Crônicas de Londres

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I – Londres, 14 de Abril de 1877

Estamos, parece, nas vésperas da guerra.

A Turquia deu ao ultimato da Rússia uma verdadeira resposta turca
– verbosa, altiva, teimosa, cheia do espírito de fatalismo muçulmano:
recusa tudo: fazer concessões ao Montenegro, desarmar, mandar embaixadores
a Sampetersburgo, aceitar as intervenções alheias, renovar quaisquer
garantias, quase discutir: desprende-se assim violentamente das combinações
diplomáticas, carrega a espingarda e espera. Era fácil prever
esta reacção do orgulho turco.

Há um ano que a Sublime Porta vive num estado de humilhação
permanente. A Europa tem-na tratado como um seu subalterno dependente e inconsciente:
impõe-lhe constituições, governa as suas finanças,
discute a sua administração, usa da sua capital como de uma
sala de hotel para instalar conferências, manda comissões impertinentes
investigar os seus massacres domésticos, dá razão às
províncias que se insurreccionam, força-a a constantes renovações
do funcionalismo, censura as suas despesas, decide nos seus tribunais, obriga-a
a nomear um parlamento, repreende-a, diz-lhe «chut!», desacredita-a,
ralha-lhe, ameaça-a, não admite que ela tenha um espírito
de raça, uma tradição histórica, uma necessidade
religiosa e trata-a absolutamente como se ela fosse uma povoação
de negros perdida no Sul da África.

Esta situação não podia durar. O Turco é inteligente,
orgulhoso, bravo, teimoso, fanático; um dia viria em que, enfastiado
de ver em roda de si tantos pedagogos a querer dirigi-lo e tantos ferrabrases
a franzirem-lhe a testa – devia necessariamente dar dois passos a trás
e meter a espingarda à cara.

Foi o que sucedeu.

Aceitando tacitamente a guerra, a Sublime Porta foi hábil. Qualquer
nova concessão que fizesse seria inútil: a Rússia sempre
quis a guerra; através das declarações adocicadas de
paz, da proposta de conferências, das esperanças nas soluções
diplomáticas a Rússia ia lenta e seguramente preparando a guerra.
A Turquia não a podia evitar; e indo, decisivamente, ao encontro dela
mostra ao menos um sentimento de dignidade e de força.

Além disso impelia-a a grande corrente do sentimento nacional; a
cólera pública, excitada pelos ulemás, pelo partido da
Velha, Turquia. é tão forte que concessões demasiadas
ou a demonstração evidente de uma submissão à
Europa faria correr um grande risco à dinastia dos Osmanlis.

O actual grão-vizir tinha de mais a mais um interesse de ambição
pessoal em se mostrar resistente e enérgico: é que, tendo substituído
Midhat Paxá exilado tinha de mostrar as fortes qualidades que o sentimento
geral atribui a Midhat: Midhat tem um grande partido, não só
em Constantinopla mas em todo o império; ele é considerado como
homem capaz de fazer face à Europa, de manter a dignidade da raça
turca e de saber morrer com honra: ora o actual grãovizir quer provar,
para se manter, que não é um patriota inferior a Midhat: ninguém,
na diplomacia, duvida que esta razão de política pessoal influiu
poderosamente para a altiva resposta da Turquia ao ultimato da Rússia.
Acresce a estas uma outra razão: é que a Turquia não
pode licenciar o seu exército e que para o fazer viver tem de o fazer
combater. Os Turcos têm quase duzentos mil homens mobilizados, reunidos
na fronteira, com grandes esforços e sacrifícios nos dois últimos
anos. Que se faria a este exército desmobilizando-o? Num país
em que não há caminhos de ferro, quase não há
estradas, estes homens, pertencendo às províncias mais afastadas
do império, como poderiam voltar às suas casas? O Estado não
tem dinheiro para os transportar. Com que recursos pessoais empreenderão
eles a viagem? Nesta época do ano, os trabalhos do campo estão
feitos; o Estado não tem trabalho que lhes dar, em que se ocupariam
eles? A maior parte, em dois anos de acampamento, têm perdido o hábito
do trabalho agrícola; o instinto da raça é militar: todo
o turco ganha facilmente o hábito de ser soldado; perde mais facilmente
o hábito de ser cultivador.

Este exército desmobilizado dispersar-se-ia através de províncias
pobres, assoladas pela insurreição, e seria um elemento de desordem,
de pilhagem, de deboche, e a renovação das cenas da Bulgária:
assim o sentimento nacional, estreitas questões de ambição
pessoal, inextricáveis dificuldades financeiras – aí está
o que leva a Turquia à guerra.

O imperador da Rússia, por seu lado, é impelido também
pelo entusiasmo público.

Um retraimento agora poderia causar como na Turquia um abalo revolucionário
em toda a Rússia. E um ódio nacional: os jornais, pela exaltação
da sua cólera, pelas narrações permanentes das crueldades
e das opressões turcas sobre os cristãos; os comités
de Moscovo pela sua vasta influência; o sacerdócio russo por
uma prédica irritada e fanática mantêm o espírito
nacional num furor permanente contra o Turco; a guerra e considerada santa,
sem nenhuma ideia de conquista, de anexação; é possível
que a plebe e a rica burguesia mercantil de Moscovo e das cidades pensem em
Constantinopla; mas as classes militares, a aristocracia, sabem bem que nem
a Inglaterra nem a Áustria lhes permitiriam aumentar o território:
e realmente por um puro sentimento, pela libertação dos cristãos
que se batem. E no fundo os dois governos – russo e turco são
impelidos por um fanatismo contrario.

Qual será o resultado da luta? A desproporção de forças
na fronteira é grave: os Russos têm duzentos e setenta e cinco
mil homens de infantaria, vinte mil cavalos e novecentas peças de artilharia.
Os Turcos têm cento e cinquenta mil homens de infantaria, três
mil cavalos e duzentos e dezasseis canhões. Este número inferior
é compensado por esta consideração: que o Turco é
atacado e o Russo ataca – ora é conhecido que o Russo é
o mais vagaroso e insuficiente dos exércitos de ataque e o Turco é
um admirável soldado de defesa. Ninguém como ele para manter
uma posição: é ainda uma qualidade que a sua religião
lhe deu: a impassibilidade.

Os Russos decerto podem mobilizar rapidamente grandes forças, mas
aos Turcos basta-lhes levantar o estandarte do Profeta para que todo o maometanismo,
sejam quais forem as dissidências de seita, corra às armas.

Kalil Paxá, o embaixador da Turquia em Paris, dizia há dias,
como o velhaco sorriso de velho maometano: – Nós esperamos: e
a verdadeira guerra havemos de fazê-la com a Arábia e a Índia.

Uma das infelicidades da Turquia é talvez não ter realizado
a sua aliança com a Pérsia. A Pérsia podia fazer uma
terrível diversão sobre a fronteira asiática da Rússia,
e obrigá-la a dividir as suas forças. Mas a aliança persa,
segundo os bem informados, foi concluída com a Rússia e o exército
persa está armado, disciplinado, instruído, comandado pela Rússia.

Que fará a Inglaterra? Há aqui mesmo mil opiniões.
A mais geral, há tempos, era a de absoluta indiferença.

«A Rússia», dizia-se, «não se atreve a tentar
uma anexação: mas mesmo que ela vá a Constantinopla,
que importa à Inglaterra?» O caminho da Índia não
fica por isso menos livre.

Além disso, é digno que a Inglaterra tome o partido de massacradores
fanáticos e de devedores insolúveis? E depois de que serve fazermos
esforços para conservar a integridade de um país que todos os
dias, pela sua relaxação e a sua imprevidência se vai
desorganizando a si mesmo? Que se lucrou com o dinheiro, o sangue, que se
prodigalizou na guerra de 52? Para que se há-de intervir num duelo
que a história e a fé tornam inevitáveis? Assim se falava.

Hoje, porém, perante a crise, a linguagem mudou. «Não
se poderia realmente compreender», diz-se agora, «que a guerra
não tenha como resultado, dada a vitória da Rússia, uma
anexação de território»: daí a desmembração
do império e o Russo em Constantinopla: mas então, a Rússia
estaria no Mediterrâneo, com um dos fortes portos do mar: o poder inglês
teria uma diminuição e a sua posse sobre a Índia, um
primeiro perigo. Dai vem-se à conclusão que é necessária
fatalmente a intervenção. Diz-se mesmo que à mais pequena
escaramuça perdida pelos Turcos – a Inglaterra ocupará
Constantinopla. A esquadra, reforçada, está em caminho de Bezoka-Bay
– que é a antecâmara de Constantinopla.

Que a Inglaterra concorreu de certo modo para a guerra é evidente:
concorreu com os seus meetings sentimentais e humanitários no Verão
passado, dando ânimo aos Russos para seguirem a sua ideia agressiva:
concorreu com a presença da esquadra em Constantinopla pouco depois,
dando ânimo aos Turcos para resistirem à pressão pacifica
da Europa: concorreu depois com a ideia do protocolo que, sendo um reconhecimento
tácito da justiça e da força da Rússia, lhe deu
um aumento de exigência e de hostilidade – e, sendo uma nova humilhação
imposta à Turquia, a tomou mais despeitada e mais difícil de
condescendências.

