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Eurípedes
PERSONAGENS
UM TRABALHADOR MICENIENSE
ELECTRA
ORESTES
PÍLADES
CLITEMNESTRA
UM ANCIÃO
UM MENSAGEIRO
OS DIÓSCUROS
O CORO
Um trabalhador miceniense
O TRABALHADOR
Ó veneranda Argos, da terra por onde corre o Ínaco, e de onde,
outrora, comandando mil navios de guerra, até as plagas de Tróia
velejou o rei Agamêmnon! Tendo vencido a Príamo, que reinava
sobre a terra ilíada, ele retornou a Argos, deixando em ruínas
a cidade ilustre de Dárdano; e depositou nos altos templos numerosos
despojos daqueles bárbaros. Foi feliz, lá na Ásia, sim!
— mas, aqui, de regresso ao lar, pereceu vítima da astúcia
de sua esposa Clitemnestra, e sob o golpe de Egisto, filho de Tiestes. Pereceu
o detentor do cetro antigo de Tântalo; e é Egisto quem manda
agora nesta terra, e possui a Tíndaris, esposa do Atrida. Este deixara
em sua casa, ao partir para Tróia, seu filho Orestes e sua filha Electra.
Um velho, que fora mestre do pai, conseguiu levar consigo Orestes, quando
Egisto ia matá-lo; e confiou-o, na terra de Focéia, a Estrófio,
para que o criasse; mas a jovem Electra permaneceu no lar paterno. Logo que
atingiu a puberdade, os mais ilustres helenos pediram-lhe a mão; mas
o usurpador, receando que do consórcio da princesa com um árgio
eminente nascesse um descendente que vingasse um dia a morte de Agamêmnon,
preferiu conservá-la solteira. Mesmo assim, temendo sua união,
em segredo, com algum homem ilustre, resolveu sacrificá-la; mas sua
mãe, embora cruel, salvou-a das mãos de Egisto. Com efeito,
ela tivera razão para sacrificar seu primeiro marido; mas temia atrair
sobre si o ódio geral com a morte dos filhos. Eis por que Egisto urdiu
este plano: exilado o filho de Agamêmnon, como estava, ele prometeu
avultado prêmio a quem o matasse; e a mim, que descendo de pais micênios,
me deu Electra por esposa. Em rigor, não mereço censura, visto
que sou oriundo de família ilustre; mas sou pobre, e minha alta hierarquia
está prejudicada pela pobreza… É certo que, dando-a a um homem
humilde, nada tem a temer, ao passo que se a unisse a um esposo nobre, arriscar-se-ia
a ver relembrado o assassínio de Agamêmnon, e a sofrer, um dia,
o merecido castigo. Mas nunca — que o diga a deusa Vênus! —
nunca manchei o leito de Electra; ela continua virgem! Com efeito, seria odioso,
para mim, violentar uma jovem, filha de gente ilustre, e a quem eu não
quereria esposar. Lamento, porém, que o infortunado Orestes, meu parente
apenas de nome, se algum dia voltar a Argos, venha a saber deste infeliz casamento
de sua irmã. E se alguém me considerar insensato, porque recebi
uma jovem como esposa, e a conservo intacta, saiba que insensato será
quem assim pensa.
O TRABALHADOR, ELECTRA, depois ORESTES e PÍLADES
ELECTRA
Ó Noite escura, nutriz dos astros de ouro; sob teu manto de sombra
eu vou, com este cântaro à cabeça, em busca da fonte…
Não que me veja reduzida a tão grande miséria, mas para
mostrar aos deuses os crimes de Egisto, e espalhar, pelo espaço afora,
minhas lamentações por meu pai. Expulsou-me Tíndaris
de seu lar, para agradar ao marido; e desde que deu um filho a Egisto, considera-nos,
a Orestes e a mim, como estranhos em sua casa…
O TRABALHADOR
Ó infeliz, por que fazes essas coisas para mim, e trabalhas dessa
forma, tu, que foste educada com tanto carinho? Por que, apesar de minhas
exortações, não vais repousar?
ELECTRA
Eu te considero um amigo, como são para mim os deuses, porque não
me ofendeste em minha desgraça. Para os mortais é uma felicidade
encontrar quem os conforte no infortúnio. Cumpre-me, pois, mesmo sem
tua ordem, auxiliar-te no trabalho em quanto puder, para que possas suportar
mais facilmente teus penosos encargos. Tens muito que fazer fora de casa;
devo, portanto, zelar pelos serviços domésticos.
Quando o lavrador volta, é grato encontrar tudo em boa ordem em sua
casa.
O TRABALHADOR
Se te apraz, vai… A fonte não fica longe daqui. Eu me encarrego
de levar, desde a madrugada, os bois ao campo, e tratarei de lavrar a terra.
Nenhum preguiçoso, ainda que tenha o nome dos deuses nos lábios,
conseguirá alimento sem trabalho.
(Sai O TRABALHADOR)
ORESTES
Ó Pílades, tu és, entre os homens, o mais fiel dos amigos,
porque és o único dos amigos de Orestes que não o abandonou
no infortúnio, quando me fazem sofrer cruelmente Egisto (que matou
meu pai), e minha mãe, que o ajudou na prática desse crime.
Agora, confiando na palavra de uma divindade, e sem que ninguém saiba,
volto a esta terra argiana, disposto a dar a morte aos assassinos de meu pai.
Visitei, esta noite, seu túmulo; ofereci-lhe minhas lágrimas
e as primícias de meus cabelos; e, à revelia dos tiranos que
mandam nesta terra, deitei ao fogo crematório o sangue de uma ovelha.
Não porei os pés no recinto da cidade, por ora. Tenho um duplo
e urgente desejo, como sabes; mas permanecerei na fronteira do estado para
que a qualquer momento possa evadir-me caso alguém me reconheça
durante a busca que darei, a fim de rever minha irmã… Dizem que ela
foi obrigada a casar-se… que não consentiram que continuasse solteira…
Quero combinar com ela a vingança, e saber dela o que se passa no palácio.
Cuidado! Eôs já se mostra clara e iluminada; não deixemos
sinais de nossa passagem por esta vereda. Havemos de encontrar um lavrador,
ou uma camponesa, que nos informe se minha irmã reside por estas bandas.
Vejo ali uma criatura que conduz à cabeça uma vasilha d’água.
Sentemo-nos por aqui mesmo, Pílades, e tratemos de saber, por esta
escrava, se é possível apurar alguma notícia concernente
aos fins que me trouxeram a esta terra.
ELECTRA, O CORO
ELECTRA
Apressa teus passos, que já é tempo! Caminha, caminha!
Chora, mas sempre avante! Ai de mim! Sou filha de Agamêmnon, e da odiosa
filha de Tíndaro! Clitemnestra me deu a vida; os cidadãos me
chamam Electra. Pobre de mim! A que triste condição me reduziu
a sorte! Ó meu pai! E tu jazes na região sinistra do Hades,
massacrado por tua própria esposa, e Egisto!
Renova, ó infeliz, tuas lamentações!
Deixa que corram de novo estas lágrimas que aliviam! Caminha, caminha
mais ainda, imersa em tua dor… Ai de mim! Em que cidade estarás
tu, ó meu desventurado irmão, que deixaste
tua irmã tão digna de lástima, na miséria da casa
paterna! Livra-me de tanta desventura, ó Júpiter possante!
Conduze teus passos a Ágis, e vinga a morte de meu pai!
Aqui deporei esta urna, descansando minha cabeça; aqui
direi a meu pai meus queixumes em gritos de dor, e cantarei
o hino em honra de Plutão. Querido pai, da sepultura onde repousas,
ouve este clamor que sem cessar faz ouvir minha garganta lacerada, e que eu
repito arrancando os cabelos de desespero, ao pensar em tua morte!
Tal como um cisne aflito, que nas águas do rio procura em vão
os seus, colhidos pelas redes e armadilhas, assim também eu choro por
ti, meu infeliz pai!
Meu infeliz pai, que ao regressar de Tróia, ao cabo de tão
longa ausência, encontraste a morte, a morte cruel pelo machado,
conseqüência da traição de minha mãe,
que ao invés de te receber com flores e coroas festivas, preferiu entregar-te
à fúria assassina de Egisto, e ainda desposou esse infame adúltero!
O CORO
Ó filha de Agamêmnon, desventurada Electra, nós vimos
ver-te em tua agreste morada. Um montanhês de Micenas acaba
de chegar, e trouxe a notícia de que os Argivos farão um holocausto
dentro de três dias, e que todas as virgens são convocadas ao
templo de Juno.
ELECTRA
Meu coração não se preocupa com colares de ouro; não
farei parte do coro das virgens argivas. As lágrimas
substituem, para mim, as danças festivas… estas lágrimas
que todos os dias vertem meus olhos. Vede o estado de meus cabelos e de minhas
vestes. Por acaso condizem com a situação de uma princesa?
Ou se assemelham aos de uma troiana escrava que na guerra tenha caído
prisioneira de meu pai?
O CORO
A deusa é poderosa! Vem, Electra! Aceita de nós as luxuosas
vestes e os ornamentos de ouro que te daremos para realce de tua cintilante
formosura. Pensas tu, que chorando, e esquecendo o culto
devido aos deuses, levarás vantagem a teus inimigos? Não! Não
será com inúteis lamentações, mas sim, honrando
os deuses com tuas preces, que hás-de readquirir a felicidade
perdida.
ELECTRA
Nenhuma divindade ouve os clamores de uma mísera criatura,
nem se recorda dos antigos sacrifícios que meu pai lhe ofereceu.
Ai de mim! — meu pai está morto, e meu irmão vagando em
terra estranha, procura, talvez, um abrigo, — ele, que descende de um
progenitor tão ilustre! E quanto a mim, vivo numa pobre choupana,
sofrendo o desgosto de me ver exilada da casa paterna, enquanto
minha mãe se uniu criminosamente a outro, num lar maculado pelo crime!
O CORO
Helena, a irmã de tua mãe, foi a causadora de imensas desgraças
para os gregos, e para tua família.
