeiros cantos.
Apenas à feição que se chamou indianismo, e que foi de
princípio a mais singular do nosso Romantismo, trouxe o poema de Magalhães
o concurso precioso de uma obra considerável e de um homem socialmente
mais considerado que Gonçalves Dias, com altas e prestigiosas amizades
e relações, poeta então muito mais estimado que o seu
jovem êmulo. Era ainda o momento em que um falso critério sociológico
e um desvairado sentimentalismo queriam fazer do índio um elemento
demasiado interessante da nossa nacionalidade. Portanto, lisonjeava o sentimento
público, e lhe aproveitava da simpatia. A Confederação
dos Tamoios não criou na nossa literatura o que se viria chamar “indianismo”,
e que se não foi todo o nosso Romantismo, foi a sua feição
mais peculiar. Mas, com a autoridade literária de que então
gozava o seu autor, trouxe à iniciativa de Gonçalves Dias uma
cooperação apenas inferior à ação deste,
se é que no momento não foi havida por superior. Em 1859, três
anos depois da Confederação, apresentava Magalhães ao
Instituto histórico uma extensa memória sobre Os indígenas
do Brasil perante a história, que poderia ser como o comentário
perpétuo de seu poema. O fim declarado desse trabalho é reabilitar
o elemento indígena. Não era outro o íntimo pensamento
do indianismo.98

Magalhães foi principalmente e sobretudo poeta. Por sua obra de poeta
influiu poderosamente na implantação do Romantismo aqui, e,
portanto, na fundação da literatura que desde então se
começa a distinguir da portuguesa. Mas escreveu também prosa,
ensaios diversos e tratados filosóficos. Como prosador é seguramente,
não obstante alguns defeitos nativos (como o já ridiculamente
famoso da colocação dos pronomes), um dos mais vernáculos,
pela propriedade do vocabulário, sempre nele castiço, e de parte
os legítimos sacrifícios ao seu falar brasileiro, pela correção
sintática do fraseado. É mais simples, mais natural, menos rebuscado
ou trabalhado o seu estilo do que era o dos escritores que aqui o precederam,
e ainda da maior parte dos que se lhe seguiram. Sob o aspecto da linguagem
e estilo são escritos estimáveis, e que se deixam ainda ler
sem dificuldade, antes com aprazimento, os seus opúsculos citados.
A sua Biografia do padre Mestre Fr. Francisco de Monte Alverne, e páginas
suas de literatura amena como O pavão, podem passar por exemplos de
boa prosa, como não era vulgar na época.


Capítulo X

OS PRÓCERES DO ROMANTISMO

I — PORTO ALEGRE

MANUEL DE ARAÚJO PORTO ALEGRE nasceu no Rio Grande do Sul em 29 de
novembro de 1806 e faleceu, feito Barão de Santo Ângelo, em Lisboa,
em 29 de dezembro de 1879. Como crescidíssimo número de literatos
brasileiros, era um autodidata. Após os primeiros e forçosamente
mofinos estudos preparatórios feitos na sua província natal,
veio para o Rio de Janeiro em 1827.99 Destinava-se à Academia Militar.
Não indicava este propósito nenhuma vocação pela
carreira das armas. Porto Alegre cedia à necessidade que levou tantíssimos
moços brasileiros pobres a procurarem aquela escola para adquirirem
economicamente uma instrução que de outro modo não poderiam
fazer. Como lhe falhasse a matrícula na Academia Militar, voltou-se
para a de Belas-Artes, onde ao cabo do primeiro ano alcançou o prêmio
de pintura e arquitetura. O pintor Debret, daquele grupo de artistas franceses
que no tempo de D. João VI vieram aqui fundar o ensino artístico,
foi um dos seus mestres e por tal maneira se lhe afeiçoou, que regressando
à França, em 1831, levou-o consigo. Até o ano de 1837
viajou Porto Alegre pela Bélgica, Itália, Suíça,
Inglaterra e Portugal, e nessas viagens completou a sua instrução
geral e educação artística. Voltando ao Brasil nesse
ano, fundou com outros o Conservatório Dramático e a Academia
de Ópera Lírica, e tomou parte ativa e conspícua no movimento
literário do Romantismo, colaborando em várias revistas, dirigindo
outras, trabalhando no Instituto Histórico e publicando obras diversas.
Posteriormente entrou para o Corpo Consular, tornando à Europa, que
desde 1859 quase sempre habitou e onde morreu. Em Paris pertenceu ao grupo
da Niterói, revista brasileira de ciências, letras e artes ali
publicada em 1836, e que serviu de órgão à iniciação
da literatura brasileira no Romantismo. Do mesmo grupo eram Magalhães
e Sales Tôrres Homem, que a política devia em breve tomar às
letras. Nesse período estreou com o poema A voz da natureza, composto
em Nápoles, em 1835. Este “Canto sobre as ruínas de Cumas”
é naquela época um poema estranho, inteiramente fora dos moldes
da poesia contemporânea, alguma coisa que, não obstante fraquezas
de inspiração e forma, se aproxima da poesia bem mais moderna
da Lenda dos séculos e que tais interpretações poéticas
da história. Em 1843, noutra revista que foi parte importante no movimento
do nosso Romantismo, a Minerva Brasiliense, deu Porto Alegre à luz
as suas primeiras Brasilianas. Muito mais tarde as reuniu em volume com outras
composições e este mesmo título, que era de si um programa
literário.100 A sua intenção declara-o ele no prefácio,
não lhe pareceu ficasse baldada, “porque foi logo compreendida
por alguns engenhos mais fecundos e superiores que trilharam a mesma vereda”.
E em seguida confessa ter desejado “seguir e acompanhar o Sr. Magalhães
na reforma da arte, feita por ele em 1836 com a publicação dos
Suspiros poéticos e completada em 1856 com o seu poema da Confederação
dos Tamoios”. O testemunho precioso de Porto Alegre ratifica plenamente
o consenso geral dos contemporâneos do papel principal de Magalhães
no advento do nosso Romantismo. Porto Alegre é, entretanto, um engenho
mais vasto, mais profundo, mais completo que o seu amigo e êmulo. E
mais pessoal também, e mais intenso. Não obstante não
é, como não era Magalhães, um romântico de vocação
ou de índole. Pelo menos nenhum deles o foi como serão os da
geração seguinte à sua. Ao Romantismo dos dous preclaros
amigos faltam algumas feições, e acaso das mais características,
desse importante fato literário, como o extremo subjetivismo e o individualismo
insólito. Quase lhes ficou estranho, principalmente a Porto Alegre,
o amor, que em Magalhães é apenas o amor comedido, burguês,
doméstico, ao invés justamente do que cantavam e faziam os corifeus
do Romantismo europeu. Esta falta lhes amesquinhou o estro e a expressão,
em ambos sempre mais retórica, mais eloqüente mesmo que sentida.
As Brasilianas são uma obra de escola e de propósito, em que
a intenção, louvabilíssima embora e às vezes realizada
com talento, é mais visível que a inspiração.
Estão muito longe da emoção sincera e tocante das Americanas,
de Gonçalves Dias, que viriam dar ao íntimo sentimento brasileiro,
qual era naquele momento histórico, a sua exata expressão.

A obra capital de Porto Alegre é, porém, o grande poema Colombo,
publicado em 1866, em pleno Romantismo, quando a poesia brasileira havia já
rompido com a tradição poética portuguesa antiga, e florescia
aqui a segunda geração romântica. Entrementes, de 1844
a 1859, escrevera, fizera representar ou publicar várias peças
de teatro, libretos de ópera, dramas, comédias e outras obras,
que se nenhuma lhe assegura renome como autor dramático, demonstram-lhe
todas a versatilidade do engenho e a atividade literária, e serviram
para impedir não secasse a corrente iniciada com Magalhães e
Martins Pena e para, materialmente ao menos, avolumarem-na. No mesmo período
da sua estadia no Brasil antes do Consulado, escreveu em periódicos
cujo fundador, diretor ou simples colaborador, foi, viagem, crítica
literária e de arte, biografias, pronunciando como orador do Instituto
Histórico vários discursos, que são talvez a sua obra
mais notável em prosa. Na Revista dessa associação publicou
a sua conhecida Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense
e artigos de iconografia brasileira. Como a quantos do mesmo gênero
escreveu, os inspirava mais a intenção patriótica de
exalçar além do legítimo cousas da pátria que
discreto senso crítico. Mas era moda louvar descomedidamente, engrandecer
sobre posse, tudo o que era nosso, na ingênua esperança de nos
valorizarmos. A índole de si mesma entusiasta e pomposa de Porto Alegre
cedeu gostosamente à moda.

A obra de prosador de Porto Alegre é menos considerável que
a de Magalhães, e não foi, como a deste, jamais reunida em livro.
Menos vernáculo como prosador que o seu êmulo, o é muito
mais como poeta, no Colombo. Mas sobretudo lhe é superior pela abundância
e vigor das idéias, movimento e colorido do estilo, e brilho da forma.
Neste, como é muito nosso, freqüentemente excede-se e cai no empolado
e no retórico. Magalhães escreve mais natural e simplesmente,
sem aliás evitar sempre os extremos, o banal e o inchado. Esta marca
do verdadeiro escritor, ter idéias gerais, Porto Alegre é um
dos primeiros dos nossos em que se nos depara.

É extraordinariamente raro que ainda um homem de grande engenho, como
sem dúvida era Porto Alegre, resista às influências e
se forre aos preconceitos do seu ambiente espiritual. Em plena pujança
das suas faculdades literárias, aos cinqüenta anos e em mais de
metade do século que rompera com a tradição clássica
das grandes epopéias, compôs e publicou um poema de um prólogo
e quarenta cantos com mais de vinte e quatro mil versos, Colombo.101

Por mais difícil que se nos antolhe a leitura deste extensíssimo
poema, merece ele que vençamos a nossa hodierna repugnância de
ler grandes epopéias e o leiamos. Há nele uma realmente assombrosa
imaginação e fecundidade de invenção, insignes
dons de expressão verbal, como raro se achará outro exemplo
na poesia da nossa língua, magnificências de descrições
verdadeiramente primorosas, revelando no poeta o artista plástico,
um nobre intuito quase sempre felizmente realizado de pensamento, correção
quase impecável de versificação, vernaculidade estreme,
engenhosas audácias de criação e de expressão,
e outras qualidades que o fazem uma das mais excelentes tentativas para reviver
na nossa língua, se não nas literaturas contemporâneas,
essa espécie de poemas. Mas os gêneros ou formas literárias
valem também por sua conformidade com o tempo que os produziu. O poema
de Porto Alegre vinha já de todo obsoleto e inoportunamente, com um
maquinismo poético apenas suportável na pura lenda e não
em uma epopéia de fundo histórico. Representa um em todo caso
nobre esforço de vontade de uma inspiração que não
podia ser natural e espontânea, por desconforme com tudo quanto constitui
a mentalidade e estimula o estro do poeta. O leitor pode admirar o meio sucesso
desse ingente esforço. Mas não lhe sente emoção
capaz de comovê-lo até lhe fazer aceitar essa nova criação
épica. O Colombo é uma obra mais de razão e de inteligência
que de instinto e sentimento, como foram os monumentos poéticos que
ele anacronicamente procurava continuar.

II — TEIXEIRA E SOUSA

Fluminense, como a maior parte dos primeiros românticos, Antônio
Gonçalves Teixeira e Sousa nasceu em Cabo Frio aos 28 de março
de 1812 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1.º de dezembro de 1861.
Teve algo de romântica a vida do criador do romance brasileiro. Filho
legítimo de um português com uma preta, apenas fazia os seus
primeiros estudos quando se viu obrigado, pela precária situação
econômica da família, a abandoná-los e adotar uma profissão
mecânica, a de carpinteiro. Por alguns anos exerceu este ofício
no Rio de Janeiro, para onde viera de Itaboraí com o fim de nele aperfeiçoar-se.
Cinco anos depois regressou à terra natal. Tinham-lhe morrido os quatro
irmãos mais velhos. Aos vinte anos achou-se só no mundo, com
escassíssimos bens que lhe herdara o pai. Senhor de si, voltou aos
estudos com o mesmo antigo ardor e o mesmo mestre, o cirurgião Inácio
Cardoso da Silva, professor régio em Cabo Frio, e também poeta,
cujos versos Teixeira e Sousa mais tarde piedosamente reuniu e publicou. Em
1840 voltou ao Rio de Janeiro, onde a simpatia de cor, de engenho poético
e de amor às letras facilmente o ligou a Paula Brito.

Francisco Paula Brito (1809-1861) é, na sua situação
secundária, uma das figuras mais curiosas e mais simpáticas
dessa época literária. Nascido no Rio de Janeiro, de gente de
cor e humilde, chegou-lhe a puberdade e juventude em pleno movimento da Independência
e estabelecimento da monarquia, e dessa época conservou o ardor patriótico
e o desvanecido nacionalismo que a assinalou. De quase nenhumas letras, mas
inteligente e curioso, despertou-se-lhe o gosto por aquelas e pelos seus cultores
no trato de umas e outros, no exercício do seu ofício de tipógrafo.
Mais tarde montou uma imprensa de conta própria, à qual anexou
uma loja de livros. Como fosse muito caroável de literatos, a quem
com periódicos que fundou, como a Marmota (1849-1861), oferecia a satisfação
de se verem publicados e louvados, a sua loja, no antigo Largo do Rossio,
tornou-se o prazo dado da mocidade literária do tempo, e, como era
igualmente patriota ardente e chefe político de bairro, freqüentavam-no
também homens públicos notáveis, doutores e outros letrados.
Por ser a sua loja um centro de notícias, palestras e novidades da
vida urbana que não seriam sempre de extrema veracidade e antes facilmente
mentirosas, deu-lhe o povo a alcunha de “A Petalógica”. Foram
seus habituados todos os nossos primeiros e ainda muitos dos segundos românticos,
de todas as graduações. Desse comércio com letrados,
a inteligência aberta e pronta de mestiço de Paula Brito tirou
o melhor proveito. Ele também se fez escritor e poeta. Aliás
o foi em tudo mediocremente, revelando apenas um generoso esforço e
excelentes intenções de servir as letras nacionais, e a mesma
sociedade, com publicações de caráter educativo, moralizador
e patriótico, edições de obras brasileiras e também
com as suas produções em prosa e verso. Mais rico de boa vontade
que de bens de fortuna, não só acolheu, apresentou, protegeu
os jovens de vocação literária que o procuravam, como
festejou, celebrou, preconizou os literados já feitos, mecenas quase
tão pobre e desvalido como os seus protegidos, e sequer sem idoneidade
para mentor literário, teve entretanto o amável Paula Brito
ação apreciável e frutuosa no momento em que a sua loja,
se não ele, era o centro da vida literária no Rio de Janeiro.

Teixeira e Sousa foi simultaneamente empregado e colaborador literário
de Paula Brito, em cuja célebre loja conheceu, imagina-se com que cândida
admiração, os sujeitos mais afamados em letras, a roda literária,
habituada da Petalógica. Aí repartia o tempo que lhe deixava
a freguesia entre ouvir aqueles personagens e escrever os seus primeiros versos.
Começou por composições dramáticas, mas como se
lhe não abrissem as portas do teatro, e na doce ilusão de ganhar
mais alguma cousa do que lhe podia dar o patrão e amigo, fez romances.
Escusa dizer que nem versos nem romances lhe deram fortuna. Era, porém,
uma real vocação literária, desajudada embora de gênio
e de cultura. Não só não desanimou, mas na constância
do engano que lhe acalentava a ambição, e vendo a proteção
que recebiam alguns letrados, imaginou compor um poema que lha atraísse.
E o compôs numa improvisação rápida, em doze cantos
de oitava rima, à moda de Camões. Escritos os seis primeiros,
foi com eles, como carta de recomendação, ao ministro da Fazenda
solicitar-lhe um emprego. Deu-lhe o prócere o de guarda da Alfândega
com 400 mil-réis anuais, o que para o tempo e situação
do poeta não seria tão mau como figurou Norberto na biografia
de Teixeira e Sousa. O poema é A independência do Brasil, mais
um dos muitos pecos rebentos da árvore camoniana, e este de todo mofino.102
A crítica, com Gonçalves Dias à frente, foi-lhe impiedosa.
À vista, porém, da sua condescendência habitual com não
melhores frutos da musa indígena contemporânea, é lícito
supor que a humildade de condição do poeta fosse parte na justiça
que lhe faziam. Desse péssimo poema salvou-se o autor com um verso
que, como aquele também único verso da tragédia troçada
por Pailleron, é bom, e ficaria proverbial:

Em nobre empresa a mesma queda é nobre.

Magalhães o citaria, sem nomear o autor, no seu prefácio dos
Fatos do espírito humano, deturpando-o. Um escritor português,
com a incoercível antipatia com que quase sempre olharam os escritores
seus patrícios para os nossos, chamou-lhe de Camões africano.
Esquecia que Camões como Teixeira e Sousa os tem havido em barda na
sua terra, como lhe não lembrava que desde o século XV havia
uma numerosíssima escravaria negra em Portugal… Auxiliado por amigos
e associado a Paula Brito, abandonando o mesquinho emprego, abriu uma oficina
tipográfica conjuntamente loja de objetos de escritório. Casou,
fez família e maus negócios, fechou a loja e aceitou para viver
o lugar de mestre-escola do Engenho Velho com casa e 800 mil-réis anuais,
nomeado pelo marquês de Monte Alegre. Sem jeito nem gosto pela ingrata
profissão de mestre de meninos, pediu ao Ministro Nabuco lhe desse
a escrivania vaga de Macaé. Nabuco fez melhor, nomeou-o para uma escrivania
da Corte, o que era para ele quase a abastança: escrivão da
Primeira Vara do Juízo do Comércio do Rio de Janeiro. Foi isto
em 1855. Mal passados seis anos morria Teixeira e Sousa com 49 anos de idade.
Fora carpinteiro, tipógrafo, caixeiro, revisor de provas, guarda da
Alfândega, editor, mestre-escola e por fim escrivão do Foro.
Mas sobretudo foi, com mal empregada e malograda vocação, homem
de letras. E não as tinha de todo más, pois compunha versos
latinos103 e era lido nas literaturas modernas.

Antes do mal sorteado poema da Independência do Brasil, publicara Teixeira
e Sousa dous volumes de poesias com o título de Cânticos líricos
(1841-1842) e o poema romântico, em cinco cantos, de versos endecassílabos
soltos, Os três dias de um noivado (1844), inspirado de uma lenda indígena.
Mais de uma daquelas poesias e um ou outro passo deste poema dizem que havia
um poeta, que porventura apenas carecia de cultura e polimento, neste desventurado
amador das letras. Um soneto seu ao menos, embora o prejudique o amaneirado
do estilo, é um dos melhores do tempo e já prenuncia o lirismo
da segunda geração romântica, muito mais subjetivo do
que o era o da primeira. É este:

Vi o semblante teu, morri de gosto,

Amei-te e tu regeste a minha sorte;

Tu foste a minha estrela, e tu meu norte;

Que mágico poder tem o teu rosto!

Foste ingrata, mudou-se o teu composto,

Sofri da ingratidão o cruel corte,

Anelei no meu mal a torva morte;

Que mágico poder tem o desgosto!

Choras arrependida?… Ó! não, serena,

Serena o rosto teu meu doce encanto;

Que mágico poder tem tua pena!

Resistir aos teus ais… quem pode tanto?!

Que te adore outra vez amor ordena;

Que mágico poder não tem teu pranto!

Não é, porém, como poeta que Teixeira e Sousa tem um
lugar nesta geração e nesta História, mas como o primeiro
escritor brasileiro de romance, portanto o criador do gênero aqui. O
Período Colonial que com Nuno Marques Pereira tivera no Peregrino da
América a primeira ficção, essa, porém, de moral
e edificação religiosa, nada produziu que se possa chamar de
novela ou romance. A renovação literária indicada por
Magalhães produzira algumas novelas e contos, publicados geralmente
nos periódicos dessa época e muito poucos dados à luz
em volume. Daquelas, a mais antiga são As duas órfãs,
de Noberto, aparecida em 1841. Romance propriamente, o primeiro é o
Filho do pescador, de Teixeira e Sousa, de 1843. Sucessivamente publicou Teixeira
e Sousa mais cinco romances, As fatalidades de dous jovens (1846), Maria ou
a menina roubada (1859), Tardes de um pintor ou as intrigas de um jesuíta
(1847), A providência (1854), Gonzaga ou a conspiração
de Tiradentes (1848-1851). Destes, alguns saíram primeiramente em jornais
e periódicos, como a Marmota de Paula Brito. Por esta constância
de produção num gênero que, antes que Macedo o seguisse
em 1844 com A moreninha, era ele o único a cultivar, ganhou Teixeira
e Sousa direito inconcusso ao título de criador do romance brasileiro.
Os seus infelizmente tornaram-se para nós ilegíveis, tanta é
a insuficiência da sua invenção e composição,
e também da sua linguagem.

Se houvéramos de aceitar a precedência cronológica como
única ou principal indicação de prioridade literária
— que antes deve ser julgada pela valia e influxo da obra, a Teixeira
e Sousa caberia também a primazia na introdução do nosso
segundo indianismo. Com efeito, de parte algumas passageiras referências
a assuntos indígenas, ou episódicas apresentações
de índios em alguns poemas da fase imediatamente anterior ao Romantismo,
é ele o primeiro a fazer do nosso selvagem tema de uma ficção
em verso e a tomar índios para suas personagens principais nos Três
dias de um noivado, “poema romântico” de que a Minerva Brasiliense
publicou fragmentos em 1843 e que veio a lume em 1844. Que o inspirara ou
estimulara a invenção de Chateaubriand do indianismo na literatura
francesa com a sua Atala, fornece ele próprio um documento na seguinte
estrofe do seu poema:

Tu que de ermos ásperos, inóspitos

Do Grão Meschacebeu viste os arcanos;

Que debuxaste dos agrestes íncolas

A par de usos seus, beleza egrégia

Na melindrosa virgem das palmeiras,

Com sublime pincel, bardo sicambro,

Tua Atala tão gentil, tão pura e meiga,

Perdoa, inda era menos que Mirília.

É que, sob a influência do Romantismo europeu, em revolta contra
o classicismo, o indianismo se apresentava à nossa mente revoltada
contra a hegemonia literária portuguesa, que era o nosso classicismo,
como o nosso natural recurso de reação espiritual nacionalista.
Foi antes o estímulo político da Independência que a ação
de nossos escritores uns sobre os outros que originou aqui o indianismo romântico
e o generalizou. Ao mesmo tempo que Teixeira e Sousa escrevia, talvez ainda
em Itaboraí, esse poema já indianista de inspiração,
assunto e sentimento (1842-43), Gonçalves Dias, segundo informe fidedigno
no seu biógrafo A. H. Leal, compunha as poesias americanas que deviam
vir à luz em volume no Rio em 1846, e criar pela força de beleza
que trazia o indianismo.

III — PEREIRA DA SILVA

João Manuel Pereira da Silva nasceu no Rio de Janeiro a 30 de agosto
de 1817 e faleceu em Paris a 14 de junho de 1898. Era formado em Direito pela
Faculdade de Paris, foi deputado geral, presidente de província e exerceu
outras funções públicas igualmente importantes. Escritor
abundante, como todos os do grupo de que fez parte, foi historiador político
e literário, biógrafo, crítico, romancista e poeta. É
o tipo do amador, do diletante, em letras, escrevendo pelo gosto, acaso pela
vaidade de escrever, sem no íntimo se lhe dar muito do que escreve
e menos de como escreve. Tinha sem dúvida vocação literária,
mas sem dons correspondentes que a fecundassem. Escrever era para ele um hábito,
como que um vício elegante, qual jogar as armas ou montar a cavalo,
um desporto agradável e distinto. Não lhe importava nem a têmpera
das armas nem a qualidade do animal, o essencial para ele era jogá-las
ou montá-lo. Assim a sua obra copiosa e volumosa, importante pelos
assuntos, pouco vale pelo fundo e pela forma. Historiador, escreveu história
com pouco estudo, com quase nenhuma pesquisa, sem crítica nem escrúpulos
de investigação demorada e paciente; crítico, não
passa de um elogiador retórico, com vasta mas superficial leitura das
literaturas modernas e mal assimilada conquanto extensa informação
literária, sem idéias próprias nem alguma originalidade;
poeta, é menos que medíocre, e romancista, carece absolutamente
de imaginação. Mas como veio sempre escrevendo desde a inauguração
do Romantismo até o pleno modernismo, por mais de cinqüenta anos,
dando um exemplo raro de constância no labor literário, o seu
nome ganhou em suma certa aura e a sua figura literária ficou até
a sua morte em evidência, e, ao menos por aquela virtude, estimada.
O exemplo seria demais belíssimo se outro fosse o valor da sua volumosa
obra. Desta apenas lhe sobrevive ainda, antes por ser a única no gênero
que pelo merecimento que possa ter, a História da fundação
do império brasileiro (Paris, 1864-1868), aliás cheia de inexatidões
e falhas, como todas as suas obras históricas.

Se Teixeira e Sousa foi o criador do romance que nos habituamos a chamar
de brasileiro, isto é, o que representa a nossa vida comum e descreve
os nossos costumes, paisagens, tipos, foi entretanto Pereira da Silva quem,
precedendo-o, criou o romance de ficção histórica, então
em voga com Walter Scott e seus primeiros discípulos. Ufanava-se com
motivo no prefácio da primeira edição do seu Jerônimo
Corte Real, “crônica do século XVI”, de que este era
um dos primeiros da literatura portuguesa moderna, pois que viu a luz do dia
nos anos de 1839. Realmente só o precedeu em Portugal o Arco de Sant’Ana,
de Garrett, que é de 1833. Em 1839 publicou Pereira da Silva o romance
histórico O aniversário de D. Miguel em 1825, mas é apenas
uma novela de trinta e três páginas, como é apenas uma
novela de poucas mais páginas Religião, amor e pátria,
saída no mesmo ano. Jerônimo Corte Real também teve a
sua primeira publicação no Jornal do Comércio em forma
de curta novela, que o autor ampliou em romance, alongando-o aliás
com desenvolvimento impertinente, quando a deu em livro de 240 páginas,
em 1865. Do mesmo gênero de Jerônimo Corte Real é Manoel
de Morais, “crônica do século XVII”. Sabendo-se como
ele fazia história, avalia-se como faz o romance histórico.
Os seus realmente não têm valia alguma como quadro das épocas
que presumem pintar, nem qualidades de imaginação ou expressão
que lhes atenuem esse defeito. Esta aliás é talvez melhor nestes
seus dous romances que no resto dos seus livros, e, em todo caso, é
superior à dos de Teixeira e Sousa.

É Pereira da Silva um dos criadores da nossa história literária.
Precedeu mesmo Varnhagen nesses estudos, mas de pouco lhe vale essa precedência
meramente cronológica, porque o que fez nesse gênero, quer no
Parnaso Brasileiro (1843) quer no Plutarco Brasileiro (1847), não tem
a originalidade nem a segurança dos trabalhos de Varnhagen. São
a repetição sem crítica do já sabido, com muitas
novidades de pura invenção ou de falha ou viciosa informação.
Acham-se-lhe porém na obra crítica, desde 1842, alguns conceitos
que deviam mais tarde ser espalhafatosamente apresentados como originais e
inéditos. Tal é o de literatura que aquela data já Pereira
da Silva declarava ser “o desenvolvimento das forças intelectuais
todas de um povo; o complexo de suas luzes e civilização; a
expressão do grau de ciência que ele possui; a reunião
de tudo quanto exprimem a imaginação e o raciocínio pela
linguagem e pelos escritos”.104 Sem menosprezar-lhe inteiramente as constantes
provas do seu gosto das letras e da sua longa persistência em documentá-lo
com obras de toda a espécie, os seus contemporâneos, não
obstante as sinceras louvaminhas de parceiros, não se enganaram sobre
o valor da sua obra, e apenas mediocremente o estimaram como escritor. A história
da literatura lhes ratificará este sentimento.

IV — VARNHAGEN

Cronologicamente pertence também a esta geração um escritor
que, sem ter como tal grandes recomendações, foi todavia um
dos mais prestimosos da literatura e da cultura brasileira: Francisco Adolfo
de Varnhagen. Nasceu em Sorocaba (S. Paulo) em 17 de fevereiro de 1816 de
pai alemão, criou-se e educou-se em Portugal, onde passou a infância
e juventude. Conquanto houvesse percorrido uma grande extensão do litoral
e ainda do sertão brasileiro, em viagens de observação
e estudo, nunca propriamente habitou o Brasil, quero dizer, nunca nele se
demorou com ânimo de se domiciliar. O fato de sua origem germânica
e formação portuguesa e européia, da sua constante ausência
e pouca convivência do seu país natal e mais tarde de ter constituído
família fora dele, dão a Varnhagen uma fisionomia particular,
um todo nada exótico. Da estirpe germânica tirava seu instinto
de veneração e respeito dos magnates, dos poderosos, das instituições
consagradas e das cousas estabelecidas. É talvez o único brasileiro
sem falha neste particular, justamente porque é em suma pouco brasileiro
de temperamento, de índole e ainda de sentimento. Levou-o à
pia batismal o próprio capitão general da província em
que nasceu, o Conde de Palma. Desde aí é com tais próceres
que anda. Como historiador, raro acha a censurar nos que têm o mando,
ao contrário esforça-se por lhes encontrar sempre razões
e desculpas. Do mesmo modo justifica sempre todas as instituições,
descobre-lhes ou inventa-lhes virtudes e benefícios. Mal pode esconder
o júbilo e a vaidade pela troca feita pelo imperador, seu amigo e protetor,
do seu nome já glorioso de Varnhagen pelo de visconde de Porto Seguro.
Consagrou toda a sua laboriosa existência a estudar a história
do Brasil, e a servi-lo com dedicação e zelo em cargos e missões
diplomáticas. Sente-se-lhe, entretanto, não sei que ausência
de simpatia, no rigor etimológico da palavra, pelo país que
melhor que ninguém estudou e conhecia, e era o do seu nascimento. Não
é patriotismo, entenda-se, que lhe desconhecemos, esse o tinha ele,
como qualquer outro e do melhor. Faltava-lhe, porém, não lho
sentimos ao menos, aquele não sei que íntimo e ingênuo,
mais instintivo que raciocinado, sentimento da terra e da gente. Ele não
tem as idiossincrasias do país. Por isso Varnhagen não é
de fato romântico, senão pela época literária em
que viveu e colaborou; de todos os brasileiros seus contemporâneos no
período inicial do Romantismo, é talvez o único que além
de não ser indianista, isto é, de não ter nenhuma simpatia
pelo índio como fator da nossa gente, ao contrário o menospreza,
o deprime e até lhe aplaude a destruição. É também
o único que altamente estima o português, lhe proclama a superioridade,
oculta ou disfarça os defeitos do regime colonial e, propositadamente,
lhe adota o pensamento e a língua. Só ele dos seus companheiros
a escreveria vernaculamente, sem sequer o incoercível brasileirismo
da posição dos pronomes, todos neles indefectivelmente postos
à portuguesa. Mas a escreve apenas corretamente, de estudo e propósito,
com esforço manifesto, sem espontaneidade, fluência ou elegância,
nem os idiotismos por que o verdadeiro escritor revela a sua nacionalidade.
Por tudo isto se não achou Varnhagen em simpatia com os seus confrades
de geração, nem estes com ele. Enquanto por espírito
de camaradagem e muito também de solidariedade na obra que juntos amorosamente
faziam, eles se não regateavam mútuos encômios e acoroçoamentos
freqüentemente desmerecidos e indiscretos, olvidavam a Varnhagen ou o
tratavam como colaborador somenos. Raramente se lhe acha o nome, e ainda assim
parcamente elogiado, nos muitos escritos com que reciprocamente se sustentavam
e à sua causa. Será porque não compreendessem a importância
para esta da obra de erudição que ele fazia? Será porque
a esses poetas, que todos sobretudo o eram, essa obra parecesse de pouco alcance
literário e pouco gloriosa? No entanto quase todos eles faziam também
história, mesmo literária. É verdade que a faziam de
palpite, como poetas, sem investigação própria, sem acurado
estudo, retórica e declamatoriamente, com a sua imaginação
ou repetição do já feito pelos portugueses. Apenas Norberto,
mas somente em parte da sua obra, escapa a este reproche.

O primeiro escrito considerável de Varnhagen, já da sólida
erudição de que ele seria um dos raros exemplos nas nossas letras,
foram as suas Reflexões críticas sobre a obra de Gabriel Soares,
publicadas no tomo V da “Coleção de notícias para
a história e geografia das nações ultramarinas”
pela Academia Real das Ciências de Lisboa (1836). Começando a
sua fecunda iniciativa da rebusca e publicação de monumentos
interessantes para a nossa história geral, dá, em 1839, à
luz, também em Lisboa, o Diário da navegação,
de Pêro Lopes.

Em 1840 escreve no Panorama, o célebre órgão da renovação
literária portuguesa, uma Crônica do descobrimento do Brasil,
que seria o primeiro romance brasileiro se não fosse apenas uma dessaborida
crônica romanceada sobre a carta de Caminha, cujo descobridor na Torre
do Tombo foi Varnhagen. Sem falar em outros seus escritos de maior interesse
português que brasileiro, dos anos imediatamente subseqüentes,
enceta em 1845, com os Épicos brasileiros, nova edição
prefaciada e anotada dos poemas de Santa Rita Durão e Basílio
da Gama, as suas publicações diretamente relativas à
nossa história literária, pouco depois prosseguidas com a do
Florilégio da poesia brasileira ou coleção das mais notáveis
composições dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias
de muitos deles, tudo precedido de um “Ensaio Histórico sobre
as Letras do Brasil”.105

Pelo rigoroso e acurado da sua investigação e estudo e dos
seus resultados, pela novidade das suas notícias, pelo inédito
e seguro da sua informação, pelo número e justeza de
algumas de suas idéias gerais, pela largueza de sua vista, esta obra
de Varnhagen lançava os fundamentos, e o futuro provou que definitivos,
da história da nossa literatura. Não valem contra este conceito
a precedência meramente cronológica de alguns tímidos
e deficientíssimos ensaios de Cunha Barbosa, de Pereira da Silva, de
Norberto, de Magalhães e outros, que apenas repetiram as conhecidas
notícias dos bibliógrafos e memorialistas portugueses, sem lhe
acrescentar nada de novo, e ainda errando o que já andava sabido. Neste
investigar dos nossos primórdios literários, continuado na sua
História geral do Brasil, onde em vários passos se ocupa da
nossa evolução literária, e em papéis e memórias
diversas publicadas em periódicos e revistas, descobriu, noticiou,
editou e fez editar Varnhagem alguns preciosos escritos. Tais foram os Diálogos
das grandezas do Brasil, de Gabriel Soares, a Narrativa epistolar, de Cardim,
a Prosopopéia, de Bento Teixeira, a História do Brasil, de Fr.
Vicente do Salvador, sem contar quantidade de espécies novas para a
vida e obra de outros escritores do período colonial.

A obra capital de Varnhagen é, porém, a sua História
do Brasil, que ele chamou de Geral por abranger nela todas as manifestações
da nossa vida e atividade, ainda a literária e a artística.
Publicada primeiro em 1857 e reeditada em 1872, é um livro de primeira
ordem, se não pela sua estrutura, ainda assim não de todo defeituosa,
pelo bem apurado dos fatos, riqueza e variedade das informações,
harmonia do conjunto e exposição geralmente bem feita. Sem imaginação,
sem qualidades estéticas de escritor, sem relevo ou elegância
de estilo, Varnhagen escreve, todavia, decorosamente. Merece igual apreciação
outra considerável obra sua, a História das lutas com os holandeses,
publicada já fora do período romântico. Na nossa literatura
histórica, as obras de Varnhagen são certamente o que temos
de mais notável.

Tentou ele, como vimos, pela sua Crônica romanceada do Descobrimento
do Brasil, as obras de imaginação ou de ficção.
Carecendo de qualidades de imaginação e fantasia e de estilo,
não lhe podia suceder bem. O seu Amador Bueno, “drama épico-histórico-americano”
(Lisboa, 1847, Madri, 1858), com o seu Sumé, “lenda mito-religiosa-americana”,
e o seu Caramuru, romance histórico brasileiro, em redondilhas de seis
sílabas, saído primeiro no Florilégio e depois em separado,
apenas lhe documentam a incapacidade para essa espécie de literatura.
É pela sua obra de historiador e de erudito que Varnhagen merece, e
tem, um distinto lugar na história da nossa literatura, da qual foi
o criador e permanece o alicerce ainda inabalado.

Varnhagen veio a falecer longe do Brasil, como sempre tinha vivido, em Viena
d’Áustria, a 20 de junho de 1878.

A filosofia da História de Varnhagen é a comum filosofia espiritualista
cristã do seu tempo, com o pensamento moral e político da sua
educação portuguesa. É em história um providencialista,
em política um homem de razão de Estado, da ordem, da autoridade
e do fato consumado. Depois de narrar as depredações do corsário
inglês Cavendish nas costas do Brasil, diz que veio a “falecer
no mar, dentro de pouco tempo, provavelmente ralado pelos remorsos” (Hist.
geral, I, 391). Os remorsos matarem um corsário do século XVI!
Duguay-Trouin, regressando do seu assalto feliz ao Rio de Janeiro, “sofreu
temporais que lhe derrotaram a esquadra, como se a Providência quisesse
castigar os que os nossos haviam deixado impunes” (ibid. II, 816). Malogrou-se
a revolução pernambucana de 1817. “Ainda assim desta vez
(e não foi a última) o braço da Providência, afirma
seriamente Varnhagen, bem que à custa de lamentáveis vítimas
e sacrifícios, amparou o Brasil, provendo em favor da sua integridade”
(ibid. 1150, II). Esta filosofia tem ao menos a vantagem de não ser
presunçosa e de dispensar qualquer outra. Era aliás a do tempo,
e dela se serviram aqui todos os historiadores sem exceção de
João Lisboa, o mais alumiado de todos. Varnhagen, porém, com
abuso, piorando o seu caso com o carrancismo da sua educação
portuguesa se não de seu próprio temperamento literário.

V — NORBERTO

Joaquim Norberto de Souza Silva nasceu no Rio de Janeiro a 6 de junho de
1820 e faleceu em Niterói a 14 de maio de 1891. Nesta geração
de laboriosos homens de letras, foi um dos mais laboriosos, e a alguns respeitos,
um dos melhores e mais úteis deles. Ou porque a existência fosse
então mais fácil ou porque o amor desinteressado das letras
fosse então maior, é certo que nenhuma geração
literária brasileira antes ou depois desta trabalhou e produziu tanto
como esta. As bibliografias de Norberto enumeram-lhe cerca de 80 obras diversas,
grandes e pequenas, desde 1841 publicadas em volume ou em jornais e revistas,
afora prefácios, introduções crítico-literárias
a obras que editou e outras. No acervo literário encontra-se-lhe de
tudo, poesia de vários gêneros, teatro, romance, biografia, ensaios
e estudos literários, administração pública, história
política e literária e crítica. Como Norberto não
tinha nem o talento, nem a cultura, pois era um fraco autodidata, que presume
tamanha e tão variada produção, é ela na máxima
parte medíocre ou insignificante. Deste enorme lavor apenas se salvam,
para bem da sua reputação, os seus vários trabalhos sobre
as nossas origens literárias, os seus excelentes estudos sobre os poetas
mineiros, a sua grande e boa monografia da Conjuração Mineira
e algumas memórias históricas publicadas na Revista do Instituto.
Por aqueles trabalhos é Norberto, depois de Varnhagen, o mais prestimoso
e capaz dos indagadores da história da nossa literatura, um dos instituidores
desta. Como crítico, porém, sacrifica demais ao preconceito
nacionalista de achar bom quanto era nosso, de encarecer o mérito de
poetas e escritores somenos, no ingênuo pressuposto de servir à
causa das nossas letras. Ele as serviu otimamente aliás, menos pelo
que de original produziu, que é tudo secundário, ou por esse
zelo indiscreto delas que fê-las suas conscienciosas investigações
de alguns tipos e momentos da nossa história literária, e publicações
escorreitas de algumas obras que andavam inéditas ou dispersas e desencontradiças
dos nossos melhores poetas coloniais.

Concorreu mais para avultar grandemente a produção literária
do seu tempo e geração. Na esteira de Magalhães fez também
poesia americana, cantou os índios, pôs em verso cenas e episódios
da nossa história ou das nossas tradições, e, até,
com pouco engenho e nenhum sucesso, tentou a naturalização da
balada, forma poética por sua singeleza absolutamente antipática
à gente, como a portuguesa e a nossa, de alma pouco ingênua e
que de raiz ama a eloqüência da poesia. Em Norberto se exagera
o espiritualismo sentimental de Magalhães, e o seu maneirismo poético.
Além dos portugueses e brasileiros lê o pseudo-Ossian, Lamartine,
George Sand (ainda então M.me Du Devant, como a cita), A. de Vigny,
Delavingne e Chateaubriand, Lope de Rueda, Victor Hugo, Parny, Ducis, Shakespeare.
O alimento romântico não lhe tira toda a substância clássica,
e, cedendo-lhe, escreve também uma tragédia em verso, em cinco
atos, respeitando deliberadamente as regras aristotélicas: Clitemnestra.
Das peças que escreveu Norberto, parece que a única representada,
em 1846, e por João Caetano, foi Amador Bueno ou a fidelidade paulistana,
em 5 atos. Também se representaram traduções suas do
Tartufo, de Molière, e do Carlos VII, de Dumas pai, segundo a informação
pouco segura de Sacramento Blake.

Noberto foi mais o criador, se não do romance brasileiro da ficção
novelística em prosa aqui. A sua novela, aliás por ele mesmo
chamada de romance, As duas órfãs, foi publicada em 1841 (8.º,
35 págs.), dois anos portanto antes do Filho do pescador, de Teixeira
e Sousa, que é de fato pelo desenvolvimento e volume o primeiro romance
brasileiro. Em 1852 reuniu Norberto essa e mais três novelas sob o título,
impróprio quanto ao primeiro termo, de Romances e novelas, num volume
em oitavo de 224 páginas. São todas de assunto e inspiração
nacional. A intuição que Norberto tinha do romance acha-se expressa
na sua notícia sobre Teixeira e Sousa: “expandir-se pelas minuciosidades
das descrições dos quadros da natureza, perder-se em reflexões
filosóficas e demorar-se nas trivialidades de um enredo cheio de incidentes
para retardar o desenlace da ação principal”.106

Certamente Teixeira e Sousa nos seus longos romances cumpriu mais à
risca este programa, aliás da sua índole e gosto; Norberto,
porém, ainda nas suas novelas o seguiu.

Norberto publicou várias coleções de poesias, quatro
ou cinco pelo menos, além de numerosos poemas que em tempos diversos
saíram em períodicos e não foram jamais reunidos. Embora
muito apreciados no seu tempo, nenhum só desses poemas viveu na nossa
memória ou sobreviveu ao poeta. A história literária
é uma impertinente e implacável desconsoladora da vaidade literária,
patenteando a do próprio trabalho das letras e o efêmero e precário
da glória contemporânea. Mas no seu tempo, ao menos, não
foi de todo vão esse ímprobo labor dos Norbertos, dos Teixeiras
e Sousas e de outros companheiros seus na criação da nossa literatura.
Eles trouxeram a pedra que por oculta e desconhecida nem por isso deixa de
ter servido para levantar o edifício.

Não obstante haver compilado um volume de estudos alheios da língua
portuguesa,107 o que faria supor-lhe particular estudo dela, Norberto não
escreveu bem. Como os escritores seus confrades de escola e companheiros de
geração, não teve mesmo a nossa preocupação
de bem escrever, com acerto e elegância. É geralmente natural
desataviado, mas não raro também incorreto. Quando se quer elevar
a um estilo mais castigado, guinda-se e cai no empolado e no difuso. Perpetra
menos galicismos do que hoje e do que o vulgo dos escritores portugueses seus
contemporâneos. Aliás os da sua geração incorriam
menos nesse defeito que os posteriores.

A sua obra capital em prosa é a História da Conjuração
Mineira, nada obstante a opinião que dela possa fazer o nosso sentimentalismo
político, uma das boas monografias da nossa literatura histórica.
E mais bem ordenada e composta do que é comum em livros tais aqui escritos.
Além disso, o que também não é aqui vulgar, uma
obra original, feita principalmente com pesquisas próprias e de estudo
pessoal.

VI — MACEDO

Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí, na província do
Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1820, e morreu na cidade do Rio de Janeiro
em 11 de abril de 1882. Foi historiador, poeta, romancista, corógrafo,
dramaturgo e comedista, além de jornalista político e literário.
Nem pelo vigor do pensamento, nem por qualidades de expressão literária,
se abaliza como escritor. É como criador, com Magalhães e Teixeira
e Sousa, e mais eficaz do que estes, do romance brasileiro, como um dos principais
fomentadores do nosso teatro, e porventura o seu melhor engenho, como autor
de um poema romântico, no gênero um dos melhores produtos literários
dessa época, e enfim pela influência que, principalmente como
romancista, exerceu, que Macedo é um dos tipos mais vivos da nossa
literatura. Foi um dos escritores mais fecundos que temos tido, talvez o mais
fecundo. Deixou mais de vinte romances, quase outras tantas peças de
teatro, poesia e aquele poema romântico em seis cantos, livros de história
e corografia do Brasil, quatro grossos volumes de biografia, obras didáticas,
discursos acadêmicos e políticos, além de estudos históricos,
e folhetins e artigos diversos de sua colaboração em jornais
e revistas. Afora os romances, o teatro e aquele poema, o resto é de
somenos valor. Macedo fazia história como fazia romance, descuidadamente,
ao correr da pena, sem nenhum escrúpulo de investigação
e de estudo. Os seus grossos tomos de biografia são totalmente sem
préstimo.

A sua primeira obra em livro é o romance A moreninha,108 de 1844.
Seguem-se-lhe, no ano seguinte, O moço loiro (2 vols. In-8.º),
em 1848, Os dois amôres (2 vols. In-8.º), em 49 Rosa e, a breves
trechos, Vicentina, O forasteiro (aliás escrito antes de todos estes),
O culto do dever, A luneta mágica, O Rio do Quarto, Nina, As mulheres
de mantilha, Um noivo e duas noivas, e outros, sem contar as novelas colecionadas
sob vários títulos. A maior parte tem mais de um tomo.

A moreninha foi um acontecimento literário e popularizou-se rapidamente.
A crítica exultou com o seu aparecimento. Dutra e Melo, na Minerva
Brasiliense, do mesmo passo que o celebra com grandes gabos, expõe
a teoria do romance como devia ser e era aqui praticado. Preconiza o romance
histórico e o romance filosófico, que ainda ninguém aqui
fizera, contanto que neste se não sigam “os delírios da
escola francesa, um Louis Lambert por exemplo”. Se bem cair no preceito
do Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, deve esse romance tornar-se
moralizador e poético. Reconhece que “autores de merecimento,
poetas distintos (aludiria certamente a Magalhães, Teixeira e Sousa
e Noberto) se tinham já ocupado do romance sentimental produzindo belas
páginas”. De todo esse artigo de escritor então muito conceituado,
deduz-se que o romance devia ser poético, sentimental, moralizador.
Foi assim realmente que mais ou menos o fizeram os romancistas dessa geração
e ainda da seguinte.

A moreninha consagrou definitivamente o autor que até a sua morte
foi conhecido como “o Macedo d’A moreninha” ou também
pelo apelido familiar de “o Macedinho”. Esse romance, ainda hoje
muito lido, é talvez o que maior número de edições
e republicações tem tido no Brasil.

Os romances de Macedo são todos talhados por um só molde. São
ingênuas histórias de amor, ou antes de namoro, com a reprodução
igualmente ingênua de uma sociedade qual era a do seu tempo, chã
e matuta. Cuidando aumentar-lhes o interesse, e acaso também fazê-los
mais literários, carrega o autor no romanesco, exagera a sentimentalidade
até à pieguice, filosofa banalidades a fartar e moraliza impertinentemente.
São romances morais, de família; leitura para senhoras e senhoritas
de uma sociedade que deles próprios se verifica inocente, pelo menos
sem malícia, e que, salvo os retoques do romanesco, essas novelas parece
retratam fielmente. A sua filosofia é trivial, otimista e satisfeita,
conforme o espírito da época romanceada. A sua moral, a tradicional
nos povos cristãos, sem dúvidas, nem conflitos de consciência,
a moral de catecismo para uso vulgar. Nem a prejudica o abuso de namoro, ou
alguns casos de amor romanesco, pois tudo não aponta senão ao
casamento e acaba invariavelmente nele, para completa satisfação
dos bons costumes. Pouco variam as situações e tipos dos romances
de Macedo. Ou eram de fato uma e outros constantes na sociedade de que Macedo
escreveu o romance, ou ao romancista faltou a arte de lhes descobrir as forçosas
variações. São infalíveis neles certas categorias
de personagens, a moça apaixonada, amorosa ou namoradeira, a intrigante
ou invejosa que contra esta conspira, o galã, ora fatal e irresistível,
ora apenas simpático e galanteador, a velha namoradeira e ridícula,
o velho azevieiro e grotesco, o estudante engraçado, divertido e trêfego,
o traidor que maquina contra o galã e a sua amada, o ancião
(o ancião de Macedo é um homem de 50 anos, como as suas jovens
amorosas não têm nunca mais de dezesseis) experiente, amigo certo
e conselheiro avisado e mais o gracioso ou jocoso da comédia. Vem a
pêlo a terminologia teatral, porque Macedo é em muito autor dramático,
e os seus romances deixam por mais de uma feição rever este
conspícuo feitio do seu engenho. Ao invés dos escritores nossos
patrícios dessa fase e ainda dos das subseqüentes, Macedo é
um escritor alegre e satisfeito, porventura o único da nossa literatura.
A sua arte lhe é um divertimento, e o seu objeto, praticando-a, divertir
os seus contemporâneos, sem talvez se lhe dar dos vindouros. Diverti-los
moralizando-os, risonhamente, despreocupadamente, sem outro propósito
mais alto, tal parece ter sido o seu intuito literário.