É provável, porém, que a guerra não rompa por
estas semanas próximas. No protocolo diziase que, dado o caso de uma
recusa da parte da Turquia, as potências acordariam numa decisão
ulterior a tomar: mas esta decisão, sejam quais forem as combinações
diplomáticas que a precedam, terá sempre este resultado –
deixar a Turquia em frente da Rússia – e o resultado final, portanto,
será igualmente a guerra.

En attendant, o ministro das Finanças apresenta o seu orçamento
organizado como se a Inglaterra não tivesse a menor probabilidade de
uma complicação militar. E um orçamento cheio de confiança,
pacífico e próspero.

A despesa é calculada em setenta e Oito milhões setecentas
e noventa e quatro mil e quarenta e quatro libras. A receita é calculada
em setenta e nove milhões e vinte mil libras! O Tesouro tem, pois,
o saldo a favor de duzentas e vinte e seis mil libras! Apesar deste orçamento
invejável, a situação comercial e industrial da Inglaterra
não é boa: em todo o reino há uma depressão na
actividade. As indústrias do carvão e do ferro têm tido
no Norte um período terrível de estagnação. Muitos
altos-fornos estão apagados, muitos trabalhos de exploração
carvoeira suspensos. Há milhares de homens sem trabalho.

Para se ver a declinação geral do movimento comercial, basta
dizer que as grandes companhias de navegação entre a Inglaterra
e os Estados Unidos – a Inman, White Star, Guion National – reduziram
o número de viagens de paquetes – e que em lugar de saídas
semanais têm apenas saídas quinzenais.

Acresce que, na maior parte das indústrias, a progressão crescente
das exigências dos operários, justamente neste momento de crise,
aumenta as dificuldades: é pelo menos o que afirmam os industriais.

O movimento crescente para a redução das horas de trabalho
afecta, dizem eles, certas indústrias mortalmente: uma grande firma
do Norte, exploradora de vastas minas de carvão, que empregava três
mil operários, cessou os seus trabalhos, que não podem sem perda,
afiançam eles na sua declaração, continuar sob o regime
das horas reduzidas.

Começa a falar-se, com seriedade e espanto, numa nova descoberta
americana, o telefone: é um telégrafo para a transmissão
do som. Esta ideia, que nasceu em 1861, tem tido um progresso tão fecundo
que há dois meses já se apresentaram perante as provas públicas
dois sistemas rivais. O mais perfeito, parece. é o do Dr. Bell. O seu
aparelho, que tem a aparência de um sistema telegráfico e um
princípio electromagnético, trans-mitiu sons, numa última
experiência, feita a cento e quarenta e três milhas; não
só o som da voz chega perfeitamente claro, mas distinguem-se as inflexões
mais leves. A experiência foi realizada em Boston e Conway, e àquela
forte distância distinguia-se uma rabeca de um violoncelo; o rumor,
as conversações, as risadas das pessoas que estavam junto do
aparelho em Boston eram ouvidas em Conway com a distinta e exacta nitidez
com que se ouve numa torrinha o que se canta no palco. Calcula-se que se poderá
fazer chegar o som a transatlânticas distancias. Em Filadélfia
organiza-se um concerto experimental, em que o público estará
a cinquenta milhas dos artistas.

As novidades literárias são escassas. Ruskin, o célebre
critico de arte, publicou um livro, que tem causado uma singular surpresa:
é um livro íntimo, uma confissão, uma confidência
–de quê? De sentimentos? De aventuras? De sofrimentos ou felicidades
pessoais? Não: de despesas de casa! Não sabe a gente se há-de
achar este livro um começo de imbecilidade senil ou um resto amável
de candura infantil. A alta situação literária e crítica
de Ruskin, personalidade original de grande relevo, aumenta o espanto. Imaginem
o Sr. Alexandre Herculano publicando, de Vale de Lobos, um panfleto de duzentas
páginas em que explicasse o que gasta em seus róis, quanto lhe
custa a lavadeira, o que emprestou a fulano, a última conta do alfaiate,
etc., etc. Uma coisa curiosa se vê no livro de Ruskin – é
que gastou em poucos anos uma fortuna de duzentas mil libras! Parte por uma
alta filantropia e uma santa caridade – e parte não sabe como;
porque, diz ele, viveu quinze anos com tão sórdida economia,
privando-se tão asperamente, que apenas gastava, pobre dele, trinta
contos de réis por ano! Agora, diz, restam-lhe duzentos e cinquenta
contos: acha que não vale a pena conservar uma soma tão mesquinha.
Mete na carteira quinze contos para ir viajar este ano, e do resto faz duas
partes –uma para dispersar em caridade, outra para empregar de modo
que tenha para todo o futuro mil e quinhentos mil réis por ano: porque,
diz ele, descobriu que todo o homem que não pode viver com este rendimento
não é digno de possuir a vida.

Uma outra curiosidade é a nova revista mensal O Século XIX.
Tem por colaboradores os mais altos nomes de Inglaterra, desde Gladstone,
que será em breve o primeiro-ministro, até ao cardeal Manning
– que pode vir a ser o futuro papa. A originalidade desta revista é
que os seus directores pediram a todos os homens ilustres de Inglaterra –
políticos, filósofos, professores, críticos – que
lhe escrevessem a sua opinião individual sobre esta tese: «Que
influência exerce sobre a moral a diminuição da crença
religiosa?» Cada um dos homens ilustres deve responder num período
curto, sintético, que se grave com a precisão de uma definição
e a profundidade de uma máxima. A colecção destas definições
filosóficas, reunidas nas últimas páginas de cada número
sob o nome de Symposium. é altamente interessante: até aqui
a declaração mais explícita é a do professor Fawcet,
que diz: «A crença em Deus deve ser para os que a possam gozar
um delicado prazer do espírito, mas a moral está acima e fora
desses refinamentos da inteligência.».

A season – os três meses elegantes e aristocráticos de
Londres – começa lentamente a organizar-se. Ordinariamente, a
aristocracia inglesa, depois da Páscoa, vai a Paris: o príncipe
de Gales é o primeiro. Passou-se o Inverno no campo, nos castelos,
na caça, e antes do encontro oficial em Londres, vai-se respirar a
Paris uma larga golfada de civilização: vê-se o último
tom das toilettes, os cortes da Primavera na Lafferrière e no Worth,
folheia-se o último livro de Goncourt, faz-se uma passagem nos salões
do Eliseu, vê-se a novidade da Páscoa na Comédie Française,
vai-se ao Café Anglais e à Maison d’Or, à vontade,
de chapéu, o que é para uma lady inglesa uma adorável
extravagância, e volta-se à representação pesada
e solene de Londres. O tempo, porém, tem estado áspero, havendo
frio, com o vento do sudoeste que tem um gume gelado, e o Hyde Park tem ainda
a parda tristeza da sua solidão de Inverno. A great attraction desta
season será, parece, Orleans Club. É um clube de campo: está
à beira do Tamisa, numa paisagem amável, nas verduras de um
vasto parque. Era uma propriedade do duque de Aumale. Os prazeres do clube
serão piquenique no campo, tiro aos pombos, pescas, pólo, críquete,
almoços na relva, bailes de musselina, soirées no parque, etc.

Todos os dias dois four-in-hand, conduzidos por membros do clube, levarão
a Orleans House os sócios e as convidadas, porque uma feição
delicada de Orleans Club é que será também um clube feminino,
o que lhe trará inevitavelmente, por um tempo, o encanto e, mais tarde,
a ruma.