ELECTRA
Está bem, amigas: eu deixarei de me lamentar. Aproximam-se de nós
vultos suspeitos, que parecem sair de algum esconderijo. Fujamos; vós,
por este atalho, e eu, no rumo de minha casa, para evitar estes malfeitores.
ORESTES
Não fujas, criatura: nada temas de mim.
ELECTRA
Ó Apolo! eu te peço! Faze com que eu não morra!
ORESTES
Não é a ti que pretendo ferir, mas a outros, que
me são odiosos.
ELECTRA
Vai-te embora daqui! Não toques em quem é vedado
tocar.
ORESTES
Talvez não haja no mundo pessoa a quem eu possa abraçar com
mais direito!
ELECTRA
Dize: por que razão me surpreendes perto de minha casa, assim armado
com uma espada?
ORESTES
Acalma-te, e ouve, porque estarás dentro em breve de
inteiro acordo comigo.
ELECTRA
Pois seja! Estou a teu dispor, visto que és o mais forte.
ORESTES
Trago-te notícias de teu irmão.
ELECTRA
Oh! De meu querido irmão! Dize: está ele vivo ou
morto?
ORESTES
Está vivo. Quero dar-te boas notícias.
ELECTRA
Sê feliz, amigo, em paga de tuas confortadoras palavras!
ORESTES
Para que sejamos ambos felizes é que te venho dizê-las.
ELECTRA
Em que lugar, em que terra anda esse infeliz exilado?
ORESTES
Ele não sofre sob as leis de uma só cidade, mas de várias.
ELECTRA
Falta-lhe o alimento, talvez?
ORESTES
Não; ele tem com que se nutrir: mas um desterrado é
sempre um indigente.
ELECTRA
E que notícias trazes dele?
ORESTES
Ele quer saber se tu vives, e de que sofrimentos tua vida está amargurada.
ELECTRA
Tu bem vês o quanto estou magra e abatida.
ORESTES
Vejo, sim, que deves ter sofrido muito, e isso me comove profundamente.
ELECTRA
Meus cabelos foram cortados rente, ficando-me a cabeça
devastada como a das bárbaras.
ORESTES
Teu pai já não vive… e teu irmão te dá
cuidados, sem dúvida…
ELECTRA
Pobre de mim! Que tinha eu, no mundo, de mais precioso do que eles?
ORESTES
Por acaso teu irmão terá alguém, a quem ele preze mais
do que a ti?
ELECTRA
Ele está longe… e não me pode valer com seu fraternal afeto.
ORESTES
Por que vives aqui, longe da cidade?
ELECTRA
Fui forçada a aceitar, ó estrangeiro, um casamento desastroso.
ORESTES
Teu irmão ficará desgostoso… Casaste com um micênio?
ELECTRA
Sim: mas não um daqueles com quem meu pai quereria ver-me casada.
ORESTES
Conta-me, pois, para que eu transmita a teu irmão o que me disseres.
ELECTRA
Pois bem: eu vivo aqui, nesta choupana.
ORESTES
Parece-me casa de um lavrador, ou vaqueiro.
ELECTRA
Pois é um homem pobre, mas generoso, que me respeita.
ORESTES
Mas que respeito poderá tributar à esposa, o seu marido?
ELECTRA
É que ele jamais ousou aproximar-se de meu leito.
ORESTES
Por acaso possui o dom da castidade divina, ou te julga indigna dele?
ELECTRA
Ele não quer ofender a minha família.
ORESTES
Como se explica que ele não tenha ficado satisfeito com semelhante
consórcio?
ELECTRA
Ele sabia, estrangeiro, que quem me forçou a esse casamento,
não tinha o direito de o fazer.
ORESTES
Ah! Compreendo… ele receou a cólera de Orestes…
ELECTRA
Acredito… mas asseguro que é um homem digno.
ORESTES
Sim; pelo que dizes, é um homem generoso, e deve ser bem tratado.
ELECTRA
Sim… se aquele que anda ausente, ainda voltar um dia a seu lar.
ORESTES
E tua mãe, que te criou, consentiu nisso?
ELECTRA
As mulheres, ó estrangeiro, amam os homens, não aos filhos.
ORESTES
Por que assim te ultrajou Egisto?
ELECTRA
Ele quer que meus filhos sejam uns pobres submissos, e julgou que o conseguiria
dando-me tal marido.
ORESTES
Certamente para que teus filhos nunca venham a ser vingadores!…
ELECTRA
Foi esse o plano… Tomara que ele sofra um dia o castigo desse crime!
ORESTES
E o marido de tua mãe sabe que continuas virgem?
ELECTRA
Não… ele ignora o que se passa, porque resolvemos
guardar segredo.
ORESTES
Estas mulheres que nos ouvem são tuas amigas?
ELECTRA
Sim… Podemos confiar; elas guardarão em sigilo tuas palavras, e
as minhas.
ORESTES
Que pensas tu que faria Orestes, se voltasse a Argos?
ELECTRA
Tu ainda perguntas? Acaso não sabes que as coisas chegaram
ao mais alto grau de ignomínia?
ORESTES
Compreendo… Mas, uma vez de volta, como poderia ele matar os assassinos
do pai?
ELECTRA
Usando, para com esses inimigos, da mesma audácia com que vitimaram
a Agamêmnon.
ORESTES
E tu, prestando-lhe auxílio, terias coragem de matar tua mãe?
ELECTRA
Sem dúvida! E com o mesmo ferro com que meu pai foi ferido.
ORESTES
Poderei dizer isso a Orestes? Tua resolução é inabalável?
ELECTRA
Sim! Ainda que eu tenha de morrer, logo após o derramamento do sangue
de minha mãe!
ORESTES
Ah! Prouvera aos deuses que Orestes estivesse aqui, e ouvisse tudo isso!
ELECTRA
Mas, estrangeiro, mesmo que eu o veja, não o reconhecerei…
ORESTES
Não admira: foste separada dele quando éreis ambos ainda crianças!
ELECTRA
Um só de meus amigos poderia reconhecê-lo!
ORESTES
Não será aquele que, segundo dizem, o salvou da morte?
ELECTRA
Sim! O mestre de meu pai, um homem já idoso…
ORESTES
Mas teu pai recebeu sepultura?
ELECTRA
Uma sepultura vulgar… fora da cidade.
ORESTES
Pobre de mim! Oh! que digo eu! O pesar pelos males alheios aflige os homens!
Mas, continua a falar, a fim de que eu, bem informado de tudo, possa transmitir
a teu irmão este relato doloroso, que ele precisa conhecer. A compaixão
é natural, não nas naturezas rudes, mas no coração
dos sábios; mas a prudência em excesso pode ser prejudicial a
quem a possui.
O CORO
Também nós estamos ansiosas por ouvir a verdade
sobre tudo isso. Habitamos longe da cidade, e não conhecemos
os males que nela se praticam; mas desejamos conhecê-los.
ELECTRA
Eu falarei, visto que é mister que eu fale; convém confiar
aos amigos as minhas desditas e as de meu pai. Eu te peço, ó
forasteiro, que informes Orestes acerca da minha sorte e da de meu pai; dize-lhe
que sórdidos panos me servem de vestuário; em que imundície
vivo, e sob que pobre teto habito eu, uma descendente de estirpe real! Que
fiz eu própria minhas roupas, sem o que estaria nua e sem agasalho;
que eu própria carrego água do rio, que me privo de assistir
às festas sagradas, e as danças; que evito a convivência
com as mulheres, e que continuo virgem, já tendo retornado para a companhia
dos deuses, meu primo Castor, a quem eu fora prometida por meus pais. Que
minha mãe, cercada de troféus vindos da Frígia, está
no trono; em torno dela, escravas asiáticas, trazidas por meu pai,
e cobertas de mantos lidianos com presilhas de ouro. E que o sangue escuro
de meu pai mancha ainda as paredes, e aquele que o matou sobe, publicamente,
ao carro que pertencia ao rei, e glorifica-se de conduzir, nas mãos
estigmatizadas pelo crime, o cetro com o qual sua
vítima reinava sobre os Helenos. E que o túmulo de Agamêmnon
está abandonado; nunca recebeu libações, nem ramos de
murta: sua fogueira nunca teve oferendas. Sempre em estado
de embriaguez, o ilustre marido de minha mãe, — como o apelidaram
— insulta o túmulo, ataca a pontapés o marco funerário
de meu pai, ousando proferir estas palavras: “Onde está teu filho
Orestes?” “Estará ele defendendo corajosamente tua memória?”
Meu irmão ausente é assim ultrajado, estrangeiro; eu te peço,
conta-lhe tudo isto! Eu sou a intérprete de muitas vozes
que chamam por ele, ansiosamente! Com os braços, com
os lábios, com o coração amargurado, com
os cabelos sacrificados, eu chamo por ele, como a memória
de meu pai, também! É incrível que o filho de um herói,
que dominou a tantos Frígios, não possa matar um homem só,
sendo jovem, e descendente de um pai ilustre!
O CORO
Eis que se aproxima, rumo da casa, o homem que dizes ser teu marido,
e que terminou seu trabalho.
Volta O TRABALHADOR
O TRABALHADOR
Oh! Quem são estes estrangeiros que vejo perto de minha casa? Por
que motivo vieram ter a este rude vestíbulo? Querem alguma
coisa comigo? Porque não é decente, para uma mulher, demorar-se
em conversa com jovens desconhecidos.
ELECTRA
De nada suspeites, meu caro. Estes forasteiros vieram trazer-me notícias
de Orestes. Senhores, perdoai o que ele disse.
O TRABALHADOR
E que dizem eles? Vive ainda Orestes? Vê a luz do sol?
ELECTRA
Eles afirmam que sim, e eu creio no que me dizem.
O TRABALHADOR
Lembra-se ele ainda de teu pai, e de tua infelicidade?
ELECTRA
Devemos admitir que sim. Mas um exilado nada pode fazer…
O TRABALHADOR
E que recado de Orestes te trouxeram?
ELECTRA
Ele os enviou para que obtivessem notícias de minha situação.