A atividade dramática de Macedo vai de 1849 aos últimos anos
de 60 ou aos primeiros de 70. É justamente o período de maior
florescimento do nosso teatro, que então realmente existiu com autores
e atores nacionais, queridos e estimados do público. Entre os últimos
havia-os, é certo, portugueses, mas esses, quase todos domiciliados
aqui, achavam-se de fato nacionalizados. Macedo concorreu para esse teatro
com mais de uma dúzia de peças, dramas em prosa e verso, comédias,
óperas, que são o moderno vaudeville, e farsas, mostrando em
tudo vocação decidida para o gênero fácil e boa
veia cômica. Como esta lhe vinha mais do natural que a dramática,
valem as suas comédias mais do que os seus dramas. Na comédia
acha-se ele melhor, em um mundo mais natural, mais espontâneo e que
lhe é mais familiar e conhecido que o dos seus dramas. Na inspiração
e feitura destes, sente-se a influência da dramaturgia francesa contemporânea,
como em Lusbela, por exemplo, a da Dame aux Camélias, ou de quejandos
modelos. Demasiado românticos de assunto, excessivamente romanescos
de composição e estilo, falham mais os seus dramas do que as
suas comédias na representação que presumem ser da nossa
vida. Não logram também atingir por qualidades superiores de
invenção e expressão a generalidade da representação
humana que supra ou exceda aquela. Há, porém, neles condições
de teatralidade e arte de desenvolvimento e exposição. O principal
defeito do nosso teatro, o que mais nos afronta com a sua desnaturalidade,
é o diálogo geralmente falso ou em desacordo com o que ouvimos
na rua ou na sala. A nossa sociedade, de fato ainda não de todo perfeitamente
policiada, se não criou já uma sociabilidade, com fórmulas
dialogais e de tratamento mútuo entre os interlocutores, que o escritor
de outras línguas quase não faz senão reproduzir. Esse
tratamento no nosso teatro mostra afrontosa incoerência, que é
aliás a mesma dos nossos hábitos de conversação.
Querendo evitá-la, Macedo e muitos dos nossos escritores de teatro
ainda hoje recorrem ao tratamento da segunda pessoa do plural, que fora do
estilo oficial ou do verso, de todo não usamos. E como o ridículo
é um pouco o insólito, essas formas ridiculizam as peças
que as empregam. O teatro romântico na comédia popular de Pena,
de Macedo, de Alencar e de autores de menor nome, deu da sociedade do tempo
uma cópia em suma exata. Desmerece, porém, essa representação
no drama ou na comédia da nossa alta vida. Esta a viram sempre através
de suas impressões de romântica francesa. Daí a pouca
fidelidade na pintura dela e nos sentimentos que lhe atribuem. Nunca houve
de fato na nossa sociedade preconceitos de raça ou de casta bastante
generalizados e profundos, capazes de determinar as situações
como a de Lusbela, de Macedo.

Num momento de feliz inspiração escreveu Macedo A nebulosa,
poema não só romântico de intenção e de
escola, mas nimiamente romanesco. Não obstante a sua sensibilidade
lamurienta, e o aparelho ultra-romântico da ação, cheia
de maravilhas de mágica, há neste único poema de Macedo
grandes belezas de poesia e expressão. Mais de um trecho seu ainda
nos impressiona pela força de emoção que lhe pôs
o poeta. Mas ainda para o tempo desmasiava-se o poema em indiscretos apelos
ao patético e sentimentalidade que fazem que hoje não o leiamos
sem enfado.

Concomitantemente com estes principais representantes da nossa primeira fase
romântica, poetaram aqui outros muitos sujeitos, como os fluminenses
Joaquim José Teixeira (1822-1884), José Maria Velho da Silva
(1811-1901), Antônio Félix Martins (1812-?), José Maria
do Amaral (1812-1885), Firmino Rodrigues Silva (de Niterói, 1816-1879);
os mineiros Cândido José de Araújo Viana (marquês
de Sapucaí — 1893-1875) e Antônio Augusto de Queiroga (1812-1855);
o baiano Francisco Moniz Barreto (1804-1868), e o pernambucano Antônio
Peregrino Maciel Monteiro (1804-1868).

Publicistas, políticos, diplomatas, advogados, médicos, funcionários
públicos, poetas o são apenas ocasionalmente, inconseqüentemente,
mais de recreio que de vocação, e a sua obra de amadores sobre
escassa, o que lhes revê a inópia do estro, é em suma
insignificante. Vale somente como indício de uma inspiração
poética que se não limitava aos próceres do movimento
romântico.

Havia no entanto entre eles um bom, um verdadeiro poeta, José Maria
do Amaral, antes um árcade retardatário do que um puro romântico,
mas um árcade todo impregnado do lirismo garretiano. Os seus sonetos,
nunca reunidos em volume, são talvez como tais, e como poesia subjetiva,
o que melhor deixou essa geração. A fama de que gozou Moniz
Barreto, devida ao seu singular talento de improvisador, qualidade então
apreciadíssima, não a confirma agora a leitura da sua obra,
reflexo demasiado apagado do dessorado elmanismo.


Capítulo XI

GONÇALVES DIAS E O GRUPO MARANHENSE

OS IMPULSOS DE renovação literária dos nossos românticos
da primeira hora, Magalhães, Porto Alegre, Norberto, Macedo e outros,
os veio perfazer o poderoso talento de Gonçalves Dias. Da poesia genuinamente
brasileira, não por exterioridade de inspiração ou de
forma ou pela intenção dos temas e motivos, mas pelo íntimo
sentimento do nosso gênio com as suas idiossincrasias e peculiaridades,
em suma da psique nacional, foi ele o nosso primeiro e jamais excedido poeta.

Gonçalves Dias é nas nossas letras um dos raros exemplos comprobatórios
da falaz teoria da raça. Parece que nele se reuniam as três de
que se formou o nosso povo. Seu pai era português de nascimento, a mãe
aquilo que chamamos no Norte, donde era, cafuza, isto é, o resultado
do cruzamento do índio com o negro. Nasceu em Caxias, no Maranhão,
em 1823, da união natural de seu pai com aquela boa mestiça,
que lhe foi mãe carinhosa. Da terra natal, onde iniciou os estudos
de latim com o mestre público local, passou com o pai à capital
da Província, seguindo logo ambos daí para Portugal, o pai em
busca de saúde, ele de instrução. Pouco depois de ali
chegado, morreu-lhe o pai, que já ia muito doente. Com quatorze anos,
achou-se Gonçalves Dias só, em terra estranha. Esta circunstância,
agravando a nostalgia que sem dúvida lhe produzia o apartamento da
pátria e da mãe, aumentar-lhe-ia a natural dor da perda do pai.
No belíssimo poema autobiográfico Saudades, que dedicou à
irmã, transpira ainda, não obstante os anos passados, a sua
grande mágoa, “essa dor que não tem nome”:

De quando sobre as bordas de um sepulcro

Anseia um filho, e nas feições queridas

Dum pai, dum conselheiro, dum amigo

O selo eterno vai gravando a morte!

Escutei suas últimas palavras,

Repassado de dor! — Junto ao seu leito,

De joelhos, em lágrimas banhado

Recebi os seus últimos suspiros.

E a luz funérea e triste que lançaram

Seus olhos turvos, ao partir da vida

De pálido clarão cobriu meu rosto

No meu amargo pranto refletindo

O cansado porvir que me aguardava!

Tornou ao Maranhão, mas já em 1840 estava de volta a Portugal
matriculado na Universidade de Coimbra. Ou assim nascesse, e é talvez
o mais certo, ou as circunstâncias do seu nascimento, aquele golpe precocemente
sofrido, a orfandade, o prematuro afastamento da terra natal e das suas mais
caras afeições de infância, assim o houvessem feito, foi
Gonçalves Dias, não obstante alguns lampejos de bom humor e
de jovialidade, uma alma profundamente melancólica e profundamente
sensível. Ela se lhe formou ainda em meio das agitações
conseqüentes à Independência. Deu-o a mãe à
luz quando o pai, por esquivar perseguições que a sua qualidade
de português lhe poderia atrair, achava-se foragido nos matos vizinhos
de Caxias, habitando uma palhoça, onde Gonçalves Dias nasceu,
na carência de qualquer conforto, entre aflições e medos.
Deixaram-lhe forte e viva impressão estes primeiros incidentes de sua
vida. Di-lo ele à sua irmã naquele poema, uma das suas melhores
páginas:

Parti, dizendo adeus à minha infância,

Aos sítios que eu amei, aos rostos caros

Que já no berço conheci, àqueles

De quem, mau grado a ausência, o tempo, a morte

E a incerteza cruel do meu destino,

Não me posso lembrar sem ter saudades,

Sem que aos meus olhos lágrimas despontem.

…………………………………………………………….

Ave educada nas floridas selvas

Vim da praia beijar a fina areia;

Subitâneo tufão arrebatou-me,

Perdi a verde relva, o brando ninho.

Nem jamais casarei doces gorjeios

Ao saudoso rugir dos meus palmares;

Porém a branca angélica mimosa

Com seu candor enamorando as águas,

Floresce às margens do meu pátrio rio.

E a mesma imagem se repete mais adiante, mostrando a obsessão daquela
impressão dolorosa:

Ave educada nas floridas selvas,

Um tufão me expeliu do pátrio ninho;

As tardes dos meus dias vorrascosos

Não terei de passar sentado à porta

Do abrigo de meus pais, nem longe dele,

Verei tranqüilo aproximar-se o inverno

E pôr do sol dos meus cansados anos!

O tufão que o expeliu do pátrio ninho foi o casamento do pai
com outra mulher que não aquela de quem ele nascera. A dor que lhe
envolveu a infância afeiçoou-lhe a índole pessoal e poética
e pôs-lhe n’alma a tristeza forte que será a sua marca
e o seu encanto. A ela juntaram-se-lhe despertadas ou alvoroçadas pelos
gabos desde menino ouvidos ao seu talento, ambições de sobrelevar-se
à sua mesquinha condição:

Um dia apareceu um recém-nado,

Como a concha que o mar à praia arroja;

Cresceu qual cresce a planta em terra inculta,

Que ninguém educou, a chuva apenas,

Infante viu da roda sepulturas,

Em que não atentou;

……………………………………………………….

Então sentiu brotarem na sua alma

Sonhos de puro amor, sonhos de glória

Sentiu no peito um mundo de esperanças,

Sentiu a força em si — patente o mundo.

Em 1845 formado em Direito, regressou à sua província. Foi
à terra natal que deixou logo “ralado de desgostos, por motivos
que se não declara”, informa discretamente um seu grande amigo
e amoroso biógrafo. Esses motivos seriam de ordem doméstica
e provenientes da coexistência da mãe e da madrasta, que aliás
parece-lhe fora caroável. A entristecer-lhe o ânimo já
de raiz e das circunstâncias de sua vida melancólico, a amargurar-lhe
a alma e travar-lha de dissabores, que a sua sensibilidade de poeta e de valetudinário
exagerariam, concorreram mais as condições de penúria
e dependência em que, graças à bondade e comiseração
de patrícios, amigos raríssimos, lograra completar a formatura
em Coimbra. Pouco se demorando na capital de sua Província, veio para
o Rio de Janeiro em meados de 1846 e aqui publicou os seus Primeiros cantos.109
Antes publicara apenas um pequeno poema Inocência no trovador de Coimbra
e três ou quatro de igual extensão no Arquivo, jornal do Maranhão.

A crítica, tanto a do Rio de Janeiro como a das províncias,
acolheu este primeiro livro de Gonçalves Dias com calorosos e merecidos
encômios e, o que mais vale e é menos comum, com atilada compreensão
do seu valor. O balbucio de Magalhães e Porto Alegre era já
em Gonçalves Dias a fala clara, perfeita e melodiosa. Com muito mais
harmonia, mais íntimo e mais vivo sentimento, mais espontânea
e original inspiração, maior sensibilidade emotiva, havia relevantemente
nele dons de expressão muito superiores. Pode dizer-se que aqueles
poemas revelam — e os posteriores o confirmariam — o primeiro
grande poeta do Brasil.

Esta preeminência de que os contemporâneos tiveram a intuição,
a vieram confirmar os Segundos cantos e sextilhas de Frei Antão, publicados
também no Rio dois anos depois. Valem menos as Sextilhas como prova
do seu saber da língua e um feliz postiço arcaico desta, que
por testemunharem a delicadeza e vigor da sua imaginação e pensamento
poético e riqueza de sua inspiração lírica. Corroboraram-no
ainda os Últimos cantos, de 1851, tudo reunido mais tarde sob o título
de Cantos, na primeira edição de Leipzig (F. A. Brackhaus, 1857,
16.º, XXVIII, 654 págs.). Sucederam-se novas edições
em número de quatro, contadas da primeira dos Cantos quando acabava
o poeta de morrer. Alguns dos poemas dos Primeiros Cantos, porventura os melhores,
repunham em a nossa poesia o índio nela primeiro introduzido por Basílio
da Gama e Durão. Era essa a sua grande e formosa novidade. Nos poemas
daqueles poetas não entrava o índio senão como elemento
da ação ou de episódios, sem lhes interessar mais do
que o pediam o assunto ou as condições do gênero. Nos
cantos de Gonçalves Dias, ao contrário, é ele de fato
a personagem principal, o herói, a ele vão claramente as simpatias
do poeta, por ele é a sua predileção manifesta.

Entre a publicação dos Primeiros e dos Últimos cantos
compôs Gonçalves Dias os primeiros seis de um poema americano
Os Timbiras, dos quais publicou em Leipzig, em 1857, os quatro primeiros.
Continuava a mesma inspiração simpática ao índio
e a mesma idealização afetuosa dos seus feitos e gestos, que
distinguirá o segundo indianismo, cujo iniciador foi exatamente Gonçalves
Dias, do primeiro criado por Basílio da Gama. Os Timbiras, como as
Americanas, não só ficariam, a todas as luzes, os mais belos
poemas de inspiração indianista aqui produzidos, mas os únicos
que sobrevivem aos motivos ocasionais dessa inspiração e ao
gosto do momento. Um deles, I-Juca-Pirama, é sob todos os aspectos,
essenciais ou formais, uma das raras obras-primas da nossa poesia e ainda
de nossa língua. O próprio Portugal, geralmente pouco simpático
às nossas tentativas de emancipação literária,
pelo mais autorizado então dos seus órgãos intelectuais,
Alexandre Herculano, não só reconhecia nos Primeiros cantos
“as inspirações de um grande poeta”, mas lastimava
não houvesse o poeta dado neles maior espaço às poesias
americanas. Os Timbiras cediam ao preconceito do poema épico da tradição
portuguesa, continuada aqui desde os começos da nossa poesia. Acostando-se-lhe,
fazia-o entretanto Gonçalves Dias com manifesta superioridade de inspiração
e de expressão. Aquela é mais sincera, vem-lhe mais do íntimo.
Porventura impulsado por um recôndito sentimento de sua alma de caboclo,
avivado pela nostalgia do “filho do bosque”, traz muito maior vigor
de idealização. A expressão é muito mais rica,
muito mais variada e melodiosa — sobre tudo muito mais melodiosa —
que a de qualquer outro dos nossos poemas. Do maior dos nossos épicos
até então, Basílio da Gama terá, com mais opulenta
imaginação, a harmonia do verso branco, no qual já rivalizava
com Garrett. A influência do Uraguai é visível no poema.
Mas não o deslustra essa influência, que apenas revê a
continuidade da nossa tradição poética. Indicia esse
influxo, e quase reproduz o verso do Uraguai

No espaço azul não chega o raio

estoutro dos Timbiras, aludindo ao surto do condor após a presa feita,

E sobe audaz onde não chega o raio.

Também a apóstrofe — América infeliz! do formosíssimo
canto terceiro recorda o — Gentes da Europa nunca vos trouxera —
do segundo canto do Uraguai.

Nenhum poeta moderno teve como Camões o sentimento do paganismo e
do seu maravilhoso. Assim também nenhum poeta brasileiro, em prosa
ou verso, teve em grau igual ao de Gonçalves Dias o sentimento do nosso
índio e do que lhe constituía a feição própria.
Todos os nossos indianistas, maiores e menores, sem excetuar o próprio
Alencar, que é quem em tal sentimento mais se aproxima de Gonçalves
Dias, o foram antes de estudo e propósito que de vocação.
Daí a sua inferioridade relativamente ao poeta dos Timbiras e os despropósitos
em que caíram. E o conceito pode ser generalizado a toda a obra lírica
de Gonçalves Dias.

É que ele é um dos raros, se não foi o único,
dos nossos que, com os dons naturais para o ser, a vida fez poeta. Não
a moda, a retórica, a camaradagem, a presunção ou algum
estímulo vaidoso ou interesseiro, ou sequer patriótico, o fizeram
poeta senão a dor e o sofrimento. É primeiro o afastamento do
torrão natal e do carinho materno em anos verdes, a perda do pai e
o isolamento em terra estranha, a amargura do seu nascimento mais que humilde,
o sentimento da sua inferioridade social — contrastando com a sua fidalguia
moral e mental, é a humilhação de viver de amigos, é
a sua penúria de recursos e mesquinhez de vida, é o desencontro
de suas ambições com as suas possibilidades, é o convívio
do meio mesquinho seu conterrâneo e por fim e acaso mais que tudo, quando
já lhe sorrira a glória e ele assim mesmo se enobrecera pelo
gênio e trabalho, a recusa da mulher muito amada, por motivo do seu
nascimento. Não há, ou apenas haverá um destes passos
da sua vida dolorosa, aos quais outros fora possível acrescentar, que
não tenha deixado impressões, ecos, vislumbres nos seus poemas.
A nostalgia inspira-lhe a Canção do exílio, no seu gênero
e ingenuidade acaso o mais sublime trecho lírico da nossa poesia, a
expressão mais intensa e mais exata do nosso íntimo sentimento
pátrio. As agruras da sua juventude as Saudades, de tão fina
sensação dolorosa, de tão bela e comovedora expressão.
Os seus amores infelizes esses dois soberbíssimos trechos sem iguais
no nosso lirismo: Se se morre de amor e Ainda uma vez, adeus, e mais aquele
encantador No jardim, amostra peregrina em a nossa poesia de emoção
profunda casada à profunda singeleza. Nem desmerecem destes os poemas
da mesma inspiração, que lhe brotam, cheios de lágrimas
do fundo d’alma: Ó que acordar e Se muito sofri já, não
mo perguntes.110

110Os dois primeiros citados foram publicados pelo poeta nos seus Cantos,
edição de Leipzig, de 1857; os três últimos saíram
nas suas Obras póstumas, dadas a lume com inteligente e carinhoso desvêlo
pelo seu amigo Dr. Antônio Henriques Leal (S. Luís do Maranhão,
1868-1869, 4 vols.). Na biografia do poeta que o mesmo consciencioso editor
publicou no 3.º vol. Do seu Panteon Maranhense (Lisboa, 1873-1875, in-8.º
gr., 4 vols.) reproduziu correta e aumentada a excelente notícia da
vida e obras do poeta de que lhe precedera as Obras Póstumas. Foi-nos
ela de grande préstimo neste estudo. Sem embargo de veniais senões
de composição (divagações e alongamentos escusados,
por exemplo) são estas duas obras de Henriques Leal, um dos epígonos
dessa bela geração maranhense, modelo único em a nossa
crítica bibliográfica e biográfica, e credores de muita
estima.

Antes e depois de Gonzaga jamais se ouvira em a nossa poesia cantos de amor
tão repassados de íntimo sentimento e de uma tão formosa
expressão. Os poetas contemporâneos dos últimos anos de
Gonçalves Dias, os seus sucessores imediatos, os poetas da segunda
geração romântica, os repetirão com emoção
às vezes igual, nenhum porém com a alta e essencial beleza dos
seus. Com ele achava enfim o lirismo brasileiro a sua expressão mais
eminente, a sua feição modelar, nunca mais, se não atingida,
excedida.

O poeta a mais de um respeito genial desdobra-se em Gonçalves Dias
num dos prosadores mais seletos das nossas letras. Às obras líricas
junta simultaneamente com inspiração muito mais romântica
que a de Magalhães e seus colaboradores, a dramática. Em 1847
publica D. Leonor de Mendonça, drama original de assunto português,
em três atos e cinco quadros. Antes, em 1843, compusera o Patkul, no
ano seguinte Beatriz Cenci e mais tarde (1860) Boabdil, todos só postumamente
publicados. Não sabemos por que não foi nenhum destes dramas
representado tendo aparecido o primeiro e sendo escritos os outros justamente
na época em que nascia o teatro brasileiro, que eles teriam concorrido
para enriquecer e ilustrar. Ainda do ponto de vista teatral, não é
nenhum deles inferior aos de Magalhães e companheiros, e ao menos Leonor
de Mendonça lhes é, como criação artística
e mérito literário, superior. Está este longe da intensa
emoção e da alta e serena beleza do Frei Luís de Souza,
de Garrett, mas não lhe está tanto da sobriedade e formosa singeleza
de estilo. Publicando-o, precedeu-o o autor de um prefácio em que,
de parte os inevitáveis sacrifícios à poética
do tempo, há conceitos originais e inteligentes da literatura dramática
e de seus meios de expressão. Mais que tudo, é interessante
neste drama a interpretação do duvidoso caso histórico
que lhe forneceu o tema. Além de original e psicologicamente verdadeira,
é humana e dramática. Segundo o poeta, determinaram-no somente
as condições do meio, “a fatalidade filha das circunstâncias
e que dimana dos nossos hábitos e da nossa civilização”,
como ele chãmente explica, sem parecer dar maior importância
ao seu achado, que não era vulgar para a época. É pelo
menos reparável que fazendo teatro Gonçalves Dias só
o fizesse de assuntos estrangeiros. Podia-se acaso ver neste fato a clara
consciência que teria de que a nossa sociedade, a histórica e
a atual, dificilmente depararia ao poeta assuntos propícios à
criação dramática. Embora assim fosse, não é
menos de notar-lhe a abstenção de assuntos nacionais, pois a
grandeza do poeta consiste por muito em sobrepujar tais dificuldades. Quanto
a trazer o índio para o teatro, como o trouxe para a poesia, parece
andou acertadíssimo, sem embargo do muito que há de dramaticamente
belo no I-Juca-Pirama. Mas a estética particular do governo desaconselha
a invasão, ainda acompanhada de música, do selvagem no teatro.

A obra puramente poética de Gonçalves Dias sobrepujou em acabamento
e mérito a tudo o mais que escreveu, de modo a o velar e esconder mesmo
à maioria dos seus admiradores. O seu brasileirismo, que não
era apenas manifestação do seu indianismo, mas lhe estava, para
falar com o nosso povo, na massa do sangue, e lhe vinha do nascimento e criação
em um meio genuinamente brasileiro e de influições da raça
indígena na formação da sua psique, o fortificaram estudos
da história e etnografia nacional, nos quais revelou outras faces do
seu talento e capacidade literária: qualificações para
tais estudos, aptidão crítica, facilidade e pertinência
de exposição. As suas memórias sobre a existência
de amazonas no Brasil, sobre o descobrimento casual ou não deste e
sobre as civilizações indígenas do país e da Oceânia,
como antes desde as suas Reflexões acerca dos Anais de Berredo, do
mesmo passo que lhe comprovam não comum erudição destes
assuntos, documentam no poeta não vulgar versatilidade de talento.111

A estes diversos escritos, e até alguns de caráter administrativo
e oficial, colaboração em revistas e jornais, ensaios apenas
encetados, folhetins, cumpre juntar como prova da atividade mental do poeta
e gosto e vocação dos estudos brasileiros, o Dicionário
da língua tupi (Leipzig, 1858) e o Vocabulário da língua
geral… usada no Alto Amazonas (Rev. do Inst., XVII). Todas estas obras em
prosa de Gonçalves Dias, ainda as que não são de natureza
literária, distinguem-se pela linguagem e estilo mais cuidados do que
era aqui comum, salvo nos seus comprovincianos. São por isso das que
ainda podemos ler com facilidade e prazer. Não só por qualidades
de pensamento, de imaginação e de sentimento, senão pelas
de expressão, é Gonçalves Dias um dos nossos clássicos,
ou por outra um daqueles pouco numerosos escritores brasileiros que o sendo
pelas íntimas qualidades de que procede um estilo, escrevem certa,
fluente e elegantemente. Ainda como escritor português, um ou outro
deslize112 não o desabona de vernáculo. E o é com mais
naturalidade, menos intencionalmente e de estudo do que os seus camaradas
do grupo Odorico Mendes, Sotero dos Reis e João Lisboa.

Ensaiou também Gonçalves Dias o romance, e quase foi ele, antes
de Texeira e Sousa, o seu inventor aqui. Ainda em Coimbra, por 1841 ou 42,
escreveu um a que deu o título realista de Memórias de Agapito
Goiaba, do qual apareceram fragmentos no Maranhão em 1846. Era um livro
de memórias e recordações pessoais travestidas e idealizadas,
à moda da Nova Heloísa, e só por isso seria certamente
curioso. Apesar deste exemplo ilustre, se não estava ainda na despudorada
literatura pessoal cujo criador foi exatamente Rousseau. À delicadeza
de Gonçalves Dias repugnou publicá-lo e o destruiu mais tarde.
Pelo que dessa tentativa nos resta, presumimos que além do sainete
das reminiscências e confidências disfarçadas num romance
vivido, teria este sobre os dos criadores do gênero aqui, aquilo que
totalmente lhes faltou, virtudes de composição e de expressão.
É, porém, como poeta o maior e o mais completo que o Brasil
criou, e o que lhe é mais afim, que Gonçalves Dias vive e viverá
na nossa literatura, da qual é uma das figuras mais eminentes, se não
a mais eminente. Vive e viverá também pela sua influência,
que foi considerável e legítima e não cessou ainda de
todo, e que porventura reviverá quando, passado este momento de exotismo
desvairado e incoerente, volvermos à mesma fonte donde dimana o nosso
sentimento, não indígena e nativista, mas social e humano.

O GRUPO MARANHENSE

Os comprovincianos e admiradores de Gonçalves Dias levantaram-lhe
em S. Luís uma estátua. De sobre o airoso fuste de uma palmeira
de mármore, eleva-se a sua débil e melancólica figura
de romântico. Em cada face do plinto onde assenta a planta que o poeta
fez, com o canoro sabiá, símbolo da terra brasileira, destacam-se
em relevo os medalhões de ilustres conterrâneos e camaradas do
poeta: João Lisboa (1812-1863), Odorico Mendes (1799-1864), Sotero
dos Reis (1800-1871), Gomes de Sousa. A idéia feliz da associação
destes nomes na justa homenagem que ao máximo de seus filhos prestava
a sua terra natal, comemora a coexistência simultânea nesse mesmo
torrão brasileiro de um grupo de intelectuais, como ora dizemos, que
por mal dela e nosso jamais se repetiria. Console-se o Maranhão, também
à Atenas, que lhe deram por antonomástico, nunca jamais lhe
voltou o tempo de Péricles.

Conquistado pelos portugueses ao franceses em antes de passados três
lustros do século XVII, era desde 1624 o Maranhão constituído
em Estado, separado do Brasil, aumentado do Grão-Pará, do Piauí
e do Ceará. Como o Brasil, teve o seu governador particular, geralmente
fidalgo de boa linhagem, sua legislação e administração
privativa. A posição geográfica aproximava-o mais da
metrópole que o Brasil, tornando-lhe as comunicações
com ela mais prontas. Não seria pouco motivo para lhe atrair a imigração
que se não desenraíza de todo da pátria e que é
talvez, como qualidade de gente, a melhor. Nota o insigne historiador maranhense
que o Maranhão recebeu menos degradados que o Brasil.113 Desde 1655,
como galardão dos seus serviços na expulsão dos holandeses,
foram pelo rei concedidos aos “cidadãos” de S. Luís
(e de Belém do Grão-Pará) os privilégios dos do
Porto. “Qualquer que fosse, pondera o mesmo historiador, a importância
destes privilégios, todos (os moradores) faziam muito empenho em alcançá-los,
e nesta matéria, como em tudo o mais, se introduziram pouco a pouco
graves abusos. Soldados, criados de servir, mercadores degradados, cristãos
novos; uns simplesmente inábeis, outros até infames pela lei,
achavam maneiras de introduzir os seus nomes nos pelouros, obtendo assim por
uma parte as qualificações de nobreza e o exercício dos
cargos da governança, e por outro a isenção do serviço
militar na infantaria paga, e nas ordenanças”.114 Desde os seus
começos, foi o Maranhão país agrícola, de cultura
de gêneros da terra e mais de algodão. Nesta cultura, também
desde os seus princípios, empregou numerosa escravaria negra e indígena.
A grande propriedade agrícola, mormente quando baseada no trabalho
escravo, sempre e por toda a parte criou presunções ou fumos
de fidalguia, vida ou aparências de grandeza. Excetuado talvez Pernambuco,
foi o Maranhão, em todo o Norte do Brasil, o lugar de mais numerosa
escravatura negra, e pela mesma situação de trabalhadores agrícolas
onde esta mais maltratada e desprezível se achou. Por motivo ainda
daquela real ou supositiva prosápia, foi ali mais vivo do que soía
ser no resto do país o preconceito de cor. Mais porventura do que em
outra parte do Brasil se conservou estreme acolá a branca, predominando
na sua capital até a Independência, e querendo predominar ainda
depois dela, o elemento português. Talvez sejam estes os motivos do
sotaque maranhense aproximar-se mais do que nenhum outro brasileiro do português,
o que explicaria também, sabida a influência da fonética
na sintaxe, que ali se tenha falado e escrito melhor do que algures. Por que
são os escritores maranhenses os que menos praticam a colocação
brasileira dos pronomes pessoais oblíquos, senão porque a sua
pronúncia se avizinha mais da de Portugal? Não se pode mais
duvidar que este fato lingüístico é em suma produzido por
um fenômeno prosódico.115

O Maranhão foi no Brasil um dos bons centros da cultura jesuítica,
toda ela particularmente literária. Ali viveu alguns anos da sua vida,
pregou vários dos seus sermões, escreveu muitas de suas cartas,
participou das suas lutas e contendas o padre Antônio Vieira. Que desde
o século XVII havia em S. Luís poetas, embora nenhum nome tenha
chegado até nós, mostra-o o fato da existência de devassas
contra os homens versistas, autores de sátiras contra os governantes.116
Bequimão, o cabeça dos motins de 1684, possuía e lia
livros de histórias de revoluções. Mais de um dos fidalgos
portugueses que governaram o Maranhão, além de Berredo, o autor
dos seus Anais, era homem culto e ainda de letras; e de outros funcionários
coloniais portugueses como Guedes Aranha, Henriarte, há documentos
preciosos do que chamo neste livro literatura de informação.
Fosse qual fosse a constituição da sociedade maranhense nos
tempos coloniais, tivesse ela no extremo norte a primazia da prosápia,
da riqueza ou da cultura, e demais um sentimento cívico mais apurado
pelas suas lutas com o estrangeiro invasor, ou brigas intestinas que muitas
foram e que, bem como aquelas, poderiam concorrer para lhes aguçar
o entendimento, o certo é que nesse período não concorreu
o Maranhão sequer com um nome para engrossar o nosso cabedal literário.
Não há com efeito um só maranhense entre os escritores
brasileiros do período colonial.

Entretanto, mal acabado este, estréiam os maranhenses em a nossa literatura
e da maneira mais brilhante. Efeito demorado daqueles antecedentes ou simples
acaso, isto é, evento, fortuito, cujas causas não podemos deslindar?
Antes de ter imprensa, teve o Maranhão, em 1821, um jornal manuscrito,
como os faziam os rapazes nos internatos, o qual, em cópias tão
numerosas quanto possível, corria a capital. Ainda nesse ano passou
a folha manuscrita a impressa, sob o mesmo título de Conciliador maranhense,
que revê o generoso intuito de empecer as demasias da agitação
nacionalista, já bem começada, contra os reinóis. A partir
daí multiplicam-se os jornais na província. Desde 1825 aparecem
como publicistas, à frente de jornais, dois daquele grupo de intelectuais,
Odorico Mendes e Sotero dos Reis. Outro, quiçá o maior dos quatro,
João Francisco Lisboa, é jornalista desde 1832 e o será,
com intermitências e sem fazer disso estado, pelo resto da vida. Desde
o princípio foi escritor mais zeloso do seu estilo do que costumam
ou podem ser jornalistas. Com a Revista aparecida em 1840, inicia Sotero dos
Reis o jornalismo literário na sua Província. Era uma “folha
política e literária” não só pela declaração
do seu subtítulo, mas pela sua matéria e linguagem. “Quando
se lhe deparava ensejo, não deixava passar uma obra literária
de cunho sem dar dela notícia, assinalando-lhe as belezas e reproduzindo
trechos de originais brasileiros ou portugueses ou traduzindo-os que eram
em língua estranha”.117 O jornalismo destes homens de letras,
talvez nele deslocados, era doutrinal, de alto tom e boa língua.

Quaisquer que tenham sido as suas determinantes, existia já na época
da Independência o gosto literário no Maranhão. Prova-o
o apuro com que ali se estudava e escrevia a língua nacional em contraste
com o desleixo com que era tratada no resto do Brasil e a parte que ali se
dava no mesmo jornalismo político à literatura. Provam-no mais
outros fatos. Em 1845, uma sociedade literária, composta de nomes não
de todo obscuros nas nossas letras, funda um Jornal de instrução
e recreio, que, além de versar assuntos didáticos e pedagógicos,
“era revista de literatura amena”. Outro grupo de homens de estudo
e letras, no qual se encontram alguns do primeiro, fundou no ano seguinte
uma Sociedade filomática, a qual também publicou uma Revista
e iniciou, antes de ninguém mais no Brasil, as conferências literárias.
Caso talvez mais notável, desde 1847 tinha o Maranhão uma imprensa
capaz de imprimir com decência que lhe podia invejar a Corte, obras
volumosas como os Anais de Berredo. Nessa oficina aprendeu Belarmino de Matos,
talvez o melhor impressor que já teve o Brasil, e dela saiu para montar
uma própria, onde nitidamente imprimiu bom número de obras,
com acabamento então único e ainda hoje raro excedido. Não
é menor testemunho deste pendor maranhense a possibilidade ali de livros
como os de Sotero dos Reis e de publicações como o Jornal de
Timon.

Neste ambiente, por qualquer motivo que nos escapa, literário, apareceu
a bela progênie de jornalistas, poetas, historiadores, críticos,
eruditos, sabedores que desde o momento da Independência até
os anos de 1860, isto é, durante cerca de quarenta, ilustraram o Maranhão
e lhe mereceram a alcunha gloriosa de Atenas brasileira. Beneméritos
de mais demorada atenção e maior apreço pela sua importância
literária e parte em a nossa literatura, são os já mencionados.

Manoel Odorico Mendes, nascido em S. Luís em 1799 e falecido em Londres
em 1864, é porventura o mais acabado humanista que já tivemos.
À ciência das línguas clássicas, e da sua filologia
e literatura, de que deixou prova cabal e duas versões fidelíssimas,
embora de custosa leitura, de Virgílio e de Homero, juntava estro poético
original, se bem que escasso. Foi também um erudito de cousas literárias
castiças e exóticas. Coube-lhe reivindicar definitivamente para
Portugal a composição original do Palmeirim de Inglaterra, pretendida
pela Espanha, já com assentimento de erudição portuguesa.118
Mas sobretudo foi um tradutor insigne, se não pela eloqüência
e fluência, pela fidelidade e concisão verdadeiramente assombrosa,
dada a diferente índole das línguas, com que trasladou para
o português os dous máximos poetas da antigüidade clássica,
não raras vezes aliás emulando-os em beleza e vigor de expressão.
Também traduziu Mérope (1831) e o Tancredo (1839), de Voltaire.
Assevera o clássico D. Francisco Manuel de Melo que “no pecado
de traduções não costumam cair senão homens de
pouco engenho”. Que não era grande o de Odorico Mendes parece
mostrá-lo o fato de não nos haver ele deixado, benemérito
de citação e leitura, mais que um poema original, ele que tanto
trabalhou e produziu em traduções. Esse poema é o Hino
à tarde. Escrito em Portugal e publicado pela primeira vez na Minerva
Brasiliense, em 1844, mesclam-se nesta composição o clássico
e o romântico, uma inspiração ainda arcádica e
européia e sentimentos brasileiros e estilo moderno. É, nada
obstante, um dos melhores produtos poéticos do tempo e merece ainda
estimado. Já porventura prenuncia Gonçalves Dias pelo tom sentimental
do seu lirismo mais subjetivo que o de Magalhães.

Francisco Sotero dos Reis, um ano mais moço que Odorico Mendes, mas
seu condiscípulo de humanidades, sem ter tão completa cultura
clássica deste, o sobrelevou pela maior amplitude e originalidade de
sua obra. Principiou como Odorico Mendes e João Lisboa por jornalista
político, conforme era necessário em época em que todo
o brasileiro de alguma instrução e capacidade de expressão
era solicitado, se não constrangido pelas circunstâncias, a dizer
da cousa pública e a tomar parte na refrega política. Jornalista
com letras e professor delas, foi-lhe fácil a transição
para autor de livros, principalmente didáticos, Postilas de gramática
geral aplicada à língua portuguesa pela análise dos clássicos
(1862), Gramática portuguesa (1866), tradução dos Comentários
de César (1863), e finalmente o Curso de literatura portuguesa e brasileira
(1866-1868, 8.º gr., 4 vols.). Não obstante ainda didático
e composto para uso dos seus discípulos do Instituto de humanidades,
onde lecionava a matéria, é por este livro que Sotero dos Reis
pertence à literatura e particularmente à história da
nossa.

À crítica de Sotero dos Reis, não obstante informadíssima
e alumiada por uma boa cultura literária clássica e moderna,
falta porventura, com um mais justo critério filosófico ou estético,
a necessária isenção de preconceitos escolásticos
e patrióticos. Deriva por muito ainda das regras e processos quintilianescos
e da crítica portuguesa de origem acadêmica. Não esconde
ou sequer disfarça o seu empenho em engrandecer o nosso valor literário,
aumentando o dos autores por eles estudado, muito além da medida permitida.
Equiparar, por exemplo, o marquês de Maricá a La Rochefoucauld
é um despropósito que por si só bastaria para desqualificar
a capacidade crítica e a inteligência literária de Sotero
dos Reis, se a sua obra não desmentisse este conceito. Como quer que
seja, o Curso de literatura, de Sotero dos Reis, é, no seu gênero,
com a História do Brasil, de Varnhagen, e o Jornal de Timon, de João
Lisboa, uma das obras capitais da fase romântica.

João Francisco Lisboa, nascido no Itapicurumirim, no Maranhão,
em 1812, e falecido em Lisboa, em 1863, é das mais singulares figuras
da nossa literatura. Com grande aproveitamento estudou as poucas letras que
era possível aprender na capital de sua Província, tendo por
mestre de latim e latinidade o seu futuro êmulo e rival Sotero dos Reis,
treze anos mais velho do que ele. Fez-se homem quando os acontecimentos do
7 de abril de 1831, alvorotando o país, provocaram em todo ele as lutas
e conflitos, não raro mais que de opiniões e de imprensa, entre
brasileiros e portugueses ou caramurus, conforme a alcunha que lhes davam
os nossos. Estreou nas letras como jornalista político com o Brasileiro,
título que na época era um programa, em meados de 1832. Já
havia então na capital da Província quatro jornais, “todos
quatro muito exagerados e descomedidos na linguagem e desarrazoados nas doutrinas”.119

Os trechos desse jornal, reproduzidos na biografia de Lisboa pelo autor do
Panteon maranhense, testemunham já no novel jornalista de vinte anos
o reflexivo pensador, e diserto e vernáculo escritor do futuro Jornal
de Timon. Como aos homens de verdadeiros talento literário e alta compostura
moral, a política em que entrara como jornalista e com legítimas
ambições de repúblico, não quis a João
Lisboa. Ele despicou-se-lhe da recusa auspiciosa consagrando-se às
letras. Mas no literato sentir-se-á sempre o repúblico malogrado
que, sem amesquinhar-se em recriminações, se desforra com humor
e ironia do desdém ou da boçalidade do povo soberano e dos seus
dignos diretores. Na política e no jornalismo fora sempre um liberal,
no mais alto e melhor sentido da palavra, mais adiantado e desabusado até
que o comum dos liberais do seu tempo. Também o foi em literatura romanticamente,
apesar da gravidade do seu feitio mental, sem temor do sentimentalismo, como
quem sabia que, razoado, é ainda o sentimento o melhor estímulo
da inteligência e da ação humana. Antes de conhecer pessoalmente
a Herculano, e do seu comércio com o maior dos portugueses contemporâneos,
já tinha João Lisboa no pensamento e na escrita o estilo em
que se tem querido enxergar a influência do grande escritor português.
O feitio e isenção do seu caráter deu-lhe a forma tersa,
límpida, em que juntou com discernimento e garbo o casticismo português
aos naturais influxos do brasileirismo. É menos purista do que Sotero
dos Reis e Odorico Mendes, que aliás também, em rigor, não
o são. Põe muitas vezes os pronomes à brasileira, porque
lhe soariam melhor e ainda se não havia inventado a cerebrina teoria
de fazer de um uso geral a constante de doutos e indoutos da nossa terra,
erro crasso da língua. Não refoge de todo ao neologismo pertinente
nem recua ao estrangeirismo expressivo e necessário. Encontra-se-lhe
por acaso uma ou outra impropriedade ou sacrifício ao uso comum. Estes
senões, se é certo que o sejam, e em todo caso raros, não
lhe chegam a macular a escrita ou sequer a lhe empanarem a geral formosura.
Tais e maiores se nos deparam nos melhores dos chamados clássicos da
língua. Esta é nele portuguesa de lei pela correção
gramatical e mais pelo torneio da frase, índole, número e propriedades
do vocabulário, sem indiscretas escavações arcaicas e
apenas com uma ou outra afetação impertinente de classicismo.
Com alumiado entendimento leu e meditou os clássicos, o que não
era costume aqui, e se lhes apropriou da língua, com exata inteligência
da sua evolução e fino tato de escritor de raça.

A sua obra principal, começada a publicar em 1852, é o Jornal
de Timon, obra sem precedentes na nossa língua e uma das mais originais
da nossa literatura. No pensamento do autor devia o Jornal de Timon ser uma
espécie de revista dos “costumes do tempo” vistos através
do seu temperamento, cuja austeridade lhe valia dos seus concidadãos
o apodo de misantropo ou mais vulgarmente casmurro, e descritos e comentados
com o seu natural humor e veia literária. Dá-se antes como “amigo
contristado e abatido” do que presenciava, que como “inimigo cheio
de fel e desabrimento”. O “seu fim primário”, porém,
ficaria “sendo sempre a pintura dos costumes políticos”.
Mas como na nossa terra, segundo observa perspicazmente, “a vida e atividade
dos partidos se concentram principalmente nas eleições, transformando
assim um simples meio, em princípio e fim, de todos os seus atos, as
cenas eleitorais descritas sob todas as suas relações e pontos
de vista imagináveis” lhe ocuparam grande parte do Jornal. De
fato este se veio a dividir em três partes, a primeira sobre as eleições
nos tempos anteriores ao nosso, a segunda sobre partidos e eleições
no Maranhão, e a terceira e última relativa à história
desta Província e por extensão à do Brasil. Sem muita
regularidade apareceu o Jornal de Timon de 1852 a 1858, sendo recebido no
país, não obstante o seu tom praguento, com merecida estimação
e grandes louvores. Chegou esse apreço à negação
epigramática de que fosse obra de brasileiro.120

A primeira parte é um bom estudo histórico, em estilo ameno
e humorístico, feito não sobre expositores de segunda mão,
mas das mesmas fontes originais, das eleições nos tempos antigos,
médios e modernos, não só com a ciência dos documentos,
mas com a intuição e sentimento da vida pública dessas
épocas. O estilo é o mais adequado ao gênero de que era
o autor o criador aqui, natural, prazenteiro, bem-humorado e irônico.
São as mesmas, com maior personalidade, mais ironia, até mais
acrimônia que às vezes chega ao sarcasmo, as qualidades de estilo
da segunda parte. Esta modificação de tom lha impunha o próprio
assunto, por mais de perto lhe importar. Vibram-lhe na pena por mais que o
contenha o seu bom gosto e natural compostura, e lhas disfarce a ironia, as
paixões que lhe agitaram a mocidade e não estavam de todo extintas
nem na sua alma, nem na sociedade que lha formara. Por isso é talvez
essa parte a sua obra não só mais original, porém, do
puro aspecto literário, mais curiosa e mais viva. Conquanto aplicada
no Maranhão, fez João Lisboa nela um comentário perpétuo
do que é entre nós a vida política, cifrada como ele
argutamente reconheceu, nas lutas dos partidos e nas brigas eleitorais. Tem
o seu opúsculo o sinal das obras que por virtudes de pensamento e de
forma não envelhecem e ficam contemporâneas de todas as eras.
Refere o seu citado minudencioso e fidedigno biógrafo que, horrorizado
da escravidão (a qual na sua terra, justamente mais do que em outras
do Norte, apresentava mais execrando aspecto), começou João
Lisboa a escrever um livro, meio história, meio romance, da escravidão
no Brasil, como propaganda contra ela. Foi isto nas vésperas de 1850
ou à entrada desse decênio. Em todo caso antes do Jornal de Timon.
O aparecimento da Senzala do Pai Tomé, como castiçamente vertia
o Uncle Tom’s Cabin, de Beecher Stowe, onde parece achou semelhanças
com o seu principiado trabalho, fizeram-no desistir de continuá-lo.
Havia, entretanto, em João Lisboa um romancista, e esta intenção
prova que ele próprio o sentia. Provam-no, porém, melhor As
eleições e os partidos no Maranhão, ruim título
de uma excelente porção do Jornal de Timon, onde há cenas,
diálogos, invenções, descrições, criações
de tipos, figuras e situações fartamente reveladores de que
não carecia João Lisboa, antes as tinha em grau relevante, das
qualidades de imaginação, sem falar nas de expressão,
de um bom romancista. As duas primeiras partes do mesmo Jornal, revelam em
João Lisboa um pensador político e um moralista, no sentido
literário dado hoje a este vocábulo, como não temos talvez
outro. Os seus Apontamentos, notícias e observações para
servirem à história do Maranhão, que constituem a terceira
porção da obra, confirmando-lhe as qualidades literárias,
descobrem-lhe peregrinos dotes de investigador, de erudito e de crítico,
e fazem lastimar que como historiador não nos deixasse mais que essa
curta obra fragmentária e a Vida do padre Antônio Vieira. À
história do Brasil, como ela vinha sendo feita aqui, até, se
não mormente, pelo mesmo Varnhagen, história burocrática
e oficial, ainda com o feitio de crônicas ou anais, sem imaginação,
filosofia ou estilo, desanimada e tediosa, dava João Lisboa nova feição
com a sua arte de fazer viver as personagens e os sucessos, aproveitando algum
rasgo mais saliente deles com que os caracterizasse, descobrindo-lhes algum
aspecto mais pitoresco ou lhos engenhando com bom gosto e justo senso das
cousas históricas. Mas sobretudo com um sentimento brasileiro mais
íntimo e perfeito que o de Varnhagen, muito maior sensibilidade artística
e capacidade literária de expressão, e, também, compreendendo
melhor do que nenhum dos seus predecessores os aspectos sociais e psicológicos
da História e a importância do povo nela. Certos rasgos ou questões
da nossa, como o respeitante aos índios, processos de colonização
portuguesa, feições e caracteres diversos da vida colonial,
ninguém aqui ainda os encarara com igual compreensão da sua
importância, com tanta sagacidade e inteligência como João
Lisboa. Com alumiado entendimento viu a questão dos índios sem
as aberrações realistas de Varnhagen, nem o sentimentalismo
romântico da época, sendo muito para notar em favor da sua inteligência
a isenção com que apreciou o indianismo, em seu tempo tão
vigoroso, e lhe viu a falácia: “Esse falso patriotismo caboclo,
espécie de mania mais ou menos dominante, escreveu ele, leva-nos a
formular quanto ao passado acusações injustas contra os nossos
genuínos maiores; desperta no presente antipatias e animosidades, que
a sã razão e uma política ilustrada aconselham pelo contrário
a apartar e adormecer; e ao passo que faz conceber esperanças infundadas
e quiméricas sobre uma reabilitação que seria perigosa,
se não fora impossível, embaraça, retarda e empece os
progressos da nossa pátria, em grande parte dependente da imigração
da raça empreendedora dos brancos, e da transfusão de um sangue
mais ativo e generoso, único meio possível já agora de
reabilitação”.121 Brasileiro de origem e nascimento, brasileiro
pelas mais íntimas fibras de sua alma e pelo mais profundo do seu sentimento,
João Lisboa é um dos nossos primeiros europeus, pelas lúcidas
qualidades do seu claro gênio, tento da civilização e
desdém dos nossos parvoinhos preconceitos nativistas e ainda patrióticos.

Não obstante carecer-lhe da última demão, é a
Vida do padre Antônio Vieira ainda o que de melhor se escreveu sobre
o famoso jesuíta, com mais exata inteligência do homem e da sua
obra de missionário e de político, e de sua época. Não
fora algum exagero de liberalismo, é uma obra que se poderia dizer
atual.

Nada adiantaria considerar João Lisboa sob outros aspectos do seu
variado engenho. Em nenhum desmereceu, quer pela força ou destreza
do pensamento, quer pelo vigor ou beleza da expressão. Mesmo como orador,
que dizem fora notável, deixou no seu discurso sobre a anistia magnífico
testemunho de uma viril eloqüência e da mais bela, sóbria
e comovida linguagem oratória. É incontestavelmente um dos escritores
que mais ilustram a nossa literatura, dos poucos que hão de viver quando,
na seleção que o tempo vai naturalmente fazendo, houverem desaparecido
grande parte de nomes ontem e hoje mais celebrados que o seu.

Outros nomes, menos ilustres, mas ainda estimáveis conta o grupo maranhense.
São quase todos, se não todos, produto manifesto da influência
destes, geração criada na sua admiração e pelo
seu estímulo. Dos que têm o seu medalhão no pedestal da
estátua de Gonçalves Dias, é Gomes de Sousa o único
sem jus à história da literatura. Gomes de Souza (Joaquim) é
de 1829 a 1863. Os seus contemporâneos tiveram-no em conta de gênio.
Aos dezenove anos, já formado em medicina, foi nomeado, após
brilhante concurso, professor da Escola mais tarde denominada Politécnica,
e, parece, deu outras provas da sua extraordinária inteligência,
rara capacidade de estudo e variedade de aptidões. Morrendo aos 34,
não deixou mais que uma pequena obra fragmentária de matemática
e uma antologia de poemas líricos das principais línguas cultas.
Foi apenas uma bela e porventura legítima esperança malograda,
mas de fato sem importância literária.

Lisboa Serra (João Duarte, 1818-1855). Contemporâneo em Coimbra
de Gonçalves Dias e seu amigo dedicadíssimo, a quem este deveu
amparo quando se achou isolado e sem recursos em Portugal. Poetou com longos
intervalos e parcamente, mas com bastante sentimento e correção.
Galvão de Carvalho (Trajano, 1830-1864). Andou sucessivamente a estudar
por Portugal, S. Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde afinal se formou
e ficou. Havia nele a massa de um bom, talvez excelente poeta, com muita sensibilidade
e facilidade de expressão. Foi um dos primeiros que aqui cantou compassivamente
o escravo. Cantou igualmente a paisagem, a vida campesina e cousas brasileiras,
com sentimento e graça. Franco de Sá (Antônio Joaquim,
1836-1856). É poeta de grande sensibilidade e sinceridade de emoção
e rara facilidade e singeleza de expressão, qualidades que a morte,
colhendo-o aos vinte anos, lhe não deu tempo de cultivar.

Desvanece-se ainda o Maranhão com os nomes de Almeida Braga (Flávio
Reimar), Celso de Magalhães, Marques Rodrigues, Dias Carneiro, Augusto
Colin, Frederico Correia, Frei Custódio Ferrão, Vieira da Silva,
Sousa Andrade, Antônio Henriques Leal, homens de letras ou de saber,
todos que com obras de vários gêneros e mérito continuaram
até perto de nós o movimento literário da sua província
pelo grupo primitivo iniciado.

Este grupo é contemporâneo da primeira geração
romântica toda ela de nascimento ou residência fluminense. O que
o situa e distingue na nossa literatura e o sobreleva a essa mesma geração,
é a sua mais clara inteligência literária, a sua maior
largueza espiritual. Os maranhenses não têm os biocos devotos,
a ostentação patriótica, a afetação moralizante
do grupo fluminense, e geralmente escrevem melhor que estes.