Um outro clube original está em via de organização.
E o clube dos torneios. Este deverá ter uma casa ao pé do Hyde
Park, onde às cinco horas se serve o chá às senhoras,
entre o campo: o fim principal deste clube será formar torneios e caçadas
ao falcão. Faz ligeiramente sorrir o programa gótico e feudal
deste clube londrino. A caça ao falcão pode conceber-se desde
que se vistam os criados com as cores usadas na partida dos pajens do século
XIV, se lhes borde no peito, sobre a seda, os escudos de armas e se lhes deixem
crescer os cabelos louros em anéis. Assim poderão levantar no
punho o carrancudo falcão com o seu capacete de pele de búfalo
e a caça pode ter um aspecto suportavelmente feudal. Mas um torneio!
Negociantes da City e banqueiros de capacete e armadura, dando-se golpes de
montante, numa quinta particular, ao pé da estação de
caminho de ferro! Singular diversão! O último torneio que houve
em Inglaterra foi há trinta anos no Castelo de Egliton. Tinha sido
aclamada rainha da beleza legendária Lady Seymoun. As festas foram
esplêndidas. Ficaram célebres as pessoas do elegante marquês
de Londonderry. Houve um episódio. Um homem baixo e grosso, de nariz
espesso e fortes bigodes, todo coberto de uma armadura aparatosa, caiu na
arena, estatelado, esperneando; levantaram-no e sacudiram-no; estava são,
só um pouco humilhado: damas e cavaleiros riram; era um estrangeiro,
sem grande importância: quatro anos depois era imperador dos Franceses!
Uma curiosidade de Londres – foi o desafio a andar entre o célebre
caminhador O’Leary e o seu rival Welton. O desafio foi em Albert Hall
e durou seis dias – durante esse tempo, os andarilhos tiveram apenas
algumas horas de descanso! O’Leary ganhou, tendo andado quinhentas e
vinte milhas; Welton perdeu por dez milhas. O’Leary caminhava com os
cotovelos apertados aos rins, calado, olhar direito, tendo agarrado em cada
mão, com uma força convulsiva, uma varinha. Welton caminhava
bamboleando-se, falando, com um chicote numa das mãos, a outra à
cinta – e para se excitar fez-se tocar constantemente à banda
alemã de instrumentos de metal uma marcha estridente. Trinta mil pessoas
assistiram sucessivamente a este singular desafio. O que se provou? Incontestavelmente
que a constituição humana tem um prodigioso poder de resistência,
e que esta máquina de carne e ossos não é inferior às
de Birmingham. Mas o que é estranho é que no tempo dos caminhos
de ferro – se exerça essa preciosa força de resistência,
numa arte inútil, obsoleta, quase bárbaras marchas! O grande
teatro da Alhambra representa uma peça fantástica, cortada de
bailados, que tem, em Inglaterra, uma singular qualidade – e imoral!
É a primeira vez que vejo num palco inglês o amante idealizado
e o marido apupado! Milhares de pessoas vão sucessivamente saborear
aquele escandalozinho gigante. Vejam a censura inglesa! Admite esta farsa
impudente, povoada de mulheres quase nuas, e recusa a Dama das Camélias!
Mas é que em Inglaterra não existe censura; Lord Chambellan,
um velho caturra de outras idades, excêntrico e variável, é
a censura. Governa despoticamente do meio do seu mau humor os teatros de Londres,
e com tanta inteligência que permite as farsas imorais de um rabiscador
idiota – e impede a representação da obra de Dumas, da
Academia Francesa!

II – Londres, 14 de Maio de 1877

Lembram-se, decerto, de eu lhes dizer na minha última carta que o
soldado russo era o mais vagaroso dos soldados de ataque; aí têm
a prova: há um mês que começou a guerra, e nem no Danúbio,
nem na Ásia Menor, tem havido um facto decisivo: as estradas da România,
é verdade, têm estado quase impraticáveis pelas chuvas
incessantes e pelos temporais tão oportunos que parecem estar às
ordens do sultão e pertencer ao estado-maior turco; é verdade
que na Ásia Menor as dificuldades de transporte e de trânsito
para um forte exército invasor são consideráveis: todavia
repete-se um facto histórico e militar: toda a invasão russa
é sempre uma campanha protraída e monótona.

No Danúbio tem havido apenas alguns duelos de artilharia entre os
fortes das duas margens, com resultados (consoladores para os humanitários)
de algum cavalo morto ou de algum tecto de colmo queimado.

O facto mais enérgico foi a passagem de Hobart Paxá, a bordo
de um navio turco, através do fogo das baterias russas. À chegada
dos Russos à România e aos portos do Danúbio, Hobbart
Paxá estava, em serviço de inspecção, a bordo
de um navio de guerra – no Alto Danúbio –, e ficou portanto
bloqueado pela instalação fortificada das vanguardas russas.
Com uma decisão destemida, toda a força de caldeira, todos os
fogos acesos, esperando a cada momento tocar algum torpedo e ir pelos ares,
raspou-se à razão de quinze milhas por hora, sob um fogo desesperado
dos Russos, incólume e com bandeira alta.

Hobbart Paxá é certamente uma das figuras mais salientes e
mais originais desta guerra. E inglês e par de Inglaterra: é
filho do conde de Buckinghamshire e herdou o titulo há anos, quando
tomou assento na Câmara dos Lordes. Entrou na marinha e pouco tempo
depois fezse frade. Serviu a Turquia na insurreição de Creta,
e na guerra dos Estados Unidos quebrou muitas vezes, a bordo do seu navio
corsário, o bloqueio do Sul. Agora é paxá e almirante
turco.

E um homem inteligente, heróico, com sérias qualidades de
organizador. Tem quarenta e cinco anos, a barba toda espessa, o olhar agudo,
o sobrolho carregado e um certo ar de bonomia altiva. E um aventureiro de
bem – ou antes, uma heroicidade disponível, que procura emprego.

Na Ásia Menor a marcha dos Russos tem encontrado dificuldades: tudo
o que têm adiantado são duas milhas alemãs; é incontestável
que em encontros parciais, mas violentos, os Turcos têm tido vantagens;
as forças voluntárias turcas organizam-se com um impulso fanático
e duplicam a resistência.

Hoje dizia-se que algumas tribos do Cáucaso se tinham insurreccionado
– o que podia cortar as comunicações do exército
russo e isolá-lo na Ásia: esta noticia harmoniza-se com o despacho
que diz ter o czar ordenado a mobilização do quarto, sétimo
e décimo primeiro corpos de exército. Todos os correspondentes
são uniformes em elogiar a organização dos Russos: boa
cavalaria, equipamentos perfeitos, uma admirável administração,
uma disciplina exacta, pagam tudo em ouro na România – e só
o que é fornecido pela municipalidade é pago em letras, a três
meses. Os Românicos recebem-nos fraternalmente: duvida-se todavia que
lhes possam ser de utilidade na guerra. Certamente o príncipe Carlos
é prussiano, da Casa de Hohenzollern, bravo, e deseja ardentemente
uma reputação militar: mas um românico é apenas
um soldado de aparato: admirável nos jardins ou nos cates, com os seus
uniformes pesados de bordaduras – não tem as qualidades de resistência,
de fé e de tenacidade que fazem o bom soldado. No entanto, são
vinte ou trinta mil homens – e quando não sirvam senão
para guarnecer os territórios que os Russos forem ocupando são
já de uma grande vantagem; são outros tantos milhares de russos
desembaraçados das funções ociosas de guarnição
e prontos para a campanha activa. O resultado definitivo da guerra não
me parece duvidoso: esta é a sétima ou oitava guerra turco-russa
– e se os Turcos não têm aprendido nada, os Russos têm
aprendido tudo. O Turco é decerto o mesmo soldado bravo, sofredor,
activo de outrora; mas a guerra hoje não é uma questão
de bravura ou de arranque individual; é uma ciência com processos
científicos – e neste ponto a inferioridade turca é absoluta.
Desde as pontes importantes que se esquecem de cortar até aos monitores
que deixam afundar sem razão – são verdadeiramente os
antigos turcos, enchendo o seu cachimbo no momento do perigo e confiando em
Alá.

Aqui, naturalmente, a grande preocupação é a atitude
futura da Inglaterra; e não é fácil perceber, através
das discussões difusas dos jornais e dos debates confusos do parlamento
– qual é a verdadeira vontade do país: eu penso que, como
o ministério, o país quer intervir. O ministério naturalmente
declara, na câmara e nos jornais, a sua neutralidade: mas e realmente
uma neutralidade a que declara que conservará a espada na bainha –
se os Russos se abstiverem de ideias de conquista? E uma neutralidade condicional.
É, rigorosamente, um começo de intervenção. E
depois, por esta condição – a abstenção
de conquista –, vem pôr de antemão uma condição
que a lógica dos factos tomaria mais tarde ou mais cedo inaceitável.

A Rússia pode agora, decerto, declarar que não pretende territórios:
mas depois de os ter ocupado terá força, renunciamento bastante
para os restituir? Todo o estado vitorioso exige forçosamente, em definitiva,
uma compensação aos sacrifícios da guerra: dinheiro ou
terreno: ora a Turquia não tem dinheiro, logo há-de pagar com
províncias. E isto é tão certo – que o exército
russo na Ásia Menor vai acompanhado de uma corte numerosa de funcionários
civis, prontos a organizar o país à russa, a maneira que ele
for conquistado. De modo que, apenas os Russos se estendam na Ásia
Menor ou marchem sobre Constantinopla – a Inglaterra tem de dizer o
seu «alto lá».

Em qualquer destes casos, é a Índia que seria ameaçada,
ou directamente ou no caminho que lá leva: daí a necessidade
imediata de aumentar, num pé-de-guerra paralelo ao da Rússia,
o exército da Índia, o que seria um encargo intolerável
para a Índia e uma negação dos princípios económicos
do Estado. A fazer tal, a Inglaterra prefere fazer a guerra.

Junte-se a isto que a Rússia, desde a sua marcha progressiva na Ásia,
e o inimigo natural da Inglaterra: que a Inglaterra quer mostrar a sua força
e a sua influência; que está despeitada pela maneira falaz e
tortuosa por que a Rússia conduziu as negociações anteriores
à guerra – e sentir-se-á a popularidade da ideia da intervenção.
Além disso a imprensa ministerial, em artigos frenéticos, pede
claramente a guerra: e o Punch tinha razão outro dia – representando
as penas aguçadas do Daily Telegraph, do Morning Post, do Pall Mall,
espicaçando o enorme Leão Britânico para o fazer erguer-se
e rugir.