O TRABALHADOR
Uma boa parte eles estão vendo aqui; quanto ao mais, tu lhes contaste?
ELECTRA
Já sabem de tudo; nada lhes ocultei.
O TRABALHADOR
Conviria, pois, que as portas lhes tivessem sido já abertas.
Entrai em nossa casa. Em troca das notícias que trouxestes, aceitai
a hospitalidade, tal como minha pobre casa permite. Servos, conduzi para dentro
a bagagem destes senhores. E vós, que viestes, como amigos, que sois,
de quem é nosso amigo, não deixeis de nos atender. Embora pobre,
quero mostrar-vos que tenho bom coração.
ORESTES
Pelos deuses! dize: foi este homem que não quis se unir a ti, para
não ofender a Orestes?
ELECTRA
Ele mesmo; é quem dizem ser o marido da infeliz Electra.
ORESTES
Ah! Não há sinal seguro quanto à virtude de um homem.
A natureza dos mortais nos induz à confusão… Já vi
o filho de um homem ilustre tornar-se um nulo, e filhos de criaturas perversas
revelarem nobres qualidades. Tenho visto a miséria na alma de um ricaço,
e um belo espírito no corpo de um pobretão. Como havemos de
discernir as coisas? Pela riqueza? Seria um péssimo guia… Pelo que
nada tem? Mas a pobreza não raro instiga ao mal aquele a quem tudo
falta. Devemos nos regular pelas armas? Mas quem pode assegurar, vendo uma
lança, que o indivíduo que a leva é valente? O melhor
é deixar correr o mundo… Com efeito, este homem é obscuro
entre os Argivos, não se orgulha da glória dos seus antepassados;
é um filho do povo; mas é digno de louvor. Não vos tornais
mais sábios vós, que tendes sido iludidos por inseguros juízos,
e não considerais mais generosos os homens conforme seu carácter,
e seus costumes? Tais são os que governam com prudência as cidades
e os lares; mas os corpos sem espírito valem menos que as estátuas
da ágora. Um braço robusto não sustém melhor a
lança do que um mais fraco; é a índole, e o valor moral
que tudo fazem. Por isso mesmo, esteja ou não presente, o filho de
Agamêmnon, por quem viemos, é digno desta acolhida; aceitemos
o asilo que nos oferece este bom homem. Entremos, servos; um hóspede
pobre e apressado agradará menos que um rico. Merece louvores a hospitalidade
que nos proporciona esta gente. Eu gostaria, porém, que teu irmão,
restituído à felicidade, me acolhesse em sua casa. Ele virá,
certamente, pois as profecias de Lóxias são infalíveis.
Mas eu não dou importância aos vivos…
O CORO
Agora mais do que nunca, Electra, reanimemos, pela alegria, os nossos corações.
É a fortuna — quem sabe? — que caminha embora com sacrifício,
e aqui virá ter, para nossa felicidade!
ELECTRA
Mas, — infeliz! — visto que sabes quanto é pobre tua residência,
por que recebes hóspedes que estão muito acima de ti?
O TRABALHADOR
Que sejam de alta estirpe, como nos parece, e que nossos alimentos sejam
abundantes, ou não, por acaso não os aceitarão eles?
ELECTRA
Pois bem: já que não lograste obter senão o pouco que
possuis, vai procurar o velho administrador de meu querido pai, o qual, expulso
da cidade, apascenta seus rebanhos perto do rio Tánais, fronteira que
separa a terra de Argos do solo espartano, e ordena-lhe que volte a sua casa
e nos traga alguns acepipes para o alimento dos estrangeiros. Ele ficará
satisfeito ao saber que o menino cuja vida salvou outrora, vive até
hoje. Com efeito, não será do solar paterno, nem de minha mãe,
que poderemos receber qualquer auxílio. A infeliz sentiria uma dor
profunda se soubesse por nós que Orestes vive ainda.
O TRABALHADOR
Eu irei, visto que assim queres, levar àquele velho esta notícia;
mas volta a nossa casa, e trata dos preparativos domésticos. Uma mulher
quando assim quer, acha sempre alguma coisa para uma refeição;
e nós havemos de ter o bastante para satisfazer a nossos hóspedes
ao menos por um dia. Nestas ocasiões é que eu penso no grande
poder da riqueza, que nos permite receber os hóspedes, e salvar-nos
na doença. Mas, elas servem para a nutrição de cada dia,
porque toda a humana criatura, seja pobre, ou seja rica, se farta da mesma
maneira.
(Sai O TRABALHADOR)
O CORO
Salve, gloriosas naus, que graças a inúmeros remos, aportastes
um dia a Tróia, dançando como as Nereidas, lá onde o
delfim, amigo da flauta, saltava junto às proas azuladas — e
conduzindo o filho de Tétis, Aquiles, de pés ligeiros, com Agamêmnon,
para as margens troianas do Simois!
E as Nereidas, tendo deixado as margens do Eubóis, traziam-lhe as
armas bem trabalhadas, sobre as bigornas de ouro de Efaístos, através
do Pélion, e dos altos bosques sagrados do Ossa, e das Cavernas das
Ninfas, onde seu pai, cavaleiro, alçava a luz da Hélade, o filho
da marítima Tétis, Aquiles, dos pés ligeiros, sustentáculo
dos Atridas!
Soubemos por um homem vindo de Ílion no porto de Náuplia, que
no círculo de teu admirável escudo, ó filho de Tétis,
estavam esculpidas estas imagens, terror dos frígios.
Na beirada do escudo, Perseu voando por sobre o mar, com sandálias
aladas, e levando a cabeça da Górgona decapitada;
depois, o Mensageiro de Zeus, Hermes, o filho agreste de Maia!
E, no meio do resplendente escudo, o disco brilhante do Sol, sobre seus cavalos
alados, e o coro etéreo dos astros, as Plêiades, as Híades,
formidáveis aos olhos de Heitor! E sobre teu casco,
ornado de imagens de ouro, estavam as esfinges, que conduziam nas garras uma
presa celebrada pelos aedos! E sobre as armas laterais, a leoa Quimera bafejando
fogo, precipitava-se, querendo arrebatar
o cavalo Peirenano!
Enfim, sobre a lança, que despede a morte, agitavam-se quatro
cavalos: e uma poeira negra subia de seu dorso. E tu mataste um rei tal, um
rei de lanceiros, teu marido, ó Tíndaris, mulher perversa! Eis
aí por que um dia as Urânides hão-de enviar a morte, e
um dia, um dia eu verei da tua garganta sangrenta, correr teu sangue, que
uma espada fará jorrar!…
O VELHO, ELECTRA
O VELHO
Onde estará minha jovem senhora, a filha respeitável
de Agamêmnon a quem outrora eduquei? Como é penoso o acesso a
esta casa para os pés de um velho cansado, como eu! Mas, para
servir a bons amigos, é mister que caminhemos com o dorso curvado e
os joelhos trêmulos.
Filha minha, eis-me aqui, perto de ti… Venho trazer-te este cordeirinho
novo, escolhido no rebanho de minhas ovelhas; e estes louros, e estes queijos
que acabo de retirar das formas; e este antigo tesouro de Dionisos, cheio
de perfume. É pequeno, realmente; mas é uma delícia uma
taça deste vinho, misturado a outro mais fraco. Que sejam estes presentes
oferecidos aos hóspedes; quanto a mim, quero apenas enxugar, em minhas
vestes, meus olhos lacrimejantes.
ELECTRA
E por que tendes os olhos úmidos, ó velho? Por acaso recordas,
depois de tanto tempo, as desgraças que me feriram? Gemes pelo infeliz
desterro de Orestes, e por meu pai, a quem tiveste outrora nos braços,
e que educaste sem proveito algum para ti e teus amigos?
O VELHO
Sim; estão perdidos… mas ouve o que não permite que eu me
console nunca mais: visitei, de passagem, o túmulo de teu pai, e deplorei
o abandono em que se acha. Abri o odre que trazia, e fiz uma ligeira libação,
depositando ramos de murta em torno do jazigo. Vi, então, sobre os
restos da fogueira, uma ovelha negra sacrificada como vítima, sangue
recentemente ali derramado, e madeixas
de cabelo louro. Admirei-me, filha, de que alguém se tivesse aproximado
daquela sepultura. Não foi, com certeza, um argivo qualquer, mas sim
teu irmão, que teria vindo secretamente honrar
o jazigo de teu infeliz genitor. Vê estes cabelos; compara-os aos teus,
e notarás que tuas madeixas têm a mesma cor. Com efeito, por
via de regra se assemelham aqueles que receberam o sangue do
mesmo pai.
ELECTRA
O que dizes, velho, não é digno de um homem prudente, visto
que acreditas que meu irmão, já de regresso, ande por aí
oculto com medo de Egisto, — também porque esses cabelos se parecem
com os meus. Bem se vê que são de um homem de tratamento, exercitado
na palestra, ao passo que os meus são finos e lisos. É impossível,
pois, o que presumes. Hás-de achar, bom velho, muitos cabelos iguais,
sem que pertençam a criaturas da mesma estirpe.
O VELHO
Vem, ao menos, ó jovem, verificar, pelo sinal de suas sandálias,
se o desconhecido visitante não tem os
pés com a mesma medida.
ELECTRA
Como posso crer que haja ficado a marca de seus passos em terra pedregosa?
E mesmo que ficasse, como poderia eu reconhecer, pelos meus pés, o
tamanho dos de meu irmão? Os pés masculinos são maiores…
O VELHO
Se teu irmão está de regresso, e por aqui, poderás tu
reconhecê-lo pela túnica que teceste, e na qual eu o salvei da
morte?
ELECTRA
Não sabes que eu era muito jovem ainda quando Orestes partiu? Se é
certo que teci o pano de suas vestes, sendo ele então adolescente,
é lícito crer que ainda hoje use as mesmas roupas, e que estas
hajam crescido, como seu corpo? Terá sido, talvez, um forasteiro, que
se condoeu do abandono em que viu a sepultura, e ali deixou um pouco de seus
cabelos, ou alguém, natural desta terra, que iludiu a vigilância
dos espiões…
O VELHO
Mas onde estão esses hóspedes, menina? Quero vê-los,
e dirigir-lhes perguntas acerca de teu pai.