Capítulo XII

A SEGUNDA GERAÇÃO ROMÂNTICA. OS PROSADORES

NA PROSA, UM NOME principalmente domina a fase literária que das últimas
manifestações do primeiro Romantismo vai às primeiras
do que, à falta de melhor nome, chamarei de naturalismo: José
de Alencar. O seu aferro ao indianismo quando este já começava
a ser anacrônico, os estímulos e propósitos nacionalistas
da sua atividade literária, a despeito da cronologia o poriam espiritualmente
na primeira geração romântica se, por outro lado, as qualidades
peculiares do seu engenho, estro e estilo não o separassem dela. É
uma das principais figuras da nossa literatura e, com Magalhães e Gonçalves
Dias, um dos seus fundadores. Mais talvez, porém, que pelo valor intrínseco
de sua obra, em todo o caso grande, serviu-a com a sua vontade decisiva de
fazê-la de todo independente da portuguesa. Este propósito o
arrastou, aliás, além do racional e do justo, com as suas desarrazoadas
opiniões e, o que é pior, a sua desavisada prática, da
língua que devíamos escrever e do nosso direito de alterar a
que nos herdaram os nossos fundadores. Apesar da obstinação
que pôs neste conceito, sobretudo depois que os escritores portugueses
lhe malsinaram o propósito nacionalista, e sem embargo de incorreções
manifestas, algumas aliás voluntárias, foi José de Alencar
o primeiro dos nossos romancistas a mostrar real talento literário
e a escrever com elegância. Afora os prosadores maranhenses, escritores
entretanto de outros gêneros, é ele cronologicamente o primeiro
que por virtudes de ideação e dons de expressão mereça
plenamente o nome de escritor.

José Martiniano de Alencar, nascido no Ceará em 1 de maio de
1829 e falecido no Rio de Janeiro em 13 de dezembro de 1877, vinha de uma
família antiga e notável pela comparticipação
que naquela Província, seu berço, tivera nos movimentos da Independência,
por amor da qual alguns dos seus sofreram perseguições, punições
e até morte. Seu pai, o padre José Martiniano de Alencar, participou
na Revolta Pernambucana de 1817, foi deputado às Cortes portuguesas
e nelas se distinguiu pelo calor com que combateu pelo Brasil contra o pensamento
português da sua recolonização. Ao diante membro da Constituinte
brasileira, foi um dos deportados por motivos políticos. Havia, pois,
no filho, o escritor, uma herança de revolta, de independência
de Portugal e até de má vontade ao português. Ele também
foi político, deputado da sua terra, ministro e conselheiro de Estado,
figura conspícua num partido, o conservador. Pela natureza aristocrática
do seu temperamento e do seu espírito, por tradição de
família, que, a despeito dos seus antecendentes revolucionários,
era, de partido, conservadora, foi José de Alencar, revolucionário
em letras, conservador em política. Num país novo como o Brasil,
onde nenhuma tradição existia, e todos os instintos políticos
eram de ontem e de empréstimo, nada de importante havia a conservar.
As diferentes alcunhas dos partidos apenas cobriam e disfarçavam sentimentos,
interesses ou até paixões pessoais ou de grupos, sem alguma
correspondência efetiva com princípios necessários e definidos.
Como era um nervoso, um pessoal, esquivo à popularidade que, contradição
muito humana, acaso no íntimo ambicionava, chegava às vezes,
quiçá por influência literária dos escritores políticos
ingleses, ao exagero do seu conservantismo. Assim foi adversário da
emancipação dos escravos quando já não o era nenhum
intelectual brasileiro. Político conservador, mostrou-se todavia indócil
à disciplina partidária, pretendendo inconsideradamente manter
a sua personalidade de encontro às exigências dessa disciplina.
Fazendo-se um nome literário justamente glorioso, à sua nativa
altivez, virtude dos tímidos, como ele, e que nele escorregava para
a misantropia, juntou-se a incoercível vaidade do literato, tornando-o
menos acomodativo na vida pública e mais distante na vida comum. Num
meio como o nosso, mal-educado, fácil à camaradagem vulgar e
avesso às relações cerimoniosas, a sua atitude reservada,
esquiva à familiaridade corriqueira do nosso viver, impediu-lhe de
ser pessoalmente popular, como foi, por exemplo, Macedo, seu êmulo e
seu contraste. Desarrazoadamente doía-lhe, ao que parece, esta falta
de popularidade, à qual aliás, honra lhe seja, nunca sacrificou
a sua atitude. Tudo isto lhe serviu entretanto não só à
formação da sua personalidade literária, mas de estímulo
a um labor que foi um dos mais fecundos das nossas letras. Nascido e criado
no sertão, ainda então pouco menos que bravio, do Ceará,
onde se não haveriam de todo desvanecido as memórias do antigo
íncola, tendo ainda sangue deste nas veias, sentindo portanto mais
fortemente essa espécie de brasileirismo caboclo que o Romantismo acoroçoara,
comparticipando da ojeriza de família ao conquistador, explica-se que
José de Alencar haja serodiamente se rendido ao indianismo, rejuvenescendo
na sua inspiração e instaurando-o na prosa brasileira, quando
ele se morria na poesia. Certo, são justamente da década de
50 a 60 a Confederação dos Tamoios e os Timbiras, as duas manifestações
mais consideráveis do indianismo. Mas, vindo após as “poesias
americanas” de Gonçalves Dias, eram apenas um caso de movimento
adquirido. Os Timbiras, desde meados de 1847, estavam planejados e o seu primeiro
canto escrito.122 Havendo Gonçalves Dias e outros seus companheiros
de geração composto ficções em prosa, nenhuma
fizera em cujo assunto o elemento fosse o índio, pois não vale
a pena lembrar o mesquinho Sumé, de Varnhagen.

É esta a primeira distinção de José de Alencar,
introduzir no romance brasileiro o índio e os seus acessórios,
aproveitando-o ou em plena selvageria ou em comércio com o branco.
Como o quer representar no seu ambiente exato, ou que lhe parece exato, é
levado a fazer também, se não antes de mais ninguém,
com talento que lhe assegura a primazia, o romance da natureza brasileira.
Protraindo-se nele, através de Chateaubriand, o sentimentalismo de
Rousseau, exageradamente caroável ao homem selvagem, fez este romance
do índio e do seu meio com todo o idealismo indispensável para
o tornar simpático. E fá-lo de propósito por contrariar
a imagem que dele nos deixam os cronistas e que os seus atuais remanescentes
embrutecidos não desmentem.123 Nesse romance havia de ficar, pela sinceridade
da inspiração e pela forma, a mais bela que até então
se aqui escrevera, o mestre inexcedível.

Estreou em 1857 com uma obra-prima, que infelizmente não mais se repetiria
em sua carreira literária, o Guarani. Na literatura brasileira dá-se
freqüentemente o caso estranho de iniciarem-se os escritores com as suas
melhores obras e estacionarem nelas, se delas não retrogradam. O fato
passou-se com Alencar com o Guarani, com Macedo com a Moreninha, com Taunay
com a Inocência, com Raul Pompéia com o Ateneu, com o Sr. Bilac
com as suas primeiras Poesias, e se esta acaso passando com o Sr. Graça
Aranha com o seu Canaã. As obras-primas, como já foi dito, fazem-nas
também o tempo, e o tempo não faltou com esta sua virtude ao
romance de Alencar. E legitimamente. Além da imaginação
criadora da invenção do drama, da sua urdidura e desenvolvimento,
da traça dos episódios, da variedade e bem tecido das cenas,
da invenção das figuras, da vida insuflada numa ficção
de raiz falsíssima, a ponto de no-la fazer verossímil e aceitável,
levava o Guarani tal vantagem de composição, de língua
e estilo a todos os romances até então aqui escritos que, sob
este aspecto, pode dizer-se que criava o gênero em a nossa literatura.
É para a nossa ficção em prosa o que foram os Primeiros
cantos de Gonçalves Dias para a nossa poesia. E se em literatura a
verdadeira e legítima prioridade não é a do tempo, senão
a da qualidade e repercussão da obra, Alencar é o criador de
um gênero em que Teixeira e Sousa e o mesmo Macedo haviam apenas sido
os precursores, como quer que sejam ainda canhestros. A de todo falsa ou inverossímil
fabulação, o desmedido idealismo, o demasiado romanesco, vícios
da escola aqui, mas também efeitos de temperamento literário
do autor, de tudo o salva o largo e belo sopro épico, que, casando-se
perfeitamente com a inspiração lírica, quase faz do Guarani
o romance brasileiro por excelência, o nosso epos. Como representação,
por um idealista de raça, do choque em o nosso meio selvagem do conquistador
e do indígena, da oposição dos dous e dos sentimentos
que encarnavam, e mais da vitória da graça da civilização
sobre a selvageria, como o romance brasileiro de intenção, de
assunto, de cenário e mais que tudo de sentimento, ficaria o Guarani
como um livro sem segundo na obra de Alencar e talvez em a nossa literatura.

A inclinação dos românticos aos estudos históricos
foi uma, e talvez a melhor das manifestações do sentimento patriótico
que aqui se gerou da Independência. Deu-lhe corpo, estimulou-a, favoreceu-a
a criação do Instituto Histórico, onde se procurou assídua
e zelosamente estudar a nossa história, menos talvez por curiosidade
e amor de sabê-la que por, mediante ela, justificar e exaltar aquele
sentimento. O melhor fruto desse bom trabalho de pesquisa das nossas origens
e da nossa vida colonial foi a História geral do Brasil, de Varnhagen,
de 1857. Nesta rebusca dos seus títulos históricos, da sua genealogia
nacional e principalmente de quanto neles pudesse legitimar-lhe o orgulho
ou as aspirações patrióticas, é natural que as
imaginações se alvoroçassem na ambição
de idealizar o nosso passado. Tanto mais que se estava em plena voga do romance
histórico, de que a literatura da nossa língua possuía
já alguns modelos então estimadíssimos. Criando o romance
brasileiro, Teixeira e Sousa, sem lhe ser estorvo a pouquidade do seu engenho
e da sua cultura, ensaiou também o romance histórico nas Fatalidades
de dous jovens, “recordações dos tempos coloniais”.
Este mesmo subtítulo traziam as suas Tardes de um pintor. Macedo, que
aliás se abonava de historiador, e fazia história pitoresca,
só muito tarde, em 1870, escreveu romance histórico. O gênero
abundou aqui depois dos anos de 40. Cultivaram-no Pereira da Silva, Moreira
de Azevedo e vários outros autores somenos. Pode dizer-se que foi uma
das feições do nacionalismo dominante no período romântico
este gosto pelo chamado romance histórico.

Dele resultava também o Guarani, pois pela figura vagamente histórica
de D. Antônio de Mariz e representação de um aspecto da
vida colonial, se podia presumir de histórico. As minas de prata, sete
anos posteriores ao Guarani, continuam-lhe, com mais acentuada intenção
de romance histórico, o mesmo propósito de tomar o Brasil e
aspectos brasileiros tradicionais, pitorescos ou sociais, como principal tema
literário, acaso o único convinhável a uma literatura
verdadeiramente nacional. Este conceito parece ter sido, com algum exclusivismo,
o de Alencar, de seus discípulos e admiradores e até de antagonistas
seus, o que é o maior documento da impressão que ele fez no
seu meio. É, entretanto, errado. Certamente neste período de
formação das nações americanas, carecedoras ainda
de um real sentimento ou pensamento próprio, o que pode dar à
sua literatura alguma diferença e sainete é a representação
das feições pitorescas que lhes são peculiares. Nada
obsta, porém, que também aquelas que lhes são comuns
com outras sociedades mais antigas e já formadas, como as européias,
possam ter o interesse literário, e que não haja na alma elementar
destes povos primários aspectos dignos de atenção da
literatura. Há sempre num povo alguma cousa de íntimo que lhe
é próprio, como no indivíduo algo recôndito e importante
que o distingue. Ao escritor cabe descobri-lo e revelá-lo e à
literatura representá-lo em suas relações morais e sociais.

Sabemos as sugestões de Chateaubriand, de Walter Scott, de Cooper,
a que Alencar, como todos os autores de romances americanos de intenção
histórica, obedecia. A crítica que mais tarde procurou diminuir
Alencar contrapondo-lhe este e outros predecessores, nomeadamente o primeiro,
criador do indianismo na mais moderna ficção americana em prosa,
foi de todo ininteligente, acaso por ser de todo malévola. Muito embora
seguindo trilhas já por outros abertas, José de Alencar o fez
com sentimento diferente e próprio, inspiração pessoal
e individualidade e engenho bastantes para assegurar-lhe, do ponto de vista
da história da nossa literatura, créditos de original. Iracema
(1865), Ubirajara, chamados pelo autor de “lendas tupis” são
dois romances poéticos; a mais de um respeito dous poemas em prosa.
E só como tal aceitáveis, pois apesar da cândida presunção
contrária do autor, não é possível maior contrafação
da vida, costumes, índole e linguagem do índio brasileiro, nem
mais extravagante sentimento do que é o selvagem em geral e do que
era particularmente o nosso. Porfiam nestes dous romances as mais disparatadas
imaginações com as mais flagrantes inveros- similhanças
etnológicas, históricas e morais. Imitados por escritores somenos,
que não tinham a sincera inspiração de Alencar nem o
seu engenho, foram estes os únicos que dessa literatura ficaram. Mais
que a intenção nacionalista ou o preconceito indianista, já
periclitante à publicação do último, deixaram-se
os leitores tocar pela falaciosa mas sedutora poesia que neles havia, e que
ainda não passou de todo.

Como a da maioria dos literados brasileiros, a formação literária
de Alencar era, sobre deficiente, defeituosa. Se a falta de uma educação
literária sistemática houvesse de ser motivo de espontaneidade
e originalidade, raras literaturas poderiam mais que a nossa mostrar estas
qualidades. Confessa José de Alencar, aliás em páginas
bem insignificantes, que após estudos clássicos malfeitos, como
foram sempre os nossos dos chamados preparatórios, os livros que leu
foram maus romances franceses, Amanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas, Celestina
e quejandos em ruins traduções portuguesas. Leu-os e os releu
e, reconhece ele próprio, foi essa leitura que lhe influiu a imaginação,
cuja herança atribui à mãe, para se fazer romancista.
Mais tarde, já estudante de um curso superior, mas ainda entendendo
mal o francês, leu no original e desordenadamente Balzac, Vigny, Dumas,
além de Chateaubriand e Victor Hugo. Daquelas primeiras leituras de
romances romanescos traduzidos na intenção das damas sentimentais,
lhe ficaria sempre o conceito — que foi aliás o de toda a nossa
romântica até o naturalismo — que o romance é uma
história puramente sentimental, cujos lances devem pela idealização
e romanesco nos afastar das feias realidades da vida e servir de divertimento
e ensino. É uma história principalmente escrita em vista das
senhoras. O romanesco, freqüentemente de uma invenção pueril
e de uma sentimentalidade que frisa à pieguice, foi com Alencar, com
Macedo, com Bernardo Guimarães e ainda com Taunay, sem falar em menores,
a feição predominante — feição que no-lo
torna hoje geralmente despiciendo — do romance brasileiro até
o Naturalismo ou melhor até Machado de Assis, que ainda em antes deste
se libertara desse vezo. Um ou outra exceção, embora relevante,
como a de Manoel de Almeida, e do mesmo Machado de Assis desde as suas primeiras
novelas e contos, não foi bastante para alterar aquele tom muito no
gosto do público. Foi nele, ora mais ora menos acentuado, que Alencar
escreveu as novelas e romances com que desde 1860 iniciara, em Cinco minutos,
o romance da nossa vida civilizada e mundana e ainda um vago esboço
do que viria a chamar-se romance psicológico. Para este romance faltavam-lhe
porém dons de aguda observação que o gênero presume
e também acaso o gosto de as fazer, pelo que lhe deparariam de antipático
e até molesto ao seu idealismo. Só isto impediu de ser aqui
o criador dessa forma. Simultaneamente, sem descontinuar fazia — é
bem a expressão tratando-se deste idealista da gema — o romance
da vida mestiça brasileira, do nosso meio provinciano ou sertanejo,
com a sua paisagem, os seus moradores, os seus costumes, as suas atividades
peculiares. No Gaúcho (1870), no Tronco do ipê (1871), no Til
(1875), no Sertanejo (1876), essa vida é recontada não conforme
uma visão natural das cousas, mas segundo o conceito que já
fora confessadamente o do Guarani, “um ideal que o escritor intenta poetizar”
e cuja prática o arrasta, como em todos eles, a frioleiras ou a monstruosidade
de imaginação e de estética. Não obsta que não
haja também nesses livros a realidade superior que a mesma poesia cria.

A incapacidade de ficar na realidade média, que a ficção
para nos interessar exige, e não só realidade de ação,
mas de expressão e de emoção, empeceu Alencar de ser
um melhor, mesmo um bom autor dramático. Como tal estreou em 1857,
no mesmo ano do Guarani, com o Demônio familiar, que é porventura
também a sua melhor obra de teatro. Realmente pouco falta a esta peça
para ser, como comédia de costumes e representação de
um dos percalços dos nossos de então, uma obra excelente e mal
chega a ser uma peça de conta. Para o teatro, principalmente, levou
Alencar as predisposições moralizantes que, sobre serem muito
do gosto do nosso Romantismo, excetuados os poetas da segunda geração
romântica, são da índole do gênero. Todo o seu teatro
as revela. Acentua deliberadamente as preocupações morais e
didáticas com que nascera o nosso teatro, apenas em Martins Pena atenuadas
pelo caráter de farsa do seu e pelo que havia na sua veia de nativo
e popular. O fito do teatro, segundo se lhe depreende da obra, deve ser a
discussão dos problemas de ordem moral que interessam a sociedade contemporânea.
Esta é aliás a concepção do teatro posterior ao
Romantismo, desde a dramaturgia burguesa dos franceses, mestres do gênero,
até a de Ibsen, Tolstói ou Sudermann. As Asas de um anjo, representadas
em 1858, exageravam este propósito moralizador até exceder os
limites necessários dos direitos da arte. Manifestamente inspirada
das peças congêneres então no galarim A Dama das camélias
e as Mulheres de mármore, com as quais o mesmo autor as compara, tem
confrontadas com estas inferioridades e defeitos palmares. São os mais
sainetes, a desconformidade com o meio, que certamente não comportava
o drama (não sei por que o autor lhe chamou comédia) qual o
concebeu e realizou o escritor, artificialidade dos processos, da composição,
do estilo, tudo resultante daquela mesma desconformidade. Nem tem como aquelas
peças, que evidentemente lhe serviram de estímulo e modelo,
não só a arte consumada do dramaturgo, mas a, ainda mais relevante,
do escritor. Custa a dizer, mas é a verdade: toda a filosofia teatral
de Alencar, nesta como em suas outras peças, é uma coleção
de lugares-comuns, não levantados infelizmente por excelências
de expressão. Não pode ser outro, penso, o nosso juízo
de hoje, mas no seu tempo a obra dramática de Alencar era aqui uma
novidade de concepção e de estilo. Ao teatro de costumes de
Pena e de Macedo traz José de Alencar o teatro de teses, de idéias,
com propósitos não só de moralista vulgar, mas de pensador
e em suma com melhor estilo que aqueles. Se não tem o engenho cômico
dos dous e o dramático do segundo, o sobrelevava a ambos em qualidades
propriamente literárias. Compreende a obra teatral de Alencar sete
peças, cinco comédias e dous dramas, sem falar numa comédia
lírica ou libreto de ópera, ao todo uns trinta atos que pelo
menos provam nos autores do nosso teatro romântico maior imaginação
e capacidade do gênero do que têm mostrado os que lhe sucederam.

Dessas peças, a última que escreveu e fez representar foi o
Jesuíta, pelos anos de 70. Na sua obra dramática não
será talvez a melhor, mas é porventura a mais forte, a mais
trabalhada, aquela em que o autor deu mais de si, em que é mais evidente
o seu esforço de fazer uma grande obra de teatro. Infelizmente assentou-a
numa concepção do jesuíta, se não falsa, contrária
ao conceito comum desse tipo, e faltou-lhe engenho para vencer a nossa prevenção.
Há no entretanto no seu drama, mais talvez que em nenhuma outra das
suas peças, qualidades estimáveis e ainda relevantes de simplicidade
de meios, de expressão e de emoção. Afora as suas práticas
sistemáticas no escrever a língua, tem a sua, nesta, qualidades
que lhes suprem e escondem os defeitos neste particular. O drama é
bem feito, se bem a sua inspiração paradoxal — um jesuíta
precursor da Independência do Brasil — pareça de todo falsa.
Ou ao autor faltou com que dar-lhe a verossimilhança que a ficção
dramática exige.

José de Alencar foi ainda crítico, publicista, orador parlamentar
e jurisconsulto. Da sua atividade como crítico, principalmente exercida
em breves artigos de jornais, só ficaram em livro as Cartas sobre a
Confederação dos Tamoios (1856), mera censura impressionista,
freqüentemente desarrazoada, de inspiração demasiado pessoal,
dos defeitos do poema de Gonçalves de Magalhães. É como
publicista principalmente que Alencar se assinalou fora do romance, e que
mostrou, além de vigor dialético, brilho e elegância de
forma não comum no gênero até ele. Estreou nele com as
desde logo célebres Cartas de Erasmo, dirigidas anonimamente ao imperador,
cuja primeira edição é de 1865. Outras com a mesma epígrafe,
o mesmo endereço, ou também escritas a outros destinatários,
como o povo e alguns próceres da política, saíram ainda
em 1866 e 68. Da primeira série houve segunda edição,
de Paris, no mesmo ano, e terceira do Rio de Janeiro, em 1866, o que indica
a atenção e interesse que despertaram. Além de opúsculos
de caráter político ou de discussão de teses constitucionais,
deixou um livro, O sistema representativo, sobre este assunto. Para orador
não tinha figura, nem voz, nem porte, mas compensava com grande vantagem
estas falhas, pelas qualidades literárias dos seus discursos, ciência
doutrinária e notáveis recursos de ataque e defesa, ironia mordente
e até acerado sarcasmo de que na tribuna era pródigo. Com isto
conseguiu no seu tempo renome de orador parlamentar notável, que os
seus discursos publicados confirmam. A sua obra de jurisconsulto, que os competentes
ainda estimam, são, afora alguns opúsculos de advocacia, A propriedade
e esboços jurídicos, ambas publicações póstumas
de 1883. Toda esta porção da sua atividade intelectual lhe verifica
o engenho, poderoso e versátil, mas sob o puro aspecto literário,
principalmente provado no romance, não teria bastado para lhe criar
o nome que este lhe deu.

Como romancista, a sua produção oferece duas fases, das quais
a segunda é, se não de declínio, de relativa inferioridade.
Ele próprio parece o haver sentido quando, desde 1870, trocou o seu
nome já ilustre pelo pseudônimo de Sênio, declarando-se
velho da velhice não do corpo, feitura dos anos, mas da alma, gerada
das desilusões. “Há duas velhices — escrevia tristemente
à frente do Gaúcho, publicado aquele ano —: a do corpo,
que trazem os anos, e a da alma, que deixam as desilusões. Aqui onde
a opinião é terra sáfara e o mormaço da corrupção
vai crestando todos os estímulos nobres, aqui a alma envelhece depressa.
Ainda bem! A solidão moral dessa velhice precoce é um refúgio
contra a idolatria de Moloch.” Tinha apenas quarenta e um anos quem estas
desenganadas palavras escrevia. As desilusões lhas dera a política,
criando-lhe ambições que lhe não deixou satisfazer. Artista
nervoso e nimiamente suscetível, um sensitivo, alma de impressionabilidade
doentia, não soube Alencar sofrer com isenção e superioridade
o malogro das suas ambições políticas, mais quando vinha
acompanhado da negação dos seus talentos literários e
da sua obra, em arremetidas açuladas pelos mesmos com quem o seu temperamento
irritadiço, quiçá vaidade de intelectual que se não
dissimulava bastante, o tinham politicamente incompatibilizado. Com a recusa
do imperador de o escolher senador na lista sêxtupla em que tinha o
primeiro lugar, recusa inspirada num alto sentimento de moral pública,
pois Alencar era ministro na ocasião do pleito, com a sua desavença
com os seus correligionários, coincidia a guerra já aludida
que ao literato fizeram Franklin Távora e José de Castilho e
outros, seguindo-se-lhe os primeiros ataques da crítica (Joaquim Nabuco,
Sílvio Romero), aos quais se mostrou mais que de razão sensível.
E ele que em opúsculos políticos, nomeadamente nas Cartas de
Erasmo, a sua principal obra de publicista, se mostrava um devotado imperialista
e havia feito, com a apologia do imperador, a defesa do poder pessoal, que
lhe argüiam, e até preconizado o uso deste poder, agora, por uma
reviravolta vulgar nos nossos temperamentos de impulsivos, atribuindo ao monarca
todos os seus dissabores, encheu-se de ódio contra ele, desdisse-se
e contradisse-se, em demasia entregue a este abalo moral. Como quer que seja
o melhor da sua obra literária, é justamente a anterior a este
período, o Guarani, as Minas de prata, as novelas de 1860, Lucíola,
Diva, Iracema. Há nas que vêm após aquela crise um gosto
malsão do extravagante, mesmo do monstruoso, uma afetação
do desengano e de desilusão, que lhe revê a chaga da alma malferida.
O Gaúcho, Til, a Pata da gazela e ainda o Tronco do ipê são
disso documento. E voltando ao romance histórico, de que dera em Minas
de prata o nosso mais perfeito exemplar, descai na sátira propositada
e, o que é pior, feita sem talento nem finura. A Guerra dos mascates
(1871), onde, com o imperador, quase sem disfarce encarnado no governador
de Pernambuco, figuram alguns magnates da política grossamente caracterizados
e outros contemporâneos de algum destaque, é antes um panfleto
que um romance histórico. E como obra d’arte é a todos
os respeitos inferior, sem que a execução lhe desculpe a má
sortida inspiração.

A obra propriamente literária de Alencar, romance e teatro, fundamento
do seu renome, é, a despeito das restrições que se lhe
possam fazer, valiosa. Mas só as suas virtudes estéticas não
lhe assegurariam a proeminência que nas nossas letras ele tem, não
fora a sua importância e significação na história
da nossa literatura. A vontade persistente de promover a literatura nacional,
o esforço que nisto empenhou, a mesma cópia e variedade desta
obra, mais talvez que o seu valor propriamente literário, lhe asseguram
e ao seu autor lugar eminente nesta história. A sua porção
principal, onde se nos deparam três ou quatro livros porventura destinados
a perdurar, são os romances e novelas de antes de Sênio, compreendida
Senhora, não obstante a sua data (1857). Não possuindo a língua
com seguro conhecimento, tinha Alencar, entretanto, com um fino sentimento
dela, dons naturais de escritor que o distinguiram, desde que apareceu, entre
todos os seus contemporâneos, antes que Machado de Assis, sob este aspecto
ao menos, os excedesse a todos. Mas com essas qualidades nativas, alguma afetação
e certos amaneirados de estilo, aumentados na fase de Sênio. As críticas
geralmente justas feitas à sua linguagem não tiveram senão
o efeito de lhe exacerbarem o orgulho ou vaidade literária. Pôs-se
a estudar a língua mais com o propósito de encontrar nesse estudo
antes justificativa do que emenda dos seus defeitos de escritor, nos quais
desarrazoadamente e com dano da sua literatura perseverou do mesmo passo acoroçoando
com o seu exemplo ilustre a funesta intrusão individual em o natural
desenvolvimento da língua. Há no estilo de Alencar, colorido,
sonoridade, mesmo música, eloqüência, emoção
comunicativa, mas há também ênfase e mau gosto. Como escritor
faltava-lhe, pode dizer-se inteiramente, espírito, que parece apenas
revelou nas discussões parlamentares, onde aliás os seus ataques
e réplicas são mais aceradas que espirituosas. Como Herculano,
segundo lhe reprochou Camilo Castelo Branco, Alencar era de uma insulsez além
do que se permite ao escritor público. Daí o malogro do seu
romance caricatural da Guerra dos mascates, e a fraca vida das suas comédias.
Foi-lhe acaso funesto o ter começado por uma obra-prima, muito admirada
e celebrada e lhe haver faltado o bom espírito de se não embevecer
do seu sucesso, aliás merecido.

Três anos antes do Guarani, com que José de Alencar retaurava
nas nossas letras a inspiração pseudonacionalista do indianismo
periclitante, aparecia o primeiro volume das Memórias de um sargento
de milícias, por “Um Brasileiro”. O pseudônimo está
revendo a preocupação nacionalista que era ainda por muito a
da literatura do tempo e da qual Alencar se vinha justamente fazer o arauto
convencido. Também o era o das Memórias de um sargento de milícias,
mas depurado do preconceito indianista. Assentava antes numa intuição
mais justa do objeto da nossa ficção.

Como Macedo quando escreveu a sua Moreninha, o autor era um estudante de
medicina, jornalista, redator do Correio Mercantil, então um dos mais
literários do Rio de Janeiro, Manoel Antônio de Almeida, nesta
cidade nascido em 1830. Formado em 1857, no ano do Guarani, dos Tamoios e
dos Timbiras, pouco depois, em 1861, pereceu num naufrágio indo de
viagem para Campos. Com ele, pode dizer-se, naufragou a talvez mais promissora
esperança do romance brasileiro. Pouco falta, com efeito, às
Memórias de um sargento de milícias para serem a obra-prima
do gênero na fase romântica. É original como nenhum outro
dos até então e ainda imediatamente posteriores, aparecidos,
pois foi concebido e executado sem imitação ou influência
de qualquer escola ou corrente literária que houvesse atuado a nossa
literatura, e antes pelo contrário a despeito delas, como uma obra
espontânea e pessoal. Em pleno Romantismo, aqui sobreexcessivamente
idealista, romanesco e sentimental também em excesso, o romance do
malogrado Manoel de Almeida é perfeitamente realista, ainda naturalista,
muito antes do advento, mesmo na Europa, das doutrinas literárias que
receberam estes nomes. Não pertence a nenhuma escola ou tendência
da ficção sua contemporânea, antes destoa por completo
do seu feitio geral. É uma obra inteiramente pessoal em relação
no meio literário de então. Antes de ninguém, pratica
no romance brasileiro e pode afirmar-se que a pratica com suficiente engenho,
mais que a pintura ou notação superficial, a observação
a que já é lícito chamar de psicológica do indivíduo
e do meio, a descrição pontual, sem preocupações
de embelezamento dos costumes e tipos característicos, a representação
realista das cousas, sem refugir, o que haveria escandalizado a Macedo e Alencar,
mesmo aos seus aspectos mais prosaicos e até mais repugnantes, mas
evitando sempre tanto as cruezas que trinta anos depois haviam de macular
o naturalismo indígena, no seu grosseiro arremedo do francês,
como os fingimentos e afeites com que presumiam aformosear a nossa vida e
a sua literatura os romancistas seus contemporâneos. A língua
e o estilo deste romance, menos trabalhados que o de Alencar e menos desleixados
que os de Teixeira e Sousa e Macedo, tem, se não maior correção
(e a sua é certamente maior que a destes últimos), mais fluência
e espontaneidade e mais personalidade.

Acaso foram estas feições, que hoje revelam aos nossos olhos
este romance, a causa dele não ter tido na nossa literatura a influência
merecida. O gosto e a inteligência do público àquela data
iam preferentemente às qualidades opostas às que agora nos parecem
constituir o mérito. Habituado ao romance romanesco e moralizante qual
era não só o nosso, mas o português nessa época,
em rever-se embevecido nas concertadas criações dos seus romancistas,
não se podia o público enfeitiçar com um romance que
para o seu gosto tinha o defeito de ser demasiado real e desenfeitado. Este
seria também o sentimento dos próceres do Romantismo, então
com toda a autoridade na opinião literária nacional. Parece
indicá-lo o fato do Brésil littéraire, de Wolf, sabidamente
inspirado por Magalhães e Porto Alegre, não aludir sequer às
Memórias de um sargento de milícias, e ao seu mal-aventurado
autor, nem o representar na antologia, onde tanta cousa péssima vem,
que adicionou ao seu livro. O desaparecimento de Manoel de Almeida, quase
imediato à publicação do seu romance, o triunfo inconteste
da romântica de Alencar, prejudicariam essa obra até então
a mais original e a mais viva da nossa ficção e lhe impediriam
de ter a influência que nela merecia ter tido e que porventura lhe daria
outra e melhor feição. A sua reedição em 1862,
por Quintino Bocaiúva, ainda todo devotado às nossas letras,
embora provando que a certos espíritos não era o seu valor desconhecido,
ainda encontrou a opinião pública a mesma em matéria
literária. Só muito mais tarde, quando o naturalismo entrou
a desbancar o Romantismo que aqui se procrastinava, se começaria a
ver no romance de Manoel de Almeida e precursor indígena, mas sempre
desconhecido, da romântica em voga.

Simultaneamente com Alencar, dous romancistas principalmente disputavam a
atenção do nosso público, Joaquim Manoel de Macedo e
Bernardo Joaquim da Silva Guimarães. Cronológica e literariamente,
Macedo pertencia à primeira geração romântica.
Era um genuíno produto daquele momento e meio literário, e foi
na sua plena vigência que estreou nas letras, iniciando do mesmo passo
com Teixeira e Sousa o romance, e com Martins Pena e Magalhães o teatro
brasileiro. Escritor copiosíssimo como, excetuado presentemente o Sr.
Coelho Neto, não tivemos outro, Macedo, aliás sem jamais progredir
nem variar, ultrapassou a sua época e foi ainda o mais abundante dos
prosistas da segunda geração. Sem falar dos seus livros de história
ou de crônica e numerosos escritos políticos e literários
dispersos em jornais e revistas, tudo geralmente insignificante, são
da fase ocupada por esta geração (1850-1870) os Romances da
semana, O culto do dever, A luneta mágica, As vítimas algozes,
Nina, As mulheres de mantilha, A namoradeira, A baronesa do amor, para não
citar senão os, aos menos pelo tomo, mais consideráveis. E no
teatro, excetuado o Cego, que é de 1849, é desta mesma fase
toda a sua abundante literatura dramática. Mas quer no romance, quer
no teatro. Macedo não fez mais ainda na véspera ou já
em pleno dia do naturalismo que continuar, por inércia, o movimento
adquirido com a primeira geração romântica. Esta imobilidade,
que não basta à inspiração social de Vítimas
algozes, e de alguma sua peça de teatro, para desmentir, decididamente
o fixa nesta geração, sem embargo dele ter vivido, e sempre
escrevendo, até 1882. Nem a concepção do romance ou do
teatro, nem o estilo de Macedo, variaram nunca do seu conceito primitivo de
uma história inventada e recontada com muita poesia, ou, o que ele
cria tal, para comover a sentimentalidade do leitor ou do ouvinte, com o fim
de o edificar moralmente. Com este conceito, que foi o de todos os nossos
românticos, sem exceção de Alencar, Macedo o realizou
sem engenho que o relevasse, a sua obra é, do puro aspecto literário,
de somenos valia. Há nela, porém, alguma cousa que a levanta
e faz viver da vida mesquinha que ainda tem: primeiro a sua sinceridade, a
sua ingenuidade na representação do primeiro meio século
da nossa existência nacional, segundo a alegria que há nela,
e que agradavelmente destoa da estranha tristeza de todos os seus companheiros
de geração. Como quer que seja, ele tem, sem grande riqueza
e força aliás, imaginação e facilidade. Como autor
de teatro foi talvez o que melhor o soube fazer aqui. O desleixo com que geralmente
escreveu, senão também pensou as suas obras, prejudicou-as consideravelmente
em o nosso atual conceito. Mas os seus defeitos de concepção
e de forma, a que somos hoje nimiamente sensível, não afrontavam
os seus contemporâneos, dos quais foi um favorito. Ainda hoje é
dos nossos romancistas mais lidos, se bem que às escondidas e em segredo.
É o que tem sido mais repetidamente editado. E Taunay, que estreava
já na terceira geração, dedicando-lhe o seu romance A
mocidade de Trajano, como a um mestre, apenas exprimiu o sentimento de comum
apreço pelo operoso e divertido escritor.

Bernardo Guimarães nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais, em 1827.124
Era filho de Joaquim da Silva Guimarães, um desses muitíssimos
poetas merecidamente esquecidos de que o Brasil é abundante. Além
de versejar, o pai escrevia prosa; era pequeno jornalista provinciano. Bernardo
Guimarães encontrou, pois, uma tradição literária
na família. Devia-lhe avultar a herança e comunhão da
Sociedade Acadêmica de S. Paulo, cuja Faculdade de Direito, no tempo
em que a freqüentou, era um foco de atividade intelectual. Ali teve por
colegas e companheiros Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e outros
jovens poetas e escritores. Segundo a tradição constante, ele,
como aliás tantíssimos outros dos nossos doutores, tudo fez
menos estudar. Depois de formado, foi sucessivamente magistrado em Goiás,
professor de Retórica e Filosofia na sua terra e jornalista no Rio
de Janeiro. Fixando-se mais tarde na sua Província, aí exerceu
quase toda a sua atividade literária, que não foi pequena. Como
prosador, Bernardo Guimarães começou, ao que parece, pela crítica,
feita em jornais em que escrevia no Rio. Não sabemos o que vale a sua
crítica. Como ele não perseverou nela e não deixasse
como crítico obra por que o avaliemos, pouco nos importa sabê-lo,
rebuscando jornais velhos.

Muito mais que Alencar e acaso mais até que Macedo, Bernardo Guimarães,
como romancista é um espontâneo, sem alguma prevenção
literária, propósito estético ou filiação
consciente a nenhuma escola. É um contador de histórias no sentido
popular da expressão, sem a ingenuidade, às vezes excelente,
destes, porque em suma é um letrado, e as suas letras lhe viciam a
naturalidade. Se o seu primeiro romance, O ermitão do Muquem, é
um “romance brasileiro”, segundo a classificação costumeira,
com grandes laivos indianistas, é porque essa era a corrente do momento
e também porque se lhe deparou, quando nos sertões goianos,
um tema sobre muito próprio para impressionar a imaginação,
extremamente favorável à idealização romanesca,
consoante o conceito e gosto dela aqui vigentes. As datas da primeira publicação
do Guarani em jornal e depois em livro, e da edição do Ermitão,
autorizam a admitir a influência daquele na intenção deste.
Não há nele, entretanto, influência formal do romance
de Alencar, nem dos seus processos, tirante a excessiva sentimentalidade e
o desmarcado romanesco, em suma a idealização descomedida, que
era o achaque do tempo. Qualquer que seja a qualidade do engenho de Bernardo
Guimarães, e como poeta ele é dos bons que tivemos — a
verdade é que, sem literariamente ser o que chamamos um espírito
original, não é um espírito imitativo e subordinado.
Como poeta, não obstante ter vivido no foco da reação
ultra-romântica e na intimidade espiritual do seu principal corifeu,
ele conserva a sua individualidade distinta por feições que
contrastam com as dos companheiros de geração; emoção
e expressão mais sóbrias, sentimentalidade menos exuberante,
alma e veia menos triste e ainda jovial, apenas algum alarde do ceticismo
ou desesperação.

Os seus romances e novelas são todos natural e correntemente contados
sem preocupação ou trabalho de escrita, mas também sem
a peregrina virtude de a conseguir bela, independentemente deste esforço.
Nele, como em Macedo e no geral dos nossos românticos, a espontaneidade
não é a literária, e menos a que, sem grande trabalho,
dá com a forma justa. Ainda menos é a que, ainda com trabalho,
às vezes grande, logra, o que é o sumo da arte, iludir-nos dando-nos
a impressão da facilidade. Bernardo Guimarães escreveu mal,
quero dizer sem apuro de composição, nem beleza de estilo. O
seu é o de todo o mundo que não cuida do que escreve, a sua
língua é pobre, a sua adjetivação corriqueira,
o seu pensamento trivial. São os defeitos de Macedo e ainda mais de
Teixeira e Sousa, mas no escritor mineiro mais sensíveis por virem
depois destes e quando a literatura nacional já tinha trinta anos de
existência e de produção nunca descontinuada. Com uma
justa intuição das exigências da composição
literária, faltou aos nossos românticos uma crítica que
os esclarecesse delas. A que aqui se começou então a fazer,
provinha em linha reta da que tinha em Portugal por órgãos principais
as Academias e Arcádias e os censores oficiais, uma crítica
de hiperbólicos encômios, de campanudos elogios, em que os juízos
tomavam por via de regra a forma de equiparações disparatadas
com os autores célebres ou de assimilações antonomásticas
não menos estapafúrdias. A crítica ali, aliás,
oscilou sempre entre o panegírico e o vitupério, a louvaminha
e a diatribe. Com a mesma índole passou ao Brasil, e os que a fizeram
aqui, nos nossos primeiros jornais e revistas, como o Patriota, a Minerva,
o Guanabara, Niterói, movidos do sentimento presumido patriótico
de encarecer os nossos valores intelectuais, ainda lhe exageram aquela tendência
atávica. A crê-los, esses nossos começos de literatura
nacional seriam um acervo de obras-primas. Não fora essa crítica
louvaminheira e puerilmente patriótica que teve Macedo por um gênio
literário e cada uma das suas defeituosas produções por
um primor, os seus seguidores e discípulos e ele próprio, que
viveu mais que bastante para emendar-se, teriam necessariamente nos saído
mais perfeitos. Essa crítica continuou para Bernardo Guimarães,
havido no seu tempo (e ainda hoje pela opinião bairrista) por um grande
romancista e escritor. O público parece aliás não lhe
ter endossado o conceito, pois o Ermitão, publicado em 1859, não
teve até agora mais que essa edição. E os seus outros
romances não passaram igualmente da primeira, ao invés das suas
poesias, que já atingiram a quarta, o que prova que o público
é mais inteligente do que se nos afigura. É esta a lição
da nossa história literária, que a crítica indiscretamente
animadora não é só inútil, mas prejudicial. Apenas
serve para produzir frutos pecos, desencaminhando atividades porventura melhor
empregadas fora da literatura ou acoroçoando vaidades que se tomam
por vocações. Sem embargo deste ensino, continua a ser este
o conceito da crítica aqui, quando não é a diatribe ou
a simples arrogância de indigesta erudição.

Na romântica brasileira, Teixeira e Sousa havia criado o gênero,
iniciado o romance de costumes populares rurais ou urbanos, Macedo o continuara,
mas romanceando principalmente a vida burguesa da capital, Manoel de Almeida
ensaiara-se apenas, mas com engenho superior ao destes, no romance da vida
carioca de um quarto de século antes, segundo o conceito tradicional,
com evidente propensão e clara inteligência para a análise
dos caracteres e sentimentos. Alencar, depois de se haver ensaiado na novela
romanesca da vida social, iniciara o romance do “período da conquista”
da “luta em que a raça invasora destrói a raça indígena”
com o manifesto propósito de reabilitar o índio da má
fama que lhe fizeram os cronistas, o que só idealizando-o extravagantemente
podia conseguir.125 Este propósito era aliás o mesmo de Magalhães,
de Gonçalves Dias de outros indianistas, e o que de alguma sorte o
legitimava é que a nação inteira o adotou.

Bernardo Guimarães é o criador do romance sertanejo e regional,
sob o seu puro aspecto brasileiro. O meio cujo era, determinou esta tendência
da sua romântica. Mas ao contrário do que se devia esperar de
escritor tão familiar com o ambiente que lhe fornecia os temas, não
se lhe apura nas obras a imagem exata, seja na sua representação
objetiva, seja na sua idealização subjetiva. Em toda a obra
romântica de Bernardo Guimarães será difícil escolher
uma página que possamos citar como pintura ou expressão exemplar
do meio sertanejo. Teve ele ambições mais altas que esta pintura
de gênero, ensaiou-se também no romance histórico e no
de intenções sociais, com o Seminarista, onde versou o caso
celibato clerical, com a Escrava Isaura, em que dramatiza cenas da escravidão,
com Maurício, em que tenta ressuscitar uma época histórica
da vida colonial da sua província. Infelizmente os mesmos defeitos
que lhe viciam os romances sertanejos lhe maculam estes, acrescidos da pobreza
do seu pensamento e acaso maior insuficiência da sua expressão.

125Como e Porque Sou Romancista, 44 e seg.


Capítulo XIII

A SEGUNDA GERAÇÃO ROMÂNTICA. OS POETAS

AS ÚLTIMAS MANIFESTAÇÕES do Romantismo com os rasgos
que deram ao nosso a sua feição particular, nomeadamente o indianismo,
a inspiração patriótica e o propósito nacionalista,
o espiritualismo filosófico, o sentimentalismo, a religiosidade e a
intenção moralizante, alcançam até meados dos
anos de 60, com a publicação do Colombo, de Porto Alegre, em
1864. Ainda em antes do seu esgotamento como forma literária, surge
uma nova geração de poetas e prosadores, na qual se contam alguns
dos nossos principais escritores. Simultaneamente com a primeira geração
romântica, mas depois desta bem estreada, isto é, após
1846, coexiste, como já relatamos, o grupo maranhense que por Gonçalves
Dias, a sua mais eminente individualidade, se liga ao grupo formado no Rio
de Janeiro por aquela geração. Gonçalves Dias estabelece
também a transição entre essa e a seguinte. Esta apenas
mui parcialmente lhe acompanhará a inspiração indianista.
Sofrerá, porém, a influência da sua poética e ainda
do seu sentimento poético.

Desde 1853, com as Obras Poéticas de Álvares de Azevedo, seguidas
das Trovas de Laurindo Rabelo (1854), das Inspirações do Claustro
de Junqueira Freire 91855), das Primaveras de Casimiro de Abreu (1859), revela-se
uma nova progênie de poetas. Juntam-se-lhe os prosadores, alguns também
poetas, José de Alencar, que estréia em 1857; Macedo, que vinha
da primeira, mas como romancista ocupa nesta um grande lugar e como escritor
dramático quase totalmente lhe pertence; Manoel de Almeida, porventura
a mais promissora e infelizmente malograda esperança da novelística
brasileira; Bernardo Guimarães, Agrário de Meneses se menores
ou menos importantes.

Como epígonos da primeira geração de iniciadores, continuam-lhe
a tradição e o labor, influídos ou não por novas
idéias e conceitos literários, Pereira da Silva, Varnhagen,
Macedo, Norberto Silva, além de outros somenos, contemporâneos
e companheiros seus.

Principalmente distingue esta geração da precedente a sua maior
liberdade espiritual, e conseqüente mais largo conceito estético,
quer no seu pensamento geral, quer na sua aplicação à
literatura. Aquele não é mais o estreme idealismo católico
dos primeiros românticos. Ressente-se ao contrário o seu do influxo
do ceticismo literário, do “satanismo”, para falar com De
Maistre, de Byroin, Musset e outros românticos europeus de feição
menos religiosa que a do primeiro movimento na Europa e aqui. O Brasil também
progredira política, econômica e mentalmente. Ao cabo da primeira
metade do século, asseguradas da independência, a monarquia e
a ordem, não havia mais motivo e lugar para os ardores patrióticos
e as paixões nacionalistas de antes. Na geração literária
que surge por esta época, e que será talvez a mais brilhante
de toda a nossa literatura, entra a desvanecer-se a miragem do indianismo,
que justamente por esse tempo João Lisboa, no seu Jornal de Timon,
metia pela primeira vez à bulha. Apesar do grande exemplo e durável
sucesso de Gonçalves Dias, e da Confederação do Tamoios,
de Magalhães, publicada em 1856, nenhum poeta caiu mais nesse engano,
ao menos com a convicção ou sentimento dos seus criadores na
nossa literatura. Restaurou-o, ou melhor instaurou-o, no romance José
de Alencar, publicando, um ano depois dos Tamoios e no mesmo dos Timbiras,
o Guarani.

O pensamento de uma literatura brasileira, que fora expressamente o de Magalhães
e seus companheiros, que a obra de Gonçalves Dias principalmente avigorara,
o reassumira José de Alencar com mais clara consciência e mais
firme propósito de o executar. Pensou servi-lo criando o romance da
vida indígena selvagem ou misturada com a vida civilizada dos colonizadores,
como no Guarani, ou pura ou quase pura na Iracema e depois, serodiamente,
no Ubirajara. Mas não obstante o real talento de escritor que neste
propósito pôs, e daquelas duas primeiras obras de mérito
verdadeiro com que procurou realizá-lo, ele lhe ficou infecundo. Não
conseguiu empecer a decadência do indianismo, nem assentar definitivamente
o senso nacionalista da literatura brasileira, como o quisera. Não
ficou, entretanto, de todo sem repercussão ou influência. Os
próprios portugueses Mendes Leal e Pinheiro Chagas se meteram a fazer
com O calabar (1863), Os bandeirantes (1867), A virgem guaraciaba (1868),
literatura nacionalista brasileira. O estímulo puramente industrial
dessas obras insinua-lhes claramente o malogro. Os jovens poetas que desde
1850, ainda em antes de publicados em livros, vinham versejando, não
curam mais de índios nem do que lhes concerne. Não são
sequer patriotas no sentido em que o foram Magalhães e os do seu grupo.
Nem os preocupa ao menos a formação de uma literatura nacional.
O seu brasileirismo de todo estreme dos preconceitos nacionalistas, vem-lhe
mais do íntimo e é em suma mais racional. São mais subjetivos,
mais pessoais, mais ocupados de si, dos seus amores, das suas paixões,
dos seus sofrimentos e dissabores, que de literatura ou de política.
É menor neles do que fora nos seus antecessores a influência
de Chateaubriand, avoengo do nosso segundo indianismo. Pratica-o também
pela mesma época um outro romancista, Bernardo Guimarães, mas
pratica-o antes por imitação, sem a espontaneidade e menos o
talento de Alencar. E sendo melhor poeta que romancista e tendo poetado copiosamente,
jamais poetou do índio.

Os poetas da segunda geração romântica possuíram
em grau notável a primeira virtude de quem nos quer comover, a sinceridade.
Circunstâncias fortuitas de sua vida fizeram com que todos eles de fato
vivessem a sua poesia ou sentissem realmente o que com ela exprimiram. Talvez
por isso não são artistas mas poetas, com o mínimo de
artifício e o máximo de emoção, em mais de um
deles ingênua, conforme convém à boa arte. O que se lhes
pode descobrir de nacional, o seu brasileirismo mais íntimo que de
mostra, como o era o dos da geração anterior, é já
a revelação da nossa alma do povo diferente, como se ela viera
formando e afeiçoando em três séculos de vida histórica
e em trinta anos de existência autônoma, a expressão inconsciente
do seu sentir ou do seu pensar, indefinidos sim, mas já inconfundíveis.
Não são brasileiros porque cantem o bronco silvícola
destas terras, ou porque celebram-nas a estas. Não rebuscam temas,
nem forçam a inspiração ao feitio indígena. Com
exceção de Gonçalves Dias, que é mais da primeira
geração que desta, nenhum destes poetas é, ainda parcialmente,
indianista, ou tem sequer o propósito nacionalista. Protraem-se estas
feições apenas nalgum mais medíocre ou em um ou outro
prosador, cujo provincianismo sertanejo os sujeitava mais à influência
do ambiente nacional, onde mais vivazes eram ainda as tradições
da terra brava e do seu primitivo habitador. Tais são José de
Alencar, que confessa a influência do sertão brasileiro na germinação
do Guarani,126 e Bernardo Guimarães, que diretamente dos nossos sertões
meio selvagens recebe mais que a inspiração os assuntos de suas
novelas.