Este sentimento julgo-o geral: há porém uma corrente de paixão
que já por duas vezes tem atravessado o país e que o conserva
por um, dois dias, num estado de excitação, desejando a destruição
da Turquia, como um pais bárbaro, massacrado, fora da civilização.

Nesses dias fala-se em dar apoio à Rússia: repetem-se as lágrimas
choradas sobre os massacres da Bulgária: pede-se que a frota vá
bombardear Constantinopla. Esta exaltação de sentimento é
levantada artificialmente por Gladstone e pela porção dos liberais
que o seguem.

A sua eloquência apaixonada, a sua convicção contagiosa,
a altura do seu carácter, arrastam um momento: Gladstone quer que se
abandone a Turquia, que se faça uma aliança com a Rússia,
que se divida o Império Otomano. E por algum tempo todo o mundo pensa
assim.

Mas a exaltação abate-se, a sensibilidade recrescida acalma
– a razão prática readquire os seus direitos, e o pais,
arrefecido, continua a pensar que o sentimento perturba tudo e não
edifica nada, que a sã política do ministério é
a antiga tradição da Inglaterra – e que se alguma coisa
há a fazer é dar um golpe na Rússia.

A opinião está muito preocupada também de um certo
azedume de relações entre a Alemanha e a França. A Alemanha
parece querer renovar as antigas reclamações a respeito dos
armamentos consideráveis da França. Não é já
hoje um segredo para ninguém que a meia demissão do príncipe
de Bismarck foi sobretudo causada pela resistência que ele encontrava
no imperador em tomar uma atitude francamente hostil à França.
Bismarck e Moltke são a alma do partido da guerra – e, se não
fosse a forte influência do partido da paz, quem sabe por que novas
catástrofes teria passado o Ocidente da Europa. Este partido da paz
é representando na corte pelo príncipe imperial e inspirado
pela princesa, a Inglesa, como lhe chamam em Berlim: inteligente, instruída,
enérgica, correspondendo-se com os homens mais ilustres da Inglaterra,
ela tem uma grande influência, naturalmente, em seu marido e, além
disso, no imperador. É diz-se, uma das colunas da paz. Um incidente
curioso, que me foi particularmente contado, revela de resto a fragilidade
desta situação: por ocasião dos anos do imperador da
Alemanha tem sido costume do marechal Mac Mahon mandar um ajudante de ordens,
com felicitações. Este ano o ajudante tardava. Grande alegria
do partido da guerra.

Era uma insolência francesa! Era uma desfeita! Era o primeiro acto
hostil da desforra! O príncipe imperial, assustado, vendo o seu pai
descontente, mandou um telegrama para Paris, pedindo que o ajudante partisse
logo e explicando que comentários perigosos se estavam formando. O
ajudante, o marquês de Abzac, estava já em caminho: chegou na
véspera dos anos do imperador! Desconsolação do partido
da guerra! Triunfo do partido da paz – que levou o imperador a dar uma
grã-cruz ao marquês de Abzac.

No entanto, a França prepara tranquilamente a sua Exposição.
Uma das curiosidades será a colecção de preciosidades
que o príncipe de Gales trouxe da Índia. Ele mesmo foi examinar
em Paris o lugar que lhe estava marcado. Diz-se que nessa noite, estando no
palco do Théâtre Français e falando-se das peças
novas que iriam por ocasião da Exposição, uma linda actriz
lhe perguntou bruscamente: – E crê vossa alteza que a Exposição
terá lugar? O príncipe, um pouco embaraçado, reflectiu
e respondeu: – Com toda a certeza.

O Transval, como sabem, foi anexado. Era previsto.

Não se sabem ainda as razões detalhadas que levaram Sir Theophilus
Storey a este passo extremo – mas parece que a dissolução
da república era iminente: os bóeres tinham provocado uma guerra
e recusavam-se a pagar os impostos para a sustentar: a república, sem
meios, sem soldados, estava na véspera de uma invasão: todo
o mundo bárbaro que a cerca, estava em armas: era de temer à
primeira insurreição que houvesse no Sul de África um
levantamento selvagem, em massa. Foi talvez para evitar este grave perigo
– que Sir Theophilus Storey interveio. O território do Transval
é grande como todo o reino de Itália e não tem mais de
um milhão de habitantes. Parece que a anexação foi tranquila,
além, naturalmente, dos protestos platónicos. Na acta de anexação
o Transval é declarado estado livre, com toda a autonomia do governo
local: as línguas holandesa e inglesa são consideradas igualmente
oficiais: certos impostos são abolidos – e parece que o sentimento
pacífico é tão grande que não foi necessária
ainda a presença de tropas inglesas. É mais um grosso bocado
do globo que entra para a vastidão da Inglaterra! Por esta ocasião
alguns jornais têm falado de Lourenço Marques.

Pintam-no como um país fértil, rico, de grande futuro, em
plena anarquia: funcionários, instituições, edifícios,
serviços públicos, actividade local – tudo é descrito
como num estado desolador de dissolução e de inércia.
O Pall Mall, jornal do governo, tem insistido nestes detalhes.

De resto não é raro encontrarmos nos jornais ingleses estas
pinturas falsamente carregadas de civilização portuguesa na
África: e têm elas tomado um tal carácter de exageração
injusta que ingleses estabelecidos na África têm julgado do seu
dever estabelecer a justa verdade, e ultimamente nos jornais do Cabo encontravam-se
apreciações extremamente favoráveis sobre o funcionalismo
português em África – apresentando-o como ilustrado, de
vistas liberais e de uma grande benevolência.

As novidades literárias são escassas. Relêem-se os livros
velhos – sobretudo os que dizem respeito ao Oriente, à Turquia
e à Rússia: em todas as lojas de livros se vêem edições
recentes do Alcorão traduzido; e, como a Turquia é preocupação
do momento, as revistas literárias dedicam artigos sólidos,
laboriosamente compilados pelo método inglês, à literatura
e poesia turcas.

Tem-se lido muito, todavia, o novo livro do deputado Jeckins, autor de Xinx’s
Baby; este novo romance ou panfleto romantizado chama-se Devil’s Chain
(«Cadeia do Diabo») e tem-se vendido em pouco tempo vinte mil
exemplares! É uma pintura violenta, colérica, da embriaguez
em Inglaterra: este grande vício nacional, e as suas fatalidades, está
contado em episódios lúgubres, num estilo concentrado e nervoso,
a largos traços, de um modo impressionador: vêem-se todas as
classes, todos os caracteres, todas as idades, virgens, mães, sacerdotes,
operários, juizes, lordes, ministros de Estado, a Inglaterra inteira,
arrastada pelo brande, pelo gim, pela aguardente, à perdição,
ao vício, à miséria, à desonra, ao crime, à
morte! E um pais todo que rola para o abismo, cambaleando de bêbedo.
É a grande Cadeia do Diabo! Satanás prende-os uns aos outros
por um vício comum – o álcool – e, a grandes vergastadas,
vai-os atirando para o inferno.

E, no meio desta catástrofe, um só homem prospera, engorda,
sorri e triunfa – o destilador, o preparador do álcool, o dono
das mil tabernas. Mas lá lhe vem o seu castigo: o único filho,
o único herdeiro, de copo de aguardente em copo de gim, vem a morrer,
miserável, num quarto de acaso, vagamente cumpliciado num crime! O
livro perde pela sua exageração bíblica. Tratado com
mais realidade, causaria mais convicção.

A season vai monótona. Janta-se pouco, recebe-se pouco, dança-se
pouco. O tempo tem estado áspero. A grande attraction é naturalmente
a exposição anual de pinturas. Não se pode ver em detalhe,
porque nestes primeiros tempos a multidão toma às vezes as proporções
confusas de uma bernarda.

Empurra-se, escorrega-se, pisa-se, vai-se, é-se levado – e
vêem-se de longe, nas paredes, as cores reluzir vagamente e os dourados
dos caixilhos cintilar: mais nada.

A primeira impressão, porém, é que a exposição
é medíocre: milhares de quadros, imenso talento despendido,
uma extraordinária habilidade de execução – mas
nenhuma obra que faça pensar.

Os assuntos não têm ideia: são motivos, pretextos para
correr: basta dizer que os dois grandes pintores de Inglaterra, Leighton e
Millais – um expõe uma «menina vendo-se a um espelho»,
o outro «um veterano»! E o que estes dois grandes artistas têm
a dizer este ano! Quando a gente, no colégio, aprende aguarela, copia
assuntos com mais ideia e mais intenção.

Os concertos wagnerianos têm tido um sucesso. São compostos
das principais partes das óperas de Wagner, sobretudo da sua última
trilogia heróica, Os Nibelungos: muitos dos cantores que executaram
a ópera em Bayreuth vieram a Londres – entre eles Madame Madonna,
a prima-dona do maestro, a favorita, a sua grande interpretadora.