ELECTRA
Ei-los que saem de casa, com passo rápido…
O VELHO, ELECTRA e ORESTES
O VELHO
Parecem homens de boa jerarquia, é certo; mas as aparências
são ilusórias, porquanto há muita gente de origem ilustre,
que descambou para o mal. No entanto, saudarei estes estrangeiros.
ORESTES
Salve, respeitável ancião! Ó Electra, quem é
esta ruína humana? Algum de teus amigos?
ELECTRA
Foi este homem quem educou meu pai, ó estrangeiro!
ORESTES
Que dizes? Foi ele quem salvou teu irmão?
ELECTRA
Sim, foi quem o salvou, se é certo que vive ainda.
ORESTES
Oh! Por que será que ele me observa como quem examina um objeto precioso?
Por acaso me confunde com alguém?
ELECTRA
Talvez se alegre, por ver que deves ter a mesma idade de Orestes.
ORESTES
Sim… de um homem a quem muito prezo… Mas por que insiste
em andar em torno, assim?
ELECTRA
Eu mesma me surpreendo por isso, estrangeiro.
O VELHO
Ó Electra, minha respeitável senhora, dá graças
aos deuses!
ELECTRA
Por alguma coisa presente, ou futura?
O VELHO
Porque acabas de receber uma dádiva que um deus propício te
envia.
ELECTRA
Pois seja! Invoquemos os numes! Mas… que queres dizer
com isso, bom velho?
O VELHO
Observa, minha filha! Olha! Eis aqui o mais querido dos homens!
ELECTRA
Receio bem, meu caro, que não andes bem com tua mente.
O VELHO
Achas que eu não estou em perfeito juízo porque afirmo que
estou vendo teu irmão?
ELECTRA
Que inesperada revelação fazes,
ó velho!
O VELHO
Asseguro-te que vejo Orestes, filho de Agamêmnon.
ELECTRA
E por que indício o reconheces, com tanta
certeza?
O VELHO
Pela pequenina cicatriz na pálpebra, que ele fez, um dia, em casa
de teu pai, quando perseguindo contigo um veadinho, caiu e machucou-se.
ELECTRA
Que dizes, amigo! Também eu noto, agora, o vestígio daquela
queda!
O VELHO
E ainda hesitas em abraçar o que tens de mais querido?
ELECTRA
Não, velho! Estou convencida, por estes sinais… Ó tu, que
me apareces enfim e a quem eu tinha perdido a esperança de rever um
dia!
ORESTES
Enfim eu te encontro, irmã!
ELECTRA
Quanto eu longe estava de imaginar tal coisa!
ORESTES
E eu que a não esperava, tão pouco!
ELECTRA
És tu, meu Orestes?
ORESTES
Sim… o teu vingador… se conseguir recolher os laços
que atirarei… Mas, tenhamos esperança: seria preciso
admitir que não existem os deuses, se o crime suplantar
sempre a justiça!
O CORO
Vieste, afinal! E como tardaste em vir, ó dia resplendente! Tu mostras,
enfim, a esta cidade, aquele que, há tantos anos errante, infeliz,
no exílio, longe do lar paterno, volta agora! Ó amiga, é
um deus certamente, um deus que nos concede esta glória! Ergue as mãos,
alteia a voz numa prece aos deuses, para que teu irmão entre vitorioso
no recinto da cidade!
ORESTES
Está bem! Alegram-me teus abraços, mas para isso teremos
tempo mais tarde. Quanto a ti, meu velho, visto que chegaste bem a propósito,
dize: como me poderei vingar do assassino de meu pai, e de minha mãe,
que se uniu a ele por um ímpio casamento? Tenho por acaso algum
amigo em Argos, ou estamos inteiramente arruinados,
como nossa fortuna? A quem me devo unir? Agirei de noite ou à luz do
dia? Por que caminho atingirei meus inimigos?
O VELHO
Oh! meu filho; tu não tens um único amigo em tua desdita. São
raros os verdadeiros amigos, aqueles que conosco partilham
da boa, como da má fortuna. Ouve, pois, o que com segurança
eu te afirmo: perdeste todos os teus amigos, sem que te reste a mínima
esperança a tal respeito. De teu braço e de teu destino dependem
todas as probabilidades, que tens, de recuperar teu solar paterno e tua cidade.
ORESTES
Que devo fazer para consegui-lo?
O VELHO
Será preciso que pereçam o filho de Tiestes, e tua
mãe.
ORESTES
Quero, sem dúvida, a coroa; mas como hei-de apoderar-me
dela?
O VELHO
Não nas muralhas, ainda que o tentasses.
ORESTES
Estão defendidas por guardas e lanceiros?
O VELHO
Com efeito… Ele receia tua volta, e não se descuida.
ORESTES
Vamos, aconselha-me quanto ao mais, que me cumpre fazer.
O VELHO
Ouve! Uma idéia súbita me veio à mente.
ORESTES
Tomara que me sugiras um plano bom, e que eu o execute, tal qual!
O VELHO
Eu vi Egisto quando me dirigia para cá.
ORESTES
Já percebo… Por onde anda ele?
O VELHO
Perto daquele campo onde pastam os cavalos.
ORESTES
Que vai fazer ali? Vejo uma esperança luzir, em minha desgraça.
O VELHO
Ele prepara uma festa para as ninfas, ao que me pareceu.
ORESTES
Para as crianças que ele educa, ou para as que terá ainda?
O VELHO
Só sei que ele prepara um sacrifício de vários bois.
ORESTES
Quantos homens o acompanham? Ou tem ele consigo apenas seus servos?
O VELHO
Não havia nenhum cidadão árgio; somente servos.
ORESTES
Acreditas que se um deles me vir, me reconheça?
O VELHO
São servos que nunca te viram.
ORESTES
Por acaso serão a nosso favor, se levarmos vantagem?
O VELHO
Assim agem sempre os escravos; circunstância que te
é favorável.
ORESTES
Como poderei aproximar-me dele?
O VELHO
Caminha ao encontro dele assim que ele te avistar, quando estiver sacrificando
os bois.
ORESTES
O campo onde ele está se estende até a estrada?
O VELHO
Sim; e certamente, ele há-de te convidar para o festim.
ORESTES
Garanto que hei-de ser um convidado bem indesejável,
se um deus o quiser.
O VELHO
Depois… trata de agir conforme as circunstâncias.
ORESTES
Dizes bem. E minha mãe? Onde está?
O VELHO
Em Argos. Mas virá também ao festim.
ORESTES
Mas por que não vem minha mãe com seu atual esposo?
O VELHO
Temendo as censuras do povo, ela se deixa ficar em casa.
ORESTES
Compreendo… Ela sabe que não merece a estima da cidade.
O VELHO
Sim! Essa mulher ímpia tornou-se objeto do ódio popular.
ORESTES
Como eu os matarei, a ambos?
ELECTRA
Eu me incumbo de preparar a morte de minha mãe.
ORESTES
Sem dúvida, o Destino encaminhará tudo para um feliz êxito.
ELECTRA
Oxalá nos seja ele propício!
O VELHO
Assim seja! Como pretendes preparar a morte de tua mãe?
ELECTRA
Vai, bom velho, e dize a Clitemnestra que eu dei à luz…
O VELHO
Que deste à luz há muito tempo… ou mais recentemente?
ELECTRA
Dize-lhe que eu estou no período da purificação.
O VELHO
Mas como poderá essa notícia causar a morte de tua mãe?
ELECTRA
Ela virá, assim que souber que estou no resguardo do parto.
O VELHO
Acreditas, então, que ela se preocupe muito contigo, minha filha?
ELECTRA
Certamente! Ela quererá deplorar o abastardamento de
minha raça…
O VELHO
É possível. Mas termina o que ias dizendo.
ELECTRA
Se ela vier, não resta dúvida de que morrerá.
O VELHO
Tomara, pois, que ela transponha logo a soleira de tua casa!
ELECTRA
Será, para ela, a entrada do Hades.
O VELHO
Oh! Que eu morra, depois de ter visto isso!
ELECTRA
Antes, porém, ó velho, leva meu irmão.
O VELHO
Sim, eu o conduzirei onde Egisto prepara um holocausto
aos deuses.
ELECTRA
Logo em seguida, vai dar meu recado a minha mãe.
O VELHO
Sim; eu o darei como se ela o ouvisse de teus lábios.
ELECTRA
Agora a ti, Orestes, cabe o primeiro golpe!
ORESTES
Irei, se me conduzirem…
O VELHO
Certo, eu te guiarei, já o disse… e de bom grado!
ORESTES
Ó Júpiter paternal, que me vingas de meus inimigos,
tem pena de nós, que temos sofrido males tão
cruéis!
ELECTRA
Compadece-te, Júpiter, daqueles que descendem
de ti!
ORESTES
E tu, Hera, que dominas nos altares de Micenas, dá-nos
a vitória se julgas que nossos pedidos são justos!
ELECTRA
Dá-nos que vinguemos a morte de nosso pai!
ORESTES
E tu, pai, que jazes no Hades, vítima de um crime nefando; e tu, ó
rainha Gaia, a quem estendo as mãos, vinde em nosso auxílio,
prestai socorro a vossos filhos! Dá-nos, meu pai, por aliados, todos
os mortos que, contigo, destruíram os frígios pelas armas, e
todos quantos abominam os traidores! Ouves tu, que tantos males sofreste por
causa de minha mãe?
ELECTRA
Sim! Meu pai ouve, seguramente, todas as tuas palavras… Mas já é
tempo de partir! Eu te afirmo claramente, meu irmão: é
preciso que Egisto morra, pois se acaso fores vencido, eu também cairei
morta! Não creias que eu te sobreviva, porque ferir-me-ei na garganta
com uma espada de dois gumes! Vou recolher-me, para preparar tudo… Se me
vierem boas notícias a teu respeito, toda esta casa se alegrará;
mas, se sucumbires, será o contrário. Eu to juro!
ORESTES
Compreendo tudo!