Criados e educados já de todo fora da influência mental portuguesa,
são os escritores desta geração menos portugueses de
pensamento e expressão do que os da primeira. O seu brasileirismo,
menos político do que o destes, é mais emotivo, mais de raiz,
e por isso mesmo, está mais nos seus defeitos e qualidades de inspiração
e de estilo, que nas inferioridades da sua manifestação. Conservando
muito do sentimento poético português, do senso da saudade e
da nostalgia, da melancolia amorosa que tanto o distingue, e que em Gonçalves
Dias, embora ardente e voluptuosa, não atinge ainda a luxúria,
o lirismo destes poetas tem já desenganadamente o tom que separa o
lirismo brasileiro do português. Nada o prova melhor que a comparação
destes poetas com os seus contemporâneos portugueses João de
Lemos, Soares de Passos, Mendes Leal, Serpa Pimentel, aos quais pode afirmar-se
que ficaram de todo estranhos os nossos.

Afora em alguns poetas da Renascença portuguesa como Camões,
o lirismo português não foi jamais casto, antes sempre mais luxurioso
que voluptuoso. O lirismo brasileiro, porém, exagera e piora esta feição.
Desde a segunda geração romântica — o da primeira
pecara mesmo por demasiado continente — entra a ser desenfreadamente
erótico, como o de um povo onde o amor nasceu entre raças desiguais
e inimigas e portanto entre violências e brutezas de apetites e carnalidades,
e um povo onde a fácil e franca mistura de uma gente européia
em decadência com raças inferiores e bárbaras devia produzir
um mestiço excessivamente sensual, em todas as acepções
do termo. A influência particular portuguesa que acaso se descobre nesta
geração é a de Garrett. Mas o tom popular que Garrett
restituíra à poesia portuguesa e que há na destes poetas,
apenas porventura lhes revê o íntimo brasileirismo, feito sob
a influência do meio ainda matuto, simples e desartificioso. Nessa influência
concorreria a da poesia que andava tradicionalmente na boca das mucamas negras,
crioulas, mamelucas e mulatas que haveriam sido as primeiras educadoras desses
poetas e suas iniciadoras sentimentais, como o foram de gerações
de brasileiros.

A riqueza relativa do seu estro, se o compararmos ao dos românticos
da primeira hora, e ainda aos dos nossos poetas que imediatamente lhes sucederam,
a naturalidade e viveza da sua expressão, além dos já
notados atributos de espontaneidade, sinceridade e candura, sempre raro na
poesia da nossa língua, impuseram estes poetas, mais que à admiração,
à afeição dos seus patrícios. Efetivamente são
porventura os melhores que jamais teve o Brasil, e é incontestável
que são ainda hoje os mais estimados da nação, os mais
repetidamente publicados, os mais constantemente lidos. E a sua influência,
que foi grande, ainda não desapareceu. Queira-o ou não, mais
de um poeta atual e não dos somenos, é discípulo dos
desta geração. Não obstante o aumento da cultura, o presumido
aperfeiçoamento do gosto e o desenvolvimento exagerado do reclamo,
nenhum poeta nosso depois deles, com exceção talvez de Castro
Alves, que deles aliás procede, teve um número de reimpressões
parciais ou totais e de leitores que estes tiveram.

Com os poetas da segunda geração romântica, nomeadamente
com Álvares de Azevedo, entra um novo motivo na poesia brasileira,
a morte. Cantores da terra, das damas, de magnates, de temas abstratos, da
natureza, de indivíduos, do amor, da pátria, de sentimentos
personificados e até do sofrimento e da dor, nenhum cantara entretanto
a morte, ou a morte, a despeito de ser um dos grandes temas líricos,
não fora para nenhum, estímulo de inspiração.
Estes poetas são todos tristes. A todos eles contagiou a melancolia
de Gonçalves Dias, o primeiro dos nossos poetas com quem andou a idéia
da morte.

Além das heranças ancestrais e das influências deprimentes
do ambiente e de poetas estrangeiros nimiamente admirados e seguidos, contribuiu
para a sua tristeza e desalento a sua fraqueza física congênita
ou sobrevinda, atestada pela existência enfermiça e morte prematura
de todos eles. O que mais velho morreu, Gonçalves Dias, tinha apenas
quarenta e um anos; dos outros nenhum alcançou os quarenta, e os mais
deles nem aos trinta chegaram. Álvares de Azevedo finou-se aos vinte.
À natureza débil e doentia destes poetas juntaram-se em todos
eles circunstâncias pessoais de desacordo com o seu ambiente doméstico
ou meio social que lhes agravaram o triste estado d’alma para o qual
já os predispunha a sua astenia. Também passara a época
dos grandes entusiasmos e vastas esperanças criada pelos sucessos conseqüentes
à Independência e ao 7 de abril. A nação entrava
na sua existência sossegada e pouco estimulante de quaisquer energias.

I — ÁLVARES DE AZEVEDO

A Lira dos vinte anos e as Poesias diversas, que compunham o primeiro tomo
das Obras poéticas de Álvares de Azevedo, eram uma novidade
na poesia brasileira, quase igual ao que haviam sido os Suspiros poéticos,
de Magalhães, em 1836, e os Primeiros cantos, de Gonçalves Dias,
em 1846.

Manoel Antônio Álvares de Azevedo nascera em S. Paulo em 1831.
A infância passou-lhe no Rio de Janeiro. De menino revelou grande inteligência
e curiosidade mental, estudando e tanto e tão bem que aos dezesseis
anos completara com aproveitamento e brilho o curso do Colégio de Pedro
II e recebia a carta de bacharel em letras. Mais que assíduo leitor,
era um devorador de livros, ainda na idade em que a tal apetite não
pode corresponder igual capacidade de assimilação. Em S. Paulo,
para onde passou a estudar Direito, distinguiu-se pelo talento com que acaso
supria a aplicação e pelo seu precoce engenho poético.
A liberdade que lhe outorgava a vida de “acadêmico”, numa
pequena cidade escolar onde os estudantes tinham graças de estado de
que usavam e abusavam, a ausência do constrangimento familiar e as mesmas
isenções que lhe conferia o renome de menino prodígio
que levara do Rio, influíram-no a viver a vida romântica, realizando
as idealizações dos poetas de que se achava saturado, Musset,
Byron, Espronceda, George Sand, ou imitando a existência e vezos que
lhes atribuía a eles ou tinham as suas criaturas. E pela imaginação
ao menos, começou a viver tal vida na qual, com as suas nativas inclinações,
entrou muita literatura. Como, porém, o arremedo se lhe fundia perfeitamente
com o temperamento e correspondia em suma aos seus mais íntimos instintos
poéticos, não resultou em disparate conforme com mais de um
tem acontecido. Da combinação das próprias tendências
com a imitação literária, criou-se uma vida factícia.
Presumiu transplantar para a mesquinha vida de S. Paulo de meados do século
passado, costumes e práticas do Romantismo europeu. Quis praticar as
façanhas sentimentais dos heróis de Musset e Byron. A candura
com que o fez não só o salvou de um ridículo naufrágio,
mas até o engrandeceu, criando-lhe a feição que o distinguiria
na poesia brasileira e o faria um dos seus dominadores. Daquele seu teor da
vida romântica, a expressão literária é a Noite
na taverna, composição singular, extravagante, mas acaso na
mais vigorosa, colorida e nervosa prosa que aqui se escreveu nesse tempo.

Mostrava-se Álvares de Azevedo poeta pessoal e subjetivo, como não
fora talvez nenhum dos nossos antes dele e raros o seriam depois. Impressões
da natureza ou de arte não lograva nunca objetivá-las. Transfundiam-se-lhe
naturalmente em íntimas sensações, por via de regra dolorosas.
É, neste período, o primeiro que quase unicamente canta de amor,
que fica alheio à natureza que o cerca ou à nação
a que pertence. Só lhe interessa a mulher, “o eterno feminino”
de que foi talvez o primeiro a ter aqui o sentimento à maneira goetiana,
e que o absorve e alucina. Não é fácil distinguir o que
é nele inspiração e sensibilidade poética do que
são instintos e impulsos sensuais de moço brasileiro, superexcitado
pela tísica que o minava. Eram raros nele os temas objetivos vulgares
em Magalhães, Porto Alegre e Gonçalves Dias e menos os temas
retóricos ou adequados às amplificações poéticas,
tão ao gosto destes, inclusive o último. Quando casualmente
os tratava, ou incidentemente lhe acudiam, envolvia-os com o seu sentimentalismo
romântico, preocupações femininas ou amorosas, em imagens,
pensamentos e sensações. Malsinando dos políticos traidores
de seus ideais e que tudo sotopõem aos seus baixos interesses, a imagem
de que se socorre é ainda de poeta amoroso:

Almas descridas de um sonhar primeiro

Venderiam o beijo derradeiro

Da virgem que os amou.

Mesmo quando o desespero romântico, a sua sensibilidade doentia o reverte
às crenças tradicionais como nos Hinos do profeta, declamação
poética muito à moda romântica, se bem mais eloqüente
que similares de Magalhães, ainda nesses momentos se lhes insinua na
inspiração o eterno feminino, um eterno feminino qual o podia
conceber um poeta brasileiro, jovem, sensual e ardoroso. Como aliás
nenhum dos poetas da sua geração, Álvares de Azevedo
não é um poeta descritivo, um paisagista, conforme mais ou menos
serão quase todos os nossos depois dela. Quando, porém, acerta
de ter uma inspiração da natureza, à sua emoção
mistura-se infalivelmente a mulher e o amor, reagindo sobre a materialidade
da impressão e idealizando-a. Vejam Tarde de verão, Tarde de
outono, em que ao descritivo inculcado pelo título se substituem puras
sensações subjetivas.

Segundo era já consuetudinário na nossa poesia, a sua terra
também lhe inspira um canto de amor em que não falta o confronto
preferencial com terras estrangeiras:

No italiano céu nem mais suaves

São da noute os amores

Não tem mais fogo os cânticos das aves

Nem tem mais flores!

Onde sentimos reminiscências da Canção do exílio,
de Gonçalves Dias. Mas o que lhe aformoseia a terra natal e lha faz
amada é ainda a mulher querida que nela vive. Ao descante de sua terra
mistura os seus transportes amorosos.

Aos homens doentes e desconsolados pela idéia da morte, máxime
se são poetas, acontece recolherem-se em si mesmos e viverem de uma
vida interior. Álvares de Azevedo, valetudinário precoce, foi
levado a viver essa vida, apesar das alegrias da idade que lhe resumam em
mais de um poema faceto ou humorístico. Alegrias e tristezas chocam-se-lhe
na alma jovem, ardente e ambiciosa, produzindo a ironia por vezes amarga de
alguns dos seus poemas (O poema do Frade, Um cadáver de poeta, Idéias
íntimas, Boêmios, Spleen e charutos) os gritos de descrença
e desesperança desses e de outros e de prosas como a Noite na taverna.
Dessa ironia é ele o único exemplar na nossa poesia, como seria
o instituidor nela dessa desesperação e descrença. De
tal estado d’alma lhe veio, com o nímio subjetivismo, o sentimento
ora acerbo, ora zombeteiro, da vida, e a carência ou a pobreza de impressões
da natureza ou da sociedade na sua poesia. Destas últimas apenas se
lhe achará um exemplo claro no único poema objetivo que deixou,
Pedro Ivo, aliás um dos mais admiráveis da nossa poesia, dos
raros em que o motivo político ou social da inspiração
não sufoca ou amesquinha os elementos propriamente poéticos,
antes lhes serve excelentemente à expressão. É que no
poema de Álvares de Azevedo predominou o mesmo objeto da sua inspiração,
a sua íntima emoção mais de poeta que de repúblico.

Entre estes poetas foi Álvares de Azevedo um dos espíritos
literariamente mais cultos. Conheceu as obras-primas das melhores literaturas
na sua língua original, e tinha boa lição das letras-mães
da nossa. Havia atilamento e bom gosto no seu espírito crítico,
apenas iludido pelo seu entusiasmo juvenil. Conhecia e amava os portugueses,
e foi um dos que sofreu a influência de Garrett, a quem tinha alta e
merecida estima. Do influxo do lirismo e da forma garretiana há talvez
sinais em seus poemas Ai Jesus!, o poeta, amor e poucos mais. É porém
uma influência toda lateral, digamos assim, em que o poeta brasileiro,
ainda sofrendo-a, conserva a sua personalidade. Nem ela obrou então
aqui com a mesma generalidade ou força, com que atuava a literatura
portuguesa antes do Romantismo.

A idéia da morte é uma obsessão em Álvares de
Azevedo. Direta ou indiretamente, intencional ou inconscientemente, aparece
ou insinua-se-lhe nos versos como a que, com a do amor, lhe é mais
familiar. Lembranças de morrer, um dos seus mais belos poemas, como
Se eu morresse amanhã, de igual sentimento e beleza, não são
mais que manifestações explícitas da íntima angústia
de sua alma de que, como verdadeiro poeta, ele fez deliciosas canções.
E apenas haverá algumas das suas que a não reveja.

II — LAURINDO RABELO

Laurindo José da Silva Rabelo, fluminense ou antes carioca, viveu
de 8 de junho de 1826 a 28 de setembro de 1864. Menos a educação
e a cultura, que, não obstante a sua formatura em Medicina, parece
não terem sido apuradas, havia nele feições de Álvares
de Azevedo. Foi igualmente, talvez desde a puberdade, doente e fraco. De origem
e condição humilde, mulato de raça, a consciência
da sua situação, sem a força de caráter necessária
para a contrastar, amargurou-lhe desde cedo a existência que levou à
boêmia, obrigado da necessidade, se não também pelo natural
relaxamento a angariar amizades e proteções da benevolência
social, ornando e animando partidas e festas com o seu estro e as suas facécias,
improvisos, glosas, poesias recitadas ou cantadas à viola, como um
aedo ou trovador primitivo, e mais os ditos que se lhe atribuem. Foi, como
nenhum outro, o poeta popular, mais conhecido em seu tempo pela alcunha de
Poeta lagartixa, tirada de seu corpo escanifrado, que pelo seu nome. Não
o roçou a descrença romântica, como a Álvares de
Azevedo e a Junqueira Freire. Não lhe fugiu, ou sequer se lhe desvaneceu
notavelmente a ingênua crença doméstica, conservada, como
é tão comum, por hábito, e nele, poeta de nascença,
por necessidade sentimental. A desventura, o sofrimento, aumentou-lhe, porém,
a tristeza dos da sua geração e exacerbou-lhe a sensibilidade,
e como àqueles criou-lhe a angústia da morte, que atormentava
o poeta da Lira dos vinte anos, afligia a Junqueira Freire, a Casimiro de
Abreu e a outros da mesma família literária. Do Rio Grande do
Sul, aonde o levara o seu emprego de médico do exército, escrevia
nos formosos tercetos endereçados ao seu amigo Paula Brito, o bondoso
e ingênuo mecenas, tão mesquinho como os poetas que patrocinava:

Tenho n’alma um cruel pressentimento

(Talvez não mui remota profecia

Que não posso apagar do pensamento!)

Espero cedo o meu extremo dia

E a morte, da pátria tão distante,

É quadro que me abate de agonia!

Das humilhações que ao seu talento e brio impunha a sua mofina
condição, defendia-se com o orgulho com que se lhe fingia indiferente,
mas que às vezes lhe irrompiam ou em gestos desabridos ou em gritos
poéticos verdadeiramente dolorosos e comoventes, porque vindos d’alma.
Tais são: Meu segredo, Minha vida, A linguagem dos tristes, Não
posso mais, Último canto do cisne:

Eu me finjo ante vós, porque venero

O sublime das lágrimas; conheço-as

São modestas vestais, vivem no ermo

Aborrecem festins………………………..

……………………………………………..

Bem fechadas no claustro de meus olhos

Dentro em meu coração hei de contê-las

Guardá-las bem de vós, contentes, hei de

Porque a dor me não traia neste empenho

Zelosa e vigilante sentinela

Em meus lábios trazer constante um riso.

Pungia-o esse tão comum mal secreto, de que um dos nossos poetas devia,
duas gerações depois, dizer num soneto modelar. Serviu-lhe grandemente
o estro esse mal. Na sua desgraça, de que a sua índole de boêmio
e a sua doentia sensibilidade de poeta fizera um real sofrimento, achou motivos
de inspiração cuja sinceridade se traduz numa forma comovida
e tocante, se não excelente. Esta mesma lucrou da sua existência
de poeta popular a simplicidade do sentimento e a singeleza da expressão
que lhe dão à poesia um cunho particular e não raro delicioso.
O título de Trovas que lhe pôs calha admiravelmente aos seus
poemas em que a espontaneidade da inspiração e a ingenuidade
do sentimento se não embaraçam de dificuldades e caprichos de
expressão. Laurindo Rabelo é um poeta no sentido profundo que
o povo dá a este nome. Também nenhum outro dos nossos teve a
alma tão perto do povo.

III — JUNQUEIRA FREIRE

Luís José Junqueira Freire nasceu na Bahia em 1832 e ali mesmo
faleceu, sem nunca ter saído da terra natal, em 1855. Os seus estudos
exclusivamente literários, fizera-os com pouco sistema nas aulas primárias
e avulsas secundárias da sua terra e em seguida no Liceu Provincial.
Completou-os ou os aperfeiçoou depois com a leitura copiosa e variada,
principalmente dos poetas latinos e modernos. As suas tentativas críticas
não lhe desmerecem essa capacidade e são escritas numa língua
em que porventura havia um bom embrião de prosador.

Uma temporã paixão amorosa mal-aventurada levou Junqueira Freire,
por desespero romântico, a fazer-se frade. Não tinha nenhuma
vocação ou sequer vivo sentimento religioso. Ao revés,
dos fragmentos autobiográficos dele restantes verifica-se que era antes
um espírito crítico, já meio desabusado, que metia à
bulha devoções e crendices acatadas pela Igreja. Ao desespero
amoroso a que a vida monástica não dera remédio, ajuntou-se
lhe logo o desespero da vida, para a qual não nascera, e com ele a
revolta contra o seu estado de frade e até contra o estado monástico
em geral. Foram os dois sentimentos conjugados que o fizeram poeta e lhe deram
a originalidade de ser na nossa literatura, senão também em
toda a poesia da nossa língua, o único francamente rebelde a
uma das feições mais particulares do catolicismo, e que de o
ser tirou inspiração. Ao livro de seus primeiros poemas publicados
na Bahia em 1855, pouco antes de sua morte, chamou de Inspirações
do claustro. O título é impróprio, pois faz erroneamente
supor que lhos inspirou a religião do claustro, quando motivaram-nos
o desespero e a revolta contra ele. Sob a estamenha do monge continuou a palpitar
o seu coração enamorado, e no claustro mesmo o seu amor, numa
ardência de desejos insatisfeitos e agora irrealizáveis sem crime,
irrompia em poemas que, no seu estado, frisavam ao sacrilégio. Dessa
coleção justamente os poemas mais fracos são os de inspiração
presumida de religiosa, O apóstolo entre as gentes, A flor murcha do
altar, O incenso do altar, Os claustros e quejandos, em que idéia,
emoção, estilo são de lamentável frouxidão.
A todos falta a unção que só dá menos uma fé
confessada que um íntimo sentimento religioso. Nenhum parece vindo
tão do fundo d’alma como as suas imprecações de
frade desiludido ou os seus lamentos de amoroso desesperado. A mesma observação
cabe aos seus poemas intencionalmente brasileiros. Destes poetas é
Junqueira Freire o único a ainda sacrificar ao indianismo e a propósitos
patrióticos, embora escassamente e sem convicção nem
entusiasmo. Ressentem-se destas falhas os seus poemas (O hino da cabocla,
Dertinoa) dessa inspiração, que estão em tudo e por tudo
bem longe do modelo evidentemente mirado, Gonçalves Dias, com quem
Junqueira Freire teve relações pessoais e a quem dedicou um
dos seus poemas. Não aprendeu, aliás, dele a ciência do
verso branco, que ao seu falta harmonia e relevo. Os melhores versos de Junqueira
Freire são talvez os de contextura popular, sem preocupações
de métrica. Afetava demasiado o verso de onze sílabas, geralmente
desagradável pelo seu soar agalopado.

Punge-o também a idéia da morte, como era natural de uma alma
de raiz romântica, afligida pelo ódio da sua profissão
monástica, pelo desespero de um mal-aventurado amor e ainda pela miséria
de um organismo doentio. Entrevê-se-lhe aquela idéia em vários
passos dos seus poemas, e claramente e numa bela frase poética mostra-se
no intitulado Morte:

Pensamento gentil de paz eterna

Amiga morte, vem.

Punge-o porém, sem a expressão angustiosa de Álvares
de Azevedo ou Casimiro de Abreu, se não mais conformada e serena. Os
seus poemas característicos, a manifestações mais significativas
do seu sentimento e estro e do seu feitio poético, são Meu filho
no claustro, A órfã na costura, Frei Bastos, A profissão
de Frei Ramos, A freira, Ela, Saudade, Desejo, Morte, Temor. Estes sobretudo
lhe dão a feição que o distingue no grupo da segunda
geração romântica. Nenhum deles tem a perfeição
relativa que se pode exigir de quem poetava em época em que se não
era tão pontilhoso nas exigências da forma poética, mas
reunidos desenham uma não vulgar fisionomia de poeta.

IV — CASIMIRO DE ABREU

Tem-na também própria e notável Casimiro de Abreu. Poetando
desde 1855, havendo mesmo publicado em Portugal desde 1856, na Ilustração
Luso-Brasileira, alguns poemas, só em 1859 deu à luz as suas
Primaveras, porventura o mais lido dos nossos livros de versos.

Casimiro José Marques de Abreu era natural da Barra de São
João, na província do Rio de Janeiro, onde nasceu em 1837 e
morreu em 1860. Seu pai, português como o de Gonçalves Dias,
como esse o destinava ao comércio. Menos tratável, porém,
que aquele, quis obrigar o filho a ficar numa profissão a que este
era de todo avesso.

Dos poetas da sua geração é Casimiro de Abreu, talvez
mais que outro qualquer, o poeta do amor e da saudade. Os dois sentimentos
são a alma da sua poesia. Este pobre rapaz fraco e enfermiço
nascera poeta, com a sensação viva, dolorosa do que o grande
poeta latino chamara as lágrimas das cousas, cujo mortal encanto lhe
penetrou cedo a alma melancólica. O drama íntimo da sua vida,
o desconhecimento do seu talento, a contrariedade oposta à sua vocação
e, acaso, as imperfeições do lar paterno, tudo teria sido exagerado
até ao trágico pela sua sensibilidade doentia. É grande
a mágoa que de tudo lhe vem; grande, real e sincera. Da sua vida amorosa
nada de certo sabemos. Os seus biógrafos, mesmo aqueles que mais intimamente,
parece, o conheceram e trataram, como Reinaldo Montoro e Teixeira de Melo,
divagam e amplificam, segundo tem sido aqui o mau vezo dos biógrafos,
em vez de lhe investigarem a vida e de a contarem sem impertinentes recatos.127
Nos seus versos, porém, há a impressão pungente de um
amor infeliz que lhe deixou a alma malferida e para sempre dolorosa. O afastamento,
a ausência da terra natal, o exílio, como, imitando a Gonçalves
Dias, lhe chamou, completaria a exacerbação da sua sensibilidade
orgânica e lhe daria ao estro o tom nostálgico que, sem igualar
a simplicidade genial do seu inspirador, não lhe ficará somenos
em emoção.

É sob a influência da nostalgia e do amor, ambos de fato nele
uma doença, que se põe a cantar o Brasil. Mas o Brasil, que
canta em seus sentidos versos, a pátria por quem chora e que celebra,
é principalmente a terra em que lhe ficaram as cousas amadas e mormente
a desconhecida a quem dedicou o seu livro e que, segundo a meia confidência
de um daqueles biógrafos, teria encontrado morta quando voltou à
terra natal. A saudade desta com os encantos que a saudade empresta aos seus
motivos é que o faz patriota, se mesmo com esta restrição
se lhe pode aplicar o epíteto, que não vai aqui como elogio.
A sua nostalgia é sobretudo o amor, não só à mulher
querida, mas a quanto este amoroso amava, o torrão natal, a casa paterna,
a vida campestre, que para as almas sensíveis como a sua se enche de
prestígio ignorados do vulgo.

Lá de longe cantou a sua terra, os sítios da sua infância,
as suas recordações de toda a ordem, avivadas pela saudade,
com sentida e comovedora emoção. As penas de amor e de saudade
fizeram-no o poeta que foi. Toda a sua curta vida, ainda depois de restituído
à sua terra, uma saudade incerta, uma indefinida nostalgia ficar-lhe-ia
na alma como um ferrete daquelas penas. E o nosso povo, que do português
herdou o senso desses dois sentimentos, em a nossa raça irmanados na
mesma emoção, achou porventura em Casimiro de Abreu o mais fiel
intérprete das suas próprias comoções elementares,
primárias, do amor do torrão e da mulher querida. Pelo que é
Casimiro de Abreu o poeta brasileiro que o nosso povo mais entende e a quem
mais quer. Ama-o, recita-o, canta-o, fazendo-o um poeta popular, em certos
meios quase anônimo. Comprova este asserto o fato de ser Casimiro de
Abreu, de todos os nossos poetas, excetuando Gonzaga, certamente o que tem
sido mais vezes reimpresso, total ou parcialmente. As suas Primaveras têm,
pelo menos, oito edições.

Voltando doente e abatido à terra natal, a vista daquelas cousas tão
choradas no exílio põe-lhe na alma dolente acentos raros atingidos
pela nossa poesia. E dele se haviam de inspirar Luís Guimarães
Júnior, Lúcio de Mendonça e outros que cantaram iguais
estados d’alma:

Eis meu lar, minha casa, meus amores,

A terra onde nasci, meu teto amigo,

A gruta, a sombra, a solidão, o rio

Onde o amor me nasceu, cresceu comigo.

Os mesmos campos que eu deixei criança,

Árvores novas, tanta flor no prado!…

Oh! como és linda, minha terra d’alma,

—Noiva enfeitada para o seu noivado.

Foi aqui, foi ali, além… mais longe,

Que eu sentei-me a chorar no fim do dia,

—Lá vejo o atalho que vai dar na várzea…

Lá o barranco por onde eu subia!…

Acho agora mais seca a cachoeira

Onde banhei meu infantil cansaço,

—Como está velho o laranjal tamanho

Onde eu caçava o sanhaçu a laço!…

Como eu me lembro dos meus dias puros!

Nada me esquece!… Esquecer quem há de?

—Cada pedra que eu palpo ou tronco ou folha

Fala-me ainda dessa doce idade.

E a casa?… as salas, estes móveis, tudo,

O crucifixo pendurado ao muro…

O quarto do oratório, a sala grande

Onde eu temia penetrar no escuro!…

É da melhor, da mais alta, da mais profunda poesia. Como poeta do
amor, não é demais dizer que Casimiro de Abreu deu à
nossa língua, tão rica sob este aspecto, algum dos seus mais
comovidos senão mais formosos cantos. A uns destes os prejudicou, no
conceito da geração imediata ao poeta, a mesma popularidade
que os vulgarizou nos recitativos de salão, como foram de moda. Não
obsta que poemas como Amor e medo e Minha alma é triste sejam, sem
encarecimento, apesar da sua toada que nos é hoje menos agradável,
dos mais belos da nossa poesia.

Com incorreções de forma poética, a que somos depois
do parnasianismo demasiadamente sensíveis, têm eles em alto grau,
sentimento, idealização, emoção da melhor espécie
poética, e até, em mais de um passo, peregrinas excelências
de expressão. Há em Amor e medo notadamente um ardor de volúpia
ao mesmo tempo contida e exuberante, que lhe realça sobremodo a beleza,
e formosuras de sensação e de expressão que não
teriam o direito de desdenhar os mais reputados sequazes de Baudelaire. É
forte a sua tradução das tentações amorosas da
carne, como o diriam estes poetas, e, mais, de todo nova na nossa poesia,
senão também na da língua portuguesa:

Ai! Se eu te visse no calor da sesta,

A mão tremente no calor das tuas,

Amarrotado o teu vestido branco,

Solto o cabelo nas espáduas nuas…

Ai! Se eu te visse, Madalena pura,

Sobre o veludo reclinada a meio,

Olhos cerrados na volúpia doce,

Os braços frouxos, palpitante o seio!…

Ai! Se eu te visse em languidez sublime,

Na face as rosas virginais do pejo,

Trêmula a fala, a protestar baixinho,

Vermelha a boca soluçando um beijo!…

Desprezados, como necessariamente sucederá dentro em pouco, os preconceitos
que a vulgarização de tais versos contra eles criou, eles nos
aparecerão em toda a sua novidade e beleza de sensação
e expressão. Ver-se-a o seu realismo de idéias e estilo, nem
sequer suspeitado então como fórmula ou processo de escola,
do mesmo passo que se lhes sentirá o ardor e a intensidade que desafia
quanto a paixão à cola daquele poeta francês e dos seus
discípulos pôs nos versos dos nossos ulteriores poetas. Em que
lhes pese ao estúpido desdém pelo verdadeiro e notável
poeta que é Casimiro de Abreu, facilmente se verifica que eles lhe
sofreram a influência e freqüentemente o imitaram, raro o igualando
e nunca o excedendo na realidade da emoção nem no sublime da
expressão. Pela profundeza e sinceridade do seu sentimento poético,
tem ele mais razão de viver do que estes; já vive de fato mais
do que eles viverão, e o futuro, não duvido vaticinar, o desforrará
cabalmente dos seus tolos desdéns.

Tristeza ingênita, melancolia amorosa, acerba nostalgia, angustioso
sofrimento de uma alma rica de ingênuas e ardentes aspirações
de glória e de amor, tudo deu a este delicioso poeta a feição
dolorosa que ainda no meio dos poetas dolentes da sua geração
o distingue. Tinha também, como os outros, o pressentimento da morte
prematura. Mais de um poema seu o declara ou o revê.

A um amigo recém-morto dizia:

Dorme tranqüilo à sombra do cipreste…

—Não tarda a minha vez;

Com efeito, dois anos depois, finava-se com vinte e três de idade,
na sua fazenda ou sítio de Indaiaçu, no torrão natal,
às cinco horas e vinte e cinco minutos da tarde do dia 18 de outubro
de 1860.128

V — POETAS MENORES

Tais são estes poetas, os principais da geração que,
estreando pelos anos de 1850, viveu literariamente até o fim da seguinte
década e ainda além. Afora estes, poetaram, por esse tempo,
com ou sem livros publicados, Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889),
José Bonifácio de Andrada e Silva (1827-1886), Aureliano José
Lessa (1828-1861), Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1827-1884),
José Alexandre Teixeira de Melo (1833-1907), José Joaquim Cândido
de Macedo Júnior (1842-1860) e outros de menor merecimento e reputação.

Francisco Otaviano e José Bonifácio, chamado o Moço,
para distingui-lo do seu tio do mesmo nome, o patriarca da Independência,
foram dous brilhantes poetas amadores, dous insignes diletantes da poesia,
e também, dous brilhantes espíritos, porventura dous talentos
de primeira ordem. Mas a sua vocação, se a vocação
não é “senão a incapacidade de falharmos às
inclinações naturais do nosso espírito”, não
eram as letras ou ao menos as letras praticadas com a assiduidade de uma profissão.
Com encantador e não vulgar estro poético, ambos, apenas esporádica
e ocasionalmente, poetaram. Esse dom, o exerceram antes como uma prenda de
sociedade, mais uma distinção a juntar às muitas que
possuíam como políticos, jornalistas, parlamentares, juristas,
do que por necessidade do seu temperamento literário. José Bonifácio,
cuja obra poética esparsa contém algumas obras-primas (O redivivo,
Um pé, Primus inter pares, A margem da corrente), publicou apenas,
ainda em antes que começasse esta geração, com a qual
principalmente cantou, um pequeno folheto de versos Rosas e goivos, em 1848.129
Francisco Otaviano versificou copiosa e elegantemente em jornais, revistas
e álbuns mulheris, fez primorosas traduções de Byron,
deixou admiráveis versos proverbiais, mas ao cabo nenhum volume por
onde possamos cabalmente apreciá-lo. Nem um, nem outro tiveram na nossa
poesia a importância a que os seus talentos lhes dariam direito incontestável
e até os obrigavam; ambos, porém, exerceram nela, ao menos no
círculo dos poetas que puderam conhecê-los e a sua dispersa produção,
inegável influência. São antes dous grandes nomes literários,
algo lendários, que dous escritos notáveis.

Está exatamente nas mesmas condições Pedro Luís
Pereira de Souza (1839-1884). Também ele foi um poeta brilhante, o
precursor da inspiração política e social e do que depois
se chamou condoreirismo, na nossa poesia, político de relevo, jornalista,
conversador agradabilíssimo, segundo quantos o trataram, e homem do
mundo de rara sedução. Deixou meia dúzia de poemas, os
melhores no tom épico (Os voluntários da morte, Terribilis Dea)
que todo o Brasil conheceu, recitou e admirou. Mas a sua obra dispersa de
mero diletante, se lhe criou um nome meio lendário como o de José
Bonifácio e Francisco Otaviano, não basta a assegurar-lhe um
posto de primeira ordem na nossa poesia.

Sem lhes ter a fama, valem acaso mais para a história da nossa literatura
Teixeira de Melo, Aureliano Lessa e principalmente Bernardo Guimarães.
Teixeira de Melo, cujas Sombras e sonhos precederam as Primaveras de Casimiro
de Abreu, e que era um quase conterrâneo do poeta da alma triste, era
também, como ele, de seu natural melancólico. A sua tristeza
nativa e o seu estro sofreram a influência de Gonçalves Dias,
mas por sua vez o seu lirismo não deixou de influir no de Casimiro
de Abreu, em que se encontram imagens e expressões de poemas das Sombras
e sonhos, e que epigrafou com versos destes poemas as suas Primaveras. Mas
Teixeira de Melo, com desenganados queixumes métricos da vida, cedo
abandonou a poesia e burocraticamente, fazendo bibliografia e erudição,
viveu septuagenário. Como poeta, além de ser um legítimo
e estimável representante da poética da sua geração,
foi um dos mais corretos versificadores dela, devendo-lhe a arte do verso
aqui as melhorias de um alexandrino mais perfeito do que antes dele se fizera
e de nas estrofes de quatro versos rimá-los sempre alternadamente,
o que antes só excepcionalmente se fazia.

Aureliano Lessa, ligeiramente mais objetivo que Álvares de Azevedo,
e de um sentimento menos profundo que qualquer dos poetas desta geração,
nem assim lhe escapa aos estigmas característicos. Ao contrário,
pertence-lhe por todas as feições da sua poesia, sem que tenha
nenhuma que particularmente o distinga. Destes poetas secundários desta
progênie, o maior, pela sua mais distinta fisionomia, pela cópia
da sua produção e ainda pelos quilates destas, é, sem
dúvida, Bernardo Guimarães. Este, aliás, pertence-lhe
antes cronológica que literariamente, antes por ser do mesmo tempo,
ter vivido a vida de alguns deles, poetado conjuntamente com eles, do que
por paridade de sentimento ou estro com eles. Não há nos seus
poemas — e a sua produção foi uma das mais copiosas do
tempo — nem o excessivo subjetivismo, nem o mórbido sentimentalismo,
nem a tristeza e dolência dos seus companheiros de geração,
e menos ainda a sua ardente voluptuosidade. É mesmo o único
deles que não é triste ou que sabe disfarçar a tristeza
e mágoa, que às vezes declara galhofando dos seus mesmos pesares
ou expondo-os mais a sorrir que a chorar, como preferiam fazer aqueles. É
em todo o nosso romantismo o único poeta alegre, o que versejou de
cousas alegres e com inspiração e intenção jovial.
E versejou geralmente bem, se não com mais arte, com arte diferente
da dos seus companheiros e mais variada inspiração. É
ele quem reintegra o descritivo na poesia desta geração, que
dela o tinha quase abolido. O seu temperamento poético, principalmente
considerado em relação à época em que poetou (1858-1864),
é mais clássico ou antes mais arcádico, que romântico;
não há ao menos nas suas manifestações as exuberâncias
e menos os excessos de emoção do Romantismo. Mas também
não há o melhor da sua sensibilidade. Bernardo Guimarães
teve em seu tempo, e não sei se continuará a ter, mais nome
como romancista que como poeta. Não me parece de todo acertado este
modo de ver.


Capítulo XIV

OS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS

I — PROSADORES

ANACRÔNICO E AMANEIRADO procrastinava-se o Romantismo, conservando
os seus traços distintivos; a intenção nacionalista,
realizada no poema ou no romance, já indianista, já do pitoresco
patrício da paisagem ou da vida, e a sentimentalidade idealista. Afora
os românticos da primeira hora, que se sobreviviam a si mesmos —
e eram quase todos porque esta geração, ao invés da segunda,
viveu velha, — havia os que, aparecendo quando já se acabava
o alento literário que a criara, ainda lhe sofreram a influência
ou cediam também ao prestígio daqueles fundadores. Os mesmos
que se desviam de Alencar, a principal figura literária do tempo, o
reconhecido chefe da literatura nacional, até os que o negam (aliás
poucos) não contestam ou sequer duvidam a legitimidade do propósito
nacionalista. É que este revia o íntimo sentimento a que, com
a sua ordinária propriedade de expressão, Machado de Assis chamaria
de “instinto de nacionalidade”. Presume esta História haver
cabalmente verificado o desabrochar desse instinto desde ainda mal iniciada
a formação do nosso povo, bem como o seu constante desenvolvimento
a par com o deste. A espontaneidade do fenômeno não prova, entretanto,
que não assentasse em um errado conceito do nacionalismo na literatura.
Desde 1873, no artigo de que acabo de citar uma feliz expressão, Machado
de Assis oferecia a primeira contrariedade, que me conste, à opinião
ao seu parecer errônea, que só nas obras consoantes aquele propósito
reconhecia espírito nacional e conceituosamente escrevia “não
há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,
deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região;
mas não estabelecemos doutrinas tão absolutas que a empobreçam.
O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento
íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando
trata de assuntos remotos no tempo e no espaço”.130 Este programa
devia ele cumpri-lo com peregrina distinção, despreocupadamente.

Iniciava-se, porém, a reação contrária ao Romantismo,
sob o seu aspecto de nacionalismo exclusivista. Após largos anos de
paz, de tranqüilidade interna, de remansosa vida pacata sob um regime
liberal e bonachão, apenas abalada por mesquinhas brigas partidárias
que não logravam perturbá-la, rebentou a guerra do Paraguai,
que durante os últimos cinco anos do decênio de 60 devia alvoroçar
o país. Pela primeira vez depois da Independência (pois a guerra
do Prata de 1851 mal durou um ano e não chegou a interessar a nação)
sentiu o povo brasileiro praticamente a responsabilidade que aos seus membros
impõem estas coletividades chamadas nações. Ele, que
até então vivia segregado nas suas províncias, ignorando-se
mutuamente, encontra-se agora fora das estreitas preocupações
bairristas do campanário, num campo propício para estreitar
a confraternidade de um povo, o campo de batalha. De província a província
trocam-se idéias e sentimentos; prolongam-se após a guerra as
relações de acampamento. Houve enfim uma vasta comunicação
interprovincial do Norte para o Sul, um intercâmbio nacional de emoções,
cujos efeitos se fariam forçosamente sentir na mentalidade nacional.
A mocidade das escolas, cujos catedráticos se faziam soldados e marchavam
para a guerra, alvoroçou-se com o entusiasmo próprio da idade.
Os que não deixavam o livro pela espada, bombardeavam o inimigo longínquo
com estrofes inflamadas e discursos tonitruantes, excitando o férvido
entusiasmo das massas. O amor, a morte, o desgosto da vida, os queixumes melancólicos,
remanescentes do Romantismo, cederam lugar a novos motivos de inspiração.
Por outro lado, acontecimentos exteriores que tinham aqui grande repercussão,
as lutas do liberalismo francês contra o Segundo Império napoleônico,
lutas em que a poesia e a literatura tomavam tão grande parte, a implantação
de uma monarquia européia na América, a revolução
republicana na Espanha e o fenômeno de um grande poeta, Victor Hugo,
contrapondo-se em toda a grandeza do seu gênio e da sua cólera
republicana ao Império e desafiando-o em face do mundo atônito,
comoviam também a mente nacional. Impressões de todos esses
sucessos há na poesia do tempo. Poetas e ainda prosadores eram por
eles solicitados em outras direções que o estreme subjetivismo
romântico. Debuxou-se então a reação anti-romântica.
Iniciava-se, porém, sem alvoroto, nem decisão como que a medo.
Ainda vencedora, não o suplantara de todo na radicada opinião
de que o assunto brasileiro primasse em a nossa literatura e até em
quaisquer lucubrações nossas. Salvo o que o cumprimento deste
preceito pudesse ter de excessivo, não era ele inteiramente desarrazoado.
A função faz o órgão. A aplicação
constante dos nossos sentimentos nacionais na idealização literária
ou noutro labor intelectual a assuntos brasileiros devia em rigor acabar por
criar e desenvolver em nós aquele instinto. A história da nossa
literatura prova, aliás, que assim sucedeu.

Já começada a reação, menos contra esse instinto
legítimo e necessário que contra o conceito abusivo da sua aplicação,
apareceu nas nossas letras um escritor que, sem embargo da sua procedência
francesa e ser de raça um puro europeu, o possui como poucos brasileiros
da nossa formação tradicional, o visconde de Taunay. Em 1872,
Machado de Assis, que viria a suceder a Alencar no principado das nossas letras,
estreava no romance com um livro a todos os respeitos novo aqui, Ressurreição.
No mesmo ano publicou Taunay a Inocência, formoso exemplar do “romance
brasileiro” segundo a fórmula aceita. Um ano antes estreara com
a Mocidade de Trajano. Apesar da antipatia posteriormente manifestada pelo
autor, na sua obra crítica, às novas correntes que começavam
a arrastar para fora do Romantismo a ficção francesa, figurino
sempre canhestramente copiado da nossa, sente-se-lhe todavia o influxo em
ambos os romances.

Alfredo d’Escragnolle Taunay, visconde de Taunay, nasceu no Rio de
Janeiro em 22 de fevereiro de 1843 e nesta cidade faleceu em 1899. Engenheiro
militar e oficial de exército, fez a campanha do Paraguai e exerceu
várias comissões técnicas. Professou também letras
e ciências naturais na Escola Militar e, como Alencar, foi homem político,
deputado geral, presidente de província e senador do Império.
Teve talentos e aptidões variadas, era pintor e músico, e possuía,
com boa educação liberal, prendas de homem do mundo. Foi um
dos escritores mais versáteis e fecundos do seu tempo, mesmo o foi
talvez com desleixada facilidade, acaso com menosprezo da sua situação
literária. Aludo a livros como o Encilhamento ou Como e porque me tornei
kneipista e que tais escritos seus. Esta falha, porém, revia a sua
esquisita bonomia e o ingênuo ardor de propagandista que nele houve
sempre e se manifestou nas suas campanhas de imprensa e de tribuna por questões
públicas tomadas calorosamente a peito. Não é ocioso
recordá-lo, pois mostra a feição prática do gênio
de Taunay, feição que não foi estranha à sua fórmula
literária.

À sua obra, considerada pela cópia e ainda pela qualidade,
faltou coesão e intensidade que lhe dessem mais solidez e distinção.
E como quer que seja dispersiva, feita com facilidade que roça pelo
banal e inconseqüente. Além da propriamente literária,
romance, crítica, teatro, compreende viagens e explorações
de engenheiro, relatórios técnicos, relações de
guerra, estudos etnográficos, escritos políticos e sociais,
questões públicas, biografias, história e peças
musicais. Dois livros destacam-se de toda ela, que lhe asseguraram em vida
nomeada de bons quilates e lhe dão um lugar na nossa literatura: a
narrativa, feita com grande talento literário, de um episódio
da guerra do Paraguai, a Retirada da laguna e o romance de costumes sertanejos
Inocência, já referido.

Taunay, a quem tive a ventura de conhecer de perto, não obstante a
sua dupla origem estrangeira, era um genuíno brasileiro de índole
e sentimento. Não lhe faltavam sequer sinais das nossas peculiaridades,
o que lhe completava a caracterização nacional. A sua literatura
de inspiração, sentimento e intenção brasileira
é a expressão sincera desta sua feição. O seu
europeísmo ainda muito próximo, apenas lhe transparece no ardor
com que, apesar de conservador de partido, se empenhou por idéias liberais
que a seu ver deviam atrair e facilitar a imigração européia,
da qual foi ardoroso propugnador. Sob o pseudônimo, logo descoberto,
de Sílvio Dinarte, estreou na literatura com o já citado romance
A mocidade de Trajano, em 1871. Quer neste, quer em Inocência, que se
lhe seguiu de perto, atenua-se a sentimentalidade excessiva e o romanesco
do romance em voga. Paisagens e costumes são descritos com mais senso
da realidade e mais sobriedade e exatidão de traços. E não
somente a sua representação interessa ao autor, senão
também aspectos políticos, sociais e morais, que ressaiam da
ação, das personagens ou dos usos. Não se libertara ainda
da preocupação doutrinal dos seus antecessores, tinha-a, porém,
com mais largueza espiritual e mais desenvoltura de expressão. Em A
Mocidade de Trajano havia manifestações de livre-pensamento
e sátira quer aos nossos costumes políticos, quer a práticas
devotas, desusadas na nossa ficção.

Tinha feitio diferente de tudo o que no gênero aqui se publicara, a
Inocência. Romance feito de impressões diretas de paisagens,
cenas, tipos e fatos gerais, apenas idealizados por uma recordação
que devia de ser saudosa, havia neste, com uma representação
esteticamente verdadeira, ao mesmo tempo singela e forte, do sertão
e da vida sertaneja no Brasil central, um sincero sentimento, uma simpatia
real, sem excesso de sensibilidade, do seu objeto. Não obstante desfalecimentos
de estilo, havia mais nele o mérito da novidade. Estavam em voga os
romances de Alencar, Macedo e Bernardo Guimarães. O primeiro era nimiamente
romanesco e idealista, feições que ao tempo as suas reais qualidades
de escritor não bastavam para atenuar. Macedo, mestre de que aliás
Taunay se confessava discípulo, sobre romanesco, de língua desleixada
e estilo frouxo, pode dizer-se que não tinha propriamente feitio literário.
Bernardo Guimarães, com qualidades artísticas inferiores, como
Macedo, era como Alencar, mas sem o seu talento, um romântico idealista
piorado pelo romanesco sentimental. Sem falar em Manoel de Almeida, cujo único
romance não teve repercussão, é Taunay quem na Inocência,
talvez sem propósito, levado apenas dos instintos práticos do
seu gênio e nativo realismo do seu temperamento, e ainda pelo que chamarei
o seu materialismo literário, escreve o primeiro romance realista,
no exato sentido do vocábulo, da vida brasileira num dos seus aspectos
mais curiosos, um romance ressumando a realidade, quase sem esforço
de imaginação, nem literatura, mas que a emoção
humana da tragédia rústica, de uma simplicidade clássica,
idealiza nobremente. Precedera-o de três anos o Casamento no arrabalde,
de Franklin Távora, de idêntica feição. Sobre não
ter a intensidade e o compendioso de Inocência, nem, portanto, a sua
emoção, publicado na província, passou despercebido menos
por uma conspiração de silêncio, como erradamente suporia
o autor, mas em virtude mesmo das necessárias condições
da nossa vida literária. Ao contrário, o romance de Taunay saía
acompanhado da calorosa recomendação considerável de
Francisco Otaviano, que lhe augurava longa vida e acertou no vaticínio.
Não havia em Inocência os arrebiques e enfeites com que ainda
os melhores dos nossos romances presumiam embelezar-nos a vida e costumes
e a si mesmos sublimarem-se. E com rara simplicidade de meios, língua
chã e até comum, estilo natural de quase nenhum lavor literário,
composição sóbria, desartificiosa, quase ingênua,
e, relativamente a então vigente, original e nova, saía uma
obra-prima.

Infelizmente se não repetiria jamais na obra do romancista. Os seus
seguintes romances terão quase todos o mérito, ainda extraordinário,
de melhor observação, de intenção de psicologia
e estudo e desenho de caracteres, de língua mais cuidada. Esta, porém,
por demasiado impessoal e dessangrada, nunca logrou ser um estilo. Depois
de Inocência, a sua obra mais viva, e digno par desta, é a Retirada
da Laguna, ou antes La Retraite de Lagune, pois foi escrita em francês.
O ser escrita nesta língua porventura contribuiu para lhe dar a sóbria
elegância e o intenso vigor descritivo que a distinguem na sua obra,
mas de alguma sorte a desterra da nossa literatura. Taunay aumentou o nosso
cabedal literário, enriquecendo do mesmo passo a nossa ficção,
com outros romances, Lágrimas do coração (1873), republicado
nos anos de 90 com o título menos romântico de Manuscrito de
uma mulher, Ouro sobre azul (1874), Histórias brasileiras (1878), Narrativas
militares (1878) e No declínio (1899). Dons de observação,
qualidades de narração e também de composição,
apesar da fraqueza e ineficiência da aplicação psicológica
e maior simplicidade de estilo, geralmente os sobrelevam aos romances de Macedo
ou Bernardo Guimarães e até, embora menos, aos de Alencar. Nos
últimos era já evidente o influxo do naturalismo na sua fase
extrema. Eram, porém, acaso mais realistas que naturalistas, porque
o realismo estava no fundo do engenho literário de Taunay, como o idealismo
no de Alencar.

Ensaiou igualmente Taunay o teatro (Amélia Smith) e a crítica
(Estudos críticos, 1881-1883), mas em nenhum destes gêneros deixou
obra considerável. O seu lugar na história da nossa literatura
são os seus romances somente que merecidamente lho conferem.

A precedência de Franklin Távora aos dois romancistas atrás
nomeados, Taunay e Machado de Assis, é apenas cronológica. Não
obstante se haver estreado no romance desde 1862, com os Índios de
Jaguaribe, só de fato começou o seu nome a sair da obscuridade
provinciana pelos anos de 70, primeiro com a publicação escandalosa
das Cartas a Cincinato, depois com os romances O cabeleira (1876), O matuto
(1878), Lourenço (1881).