Nestes concertos, naturalmente, fala-se muito de Wagner, das suas excentricidades,
do seu orgulho, do seu génio, dos seus hábitos. Um artista que
esteve em casa dele em Bayreuth, conta-me alguns traços curiosos. O
maestro trabalha num salão enorme, com janelas imensas que abrem sobre
um jardim, em cima de uma mesa de mármore. Está às vezes
quinze a vinte dias sem escrever uma nota: de repente a imaginação
vem: o maestro sente-a, e veste imediatamente o seu fato de trabalho. E um
costume de veludo, à maneira dos camponeses alemães da Renascença.
Abre todas as janelas e escreve doze a quinze horas a fio, atirando os papéis
de música para o chão, até haver em toda a sala uma camada
espessa. Não emenda, nem corrige. Quando não trabalha passeia
só pelos campos adoráveis de Bayreuth, com dois enormes cães
terra-nova, que o não deixam. Quando em Bayreuth ele entra num café,
todo o mundo o segue, se descobre e deixa de fumar! Não há por
ai ninguém que queira ir explorar a Roidaima? A Roidaima é a
grande maravilha geográfica destes tempos. Viajantes exploradores,
na Guiana Inglesa, encontraram ultimamente uma montanha de granito, na forma
de um dado colossal: os lados são perfeitamente a pique, perpendiculares:
o plano superior está a uma altura de alguns mil pés: com fortes
óculos de alcance vê-se que há, em cima, uma floresta,
e deduz-se, por pássaros de várias formas que se vêem
voar, que além de toda uma flora é toda uma vida animal: haverá
homens? Nunca ninguém lá subiu, nunca ninguém de lá
desceu; que mistério há ali? Desde o começo do mundo
aquele país aéreo está intacto, inexplorado, virgem.
É decerto habitado: provam-no as arvores, os pássaros, a água
doce que cai em cascatas pelo lado do monte: a largura em cima é de
duas léguas.

Que espécie de homens habitam ali? Que raça? Que língua
falam? Desde Adão, segundo a Bíblia, ou desde o primeiro macaco,
segundo Darwin – habita ali uma tribo, uma nação. Que
civilização tem? Que estranhos animais se encontrarão
ainda lá? Que estranhas árvores? Os jornais ingleses pedem,
à uma, que se organize uma exploração, com balões,
para subir lá e ver! Confesso que é tentador: quantas maravilhas
a ciência poderá ali encontrar! É bem possível
que lá vivam muitas das raças animais que no resto do globo
desapareceram.

E que sensação a do explorador que, ao descer da barquinha
do balão, ao aportar àquele mundo aéreo – visse
um ser felpudo, um imenso macaco humano, fazendo pastar tranquilamente um
rebanho de mastodontes?

III – Londres, 30 de Maio de 1877

Um jornal satírico de Londres, o Fun, publicava há dias o seguinte
anúncio:

DEZ LIBRAS DE RECOMPENSA!! aos exércitos russo e turco, oferecidas
pelos correspondentes dos jornais e repórteres, se os ditos exércitos
se comprometerem ao seguinte: travar uma batalha digna de um telegrama.

A monotonia da guerra, com efeito, faz a infelicidade dos correspondentes:
eu mesmo estive demorando uns dias esta carta na esperança que os Russos
ou Turcos, na Ásia ou no Danúbio, me oferecessem caritativamente
algum episódio comovente ou algum feito decisivo.

Mas nada! Os Russos continuam a remeter para o Danúbio uma corrente
copiosa e infindável de regimentos: Mas, à parte alguns duelos
matinais de artilharia entre as duas margens, a campanha europeia do Danúbio
– é como um livro de que apenas se escreveu o título.
As pessoas ávidas de emoções e que desejam ter os nervos
numa sobre-excitação interessante estão descontentes:
a guerra apresenta a sensaboria de uma parada; algumas, mais desconfiadas,
receiam um logro e que os diplomatas comecem a tratar da paz antes de os generais
terem travado a guerra.

Não se perde por esperar, porém, e eu penso que, antes de
pouco, a Turquia oferecerá amplamente motivos de sensações.
A situação dos Turcos, com efeito, apresenta-se precária.

Na Ásia, no Danúbio, em Constantinopla, por todo o império,
aparecem, como as primeiras nódoas num corpo que gangrena, os primeiros
indícios da catástrofe.

Na Ásia Menor os Russos prosperam. A tomada de Ardahan compromete
consideravelmente a situação dos Turcos. A guarnição
de Ardahan era de oito mil homens e parece que a resistência foi débil
e ligeiramente covarde. Os Russos, senhores de Ardahan, podem fazer marchar
com segurança uma outra coluna de exército sobre Erzerum. Os
Turcos aí não podem oferecer uma defesa valiosa; diz-se mesmo
que já abandonaram Erzerum e formaram mais para oeste um campo entrincheirado;
se assim é, tomada a fortaleza de Kars e ocupada Erzerum, a Arménia
está nas mãos dos Russos, e a campanha da Ásia Menor
findou. Alguns telegramas de Constantinopla dizem, é verdade, que os
Turcos retomaram Ardahan; mas esta notícia foi mandada para Constantinopla
por chefes turcos, que dizem tê-la recebido do kamaikan de Daghestan,
que declara tê-la recebido do kamaikan de uma outra tribo, que afirma
tê-la ouvido dizer a um circassiano! E aqui está o sistema de
informações do Ministério da Guerra em Constantinopla!
Parece de uma ópera cómica, com música de Offenbach!
O movimento de insurreição no Cáucaso com que os Turcos
tanto contavam, abortou miseravelmente: algumas tribos circassianas, com efeito,
levantaram-se mas sem organização, sem táctica, e em
número muito diminuto para embaraçarem seriamente os Russos;
o movimento foi facilmente dominado; diz-se que os Russos fizeram nos primeiros
dias uma repressão sanguinária e feroz das tribos rebeldes:
para assustar as populações faziam passar os revoltosos feitos
prisioneiros, através das aldeias, carregados de grilhões, espicaçados
pelas lanças dos cossacos e conduzidos como animais ferozes.

A tomada de Sokum Kale pelos turcos, que eles tanto cantaram, é,
no fim de tudo, um feito insignificante, inútil e, por assim dizer,
platónico. Sokum é uma pequena aldeia marítima, com casebres
de pau, deliciosa como situação pitoresca, entre as suas colinas
e os seus bosques de laranjeiras, mas inteiramente destituída de qualquer
importância estratégica. Nas províncias do Sul da Ásia
Menor, as tribos beduínas, inimigas do Turco, começam a mostrar
uma agitação inquietadora; têm aparecido em força
junto de Jerusalém e em todo o vale do Jordão; os governadores
locais pedem reforços para Constantinopla; uma insurreição
beduína seria, neste momento; mais uma complicação infeliz,
na lista terrível das complicações infelizes da Turquia.

Em Constantinopla, «está-se com a cabeça perdida»:
o ministério, a câmara, o sultão, os softas, tudo está
numa excitação aguda de desconfiança. O público
não confia nem nos generais, nem no ministro da Guerra; diz-se que
o ministério, que sabe os podres, não confia no exército,
que nem está armado nem equipado, nem preparado, e que a passagem do
Danúbio pelos Russos será o começo da catástrofe;
o sultão vive num estado de excitação cerebral, tanto
mais perigosa que as grandes doenças nervosas são hereditárias
na família dos Osmanlis; e, quando soube da queda de Ardahan teve um
ataque violento de raiva epiléptica; percorria as salas, dando gritos,
rojava-se e dilacerava o fato. Os softas, isto é, a parte inteligente,
activa, empreendedora da população, preparam-se, evidentemente;
têm feito compras consideráveis de armas, especialmente revólveres;
já têm organizado, como devem saber pelo telégrafo, manifestações
e esboços de sedições. Isto obrigou o Governo a declarar
Constantinopla em estado de sítio: o fim desta medida é sobretudo
apreender as armas que os softas têm ultimamente adquirido; mas, num
país muçulmano, este fim é difícil de atingir;
as armas são guardadas ou nas mesquitas ou nos quartos das mulheres,
e como estes dois lugares são para o muçulmano invioláveis
a apreensão das armas é impossível. Ora é evidente
que a hostilidade dos softas não é só dirigida contra
os ministros, mas contra o próprio sultão – de facto contra
a dinastia; e, portanto, é fácil de ver que perigo corre a família
dos Osmanlis, e com ela o velho regime turco.