ELECTRA
Agora, é preciso que te mostres valente. E vós, mulheres, trazei-me
logo a notícia desse combate; eu o esperarei com a espada na mão,
pronta para morrer, pois nunca, vencida, consentirei que meus inimigos ultrajem
meu corpo ainda com vida!
O CORO
Diz uma antiga tradição que Pã, protetor dos campos,
soprando harmoniosamente a flauta, trouxe, outrora, da
montanha, um cordeiro com o velo de ouro, que a cabrinha amamentava ainda;
e o arauto, sobre o muro de granito, exclamou: “Ó Micênios,
vinde à ágora! Vinde admirar as façanhas terríveis
de nossos felizes chefes!” E as danças alegravam as casas dos
Atridas.
E os templos de ouro permaneciam abertos, e a chama resplandecia
nos altares da virgem de Argos, a flauta de lótus, serva das Musas,
emitia sons deleitosos: cantos amenos se elevavam para o Cordeiro de Ouro.
Com efeito, quando Tiestes, impelido por um amor adúltero, seduziu
a esposa de Atreu, ele transportou essa relíquia para sua casa; e,
retornando à ágora, anunciou que possuía um admirável
carneiro com o velo de ouro.
Então Júpiter alterou o rumo luminoso dos astros, a claridade
do Sol, e a face pálida da Lua; Hélios alcançou as plagas
do ocidente, com sua luz divinamente acesa; as nuvens pejadas de água
foram para os lados da Ursa, e as planícies Amoníades, privadas
pelo deus dos orvalhos e das chuvas, feneceram, queimadas!
É o que diz a lenda… Mas nós não cremos que Hélios
tenha alterado a rota de seu carro de ouro para punir os homens, ou para intervir
em suas vinganças recíprocas. Todavia essas narrativas
impressionantes devem ser úteis aos mortais, para
que os induzam a respeitar os deuses. Só tu não te lembras disso,
tu, que deste a morte a teu marido, tu que és mãe de um casal
de filhos ilustres! Ah, amigas, dizei; ouvistes um grito, ou terá sido
uma ilusão? Dir-se-ia que foi o raio de Júpiter, subterrâneo…
Electra, sai da tua casa!
O CORO, ELECTRA
ELECTRA
Que me dizeis, amigas? Terminou o combate?
O CORO
Nada sabemos senão isto: ouve-se o gemido de um agonizante.
ELECTRA
Também o ouvi; de longe sim, mas ouvi.
O CORO
De longe vem essa voz; mas nós a ouvimos claramente.
ELECTRA
Será o gemido de um argivo, ou de um dos nossos amigos?
O CORO
Não sabemos, o rumor é confuso.
ELECTRA
Viestes avisar-me que devo procurar a morte? Por que tardais?
O CORO
Deixa essa arma! Aguarda o conhecimento de teu destino.
ELECTRA
Não é possível! Fomos vencidos! Onde estarão
os mensageiros?
O CORO
Eles virão. Não é empresa fácil matar um rei!
O CORO, ELECTRA, um MENSAGEIRO
O MENSAGEIRO
Alcançastes uma vitória sem par, ó jovens micenianas!
Eu vo-lo declaro, a todas! Orestes venceu na luta! Egisto, o matador de Agamêmnon,
jaz por terra! Dai graças aos deuses!
ELECTRA
Mas quem és tu? Como poderemos ter certeza de que dizes a verdade?
O MENSAGEIRO
Por acaso ignoras que sou um servidor de teu irmão?
ELECTRA
Ah! O meu querido irmão! Sim… por causa de meus temores foi que
não reconheci logo tua fisionomia! Agora, sim; sei quem tu és!
Realmente, tu disseste: o assassino de meu pai está morto?
O MENSAGEIRO
Sim; está morto. Digo-o, e repito-o, já que assim queres!
O CORO
Ó deuses! Ó Justiça! Tardaste, sim; mas finalmente vieste!
ELECTRA
Como foi o filho de Tiestes vencido e morto? Eu quero saber!
O MENSAGEIRO
Logo que nos retirámos destes muros, tomámos a larga estrada
aberta pelas rodas dos carros, onde estava o poderoso rei dos Micênios.
Ele passeava por seu parque, colhendo ramos de murta nova. Ao ver-nos, exclamou:
“Salve, estrangeiros! Quem sois vós? De onde vindes?”
Orestes respondeu: “Somos da Tessália, e vamos às margens
do Alfeu, para fazer um sacrifício em honra de Júpiter Olímpico”.
Ouvindo isto, Egisto disse: “Por agora, deveis comparecer a nosso festim,
porque vou sacrificar algumas reses às ninfas. Amanhã, bem cedo,
deixareis vossos leitos e seguireis viagem a vosso destino. Entremos no palácio”.
Assim falando, tomou-nos as mãos, e nos fez entrar, de modo que não
nos foi possível uma recusa. Uma vez no interior, disse: “Preparem
banhos para estes viajantes, para que se possam aproximar das aras purificadoras!”
Orestes advertiu: “Nós nos banhamos nas águas
límpidas do rio; entretanto, se é permitido a estrangeiros
participarem da cerimônia com os cidadãos, Egisto, nós
estamos prontos, e aceitamos teu convite”. Aí findou seu discurso;
e os servos, tendo depositado as lanças, garantia do rei, puseram mãos
à obra. Uns trouxeram o grande vaso; outros, as cestas, enquanto outros
ainda acendiam a lenha e dispunham os demais vasos em torno do altar. Todo
o palácio vibrava com esses rumores. Então, teu padrasto, espalhando
a cevada salgada por sobre as aras, assim falou: “Ó Ninfas das
Montanhas! Assim possa eu ainda por longos anos oferecer-vos holocaustos!
Assim possamos, eu e Tíndaris, minha esposa, viver nestes palácios
felizes como somos hoje, e vencedores de nossos inimigos!”
Ele referia-se a Orestes, e a ti. Meu senhor fazia votos opostos, mas mentalmente,
e não em voz alta… E pedia que lhe fosse dado recuperar o seu patrimônio
paterno. Egisto, retirando do cesto a lâmina afiada, cortou os pêlos
do bezerro e, com a mão direita, os atirou ao fogo purificador. Em
seguida, feriu o animal na espádua, enquanto os servos o seguravam,
com as mãos, e disse a teu irmão: “Entre os Tessálios
considera-se uma arte nobre esquartejar um touro, e domar um cavalo. Toma
esta espada, estrangeiro, e mostra que esta fama dos Tessálios
é justa”. E Orestes tendo recebido a faca dórica de boa
têmpera, e atirado seu manto para os ombros, com presilhas de ouro,
escolheu Pílades como auxiliar, afastou os demais servos, e, tomando
o bezerro por uma das patas, desferiu um golpe e o prostrou mais rápido
do que um cavaleiro a galopar nas corridas do estádio. Depois, abriu
as entranhas do animal. Tomando, então, nas mãos as vísceras
sagradas, Egisto as observava. E o lóbulo que faltava nos intestinos
era um indício de mau agouro para quem os examinava. Meu senhor perguntou:
“Por que razão estás apreensivo?” “Ó
estrangeiro, eu receio alguma ruim surpresa; tenho um inimigo temível,
o mais odioso dos mortais, o filho de Agamêmnon.” Orestes replicou:
“Temes os golpes de um exilado, tu, que mandas sobre uma cidade? Para
que eu possa apressar o festim, trazei-me um punhal ftiádio, em lugar
desta lâmina dórica; assim é preciso para que eu abra
de modo condigno, o peito.” E, tomando o punhal cortou com firmeza,
continuando Egisto a observar a vítima. No momento em que ele inclinava
a cabeça, teu irmão, firmando-se na ponta dos pés, desferiu-lhe
um golpe no dorso, atravessando-lhe as vértebras
e derribando-o, já nas contorsões finais
da agonia! Ao ver isto, os servos correram para as lanças, dispostos
a combater, muitos contra dois, somente; mas Orestes e Pílades resistiram
com galhardia, brandindo as armas. Disse então Orestes: “Não
vim a esta cidade para lhe fazer dano, nem a vós, servos; apenas quis
vingar a morte de meu pai! Eu sou o infeliz Orestes! Não me ataqueis,
ó servos de meu pai!”. Ouvindo isto, eles abaixaram as lanças.
Orestes foi logo reconhecido por um velho servidor do palácio; e todos
vieram coroar a cabeça de teu irmão, alegre e feliz. E ele acaba
de apresentar aos deuses a cabeça, não da Górgona, mas
de Egisto, a quem tu abominas. Seu sangue paga, assim, com usura, o sangue
que ele derramou!
O CORO, ELECTRA, e depois ORESTES
O CORO
Junta teus pés aos nossos, ó querida, como a esperta gazela,
que salta ligeira e graciosa! Teu irmão alcançou, com esta vitória,
uma coroa mais gloriosa do que as alcançaria nas margens do Alfeu.
Une teu canto de triunfo a nossa dança!
ELECTRA
Ó luz! Ó brilho do carro de Hélios! Ó terra!
Ó trevas que antes escurecíeis meus olhos! Agora eles estão
abertos, e fitam livremente o céu, visto que Egisto, o assassino de
meu pai, acaba de sucumbir! Todos os ornatos que ainda possuo, queridas amigas,
hei-de usá-los hoje em meus cabelos! E hei-de coroar a fronte de meu
irmão vitorioso!
O CORO
Traze, pois, os louros para sua cabeça, e nossa dança, agradável
às Musas, terá início. Doravante os reis legítimos,
a quem tanto prezamos, voltarão a governar esta terra, felizmente arrancada
a homens iníquos. Eis por que soltamos aos ares nossos gritos de alegria.
ELECTRA
Vitorioso Orestes! Filho de um pai vencedor nas batalhas de Ílion,
cinge tua cabeça com estas coroas! Voltas, com efeito, não de
uma simples corrida de seis pletros(1), mas de uma luta em que mataste a Egisto,
o assassino de nosso pai. E tu, Pílades, o acompanhaste fielmente,
tu filho de pais piedosos, recebe de mim esta coroa a que fazes jus, visto
que te coube parte igual nos perigos. E sê feliz!