Joaquim Franklin da Silveira Távora era do Ceará, nascido em
13 de janeiro de 1843. Passou a maior parte da sua vida no Norte, onde se
lhe formou o espírito e pelo qual tinha um apego bairrista. Os seus
últimos anos viveu-os no Rio de Janeiro, e aqui faleceu em 18 de agosto
de 1888. Acaso mais por espírito de insubordinação dos
escritores novéis contra os consagrados, que por justificadas razões,
foi dos que se insurgiram contra a hegemonia literária de Alencar.
Tem sido sempre aqui a literatura uma cousa à parte na vida nacional.
Feita principal se não exclusivamente por moços despreocupados
da vida prática, que sacrificavam a ingênuas ambições
de glória ou à vaidade de nomeada, nunca assegurou aos seus
cultores posições ou proveitos, como não constituiu jamais
profissão ou carreira. Nestas condições tal insurreição,
como outras quejandas, e tanta cousa da nossa vida literária, era apenas
uma macaqueação de idênticas rebeliões nos centros
literários europeus. Com violência que tanto pode haver sinceridade
de convicções como a congênita irritabilidade dos poetas,
e sob pseudônimo de Semprônio, atacou Franklin Távora a
José de Alencar, e aos seus livros, nomeadamente a Iracema e o Gaúcho,
em uma série de cartas primeiro publicadas num periódico do
Rio, depois reunidas em livro de nítida edição de Paris.131

Sob o disfarce de Cincinato eram endereçadas ao escritor português
José Feliciano de Castilho. Ainda banindo da literatura e da vida,
como devem ser, quaisquer estreitas prevenções nacionais, de
todo impertinentes na ordem intelectual, essa obra de Franklin Távora,
aliás apreciável como crítica e como estilo, era uma
má ação. Fossem quais fossem os defeitos da de Alencar,
não eram tais que o desclassificassem do posto que ocupava nas nossas
letras. Determinava-a demais uma verdadeira vocação literária,
como a inspiravam uma sincera e nobre ambição de promover a
literatura nacional. E em verdade o fazia com honrado labor e engenho no momento
incomparável. Ao mesmo empenho, aliás, se consagrara Franklin
Távora, encetando a sua atividade literária com livros da chamada
“literatura brasileira”, Os índios de Jaguaribe, Um casamento
no arrabalde. E o mesmo propósito teve o resto da sua vida. Nem ao
cabo a sua literatura diferia notavelmente da de Alencar, senão por
lhe ser inferior. Os índios de jaguaribe, O cabeleira, O matuto, Lourenço,
que são as suas obras típicas como indianismo ou regionalismo
pitoresco, não se diferenciam essencialmente dos romances de Alencar
da mesma inspiração, e menos ainda os excedem em merecimento.
São-lhes antes somenos como imaginação e estilo. E era
a um escritor estrangeiro que se fizera aqui o negador sistemático
ou o instigador da negação sistemática, do nosso engenho
e capacidade literária, que Franklin Távora tomava por parceiro
nesse jogo de descrédito do escritor que com tanta bizarria, e não
sem sucesso, se empenhava no fomento da literatura nacional. Mas na vida literária
não há maior satisfação nem melhor prêmio,
de que vermos seguir-nos os passos os mesmos que nos contestam e nos atacam.
Se Alencar fosse um homem de espírito, a investida de Franklin Távora,
acompanhada de seus “romances brasileiros”, devia intimamente rejubilá-lo.
Sem embargo de endereçadas ao irmão de Antônio de Castilho,
o serôdio árcade contra quem se tinha revoltado não havia
muito a mocidade literária portuguesa, as Cartas a Cincinato eram acaso
repercussão do famoso e ridículo motim literário do Bom
senso e bom gosto. Não tiveram, porém, o eco da célebre
carta deste título de Antero de Quental àquele, nem motivaram
senão as respostas malignas e ainda ferinas do seu equívoco
destinatário.

Com excelentes qualidades literárias, tinha Franklin Távora,
mais do que é lícito a um homem de espírito, preconceitos
provincianos, quizila à “Corte”, cujos literatos, aliás
na maioria provincianos, imaginava apostados em desconhecer e hostilizar os
escritores da província. Algum tempo, justamente naquele em que fazia
as suas primeiras armas literárias Franklin Távora, prevaleceu
este estado de espírito, que o revia mesquinho, em certo grupo de homens
de letras nortistas, indiscretamente revoltados contra a legítima e
natural preponderância mental do Rio de Janeiro. Como se, dada a nossa
formação histórica e cultural, e organização
política, não fosse absurdo o regionalismo espiritual que lhes
apetecia. Desta ridicularia ainda haverá algum representante anacrônico,
e nunca se emancipou Franklin Távora. Manifestou-o ainda no prefácio
da 2.ª edição, aqui publicada, de Um casamento no arrabalde.
Esta prevenção lhe teria gerado a desinteligente ojeriza a Alencar,
como um dos “sacerdotes sumos”, segundo o seu dizer, da literatura
dos que no Rio de Janeiro menosprezavam a da província. Do mesmo preconceito
lhe viria a infeliz idéia da repartição da literatura
brasileira em “literatura do Norte” e “literatura do Sul”,
conforme a região brasileira que lhe fornecia a inspiração
e o tema. Quão melhor alumiado não andou Alencar escolhendo
os seus sem preferência de regiões, para compor segundo o belíssimo
dizer de Machado de Assis “com as diferenças da vida, das zonas
e dos tempos a unidade nacional de sua obra”.

Mas a obra construtiva de Franklin Távora, os seus quatro ou seis
romances publicados de 1869 a 1881, excluídos os Índios de Jaguaribe,
tentativa malograda de indianismo da sua juventude inesperta, sobreleva de
muito este seu mal-avisado trabalho de demolição. Ele não
tem nem a imaginação nem o alinde do estilo literário
de Alencar, escreve todavia com mais apuro e observa com mais fidelidade.
A sua representação da natureza e da vida é mais exata,
se não mais expressiva. A sua língua mais simples, menos enfeitada,
atingindo mesmo às vezes, como no Casamento no arrabalde, uma singeleza
encantadora, livra-o da retórica sentimental que Alencar nem sempre
evitou. Este último romance é no seu gênero um dos melhores
da nossa literatura, um daqueles em que a vida burguesa provinciana, e não
só nas suas exterioridades, mas nos seus caracteres intrínsecos
e essenciais, se acha mais fiel e artisticamente reproduzida. Um casamento
no arrabalde, como a Inocência, de Taunay, é um romance de um
realista espontâneo, para quem o realismo não exclui por completo
a idealização artística, que é como o sopro divino
que lhe anima a feitura. Algo deste caráter realista se nos depara
em todos os romances de Távora, o que faz dele, como do seu contemporâneo
Taunay, um dos reatores contra a romântica aqui ainda então prevalecente,
um dos precursores, portanto, do naturalismo.

O teatro e a literatura dramática no Brasil não tiveram nunca
a importância, nem o mérito, do romance ou da poesia. Ficaram-lhes
sempre somenos em quantidade e em qualidade. A época de maior florescimento,
sob estas duas espécies, do nosso teatro e da nossa literatura dramática,
são as duas décadas de 1860 a 1880. Pertence-lhes quase todo
ou o melhor do teatro de Macedo, de Alencar, de Quintino Bocaiuva, de Agrário
de Meneses, de Pinheiro Guimarães e de outros numerosos autores de
teatro, cujos nomes, entretanto, cabem mais na história deste que na
da literatura em geral. Não só no Rio de Janeiro, mas nas capitais
das províncias principais, existiam e mantinham-se casas de espetáculos
de peças nacionais, portuguesas ou traduzidas, representadas por companhias
compostas quase por igual de atores brasileiros e portugueses fixados no Brasil,
e até aqui feitos, dos quais alguns nomes ainda vivem na tradição,
como Joaquim Augusto, Furtado Coelho, Florindo, Vicente de Oliveira, Eugênia
Câmara, Ismênia dos Santos, Manuela Luci, Xisto Baía, Corrêa
Vasques, e ainda outros. Mas, ou por deficiência dos nossos autores
dramáticos, ou por defeito do próprio meio de que se inspiravam,
faltou sempre ao nosso teatro capacidade de representação teatral
da nossa sociedade, que invariavelmente falsificava. E como também
não tiveram o talento de expressão mais alta da nossa vida que,
embora a desnaturando, atingisse a uma realidade humana geral, a nossa literatura
dramática consta antes de ótimas intenções que
de boas obras.

Nela trabalhou também Franklin Távora, de quem se conhecem
pelo menos três dramas: Um mistério de família (1861),
Três lágrimas (1870) e Antônio, representado aqui no Rio,
mas que parece se não chegou a imprimir. Os impressos corroboram o
conceito acima, não se distinguem nem como representação
da nossa vida, neles adulterada ao influxo da dramaturgia francesa, sempre
aqui dominante, mas aqui sempre estéril, nem como expressão
geral de sentimentos e atos humanos.

Deixou Franklin Távora também algumas excelentes páginas
de crítica, gênero que tratou com evidente disposição
e talento, mas que não cultivou bastante para destacar a figura nele.

II — POETAS

Pela época em que se estrearam estes romancistas, as principais feições
ou correntes da poesia brasileira, no que tinha esta de mais peculiar, eram
ainda, se não o indianismo, o brasileirismo dos primeiros românticos,
e o sentimentalismo doentio, de envolta com o ceticismo literário e
a desilusão e desalento, dos segundos. Esgotavam-se essas duas correntes
quando surgiram, com pouco intervalo, Machado de Assis (1839-1908), Tobias
Barreto (1839-1889), Fagundes Varela (1841-1875), Luís Guimarães
Júnior (1847-1898) e Castro Alves (1847-1871), que podemos considerar
os últimos românticos da nossa poesia, que já não
sejam anacrônicos.

Aliás nenhum traço comum saliente liga estes poetas. Quando
muito, o teriam Tobias Barreto e Castro Alves na feição oratória
do seu estro, a que se deu o nome de condoreirismo, porque os seus arroubos
poéticos presumiam semelhar-se ao surto do condor. Denominação
aliás, como tantas outras inventadas na nossa literatura, de pouca
propriedade. Naquele grupo não caberia senão aos dois poetas
nomeados ou a algum seu secundário imitador, indigno de menção
particular. Demais não foram nem Tobias, nem Castro Alves os inventores
desse falso gênero de poesia enfática e declamatória.
Antes deles, Pedro Luís publicara os seus poemas Nunes Machado, A sombra
de Tiradentes, Os voluntários da morte (1863), Terribilis Dea, Justamente
no diapasão que devia dar àqueles dois poetas o epíteto
extravagante de condoreiros. E na procura das últimas fontes do mesmo
veio, poderíamos acaso remontar ao Napoleão em Waterloo, de
Magalhães, a certos poemas de José Bonifácio, o Moço,
e a outras anteriores amostras da nossa facúndia poética. Está
esta no nosso temperamento, e o condoreirismo não era uma novidade
na nossa poesia, mas apenas o exagero, sob a influência do entusiasmo
patriótico do momento e da retórica hugoana, desse defeito do
nosso estro poético. O aparecimento simultâneo de Varela com
o seu Pavilhão auviverde, e de Vitoriano Palhares com o seu A D. Pedro
II, a propósito do conflito anglo-brasileiro de 1862, e de numerosos
poemas tão patrióticos como bombásticos de José
Bonifácio e Pedro Luís, coincidindo com os de Castro Alves e
Tobias Barreto, da mesma entoação, estão atestando que
não havia novidade essencial no chamado condoreirismo de 60 a 70.

O Romantismo byroniano, temperado por Álvares de Azevedo, de Musset
e Spronceda e de outros condimentos de idêntico sabor literário,
tinha certamente desviado da sua direção primeira, cristã,
patriótica e moralizante, o movimento literário com que aqui
se iniciara a nossa literatura nacional. Mas além da parcial impress&atatilde;o
que fez nos três principais poetas da mesma geração, mal
fizera escola com Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e menores poetas,
desvairados sobretudo com as extravagâncias da Noite na taverna. Nos
anos de 60, mesmo no atrasado Brasil, já não havia atmosfera
para ele. A voz do desespero, da ironia, do ceticismo daqueles poetas europeus
substituía-se como um clarim de guerra vibrante de cóleras,
mas rica de esperanças, ora flauta bucólica, ora lira amorosa,
tuba canora e belicosa ou doce avena da paz, mas em suma otimista, a voz de
Victor Hugo. Esta ouviram e seguiram mais ou menos de perto da geração
que entrou a cantar por esta época. Também os houve que escutaram
de preferência a melodia lamartiniana impregnada do idealismo cristão.
Mas não se sai imune de uma corrente literária para outra. Levam-se
sempre ressaibos daquela. Estes poetas apresentam um misto de romantismo e
das tendências estéticas que em nascendo para a vida literária
encontraram no seu ambiente. Tem em dose quase igual o desalento sentimental,
mesmo o ceticismo, apenas menos anunciado daquela geração e
os ideais práticos, as emoções sociais, a preocupação
humana, ainda política, com os instintos de propaganda da corrente
hugoana. E apenas alguma leve nota de indianismo ou brasileirismo nela transformada
num mais íntimo que ostensivo sentimento nacional. E como em Victor
Hugo, além da feição social e humanitária, o que
mais os impressiona são os aspectos verbais do seu estro, a sua altiloqüência
poderosa, caem no arremedo, geralmente infeliz, desse feitio da sua poética.
Daí derivaria a alcunha, que cumpre não tomar a sério,
que de hugoanos tiveram alguns.

A facúndia poética do grande vate francês, cujo prestígio
se aumentava do seu papel político, achava no meio escolar onde se
ia fazer este novo movimento literário, terreno propício. Às
predisposições oratórias ou verbosas da raça,
amiga da frase empolada e do vocábulo pomposo, juntava-se aquela venturosa
idade em que nem a reflexão nem o estudo apuraram ainda o gosto e o
discernimento. Em tal meio, as tiradas poéticas de Tobias Barreto e
Castro Alves, que hoje nos parecem extravagantes despropósitos, eram
achadas sublimes:

A lei sustenta o popular direito,

Nós sustentamos o direito em pé!

Um pedaço de gládio no infinito,

Um trapo de bandeira na amplidão.

Ver o mistério eriçado,

Rodeando os mausoléus,

Morrer… subindo agarrado

No escarpamento dos Céus.

Pernambuco anelante

Suspende na mão possante

O peso do Paraguai!132

Quejandos versos, estrofes, que digo?, poemas inteiros neste estilo alvoroçavam
aquela mocidade, cujo indiscreto entusiasmo não serviria senão
para mais perverter o estro desses poetas e desvairar o gosto público.

Dos chamados condoreiros apenas dois, os já nomeados Tobias Barreto
e Castro Alves, lograram distinguir-se por outras partes que essa falaz poesia,
entre os que, como eles, presumiam reproduzir aqui a Victor Hugo, quando não
faziam senão contrafazer-lhe os mais patentes defeitos.

Tobias Barreto de Menezes nasceu em Sergipe em 7 de junho de 1839, e a 20
do mesmo mês de junho de 1889 faleceu no Recife, em cuja Faculdade de
direito se formou e onde principalmente exerceu a sua atividade literária.
Não obstante o dispersivo, o incoerente e até, de algum modo,
o extravagante dessa atividade, que não lhe permitiu deixar em qualquer
direção em que se exerceu, mais que uma obra fragmentária
e incongruente, certo é ele uma das figuras singulares das nossas letras.
Tinha grande talento, memória acaso ainda mais grande, rara aptidão
para línguas como para música, e decidida vocação
para o estudo, ora servida, ora prejudicada, pelos seus estímulos desencontrados
de mestiço impulsivo e malcriado. Orador nativo, amava a pompa dos
grandes gestos e das grandes frases. Apenas a sua educação roceira
e rudimentar atenuava e amortecia esta sua predileção com a
vulgaridade, que não raro chegava ao chulismo da expressão,
em que o rústico transparecia sob o letrado. Fazendo filosofia, crítica,
sociologia e ainda poesia, freqüentemente se lhe revela este vício
de origem ou temperamento. É justamente o contrário do honnête
homme consoante La Rochefoucauld. A sua fama, um pouco factícia, a
deveu mais às suas brigas e polêmicas, por via de regra descompostas,
ou ao pregão temerário de discípulos, que propriamente
à sua obra, de fato muito pouco lida. Como filósofo que presumiu
ser ou pretenderam fazê-lo, como crítico, como sociólogo,
foi sobretudo um negador dos valores existentes da nossa intelectualidade,
um contemptor sistemático da cultura francesa e portuguesa e um pregoeiro
e vulgarizador da cultura alemã. Tinha ao menos a desculpa de que sabia
perfeitamente o alemão, — e puerilmente se desvanecia de o haver
aprendido consigo mesmo, — o que não aconteceu talvez a nenhum
outro dos seus discípulos, presunçosos germanistas. Como jurista,
nada mais fez que recomendar, com o descomedimento que é um dos traços
do seu temperamento literário, as novas idéias jurídicas
alemãs, contrapondo-as apaixonadamente às idéias clássicas
aqui vigentes.

Se o pensador e o jurista em Tobias Barreto iam à cultura germânica,
tratada embora por ele mais lírica que objetivamente, o seu temperamento
estético, em música e em poesia, revê demais o mestiço
luso-africano. Como poeta é simultaneamente um sentimental, um orador
sem algo da profunda ingenuidade da poesia alemã. Em música,
não obstante a sua, ao que parece, grande ciência desta arte,
confessa ele próprio que não compreendia senão a italiana.
Não é incontestável que fosse o introdutor do hugoísmo
na nossa poesia. Tal invento, aliás, não bastaria para afamá-lo.
De parte a sua inspiração política, social, objetiva
em suma, a poesia de Hugo influiu aqui, ainda nos seus melhores discípulos,
muito mais pelos seus aspectos extreriores e pelo defeito da sua feição
oratória, que pelo profundo lirismo íntimo e alto sentimento
poético que acaso a sobreleva entre toda a poesia do século.

Muito menor foi o renome e a influência de Tobias Barreto como poeta
do que como pensador. Eclipsou-lhos Castro Alves, seu feliz êmulo no
condoreirismo e seu triunfante rival em toda a poesia. O lirismo de Tobias
Barreto, no que tem de melhor, é em suma da mesma espécie do
comum lirismo brasileiro, amoroso ou antes namorado, sensual, dolente, abundante
em voluptuosidades ardentes e queixumes melancólicos. Se alguma cousa
o distingue é, de um lado, o tom oratório, ainda épico,
em que oscila entre as extravagância dos Voluntários pernambucanos
e quejandos poemas e os belos rasgos do Gênio da humanidade; de outro,
a nota popular simples, vulgar, mesmo trivial, que às vezes lhe dá
a cantiga um sainete particular e, ocasionalmente, encantador. Mas dessa nota
abusa, bem como barateia e vulgariza o estro em glosar notas, à moda
dos poetas seiscentistas e arcádicos, e em celebrar com inaudita facilidade
de admiração e trivialidade de emoção a quanto
cabotino ou cabotina acertava de passar pelo Recife. Quer como poeta, quer
como prosador, uma das maiores falhas de Tobias Barreto foi a de gosto. A
atividade poética de Tobias Barreto exerceu-se aliás, principalmente
nos primeiros anos da sua vida literária (1862-1871), quando ainda
estudante, o que lhe explica e desculpa as deficiências e senões.
Que, apesar do seu incontestável estro, não era propriamente
uma vocação de poeta, prova-o o haver quase abandonado a poesia
pela filosofia, o direito, a crítica e outros estudos.

É a Antônio de Castro Alves que por consenso geral pertence
a primazia entre os poetas desta geração. Nasceu ele na Bahia
a 14 de março de 1847, e ali morreu em 6 de junho de 1871. Da sua terra
natal, ainda não completos os estudos de preparatórios, passou-se
a Pernambuco para os acabar, e estudar Direito. Foi lá que realmente
estreou em 1862. Seis anos depois deixou Pernambuco por S. Paulo, passando
pelo Rio de Janeiro, onde lhe serviram de introdutores José de Alencar
e Machado de Assis. Trazia na sua bagagem literária, com vários
poemas soltos avulsamente publicados, o drama Gonzaga ou a Conjuração
Mineira, já representado na Bahia. Em S. Paulo, ao contato de uma juventude
entusiasta de poesia e eloqüência, ao estímulo de festas
repetidas que lhe depararam ensejo de dar provas de ambas, acabou de se lhe
desabrochar o engenho poético. No fim de 1869, dali recolheu enfermo
à terra natal, onde pouco depois faleceu, tendo antes dado a lume os
seus versos reunidos, sob o título de Espumas flutuantes (1870). Poucos
livros brasileiros, e menos de versos, têm sido tão lidos.

Tem-se dito que os latinos não temos poesia, senão eloqüência.
Não discuto o asserto. Nós brasileiros, que apenas seremos por
um terço latinos, sei que somos nimiamente sensíveis à
retórica poética. Não nos impede isso aliás de
comovermo-nos também, embora superficialmente talvez, ao sentimento
da poesia quando ela canta as fáceis paixões sensuais do nosso
ardor amoroso de mestiços ou chora os nossos fáceis desgostos
de gente mole. São exemplos os casos de Gonçalves Dias, poeta
do amor, e dos realmente deliciosos cantores da segunda geração
romântica, e de Fagundes Varela, ainda hoje os poetas mais vivos na
nossa memória e no nosso coração. A ingenuidade, porém,
a virtude cardial dos maiores poetas anglo-germânicos, essa sim, é
quase de todo estranha à nossa poesia, que assim carece de um dos mais
sedutores elementos da arte, quando, após os últimos românticos,
os nossos poetas se fizeram refinados e se puseram a apurar com a forma o
sentimento à moda dos parnasianos franceses, deixaram de fato de comover
o público, ou só continuaram a impressioná-lo pelo aspecto
externo dos seus poemas perfeitos, pela sonoridade constante dos seus versos.
Porque em suma o que preferimos é a forma, mormente a forma eloqüente,
oratória, a ênfase, ainda o “palavrão”, as imagens
vistosas, aquelas sobre todas, que por seu exagero, sua desconformidade, sua
materialidade, mais impressionam o nosso espírito, de nenhum modo ático.
É este no fundo o motivo do nosso antigo afeto ao épico e da
nossa moderna predileção pelos poetas sobretudo eloqüentes
e brilhantes, como os condoreiros, Pedro Luís, José Bonifácio
e o Sr. Bilac. É verdade que nenhum destes vale apenas por qualidades
de brilho e facúndia poética. Essas tinha-as em alto grau, e
da boa espécie, Castro Alves, mas tinha outras além delas.

Passada a sentimentalidade sincera, mas pouco variada, e que sob o aspecto
da expressão acabara por se tornar monótona, das gerações
precedentes, a inspiração de Castro Alves apareceu como uma
novidade. Era, pois, bem-vindo o jovem poeta baiano, e não lhe custou
a assumir no breve tempo que viveu e poetou o principado da poesia. É
possível que Tobias Barreto o precedesse de dois ou três anos
no arremedo de Hugo e na facúndia poética alcunhada de condoreirismo.
Esta precedência meramente cronológica, não seguida de
influência apreciável, por forma alguma prejudica o fato incontestável
da preeminência poética de Castro Alves neste momento. Além
de maior talento poético, de mais rica inspiração, de
estro mais poderoso e da expressão ao cabo mais formosa e mais tocante,
concorreram para o sobrelevar ao poeta sergipano a sua saída de Pernambuco
e vinda ao Rio e S. Paulo, e que lhe dilatou a fama além do estreito
círculo pernambucano, no qual se confinou a de Tobias Barreto, e, mais
ainda, a publicação em 1870 dos seus versos, ao passo que os
do seu rival só vieram à luz onze anos depois. E em tanto que
as Espumas flutuantes, de Castro Alves, têm hoje oito ou dez edições,
afora numerosas publicações avulsas de alguns dos seus poemas,
os Dias e noites de Tobias Barreto não alcançaram mais de duas.
Este fato marca suficientemente o grau de estima em que os dois poetas são
tidos.

Havia em Castro Alves, como em Álvares de Azevedo, que ele grandemente
admirava e imitou, o fogo sagrado, alguma cousa que à nossa observação
superficial e pendor para o exagero de juízos, parecia gênio,
um grande talento verbal, uma sincera eloqüência comunicativa,
um simpático entusiasmo juvenil. Tudo isto encobria as imperfeições
evidentes da sua obra, e disfarçava-lhe as incorreições
de pensamento e expressão. Não se viu então que à
farragem daquela verbosidade de escola sobrelevava de muito a feição
por onde se ele ligava ao nosso lirismo e o continuava dando-lhe — e
este é o seu mérito e importância — com um verbo
mais vivo, mais brilhante, mais sonoro, uma vida nova, formas mais variadas,
cores mais rutilantes, sentimentos menos comuns, maior fundo de idéias,
maior riqueza de sensações. Não é que naquele
estilo pomposo não tenha Castro Alves dous ou três poemas verdadeiramente
belos. Há, por exemplo, em Vozes d’África, e ainda no
Navio negreiro, mais que a ênfase ou a retórica da escola, eloqüência
dos melhores quilates, profundo sentimento poético, emoção
sincera e, sobretudo no primeiro, uma formosa idealização artística
da situação do continente maldito e das reivindicações
que o nosso ideal humano lhe atribui. E mais uma então ainda não
vulgar perfeição de forma. Não a perfeição
métrica simplesmente, porém, mérito mais alto e mais
raro, a correlação da palavra com o pensamento, a sobriedade
da expressão que se não desvia e derrama do seu curso, e por
vezes uma concisão forte que realça singularmente toda a composição,
além de imagens novas, verdadeiras, belas de fato, e uma representação
que em certas estrofes atinge do perfeito senão ao sublime. São
disso exemplo esses versos que têm o vigor de uma grande pintura:

Lá no solo onde o cardo apenas medra,

Boceja a esfinge colossal de pedra

Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas

As cegonhas espiam debruçadas,

O horizonte sem fim

Onde branqueja a caravana errante

E o camelo monótono, arquejante,

Que desce de Efraim…

Com Castro Alves pode dizer-se que se alarga a nossa inspiração
poética, objetiva-se o nosso estro e os poetas entram a perceber que
o mundo visível existe. Poeta nacional, se não mais nacionalista,
poeta social, humano e humanitário, o seu rico estro livrou-o de perder-se
num objetivismo que, não temperado de lirismo, é a mesma negação
da poesia. As cousas sociais e humanas as viu e entendeu e as cantou como
poeta, às vezes com prevalência da eloqüência sobre
o sentimento, mas sempre com sentida emoção de poeta. A sua
influência foi enorme, senão sempre estimável. Atuou vantajosamente
em alguns dos seus melhores sucessores, o que desculpa a calamidade dos imitadores
medíocres.

Foi contemporâneo destes poetas em Pernambuco, quiçá
os emulou, Luís Nicolau Fagundes Varela, fluminense do Rio Claro, onde
nasceu em 17 de agosto de 1841. Na sua mesma província, em Niterói,
faleceu em 18 de fevereiro de 1875. Poetou entre os anos de 60 e 75. Cronológica
e literariamente sucede aos primeiros poetas da segunda geração
romântica, que admirou e imitou. Além da deles, sofreu visível
e confessadamente como aliás aconteceu a todos os poetas posteriores
a Gonçalves Dias, a influência do poeta maranhense. Estes diversos
influxos foram decisivos na formação do estro e estilo poético
de Varela. Foi menor o de Tobias Barreto e Castro Alves, não obstante
ter Varela assistido em Pernambuco no tempo em que os dous emulavam ali pela
supremacia poética. Varela era de essência um puro sentimental,
e isso ficou apesar das suas medíocres tentativas de poesia patriótica.
Mas a sua originalidade, se a tinha, ressentiu-se demasiado de todas essas
influências. Lido após aqueles poetas, deixa-nos a impressão
do já lido. No tom propriamente lírico dos seus poemas, nada
se depara de novo, nem no fundo nem na forma. E como ambos não têm
nele quaisquer virtudes notáveis ou sinais particulares de distinção,
e haja em seus versos demasiadas reminiscências daqueles poetas, e repetições
de seus próprios pensamentos e dizeres, à impressão de
falta de originalidade junta-se a da banalidade. É que poeta espontâneo,
de uma inspiração quase popular, é também poeta
muito descuidado do seu estro e da sua arte, todo entregue à pura inspiração,
que as reminiscências e o prestígio daqueles poetas queridos
freqüentemente comprometem. Havia, entretanto, nele um grande fundo de
poesia, isto é, de sentimento poético. Se não tivera
cedido com demasiada negligência do seu próprio engenho às
influências que banalizaram parte considerável da sua obra, outro
poderia ter sido o valor desta. Juvenília é um dos mais admiráveis
trechos do nosso lirismo, como o é também o Cântico do
calvário, uma das mais eloqüentes, quero dizer uma das mais comoventes,
uma das mais belas entre as elegias da nossa língua. Mas enfim a sinceridade
que parece haver no seu sentimento, a simplicidade às vezes deliciosa
do seu cantar, a melancólica voluptuosidade e o íntimo brasileirismo
daquele sentimento, com a mesma ingenuidade da sua poética seduzem-nos
irresistivelmente e justificam a estima que, apesar das restrições
feitas, ele merece e teve dos seus contemporâneos. Dos poetas do seu
tempo é o que mais tem a inspiração nacionalista então
em declínio, talvez o único de inspiração americana,
ainda indianista. Foi parte principal nesta a sua devoção por
Gonçalves Dias, a quem evoca no Evangelho das selvas, como o “mestre
da harmonia”. Este poema seria a derradeira manifestação
do indianismo. A de Machado de Assis tem feições próprias
que a separam do indianismo tradicional. Com belíssimos versos brancos,
há ainda neste poema de Varela formosos trechos, mas, em suma, revela
o cansaço da escola e o seu esgotamento, se não a mesma insuficiência
do poeta para o gênero. Os seus poemas patrióticos, inspirados
de um momento crítico da vida nacional, e que dele e dos sentimentos
que agitavam o país tiravam interesse, foram por isso mesmo parte grande
na fama que em vida adquiriu Varela, acaso acima do seu valor real. Passado
o motivo de sua inspiração, nos parecem agora apenas declamatórios,
não tendo guardado nada que esteticamente nos comova. O que há
de bom, às vezes mesmo de excelente, em Varela, é o seu lirismo
sentimental, as suas manifestações de dor de pai ou de amante,
os seus lamentos de poeta infeliz, ou que, por amor do romantismo, se fez
infeliz, quando, o que desgraçadamente acontece com demasiada freqüência,
não lhe desmerecem o canto imitações ou reminiscências
de outros poetas.

Machado de Assis e Luís Guimarães Júnior, cronologicamente
desta geração, estrearam com ela. Machado de Assis, porém,
mesmo como poeta, tem um lugar à parte e merece capítulo especial
da história da nossa literatura. Luís Guimarães Júnior,
a despeito da cronologia, pertence antes à geração parnasiana
que a esta. Foi como parnasiano que ele teve na poesia brasileira um lugar,
se não distinto, notável, que os seus Corimbos (Pernambuco,
1869), pelos quais pertence aos últimos românticos, não
bastariam para dar-lhe.


Capítulo XV

O MODERNISMO

O MOVIMENTO DE IDÉIAS que antes de acabada a primeira metade do século
XIX se começara a operar na Europa com o positivismo comtista, o transformismo
darwinista, o evolucionismo spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan
e quejandas correntes de pensamento, que, influindo na literatura, deviam
pôr termo ao domínio exclusivo do Romantismo, só se entrou
a sentir no Brasil, pelo menos, vinte anos depois de verificada a sua influência
ali. Sucessos de ordem política e social, e ainda de ordem geral, determinaram-lhe
ou facilitaram-lhe a manifestação aqui. Foram, entre outros,
ou os principais: a guerra do Paraguai, acordando o sentimento nacional, meio
adormecido desde o fim das agitações revolucionárias
conseqüentes à Independência, e das nossas lutas o Prata;
a questão do elemento servil, comovendo toda a nação,
e lhe despertando os brios contra a aviltante instituição consuetudinária;
a impropriamente chamada questão religiosa, resultante de conflito
entre as pretensões de autonomia do catolicismo oficial e as exigências
do tradicional regalismo do Estado, a qual alvoroçou o espírito
liberal contra as veleidades do ultramontanismo e abriu a discussão
da crença avoenga, provocando emancipações de consciências
e abalos da fé costumeira; e, finalmente, a guerra franco-alemã
com as suas conseqüências, despertando a nossa atenção
para uma outra civilização e cultura que a francesa, estimulando
novas curiosidades intelectuais. Certos efeitos inesperados da guerra do Paraguai,
como o surdo conflito que, apenas acabada, surgiu entre a tropa demasiado
presumida do seu papel e importância e os profundos instintos civilistas
da monarquia, não foram sem efeito neste momento da mentalidade nacional.
Também a Revolução Espanhola de 1868 e conseqüente
advento da República em Espanha, a queda do segundo império
napoleônico e imediata proclamação da república
em França, em 1870, fizeram ressurgir aqui com maior vigor do que nunca
a idéia republicana, que desde justamente este ano de 70 se consubstanciara
num partido com órgão na imprensa da capital do império.
Esta propaganda republicana teve um pronunciado caráter intelectual
e interessou grandemente os intelectuais, pode dizer-se que toda a sua parte
moça, ao menos. Outro caráter da agitação republicana
foi o seu livre-pensamento, se não o seu anticatolicismo, por oposição
à monarquia, oficialmente católica.

Atuando simultaneamente sobre o nosso entendimento e a nossa consciência,
pela comoção causada nos espíritos aptos para lhes sofrer
o abalo, estes diferentes sucessos produziram um salutar alvoroço,
do qual evidentemente se ressentiu o nosso pensamento e a nossa expressão
literária. Às idéias, nem sempre coerentes, às
vezes mesmo desencontradas daquele movimento, fautoras também nos acontecimentos
sociais e políticos apontados, chamamos aqui de modernas; expressamente
de “pensamento moderno”. A novidade que tinham, ou que lhe enxergávamos,
foi principalíssima parte no alvoroço com que as abraçávamos.
Na ordem mental e, particularmente literária, os seus efeitos se fizeram
sentir numa maior liberdade espiritual e num mais vivo espírito crítico.

Foi um dos seus principais agentes, mormente no norte do país, onde
então a vida intelectual, com o seu centro em Pernambuco, tinha certa
atividade, Tobias Barreto, já atrás estudado como poeta. Eis
como o porventura mais inteligente dos seus alunos, o Sr. Graça Aranha,
no estilo com que a nossa gente se escusa a clarificar as próprias
idéias e se embriaga de palavras, lhe diz o feito insigne: “Em
1882, Tobias Barreto, que os seus condiscípulos não compreenderam
e de cuja intensa reputação ainda se espantam e sorriem, abalava
como um ciclone a sonolenta Academia do Recife. Ele invade a sociedade espiritual
do seu tempo como um verdadeiro homem da sua raça. E o segredo da sua
força está na absoluta e constante fidelidade a esse temperamento,
em cuja formidável composição entram doses gigantescas
de calor, de luz e de todas aquelas ondas de vida, que o sol transfunde regiamente
ao sangue mestiço… Tinha a exuberância, a seiva, a negligência
que o fazia estranho a todo o cálculo, mesmo o da sua reputação
de além-túmulo, o prodigioso dom de fantasiar, o fabuliren dos
criadores, e mais a impaciência e a temível explosão da
revolta que permanecerá como o traço vivaz do seu caráter.
Não houve vaso que o amoldasse; não conheceu senão os
limites inabordáveis da liberdade e os de extrema irresponsabilidade.
Pôde como um sertanejo viver com o povo, foi descuidado, miserável
e infeliz. Cresceu músico e poeta. E mais tarde, quando lhe chegar
a cultura, ela virá na barca fantástica da poesia. E foi pelo
impulso dessa volátil essência do seu temperamento, que Tobias
Barreto passou da arte para a filosofia. O pensador nele é uma modelação
do vate. Transportará para a metafísica, para as ciências
biológicas, para o direito, a magia da adivinhação, o
improviso milagroso, a necessidade de idealizar e de imaginar, que é
a poesia. Quase toda a sua ciência, quando não vem da legislação
ou da língua, é feita principalmente da intuição,
e os seus vastos descortinamentos, os clarões que abre, a vida que
dá às idéias apenas entrevistas no prisma da sua visão,
é mais a criação do poeta que a lógica do sábio.
E nisto foi um homem do seu tempo e da nossa raça. É preciso
que o sangue corra longamente, durante séculos, numa infinita descendência,
para que o precipitado das forças originais do nosso espírito
seja a idealização científica. O máximo, o que
por enquanto podemos atingir, foi o que nos deu Tobias Barreto, a filosofia
através das cores solares da poesia”.133

Esta página, aliás bela, é por mais de um título
preciosa. Primeira como documento do nosso gosto do verbo pelo verbo, quanto
mais pomposo e rutilante mais amado, “imensa reputação”,
“abalava como um ciclone”, “formidável composição
de um temperamento”, “doses gigantescas”, “prodigioso
dom de fantasiar”, “a magia da adivinhação”,
“o improviso milagroso”, “os vastos descortinamentos”,
e tudo mais assim magnificado e exorbitante.

Nunca os máximos pensadores dos grandes países de alta cultura,
um Kant, um Spencer, um Comte lograram ser assim tão grandiloquamente
celebrados pelos seus compatriotas.

Mas é sobretudo precioso este discurso, porque o próprio vago
e ambíguo desta representação de Tobias Barreto e sua
obra revê o incerto e equívoco dessa figura e dessa obra, ainda
hoje ambas mal definidas, graças principalmente aos seus indiscretos
panegiristas. Já vimos em que verdadeiramente lhe consistiu a ação,
que, ainda reduzida a essas proporções, foi todavia considerável,
como estímulo e impulso. As nossas academias ou faculdades superiores
foram desde o meio do século passado os principais focos da nossa atividade
literária. Dessa origem lhe virá a fraqueza dos resultados,
a sua imperfeição e inconsistência. A nossa literatura
desde o Romantismo foi principalmente feita por estudantes ou moços
apenas saídos das faculdades, com pouca lição dos livros
e nenhuma da vida. Nelas se geraram quase todos os nossos movimentos, e todas
as novidades de ordem mental, como era natural, acharam nelas terreno adequado,
tanto para o joio como para o trigo. Foi sobretudo mediante os seus alunos
do Recife, literariamente deslumbrados pela facúndia do professor,
deslumbramento aumentado da simpatia que lhes inspiravam os seus hábitos
boêmios e alguns dos seus mesmos defeitos, tudo levado à conta
de poesia ou filosofia, que Tobias Barreto influiu na mente brasileira. Sem
outra originalidade, talvez, que a do seu verbo, como ele desordenado e exuberante,
sem nenhum saber científico realmente sólido, agitou, entretanto,
uma porção de idéias novas, pregou ou doutrinou concepções
desconhecidas da maioria, citou, com enfáticos encômios, nomes
alemães e russos de quase todos ignorados, e cujo valor raríssimos
podiam verificar, e firme e desassombradamente proclamou a necessidade de
refazermos completamente a nossa cultura em outras fontes que aquelas onde
até aí principalmente bebiam as portuguesas e francesas. A estas
não conseguiu aliás que de todo as deixássemos, pois
nela é que principalmente bebemos ainda. Não foi, porém,
inteiramente perdido o seu reclamo. Concorreu muito para entrar conosco a
dúvida salutar de que as nascentes tradicionais da nossa cultura não
seriam as únicas benéficas, e a curiosidade do nosso espírito
se alargou consoantemente. Basta isso para lhe assegurar um posto proeminente
na nossa evolução literária, ou antes cultural, sem necessidade
de lhe exagerarmos o valor da obra.

Esta é a fragmentária e dispersiva, e não guarda outra
unidade que a da inspiração acaso mais lírica que filosófica
do seu gênio e da sua fé, na superioridade da cultura alemã
e na legitimidade da sua hegemonia. Em estilo descomposto como lhe era a vida,
numa forma muito pessoal, e por isso mesmo viva e interessante, com propositada
ou congenial carência daquela urbanidade de que os latinos faziam uma
virtude literária, escreveu dezenas de opúsculos, artigos e
ensaios. Teoria literária, crítica, filosofia, sociologia, religião,
direito, psicologia, literatura comparada, filosofia científica, biologia,
história, em suma de omni re scibili, tudo versou neles. Esta afetação
de saber universal, sempre suspeito num puro autodidata, realçado em
verdade por um grande e sincero calor de exposição, em que superabundavam
provas de talento, abalou a mocidade da escola onde professava e por ela boa
parte da mentalidade moça do país. Livro, não publicou
em vida mais que os Estudos alemães, coleção de artigos
diversos, e Menores e loucos, monografia de direito criminal. A maior parte
da sua obra saiu póstuma. A sua ação foi sobretudo oral,
a do seu ensino, dos seus discursos, das suas palestras, e reflexa, operada
por intermédio dos seus discípulos. E de fato se não
exerceu e tornou sensível com prioridade que lhe assegure a primazia
de precursor do movimento modernista aqui. Sem falar dos seus anos de estudante
no Recife (1862-1871), em que “cultivou preponderamente a poesia”,134
a sua ação útil só verdadeiramente começou
com o seu professorado ali em 1882. Os dez anos anteriores (1871-1881) passara-os
ele na pequena cidade pernambucana da Escada, obscuro e desconhecido. Nesse
lugarejo, que não era nenhuma Weimar, publicou opúsculos em
português e alemão. Destes últimos seria ele próprio
um dos raríssimos leitores, porque, segundo nos exprobrava como de
uma infâmia, não havia então aqui mais que umas escassas
dezenas de pessoas que lessem essa língua. Esta excêntrica atividade
literária da Escada não teve nenhuma publicidade e menos repercussão.
Só foi lembrada quanto Tobias Barreto se tinha feito conhecido como
professor no Recife e começava a criar prosélitos. Ninguém
que de todo não ignore as condições da nossa vida intelectual,
admitirá a influência de um escritor, por mais genial que o suponhamos,
cuja atividade se exerça esporádica e fragmentariamente em magros
folhetos e efêmeros periódicos, numa cidade sertaneja. Somente
em 1882 começou, pois, a ação de Tobias Barreto a se
fazer sentir, e de primeiro exclusivamente no Recife.

Antes disso, porém, desde os primeiros anos do decênio de 70,
e sob as influências notadas, manifestava-se no Rio de Janeiro o movimento
modernista. Foi nos próprios livros franceses de Litré, de Quinet,
de Taine ou de Renan, influenciados pelo pensamento alemão e também
pelo inglês, que começamos desde aquele momento a intruir-nos
das novas idéias. Influindo também em Portugal, criara ali a
cultura alemã uma plêiade de escritores pelo menos ruidosos,
como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Joaquim de Vasconcelos, Antero de
Quental, Luciano Cordeiro, amotinados contra a situação mental
do Reino. Além destes, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão
vulgarizavam nas Farpas, com mais petulância e espírito do que
saber, as novas idéias. Todos estes, aqui muito mais lidos do que nunca
o foi Tobias Barreto, atuaram poderosamente a nossa mentalidade. E o movimento
coimbrão, como se chamou à briga literária do “Bom
senso e bom gosto”, pelos anos de 65, teve certamente muito maior repercussão
na mentalidade literária brasileira do tempo, do que a pseudo-escola
do Recife. Muito mais daquele movimento do que da influência de Tobias
Barreto, derivou a Literatura brasileira e a Crítica moderna (1880)
do Sr. Sílvio Romero, e bem assim os seus principais estudos da história
da literatura brasileira. O positivismo comtista inaugurava aqui e em S. Paulo
a sua propaganda, primeiro somente do aspecto científico da doutrina.
Essa pregação convencida, tenaz, teve desde logo a seu lado,
a prestigiá-la, alguns bons sabedores das ciências positivas,
particularmente das matemáticas. E em 1875, estranho a qualquer influência
do excêntrico filósofo da Escada, um velho diplomata, Araújo
Ribeiro (visconde do Rio Grande), publicava no Rio de Janeiro o seu volumoso
livro O fim da criação, o primeiro de doutrina darwinista, se
não materialista, escrito no Brasil.

Na mesma década entrou a instrução pública a
ocupar mais seriamente a atenção dos governos e do público.
A Tipografia Nacional tirava em volume as traduções dos livros
de Hippeau sobre o ensino público nos Estados Unidos, na Inglaterra
e na Prússia. Reformava-se, procurando-se desenvolvê-lo, o Colégio
de D. Pedro II, único foco de estudos clássicos que possuíamos,
hoje quase extinto. Criavam-se conferências e cursos públicos,
onde se começaram a agitar as novas idéias filosóficas,
científicas e literárias. Remodelava-se o antigo curso da Escola
Central, organizando-se a Escola Politécnica, acrescentando-se-lhe
aos cursos profissionais as duas importantes seções de ciências
físicas e naturais e ciências físicas e matemáticas.
Para reger as novas cadeiras vieram da Europa professores especiais, como
o físico Guignet, o fisiologista Couty, o mineralogista e geólogo
Gorceix, logo depois incumbido da fundação e direção
da Escola de Minas de Ouro Preto, nesse tempo criada. Também o ensino
médico foi reformado, acrescido de matérias e cadeiras novas.
A reforma que igualmente sofreram o Museu e a Biblioteca Nacional determinou
maior atividade e mais útil efeito destas velhas e paradas instituições.
O Museu começou a publicar os seus interessantes Arquivos em cujos
três primeiros volumes (1876-1878) se encontram trabalhos originais
de antropologia, fisiologia, arqueologia e etnografia e história natural
de sabedores brasileiros, Lacerda, Rodrigues Peixoto, Ladislau Neto, Ferreira
Pena, e estrangeiros ao serviço do Brasil, Hartt, Orville Derby, Fritz
Müller e outros. Simultaneamente com os Arquivos do Museu vêm a
lume os Anais da Biblioteca Nacional, ricos de informações bibliográficas,
de eruditas memórias e monografias interessantes para a nossa história
literária e geral. Nos ensaios de ciência (1873), Batista Caetano
de Almeida Nogueira funda o estudo das línguas indígenas brasileiras
segundo os novos métodos da ciência da linguagem, recriada pelos
alemães, tirando-o do fantasioso empirismo em que até então
andou. Os estudos da história do Brasil no século XVI (1880),
não obstante o seu exíguo tomo, revelavam no Sr. Capistrano
de Abreu raras capacidades, posteriormente confirmadas por outros trabalhos,
para essa ordem de estudos, aqui também depois da morte de Varnhagen
quase que entregues à pura improvisação. Pelo fim do
mesmo decênio, Araripe Júnior, um dos melhores espíritos
deste momento, começara a publicar o seu perfil literário de
José de Alencar, uma das obras capitais da crítica brasileira,
e no prefácio da primeira edição, em 1882, declarava
que a reconstituição das suas idéias datava de 1873.
No Ceará, donde era e onde residia Araripe Júnior, formara-se
por aquele tempo um grupo literário composto dele, de Capistrano de
Abreu, do malogrado Rocha Lima, de Domingos Olímpio, de Tomás
Pompeu e doutros nomes menos conhecidos, grupo ledor de Spencer, Buckle, Taine
e Comte e entusiasta das suas novas idéias. Esse grupo ficou estranho
à influência da Escada e precedeu de dez anos a do Recife. O
José de Alencar, de Araripe Júnior, inspirava-o manifestamente
o critério crítico de Taine, como o descobrimento do Brasil
e seu desenvolvimento no século XVI (1883), de Capistrano de Abreu,
o evolucionismo spenceriano. Em 1874, um médico de S. Paulo, o Dr.
Luís Pereira Barreto, publicava, sob o título de Três
filosofias, a exposição e discussão, que ficou aliás
incompleta, dos três estados do espírito humano, conforme a doutrina
de Augusto Comte. E as questões históricas, filosóficas,
jurídicas, políticas e ainda culturais que se prendem ao grave
tema do poder e autoridade do papa e das suas relações com o
século eram, em 1877, larga e eruditamente discutidas pelo Sr. Rui
Barbosa numa copiosíssima introdução à sua versão
para o português da obra alemã do Cônego Doellinger, O
Papa e o Concílio. Nessa prefação, o Sr. Rui Barbosa
revelava, acaso excessivamente, a vastidão da sua literatura não
só francesa ou alemã, mas universal.

Destes fatos não é lícito senão concluir que
a ação de Tobias Barreto, conquanto considerável, não
foi tal qual se tem presumido, e que efetivamente só entrou a exercer-se
pelo ano de 1882. Então já no Ceará e em S. Paulo pelo
menos, e no Rio de Janeiro, desde o princípio do século passado
o nosso mais considerável centro intelectual, manifestamente se desenhava
o movimento a que tenho chamado de modernismo. Principalmente reflexa, a ação
de Tobias Barreto nesse movimento operou-se mediante os seus discípulos
imediatos, dos quais um ao menos, o Sr. Sílvio Romero (S. Paulo de
quem Tobias é o Cristo), teve considerável influência
na juventude literária dos últimos vinte anos do século
passado. No empenho, aliás simpático na sua inspiração,
de o exaltarem, inventaram uma “escola do Recife”, da qual o fizeram
instituidor. Não viram, como atiladamente nota o mesmo Sr. Graça
Aranha, que “a força singular desse homem estava na genialidade
poética por onde lhe veio a intuição científica
e filosófica” e que “essa genialidade, essa imaginação
faltaria aos seus discípulos porque ela era uma expressão puramente
individual e que se não repete… Extrairiam dos livros e das frases
do mestre apenas as fórmulas audazes, confundiriam a sátira
com a seriedade do pensamento, tomariam os vagos delineamentos por conclusões
definitivas e espalhariam numa língua bárbara a dogmática
doutrina para as quais não teriam nem a ciência, nem adivinhação
profética”.135 A “escola do Recife” não tem de
fato existência real. O que assim abusivamente chamaram é apenas
um grupo constituído pelos discípulos diretos de Tobias Barreto,
professor diserto e, sobretudo, ultrabenévolo, eloqüente orador
literário e poeta facundo, mais do que Tobias pensador e escritor.
Cumpre, aliás, repetir que esse grupo, salvo imigrações
individuais posteriores, restringiu-se ao Norte, donde era a máxima
parte de seus alunos, e mais exatamente a Pernambuco.

Mas ainda reduzida a estas proporções, que me parecem as verdadeiras,
a figura de Tobias Barreto e o seu papel na nossa literatura, ou mais exatamente
na nossa mentalidade, é relevante. Ele atuou duplamente, primeiro,
e acaso principalmente, como demolidor dos nossos valores mentais que pela
sua própria imobilidade se tornavam um impedimento ao nosso progresso
espiritual, depois como uma força de estímulo e reforma para
essa mentalidade. Apontou, se não abriu, caminhos novos e novas direções
à nossa inteligência, criou discípulos em que se lhe frutificaram
os ensinamentos e cuja ação foi considerável, suscitou
discussões e polêmicas com que agitou o nosso meio intelectual,
em suma, deu um forte e útil abalo ao nosso pensamento, como quer que
seja no momento inerte. Não foi, porém, nem um sábio,
nem um pensador original ou profundo. O seu darwinismo não podia ser
senão de mera predileção sentimental. Carecendo da instrução
científica, e especialmente biológica, para apreciar idoneamente
as doutrinas de Darwin e seus discípulos ou êmulos, não
podia, sem impertinência, pronunciar-se sobre elas e menos professá-las.
Aliás quase todos os nossos pseudo-filósofos evolucionistas,
transformistas ou darwinistas o foram, como ele, de palpite. Um princípio,
um conceito, uma idéia sua, não se lhe conhece naqueles domínios.
Não fez de fato senão expor, ao que parece com grande eloqüência
professoral, em todo caso, mesmo escrevendo, com grande calor comunicativo,
a arrogância própria para impor, o que em filosofia, em crítica,
em literatura, em direito, faziam os alemães, por cuja cultura se enrabichou
com exclusivismo pouco abonatório do seu espírito crítico.
Como a sua pregação, endereçava-se a um público
para quem a Alemanha, sob o aspecto da cultura, era terra incógnita,
e mais um público principalmente constituído de rapazes tão
ignorantes como facilmente impressionáveis, nada mais fácil
do que alcançar foros de oráculo.