A Grécia não podia deixar, no meio de todas as amarguras por
que passa a Turquia, de vir ajuntar a sua gota de fel. Em Atenas repetem-se
as manifestações belicosas contra a Turquia, e é de crer
que o novo Governo, formado de elementos favoráveis à guerra
e sob a pressão de um forte sentimento nacional, se lance na contenda
e aproveite o grande embaraço turco para ajustar certas contas históricas
com a Porta. Assim, por todos os lados, a situação da Turquia
se escurece; é este o momento que se escolheu para dar ao sultão
um sobrenome dinástico sabem que nome se adoptou? O Vitorioso! Os Russos,
por seu lado, acumulam, no Danúbio uma invasão esmagadora: parece
que o plano é fazer passar o Danúbio, em vários pontos,
a todo o exército, e ferir simultaneamente um golpe irresistível.
A demora das operações não tem sido causada somente pelas
chuvas embaraçosas e pelas inundações teimosas; tem tido
a sua razão no desejo de se preparar com elementos tão completos
e uma organização tão vigorosa que a campanha não
seja depois senão uma série de fáceis vitórias.
Estas vitórias, verdade seja, o público russo começa
a impacientar-se por as não ver realizadas; e todo o estado-maior e
a corte começam também a sentir a necessidade de as não
protrair mais; e sabem porquê? Porque os médicos as julgam indispensáveis
à saúde do imperador. Desde a sua volta a Sampetersburgo, o
imperador Alexandre sofre de uma grande irritabilidade nervosa e de uma espécie
de inquietação alucinada, que enche de susto toda a corte. Tem
durante todo o dia uma impaciência febril por telegramas; exige que
os mais insignificantes detalhes do que se passa no exército lhe sejam
telegrafados de minuto a minuto, exprime desconfianças injustas e mostra-se
sem razão descontente com a marcha da guerra. Os médicos julgam
que só uma boa vitória russa poderá acalmar esta excitação,
e não será de admirar que os Russos apressem os seus movimentos,
porque (o que não tem nada de estranho num país em que o imperador
é tudo, e o resto nada) os planos do estado-maior devem, de ora em
diante, ter em vista as receitas dos médicos.

O que eu ainda não pude tirar a claro é qual é o verdadeiro
sentimento do povo russo. Alguns correspondentes dizem que a Rússia
considera esta guerra como santa, e arde no mais fanático entusiasmo;
outros pintam o povo russo como extremamente descontente, indiferente à
guerra, e pensando que, quando tudo está por reformar na Rússia,
é insensato querer ir fora reformar a Turquia.

Pelo que tenho ouvido a alguns russos, não me parece que o entusiasmo
público seja grande.

As doações espontâneas para a guerra não significam
nada: as que vêm das municipalidades são quase impostas à
força pelo Governo, as que vêm dos particulares são um
meio astucioso de obter mercês, condecorações e privilégios.

A guerra foi declarada por três motivos: primeiro, para satisfazer
as classes militares (tão preponderantes na Rússia), por uma
campanha de conquista; segundo, para evitar a bancarrota e salvar as dificuldades
financeiras por estes empréstimos feitos em nome da guerra santa; terceiro,
porque o Governo turco concedeu uma constituição.

A constituição turca, na verdade, fez uma grande impressão
em toda a Rússia: humilhou-a. O Turco, o bárbaro, o infiel tinha
uma constituição – essa alta expressão da civilização
política – enquanto o Russo, o santo russo, vivia ainda sob o
bel-prazer imperial. Toda a nação sentia isto amargamente; por
se ter atrevido a dizê-lo, muito encapotadamente, o Golos foi suspenso
por dois meses. Um certo estremecimento de independência e liberalismo
percorreu todo o império – e o Governo sentiu bem que para distrair
a atenção do interior era necessário fazer a guerra.
E, com efeito, foi depois da constituição turca que a política
russa se mostrou mais teimosa e, sob as suas aparências, mais ávida
de conflito.

Não creio, porém, que propriamente na massa do povo russo
houvesse um desejo pela guerra: a sua simpatia pelo irmão eslavo, se
existe, é muito limitada, ou pelo menos o proletário russo sabe
perfeitamente que o eslavo, sob o domínio turco, é mais feliz
que ele sob o domínio do czar, e não se julga portanto obrigado
a dar-lhe uma grande comiseração.

A burguesia, mais educada e sem grande ardor religioso, não vê
na guerra senão uma oneração suplementar de impostos
e de despesas. As conquistas e os aumentos territoriais são-lhe indiferentes:
como é um zero no Estado, não lhe importa o engrandecimento
do Estado.

Julgo, portanto, que se exagera grandemente o entusiasmo russo pela guerra
santa. Não falo, naturalmente, no exército; e, todavia, no exército
mesmo tem havido aparências de insubordinação: um regimento
circassiano foi de repente mandado recolher à Rússia, por mostrar
tendências rebeldes. Os regimentos circassianos estavam, diz-se, sob
a persuasão de que se iam bater contra os húngaros, não
contra os maometanos; quando, porém, viram realmente qual era o inimigo
estavam mais dispostos a unir-se a ele que a combatê-lo. Outros actos
desagradáveis têm sido praticados no exército russo: assim
o comissário-geral dos Fornecimentos acaba de ser fuzilado sem processo.
Este funcionário estimável introduziu na farinha tal quantidade
de cal – que realmente não era possível deixar de lhe
meter algumas balas no peito. Uma certa quantidade de cal na farinha, como
uma certa quantidade de paucampeche no vinho – são procedimentos
razoáveis, que dão honra, grandes proveitos e ordinariamente
uma condecoração. Mas uma tal porção de cal que
torna a farinha mais própria para pintar paredes que para fazer pão
é realmente abusivo, e o Conselho de Guerra foi apenas justo dando
àquele funcionário uma disponibilidade… na eternidade.

Continua-se aqui comentando com grande azedume o golpe de estado de Mac
Mahon. Aquele acto importuno, violento, grosseiro na sua forma, tem provocado
a reprovação da Europa inteira. É necessário realmente
que os juizes sejam bem estreitos, a paixão partidária bem feroz,
o bom senso bem pervertido – para que, em plena paz, em plena prosperidade,
no meio do mais sábio trabalho de reorganização, se lance
gratuitamente uma nação, ainda convalescente, nas agitações
da incerteza e nos perigos da revolução.

A imprensa inglesa tem sido cruel para o marechal: debaixo das formas solenes
do artigo de fundo inglês, conservadores e liberais dão claramente
a entender que o marechal provou não ter nenhuma inteligência
e ter muito pouca dignidade. O Economist, há dias, dizia que. lisonjeira
que lhe tem sido feita. O marechal, por aquele acto, de que tomou perante
a França a responsabilidade exclusiva, preparou a sua queda. De facto,
que ele obtenha do Senado a dissolução da câmara, ou que
a câmara se dissolva por iniciativa da maioria – em definitivo,
quem tem de dizer a última palavras é o país.

O conflito hoje é entre o marechal e o mundo conservador, devoto
e aristocrático que ele representa – e a república. A
França tem de decidir. Ora se a França, nas últimas eleições,
decidiu pela república, porque não há-de agora decidir
pela república igualmente? Se alguma mudança houve, foi para
maior consolidação do espírito republicano: a república
mostrou-se moderada, trabalhadora, iniciadora; sob o seu regi-me a França
recuperou-se, pagou, reorganizou-se; o país acostumou-se a ela; o homem
do campo, que sempre lhe foi hostil, élhe agora dedicado, vendo a forte
riqueza que ela estava criando à França; as classes burguesas
aderiram-se a ela, e a França fez-se uma alma republicana. E claro
portanto que, sejam quais forem as pressões ministeriais, as eleições
novas decidirão pela república contra o marechal. Isto é,
mandarão àcâmara uma maioria republicana e radical. Dará
um xeque ao marechal. E só resta a Mac Mahon demitir-se ou dar um golpe
de estado, destruindo a constituição e a república. Um
golpe de estado em favor de quem? Em seu favor? Mac Mahon não é
da massa de que se fazem os reis e os imperadores. Em favor do conde de Chambord?
Mas ele mesmo disse – que no dia em que o conde de Chambord viesse com
a sua bandeira branca os chassepots se disparariam por si mesmo. Em favor
do filho de Napoleão? Mas podia o marechal contar com o exército
para um golpe de estado bonapartista? Não.

Depois da guerra, se parte do exército é ainda, por um resto
de hábito e de tradição, bonapartista, a maior parte,
a melhor, a mais instruída, a mais moça, é republicana,
e tentar uma restauração imperial seria inaugurar a guerra civil.
Que lhe restará então senão retirar-se? E a maioria radical
da nova câmara poderá então escolher Gambetta.

O marechal, julgando arrancar a França aos radicais, está
simplesmente preparando o meio de lha entregar legalmente. En attendant, o
primeiro resultado deste acto extraordinário é excitar a desconfiança
de todos os governos europeus: cada um vê no novo ministério
de Broglie um perigo clerical: a Espanha vê o apoio dado às tentativas
carlistas; a Itália vê a organização de uma cruzada
a favor do papa; a Alemanha vê a possibilidade de uma guerra de desforra
num interesse dinástico. Aversão dentro, desconfiança
fora – aí está o que inspira o ministério da reacção.

Bons auspícios para começar um governo! Graves notícias
industriais do Norte da Inglaterra. No condado de Northumberland, quinze mil
mineiros de carvão declararam-se em greve. Os patrões, em presença
da depressão comercial e da estagnação geral das indústrias,
vendo que com os salários actuais não poderiam continuar a exploração
das minas sem perda, propuseram uma redução de dez por cento
no salário dos homens. A proposta foi recusada e – o que é
pior e contra a tradição e o costume estabelecido – recusaram-se
a sujeitar a disputa ao tribunal de arbitragem. Isto é novo e mostra
da parte dos operários um sentimento de hostilidade e de azedume que
se não esperava. A greve portanto declarou-se no dia 28. Quinze mil
homens em greve representa neste distrito cinquenta mil pessoas sem pão.
Os últimos anos têm sido maus, e decerto não têm
permitido aos operários fazer economias para esta contingência;
por outro lado, os cofres das Uniões estão empobrecidos; os
mineiros dos outros distritos carvoeiros, escasso auxílio podem mandar
aos seus companheiros de Northumberland; e, se esta greve se demorar, portanto
os sofrimentos serão terríveis. Todas as indústrias param
com esta resolução fatal: de facto todas dependem do carvão,
e esgotada que seja a reserva têm de cessar, de modo que a greve de
uma classe produz a falta de trabalho a todas as outras, e são alguns
centos de mil pessoas que vão ficar na necessidade e na desconsolação.