ORESTES
Ergamos nossos agradecimentos aos deuses, antes de tudo, ó Electra,
porque foram eles os fautores de nosso triunfo; louvar-me-ás, a mim,
em seguida, porque lhes servi de instrumento, aos deuses, e à Fortuna.
Não agi somente por palavras; matei, realmente, a Egisto; e, para que
todos o saibam, trouxe até aqui o próprio morto. Atira-o, se
assim queres, aos animais ferozes, ou às aves carniceiras; ou suspende-o
a um poste, porque ele agora te pertence… ele, que se dizia teu senhor!
ELECTRA
Domina-me a timidez… mas bem quisera falar!
ORESTES
Que há? Dize, pois! Nada tens a temer!
ELECTRA
Receio desagradar aos deuses, assim ultrajando os mortos.
ORESTES
Ninguém te poderá censurar por isso!
ELECTRA
Esta cidade é irritável; sempre disposta à
censura.
ORESTES
Fala, pois, irmã! Sempre tivemos por esse homem um ódio insaciável!
ELECTRA
Ouvi, pois! Que insultos te devo dirigir, de início? Como os encerrarei?
E que direi no intervalo? Todas as manhãs, eu recordava em mente o
que te haveria de dizer, se algum dia me visse liberta dos terrores que me
afligiam. Agora, que isto se realizou, quero dizer-te o que não pude
enquanto vivias… Tu me desgraçaste, bem como a meu irmão;
tu nos deixaste órfãos de um pai querido, de quem nenhuma ofensa
recebeste! Tiveste a audácia de esposar minha mãe, e a de matar
nosso pai, supremo chefe militar dos Gregos, tu que nunca foste à guerra
contra os Frígios! E incorreste na loucura de supor que nossa mãe
te seria fiel, ela, a quem desposaste violando o leito de nosso pai! Saiba
todo aquele que corromper a esposa de outrem por uma união adúltera,
e que com ela se consorcia, que é infeliz se supuser que ela lhe concederá
a fidelidade que já não concedera ao outro. Tu vivias miseravelmente,
na ilusão de que eras feliz… Tu sabias que estavas vinculado por
um casamento ímpio, assim como minha mãe sabia que se casara
com um homem indigno; e, criminosos ambos, ela conduzia o fardo de tua ruim
fortuna, e tu, o peso da sua. Bem que ouvias dizerem os Argivos: “Ele
é o marido da mulher, mas ela não é esposa dele…”
Porque é uma vergonha que seja a mulher, e não o varão,
quem governe a casa… Desprezo os jovens que, na cidade, usam os apelidos
de suas mães, e não o de seus pais! Com efeito, sempre que um
homem se casa com uma mulher de estirpe mais ilustre que a sua, o marido passa
a nada valer, e só a esposa é que se considera. O que mais iludiu
tua razão, é que blasonavas ser alguém, pelo fato de
possuir um copioso cabedal… mas riquezas nada valem, porque são incertas
e transitórias… Só a moral prevalece, e não a pecúnia.
A moral granjeia duradouro renome, e triunfa do infortúnio; a opulência
injusta torna-se presa dos perversos, e desaparece dos lares onde terá
permanecido por pouco tempo… O que fizeste com as mulheres, não compete
a uma donzela declarar, e por isso eu me abstenho; mas alguma coisa direi
veladamente, de modo a ser compreendida. Tu procedeste com inaudita insolência,
como senhor destes palácios reais, confiante em tua beleza. Para mim,
prefiro que meu marido apresente uma fisionomia varonil, e não um rosto
efeminado. Os descendentes de homens fortes nascem predestinados à
carreira das armas; mas os filhos dos outros nunca passarão de dançarinos…
Morre, pois, sem que tenhas sequer adivinhado o castigo de teus crimes; e
morra igualmente quem quer que seja tão criminoso como tu! E que ninguém
se ufane por ter vencido a primeira corrida; que ninguém se considere
vencedor enquanto não houver atingido o termo da humana vida!
O CORO
Se ele cometeu crimes horrendos, não menos terrível foi a punição
que de vós recebeu, porque a Justiça terá sempre um grande
poder.
ORESTES
Despressa, servos! Transportai este cadáver para o interior, a fim
de que não o veja minha mãe, quando vier, antes de ser morta
por sua vez!
ELECTRA
Basta! Falemos noutro tom de voz.
ORESTES
Que há de novo? Vês, por acaso, gente que vem de Micenas?
ELECTRA
Não! Vejo minha mãe, que me criou.
ORESTES
Ela vem, pois, muito a propósito, cair na armadilha que lhe preparamos.
ELECTRA
Em suas vestes, e em seu carro, exibe grande magnificência.
ORESTES
Que faremos agora, irmã? Daremos a morte a nossa mãe?
ELECTRA
Por acaso tens pena, ao vê-la?
ORESTES
Oh! Como poderei eu matar aquela a quem devo a vida e a nutrição?
ELECTRA
Exatamente como matou ela a quem foi teu pai, e também meu.
ORESTES
Ó Febo! Por que me ordenaste, pelo oráculo, a prática
de um ato de tamanha loucura?
ELECTRA
Se Apolo se mostra insano, quem será, então, o ajuizado?
ORESTES
Tu me disseste, irmã, que deveríamos ferir de morte a nossa
mãe!… Que impiedade!
ELECTRA
Que tens tu a recear, se vingas o assassínio de teu pai?
ORESTES
Serei culpado de matricídio… eu que nenhum crime até agora
havia praticado!
ELECTRA
E se não vingares a morte de teu pai, não passarás de
um infame!
ORESTES
Mas serei castigado, se a matar!
ELECTRA
Digno de punição tu serás, sim! se deixares de vingar
teu pai!
ORESTES
Não teria sido algum espírito infernal quem disso me persuadiu
sob a forma de uma divindade?
ELECTRA
Um espírito infernal… sobre os altares sagrados?
Ah! Não creio!
ORESTES
No entanto, eu não admitirei nunca que semelhante oráculo
tenha sido legítimo…
ELECTRA
Cuidado, meu irmão! Estás descambando para a
pusilanimidade!
ORESTES
Então… será forçoso usar do mesmo artifício?
ELECTRA
O mesmo… pelo qual conseguiste derrubar a Egisto, seu marido.
ORESTES
Pois seja! Cumprirei a penosa tarefa! Visto que os deuses assim
ordenam, que se faça! Mas… será uma ação ao
mesmo tempo doce… e tremenda!
(Sai ORESTES)
ELECTRA, CLITEMNESTRA, O CORO
O CORO
Ó rainha da terra argiva, filha de Tíndaro, e irmã dos
filhos de Júpiter, que habitam, entre os astros, o éter resplendente
de luz, e que têm por missão guiar os nautas em pleno mar, salve!
Nós te veneramos, como se fosses uma divindade, em atenção
a teu poder e tua fortuna! Eis o momento, ó rainha, em que te rendemos
a nossa homenagem!
CLITEMNESTRA
Descei de vossos carros, escravas, e tomai-me pela mão, para que eu
ponha os pés em terra! Os templos sagrados estão guarnecidos
de despojos frígios. Quanto a mim, recebi estas cativas troianas, em
troca da filha que perdi. Foi insuficiente a dádiva; mas ainda assim
tem valor.
ELECTRA
Não é a mim, como escrava também, e expulsa do solar
paterno, embora vivendo hoje nesta casa miserável, — que cabe
tomar-te as mãos, minha mãe?
CLITEMNESTRA
As escravas aí estão para isso. Não te canses por minha
causa.
ELECTRA
Por que não? Não me expulsaste da casa onde nasci? E quando
ela foi por outrem ocupada, não fiquei eu reduzida à escravidão,
como estas cativas, e não fui privada de meu pai?
CLITEMNESTRA
Teu pai intentou fazer o mesmo àqueles a quem mais devia prezar! Eu
te falarei, embora saiba que uma mulher, quando perseguida por uma ruim fama,
tem sempre a incredulidade contra suas palavras, — o que é injusto,
a meu ver. O que parece justo é que saibamos odiar aqueles que, bem
apuradas as coisas, tenham merecido a nossa indignação. A não
ser assim, a quem haveremos de odiar, então? Tíndaro me deu
a teu pai, mas não para que eu perecesse, eu e meus filhos!… No entanto
Agamêmnon, tendo-me arrebatado minha filha, na esperança
de vê-la unida a Aquiles, conduziu-a a Áulis, onde estacionavam
os navios. E lá, feriu o alvo peito de Ifigênia, estendida sobre
a fogueira do sacrifício! Se é verdade que ele a matou para
salvar a Grécia, ou sua casa, e seus demais filhos, sacrificando uma,
por todos, ainda seria perdoável; mas, por ter sido Helena uma mulher
impudica, e porque seu marido não soube castigar sua traição,
— por isso! — ele matou minha filha! No entanto, embora cruelmente
ferida, não me irritaria tanto, e não mataria esse homem; mas
ele voltou, trazendo uma concubina, cheio de entusiasmo, e pô-la no
seu leito, mantendo, assim, duas esposas na mesma casa! Não nego que
as mulheres sejam lascivas; mas se um marido comete o crime de desprezar o
leito conjugai, é lícito que a esposa o imite, angariando um
amante! Contra nós, mulheres, ergue-se, porém, o opróbrio;
e ninguém maldiz dos homens que de tudo são causadores! Pois
quê! Menelau tivesse sido raptado, seria o caso de sacrificar eu o meu
filho Orestes para salvar Menelau, o marido de minha irmã? Como receberia
teu pai esse ato? Seria conveniente, pois, que não morresse aquele
que sacrificou minha filha, e que eu continuasse maltratada por ele? Matei-o!
E procurei o auxílio daqueles que me deviam apoiar, os seus inimigos.
Com efeito, quem dentre os amigos de teu pai quereria cometer esse crime comigo?
Fala, se queres, e prova que a morte de teu pai não foi um justo castigo!