O modernismo de que, em todo caso, foi ele aqui um dos principais fautores,
produto de forças heterogêneas, teve também desencontrados
efeitos na ordem literária: na ficção em prosa, deu o
naturalismo, ou melhor favoreceu o advento do naturalismo francês; na
poesia simultaneamente o parnasianismo e a extravagância da chamada
poesia científica. Em outras ordens de atividade, na filosofia, na
crítica, em sociologia, em história, influiu com outros métodos
e porventura mais esclarecido entendimento. Mas também, e em maior
número talvez, produziu repetições, descorados ou desajeitados
arremedos do que nesses ramos de conhecimento se fazia lá fora. Desvairando,
porém, a nossa fraca ciência deu lugar ao que Herculano chamou
com propriedade de “gongorismo científico”. Acaso o seu mais
útil e notável efeito foi, apesar destas máculas, o desenvolvimento
do espírito crítico. Efetivamente nesta fase da nossa literatura,
mais que em qualquer das que a precederam, se nos depara esse espírito
e às vezes da boa qualidade. Fora, porém, da poesia e do romance,
ou da oratória parlamentar, justamente em plena e brilhante florescência
nos últimos anos do Império, não produziu um conjunto
de obras que se possam agrupar sob uma qualificação particular
ou a que una qualquer pensamento ou idéia geral comum. A mais considerável
saída desse movimento, menos aliás por virtudes intrínsecas,
que pelos seus efeitos, e essa produto direto do estilo criado em Pernambuco
por Tobias Barreto, mas concebida e realizada no Rio de Janeiro, é
talvez a já citada História da literatura brasileira do Sr.
Sílvio Romero (1888).

O romance romanesco e nimiamente sentimental de Alencar, Macedo ou Bernardo
Guimarães, quando já o naturalismo francês não
era uma novidade, acabara por, ainda em antes deste movimento, ceder o passo
ao de Taunay, Machado de Assis e Franklin Távora, únicos dos
romancistas sucessores daqueles que fizeram uma obra equivalente à
sua. Esta, porém, salvo no segundo, era ainda, como a dos românticos,
intencionalmente nacionalista, e em Franklin Távora até propositadamente
regionalista. Somente continuando com o nacionalismo literário, estes
e outros que os acompanharam, o fizeram com atenuação da fórmula
romântica dominante. Eles pertencem antes à última fase
do Romantismo. Os verdadeiros naturalistas segundo as receitas francesas já
aviadas em Portugal por Eça de Queirós e seus discípulos
vieram depois, quando esses últimos românticos iam em meio da
sua literária, e até quando o naturalismo entrava já
a declinar em França.


Capítulo XVI

O NATURALISMO E O PARNASIANISMO

RARISSIMAMENTE, SE ALGUMA VEZ acontece, exprimem fielmente as etiquetas literárias
o fenômeno que presumem definir, ou lhe compendiam exatamente o caráter.
Não escapou o naturalismo a esta regra. Nenhuma das suas várias
definições satisfaz plenamente. Para a mesma ficção
em prosa, a que primeiro e particularmente foi esse nome dado, não
se lhe acha explicação cabal. No entanto, os autores o aplicam
à crítica, à oratória, à filosofia, à
história e até à poesia. Historiadores da literatura
francesa, por exemplo, sob este vocábulo designam o período
literário de 1850 a 1890.136

É, que, como o Romantismo, o naturalismo foi sobretudo uma tendência
geral. Como aquele fora uma reação contra o classicismo, foi
o Naturalismo um levante contra o Romantismo. Caracteriza-o e distingue-o
a sua inspiração diversa do Romantismo, mormente a sua inspiração
muito menos espiritualista que a deste, e conseqüentemente a sua vontade
de proceder diferentemente dele. Revela-se este seu íntimo sentimento
e propósito no sacrifício ou diminuição da personalidade
do autor, exuberante no Romantismo; numa observação mais rigorosa
e até presumidamente inspirada em métodos científicos;
numa representação mais fiel do observado, reduzindo ao mínimo
a idealização romanesca; no menosprezo dos constantes apelos
à sensibilidade do leitor, pelo abuso do patético; na invasão,
não só do romance, mas de todos os gêneros literários,
pelo espírito crítico, que era principalmente o do tempo. Tudo
isto revia o momento, da prevalência das ciências exatas e de
uma filosofia inspirada de seus métodos e baseada nos seus resultados
sobre a metafísica eclética do princípio do século.

O nosso naturalismo, que foi uma das resultantes do modernismo, nada inovou
ou sequer modificou no naturalismo francês seu protótipo. Ao
naturalismo inglês, anterior a este, e ao mesmo tempo tão sóbrio
e distinto, ficou de todo alheio. Apenas se lhe vislumbra o contágio
na ficção de Machado de Assis. Mas estreitamente ainda que o
nosso Romantismo seguira o francês, arremedou o naturalismo indígena
o naturalismo da mesma procedência modelando-se quase exclusivamente
por Émile Zola e o seu discípulo português Eça
de Queirós. De novelas, contos, curtas e ligeiras ficções
e ainda romances, segundo a fórmula pessoal destes dois escritores,
houve aqui fartura deste 1883 até o rápido esgotamento dessa
fórmula pelos anos de 90, quando ela se não procrastinou em
exemplares inferiores que importunamente ainda a empregavam. Obras realmente
notáveis e vivedouras, ou sequer estimáveis, bem poucas produziu,
e nomes que mereçam historiados são, acaso, apenas três:
Aluísio de Azevedo, Júlio Ribeiro e Raul Pompéia.

Além de haver formulado estes fiéis discípulos, e muitos
outros somenos, atuou o naturalismo aqui, como fica atrás verificado,
modificando e atenuando em romancistas como Franklin Távora e Taunay
e nas nossas letras em geral, as feições e os excessos do Romantismo.
Resultou em visão mais clara das cousas, observação mais
sincera e expressão em suma melhor.

Aluísio de Azevedo nasceu no Maranhão em 14 de abril de 1857
e veio a morrer como cônsul do Brasil em Buenos Aires em 31 de janeiro
de 1913. Como tantos dos nossos escritores, com insuficientes letras lançou-se
no jornalismo, que, as dispensando, é uma boa escola de escrita corrente
e fácil. O seu primeiro livro foi um romance, na pior maneira romântica,
Uma lágrima de mulher (Maranhão, 1880). Logo depois enveredou
pelo caminho que lhe antolhava o naturalismo, conservando, contudo, ressaibos
daquela moda. Quando apareceu o seu segundo livro, outro romance, O mulato
(Maranhão, 1881), onde, ao jeito da nossa estética, era estudado
o caso do preconceito de cor na província natal do autor, protraía-se
ainda o Romantismo nos romances sempre lidos de Alencar e Macedo e de Bernardo
Guimarães, ainda vivo. Como tipos de transição entre
as duas correntes literárias, romântica e naturalista, haviam
aparecido desde 1870 Taunay e Franklin Távora, para não citar
senão os que fizeram obra mais considerável. Estreando-se no
romance em 1872, com a Ressurreição, eximira-se Machado de Assis
quase completamente do Romantismo, sem cair, porém, no que ao seu claro
engenho lhe parecia o engano do naturalismo. Ele de fato nunca pertenceu a
escola alguma, e através de todas manteve isenta a sua singular personalidade
literária.

Não obstante a sua procedência provinciana, teve O mulato o
mais simpático acolhimento do Rio de Janeiro e do país em geral.
A novidade um pouco escandalosa que trazia, ajudada demais do cansaço,
de fórmula romântica, foi grata ao nosso paladar enfastiado do
romanesco dos nossos novelistas, e pouco apurado para saborear as finas iguarias
do Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado em 1881. A gente habituada
ao despejado naturalismo, mesmo cru realismo das discussões políticas
e brigas jornalísticas, aqui sempre descompostas ambas, e mais à
proverbial licença da nossa conversação, a maneira zolista
devia forçosamente de agradar.

Passando-se da terra natal para o Rio de Janeiro, continuou Aluísio
de Azevedo a obra encetada com O mulato, e continuou aperfeiçoando-se,
o que de comum não tem sucedido nas nossas letras, onde, como já
fica notado, não são poucos os autores cujos melhores livros
são justamente os primeiros. Aluísio de Azevedo não só
reformou O mulato, melhorando-lhe em nova edição a composição
e o estilo, mas, não obstante a boêmia que por um resto anacrônico
do Romantismo ainda praticou, pôs sério empenho de aperfeiçoamento
na obra subseqüente. Os romances A casa de pensão (1884), O homem
(1887), O cortiço (1890), confirmaram o talento afirmado no Mulato
e asseguraram-lhe na nossa literatura o título de iniciador do naturalismo
e do seu mais notável escritor.

O principal demérito do naturalismo da receita zolista, já,
sem nenhum ingrediente novo, aviada em Portugal por Eça de Queirós
e agora no Brasil por Aluísio de Azevedo, era vulgarização
da arte que em si mesmo trazia. Os seus assuntos prediletos, o seu objeto,
os seus temas, os seus processos, a sua estética, tudo nele estava
ao alcance de toda a gente, que se deliciava com se dar ares de entender literatura
discutindo de livros que traziam todas as vulgaridades da vida ordinária
e se lhe compraziam na descrição minudenciosa. Foi também
o que fez efêmero o naturalismo, já moribundo em França
quando aqui nascia.

Não seria, porém, justo contestar-lhe o bom serviço
prestado, tanto aqui como lá, às letras. Ele trouxe à
nossa ficção mais justo sentimento da realidade, arte mais perfeita
da sua figuração, maior interesse humano, inteligência
mais clara dos fenômenos sociais e da alma individual, expressão
mais apurada, em suma uma representação menos defeituosa da
nossa vida, que pretendia definir. Dos que aqui por vocação
ou mero instinto de imitação, demasiado comum nas nossas letras,
seguiram o naturalismo e se nele ensaiaram, o que mais cabalmente realizou
este efeito da nossa doutrina literária foi Aluísio de Azevedo,
com uma obra de mérito e influência consideráveis, qual
a daqueles seus quatro romances, aos quais podemos juntar o último
que escreveu, o livro de uma sogra. Este aliás não é
mais plenamente naturalista, e a sua execução lhe saiu inferior
à dos primeiros. O resto de sua obra, de pura inspiração
industrial, é de valor somenos.

Foi também naturalista de escola, mais talvez por amor da sua novidade
e voga que por sincera simpatia com ela, Júlio Ribeiro, no seu único
romance dessa fórmula, A carne (S. Paulo, 1888).

Júlio César Ribeiro, filho de norte-americano com brasileira,
nasceu em Minas Gerais aos 16 de abril de 1845 e faleceu em S. Paulo, onde
exerceu a sua atividade literária, em 1 de novembro de 1890. Como é
aqui muito comum, era autodidata, votado por natural inclinação
aos estudos lingüísticos. De atividade dispersiva e índole
móbil, acaso trêfega, foi cumulativamente professor de línguas,
jornalista, polemista, pondo nestes dois ofícios grande ardor e até
veemência. Além dos antigos , necessários à sua
educação filológica, estudou ou simplesmente leu desordenadamente
os modernos, sobre todos os moderníssimos, sem talvez os meditar bastante.
De seu natural ardoroso, alvoroçou-se com as mais frescas novidades
intelectuais. O melhor fundamento da sua reputação é
a sua gramática portuguesa (S. Paulo, 1881), um dos mais notáveis
produtos da nossa copiosa literatura do gênero. Com suficiente saber
e inteligência do assunto, há talvez nessa obra demasiado e quiçá
indiscreto entusiasmo pelas últimas novidades glotológicas e
pelos seus inventores. Da mesma especialidade publicou também Júlio
Ribeiro outros estudos. A sua obra propriamente literária cifra-se,
porém, naquele romance e no que o precedeu Padre Belchior de Pontes
(Campinas, S. Paulo, 1876-1877, nova edição, Lisboa, 1904).
Chamou-lhe ele de “romance histórico original”, mas a despeito
do aparato de erudição de que o cercou, e de serem históricos
fatos, episódios e algumas principais personagens bem como o protagonista,
ainda o é menos que os de Alencar ou Macedo. Nada no livro nos dá
a ilusão da época e do meio romanceados, antes pelo contrário.
Padre Belchior de Pontes, não obstante a afetação de
ciência, afetação que na Carne sedes desmandaria até
ao ridículo, não obstante maior objetividade de inspiração
e da representação romanesca, era ainda uma pura novela romântica,
canhestramente composta.137 Não tem sequer este romance as excelências
de expressão que imaginaria encontrar num gramático profissional
quem não soubesse que por via de regra são os gramáticos
mofinos escritores.

O modernismo teve em Júlio Ribeiro, como fica insinuado, um dos seus
fervorosos adeptos. Seguindo, menos acaso e inspiração que por
enlevo da novidade, então muito festejada, a corrente do romance naturalista,
escreveu A carne nos mais apertados moldes do zolismo, e cujo título
só por si indica a feição voluntária e escandalosamente
obscena do romance. Salva-o, entretanto, de completo malogro o vigor de certas
descrições. Mas A carne vinha ao cabo confirmar a incapacidade
do distinto gramático para obras de imaginação já
provada em Padre Belchior de Pontes. É, como dela escrevi em 1889,
ainda vivo o autor, o parto monstruoso de um cérebro artisticamente
enfermo.138 Mas ainda assim no nosso mofino naturalismo sectário, um
livro que merece lembrado e que, com todos os seus defeitos, seguramente revela
talento.

É do mesmo ano da Carne, O ateneu de Raul Pompéia. Nascido
em 12 de abril de 1863 e falecido a 25 de dezembro de 1895. Raul d’Ávila
Pompéia escreveu este romance ainda em começo da juventude.
Inexperiente na vida, com aquela “vigorosa ignorância que faz a
força da mocidade”, de que fala Brunetière, mais com a
impressão forte, como seriam todas em a sua natureza excitável
e vibrátil, das novas idéias e pressentimentos que alvoroçavam
a mocidade do tempo, Raul Pompéia deu no Ateneu a amostra mais distinta,
se não a mais perfeita, do naturalismo no Brasil. Ao contrário
dos seus dous principais êmulos nessa moda literária, Aluísio
de Azevedo e Júlio Ribeiro, que, achegando-se demasiado ao seu figurino
francês, sacrificaram-lhe a originalidade que acaso tinham, Raul Pompéia,
com dotes de pensador e de artista superiores aos dous, não perdeu
a sua. O seu romance é mais original e o mais distinto produto da escola
aqui, sem ser tão bem composto como os melhores de Aluísio de
Azevedo. Pelo Desenvolvimento, volume e ainda qualidade de sua obra, este
ficaria, entretanto, e como tal é considerado, o principal representante
indígena da escola. No que decididamente os sobreleva a todos Raul
Pompéia é, não só na maior originalidade nativa
e na distinção, sob o aspecto artístico, do seu único
romance, mas ainda no talento superior revelado na abundância, roçando
acaso pela demasia de idéias e sensações não raro
esquisitas e sempre curiosas, que dão ao seu livro singular sainete
e pico. Nesse livro, porém, que tantas promessas trazia e tantas esperanças
despertou, parece se esgotou todo o engenho do malogrado escritor e espírito
brilhantíssimo.

Não houve no Brasil, como não houve em parte alguma, poesia
a que se possa chamar de naturalista no mesmo sentido em que se fala de romance,
e ainda de teatro, naturalista. É que não existe poesia sem
certa dose de idealismo, incompatível com tal naturalismo. Enganavam-se
redondamente, como ao tempo lhes mostrou Machado de Assis, 139 os imitadores
indígenas de Baudelaire que nas Fleurs du mal buscavam justificação
do seu realismo ou naturalismo. E a sua inteligência os condenou à
imitação pueril e falha.

A poesia brasileira contemporânea da romântica naturalista foi,
como ficou averiguado, o parnasianismo, e, com manifestações
minguadas e somenos, a alcunhada poesia científica, que de poesia só
teve o exprimir-se em versos, geralmente ruins.

Influiu de fato o modernismo na poesia com a sua inspiração
científica e filosófica, produzindo isso que aqui se denominou
de “poesia científica”, o que é de si mesmo uma contradição,
enquanto as verdades científicas se não fizerem sentimento na
alma do poeta. Pôr em versos, ainda excelentes — o que aliás
nunca aconteceu — noções científicas ou idéias
filosóficas é retrogradar à poesia didática, cousa
que de poesia só tem o nome. Já vimos que não deu aqui
nada de si, e nada deixou por que sequer mereça lembrada, senão
como um fato, aliás insignificante, da nossa evolução
literária.

Desde 1879, Machado de Assis, no escrito citado, verificava que “a poesia
subjetiva chegara efetivamente aos derradeiros limites da convenção”
e simultaneamente a influência das ciências modernas que deram
à mocidade “diferentes noções das cousas e um sentimento
que de nenhum modo podia ser o da geração que os precedeu”.

Com estas noções mais sofregamente bebidas que cabalmente assimiladas,
entraram a impressionar a nossa imaginação e faculdades poéticas,
Teodoro de Banville, Baudelaire, Leconte de Lisle, os poetas do Parnasse contemporain,
e, ainda e sempre, Victor Hugo, o Hugo da Légende des siècles
(1859-77-83), o vate social e político. Simultaneamente as impressionaram
os poetas portugueses da reação coimbrã contra Castilho
e o ultra-romantismo, em que demoradamente agonizava, sob o patrocínio
deste extraordinário versejador, a poesia portuguesa: João de
Deus, Teófilo Braga, Antero de Quental, Guerra Junqueiro.

Ao contrário do que superficialmente se pensa, as influências
intelectuais européias nunca demoraram menos de vinte anos a se fazerem
aqui sentir. Banville e Baudelaire apareceram com as suas obras típicas
em 1857, aquela revista de poesia publicou-se de 1865 a 66, e os poetas portugueses
que nos traziam o eco do movimento das idéias, que havia pelo menos
cinco lustros abalavam os espíritos europeus, eram todos do decênio
de 60.

Ao feitio poético que no Brasil correspondeu ao naturalismo no romance,
e que de parte modalidades diversas e indefiníveis de inspiração
se caracterizou pela preocupação da forma e pela maior abstenção
da personalidade do artista, chamou-se de parnasianismo. Naturalismo e parnasianismo
são ambos filhos daquele movimento. Mesmo em França, a denominação
de parnasianismo é arbitrária. Não houve propriamente
ali escola parnasiana. A não ser o do trabalho exterior, do lavor do
verso, nenhum vínculo de sentimento ou inspiração comum
liga os poetas que, reunidos em torno de Leconte de Lisle, colaboravam no
Parnasse contemporain, do qual lhes veio a alcunha. O único que com
ele tinha alguma analogia era José Maria Heredia.140

A forma rigorosa, impessoal, impassível, em que se quis ver a marca
da escola — desmentida aliás mesmo em França, por alguns
dos seus mais distintos alunos, como Coppée — se não coadunava
com o lirismo português e brasileiro, ambos essencialmente feitos de
sentimentalidade e de personalismo, ambos muito pessoais. Em Portugal, mais
ainda que no Brasil, não houve nunca verdadeiros parnasianos, segundo
o conceito comum do parnasianismo,141 se não o forem os seus árcades
do fim do século XVIII.

Transplantado para o Brasil, o parnasianismo francês modificou-se sensivelmente
sob a ação das nossas idiossincrasias sentimentais, da nossa
fácil emotividade e das tradições da nossa poesia. A
impersonalidade e sobretudo a impassibilidade não vão com o
nosso temperamento. São dos anos de 70 as primeiras manifestações
do paranasianismo na nossa poesia. Foram talvez as Miniaturas de Gonçalves
Crêspo a sua primeira manifestação. Publicadas em 1871,
com poemas de 69 e 70, traziam sob o nome do poeta a menção
“natural do Rio de Janeiro”. Brasileiro de nascimento e mestiço,
também de temperamento, de intenção, e, o que é
mais, de sentimento, era o autor genuinamente brasileiro. Os seus deliciosos
poemas, porém, de parnasianos apenas tinham o escrúpulo da fatura.
Muitos livros de versos publicaram-se aqui no decênio de 70 a 80: Falenas
e Americanas, de Machado de Assis; Névoas matutinas e Alvoradas, de
Lúcio de Mendonça; Flores do campo, de Ezequiel Freire; Telas
Sonantes, do Sr. Afonso Celso; Sonetos e rimas, de Luís Guimarães
Júnior, e outros. Distingue estas coleções de poemas
maior abundância de temas objetivos, uma notável diminuição
na sentimentalidade e subjetivismo, acaso excessivos, dos românticos
e, sobretudo, um mais esmerado trabalho de forma. Algumas delas, como as de
Machado de Assis e Luís Guimarães Júnior, já traziam,
sob este aspecto, distinta excelência. Estes dous poetas, porém,
desde os seus primeiros versos se mostravam, mais do que era aqui comum, cuidadosos
da forma.

A inspiração romântica tão consoante com a nossa
índole literária, como é de ver, se não desvanecera
totalmente ao influxo da nova poética. Não só é
ainda visível naqueles poemas mas em dois novos poetas que por esse
tempo apareceram, o Sr. Alberto de Oliveira, que viria a ser talvez o mais
típico dos nossos parnasianos, e o malogrado Teófilo Dias. Tanto
as Canções românticas do primeiro, como a Lira dos verdes
anos e os Cantos tropicais do segundo são de 1878, e em ambos, de mistura
com a toada geral do nosso lirismo romântico, há claros toques
da nova poética. A estas diversas coleções seguiram-se
as Sinfonias (1883) e Versos e versões (1887), de Raimundo Correia,
as Meridionais, do Sr. Alberto de Oliveira, as Contemporâneas, do Sr.
Augusto de Lima e, finalmente, em 1888 as Poesias do Sr. Bilac, que ficariam
como talvez o mais acabado exemplar do nosso parnasianismo, tanto pelas qualidades
formais como de inspiração. Não vale a pena citar mais:
uns, embora com estro, apenas ocasionalmente foram poetas, outros não
o souberam ser com virtudes tais que mal decorrido um quarto de século
não ficassem de todo esquecidos. Como felizmente passara a época
em que os nossos poetas morriam moços, estão, Deus louvado,
vivos esses e outros seus imediatos sucessores, dos quais alguns têm
um nome e um lugar na poesia brasileira. Acode naturalmente o do Sr. Luís
Murat, estreado nesta época com muito ruído, aplauso, abundância
e brilho e que assim poetou até há pouco. O Sr. Luís
Murat, porém, apenas parcialmente pertence a esta fase poética,
pois ao contrário dos poetas que a assinalam, seus contemporâneos
e companheiros, tanto a sua inspiração como a sua maneira refletem
notavelmente, não obstante meras aparências de novidades, a poética
anterior. É como ele, embora de feição muito diferente,
mais romântico que parnasiano, o Sr. Melo Morais Filho, o poeta dos
Cantos do Equador. Com o propósito de nacionalismo voltou ao indianismo,
repetindo com muito menos engenho a Gonçalves Dias.

Dos citados poetas, dois dos mais estimados vinham do Romantismo, do qual
ainda conservam ressaibos Machado de Assis e Luís Guimarães
Júnior. Machado de Assis, que desde o princípio se distinguira
pela arte excelente dos seus versos, apenas a teria apurado mais com o advento
do parnasianismo. Mas nele os efeitos da nova poética e das correntes
que a originaram só são manifestos na sua última coleção,
as Ocidentais. Luís Guimarães Júnior, que ia pelos trinta
anos, o que é aqui quase a velhice para um poeta, fora desde os seus
primeiros versos (Corimbos, 1869) versificador esmerado. Sofrendo a impressão
da nova moda, não foi só a sua versificação que
se aperfeiçoou, mas toda a sua expressão poética, e os
Sonetos e Rimas (Roma, 1880) são, sob este aspecto, um dos mais distintos
livros da nossa poesia e não sei se não também um dos
melhores exemplares do parnasianismo à francesa aqui. O seu lirismo,
de qualidades muito nacionais, não sofreu modificação
essencial do parnasianismo e por muitos rasgos ele continuou com originalidade
e sentimento próprios, e melhor expressão, os poetas das últimas
gerações românticas. Mas poemas como História de
um cão, Satanás, A esmola, A morte de águia, revelam
a ação do novo pensamento que influía a poesia. A distinta
arte do verso fazia-o um dos corifeus da sua renovação aqui.

Pelo mesmo tempo começou a aparecer com maior reputação
e lustre o nome de Luís Delfino, que talvez desde os anos de 50 se
vinha lendo sob versos publicados em diversos periódicos. Luís
Delfino dos Santos é uma das figuras mais curiosas, mais extraordinárias
até da nossa poesia. Era de Santa Catarina, onde nasceu em 25 de agosto
de 1834, o que o faz da geração dos segundos românticos,
quase todos nesse decênio nascidos. Formou-se em medicina no Rio de
Janeiro, onde se deixou ficar clinicando e onde faleceu a 30 de janeiro de
1910.

Desde muito jovem até às vésperas de morrer, com setenta
e seis anos, poetou constante e despreocupadamente, sem esforço, sem
presunção, acaso sem maior afeto e certamente sem paixão
pela sua habilidade poética. A poesia foi-lhe antes um hábito
contraído na mocidade e continuado pelo resto da vida que um ofício,
ou sequer uma ocupação literária. Sendo o mais copioso
poeta que jamais tivemos, e não raro um dos mais excelentes, não
deixou entretanto um livro de versos, em terra onde todo o versejador se precipita
em pôr em volume os seus. Como certamente lhe não teriam faltado
oportunidades de o fazer, pois além da posição social
que alcançou, era abastado, pode-se ver nesta sua negligência
ou uma singular indiferença pela sua arte ou uma peregrina forma de
faceirice literária. Tanto pela qualidade da sua ideação,
como pela da sua expressão, Luís Delfino motivadamente impressionou
os poetas que, quando ele começava a envelhecer, entravam a despir-se
do Romantismo. Ainda com as qualidades comezinhas do nosso lirismo, e a sua,
mais que volutuosidade, lascívia, mostrava-se ele mais esquisito e
mais requintado. Trazia maior riqueza, maior variedade, maior novidade de
imagens, expressas em formas menos vulgares. Sente-se-lhe, entretanto, a rebusca,
o que não era para lhe desafeiçoar os moços que pospunham
o espontâneo da inspiração ao caprichoso do lavor artístico.
Nesta rebusca cai freqüentemente no extravagante do pensamento e no anfiguri
da expressão. A relativa serenidade do seu estro, contido nas suas
naturais exuberâncias indígenas pela feição do
poeta ao requinte da expressão, o seu amor da bela forma, o seu menos
absorvente subjetivismo, o seu ar mais de refinado galanteador que de apaixonado,
libertando-o dos mais comuns vícios da nossa poesia de então,
estremaram Luís Delfino dos últimos românticos. Na voga
do parnasianismo aqui, e não no seu início, foi que o nome de
Luís Delfino saiu da penumbra em que se vinha fazendo desde aqueles
anos, para ser reconhecido e proclamado pelos poetas da nova geração
como um dos seus cabeças e por eles celebrado como um mestre de verso.
Valia-lhe a predileção, tão contrário aos nossos
costumes literários, o afastamento do velho poeta das rodas em que
aqueles jovens, que poderiam ser seus filhos, reciprocamente se disputavam
a preeminência. De fato ele não lhes era um concorrente. Foram
principalmente os seus numerosos sonetos nos moldes da nova poética,
alguns realmente belos, que lhe trouxeram ao público o nome, até
então pouco menos que obscuro. Até que ponto a importância
que mais talvez que o seu engenho lhe deram as circunstâncias, se haja
traduzido em influência suficientemente apreciável, não
sei dizer. Houve em sua fama, que aliás mal ultrapassou as rodas literárias,
muito do que os franceses chamam succès d’estime. Em suma, Luís
Delfino foi talvez antes um insigne virtuose do verso do que um grande poeta,
como liberalmente chegaram a chamar-lhe.

No decênio de 70 a 80 repetiu-se em S. Paulo o que ali sucedera de
50 a 60: um grupo de moços estudantes da respectiva Faculdade de Direito,
amigos das letras, particularmente da poesia e entusiastas das “idéias
modernas”, tomaram a frente do movimento poético. Desse grupo,
donde todos mais ou menos poetavam, saíram alguns dos melhores, poetas
desta fase, nomeadamente além dos Srs. Augusto de Lima e Olavo Bilac,
ainda felizmente vivos, sem falar dos que ficaram em estréias, Teófilo
Dias e Raimundo Correia.

Nesse grupo, a poesia, sofrendo embora as influências do pensamento
moderno, não exorbitava da sua natureza. Mantinha-se entre o nosso
lirismo tradicional e a nova poética, oriunda dos parnasianos franceses.
Misturava-lhes aliás Baudelaire, que não chegou a entender,
e continuava a admirar e imitar Hugo. Mas em suma, com menos corriqueira inspiração,
certas novidades de pensamento e, sobretudo, expressão mais apurada,
é poesia da que dispensa qualificativo. Dos poetas que a iniciaram,
e com mais distinção a fizeram, os que, por já falecidos,
têm lugar nesta História, são os mais notáveis
Teófilo Dias e Raimundo Correia, ambos maranhenses.

Teófilo Dias de Mesquita nasceu em Caxias em 28 de fevereiro de 1857.
Era, por sua mãe, sobrinho de Gonçalves Dias. Este próximo
parentesco não deixou de ser parte tanto na sua feição
poética como no renome que adquiriu. Ele próprio parece se desvanecia,
e com razão, dele, e de bom grado se deixava impressionar desta consangüinidade
gloriosa. Mais do que a confessada admiração pelo seu ilustre
parente, o grande poeta dos Cantos, o feitio do engenho poético de
Teófilo Dias lhe revê o afeto e as naturais afinidades. Ele não
é só um puro parnasiano, o que, como fica assentado, não
tivemos aqui, por o não consentir nem o nosso temperamento nacional,
nem a nossa feitura mental. Mais do que em Raimundo Correia, Bilac, Alberto
de Oliveira, Augusto de Lima, que do grupo parnasiano de S. Paulo e do Rio
de Janeiro e pode dizer-se do Brasil, foram os corifeus e os mais distintos
poetas, são em Teófilo Dias evidentes os ressaibos do Romantismo,
ainda na sua feição, aqui a mais saliente, de nacionalismo.
É nestas que se lhe sente o parentesco de Gonçalves Dias. Do
seu natural feitio romântico há também indícios
no seu vezo romântico da boêmia. A julgar pelas reminiscências
dos seus contemporâneos e camaradas, ele foi o último dos nossos
boêmios literários à moda romântica, piorada em
S. Paulo por Álvares de Azevedo e os estudantes literatos do tempo
e os seus subseqüentes macaqueadores.

A atividade poética de Teófilo Dias vai de 1876, ano em que
estréia com a Lira dos verdes anos (Cp. Lira dos vinte anos, de Álvares
de Azevedo), a 1887, em que publicou a Comédia dos deuses. Entrementes
publicara os Cantos tropicais (1878) e Fanfarras (1882). Faleceu a 29 de março
de 1889 em S. Paulo, onde casara na família dos Andradas, a cuja proteção
deveu modesta posição política nessa província.
Segundo o comum conceito do parnasianismo, Teófilo Dias, não
obstante haver poetado no melhor período da escola aqui, apenas pelo
apuro intencional da forma, abuso do descritivo e outras particularidades
e feições de virtuosidade, será um parnasiano. De parte
tais feições, é ainda um romântico modificado,
atenuado pelo “pensamento moderno”, que nele influiu mais do que
nos seus camaradas de geração. Mostra-o notavelmente a sua Comédia
dos deuses, poema confessadamente calçado no Aasvero, de Edgard Quinet,
sem quase nenhuma invenção essencial de fundo e de expressão.
Esta é aliás em Teófilo Dias mais rica do que naqueles.
Mas não tal que lhe tenha sobrelevado o estro até uma obra de
vida e beleza duradoura. É, entre os poetas da mesma grei, talvez o
menos vivo.

Ao contrário, vive de uma vida ainda muito prezada e que não
parece deva extinguir-se breve, o seu companheiro Raimundo Correia. Este delicioso
poeta nasceu a bordo de um vapor, em águas do Maranhão, aos
13 de maio de 1860. Valetudinário, de um nervosismo doentio, que aliás
mal se revela em seus poemas ou apenas se vislumbra no tom de melancolia e
desalento que é talvez o seu mais íntimo encanto, em extremo
sensitivo, encontrou nas suas mesmas condições físicas
e morais o melhor do seu estro. Filho de um magistrado do velho feitio, que
até nos aspectos exteriores punham a gravidade profissional do seu
estado, severamente educado numa família rigorosamente católica,
e ele próprio magistrado, Raimundo Correia, não obstante a perda
das crenças paternas e a deletéria influência da seródia
boêmia dos poetas estudantes de S. Paulo, conservou, com o fundo de
tristeza que lhe era congenial, a sua honestidade nativa e uma intemerata
alma de poeta idealista e intimamente romanesco. Como todos os nervosos da
sua espécie, era um desconfiado e um tímido. De todas estas
suas feições pessoais há vestígios na sua poesia,
e foi a consubstanciação perfeita do seu estro com o seu temperamento
que, apesar do seu apego às fórmulas da poética parnasiana,
fez dele talvez o mais comovido e por isso mesmo o mais interessante poeta
da sua geração. Sem maior originalidade (e a falta de originalidade
é talvez o mais visível defeito da nossa geração
parnasiana) tem, como nenhum dos seus confrades, um raro e particular dom
de assimilação com que soube transubstanciar em próprias
emoções alheias, emprestando-lhes um sentimento mais profundo
e uma expressão mais intensa e mais formosa. Os temas dos seus dous
mais belos e mais justamente afamados poemas As pombas e mal secreto não
lhe pertencem, mas nem por isso esses admiráveis sonetos são
menos seus, tantos ele lhes recriou e ressentiu o sentimento original e tão
formosamente os afeiçoou consoante com a sua índole poética.
Não só pelo seu real talento poético e peregrinas qualidades
da sua expressão foi Raimundo Correia um dos maiores dos nossos poetas
de após o Romantismo, mas também porque foi de todos eles aquele
em que o apuro, mesmo a rebusca da forma, não prejudicou nem a ingenuidade
do sentimento, nem a sua expressão natural, nem tampouco a essência
do nosso lirismo tradicional. Com menores aptidões verbais que os seus
êmulos, ele entretanto os excedeu a todos em propriedade, singularidade
e beleza de expressão poética. Raimundo Correia morreu em Paris,
a 13 de setembro de 1911.

Em Pernambuco, também no meio escolar se operou paralela mas não
igual renovação poética. Em S. Paulo, o “pensamento
moderno”, ou diretamente ou mediante os parnasianos franceses, influía
os estros poéticos sem os desviar enormemente dos domínios e
da expressão própria da poesia. Eram “novos”, mais
ficavam poetas. O contrário sucedia em Pernambuco. Ao influxo de Tobias
Barreto, dos repetidos e impertinentes apelos à Ciência, à
Filosofia, ao Pensamento Moderno (tudo com maiúscula), em uma palavra,
do cientificismo, como barbaramente se chamou a esta presunção
de ciência, nasceu o propósito desta coisa híbrida e desarrazoada
que apelidaram de poesia científica. Não deu aliás senão
frutos pecos ou gorados ainda em flor. Poesia científica é incongruência
manifesta. Que a ciência, influindo a mentalidade humana e aperfeiçoando-a
consoante as suas soluções definitivas, ou os seus critérios,
possa acabar por atuar também o sentimento humano, é uma verdade
psicológica de primeira intuição. Não o é
menos que o sentimento assim feito possa comover-se conformemente com os motivos
que o produziram ou segundo a emotividade resultante de determinações
daquelas soluções a critérios. Se for cabal a conversão
da noção em sentimento, se este já for bastante intenso,
poderá a sua expressão corresponder-lhe à intensidade
e ser, pois, do ponto de vista estético, legítima e bela. Mas
para que isto aconteça, cumpre seja completa e perfeita a transformação
da idéia em sentimento íntimo capaz de expressão artística,
subjetiva. Senão será uma pura emoção sentimental,
cuja expressão poética dispensa qualificativo ou, o que foi
a nossa “poesia científica”, uma aberração
de pseudopoetas e pseudocientistas, um efeito de moda ou uma ocasião
oratória. Poesia, como arte que é, é síntese,
uma síntese emotiva. Limitando-se os nossos poetas científicos
a versejar noções, princípios, conhecimentos científicos,
e mais nomes do que coisas, resvalavam à poesia didática, de
ridícula memória.

Tobias Barreto, o principal causador, pelo seu ensino todo imbuído
de “cientificismo”, desta suposta poesia, mas muito mais poeta que
os seus discípulos, não caiu tão em cheio como estes
no engano para o qual tanto concorreu. Quem principalmente a apadrinhou foi
Martins Júnior, poeta em que era maior o fogo juvenil que o estro.

José Isidoro Martins Júnior nasceu no Recife em 24 de novembro
de 1860, e faleceu no Rio de Janeiro em 22 de agosto de 1904. Desde os bancos
da Faculdade de Direito, onde se formou, foi um espírito agitado das
idéias mais adiantadas, das opiniões mais recentes, de entusiasmos
fogosos, tudo traduzido em manifestações e gestos de orador.
Prodigalizava-se em discussões, palestras, escritos do efêmero
jornalismo escolar, discursos e versos, num movimento infatigável do
seu temperamento caloroso e impulsivo. Desde 1879 publicou folhetos de direito,
filosofia, literatura, e os seus primeiros versos, com o título intencionalmente
expressivo de Estilhaços, As visões de hoje (1881), republicadas,
refundidas cinco anos depois, são o seu livro principal. Foi aí
que fez e propagou a “poesia científica” em poemas que eram
a condenação do gênero como esse da Síntese científica,
do qual só estes versos bastavam para o desmoralizar definitivamente:

Mas só Comte

Pôde, estóico, escalar o alevantado monte

No píncaro do qual via-se a neve branca

Da nova concepção do mundo reta e franca!

Deixando embaixo Kant, Simon, Burdin, Turgot,

Newton e Condorcet e Leibnitz, — voou

Ele para as alturas mágicas da glória,

Após ter arrancado ao pélago da História

A vasta concha azul da Ciência Social!

E mais é que houve quem tomasse a sério estas infantilidades,
e só como tais perdoáveis, de rapaz de escola!

Acompanharam-no, com efeito, outros moços tão pouco reflexivos
e tão pouco poetas como ele. Apenas menos declaradamente seguiu a corrente,
a que afluíam também caudais da Lenda dos séculos, de
Victor Hugo, e da Visão dos templos, do Sr. Teófilo Braga, o
Sr. Sílvio Romero (Cantos do fim do século, Rio de Janeiro,
1878). Pelo nome que justamente adquiriu nas nossas letras, e pela sua mesma
obra poética desta errada tendência, foi talvez o Sr. Sílvio
Romero o mais considerável destes poetas. Sem nenhuma superioridade,
mas também sem tamanha insuficiência quanto lhe assacaram, versificou
noções científicas, pensamentos filosóficos, conceitos
históricos, opiniões sociais com maior ardor que sucesso. Esta
poesia científica de que Martins Júnior se fizera o arauto (Poesia
científica, Recife, 1883), e que poucos mais cultores teve além
dele e do Sr. Sílvio Romero, e nenhum certamente credor de estimação,
era ainda, por muitos aspectos, um remanescente do condoreirismo. Acabada
a guerra do Paraguai e esgotado um dos principais estimulantes desta maneira
poética, exatamente quando novas idéias científicas e
filosóficas nos chegavam da Europa e começava aqui ao menos
o momento de cândida fé na ciência que durou até
há pouco, foi esta, por isso mesmo que pouco sabida, que alvoroçou
a mocidade.

É este o grande mal da literatura brasileira: que por circunstâncias
peculiares à nossa evolução nacional, ela tem sido sobretudo,
quase exclusivamente até, feita por moços, geralmente rapazes
das escolas superiores, ou simples estudantes de preparatórios, sem
o saber dos livros e menos ainda o da vida. Ora a literatura, para que valha
alguma cousa, há de ser o resultado emocional da experiência
humana. A nossa tem principalmente sido uma literatura de inspiração
e fundo, mais livrescos que vividos.


Capítulo XVII

O TEATRO E A LITERATURA DRAMÁTICA

SENÃO COMO LITERATURA, como espetáculo data o teatro no Brasil
do século do descobrimento. Foram seus inventores ou introdutores aqui
os jesuítas. Na sua obra de catequese e educação, a mais
inteligente sem dúvida que jamais se fez, recorriam esses padres, desde
a Europa, a todos os recursos, ainda os mais grosseiros, de sugestão.
Desses foram as grandes solenidades, meio profanas, meio religiosas, dos seus
colégios, com representações, recitações,
cânticos e danças e espetáculos a que já podemos
chamar de teatrais. Mediante estes, os seus mais rudes palcos achariam acaso
ouvintes mais caroáveis que o seu púlpito.

Desde o século XVI, na citada Narrativa epistolar de Fernão
Cardim e em outros cronistas, no século XVII, nos longos títulos
dos poemas de Gregório de Matos142 e em mais de um noticiador do Brasil
de então, e com freqüência maior nos cronistas do séeacute;culo
XVIII, encontram-se notícias desses espetáculos, que uma crítica
incompetente pretendeu arvorar em início do nosso teatro.

142″A umas comédias que se representaram no sítio de Cajaíba”.
“A uma comédia que fizeram os pardos confrades de N.S. do Amparo”.
MS. 1-5-1-29 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Desses talvez o primeiro de que há notícia foi o que o Padre
José de Anchieta realizou em S. Vicente, em 1555, fazendo representar
por índios seus catecúmenos e portugueses, em tupi, e em português,
o auto da Pregação universal, ruim arremedo dos “autos
de devoção” que se representavam no Reino, dos quais o
contemporâneo Gil Vicente deixou os melhores exemplares.

Mas nem esse pobre auto, nem outros que se lhe seguiram, representados em
estabelecimentos jesuíticos ou alhures, não são propriamente
teatro no sentido da literatura dramática. Todos eles desapareceram
sem deixar prole, nem seqüência.

As representações ou espetáculos teatrais, que aqui
mais tarde se viram, e de que há notícias desde os meados do
século XVIII, de comédias, entremezes, momos, loas, portugueses
e espanhóis, ou, quem sabe?, já produto colonial, nenhuma afinidade
teriam com os autos jesuíticos ou quejandos. Desde, pelo menos, a segunda
metade do século XVIII que em festas públicas celebradas por
ocasião da exaltação ao trono de reis portugueses, ou
de nascimentos, desposórios principescos, se faziam aqui representações
teatrais, em geral de peças espanholas, como também sucedia
na metrópole. Em 1761, na Bahia, por motivos dos esponsais da futura
D. Maria I, foi representado um Anfitrião, acaso o mesmo do nosso engenhoso
e desgraçado patrício Antônio José.143

Destas representações, e sempre por idênticos motivos,
em outras partes do Brasil, ainda em antes da fundação da Casa
da Ópera no Rio de Janeiro, em 1767, se encontram notícias nas
crônicas e relatos contemporâneos. Se não é ainda
possível asseverar que Alvarenga Peixoto, um dos poetas da plêiade
mineira, tenha de fato composto um drama Enéias no Lácio e traduzido
a Mérope, de Maffei, e, menos ainda, que por volta de 1775 estes se
hajam representados na referida Casa da Ópera, não parece duvidoso
que outro poeta do mesmo grupo, Cláudio Manoel da Costa, tenha composto
“poesias dramáticas” que, segundo declaração
sua, se tinham “muitas vezes representado nos teatros de Vila Rica, Minas
em geral e Rio de Janeiro” e feito “várias traduções
de dramas de Metastásio”.144

Nesses teatros, de existência forçosamente precária,
e atividade esporádica e intermitente, eram principalmente, tal qual
como em Portugal, peças espanholas que se representavam. Quando ele
começou, já ali mesmo se não representava mais Gil Vicente.
O teatro português vivia de peças estrangeiras, e menos de entremezes
e óperas nacionais — alguma coisa como o moderno vaudeville francês
— sendo as principais e melhores destas as do Judeu, cuja popularidade
foi grande e que, sem o nome do seu malogrado autor, se representavam freqüentemente
no Reino, e porventura também no Brasil. Este teatro, pois, de brasileiro
só tem a circunstância de estar no Brasil. O teatro brasileiro
propriamente dito, de autores, peças e atores brasileiros ou abrasileirados,
que fosse já um produto do nosso gênio e do meio, é, por
assim dizer, de ontem. Pode existir quem o tenha visto nascer.

Como simples curiosidade histórica, uma história exaustiva
de teatro brasileiro, compreendendo o espetáculo e a literatura, podia,
porventura devia, recordar essas primeiras representações. Nessa
relação caberiam os autos, diálogos, loas e quejandos
espetáculos dados nos estabelecimentos jesuíticos e em festividades
públicas ou particulares nos tempos coloniais. Há para tal notícia
material bastante em documentos contemporâneos. Não existe, porém,
um só de literatura dramática, por onde possamos avaliar-lhe
a importância e mérito. Os primeiros que apareceram são
de 1838 para cá, os dramas ou tragédias de Magalhães
e as comédias ou farsas de Martins Pena.

Foi o Romantismo, com o qual se iniciou o que já podemos chamar de
literatura nacional, o criador também do nosso teatro. Este ficou de
todo estreme de qualquer influxo daquelas remotas e, pode dizer-se, ignoradas
representações coloniais. Na sua primeira fase produziu o Romantismo
Gonçalves de Magalhães e Martins Pena, e logo depois Macedo
e José de Alencar. Simultaneamente apareceu aqui um grande ator que,
com seu nativo talento e ardor pela arte dramática, realizou no palco,
mediante companhias em que chegou a interessar os mesmos estadistas do tempo
e outros conspícuos cidadãos, e com aplauso e colaboração
do público, o teatro brasileiro. O nome desse ator, João Caetano
(+ 1863), chegou até nós com tal auréola de admiração
e de glória, tão saudosamente lembrado, que se lhe dispensa
a biografia ou mais positivos testemunhos do seu valor real. A impressão
que ele causou nos seus contemporâneos, impressão profunda e
duradoura, basta para assegurar-lhe a primazia na realização
cênica daqueles e doutros autores e, portanto, na criação
de “teatro” aqui.

Como literatura, o seu criador foi, segundo vimos, Gonçalves de Magalhães,
com o seu Antônio José ou o poeta e a Inquisição,
tragédia em verso, em 5 atos, representada pela primeira vez por João
Caetano e sua companhia, no seu teatro da Praça da Constituição
(depois Teatro de S. Pedro de Alcântara) em 13 de março de 1838.
Esta data asseguraria a Magalhães e ao Brasil a prioridade do teatro
romântico na literatura da nossa língua. A peça com que
Garrett inaugurou o moderno teatro português, Um auto de Gil Vicente,
foi representada em Lisboa quatro meses depois da do nosso patrício.
Esta prioridade, porém, pouco mais é que cronológica.
O drama de Garrett, sobre ter outro valor literário, é bem mais
romântico do que a tragédia de Magalhães. Aproveita, entretanto,
a primazia da data, para comprovar que não foi de Portugal que Magalhães
recebeu o impulso renovador, e portanto que o nosso Romantismo, por ele inaugurado
na poesia com os Suspiros poéticos (1836), compostos e publicados no
foco do romantismo latino, Paris, se originou de outras fontes que a portuguesa.

Magalhães como Porto Alegre, seu amigo e êmulo nesta renovação,
não eram por temperamento e índole literária dois verdadeiros
românticos, quanto o seriam por exemplo Gonçalves Dias e Alencar.
Foram-no antes de estudo e propósito que de vocação.
A sua íntima característica literária seria antes o pseudoclassicismo
ou o serôdio arcadismo do fim do século XVIII e princípio
do XIX em Portugal e alhures, e do qual Ponsard, em França, era no
teatro o mais eminente representante. Quando o Romantismo francês proclamava
a falência ou esgotamento da tragédia, substituindo-a pelo drama
em que os elementos da comédia se misturavam ao patético do
teatro trágico, Magalhães escrevia tragédias feitas ainda
segundo as clássicas regras aristotélicas. De fora parte a sobriedade
austera dos grandes moldes gregos, seguidos por Ferreira e Racine, e a inferioridade
do seu estro, renasciam estas no palco de S. Pedro de Alcântara, ao
gesto poderoso de João Caetano. Eram, porém, antes uns arremedos
da tragédia clássica do que o verdadeiro drama romântico
qual o conceberam Schiller e Hugo. Trasladando para o nosso teatro, e poderíamos
dizer para o teatro português, o drama shakespeariano, que é
o mais remoto e ilustre avoengo do Romantismo, fazia-o Magalhães das
descoradas versões com que Ducis amaneirou ao gosto francês o
teatro de Shakespeare. Mas Antônio José ou o poeta e a Inquisição,
que pelo tema moderno, pelo espírito liberal e sobretudo pelo título
é bem romântico, Olgiato, que o é de inspiração
e expressão, e o mesmo Otelo, deviam ficar na nossa literatura dramática,
se não no nosso teatro, como bons exemplares da nossa obra literária
nesse gênero. O importante, porém, estava feito, um belo exemplo
estava dado, uma fecunda iniciativa realizada, e não sem superioridade.
Atores brasileiros ou abrasileirados, num teatro brasileiro, representavam
diante de uma platéia brasileira entusiasmada e comovida, o autor brasileiro
de uma peça cujo protagonista era também brasileiro e que explícita
e implicitamente lhe falava do Brasil. Isto sucedia dezesseis anos após
a Independência, quando ainda referviam e bulhavam na jovem alma nacional
todos os entusiasmos desse grande momento político e todas as alvoroçadas
esperanças e generosas ilusões por ele criadas. Nada mais era
preciso para que na opinião do público brasileiro, em quem era
ainda então vivo o ardor cívico, aquele teatro com os que nele
oficiavam como autores e atores, tomasse a feição de um templo
onde se celebrava literariamente a pátria nova.

Martins Pena, como aliás todos os românticos, aproveitou deste
sentimento. A individualidade que certamente tinha, a sua originalidade nativa,
em uma palavra a sua vocação, livraram-no, porém, de
ceder ao duplo ascendente de Magalhães e de João Caetano, e
fizeram dele o verdadeiro criador do nosso teatro. Mais porventura que a Magalhães,
assegura-lhe este título a cópia de peças que escreveu
e fez representar, quer pela cena, quer pela imprensa, e, sobretudo, o seu
muito mais acentuado caráter nacional. Por tudo isso a obra teatral
de Martins Pena certamente influiu mais no advento do teatro nacional que
a de Magalhães.

Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro a 5 de novembro
de 1815 e faleceu em Lisboa a 7 de dezembro de 1848. A sua instrução
parece não ter tido método nem seqüência. Passou
pela Aula de Comércio então existente, e pela Academia de Belas-Artes.
Estudou línguas estrangeiras e completou consigo mesmo os seus estudos.
Cultivou também a música, que o ajudaria na composição
dos couplets que lhe exornam as peças. Foi empregado público
em dois ministérios e mais tarde adido à legação
brasileira em Londres, onde esteve quase um ano. Dando-se mal com o clima
londrino, veio já bastante doente para Lisboa e aí faleceu apenas
passado um mês. Seria, pois, mais culto e mais instruído pela
freqüentação de sociedades mais civilizadas que a da pátria
do que o deixam supor as suas comédias. Não se lhe vislumbra
na obra conhecida nada que revele algo de gênio teatral inglês
ou da literatura inglesa, nem de qualquer outra. A sua graça, pois
a tem em quantidade, é já a resultante da fusão aqui
da chalaça portuguesa com a capadoçagem mestiça, a graçola
brasileira, sem sombra da finura do espírito francês ou do humor
britânico. Esta sua imunidade, como a já verificada ao prestígio
de Magalhães e João Caetano, a despeito da predileção
pública pelo dramalhão e pela tragédia, está atestando
a individualidade própria, a inspiração nativa, a originalidade
de Martins Pena.145

Estreando no teatro após o grande sucesso de Magalhães, servido
por João Caetano, e os vários triunfos por este e seus companheiros
alcançados com os dramalhões românticos, e sem lhe dar
da voga deste teatro, antes seguindo o seu gênio e vocação,
como deve fazer todo o artista sincero, Martins Pena começa e prossegue
com a comédia. Ingenuamente, desartificiosamente, com observação
sem profundeza, mesmo banal mas exata e sincera, traz para o teatro —
pela primeira vez, note-se, porque o seu sucesso explica-o a só novidade
do seu feito — a nossa vida popular e burguesa e quotidiana do tempo.
Evidentemente não tem presunções nem propósitos
literários como os teve Magalhães; apenas vê claro, observa
com atenção e reproduz fielmente, com a naturalidade em que
se revela o escritor de teatro. E Martins Pena não é senão
isto, um escritor de teatro. Do autor dramático possui, em grau de
que se não antolha outro exemplo na nossa literatura, as qualidades
essenciais ao ofício e ainda certos dons, que as realçam: sabe
imaginar ou arranjar uma peça, combinar as cenas, dispor os efeitos,
travar o diálogo, e tem essa espécie de observação
fácil, elementar, corriqueira e superficial, mas no caso preciosa,
que é um dos talentos do gênero. Não raro tem o traço
psicológico do caricaturista, e o jeito de apanhar o rasgo significativo
de um tipo, de uma situação, de um vezo. Possui veia cômica
nativa, espontânea e ainda abundante, infelizmente, porém, (defeito
desta mesma virtude) com facilidade de se desmandar na farsa. Martins Pena
e Manoel de Almeida, o singular e malogrado autor das Memórias de um
sargento de milícias, são porventura os melhores, se não
os únicos, exemplos de espontaneidade literária que apresenta
a literatura brasileira.

A maior parte das peças de Martins Pena são antes farsas que
comédias. Independentemente dessa denominação, que ele
próprio lhes deu, a sua feição e estilo é de farsa.
Ele exagera o feitio cômico das situações e personagens,
acumula o burlesco sobre o ridículo, manifestamente no intuito de melhor
divertir, provocando-lhe o riso abundante e descomedido, o seu público.
É tradição que o conseguiu plenamente. Ainda hoje se
representam as comédias de Pena com o mesmo sucesso de franca hilaridade
que lhe fizeram nossos pais. A mais de meio século de distância,
lidas ou ouvidas, deixam-nos a impressão de representarem suficientemente
no essencial e característico o meio brasileiro que lhe serviu de modelo
e tema. E só talvez delas, em todo o nosso teatro, se poderá
dizer a mesma cousa.

Foi considerável, sobretudo em relação ao tempo, a atividade
literária de Martins Pena, exercida de 1838 a 1847. Além de
um romance e folhetins teatrais, de que apenas temos notícia incerta,
deixou vinte e tantas peças de teatro, das quais três dramas.
Dezenove pelo menos foram representadas e nove impressas, sendo algumas reimpressas,
ainda em vida do autor ou posteriormente. Ultimamente foram reeditadas em
um só volume, infelizmente com bem pouco cuidado editorial.146

O exemplo de Magalhães e Martins Pena frutificou. Dos românticos
da primeira hora, os principais, Norberto, Teixeira e Sousa, Porto Alegre,
Gonçalves Dias, Macedo e até Varnhagen, com fortuna e sucesso
diverso, em geral medíocre, escreveram também teatro. Alguns
além de Macedo, conseguiram ver-se representados. Já fica dito
da obra teatral de cada um deles, no que ela interessa à literatura.
São, porém, muitos os autores de peças de teatro de todo
o gênero escritas ou representadas nessa fase da nossa literatura e
na que imediatamente se lhe segue. Desses apenas um ou outro nome não
está de todo esquecido. Tais são os de Carlos Cordeiro, Castro
Lopes, Luís Burgain, Pinheiro Guimarães, Agrário de Meneses,
Quintino Bocaiúva, cujo teatro é de 1850 a 1870. Estes mesmos
são apenas uma recordação cada dia mais apagada, pois
não concorre para avivá-la a sua obra dramática que não
mais se representa e ninguém lê.

Nesse momento, que corresponde à segunda fase do Romantismo, as duas
principais figuras do nosso teatro foram José de Alencar e Macedo,
já atrás como tais estudados. São dois talentos diversos,
dois engenhos quase opostos. Há mais arte, mais gravidade, maior sentimento
e respeito da literatura no primeiro que no segundo. Mas também menos
espontaneidade, menos naturalidade, menor vis comica e somenos dons de autor
de teatro. Macedo é o legítimo continuador de Martins Pena,
com melhorias de composição e mais largo engenho dramático.
É, sobretudo, principalmente comparado com Alencar, um autor burguês
e para a burguesia, se é lícito o uso de tais expressões
aqui. Na representação da vida burguesa, ou antes da vida medíocre
brasileira, nos deixou Macedo no seu teatro, como no seu romance, de parte
os seus nunca emendados defeitos de linguagem e estilo, exemplares estimáveis.
Geralmente tem as suas peças boas qualidades teatrais, e há
atos seus, como o primeiro de Luxo e vaidade, excelentes. A torre em concurso,
que criou o tipo popular do capitão Tibério, embora descambe
na farsa, tem todo o sabor de uma crítica hilariante feita às
nossas brigas políticas, das quais é ótimo retrato. Nesta,
como na maioria de suas peças, mormente nas estremes de presunções
literárias e portanto mais espontâneas e naturais, enredo, tipos,
situações, expressão, é tudo muito nosso. Quaisquer
que sejam as deficiências e defeitos do teatro de Macedo, a vida brasileira
ou mais propriamente a vida carioca do seu tempo, acha-se nele, como aliás
no seu romance, sinceramente representada.

Alencar, natureza literariamente mais fina que Macedo, ao invés deste
leva para a literatura vistas de artista e de pensador, aponta mais alto.
O seu teatro não quer ser, como o de Pena ou o de Macedo, a simples
representação elementar da vida nacional. Representando-a como
melhor lhe permite o seu congênito idealismo, pretende também
educar, Para Alencar, o teatro, segundo o conceito no seu tempo incontestado,
é uma escola. Cabe-lhe a honra de haver trazido para a cena brasileira
o que depois se chamou o teatro de idéias. Mãe (1860), drama
cheio de defeitos, mas não sem intensidade e por partes belo, é
uma das primeiras manifestações literárias do sentimento
nacional contra a escravidão. O crédito (1858) trouxe para o
nosso teatro a questão do dinheiro, que com Dumas Filho, começara
a ser um dos temas do teatro francês. Também as questões
sociais e morais contemporâneas acham eco ou encontram cabida no teatro
de Alencar. No mais agudo da questão religiosa aqui (1875), ele fez
representar o Jesuíta, malograda concepção de um tipo
que o teatro não comportava tal qual ele o concebeu, ao contrário
não só do que parece ser a verdade, mas, o que é o importante,
do conceito vulgar do jesuíta. E é a inferioridade do teatro
que ele não comporta o que abertamente contraria esses preconceitos.

Alencar, que tinha muito menos graça e veia cômica que Pena
e Macedo, escreveu também puras comédias de costumes, e uma
delas ao menos ficou na nossa literatura teatral com a expressão arguta
e espirituosa de um grave mal da nossa sociedade, não de todo acabado
com a extinção da escravidão: a influência nefasta
do moleque, da “cria da casa”, fâmulo da nossa intimidade,
intrometido na nossa vida, e que, graças à nossa proverbial
bonacheirice ou desleixo e aos nossos costumes extremamente igualitários,
toma nela uma situação desmoralizadora do decoro doméstico.
É o Demônio familiar, réplica indígena do criado
ou lacaio da antiga comédia italiana, francesa e ainda portuguesa,
mas na de Alencar, criação original, filha somente da sua observação,
da qual, porém, nem ele nem os seus êmulos não souberam
tirar todo o proveito que porventura ela comportava.

O período da maior atividade de Alencar e Macedo, como escritores
dramáticos, vai de meados do decênio de 50 aos fins do de 70.
É esse também o de mais vida do nosso teatro, quer como espetáculo,
quer como literatura dramática. Com estes dous escritores concorreram,
além de alguns dos já citados (Quintino Bocaiúva, Agrário
de Meneses, Pinheiro Guimarães e outros somenos), Augusto de Castro,
Aquiles Varejão, França Júnior, que sem notável
mérito literário, tiveram entretanto relativo e não de
todo imerecido sucesso no palco.

Agrário de Menezes, baiano (1834-1863), goza de uma reputação
exagerada que a literatura da sua obra absolutamente não justifica.
O seu Calabar, tão gabado quão pouco conhecido, como aqui muito
freqüentemente sucede, não lhe abona nem a imaginação
criadora, nem o estro poético. Como escritores de teatro, mais valor
têm Pinheiro Guimarães e França Júnior. Aquele
como dramaturgo, que principalmente foi, tem os mesmos defeitos de Macedo
e Alencar, com menos espontaneidade que o primeiro e pior estilo que o segundo.
França Júnior, com muito da veia cômica popular de Martins
Pena, a mesma observação superficial dos tipos e ridículos
sociais, a mesma graça um pouco vulgar no apresentá-los, carece
da ingenuidade que realça o engenho de Pena. No teatro de França
Júnior sente-se o trato com o teatro cômico francês. Em
todo caso, é com Martins Pena e Macedo um dos nossos autores dramáticos
ainda porventura representáveis.

No assinalado período não só muitos dos nossos literatos
escreveram para o teatro e acharam quem lhes representasse as peças,
mas quem os fosse ouvir, o que nunca mais aconteceu. A nossa bibliografia
teatral de então é a mais copiosa de toda a nossa literatura
e para ela não concorreu somente o Rio de Janeiro, mas outras capitais
brasileiras, como Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco,
Bahia, S. Paulo, Porto Alegre. Havia pelo teatro vernáculo, brasileiro
ou português, ou estrangeiro nacionalizado por traduções
aqui feitas (e numerosas foram então as traduções do
francês), interesse e curiosidade que depois desapareceram de todo com
a concorrência do teatro estrangeiro, trazido por companhias adventícias.
O espetáculo bem mais divertido e interessante por elas apresentado
foi um tremendo confronto para o nosso teatro, que também não
tinha mais para ampará-lo aquele antigo ingênuo sentimento nativista,
que tanto aproveitara aos iniciadores do nosso teatro e da nossa literatura
em geral. Ao contrário com o desenvolvimento das nossas comunicações
com a Europa pela mais freqüente e mais rápida navegação
a vapor, começara a prevalecer na nossa “sociedade” o gosto
exótico. Antes floresceram várias empresas teatrais que ofereciam
aos autores oportunidades de se fazerem representar e até lhes desafiavam
o engenho. Nas principais capitais do país, companhias locais ou aventícias
era certo darem em estações adequadas espetáculos com
peças nacionais, portuguesas ou traduzidas. Dos atores que as compunham
escaparam alguns nomes, famosos no seu tempo, e que ainda vivem na tradição.
Além dos da primeira hora do nosso teatro e seus fundadores, João
Caetano, Florindo, Estela Sezefreda, Costa, citam-se mais os de Joaquim Augusto,
Furtado Coelho, Germano Amoedo, Vicente de Oliveira, Eugênia Câmara,
Ismênia dos Santos, Manuela Luci, Xisto Baía, Corrêa Vasques
e outros.

Produto do Romantismo, o teatro brasileiro finou-se com ele. Parece-me verdade
que não deixou de si nenhum documento equivalente aos que nos legou
o Romantismo no romance o na poesia. A literatura dramática brasileira
nada conta, ao meu ver, que valha o Guarani ou a Iracema, a Moreninha ou as
Memórias de um sargento de milícias, a Inocência ou Brás
Cubas, os Cantos de Gonçalves Dias ou os poemas da segunda geração
romântica.

O modernismo, última fase da nossa evolução literária,
nenhum documento notável deixou de si no nosso teatro ou na nossa literatura
dramática. O seu advento coincidiu com a inteira decadência de
ambos pelos motivos apontados. O naturalismo, à feição
do modernismo que poderia ter influído nesse gênero de literatura,
também não produziu nada de distinto nela. Com excelentes intenções
e incontestável engenho para o teatro, Artur Azevedo (1856-1908) não
conseguiu senão tornar mais patente o esgotamento do nosso, pela descorrelação
entre a sua boa vontade e a sua prática de autor dramático.
Vencidos pelas condições em que o encontraram, e que não
tiveram energia suficiente para contrastar, Artur Azevedo e os moços
seus contemporâneos e companheiros no empenho de o reformarem (Valentim
Magalhães, Urbano Duarte, Moreira Sampaio, Figueiredo Coimbra, Orlando
Texeira e outros) sem maior dificuldade trocaram as suas boas intenções
de fazer literatura dramática (e alguns seriam capazes de fazê-la)
pela resolução de fabricar com ingredientes próprios
ou alheios, o teatro que achava fregueses: revistas de ano, arreglos, adaptações,
paródias ou também traduções de peças estrangeiras.
Intervindo o amor do ganho, a que os românticos tinham romanticamente
ficado de todo estranhos, baixou o nosso teatro em proporções
nunca vistas, e, por uma ironia das cousas, justamente no momento em que Artur
Azevedo e os seus citados companheiros lhe pregavam a regeneração
nos jornais onde escreviam. Uma ou outra peça de valor literário
ou teatral que estes autores fizeram não bastou para levantá-lo.
O público se desinteressava, e continuava a desinteressar-se, pelo
que se chama teatro nacional. E como só acudisse àquele teatro
de fancaria, de arreglos, revistas de ano e paródias, esses escritores
pouco escrupulosos tiveram de servir esse público consoante o seu grosseiro
paladar.

Apesar da sua grande inferioridade relativamente à ficção
novelística e à poesia, o nosso teatro e literatura dramática
têm feições que não devem ser desconhecidas e desatendidas
da crítica. Durante a época romântica, foi intencional
e manifestamente nacionalista, e o foi ingênua e naturalmente, de assuntos,
temas, figuras e, o que mais é, de sentimento. Ainda imediatamente
depois inspirou-o o mesmo sentimento. Assim, as principais questões
que agitaram o espírito público pelo fim do Romantismo e logo
depois a guerra do Paraguai, a questão religiosa, a da escravidão,
repercutiram no nosso teatro, quer da capital, quer das províncias.
Não são poucas as peças, comédias e dramas, a
que estas questões forneceram temas ou deram motivo. Com todos os seus
defeitos, apresenta o teatro brasileiro de 1850-1880, certos caracteres ou
simples sinais que lhe são próprios, e até lhe dão
tal qual originalidade, tirada da sua mesma imperfeição. Canhestros
embora, e por via de regra imitadores do teatro francês, os seus autores
não são sempre copistas servis, e sobrelevam o seu arremedo
com um íntimo sentimento do meio, que ainda não tinha sido de
todo amesquinhado ou extraviado pelo estrangeirismo logo depois triunfante.
Na comédia, em que se mostravam mais capazes, talvez porque em Martins
Pena se lhe deparou modelo apropriado, há em geral boa observação,
representaç&atatilde;o exata e dialogação conforme as situações,
personagens e fatos. Por via de regra tudo isto falta ao drama brasileiro,
que ofende sempre o nosso sentimento da verossimilhança, à qual
mais do que nunca somos hoje sensíveis, e nos deixa infalivelmente
uma impressão de artificialidade. Seja defeito da mesma sociedade dramatizada,
seja falha do engenho dos nossos escritores de teatro, é fato que nenhum
nos deu já uma cabal impressão artística da nossa vida
ou representação dela que não venha eivada de mal disfarçados
exotismos de inspiração, de sentimento e de estilo. Demasiados
modismos estrangeiros de costumes, de atos, de gestos e de linguagem a desfiguram
como definição que presumem ser dessa vida e lhe viciam a expressão
literária. A nossa sociedade, quer a que se tem por superior, quer
a média, não tem senão uma sociabilidade ainda incoerente
e canhestra, de relações e interdependências rudimentares
e limitadas. Poucos e apagados são por ora os conflitos de interesses
e paixões que servem de tema ao drama moderno. Carece também
ainda de estilo próprio nas maneiras e na linguagem. Tendo perdido
no arremedo contrafeito do estrangeiro, isto é do francês, o
seu caráter cômico, não adquiriu ainda feições
peculiares que lhe facultem a expressão teatral. Quanto à literária,
esta é no nosso teatro, e foi sempre, ainda mais defeituosa e insuficiente
do que no nosso romance.

Com crassa ignorância ou estólido menosprezo da nossa história
literária, estão agora mesmo tentando criar um “teatro
nacional” ab ovo, como se nada houvesse feito antes. As amostras até
agora apresentadas desta tentativa não autorizam ainda, acho eu, alguma
esperança no seu bom sucesso.


Capítulo XVIII

PUBLICISTAS, ORADORES, CRÍTICOS

SEGUNDO TEMOS VERIFICADO, no período colonial compunha-se sobretudo
a nossa literatura de poesia, lírica ou épica, com alguma rara
e insignificante amostra da dramática, e mais de crônicas, notícias
e informes do país, história, obras de edificação
e moral religiosa e sermões. Com o Romantismo, com que lhe iniciamos
o período nacional, apareceram outros e mais variados gêneros
literários, a filosofia, a crítica e a história literária,
o teatro, a oratória política e parlamentar, a ficção
em prosa e as vernaculamente chamadas questões públicas, ou
publicística, segundo o barbarismo em voga.

Esta como aquelas duas variedades novas de oratória, não podiam
aliás existir senão num regime de livre opinião e publicação
de pensamento que só com a Independência tivemos. O estabelecimento
da imprensa conseqüente ao da sede da monarquia portuguesa aqui, em 1808,
sobre haver servido para estimular o sentimento nacional excitado por essa
mudança política, veio favorecer o advento de novas expressões
da nossa atividade mental, naturalmente influída por esse mesmo alvoroço.
Não foram poucas, embora sejam na maioria somenos, as publicações
de assuntos econômicos, políticos e sociais feitas pela Imprensa
Régia, depois Imprensa Nacional, desde o ano da sua fundação
até o da Independência, já originais, já traduções.

O movimento político que antecedeu e seguiu a Independência
suscitou vocações de estudo e discussão das questões
públicas de imediato interesse do país. Aparece então
o mais célebre dos nossos publicistas, o criador dos estudos econômicos
e sociológicos no Brasil, José da Silva Lisboa, visconde de
Cairu, de quem já dissemos. Vêm logo depois ou simultaneamente
com ele, os jornalistas cujos nomes acaso impertinentes na história
da nossa literatura, qual a concebemos, pertencem à da nossa formação
política, e tão notáveis se tornaram que ainda hoje,
não obstante nunca mais lidos, nos são familiares: Hipólito
da Costa (tinha o comprido nome de Hipólito José da Costa Pereira
Furtado de Mendonça), o fundador e redator do Correio Brasiliense (1808-1822);
Januário da Cunha Barbosa, então muito apreciado orador sagrado
e poeta, e Joaquim Gonçalves Ledo, redatores do Revérbero Constitucional
Fluminense (1821-1822); José Bonifácio, o padrinho e o mais
eminente estadista da Independência, com o seu Tamoio (1823), e por
fim, já ao cabo do período, Evaristo Ferreira da Veiga, da Aurora
Fluminense (1828-1835), jornal grandemente influente no seu tempo, sem falar
dos escritores ou simples foliculários dos numerosos e efêmeros
jornais dessa época agitada. Já vimos que uma revista de exíguo
formato, mas de nome expressivo e de intenção claramente nacionalista,
o Patriota (1813-1814), fundada e dirigida pelo prestante polígrafo
Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, atuou utilmente na literatura
imediatamente anterior ao Romantismo, agrupando como seus colaboradores os
homens de melhores letras do tempo.

Abundaram no momento da fundação do Império os jornais
e panfletos políticos ou simplesmente facciosos que mais que idéias
representavam as paixões de momento e lhes traziam no estilo os ardores
e violências. A literatura, porém, não recolheu nenhum
deles. Ainda os que com esses, ou posteriormente com a Aurora, mais doutrinais
e mais bem escritos, se tornaram relevantes pela ação que acaso
tiveram, ou somente pela impressão que porventura fizeram, redigidos
alguns por indivíduos consideráveis, esses mesmos carecem de
virtudes literárias que os façam viver senão como documentos
para a nossa história política ou testemunhos do nosso pensamento
político contemporâneo. Entre tais opúsculos e panfletos,
citam-se como mais notáveis, isto é, como tendo tido mais repercussão
no seu tempo, Carta aos eleitores, de Bernardo de Vasconcelos (1828); Facção
aulica, por Firmino Rodrigues Silva (1847); Libelo do povo, por Timandro Sales
Torres Homem (1849); Ação, reação, transação,
de Justiniano Rosa da Rocha (1855); Conferência dos divinos, por Antônio
Ferreira Viana (1867); e, mais notavelmente, as Cartas de Erasmo, de José
de Alencar (1865-66), às quais o grande nome literário do autor
emprestou merecimento que talvez não tivessem.

Contemporâneos destes, de uma atividade literária dispersiva
e passada quase toda na província, a de Pernambuco, donde ambos eram,
foram dois escritores cujos nomes tiveram certa popularidade, não de
todo extinta, Miguel do Sacramento Lopes Gama (1791-1852) e José Inácio
de Abreu e Lima (1796-1869). O primeiro, além de numerosas traduções
do francês e do italiano, de obras de filosofia, religião, economia
política, educação, nenhuma importante, deixou poemas
herói-cômicos e satíricos, e prosas também satíricas,
mas é sobretudo conhecido pelo seu jornal da mesma natureza O carapuceiro
(Pernambuco, 1832-1847). Foi autor didático e um dos escritores mais
corretos do seu tempo. Abreu e Lima deixou na sua terra natal, e ainda no
Brasil ilustrado, o renome de um polígrafo notável. Escreveu
com efeito compêndios de história do Brasil, polêmica literária
e religiosa, o primeiro livro sobre socialismo aqui publicado (O socialismo,
Recife, 1855, 352 págs.), obras de direito ou sobre questões
públicas, estudos diplomáticos e médicos, etc., tudo
com certo vigor de estilo, mas com graves falhas sob o aspecto da linguagem.

Quando o Império sai vitorioso das dificuldades dos seus primeiros
vinte e cinco anos, e o Romantismo triunfara inteiramente com esta literatura
quase somente política, entram a aparecer escritos de outro e mais
alto interesse e valor sobre questões públicas, problemas de
administração e economia nacional. Versaram-nos principalmente
jornalistas muito apreciados no seu tempo e cujos nomes chegaram até
nós ainda celebrados, como Justiniano da Rocha, Saldanha Marinho, Quintino
Bocaiúva (que fez também literatura escrevendo teatro e crítica
e dirigindo revistas e empresas editoriais), Ferreira Viana, Tôrres
Homem, José Maria do Amaral (também bom poeta), José
de Alencar, Otaviano de Almeida Rosa, Silva Paranhos. Alguns destes e outros
cujos nomes se lhes poderia razoavelmente juntar, se haviam ensaiado como
publicistas nas suas províncias, onde também floresceu esta
literatura política. Como dentre essas é o Maranhão aquela
cujo concurso foi mais considerável e precioso para o nosso movimento
literário do Romantismo, foi também essa província que
principalmente contribuiu com alguns nomes, dos quais o maior é o de
João Lisboa, para aumentar a lista dos publicistas brasileiros dessa
época. Em todo o país, porém, nomeadamente em Pernambuco,
Bahia, S. Paulo e Minas, foi então notável a obra da imprensa
jornalística, que produziu alguns escritores de mérito, cujos
nomes, apesar da forçosa caduquez da sua literatura, não estão
ainda de todo esquecidos.

O publicista de livros de maior capacidade e de obra mais considerável
desde o Romantismo ao Modernismo foi, além de João Lisboa, cujo
Jornal de Timon literariamente o sobreleva a todos, Tavares Bastos (Aureliano
Cândido, 1839-1875). Consta a sua obra de Cartas do solitário,
estudo sobre várias questões públicas (1863), O Vale
do Amazonas, estudos de economia política, social e estatística
(1866), A Província (1870), estudo da mesma natureza sobre a descentralização
política da nação, e mais meia dúzia de obras
menores. Distingue-as a todas a quase novidade de tais estudos aqui, onde
apenas se depararia algum feito com a mesma objetividade, a mesma sincera
e desinteressada aplicação, a mesma seriedade de intuitos e
de pensamento, estreme de paixões partidárias ou tendências
egoísticas. Se Tavares Bastos se não distingue por notáveis
qualidades de escritor, o seu estímulo é todavia fácil
e corrente, e a sinceridade dos seus estímulos e a sua íntima
convicção lhe dão não raro vigor e brilho. Mais
do que um simples penteador de frases, foi um disseminador de idéias,
que germinaram e que aí estão em parte realizadas. Foi em suma
um precursor, de fato mais eficaz do que muitos cujos nomes andam injustamente
mais celebrados que o seu.

Mas obras como as suas, quando porventura não as salvam qualidades
excepcionais de pensamento e expressão, perdem, com a oportunidade
que as motivou, o melhor do seu interesse. Se a história literária
pode lembrá-las como um documento a mais da atividade mental de uma
época, que ajuda a lhe completar a feição e relevar a
importância, a literatura — à qual não se incorpora
de fato se não o que por virtudes de ideação e de forma
tem um interesse permanente — as deixa de lado.

Quando Tavares Bastos publicava o seu último livro, em 1870, iniciava-se
já o movimento geral que ia modificar a mente brasileira e as suas
manifestações escritas, e simultaneamente a feição
política da nação. Dele era importante a questão
que aqui se chamou do elemento servil e que no seu mais saliente aspecto,
a emancipação dos escravos, tanto interessou e tão intensamente
alvoroçou o país. Dela há impressões notáveis,
e até fortes, na literatura nacional, no romance, no teatro, na poesia,
na oratória e nos estudos econômicos e sociais. Um poeta que
acaso poderia vir a ser grande, Castro Alves, celebrizou-se então como
“cantor dos Escravos”, título do poema em que lhes idealizava
a miséria da condição e os sofrimentos. A publicística
com este objeto foi abundante, e nela a declamação, a retórica,
a oratória presumidamente eloqüente porque retumbante e ruidosa,
deram-se largas. Além de livros como os de Perdigão Malheiros,
A escravidão no Brasil, ensaio histórico, jurídico, social
(Rio de Janeiro, 1866-67), aliás de distinto merecimento, e que antecedeu
e preparou a fase decisiva do movimento abolicionista, destacam-se outros
de propaganda direta como os de Joaquim Nabuco, e os que procuravam servir
servindo à causa do desenvolvimento econômico do país,
mediante outros fatores e processos que não o escravo e a escravidão,
pelos seus autores condenados e combatidos. São exemplo dessa literatura
subsidiária da propaganda abolicionista Trabalhadores asiáticos,
de Salvador de Mendonça, e Garantia de juros e Agricultura nacional,
de André Rebouças. É, porém, o Abolicionismo,
de Joaquim Nabuco (1833), a melhor manifestação literária
do gênero e momento.

Também a questão religiosa, como aqui impropriamente se chamou
ao conflito de dois bispos com o governo imperial por motivo de interdição
por aqueles, sem beneplácito deste, de irmandades religiosas, deu lugar
ao aparecimento de livros e folhetos discutindo a questão. É
ao cabo somenos o valor doutrinal e literário dessa literatura. O mérito
principal da discussão acesamente travada entre regalistas defensores
do poder temporal, ultramontanos propugnadores do pleno direito da Igreja
e livres-pensadores hostis a ambos, foi ter despertado aqui o eco de controvérsias
histórico-político-religiosas travadas na Europa e atingindo
à mesma religião oficial, desde então mais desenganadamente
posta em debate público, não só no seu privilégio,
mas na sua essência. Como principais documentos da contenda ficaram:
A Igreja e o Estado e vários opúsculos com o mesmo motivo por
Ganganeli (Joaquim Saldanha Marinho, 1873-1876), Direito contra o Direito,
pelo bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa (1874), A Igreja
no Estado, por Tito Franco de Almeida (1874), Missão especial a Roma
em 1873 (1881) e o Bispo do Pará ou a missão a Roma (1887),
pelo Barão de Penedo (Francisco Inácio de Carvalho Moreira),
e a longa, exaustiva e sábia Introdução posta pelo Sr.
Rui Barbosa à sua tradução do famoso panfleto de Janus
(o cônego Suíço-Alemão Doellinger), O Papa e o
Concílio (1877). Também o interesse e sabor destes e de muitos
outros escritos do mesmo motivo e ocasião, dos quais apenas poucos
terão algum mérito intrínseco, desapareceram com as circunstâncias
que os produziram.

Cabe aqui a interessantíssima figura de Joaquim Nabuco. Historiador,
crítico, sociólogo, economista, orador parlamentar ou tribuno
popular e moralista, em tudo foi essencialmente um publicista, se por publicista
podemos também entender o escritor que escreve por amor e interesse
da causa pública e cuja íntima inspiração é
política. Temperamento de raiz político, espírito curioso
e interessado pela causa pública e nimiamente sensível aos seus
movimentos e manifestações, incapaz de satisfazer-se de temas
puramente literários, Joaquim Nabuco, na maioria e no melhor do que
escreveu, é um escritor político no mais alto significado da
expressão. Nele, porém, exemplo talvez único entre os
nossos publicistas, o talento literário realçou de tal maneira
a feição política, que era a principal do seu espírito,
que fê-lo um verdadeiro, um grande escritor. Constituía-lhe o
talento literário, além da imaginação, que é
uma das suas faculdades dominantes, grande riqueza de ideação,
aumentada da facilidade de apropriar idéias e afeiçoá-las
consoante o seu próprio espírito. Tinha mais peregrina distinção
de pensamento e notável capacidade de idéias gerais. E os seus
dons naturais de expressão graciosa e elegante, eloqüente e comovida,
eram tais que não alcançaram minguá-las as suas insuficiências
na língua. Se não é, como Macedo, Alencar ou Machado
de Assis, um literato, esses dons e mais as suas faculdades estéticas,
o seu fino sentimento artístico, fizeram dele um dos mais completos
e insignes homens de letras que temos tido.

Ao contrário da máxima parte do escritores brasileiros, que
quase todos tiveram origens medíocres senão ínfimas,
Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo procedia de estirpe fidalga,
da antiga nobreza territorial de Pernambuco, e era de uma família senatorial.
Seu avô e seu pai foram senadores do Império e ocuparam nele
altas situações de administração pública.
Nasceu na capital daquela Província em 19 de agosto de 1849. Na respectiva
faculdade formou-se em Direito. Diplomata no princípio da sua vida
pública, como tal acabou embaixador em Washington, em 17 de janeiro
de 1910. Entrementes foi jornalista, parlamentar, propagandista da abolição
da escravidão, escreveu versos e ensaios, fez crítica e conferências
literárias e políticas, publicou folhetos e livros, propugnou
a Confederação das províncias sob o Império. Caído
este, Joaquim Nabuco fez-se por alguns anos o seu mais caloroso e brilhante
paladino. A sua viva imaginação, a sua ativa inteligência,
o seu profundo gosto de ação pública e de notoriedade
não lhe consentiam, ainda mau grado seu, deixar sem emprego um talento
em toda a sua força e um espírito pouco feito para a abstenção,
o isolamento ou a intransigência teimosa. Arrastado por estas forças,
“procurou reconciliar-se com os nobres destinos da nossa pátria
e, religiosamente, segundo a sua bela imagem, envolveu a sua fé monárquica
na mortalha de púrpura em que dormem as grandes dinastias fundadoras”.

Apenas a trama do espírito de Nabuco seria brasileira, pelas heranças
de raça onde haveria acaso uma gota de sangue indígena, pela
ação do meio rústico onde lhe passou a primeira infância
recontada por ele numa página imortal,147 pela influência do
ambiente em que se criou e fez homem, pelas suas afinidades de orgulho de
estirpe com a gente consular de que procedia. Mas o lavor e recamo posto nessa
delgada trama nacional era todo estrangeiro, metade francês, metade
inglês, e pontos escassos mais firmes da cultura greco-romana. De formação,
de índole, de sociabilidade, mais um europeu que um brasileiro. Nem
era isso privilégio seu. Crescido número dos nossos intelectuais
o compartilham com ele. Ele, porém, o foi mais e mais distintamente
que todos. A sua vida literária começou (excetuadas as produções
menores da adolescência) por um livro de versos em francês e acabou
por um livro de pensamentos também nessa língua, que porventura
escrevia tão bem quanto a própria. Nela ainda escreveu Le droit
au meurtre, carta a Ernesto Renan sobre o L’Homme Femme, de Dumas Filho,
e um drama em verso L’Option, postumamente publicado.

Da literatura da sua língua, a figura que melhor conheceu, quem sabe
se não a única que conheceu, e amou foi Camões. Consagrou-lhe
um livro, o primeiro que publicou em português, Camões e os Lusíadas
(Rio, 1872, in-8º, 294 págs.), e para o cabo da sua vida, já
embaixador nos Estados Unidos, três conferências em universidades
americanas.148 Nesse livro, do qual ultimamente desdenhava, havia, com a marca
indelével de quem o escreveu, vistas certas e originais da nossa literatura.
Era, mesmo para o tempo, falha a sua erudição camonianna, e
sua crítica, e ele próprio o reconhece, demasiado objetiva e
ainda muito escolástica. Atenuavam-lhe os defeitos essenciais, o belo
dizer e os rasgos de talento que foram sempre, em todos os assuntos, apanágio
seu.

Antes que o tomasse quase exclusivamente a política, fez conferências,
folhetins e artigos literários ou artísticos, discursos acadêmicos,
jornalismo político. Quando, por volta de 1880, começou a maior
campanha contra a escravidão, de que todos os brasileiros, pode dizer-se,
se sentiam envergonhados, Nabuco entrou nela com todo o ardor de um coração
desejoso de servir uma nobre causa e ansioso da glória que daí
lhe resultaria. Entre os nossos abolicionistas da vanguarda foi ele talvez
o mais intelectual. Exteriorizou-se numa ação pública
a que o seu engenho literário, os seus dotes de orador, o brilho da
sua personalidade e até a beleza do seu físico e a elegância
do seu porte e maneiras emprestaram lustre singular. Além de discursos,
conferências, artigos de jornais, escreveu o livro O Abolicionismo,
acaso o mais excelente produto, sob o aspecto literário, desse movimento.
Não era, como a maioria daqueles a que o assunto deu ensejo, obra de
retórica propagandista, declamatória ou altiloqüente, senão
livro de raciocínio e argumentação, em suma uma obra
de pensador e escritor.

O melhor, porém, da sua obra literária, a que lhe assegura
um eminente posto nas nossas letras, a faz nos quinze últimos anos,
entre os 46 e os 61, de sua vida. São desse período os seus
livros Balmaceda e a Guerra civil do Chile (1895), A intervenção
estrangeira durante a revolta (1896) e, a maior e mais importante de todas,
Um estadista do Império, J. F. Nabuco de Araújo, sua vida e
opiniões: sua época (1898), em que, com a vida de seu pai, político
e jurisconsulto eminente, historia uma fase importante do segundo império.

Embora inspirados todos de espírito político, mas do seu espírito
político, muito diferente pela elevação e pela cultura
do que costuma ser aqui esse espírito, esses livros são eminentemente
obra de escritor distintíssimo, e encerram algumas das mais belas páginas
da prosa brasileira. Por este aspecto valem como argumento contra o preconceito
do casticismo, provando que um autor brasileiro de real talento literário,
isto é, com as qualidades essenciais de pensamento, imaginação
e expressão, pode, a despeito do português estreme, ser em todo
o vigor da expressão um grande escritor. Tal o foi sem dúvida
Joaquim Nabuco. Tal fora também, embora com menor vigor e elegância,
José de Alencar. Estes exemplos, porém, são muito poucos,
e de forma alguma autorizam, máxime a quem não tenha as qualidades
destes dous excepcionais escritores, o descuido da língua.

Outro publicista de talento, muito espírito, boa linguagem e estilo
elegante, ensaísta fecundo e original, polemista vigoroso e agudo,
um verdadeiro escritor em suma pelas peregrinas qualidades da sua ideação
e expressão, é Eduardo Prado. Chamava-se com todo o seu nome
Eduardo Paulo da Silva Prado. Nasceu na capital de S. Paulo de uma velha,
importante e opulenta família, ali vinculada, em 27 de fevereiro de
1860, e na mesma cidade formou-se em Direito e veio a falecer em 30 de agosto
de 1901.

A sua obra é copiosa e foi toda feita em jornais e revistas, um pouco
ao acaso das circunstâncias e ocasiões. Hoje acha-se toda reunida
em nove volumes e compõe-se de artigos literários, viagens,
ensaios, discursos, crítica literária, social ou política,
polêmica, etc. Na literatura brasileira, Eduardo Prado tem duas singularidades:
ser um dos poucos senão o único homem rico e certamente o de
mais valor que aqui se deu, sequer como diletante, às letras, e ser
talvez em a nossa literatura o único escritor reacionário. Refiro-me
a escritor e não a políticos que ocasionalmente tenham escrito,
nem a jornalistas, cuja obra efêmera não considero aqui. Joaquim
Nabuco, conquanto católico praticante e monarquista convicto, não
pode ser tudo por um reacionário, porque achou jeito de conciliar com
o seu catolicismo, porventura mais de imaginação que de sentimento,
o seu profundo liberalismo, e foi sempre, conquanto aristocrata de raça
e temperamento, irredutivelmente um liberal, um democrata em política.
Eduardo Prado, que em tudo, em costumes, em opiniões e gostos, parece
ter sido um diletante, um espírito cosmopolita, pode ser que fosse
também em crença religiosa e política. A sua curiosidade
intelectual, o seu gosto do novo e do exótico, diga-se, a dose de esnobismo
que havia nele, e certo senso de elegância e mudanismo hostil à
nossa baixa democracia, e mais a sua freqüentação de meios
monárquicos e reacionários de Paris, explicam talvez o seu reacionarismo
católico e monárquico, em oposição com a sua natural
independência mental e irreverência espiritual. É o nosso
mais acabado tipo de diletante intelectual, do amador das coisas de espírito.
E amador e diletante o foi em tudo, com bom humor, muito espírito e
inconseqüentemente. Com pontos de contato com Nabuco, não tem
o seu talento, e menos a sua seriedade espiritual. O brilho mundano da sua
existência de moço rico e pródigo, as suas longas viagens,
a sua existência européia, o seu íntimo comércio
com homens de letras europeus, deram-lhe um prestígio que a sua só
obra literária, aliás documento de talento literário
pouco vulgar, acaso não lhe teria só por si dado. Aumentou-lho
a perseguição tolamente feita pelo Governo Provisório
da República ao seu brilhante panfleto A ditadura militar no Brasil
e a atitude por ele tomada em face não só da República
mas do geral sentimento liberal do país.

Como escritor, Eduardo Prado foi, em suma, um jornalista, porém com
mais talento, mais espírito, mais cultura e mais experiência
do mundo que o comum deles. Da causa pública teve menos o interesse
que a curiosidade do seu elemento dramático. A política foi-lhe
apenas um tema literário, que tratou com a desenvoltura de um espírito
no fundo cético e paradoxal.

A publicística, no seu mais exato sentido de literatura das questões
públicas, nunca de fato se incorporou aqui à literatura propriamente
dita ou a enriqueceu com exemplares de maior valor que o ocasional e de emoção
menos efêmera que a do momento. Salvo em um ou outro jornalista de mais
vigoroso pensamento e de mais perfeita expressão, como Justiniano da
Rocha, Otaviano Rosa, Quintino Bocaiúva e os já atrás
citados Tito Franco de Almeida, Saldanha Marinho, Ferreira Viana, José
de Alencar e outros, e mais perto de nós Salvador de Mendonça,
Ferreira de Araújo, Ferreira de Meneses, Leão Veloso, Rodolfo
Dantas, Belarmino Barreto, José do Patrocínio, cujos nomes,
acaso por outros motivos que os puramente literários, sobrevivem, careceu
sempre a nossa publicística de qualidades com que se pudesse legitimamente
incorporar na nossa literatura e viver nela por obras sempre estimáveis.
Joaquim Nabuco e Eduardo Prado apenas são publicistas por parte de
sua obra e pela intenção política de quase toda ela.

Mais ainda do que a publicística, a oratória política
não podia existir antes de um regime de livre discussão, qual
o aqui inaugurado com a Independência. Os sucessos que imediatamente
a precederam, bem como os que se lhe seguiram, deram justamente lugar ao aparecimento
de sociedades e clubes patrióticos, juntas de governo e assembléias
políticas por amor dela convocadas, donde resultou essa espécie
de eloqüência num país que até então outra
não conhecera que a sagrada ou, em importância e escala muito
menor, a acadêmica.

A primeira teria aliás nesta fase da nossa história um brilho
que ainda se não apagou de todo da tradição. Foram seus
mais eminentes cultores e deixaram alguns documentos que até certo
ponto lhes justificam a fama contemporânea, Sousa Caldas, o vigoroso
poeta lírico do qual aliás como pregador apenas resta a memória
do apreço em que o tiveram os seus ouvintes; Fr. Francisco de S. Carlos,
o secundário poeta da Assunção da Virgem; Fr. Francisco
de Sampaio e o cônego Januário Barbosa, ambos jornalistas e agitadores
políticos, e o último medíocre poeta e estimável
literato, e, finalmente, o maior de todos, Monte Alverne.

Este com S. Carlos e Sampaio formaram um trio de oradores sacros que no seu
tempo, em que ainda se apreciava o gênero, e ir ao sermão era
um dos poucos divertimentos da população e dos raros recreios
da gente culta, se disputavam a preferência do público e a primazia
do púlpito. Deu-lhes principalmente relevo à oratória,
sobretudo a de Monte Alverne, que decididamente os sobreleva a todos, o terem-na
exercitado no momento de comoção política e alvoroço
patriótico, que lhes atuou na facúndia e lhes deu ao estro uma
emoção nova e renovadora da cansada eloqüência sagrada
aqui em antes praticada. Pode dizer-se que neles, que não foram somente
pregadores mas oradores patrióticos e ainda políticos, preludia
a oratória política de 1823.

Francisco de Monte Alverne nasceu no Rio de Janeiro em 9 de agosto de 1784
e faleceu em Niterói a 2 de janeiro de 1858. A sua atividade oratória
vai de 1819 a 1856, isto é, passa-se na época climatérica
que imediatamente precedeu e seguiu a da Independência e fundação
do Império, cujo extremo propugnador foi. Aparece como uma das vozes
do sentimento nacional nesse momento exuberante de entusiasmo. Segundo as
notícias, umas ainda pessoais, outras tradicionais e algumas escritas
que dele temos, e que a sua obra confirma, foi uma bela figura de frade soberbo,
personalíssimo, ingenuamente desvanecido do seu saber e facúndia.
Este manifesto, mas não antipático, contraste entre a humildade
reclamada pelo seu instituto e o seu orgulho intelectual, e mais as circunstâncias
do tempo, lhe fizeram a fisionomia particular e distinta que tem na nossa
vida mental. Professor de filosofia, mestre sem alguma originalidade, mas
eloqüente e dominador, teve por discípulos, dos quais se soube
fazer admiradores e devotos, boa porção dos homens que vieram
a intelectualmente florescer nos anos subseqüentes e o melhor da mocidade
do tempo. Exerceu grande influência — talvez a primeira de ordem
mental que aponte a nossa história literária — nas jovens
gerações que com ele aprenderam ou o ouviram. Durante todo o
período romântico, poetas e prosadores o celebraram em biografias
e notícias, em poemas que lhe dedicam ou lhe comemoram o engenho. Não
é demais dizer que, para as gerações suas contemporâneas
ou imediatamente posteriores ele foi o primeiro dos nossos heróis intelectuais.
Não os enganava a intuição dos românticos. Pelo
seu arrogante pessoalismo, pela sua exuberante individualidade, pela mistura
na sua oratória de emoções patrióticas e religiosas;
e pela sua indisciplina, sem quebra aliás da sua austeridade monástica,
espiritual, e mais pelo tom e estilo pitoresco dos seus sermões, onde
sentimos estes vários impulsos, foi Monte Alverne o verdadeiro precursor
do Romantismo aqui.

A primeira eloqüência política brasileira, inaugurada na
Assembléia Constituinte de 1823, tem uma dupla feição.
Por mais de um rasgo lembra a oratória da Revolução Francesa,
em cuja história eram lidos os principais de seus membros, e ressuma
algo também da oratória sagrada da nossa língua, que
era o modelo mais presente aos iniciadores dessa eloqüência aqui.
Alguns deles já o haviam aliás ensaiado nas juntas e sessões
políticas de antes da Independência ou a tinham praticado como
deputados do Brasil nas Cortes de Lisboa, em 1821. Mas os mesmos oradores
portugueses destas seriam bisonhos parlamentares, cuja educação
oratória, feita sob o duplo influxo da eloqüência revolucionária
francesa e do sermão nacional, não podia ser aos nossos de grande
exemplo.

Como o sermão, o discurso político, salvo casos sempre raros
de peregrinas excelências de fundo e forma, por sua mesma efemeridade
e contingência, como pelo ocasional dos seus motivos e inspiração,
só muito excepcionalmente conserva o interesse da emoção
original. Nem sequer concorria aqui para prolongá-lo além da
sua hora, o livro que os recolhesse. Apenas o Anais das assembléias
onde foram proferidos lhes guardaria o eco, de todo extinto aliás nesses
cartapácios nunca lidos.

Teve a Constituinte alguns oradores notáveis, dos quais se pode dizer
que o eram mais de nascença que de feitura. O maior deles, ao menos
o mais célebre, foi Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado
e Silva (1775-1845), cuja fama vinha das Cortes portuguesas de 1821, e devia
confirmá-la a sua ulterior carreira de orador em assembléias
posteriores à Constituinte.

Nestas, os nomes cuja reputação excedeu ao seu tempo são
os de Rebouças, Maciel Monteiro, Rodrigues dos Santos, Bernardo de
Vasconcelos, Sousa Franco, Alves Branco, Nabuco de Araújo, Rio Branco,
Silveira Martins, talvez o maior de todos nas qualidades propriamente oratórias,
Torres Homem, José de Alencar, José Bonifácio, o Moço,
cujos discursos lidos hoje lhe não abonam a fama contemporânea,
Joaquim Nabuco, Fernandes da Cunha. Destes, bem poucos, fora dos Anais parlamentares,
deixaram documento escrito por onde possamos avaliar-lhes, quanto um orador
pode ser julgado pelo discurso não ouvido, o fundamento da celebridade.
Temos, pois, que contentar-nos com a tradição. Segundo esta,
foram estes, com alguns mais, e muito antes bons parlamentares, bons discutidores,
que oradores, os melhores exemplares da nossa oratória política.
Literariamente, salvo as exceções de um Rebouças, um
Maciel Monteiro, um Nabuco pai e filho, um Torres Homem e um José de
Alencar, pouco valem. Raríssimos serão os seus discursos cuja
leitura não nos seja agora displicente. É que sobretudo “oradores
de negócios”, segundo a expressão francesa, isto é
de questões políticas ou partidárias de ocasião,
o interesse das suas arengas passou com o dos seus motivos, e tanto mais completamente
quando por via de regra eles não lhes souberam dar qualidades de pensamento
e de expressão que as fizessem viver.

A crítica no Brasil nasceu com as academias literárias do século
XVIII. Os seus primeiros ensaios foram os pareceres ou juízos nelas
apresentados sobre os trabalhos sujeitos à sua apreciação.
Continuavam esses pareceres o costume português, também oriundo
das academias, de que as nossas foram um arremedo. Eram por via de regra inchados
de pensamento e de expressão, grávidos de erudição
literária contemporânea e, como estalão de estima, usavam
rigorosamente a pauta da retórica clássica consoante Horácio
e Quintiliano, e aferiram das obras conforme elas lhes pareciam ou não
acordes com essas pautas. A inspiração geral desses primeiros
ensaios de crítica, não só aqui mas em Portugal —
aos quais cumpre juntar os juízos dos censores oficiais, que às
vezes se desmandavam em críticos, — era de regra exageradamente
benévola, e facilmente escorregava para os mais desmarcados encômios
e excessivos louvores, em linguagem, como era a literária da época,
túrgida e hiperbólica. Dizendo, por exemplo, de um ruim poema
feito à Virgem Maria pelo poeta José Pires de Carvalho e Albuquerque,
hoje absolutamente ilegível, os críticos — chamavam-se
então censores — da Academia dos Renascidos, asseveravam que
o livro do seu confrade continha “em si matérias tão sublimes
e cantos tão suaves, que aparece ser todo inspirado do céu,
ainda que organizado na terra, favor na verdade particular de que foi dotado
o autor, não só como devoto, mas como poeta”. E não
satisfeitos, acrescentaram: “É tão sublime a musa do nosso
acadêmico que a sair do eminente cume do Parnaso só passaria
como passou ao mais elevado ápice do Olimpo”.149

149Apud Fernandes Pinheiro, Rev. do Inst. Hist., XXXII, 59.

Não fora impossível ou sequer difícil mostrar ainda
agora ressaibos deste estilo de crítica em quejandos documentos das
nossas sociedades literárias e nos mesmos críticos de ofício.
Com poucas exceções permaneceu este estilo essencialmente o
mesmo até o advento do modernismo, cujo espírito foi notavelmente
crítico, sem que entretanto lograsse refugá-lo de todo da crítica
indígena. Não raro aquele tom empolado da velha crítica
portuguesa para aqui transplantada foi apenas substituído por mal assimiladas
novidades pseudofilosóficas por pseudocientíficas expressas
em nova forma de gongorismo, que, como o outro, nos vinha também de
Portugal.

A crítica como um ramo independente da literatura, o estudo das obras
com um critério mais largo que as regras da retórica clássica,
e já acompanhado de indagações psicológicas e
referências mesológicas, históricas e outras, buscando
compreender-lhes e explicar-lhes a formação e a essência,
essa crítica derivada aliás imediatamente daquela, pelo que
lhe conservou alguma das feições mais antipáticas, nasceu
com o Romantismo. Precedeu-o mesmo, nos estudos biográficos e literários
do Patriota, de Araújo Guimarães, do Parnaso Brasileiro, de
Cunha Barbosa, de Niterói, de Gonçalves de Magalhães
e Porto Alegre. Era, porém, sobretudo louvaminheira e derramada em
impertinentes considerações gerais, e acreditava ingenuamente
que preconizar a produção literária nacional era o mesmo
que valorizá-la e que o louvor, ainda indiscreto, seria estímulo
bastante ao fomento das nossas letras. Esse estímulo imprudente achou-o
que fartasse o Romantismo na crítica, que com ele surgiu em jornais
e revistas como a citada Niterói, a Minerva Brasiliense, a Guanabara,
a Revista do Instituto e mais tarde a Revista Popular e outras publicações
semelhantes. E não se pode dizer que esta crítica ainda nimiamente
encomiástica, e que convencidamente atestava de primas obras cuja leitura
nos é hoje insuportável, não tenha, em suma, tido uma
ação benéfica. À falta de outro qualquer prêmio
do seu esforço, encontravam nela os autores “o favor com que mais
se acende o engenho.” Apenas a maioria delas não teria o que acender.