Não há novidades literárias – a não ser
a usual publicação de novelas. A novela tomou-se em Inglaterra
um género de comércio – como o chá ou como o tabaco.
Lê-se uma novela como se fuma, ou como se bebe uma chávena de
chá; centenares de sujeitos, e sobretudo de senhoras, empregam-se na
confecção deste produto. O assunto é sempre o mesmo:
os embaraços que dois namorados novos, religiosos, patriotas e moralistas
encontram na sua união – e por fim resultado feliz pelo casamento
ou fatal pela morte. Esta acção passa-se ordinariamente em Inglaterra
no primeiro volume, em Veneza ou em Florença ou em Paris no segundo,
e o terceiro é originariamente dedicado à pintura da vida do
campo. O estilo é ordinariamente de um tom corredio e monótono
como um fio de água morna que sai de uma torneira. Há sempre
nestes trabalhos uma grande pretensão à observação
e um abuso considerável de frases francesas. Publica-se disto às
dúzias por semana.

Os jornais ordinariamente só dão notícia de alguma
– que por certas qualidades revela um talento nascente – ou das
que são tão extraordinariamente más que a sua exposição
interessa como o estudo de um fenómeno curioso. Li uma deste género,
publicada a semana passada: chama-se Gabriel e Eu. E uma autobiografia. «Gabriel»
é um padre e «Eu» é a sua mulher Inês. É
ela que conta a sua existência de namorada e de esposa – e tão
singular é a acumulação de pieguice, de incongruências,
de insensatezes, de sensaborias – que os três volumes tornam-se
realmente uma leitura extraordinariamente interessante como estudo de um curioso
caso de imbecilidade humana.

Os teatros não dão nada de notável.. Uma companhia
francesa representa na Gayty o Ami Fritz, a célebre comédia
de Erkmann-Chatrian, que fez antes da sua aparição um escândalo
tão feio e teve depois um êxito tão pronunciado. É
uma espécie de idílio alsaciano em que se comem imensos jantares,
se bebem tonéis de cerveja – e um gordo e glutão bom rapaz
ama a casa com uma doce rapariga. Mais nada. Tudo isto entre jardim e pomar,
com quadros pitorescos dos costumes alsacianos e representado com aquela fina
arte que é o segredo e a glória do Théâtre Français.

É uma peça boa para Paris para descansar os paladares abrasados:
depois de peças ardentes de Dumas & Cª, depois de todos os
picantes e todos os salgados da opérette – aquele bom amigo Fritz,
cheio de bondade, de apetite e de sentimento, repousa e refresca. Mas em Londres
– os paladares não estão esquentados, e não necessitam
esta calma frescura; pelo contrário: o muito leite que têm bebido
faz-lhes desejar alguma coisa que raspe. Por isso o Ami Fritz tem tido apenas
um sucesso agradável, enquanto que os Dominós Cor-de-Rosa, que
se dão no Criterion, têm um sucesso monstruoso. É picante.
E o inglês está-se tornando ávido de picante.

A season continua, como dizem aqui, dull – isto é, faz bocejar.
Uma das causas desta monotonia é sem dúvida a ausência
e dispersão da família real.

A corte é o centro da season: sem ela o high-life de Londres está
como uma vela a que falta o vento.

A princesa de Gales está em Atenas: o príncipe de Edimburgo
no Egipto, o duque de Connaught na Irlanda e a rainha na Escócia. A
sua partida para a Escócia foi mesmo origem de um artigo do Spectator
que me ia matando de espanto. A imprensa inglesa não fala da família
real senão de joelhos: imagine-se, pois, o horror, a estranheza, a
boca-aberta que me causou o Spectator, dizendo, com uma frieza extraordinária
e amarga – que a partida da rainha, para o fundo da Escócia,
no momento de uma tão grande crise na Europa era uma alta inconveniência;
que o seu primeiro-ministro, cheio de gota e de confiança na sua soberana,
era obrigado a fazer todas as semanas uma longa jornada de caminho de ferro
para ouvir uma palavra escassa dos reais lábios; e, continuando num
tom de fria ironia à inglesa, terminava por dizer que desgraçadamente
as pessoas reais julgavam que o que lhes convinha a elas convinha à
nação; mas que a verdade era que nada desabitua da realeza como
a ausência do rei – e que saber viver sem ver o aspecto do trono
é o primeiro passo para a educação republicana! Apanha!
O Spectator, como sabem, é um dos primeiros jornais da Inglaterra.

É esta monotonia da season que obriga os rapazes a inventarem alguma
coisa de original e de pitoresco. Dois lordes, menores de vinte e cinco anos,
descobriram o seguinte: vestirem-se de padres – e irem, por todas as
tabernas do Strand, beber, gritar e dar o espectáculo curioso de dois
jovens eclesiásticos ébrios. Esta maneira nova de desacreditar
o clero não tinha ainda lembrado aos radicais.

Honra seja aos dois jovens lordes, que inventaram tão delicadamente
esta nova táctica revolucionária!

IV – Londres, 4 de Julho de 1877

Ei-los enfim do outro lado do Danúbio! Depois de ter coqueteado, por
espaço de dois meses, com os Turcos, o grão-duque Nicolau decidiu-se
enfim, na noite de 26 de Julho, pelas onze horas, a fazer atravessar em botes
uma divisão junto a Simnitza e a começar a sério a destruição
do Império Otomano. A cena, ao que parece, pelas descrições
do capitão-poeta que manda as suas impressões para o Times,
teve uma grandeza sinistra: o lugar de embarque da divisão é
coberto de arvoredos – e o silêncio grave dos movimentos de tropa,
a decoração da noite muito escurecida de nuvens e alumiada por
um luar lívido, a ansiedade da aventura, tudo concorreu para dar àqli2le
movimento histórico um tom trágico.

O grão-duque passou o rio num barco com as tropas. Os Turcos fizeram
sobre as jangadas um fogo fraco e preguiçoso, que tinha o ar melancólico
de ser «por honra da firma». As baterias russas bem depressa fizeram
calar aquele protesto indolente; os primeiros regimentos que desembarcaram
repeliram os Turcos das colinas, ocuparam as melhores posições
e procedeu-se logo à construção de uma ponte de barcos,
por onde no dia seguinte, com a agradável tranquilidade de um passeio
militar, atravessaram trinta mil russos! Quase ao mesmo tempo, noutro ponto
do rio, em Petroceni, uma outra divisão russa passou para o território
turco. Aí a resistência foi também Superficial e pró-forma,
e agora os Russos têm um caminho Seguro para lançar, em terra
otomana, uma invasão irresistível.

O que significa esta frouxa defesa dos Turcos? Foram surpreendidos? Calcularam
mal o ponto provável da passagem e acumularam forças em ponto
errado? Resolveram uma táctica de abstenção? Preferem
encontrar os Russos no interior, nas suas colinas fortificadas? Não
se sabe. Muitos querem dizer que os Turcos estão desmoralizados, que
sentem a inutilidade da resistência e que procuram tirar o melhor partido
possível da guerra, deixando-se suavemente corromper pelo dinheiro
russo. Diz-se que alguns generais chegaram a esta conclusão que, sendo
impossível salvar a pátria, é conveniente com tempo engordar
a bolsa. Diz-se que larga soma de dinheiro moscovita tem sido remetida para
os paxás que comandam na margem turca do Danúbio; que os oficiais
superiores, sabendo isto, perdem o espírito de resistência e
abandonam-se às doçuras da indisciplina; e que a totalidade
do exército turco está positivamente a fingir que defende o
império. Mas realmente o comportamento dos oficiais turcos na Ásia
– que se estão batendo com bravura, com desespero e, coisa rara,
com inteligência, contradiz profundamente esta interpretação;
e eu penso que a táctica dos Turcos é retirarem-se para as fortalezas
dos Balcãs, onde o grande espírito de defesa do soldado otomano
pode ser aproveitado com vantagens fecundas.