ELECTRA
Defendeste tua causa, mãe; mas é uma causa vergonhosa, pois
uma mulher digna deve, em tudo, ceder a seu marido. E aquela que não
atende a esse preceito não merece minha consideração.
Lembra-te de que em tuas últimas palavras me autorizaste
a falar contra ti.
CLITEMNESTRA
Disse, e repito; não o nego.
ELECTRA
Mas… depois de ouvir tudo o que irei dizer, não me farás
mal?
CLITEMNESTRA
De modo algum. Espero que me conformarei com teu modo de falar.
ELECTRA
Eu falarei, pois: e eis como vou começar: Prouvera aos deuses,
ó mãe! — que tu fosses dotada de melhor espírito!
Erguem-se justos louvores à beleza de Helena, e à tua; mas sois
ambas igualmente insensatas, e indignas de Castor! Uma, seduzida, deixou-se
levar voluntariamente; quanto a ti, mataste o homem mais
ilustre da Grécia, sob o pretexto de que punias teu marido pelo sacrifício
de uma filha, (e há quem não saiba dessas coisas tanto como
eu!) — tu, que, mesmo antes da morte de tua filha, logo após
a partida de teu esposo, já compunhas diante do espelho as louras madeixas
de teus cabelos! Ora, uma mulher que se requinta em enfeitar-se, na ausência
do esposo, devemos desprezá-la como desonesta, pois não há
motivo para que se exiba assim tão bela, a menos que premedite algum
deslize. Tu foste a única mulher grega que se mostrava alegre quando
a sorte favorecia os Troianos; quando estes sofriam reveses na luta, teus
olhos se cobriam de tristeza, tamanho era teu desejo de que Agamêmnon
não voltasse a Tróia com vida!
Era, todavia, uma excelente oportunidade para que revelasses tua sensatez…
Tinhas um esposo, a quem a Grécia elegeu chefe supremo, e que não
era, em nada, inferior a Egisto. E, porque tua irmã Helena incorreu
em tão aviltante ação, cabia a ti granjear honrosa glória,
porquanto os maus, muitas vezes, proporcionam aos bons a oportunidade para
a prática de ações exemplares. Admitindo que meu pai,
como disseste, causou a morte de tua filha, que mal te havíamos feito
eu e meu irmão? Como se explica que, tendo perecido teu marido, não
nos fossem entregues as vivendas paternas, e que tu tenhas adquirido um leito
estrangeiro, mediante um casamento comprado? Por que não exilaste,
em lugar de teu filho, a teu segundo esposo, e por que não foi este
morto em meu lugar, visto que me condenou a morrer em vida, com mais crueldade
do que meu pai para com minha irmã? Se um homicídio se deve
punir com um outro, nós te mataríamos, eu e teu filho Orestes,
para vingar nosso pai; porque, se uma ação foi justa, a outra
não o será menos. É um louco aquele que, seduzido pelas
riquezas, ou pelo nascimento ilustre de alguém, se casa com uma mulher
perversa. Um casamento humilde e puro leva vantagem, na família, por
sua grandeza.
O CORO
É o destino, tão somente, que decide do casamento das mulheres.
Uns vêm a ser benfazejos, e outros funestos para os mortais…
CLITEMNESTRA
É natural, filha, que tenhas sempre amado a teu pai… Acontece que
uns prezam com especial carinho a seu genitor, outros a sua mãe. Eu
te perdoarei, filha, visto que eu própria não estou satisfeita
com certas ações que pratiquei. Mas… como podes tu continuar
assim privada do necessário asseio, e trajando estes andrajos, tu que
deste à luz recentemente! Oh! Como sou infeliz pelos desejos que tenho
realizado!… Mais, do que suponho, posso excitar a cólera de meu marido!
ELECTRA
Tarde te arrependes… Já não há remédio;
meu pai está morto… Mas… por que não chamas teu filho, que
anda, exilado, por terra estranha?
CLITEMNESTRA
Tenho medo! Devo levar em conta o meu interesse, e não o
dele. Dizem que ele ainda se conserva irritado pela morte do pai.
ELECTRA
E por que teu marido se mostra cruel para conosco?
CLITEMNESTRA
Tal é seu temperamento… Tu, também, tens
um coração indomável!
ELECTRA
Porque vivo sofrendo… Mas hei-de deixar, um dia, essa irritação.
CLITEMNESTRA
Desde então ele não mais se mostrará cruel para contigo!…
ELECTRA
Ora!… ele é orgulhoso… e habita o palácio
que me pertence…
CLITEMNESTRA
Vês tu? Estás provocando novos conflitos!…
ELECTRA
Pois eu me calo… Temo-o tanto quanto convém que o tema…
CLITEMNESTRA
Deixemos este assunto, filha. Por que me chamaste?
ELECTRA
Creio que já sabes que dei à luz… Pois bem; vem sacrificar,
por mim, no décimo dia da criança, porque eu, nunca tendo até
agora tido filhos, não sei como se cumprem esses ritos.
CLITEMNESTRA
Isso é obrigação de quem te prestou assistência
no parto…
ELECTRA
Ninguém me auxiliou; eu me desembaracei
sozinha!
CLITEMNESTRA
Vives assim tão abandonada de amigos, nesta casa?
ELECTRA
Ninguém quer ter a pobres como amigos.
CLITEMNESTRA
Eu irei, pois, e farei o sacrifício pela décima lua da criança;
em seguida irei ao campo, onde meu marido realiza um holocausto em honra das
Ninfas. Ó servos! deixai nas cocheiras os animais que estão
atrelados. Quando os sacrifícios terminarem, voltai. Quero satisfazer
os desejos de meu marido.
ELECTRA
Podes entrar em minha pobre casa; mas tem cuidado, para que a fuligem e as
gorduras não maculem tuas vestes! Se vais prestar culto aos deuses,
deves ir em condições condignas!
(Sai CLITEMNESTRA)
ELECTRA
A cesta sagrada já está pronta; a lâmina está
afiada, a mesma que vitimou o touro, junto ao qual cairás ferida!…
Tu te casarás na mansão sombria do Hades, com o mesmo com quem
já vivias na terra. Eis a gratidão que te devo: hás-de
sofrer o castigo que mereces, pelo assassínio de meu pai!
O CORO
Há sempre uma compensação nos grandes males! Mudam de
rumo os ventos num solar… Meu chefe e senhor foi morto, outrora, num banho…
e o teto, e as paredes vibraram com o grito que soltou: “Miserável!
Por que me feres, ó mulher, quando eu volto, após dez anos de
ausência, a minha cara pátria?”
Eis, porém, que a vingança do desonrado tálamo surge,
enfim, e subjuga esta perversa mulher, que armada de um machado, ousou ferir
seu marido, de regresso a seu lar, entre as altas montanhas Ciclopéias.
Ó esposo infeliz, que desgraça foi, para ti, essa malvada esposa!
Ela cometeu o crime, acesa em ira, qual uma feroz leoa das montanhas!
Ouve-se a voz de CLITEMNESTRA
CLITEMNESTRA
Filhos meus! Pelos deuses! Não mateis vossa mãe!
O CORO
Ouves, por acaso, este clamor que de lá vem até nós?
CLITEMNESTRA
Ai de mim!
O CORO
Nós nos condoemos da sorte dessa mãe, imolada por seus próprios
filhos! Quando uma calamidade deve ocorrer, um deus faz justiça! Tu
sofres um cruel destino, ó infeliz… mas também cometeste um
crime nefando contra teu marido! Ei-los que reaparecem, saindo de casa ainda
manchados pelo sangue quente de sua mãe, prova de suas baldadas súplicas!
Oh! Não haverá no mundo progênie mais desgraçada
que a de Tântalo!
ORESTES, ELECTRA, O CORO
ORESTES
Ó Terra! Ó Júpiter, que conheceis todas as ações
dos mortais! Vede estas coisas sangrentas e abomináveis! Estes dois
cadáveres, que jazem por terra, feridos por minhas mãos, em
paga dos males que tenho sofrido!
ELECTRA
Certamente, meu irmão, tudo isto é doloroso… E fui eu a causadora!
Eu, caminhei por sobre o fogo, contra aquela que me deu à luz e criou,
infeliz que sou! Ó desgraça, ó desgraça! Pobre
mãe, que tombaste odiosamente, e ainda mais, ferida por teus filhos!
Mas… tu sofreste, assim, a expiação devida pelo assassínio
de nosso pai.
ORESTES
Ó Apolo! Tu ordenaste a vingança, tu causaste males tremendos
e evidentes! Tu extirpaste para sempre este conúbio sangrento da terra
helênica! Dize, agora: para onde irei? Que humana criatura quererá
receber-me, ou sequer contemplar-me, a mim, que matei minha mãe?…
ELECTRA
E eu? E eu? Que núpcias poderei pretender? Que cônjuge quererá
receber-me em seu leito nupcial?
ORESTES
Teu coração mudou, de novo, conforme o vento… Pensas, agora,
com sentimentos de piedade, mas há bem pouco tempo não pensavas
assim, e exigiste coisas terríveis, querida, contrariando as ponderações
de teu irmão! Tu viste a infeliz rasgar sua veste, e mostrar-nos o
seio em que nos amamentou, no momento em que a feríamos de morte! Pobre
de mim! E ela ainda arrastou por terra aquele corpo em cujas entranhas fui
gerado… e meu coração fraquejava!
ELECTRA
Sim… eu sei… tu sentiste uma angústia profunda, ao ouvir a voz
lamentável daquela que te criou!
ORESTES
… E ela gritava, acariciando com as mãos o meu rosto: “Ó
filho meu… eu te suplico…” E apegou-se a meu pescoço de tal
sorte que o punhal me caiu das mãos!
O CORO
Infeliz! Como pudeste contemplar com teus olhos a agonia
de tua mãe ao expirar?
ORESTES
Foi preciso que eu vedasse meus olhos com o manto, no momento em que enterrei
a faca na garganta de minha mãe!
ELECTRA
E eu te impeli… e fiz força sobre a faca, também…
ORESTES
Oh! Eu cometi a mais abominável das ações! Vai… cobre
o corpo de nossa mãe com o seu próprio manto… Fecha suas feridas…
Tu deste a vida a teus assassinos, pobre mãe!