Iludindo-os sobre o seu próprio merecimento, essa crítica não
só os desvairava, mas desservia os que acaso tinham e cujos defeitos
ela se abstinha, por mal entendida caridade, de apontar, faltando assim à
sua tarefa de educar o público, que mui confiadamente a seguia. Com
essa crítica que se traduzia em louvores indiscretos acompanhados de
divagações a mais das vezes ociosas e até impertinentes,
crítica ainda em suma retórica, surgiu pela mesma época
a crítica erudita e mais a história literária, seu natural
suporte. Desprezadas, como é de razão, umas primeiras malogradas
tentativas de Cunha Barbosa, Magalhães, Ferreira da Silva, o criador
dessa espécie de crítica aqui, e simultaneamente da história
da nossa literatura, foi Varnhagen. É ele, com efeito, o primeiro que
pesquisa e assenta, com dados seguros, fatos e datas literárias, e
os correlaciona com a nossa evolução política, o primeiro
que estuda diretamente os autores, descobre alguns apenas vagamente conhecidos,
publica-lhes ou revela-lhes as obras, identifica-os ou comprova-lhes a existência
e atividade. Foi com efeito o primeiro que investigou com capacidade de erudito
e um critério que é essencialmente o mesmo da nossa posterior
história literária, as nossas origens literárias, e fez
das nossas letras a exposição mais cabal e exata que até
então se fez. Foi igualmente o primeiro que as viu no seu conjunto
e não só na sua poesia, como mais ou menos o fizeram os seus
predecesores, e, embora de relance, ocupou-se de todos os autores nacionais
que pode conhecer, e ainda de portugueses abrasileirados pela sua estadia
no Brasil e preocupações brasileiras, fossem poetas ou historiadores,
moralistas, viajantes, cronistas, economistas, etc. Alguns descobriu e desencavou
e divulgou de escusos repertórios portugueses, corrigindo datas, aventando
informações ignoradas, emendando outras, publicando antologias
e edições críticas dos nossos poetas e de escritores
de cousas brasileiras. Este trabalho, grandíssimo e importantíssimo
para o tempo, fê-lo ele na edição dos Épicos Brasileiros
(1845), no Florilégio da poesia brasileira (1850) e na História
geral do Brasil (1854-57), em memórias, monografias e artigos da Revista
do Instituto e outras publicações. No Florilégio assentou,
em bases que não foram ainda sensivelmente modificadas, a história
da nossa literatura. Nas 54 páginas do “Ensaio histórico
sobre as letras no Brasil”, que vem como introdução desse
precioso livrinho, acham-se pelo menos indicados o critério etnológico
como elemento das investigações da nossa literatura e da sua
mesma inspiração, o elemento indígena americano como
concorrente nela, as origens imediatas ou o primeiro impulso da poesia e do
teatro no Brasil, a necessidade de serem os nossos poetas sobretudo americanos,
o interesse da poesia popular, a correlação dos fenômenos
mentais com os sucessos históricos e outros que muito posteriormente
seriam trazidos à luz como novidade da última hora.

Neste gosto e trabalho de investigação da história da
nossa literatura o seguiu, com menor cabedal de conhecimentos e menor capacidade,
mas com igual boa vontade e não sem sucesso, Norberto Silva. Devemos-lhe
principalmente um mais exato conhecimento dos poetas mineiros, vários
estudos biográficos literários e alguns ensaios de uma história
da nossa literatura, que não chegou a escrever. Também Porto
Alegre fez crítica literária e foi aqui o criador da crítica
artística. Como tal devem-se-lhe os primeiros estudos sobre a nossa
pintura e arquitetura e da iconografia e música brasileira, publicados
no Ostensor, na revista Guanabara, no Íris, na Revista Brasileira e
na Revista do Instituto, entre 1845 e 1856. O entusiasmo patriótico
dos da sua geração levou-o à invenção indiscreta
de uma “escola fluminense de pintura”. Outros românticos da
primeira hora, Magalhães, Macedo, Ferreira da Silva, Gonçalves
Dias, fizeram igualmente crítica literária. Pelo tempo adiante,
com certa assiduidade e algum mérito, Paula Menezes, Dutra e Melo,
Paranhos Schutel, Jaci Monteiro; e alguns estrangeiros que aqui colaboraram
com os nossos na constituição da nossa literatura nacional,
tais os franceses Burgain e Adet, o espanhol Pascoal, o chileno Santiago Nunes
Ribeiro, os portugueses Zaluar e Montoro distinguiram-se como críticos.
Essa crítica, porém, foi sempre feita dispersamente em jornais
e revistas, e nunca se sistematizou. Raro era outra cousa que um artigo de
ocasião a favor de um livro ou autor. Toda ela tendia à exaltação
freqüentemente inconsiderada da mente nacional e dos seus produtos. É
patriótica como a literatura que lhe servia de assunto. Mais tarde
e serodiamente, o mau exemplo das brigas literárias da “guerra
dos poetas” e das arcádias portuguesas produziu aqui os seus efeitos
na acrimônia, na diatribe, nos doestos e até na arrogância
doutrinária, que muitas vezes substituíram a longanimidade e
complacência da nossa primitiva crítica.

Na segunda geração romântica, Álvares de Azevedo
escreveu alguns ensaios de crítica, que por lampejos de talento, novidade
de idéias gerais e qualidades da expressão literária
sobrelevam o que aqui se fazia no gênero, e mostravam ainda uma vez
a compassibilidade da crítica e da criação estética.
Junqueira Freire, outro poeta dessa geração, também se
ensaiou na crítica, com menos romantismo e acaso mais agudeza que Álvares
de Azevedo, mas também mais de passagem ainda que este. Fizeram-na
igualmente em jornais, outros poetas e prosadores desta fase, nomeadamente
Bernardo Guimarães e José de Alencar, que reuniu em livro a
sua crítica da Confederação dos Tamoios, de Magalhães
(1856).

Feita assim dispersamente, ao acaso dos ensejos, sem seqüência
nem sistema, como uma manifestação pessoal de impressões
recebidas dos livros lidos, mas talvez por amor dos autores que da literatura,
como um estímulo ou um reclamo, e também às vezes, mas
raras, como um anátema, não chegou essa crítica a ser
um gênero literário separadamente cultivado. E os seus produtos
havemos de ir buscá-los em jornais e revistas, prefácios de
livros ou reproduzidos e citados em páginas posteriores. Quem mais
sistematicamente a fez depois das duas primeiras gerações românticas,
pelo menos como professor oficial de literatura, foi o cônego Fernandes
Pinheiro, que deixou dois livros consideráveis de matéria cujo
docente era no Colégio de Pedro II, Curso elementar de literatura nacional
(1862) e Resumo da história literária (1873). De fundo próprio,
quer de erudição, quer de pensamento, pouco havia do autor destes
livros, onde se continuavam extemporaneamente sistemas críticos já
ao tempo obsoletos. Demais, apesar do título, o seu Curso era sobretudo
de literatura portuguesa, para o qual o autor achava o trabalho já
feito. A brasileira, mormente no seu mais importante período, o nacional,
apenas ocupava algumas páginas. Com melhor sentimento literário,
com mais fina percepção estética, e sobretudo com muito
melhor estilo, mas apenas acidental e esporadicamente, também fez crítica
Machado de Assis.

Ao tempo em que o cônego Pinheiro professava aqui as lições,
que depois tirou em livro, um outro professor de literatura no Maranhão,
Sotero dos Reis, fazia o Curso de literatura brasileira e portuguesa, publicado
depois em quatro tomos, de 1866 a 1868. Com o seu desenvolvimento e proporções,
é não só a primeira obra de estudo histórico literário
e crítico da nossa literatura, mas ainda da portuguesa, e era na nossa
língua uma novidade. Transplantava Sotero dos Reis para ela, como ainda
no seu tempo foi notado, a renovação da crítica operada
em França por Villemain. Abalizado conhecedor por um comércio
mais direto do que o tinha o cônego Pinheiro das letras portuguesas
e do seu desenvolvimento aqui, fez delas mais cabal exposição
que se podia então querer. O processo histórico, que era o daquele
seu principal modelo, levou-o ao estudo, acaso por demais particularizado,
da literatura portuguesa, de suas origens até ao fim do século
XVIII. No estudo da literatura brasileira, que ocupa parte menor do seu Curso,
Sotero dos Reis não lhe remontou às origens nem lhe acompanhou
a evolução. Expô-la por alguns dos seus tipos mais preeminentes
— como o fazia Taine com a literatura inglesa — começando
em Santa Rita Durão e vindo até Gonçalves Dias. Nunca,
porém, se fizera estudo tão completo e com tão boa arte
de composição literária, e em suma tão bem feito
como no livro de Sotero dos Reis.

Menos ainda do que qualquer dos gêneros literários aqui versados,
não se constituiu a crítica em aplicação particular
da atividade literária. E como não tivesse outra doutrina que
o gosto pessoal dos que eventualmente a faziam, fosse pura externação
de impressões individuais, mais no intuito de louvor ou censura, que
no de exame e explicação da obra, afetasse um tom retórico
e ordinariamente se excedesse em divagações escusadas de trivialidades
literárias ou em banalidades conceituosas, essa crítica, afora
o que é propriamente história literária feita por um
Varnhagen, um Norberto, um Sotero e ainda um Fernandes Pinheiro, apenas deixou
de si um outro documento estimável. Nada obstante foi útil e,
ainda com as suas falhas e defeitos, serviu ao desenvolvimento das nossas
letras.

O movimento que tenho chamado de modernismo e cujo mais evidente sinal foi,
como o europeu de que se originou, o espírito crítico, deu aqui
à crítica outra direção e outros critérios.

A revolta da escola coimbrã, em Portugal, contra o que um dos seus
chefes chamou as “teocracias literárias” do velho Reino,
o resto de pseudoclássicos, de anacrônicos árcades ou
de serôdios românticos que, com Antônio de Castilho à
testa, entorpeciam a evolução literária portuguesa, não
só ecoou aqui, mas influiu, acaso mais poderosamente que o coevo pensamento
europeu, no motim que aqui também se levantou contra os nossos escritores
consagrados. A este alvoroto brasileiro faltou, porém, a coesão
que teve o português, e ficou longe da importância daquele. A
sua inspiração ou antes os seus inspiradores estrangeiros foram
diversos: Sainte-Beuve, Taine, Scherer, Renan, Spencer e até Comte,
não obstante a sua aversão sistemática à crítica,
e também os muito proclamados mas de fato pouco sabidos críticos
alemães de nomes estranhos aos nossos ouvidos. Se a reação
pela cultura germânica em Portugal, atuadora da nossa, fez ali uma dúzia
de germanistas capazes, aqui não conseguiu formar sequer a metade,
o que prova a inconsciência do arremedo e a inconsistência do
movimento e concomitantemente a nossa madraçaria nacional. Salvo Tobias
Barreto, que foi o mais distinto prócer do movimento e cuja cultura
germânica parece ter sido cabal, os nossos outros germanistas seus discípulos
ou seguidores a fizeram superficialmente e através do francês.

Como quer que seja, operou-se um salutar movimento de reação
e houve manifesto alargamento do nosso espírito literário e
do nosso espírito em geral. Começou-se a compreender que a crítica
tinha um papel distinto e uma função necessária na literatura
e a abandonar os seus processos puramente retóricos por outros em que
entravam novos elementos de consideração na apreciação
das obras literárias, a história, a psicologia, a etnografia,
a sociologia, a política, enfim quanto atuava os escritores e os podia
explicar e às suas obras. Em 1873, em um artigo em que é lícito
enxergar o influxo das idéias que iam dar nova direção
ao nosso pensamento literário e à crítica, Machado de
Assis, verificando a carência aqui da crítica como ofício
literário, lastimava-lhe a falta e reclamava-a como uma necessidade
da nossa literatura.150 De 1875 em diante entram a aparecer livros propriamente
de crítica, os Ensaios e estudos de filosofia e crítica, desse
ano, e os Estudos alemães, de 1883, de Tobias Barreto, a Crítica
e literatura, do malogrado escritor do grupo literário formado no Ceará
por esse tempo, Raimundo Antônio da Rocha Lima (1878). Outro escritor
desse grupo, Araripe Júnior (Tristão de Alencar — 27 de
julho de 1848 — 29 de outubro de 1911, Fortaleza, Ceará), conquanto
se houvesse ensaiado, aliás sem nenhum sucesso, na ficção,
foi principalmente um crítico, já em jornais e revistas da sua
terra natal, de Pernambuco e do Rio, já em livros, José de Alencar
(1882), Gregório de Matos, Movimento literário e outros. Seguindo
muito de perto as doutrinas críticas de Taine, esforçou-se por
praticá-las e divulgá-las aqui, temperando-as entretanto com
a sua fantasia, incongruente com o espírito geométrico do seu
apregoado mestre, e fazendo da complacência imoderado uso. Entre os
nossos livros de crítica desse momento, destacam-se pelo seu volume
e importância os Estudos sobre a literatura brasileira; O lirismo brasileiro
(1877), do escritor maranhense domiciliado em Portugal, Sr. José Antônio
de Freitas discípulo muito fiel do Sr. T. Braga; o Camões e
os Lusíadas (1872), de Joaquim Nabuco, mais explanação
entusiástica, feita aliás com talento, que apreciação
crítica; os Estudos críticos, por Sílvio Dinarte (Escragnolce
Taunay, 1881-1883, 3 vols.). Mas o primeiro dos escritores brasileiros que,
de parte um breve e malogrado excurso pela poesia, fez obra copiosa de crítica
geral e particular, é o Sr. Sílvio Romero, simultaneamente discípulo,
por Tobias Barreto, dos alemães e, muito mais diretamente, dos franceses
por Taine e Scherer, pelo que é da literatura propriamente dita, e
de Spencer, Haeckel, Noiré e Iehring, pelo que é filosofia e
pensamento geral.

É singular que o maior e mais universal dos críticos franceses
do século passado, o que mais influência exerceu no seu tempo,
mesmo fora da França, Sainte-Beuve, tenha muito pouco influído,
ao menos de modo direto e claro, na constituição definitiva
da nossa crítica, como atividade literária distinta. Só
talvez em Machado de Assis se lobriga algo do seu exemplo.


Capítulo XIX

MACHADO DE ASSIS

CHEGAMOS AGORA AO escritor que é a mais alta expressão do nosso
gênio literário, a mais eminente figura da nossa literatura,
Joaquim Maria Machado de Assis. No bairro popular, pobre e excêntrico
do Livramento, no Rio de Janeiro, nasceu ele, de pais de mesquinha condição,
a 21 de junho de 1839. Nesta mesma cidade, donde nunca saiu, faleceu, com
pouco mais de 69 anos, em 29 de setembro de 1908. A data do seu nascimento
e do seu aparecimento na literatura o fazem da última geração
romântica. Mas a sua índole literária avessa a escolas,
a sua singular personalidade, que lhe não consentiu jamais matricular-se
em alguma, quase desde os seus princípios fizeram dele um escritor
à parte, que tendo atravessado vários momentos e correntes literários,
a nenhuma realmente aderiu senão mui parcialmente, guardando sempre
a sua isenção. São obscuros e incertos os seus começos,
os informes que deles há, duvidoso ou suspeitos. Ninguém na
literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda
a espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava
toda a publicidade, toda a vulgarização que não fosse
puramente a dos seus livros publicados. Do seu mesmo trabalho literário,
como de tudo o que lhe dizia respeito, tinha um exagerado recato. Refugia
absolutamente às confidências tanto pessoais como literárias.
Por cousa alguma quisera que as humildes condições em que nascera
servissem para exalçar-lhe a situação que alcançara.
Ao seu recatadíssimo orgulho repugnava, como um expediente vulgar,
fazer entrar no lustre que conquistara esse elemento de estima. A sua biografia
eram os seus livros, a sua arte era a sua prosápia. Não lhes
quis misturar nada que pudesse parecer um apelo à benevolência
dos seus contemporâneos em prol da exaltação do seu nome.
Fazer reclamo da mesquinhez das suas origens, como é tão vulgar,
lhe era profundamente antipático. Só a incapacidade de compreender
natureza tão finamente aristrocrática como Machado de Assis
e a esquisita nobreza destes sentimentos poderia reprochar-lhos.

Era dos engenhos privilegiados que, sentindo fortemente a vocação
literária, com a clara consciência da necessidade de ajudá-la
pela aplicação e trabalho, a si mesmo se educam. Fez-se ele
próprio. Teria apenas freqüentado a ínfima escola primária
da sua meninice, aprendido ao acaso das oportunidades algo mais do que ali
lhe ensinaram, e lido assídua e atentamente. Precisando cuidar muito
cedo de si, pois os pais, sobre paupérrimos, lhe morreram quando lhe
começava a puberdade, trabalhou então, ao que parece, como sacristão
da Igreja da Lampadosa, e depois caixeiro da pequena Livraria e Tipografia
de Paula Brito, prazo dado dos escritores feitos ou por fazer da época.
Talvez ali se iniciasse na arte tipográfica, que mais tarde parece
exerceu como compositor na Imprensa Nacional. Desde 1856 pelo menos se encontram
na Marmota Fluminense, “jornal de modas e variedades”, editado e
redigido por aquele singular, estimável e prestimoso amador das nossas
letras que foi Paula Brito, e colaborado por nomes depois nela notáveis,
alguns poemas seus. Tem o tom melancolicamente sentimental, a religiosidade
romântica e também laivos de descrença, da poesia daquele
decênio.151 É de crer que Machado de Assis houvesse versejado
desde antes dessas datas. Depois da Marmota, encontram-se-lhe versos na Revista
Popular e Jornal das Famílias, de Garnier, na Biblioteca Brasileira,
de Quintino Bocaiúva, e no Diário do Rio de Janeiro, de 1862.
Da redação deste jornal, em lugar subalterno, fez parte com
Saldanha Marinho, Quintino Bocaiúva e outros já então
ou depois conhecidos jornalistas. Entrementes aprendera o inglês, língua
pouco vulgar aos nossos literatos e cuja literatura não teria concorrido
pouco para ajudar a tendência natural de Machado de Assis ao humor,
de que foi aqui o único mestre insigne. Também lhe daria o esquisito
sentimento de decoro que distingue a sua obra, e o defendeu das influências
do naturalismo francês. Em 1863, da tipografia daquele jornal saiu o
seu primeiro livro, um folheto, Teatro de Machado de Assis. Constava de duas
comédias em um ato, representadas ambas no ano anterior e prefaciadas
por Quintino Bocaiúva, que parece ter sido, com Paula Brito, o seu
introdutor na vida literária. Desde então Machado de Assis mostrava-se
a figura extraordinária e, em toda a significação do
termo, distinta que viria a ser nas nossas letras, tanto pelo seu engenho
como pela sua elevação moral. Estreante, publicava uma obra
já notável pelas qualidades de espírito e composição,
para a qual o seu prefaciador desenganadamente declarava que lhe não
achava jeito, e a publicava sem apelar desse juízo, acaso rigoroso.
Fizera teatro não só porque o momento, o de maior florescimento
do nosso, lho acoroçoava, mas por confessada ambição
juvenil de ensaiar as forças nesse gênero que o atraía,
cuidando que nas qualidades para ele se apurariam com o tempo e trabalho.
Mas só em 1864, com as Crisálidas, é que verdadeiramente
começa a sua vida literária, não mais como tentativa,
senão como atividade nunca descontinuada. Vinte e dous poemas, escritos
entre 1858 e 64, compunham essa coleção. Distinguiam-se pela
emoção menos desbordante que o nosso comum lirismo e por um
apuro de forma insólito na nossa poesia. À perfeição
com que já manejava o alexandrino, verso ainda mal-aclimado na nossa
língua, o pechoso cuidado que punha nos ritmos e rimas dos seus, para
os fazer menos triviais e mais tersos sem perda da sonoridade, juntava-se
o polido da língua e o escolhido da frase poética: Aspiração,
que é de 1862, mormente Versos à Corina, de 1864, documentam
este juízo. Tanto pelo valor do sentimento como da sua expressão,
este último é uma das mais belas amostras do nosso lirismo.
Como as obras verdadeiramente clássicas, isto é, que não
são de ocasião ou de moda, tão vivo e novo hoje como
à data da sua composição, há quase meio século.
Estava-se ainda em pleno viço do subjetivismo e do sentimentalismo
poético de Álvares de Azevedo e dos seus companheiros de geração,
poesia de descrença e desconsolo, de desengano e tristeza, dominada
pela idéia da morte. De todos esses poetas eram os versos, como dos
seus dizia exatamente aquele, flores da sua alma, “murchas flores que
só orvalha o pranto”. Machado de Assis, que, pela mesquinha condição
em que viera ao mundo, não devia ter sofrido e lutado menos do que
eles, tem desde então o altivo pudor de não pôr a sua
alma em público, de não fazer estendal da sua desgraça.
A musa é para ele a “consoladora em cujo seio amigo e sossegado
respira o poeta o suave sono, quando a mão do tempo e o hálito
dos homens lhe tenham murchado a flor das ilusões e da vida”.
Este sentimento revigora-se no Prelúdio das Falenas, a sua segunda
edição das poesias:

O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,

Um refúgio tranqüilo, um suave remédio:

És tu, casta poesia, ó terra pura e santa!

Quando a alma padece, a lira exorta e canta;

E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,

Cada lágrima nossa em pérola converte.

Não era das falazes costumeiras profissões de fé de
poetas. Toda a sua vida literária, de um tão alevantado e peregrino
no decoro, a confirma.

Vários são os motivos de inspiração nas Crisálidas
desde as mais intensas emoções de poeta amoroso ou antes preocupado
já, como nenhum outro aqui, do eterno feminino, e rasgos de pensamento
que nos formosos tercetos de No Limiar, como nos belos alexandrinos de Aspiração,
pressagiam o poeta perfeito das Ocidentais, até os temas subjetivos
sentidamente idealizados do Epitáfio do México, de Polônia,
de Monte Alverne. Mas nem naqueles havia o comum excesso de sentimentalismo,
nem nestes algum exagero de idealismo, e uns e outros vinham estremes da moléstia
constitucional da nossa poesia, a oratória.

Trazem certamente o cunho do tempo, porém com tal medida e acerto
que, no seu encantador lirismo, muito nosso, nos são contemporâneos.
É dos poucos de então que não envelheceram, isto é,
que não precisam que nos ponhamos no diapasão do seu tempo para
os sentirmos e estimarmos. Digam-no estas estrofes de Visio, que são
de 64:

Eras pálida. E os cabelos,

Aéreos, soltos novelos,

Sobre as espáduas* caíam…

Os olhos meio cerrados

De volúpia e de ternura

Entre lágrimas luziam…

E os braços entrelaçados,

Como cingindo a ventura,

Ao teu seio me cingiam…

Depois, naquele delírio,

Suave, doce martírio

De pouquíssimos instantes,

Os teus lábios sequiosos,

Frios, trêmulos, trocavam

Os beijos mais delirantes,

E no supremo dos gozos

Antes os anjos se casavam

Nossas almas palpitantes…

Depois… depois a verdade,

A fria realidade,

A solidão, a tristeza;

Daquele sonho desperto,

Olhei… silêncio de morte

Respirava a natureza, —

Era a terra, era o deserto,

Fora-se o doce transporte,

Restava a fria certeza.

Desfizera-se a mentira:

Tudo aos meus olhos fugira;

Tu e o teu olhar ardente,

Lábios trêmulos e frios,

O abraço longo e apertado,

O beijo doce e veemente;

Restavam meus desvarios,

E o incessante cuidado,

E a fantasia doente.

E agora te vejo. E fria

Tão outra estás da que eu via

Naquele sonho encantado!

És outra, calma, discreta,

Com o olhar indiferente,

Tão outro o olhar sonhado,

Que a minha alma de poeta

Não ver se a imagem presente

Foi a visão do passado.

Foi, sim, mas visão apenas;

Daquelas visões amenas

Que à mente dos infelizes

Descem vivas e animadas,

Cheias de luz e esperança

E de celestes matizes:

Mas, apenas dissipadas,

Fica uma leve lembrança,

Não ficam outras raízes.

Inda assim, embora sonho,

Mas, sonho doce e risonho,

Desse-me Deus que fingida

Tivesse aquela ventura

Noite por noite, hora a hora,

No que me resta de vida,

Que, já livre da amargura,

Alma, que em dores me chora,

Chorara de agradecida!

Há neles certamente o toque do tempo, e algo de garrettiano, mas também
uma alma de verdadeiro poeta, que sobrevive à época.

Atividade poética de Machado de Assis se continuou com as Falenas
em 1869, as Americanas em 1875 e as Ocidentais em 1902. Quer em verso, quer
em prosa, a sua produção — outra singularidade deste singular
escritor — sem ser nunca de improviso ou apressada, é contínua,
sempre trabalhada e aperfeiçoada. Modesto por índole e por civilidade,
tímido de temperamento, modéstia e timidez que encobriam grande
energia moral e íntima consciência de sua capacidade, Machado
de Assis, estranho a toda a petulância da juventude, estuda, observa,
medita, lê e relê os clássicos da língua e as obras-primas
das principais literaturas. Ao contrário de alguns notáveis
escritores nossos que começaram pelas suas melhores obras e como que
nelas se esgotaram, tem Machado de Assis uma marcha ascendente. Cada obra
sua é um progresso sobre a anterior. Ou de própria intuição
do seu claro gênio, ou por influência do particular meio literário
em que se achou, fosse porque fosse, foi ele um dos raros senão o único
escritor brasileiro do seu tempo que voluntariamente se entregou ao estudo
da língua pela leitura atenta dos seus melhores modelos. Foram seus
amigos e companheiros alguns portugueses escritores ou amadores das boas letras,
como José de Castilho, Emílio Zaluar, Xavier de Novais, Manuel
de Melo, o esclarecido filólogo de cuja casa e rica livraria foi habituado,
Reinaldo Montoro, o bibliófilo Ramos Paz e outros. Nesta roda a língua
se teria conservado mais estreme das corrupções americanas,
seria melhor falada e mais estudada. Considerando-se, porém, que outros
brasileiros que viveram e até se educaram em Portugal, nem por isso
lucraram no seu português, mais que à influência dessa
roda, ao seu íntimo sentimento literário e à sua intuição
da importância da expressão na literatura, deveu Machado de Assis
a excelência incomparável da sua. Sabia-se por confidência
sua que, escasseando-lhe recursos para adquirir os clássicos, associou-se
no Gabinete Português de Leitura para os ter consigo e extratá-los.
Confirmando esta sua confissão, acharam-se-lhe no espólio literário
numerosas notas e extratos dessas leituras. Sobretudo foi o único que
soube ler os clássicos, mestres dobres e equívocos, com discernimento
e finíssimo tato de escritor nato. Não aprendeu deles mais que
a propriedade do dizer, o boleio castiço da frase, a lídima
expressão vernácula, sem lhes tomar as fórmulas bárbaras
repugnantes ao nosso gosto moderno, nem trasladar-lhes indiscretamente para
os seus escritos — como impertinentemente fizeram Camilo Castelo Branco
e Castilho — o vocabulário ou fraseado obsoleto. As Falenas justificam
o seu título simbólico, nelas se desenvolvem as qualidades já
manifestadas nas Crisálidas, notadamente as da forma poética,
métrica, língua, estilo, esquisito dom de expressão,
em que geralmente sobrelevam a poesia do tempo. Vinte anos antes do parnasianismo
tinham já rasgos deste no sóbrio e requintado da emoção,
no menor individualismo do poeta, que, ao contrário dos últimos
românticos, seus contemporâneos, se escondia e se esquivava. Os
temas pura ou demasiadamente subjetivos, as confissões impudentes do
mais recôndito da sua alma, tão do gosto deles, cediam o passo
a temas mais gerais, menos pessoais ou, quando o eram, tratados mais discretamente,
com mais refinada sensibilidade. Algumas peças desta coleção,
como as da Lira chinesa e Uma ode de Anacreonte, poemeto dramático
em que finura da imaginação pede meças à rara
formosura de expressão, descobrem um poeta em toda a força do
seu talento. Musset e Lamartine, e também André Chenier, e mais
Antônio de Castilho e Garrett, são então os seus principais
mestres de poética. Nenhum, porém, com tal prestígio
que lhe ofusque a originalidade própria. Outros mestres seus, dous
poetas nossos por quem era grande a sua admiração, foram Basílio
da Gama e Gonçalves Dias. Este, não obstante a diferença
dos seus gênios, o impressionou grandemente. Porventura a essa impressão
devemos atribuir a inspiração das Americanas, que, com o Evangelho
das selvas, de Fagundes Varela, do mesmo ano, são a derradeira manifestação
apreciável do indianismo da nossa poesia.

Escritor desde os seus princípios consciente e reflexivo, que nunca
se deixou arrastar pelas modas literárias, e menos correu após
a voga do dia, Machado de Assis, ainda cedendo à influência da
inspiração americana, fê-lo com tão discreto sentimento
e em forma tão pessoal e tão nova, que o seu indianismo, certamente
inferior ao de Gonçalves Dias como emoção e expressão
tocante, tem um sainete particular e uma generalidade maior, o que acaso lhe
assegura um melhor futuro. “Algum tempo, escreveu ele na “advertência”
das Americanas explicando o seu novo livro, foi de opinião que a poesia
brasileira devia estar toda, ou quase toda, no elemento indígena. Veio
a reação, e adversários não menos competentes
que sinceros, absolutamente o excluíram do programa da literatura nacional.
São opiniões extremas que, pelo menos, me parecem discutíveis.”
E não as querendo discutir, limita-se a esta observação
que dirimia definitivamente a questão, se, como me parece certo, o
só critério da obra d’arte é o talento com que
é realizada: “Direi somente que, em meu entender, tudo pertence
à invenção poética, uma vez que traga os caracteres
do belo e possa satisfazer as condições da arte. Ora, a índole
dos costumes dos nossos aborígines estão muita vez neste caso;
não é preciso mais para que o poeta lhes dê a vida da
inspiração. A generosidade, a constância, o valor, a piedada,
hão de ser sempre elementos da arte, ou brilhem nas margens do Scamandro
ou nas do Tocantins. O exterior muda: o capacete de Ajax é mais clássico
e polido que o canitar de Itajuba; a sandália de Calipso é um
primor de arte que não achamos na planta nua de Lindóia. Esta
é, porém, a parte inferior da poesia, a parte acessória.
O essencial é a alma do homem.”

Este final compendia a estética de Machado de Assis. Poeta ou prosador,
ele se não preocupa senão da alma humana. Entre os nossos escritores,
todos mais ou menos atentos ao pitoresco, aos aspectos exteriores das cousas,
todos principalmente descritivos ou emotivos, e muitos resumindo na descrição
toda a sua arte, só por isso secundária, apenas ele vai além
e mais fundo, procurando, sob as aparências de fácil contemplação
e igualmente fácil relato, descobrir a mesma essência das cousas.
É outra das suas distinções e talvez a mais relevante.

Da impressão que o indianismo havia feito na nossa mente, dá
testemunho o fato deste mesmo arguto e desabusado espírito ter-se ainda
deixado enganar por ele, e lhe haver também sacrificado. Mas ainda
assim o seu sentimento não é o mesmo de Gonçalves Dias
ou de Alencar. Tinha Machado de Assis mais espírito crítico
que estes e menos sentimento romântico, e era de todo estranho a quaisquer
influências ancestrais ou mesológicas que porventura atuaram
nos dous, para que caísse completamente no engano do indianismo, como
ainda sucedeu a Varela. Dos costumes, figuras, manhas e feições
do índio e da sua vida que põe em poema, procura sobretudo descobrir
a essência sob as exterioridades exóticas, e por ela revelar-lhe
a alma. Ainda assim esta porção da sua obra é a menos
estimável. Releva-a, porém, a sua interpretação
poética dos temas e a formosura da expressão, nele singular.
Dous ao menos desses poemas, e justamente aqueles que mais se afastam da fórmula
indianista, nos quais a trivial descrição ou exposição
de feitos e gestos indianos é substituída pela sua interpretação
psicológica, Niani e última jornada, são de superior
beleza poética e de rara feitura artística.

As Ocidentais, publicadas na edição das suas Poesias completas
(1901), revêem a influência em Machado de Assis do modernismo,
do qual, desde o seu citado artigo sobre a nova geração de poetas
que se estrearam depois de 1870, ele dera tão exata definição.
São, infelizmente, poucos os poemas cuja inspiração vem
dessa nova corrente. O desfecho, Círculo vicioso, Uma criatura, Mundo
interior, Suavi Mari Magnum, A mosca azul, No alto, mais os distintos quilates
dessa poesia lhe ressarcem sobradamente a quantidade. Com todas as suas brilhantes
e não raro tocantes qualidades de emoção, faltou sempre
à poesia brasileira profundeza de sentimento. Viva, eloqüente
até à facúndia, exuberante, colorida e vistosa, carece
por via de regra de intensidade na sensação e de sobriedade
na expressão. Não quero dizer que estas virtudes lhe faltem
de todo, mas apenas que não são propriamente as suas. Machado
de Assis é um dos poucos poetas nossos que as teve, e distintamente,
e as manifestou, como já ficou notado, desde a sua estréia.
Elas, principalmente sob o aspecto da profundeza, se lhes aperfeiçoaram
nos citados poemas das Ocidentais. É ainda que aí ele não
cedeu à moda do momento, nem acompanhou inconsideradamente, como fizeram
tantos outros, a onda modernista. Apenas desenvolveu-se no sentido dela, que
era o mesmo sentido que trazia o seu pensamento, o do ceticismo sem desespero
e do pessimismo benevolente, ambos de raiz. Mais que sinais, amostras de ambos
encontram-se já nas suas coleções anteriores. O que,
distinção raríssima, acaso única, se não
encontra em nenhum destes poemas é a indiscreta transplantação
para a poesia de cousas científicas ou filosóficas ou algo da
respectiva gíria. Tudo nele, como no verdadeiro poeta, se faz sentimento
e sensação e como tal se exprime, e em forma que é, sem
o rebuscado do Parnasianismo, porventura a mais perfeita alcançada
pela nossa poesia.

Poeta dos mais importantes da literatura brasileira, é Machado de
Assis o mais insigne dos seus prosadores e, no domínio que lhe é
próprio, a ficção romanesca, o maior dos nossos escritores.
Não é somente um escritor vernáculo, numeroso, disserto
e elegantíssimo. Às qualidades de expressão que possui
como nenhum outro, junta as de pensamento, uma filosofia pessoal e virtudes
literária muito particulares, que fazem dele um clássico, no
mais nobre sentido da palavra, — o único talvez da nossa literatura.

Como prosador compreende a sua obra, além de numerosos livros de conto,
romances, teatro, crítica e crônicas jornalísticas. Do
conto foi ele, se não o iniciador, um dos primeiros cultores e porventura
o primacial escritor na língua portuguesa.

Efetivamente ninguém jamais nesta contou com tão leve graça,
tão fino espírito, tamanha naturalidade, tão fértil
e graciosa imaginação, psicologia tão arguta, maneira
tão interessante e expressão tão cabal, historietas,
casos, anedotas de pura fantasia ou de perfeita verossimilhança, tudo
recoberto e realçado de emoção muito particular, que
varia entre amarga e prazenteira, mas infalivelmente discreta. Histórias
de amor, estados d’alma, rasgos de costumes, tipos, ficções
da história ou da vida, casos de consciência, caracteres, gente
e hábitos de toda a casta, feições do nosso viver, nossos
mais íntimos sentimentos e mais peculiares idiossincrasias, acha-se
tudo superior e excelentemente representado, por um milagre de transposição
artística, nos seus contos. E sem vestígio de esforço,
naturalmente, num estilo maravilhoso de vernaculidade, de precisão,
de elegância.

No romance estreou Machado de Assis, em 1872, com o já citado Ressurreição.
A grande novidade deste romance era não ser senão o primeiro
de análise de caracteres e temperamentos, o primeiro ao menos que com
este só propósito aqui se escrevia. Não trazia vislumbre
de intencional brasileirismo vigente. Ao invés declaradamente apontava
a outra cousa que o romance de costumes. O interesse do livro era deliberadamente
procurado no “esboço de uma situação e no contraste
de dois caracteres”. Alencar com Cinco minutos, A viuvinha (1856), aliás
simples novelas, Lucíola (1862) e Diva (1864), e o mesmo Manoel de
Almeida com o Sargento de milícias (1857) podem em rigor cronológico
ser considerados os precursores do nosso romance da vida urbana ou mundana,
da pintura de caracteres e situações e que estes se encontram
e definem, ou mesmo do romance que ao tempo ainda se chamava de fisiológico
e que depois se chamaria de psicológico. Mas o seu criador, pela arte
consciente e engenho com que já o fez em Ressurreição,
e o ensaiara com bom sucesso nos contos e novelas que precederam este livro,
foi Machado de Assis. Neste mesmo romance, como naquelas ficções
menores, embora refugissem ao particularismo nativista, havia já uma
notação exata, ou antes uma clara intuição das
nossas íntimas peculiaridades nacionais. O sempre progressivo exercício
desta faculdade de análise do ambiente, estreme das suas fáceis
representações pitorescas, fariam de Machado de Assis não
obstante o seu desprendimento do brasileirismo, qual o entendiam aqui, porventura
o mais intimamente nacional dos nossos romancistas, se não procurarmos
o nacionalismo somente nas exterioridades pitorescas da vida ou nos traços
mais notórios do indivíduo ou do meio. Como o que sobretudo
lhe interessa é a alma das cousas e dos homens, é ela que ele
procura exprimir e que geralmente exprime com insigne engenho e arte. Ainda
em algum tipo, episódio, ou cena de pura fantasia, nunca a ficção
de Machado de Assis afronta o nosso senso da íntima realidade. Assim,
por exemplo, nesse conto magnífico O Alienista ou nessoutra jóia
Conto alexandrino, como na admirável invenção de Brás
Cubas, e todas as vezes que a sua rica imaginação se deu largas
para fora da realidade vulgar, sob os artifícios e os mesmos desmandos
da fantasia, sentimos a verdade essencial e profunda das cousas, poderíamos
chamar-lhe um realista superior, se em literatura o realismo não tivesse
sentido definido.

Havia entretanto no primeiro romance de Machado de Assis e ainda mais talvez
nos que mais de perto o seguiram, A mão e a luva (1874), Helena (1876),
visíveis ressaibos de romantismo senão do Romantismo. Temperava-os,
porém, já, diluindo-os num sabor mais pessoal e menos de escola,
e sua nativa ironia e a sua desabusada visão das cousas, que o forravam
ao romanesco, à sentimentalidade amaneirada que tanto viciou e desluziu
a nossa ficção. E, mais dons de expressão em que ficou
até agora único e que, sob este aspecto ao menos, o sobrelevam
a todos os nossos escritores, e, não receio dizê-lo, ainda aos
portugueses seus contemporâneos.

Em 1881, com as Memórias póstumas de Brás Cubas atingia
Machado de Assis o apogeu do seu engenho literário, num romance de
rara originalidade, uma obra, a despeito do seu tom ligeiro de fantasia humorística,
fundamente meditada e fortemente travada em todas as suas partes, porventura
a mais excelente que a nossa imaginação já produziu.
As Memórias póstumas de Brás Cubas são a epopéia
da irremediável tolice humana, a sátira da nossa incurável
ilusão, feita por um defunto completamente desenganado de tudo. Desde
a sua cova conta-nos Brás Cubas, numa língua primorosa de simplicidade,
a sua vida do nascimento à morte, a sua família, a sua educação,
o seu meio, os seus primeiros namoros de rapaz e amores de homem, as suas
ambições, os seus amores adulterinos com certa Virgília,
enfim, quanto na vida sequer um momento o interessou ou ocupou de modo a impressionar-lhe
a memória e o entendimento. E só estas faculdades se deixaram
nele tocar por tais sucessos. Viu Brás Cubas, ainda pressentiu a vaidade
de tudo, e como ao cabo todas as cousas são naturais, necessárias,
determinadas por um conjunto de condições que não são
essencialmente nem boas, nem más, e pelas quais é sábio
não nos abalarmos, não se deixou jamais comover. No fundo de
tudo há sempre um todo nada de ridículo, de comédia,
de falsidade, de fingimento, de cálculo. Tolo é quem se deixa
enganar com as aparências, “empulhar”, segundo o verbo muito
do gosto de escritor. Mas a humanidade, a sociedade, é assim feita
e não há revoltar-nos contra ela e menos querê-la outra.
A vida é boa, mas com a condição de não a tomarmos
muito a sério. Tal é a filosofia de Brás Cubas, decididamente
homem de muitíssimo espírito. Ele viveu quanto pode, segundo
este seu pensar, e se com o seu pessimismo conformado e indulgente não
se achou logrado “ao chegar ao outro lado do mistério”, foi
porque verificou um pequeno saldo no balanço final da sua existência.
“Não tive filhos, — escreveu na última página
das suas Memórias, — não transmiti a nenhuma criatura
o legado da nossa miséria.”

Desta arriscada repetição do velho tema da vaidade de tudo
e do engano da vida, a que o Eclesiaste bíblico deu a consagração
algumas vezes secular, saiu-se galhardamente Machado de Assis. Transportando-o
para o nosso meio, incorporando-o no nosso pensamento, ajustando-o às
nossas mais íntimas feições, soube renová-lo pela
aplicação particular, pelos novos efeitos que dele tirou, pelas
novas faces que lhe descobriu e expressão pessoal que lhe deu.

As Memórias póstumas de Brás Cubas eram o rompimento
tácito, mais completo e definitivo de Machado de Assis, com o Romantismo
sob o qual nascera, crescera e se fizera escritor. Aliás conquanto
necessariamente lhe sofresse a influência, nunca jamais se lhe entregara
totalmente nem lhe sacrificara o que de pessoal e original havia no seu engenho,
e acharia em Brás Cubas a sua cabal expressão. A sua primeira
obra de contador, Histórias da meia-noite (1869), Contos fluminenses
(1873), com os seus primeiros livros de romancista, o já nomeado Ressurreição,
A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), traziam
ressaibos românticos, embora atenuados pelo congênito pessimismo
e nativa ironia do autor. Ora o Romantismo não comportava nem a ironia
nem o pessimismo, na forma desenganada, risonha e resignada de Machado de
Assis. Mas os contos que sucederam imediatamente àqueles, Papéis
avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias histórias
(1905), muitos deles anteriores a Brás Cubas, trazem já evidente
o tom deste. Desde, portanto, os anos de 70, renunciando ao escasso Romantismo
que nele havia, criava-se Machado de Assis uma maneira nova, muito sua, muito
particular e muito distinta e por igual estreme daquela escola e das novas
modas literárias. Nessa maneira, particularmente em Brás Cubas
e em Quincas Borba (1891), que se lhe seguiu e que a certos respeitos o continua,
vislumbra-se mais do que se percebe, o remoto influxo dos humoristas ingleses,
e antes dos seus processos formais que do fundo, que este é de raiz
do autor. Com a escrupulosa probidade literária que foi uma das suas
virtudes, ele próprio o publicou no prefácio do primeiro. Em
Dom Casmurro (1899), em Esaú e Jacó (1904) e sobretudo em Memorial
de Aires (1908), o seu último livro, desaparecem esses laivos de influência
peregrina. Como correspondessem perfeitamente à sua própria
índole literária, transubstanciaram-se-lhe no engenho e estilo.

Com a variedade de temas, de enredos de ações, de episódios,
que distinguem cada romance de Machado de Assis no conjunto de sua obra, há
em todos uma rara unidade de inspiração, de pensamento e de
expressão. Todos, porém, representam, talvez com demasiado propósito,
mas sem excesso de demonstração, a tolice e a malícia
humanas. É este o tema geral, e ao mesmo tempo o duende, o espantalho
do escritor. Ele descobriu esses estigmas e os expôs sob todas as suas
faces e modalidades, até ao amor paterno ou na ternura materna, nas
ações mais sublimes e nos atos mais corriqueiros, e não
por um propósito também malicioso ou simplesmente literário,
mas porque os seus olhos de artista — o que pode ser uma inferioridade
ou um defeito — não os viam senão assim, e a sua íntima
sinceridade lhe não permita modificar a própria visão
por comprazer com o gosto vulgar. Mas como a sua faculdade mestra é
a imaginação humorística, isto é, a visão
pessimista das cousas, através da inteligência da sua necessidade
e contingência e do sentimento da nossa importância contra elas,
as viu com risonho desdém ou com irônica benevolência.
Essa visão ele a tem agudíssima, e a sua análise das
almas sem alguma presunção de psicológica, antes desdenhosa
do epíteto, tem uma rara percepção dos seus mais íntimos
segredos. Dom Casmurro é exemplo desta sua superior faculdade de romancista,
comprovada aliás em toda a sua obra. É o caso de um homem inteligente,
sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça
que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada,
com a sua profunda ciência congênita de dissimulação,
a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento
pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho amigo
de infância, também um dissimulado, sem que ele jamais o percebesse
ou desconfiasse. Somente o veio a descobrir quando lhe morre num desastre
o amigo querido e deplorado. Um olhar lançado pela mulher ao cadáver,
aquele mesmo olhar que trazia “não sei que fluido misterioso e
enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que
se retira da praia, nos dias de ressaca”, o mesmo olhar que outrora o
arrastara e prendera a ele e que ela agora lança ao morto, lhe revela
a infidelidade dos dois. Era impossível em história de um adultério
levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo.
Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético
indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação
de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte.
Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos
seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia
nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos.

Porque este sujeito tímido, apagado, pequenino, modesto, que parecia
deslizar na vida com a preocupação de não incomodar a
ninguém, de não ser molesto a pessoa alguma, era, de fato, um
homem com energias íntimas, caladas, recônditas, mas invencíveis.
Assim como fazer-se uma posição social, nunca transigiu com
a sociedade e suas mazelas, também nunca, como escritor, condescendeu
com as modas literárias que não dissessem com o seu temperamento
artístico, ou seguiu por amor da voga as correntes mais no gosto do
público. A este pode afirmar-se que não fez em toda a sua obra
a menor concessão.

Já velho, com sessenta e oito anos, e não foi jamais robusto,
escreveu ainda um livro admirável, o Memorial de Aires, inspirado na
saudade da esposa e companheira muito amada, já chorada no sublime
soneto que antepusera às Relíquias de casa velha, o primeiro
que deu à luz depois da morte dela. Memorial de Aires é talvez
o único livro comovido, de uma comoção que se não
procura esconder ou disfarçar e de emoção cordial e não
somente estética, que escreveu Machado de Assis. Com a peregrina arte
de transposição que possuía e que só revelaria
plenamente a história de seus livros, mas que podemos avaliar pelo
pouco que dela sabemos, idealizou Machado de Assis, num suave romance contado
por terceiro, um velho diplomata espirituoso e desenganado, o Conselheiro
Aires, o seu palácio e feliz viver doméstico. Não que
o indicasse ou sequer o insinuasse. Descobriram-no os que lhe conheceram a
vida, e eram bem poucos, pois nunca se “derramou” e odiava os “derramados”,
na emoção nova que discretamente, sobriamente, recatadamente,
como que receosa de profanar na publicidade cousas íntimas e sagradas,
aparecia nesse delicioso livro, um dos mais tocantes da nossa literatura.

As estréias literárias de Machado de Assis coincidiram com
o melhor momento do nosso teatro em toda a evolução da nossa
literatura, entre os anos de 50 e 70, particularmente o decênio intermédio.
Os melhores dos nossos literatos de então escreveram para o teatro
e acharam quem os representasse e quem os fosse ouvir, o que nunca mais aconteceu
depois. A nossa bibliografia teatral dessa época é a mais copiosa
de toda a nossa literatura, e havia pelo teatro nacional interesse e curiosidade
que depois desapareceu de todo, com a concorrência do teatro estrangeiro
importado por companhias alienígenas. A influência do momento
e o gosto que pessoalmente tinha pelo teatro, mais que decidida vocação,
levaram Machado de Assis a tratá-lo.152 Com a segura consciência
que do seu próprio engenho tinha, ele próprio mal se iludira
sobre a sua aptidão para o teatro. Numa carta-prefácio de suas
peças publicadas em 1863, O caminho da porta e O protocolo, confessava,
podemos crer que sinceramente: “Tenho o teatro por cousa muito séria
e as minhas forças por cousa insuficiente; penso que as qualidades
necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com
o tempo e o trabalho…” Sem dúvida, mas as qualidades, sobretudo
as inferiores, as habilidades do ofício de autor dramático,
a acomodação ao gosto público e à perspectiva
particular da rampa, uma porção de dons somenos, mas essenciais
ao bom sucesso na arte inferior que é o teatro, faltavam a Machado
de Assis. No teatro nunca pode ele passar de composições ligeiras,
ao gosto de “provérbios” franceses, sainetes, contos porventura
espirituosamente dialogados, algumas encantadoras de graça fina e elegante
estilo, mas sem grande valor teatral. Tais são os Deuses de casaca,
comédia levemente satírica da nossa vida social e política,
em formosos alexandrinos, em que se revê a influência de Castilho;
Tu, só tu, puro amor, pequena obra-prima, alguma cousa como uma deliciosa
figurinha de Tânagra no meio das esculturas de Fídias; Não
consultes médico, sainete digno de Musset. Tudo, porém, não
passava de um ano, excelente como literatura amena para deleitar-nos uma hora,
mas sem a ação, a força, a emoção que deve
trazer a obra teatral. Basta que esta por sua mesma natureza se enderece a
uma platéia, que será sempre em maioria composta de ignaros
ou simples, para que lhe não bastem as qualidades propriamente literárias.

Como crítico, Machado de Assis foi sobretudo impressionista. Mas um
impressionista que, além da cultura e do bom gosto literário
inato e desenvolvido por ela, tinha peregrinos dons de psicólogo e
rara sensibilidade estética. Conhecimento do melhor das literaturas
modernas, inteligência perspicaz desabusada de modas literárias
e hostil a todo pedantismo e dogmatismo, comprazia-lhe principalmente na crítica
a análise da obra literária segundo a impressão desta
recebida. Nessa análise revelava-se-lhe a rara finura e o apurado gosto.
Que não era incapaz de outra espécie de crítica em que
entrasse o estudo das condições mesológicas em que se
produziu a obra literária, deu mais de uma prova. Com o fino tato literário
e reflexivo juízo, que o assinalam entre os nossos escritores, no ensaio
crítico atrás citado sobre o Instituto da nacionalidade, na
nossa literatura ajuizou com acerto, embora com a benevolência que as
mesmas condições da sua vida literária lhe impunham,
os seus fundadores e apontou com segurança os pontos fracos ou duvidosos
de certos conceitos literários aqui vigentes, emendando o que neles
lhe parecia errado e aventando opiniões que então, em 1873,
eram de todo novas. Ninguém, nem antes nem depois, estabeleceu mais
exata e mais simplesmente a questão do indigenismo da nossa literatura,
nem disse cousas mais justas do indianismo e da sua prática.

Em suma Machado de Assis, sem ter feito ofício de crítico,
é como tal um dos mais capazes e mais sinceros que temos tido. Respeitador
do trabalho alheio, como todo o trabalhador honesto, mas sem confundir esse
respeito com a condescendência camaradeira, estreme de animosidades
pessoais ou de emulações profissionais, com o mínimo
dos infalíveis preconceitos literários ou com a força
de os dominar, desconfiado de sistemas e assertos categóricos, suficientemente
instruído nas cousas literárias e uma visão própria,
talvez demasiadamente pessoal, mas por isso mesmo interessante da vida, ninguém
mais do que ele podia ter sido o crítico cuja falta lastimou como um
dos maiores males da nossa literatura. Em compensação deixou-lhe
um incomparável modelo numa obra de criação que ficará
como o mais perfeito exemplar do nosso engenho nesse domínio.

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