ELECTRA
Eis-te coberta! Tu, a quem ao mesmo tempo amávamos e detestávamos,
tu, causadora das tremendas desgraças de nossa família, eis-te
coberta com o teu manto!
O CORO
Vede que, por sobre as casas, surgem espíritos malfazejos, ou deuses
imortais, visto que semelhante caminho não é acessível
a seres humanos. Por que se manifestam eles, assim, aos homens?
Os mesmos e OS DIÓSCUROS(2)
OS DIÓSCUROS
Filho de Agamêmnon, escuta! Os Gêmeos, irmãos de tua mãe,
os Dióscuros, Castor e Pólux, te falam. Depois de haver acalmado
os mares tão perigosos aos navios, viemos a Argos, e assistimos ao
assassínio de nossa irmã, tua mãe. Ela sofreu um castigo
justo… mas tu fizeste mal, Orestes; e Apolo… Apolo… oh! ele é
nosso senhor, e nós nos calamos. Embora sábio, ele não
te aconselhou a sabedoria: mas forçoso foi obedecer… Agora, urge
que executes o que te ordena o Destino superior a Júpiter(3). Dá
Electra como esposa a Pílades, que a levará consigo para sua
casa; e tu deixarás Argos imediatamente. Não te é lícito
viver nesta cidade, onde cometeste o assassínio de tua mãe.
As Fúrias terríveis, deusas de olhos ferozes, perseguir-te-iam
com seu furor, e terias que vaguear sem rumo. Vai para Atenas, e prosterna-te
diante da imagem sagrada de Palas. Ela, com seus dragões possantes,
porá em fuga as Fúrias, e proteger-te-á dos olhares terríficos
da Medusa. Lá existe a colina de Marte, onde os deuses pela primeira
vez se reuniram, para decidir, por seus sufrágios, sobre o sangue derramado
quando o deus da guerra, encolerizado pelas núpcias de sua filha, matou
Halirrócio, filho do rei do Mar. Desde então, esse tribunal
é infalível, e consagrado pelos deuses. Ali é que deves
ser julgado pelo crime que cometeste. Os sufrágios, pró e contra,
serão iguais; e assim sendo, estarás salvo, evitando uma condenação
à morte. Com efeito, Apolo, que te induziu à prática
do matricídio, assumirá a responsabilidade desse crime; e, para
o futuro, será lei que o réu seja beneficiado sempre que os
votos se dividirem em grupos iguais(4). As deusas temíveis, contrariadas
por isso, desaparecerão pela terra a dentro,
não longe dessa colina e aí surgirá um oráculo
sagrado e venerado pelos vivos. Tu deverás habitar a terra da Arcádia,
junto ao templo liqueano(5) nas margens do Alfeu; lá uma cidade surgirá
com teu nome. Nós te anunciamos estas coisas, Orestes! Os cidadãos
de Argos darão sepultura ao corpo de Egisto; e Menelau, quando aportar
a Náuplia, de regresso das terras troianas, e Helena, inumarão
o de tua mãe. Helena acaba de chegar ao solar de Proteu, tendo deixado
o Egito; ela não esteve na terra de Ílion; Júpiter, desejoso
de causar a discórdia e o morticínio entre os homens, enviou
um fantasma de Helena a Tróia. Que Pílades conduza a sua casa,
na terra da Acaia, a Electra, virgem e desposada; e que envie à cidade
de Fócios aquele trabalhador que não foi teu parente senão
de nome, e que lhe dê avultada recompensa em ouro.
Quanto a ti, transpõe o istmo, e alcança a colina de Cecropos.
Quando tiveres cumprido o teu destino, no que se refere a este crime, tu serás
feliz, e viverás liberto de remorsos e cuidados.
O CORO
Ó filhos de Júpiter, ser-nos-á permitido dirigir-vos
a palavra?
OS DIÓSCUROS
Sim, visto que vós não estais maculadas pelo crime.
ORESTES
E eu poderei falar-vos, também, ó filhos de Tíndaro?
OS DIÓSCUROS
Tu também! Atiraremos a Apolo a culpa desta ação sangrenta.
O CORO
Por que razão, sendo vós deuses, e irmãos desta morta,
não expulsastes as Fúrias para longe destes lares?
OS DIÓSCUROS
A fatalidade, e as palavras imprudentes de Apolo fizeram
com que viessem.
ELECTRA
E como Apolo influiu sobre mim? Que oráculo
me ordenou que matasse minha mãe?
OS DIÓSCUROS
Vossos crimes, e vossos destinos, são comuns… As culpas de
vossos pais vos arrastaram a esta situação.
ORESTES
Ó minha irmã, apenas te pude rever, ao cabo de tão
longa ausência, e já me vou ver de novo privado de tua amizade…
Vou te deixar… e tu me deixarás também!
OS DIÓSCUROS
Ela terá um esposo, e um lar; não há motivo para que
a lamentemos, a não ser o de se afastar da cidade de
Argos.
ORESTES
E que pode haver de mais doloroso, do que deixar, para sempre, a terra da
Pátria? Eu deixarei estes lares paternos, serei submetido a juizes
estrangeiros, em conseqüência da morte de minha
mãe!
OS DIÓSCUROS
Tem coragem! Irás à cidade sagrada de Palas. Enfrenta
tua sorte!
ELECTRA
Que eu te abrace pela última vez, irmão querido! As imprecações
de nossa mãe nos separam, e nos levam para longe do torrão paterno!
ORESTES
Sim. estende-me os braços… abraça teu
irmão… e chora por mim, como se eu fosse o túmulo
de um morto!
OS DIÓSCUROS
Oh! Tu proferes queixumes comoventes,
mesmo para os deuses. Realmente, tanto como nós, os numes urânios
se compadecem pelas misérias a que estão sujeitos os mortais.
ORESTES
Não te verei mais!
ELECTRA
E eu, nunca mais comparecerei diante de ti!
ORESTES
Pela última vez ouço tua voz!
ELECTRA
Adeus, ó minha cidade! Adeus, minhas amigas e conterrâneas!
ORESTES
Minha querida, já vais partir?
ELECTRA
Assim é preciso… Tenho os olhos cheios de lágrimas.
ORESTES
Vai, casa-te com Electra, e sê feliz, ó Pílades!…
OS DIÓSCUROS
Dos esponsais, eles tratarão, como convém… Tu,
porém, se queres escapar às Fúrias, segue já para
Atenas, porque elas se preparam para perseguir-te, com as mãos cheias
de serpentes, colhendo frutos causadores de sofrimentos horríveis!
Nós vamos aos mares sicilianos, para salvar navios que lá navegam,
sacudidos pelas ondas. Viajando pelo espaço etéreo, não
prestamos socorro aos maus, mas livramos de atrozes perigos aqueles que, durante
a vida, têm praticado a bondade e a justiça. Que ninguém
cultive a iniqüidade, e ninguém ouse navegar com a perfídia
no coração!
O CORO
Salve! Só é ditoso aquele que tem a consciência tranqüila,
e não é ferido pelos golpes da desgraça!
FIM
Notas
A tradução, aqui, como no volume XXII da “Clássicos
Jackson”, é atribuída a J.B. de Mello e Souza, autor do
Prefácio e das notas introdutórias às tragédias
de Ésquilo, Sófocles e Eurípides que figuram no volume.
Não sei se, “por razões editoriais”, atribuiu-se
ao emérito professor, por seu renome, a tradução de todo
o volume, em vez de atribuir-lhe a organização do mesmo. É
o que se depreende das palavras do próprio João Baptista de
Mello e Souza no Prefácio:
“Tais considerações justificam, à saciedade, a
preferência dada, na elaboração do presente volume, às
traduções em prosa de algumas tragédias entre as mais
famosas do teatro ateniense. Por exceção insere-se apenas uma
em verso solto (o Hipólito, de Eurípides), completando-se destarte
a série agora apresentada com um trabalho antigo, de tradutor português
desconhecido, que venceu com certa galhardia as dificuldades do empreendimento.”
[g.n.]
O professor João Baptista de Mello e Souza foi, por anos, professor
de história no Colégio Mello e Souza e marcou gerações
com seus ensinamentos. É de Afonso Arinos, em suas Memórias,
este testemunho sobre a importância que teve em sua formação
as aulas por ele dadas: “A matéria que mais me encantava era
a História do Brasil, dada pelo mesmo (J.B. Mello e Souza).”;
“Creio que toda a minha inclinação posterior pelos estudos
históricos data desse fecundo aprendizado inicial.” (ap. Alberto
Venancio Filho, A Historiografia Republicana: A contribuição
de Afonso Arinos, in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n.
6, 1990, p.151-160.) [NE]
(1) — Pletro — medida grega antiga, equivalente a 30 metros aproximadamente.
(2) — “Dióscuros” significa “Filhos do Deus”;
foi a designação dada a Castor e Pólux, que passavam
ambos por filhos de Júpiter e Leda, esta esposa de Tíndaro,
rei de Esparta. Castor e Pólux eram gêmeos com Helena (esposa
de Menelau) e Clitenmestra.
(3) — Segundo a Mitologia, uma divindade suprema, o Destino, regia
o universo; os próprios deuses olímpicos estavam sujeitos à
sua vontade inexorável. As “moirai”, ou Parcas, transmitiam
e executavam os decretos do Destino.
(4) — Do julgamento de Orestes, proferido pelo Areópago, no
qual os votos dos juizes se dividiram em dois grupos iguais, um a favor, outro
contra o réu, tendo a deusa Minerva resolvido em favor — resultou
o chamado “voto de Minerva”, que favorece o réu em circunstâncias
idênticas.
(5) — Liceu (em grego Lukeion, bosque de lobos) era o nome de uma montanha
na Arcádia, local indicado pelos Dióscuros a Orestes. Foi, também,
o nome de um passeio pitoresco, nos arredores de Atenas, onde o sábio
Aristóteles ensinava a seus discípulos, como outrora Platão
no famoso jardim Academus.
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