Logo depois da passagem do Danúbio, o czar fez uma proclamação
aos Búlgaros; este documento é regularmente »antipático.
Fala nos «antepassados», nos séculos de sofrimento»;
tem frases antiquadas sobre o «suor do trabalhador» e a «honra
da esposa»: abunda em preceitos de amor cristão e é, na
sua totalidade, tortuoso como uma mentira, sendo melífluo como um sermão!
A opinião em Inglaterra irrita-se com este tom hipócrita do
soldado que põe cordeiro. «Reuni-vos sob a bandeira russa!»,
exclama o czar; o que quer dizer: «Vinde ser uma Polónia número
dois, meus filhos!» E eu imagino que este tom adocicado do salvador
que chega com centenares de mil homens deve fazer passar um frio na espinha
dorsal do salvado! No Montenegro a guerra continua tão desastrosa para
uns como para outros. Os Montenegrinos, apesar da sua coragem heróica,,
de um espírito sublime de sacrifício, não podem nada
contra a esmagadora superioridade do número. Os Turcos têm no
Montenegro sessenta mil homens, isto é, metade de toda a população
do Montenegro: o país, com efeito, tem pouco mais de cento e dezassete
mil habitantes! Contra isto não se resiste. Por outro lado, os Turcos
têm ali uma força empenhada em conquistar desfiladeiros nus e
colinas selvagens, sem utilidade, que, bem utilizada na Ásia, poderia
ter mudado as condições da guerra.

Na Ásia é incontestável que os Turcos têm tido
vantagens; os Russos foram repelidos e perderam posições: as
operações russas têm sido dirigidas com o vagar e a pacatez
costumadas; isto deu tempo aos Turcos de se organizarem, de fomentarem insurreições
entre as tribos desafectas aos Russos, de formarem legiões curdas e
de melhorarem uma situação militar que parecia perdida. Atribui-se
esta reacção inteligente a um oficial (não se diz se
estrangeiro, se turco) que ultimamente dirige a campanha da Rússia:
Mukhtar Paxá conserva o comando, mas o tal misterioso oficial é
quem dirige, organiza e decide: cobre-o o mais impenetrável incógnito;
ninguém o avista, ninguém o conhece; é uma espécie
de espírito inspirado; mas na verdade é que a sua presença
tem sido para os Turcos um começo de felicidade e quase de desforra.

Isto não impede que em Constantinopla a inquietação
seja grande. A posição do sultão é terrível;
em primeiro lugar, o ex-sultão Murad está inteiramente restabelecido
e ocupa-se de política, o que dá aos seus partidários
uma esperança e um pretexto para se agitarem. Se o ex-sultão
Murad, que foi deposto por doença, está bom, não há
razão para que continue excluído do trono que legitimamente
lhe pertencia. Daqui uma conspiração perpétua dos seus
partidários. Por outro lado, o actual sultão tem apenas um apoio,
um amigo – o grão-vizir Redif Paxá. Este apoio decerto
é fone: Redif é tudo – e a polícia, é o
dinheiro, é o sacerdócio, é a imprensa; tudo domina,
tudo influi, de tudo dispõe. Mas os ódios que tem criado são
enormes no palácio, mesmo todos os desastres da guerra lhe são
atribuídos. Diz-se que há dias se passou na presença
do sultão uma cena horrível. Redif Paxá, com uma impudência
de intrigante, estava dizendo ao sultão – que tanto na Ásia
como no Danúbio tudo ia às mil maravilhas; o irmão do
sultão, Nureddin Effendi, que estava presente, ergueu-se como um tigre
e gritou-lhe na cara: – Mentes! Es um infame! E a tua presença
aqui é uma vergonha.

Isto deu origem a uma cena medonha. O sultão foi então informado
de tudo que ignorava e vivamente solicitado de demitir Redif.

De sorte que o pobre homem vê-se neste dilema pavoroso: se conserva
Redif, a indignação cresce e à primeira notícia
de derrota há uma revolução; se o demite, perde o seu
único apoio, e os amigos do ex-sultão Murad, ex-doente, reclamarão
logo a »sua reinstalação no trono.

Tudo isto traz o palácio no ar e Constantinopla num estado de desvario.
Como sabem, um dos actos da ditadura de Redif foi a prorrogação
do parlamento turco: as câmaras estavam-se tomando um formidável
centro de oposição: houve tantos discursos francos e atrevidos
na câmara, aprovaram-se tantas ordens do dia, condenando os desperdícios
e as desorganizações, houve tantas propostas para julgar os
empregados corruptos e os generais idiotas que a corte começou a ver
na câmara um inimigo e o povo uma esperança.

Portanto a corte tratou de se desembaraçar das câmaras. Daqui
novo descontentamento contra o sultão.

Estes detalhes são importantes, porque eles formam a curiosa história
de uma decadência… e é interessante seguir a vida política
e social de Constantinopla para estudar como acaba uma dinastia maometana.

No quartel-general russo houve um incidente infeliz. O grão-duque
Nicolau, comandante-chefe, recebeu o coronel Wellesley, adido militar inglês,
attaché ao exército do Danúbio, com uma descortesia tão
manifesta, que Lorde Derby imediata-mente pediu explicações.
O czar então recebeu o coronel Wellesley e, pelo seu acolhimento cordial
e distinto, apagou a impressão que fez na sociedade inglesa a grosseria
do grão-duque. Diz-se a este respeito, à boca pequena, que o
coronel Wellesley tem um defeito: não retém as suas pilhérias.
Tem espírito e espalha-o. Em Sampetersburgo não se privava,
em todos os salões, de fazer as mais malignas observações
sobre a Rússia, os Russos e, especialmente, o estado-maior.

Na Rússia, por trás de cada parede está o ouvido da
polícia. O imperador soube isto e encarregou o grão-duque de
mostrar ao engraçado coronel que os seus ditos eram um pouco deslocados
em território russo; ele mesmo, mais tarde, por um acolhimento gentil,
dissipou a nuvem que aquela lição pudesse causar em Londres.
O coronel fica assim avisado, e tudo serena.

Aqui crê-se geralmente que o Governo inglês pedirá brevemente
à câmara um crédito suplementar de cinco milhões
para o orçamento da guerra. Isto causa inquietação. Os
amigos do Governo tratam de explicar este pedido como uma precaução
prudente, semelhante à que se teve no tempo da guerra franco-prussiana.

A independência da Bélgica esteve então ameaçada,
e Gladstone pediu à câmara um crédito de alguns milhões,
para habilitar o Governo a ocupar Anvers se fosse necessário.

Hoje, diz-se, o canal de Suez pode ser ameaçado e é preciso
estar habilitado para fazer uma ocupação imediata. Os inimigos
do Governo, porém, afirmam que este crédito é uma visível
preparação de intervenção, que tem por fim habilitar
Disraeli a levar por diante os seus planos aventurosos de guerra e de conquista.
Diz-se que o conselho de ministros em que ele fez este pedido foi tempestuoso;
que parte dos seus colegas se opuseram energicamente, e que daqui resultaram
graves desinteligências no ministério e um germe de crise próxima.

Uma historieta política que tem chique. Parece evidente que Burghers,
presidente da República do Transval, tinha pelo príncipe de
Bismarck um fanatismo extraordinário e que, num ímpeto de entusiasmo,
escreveu ao príncipe oferendo-lhe, de mão a mão, a República
do Transval. O príncipe, espantado, embaraçado com o presente,
não querendo p república para nada, participou isto ao Governo
inglês; à vista disto, o Governo inglês, vendo aos seus
pés uma república sem dono, oferecida por um, recusada por outro,
fez o que era natural – suprimiu o presidente Burghers e meteu no bolso
a república.

Os dois grandes escândalos da quinzena foram provocados por dois livros:
um de ordem religiosa e outro de ordem moral. Ambos eles são graves
sintomas, e a excitação que os dois casos tem provocado na imprensa,
nas revistas e na opinião prova que se vê nesses dois livros
mais do que expressões individuais e isoladas de opiniões nocivas.

O que causou mais barulho foi o livro de ordem religiosa, o Priest in Absolution;
este livro, que se deveria chamar «O Padre e a Confissão»,
é simplesmente uma exposição do velho sistema católico,
a dominação do padre na família pela sua influência
na mulher. Ensina-se nele como o padre se deve apossar do espírito
fraco da esposa ou da filha, dominá-lo, reinar nele, e por ele estar
senhor da fortuna, das opiniões, dos actos do homem. Podem imaginar
o alarido que o descaramento desta doutrina, impressa em panfleto, causou
na protestante Inglaterra.

Há anos que a mão do catolicismo romano, do catolicismo do
Syllabus, se estende lentamente sobre a Inglaterra, para se apossar dela.
Como um vírus venenoso que lenta e obscuramente se espalhe nas veias
e nos tecidos de um corpo são – o espírito ultramontano
penetra surdamente toda a Inglaterra.

Em todas as igrejas, em todos os ritos, se sente esta lenta absorção.
A evolução começa lentamente sempre pela decoração
das igrejas e pela cerimónia do culto: a antiga nudez severa dos templos
protestantes considera-se excessivamente fria e tendente a arrefecer o zelo
e a assiduidade; por isso, pensa-se que as flores, a música, os cantos,
as armações, deveriam ser introduzidas como um meio de atracção
e como um acréscimo de adoração: os padres, então,
imaginam que o roupão branco, que é a vestimenta protestante,
é de uma simplicidade muito secular e principiam a cobrir-se de vestimentas
complicadas e simbólicas do culto romano. Imediatamente as cerimónias
simples e severas do protestantismo começam a ser sobrecarregadas com
o aparatoso cerimonial da celebração católica; depois
vem-se exigir aos fiéis uma atitude diferente: as genuflexões,
as pancadas no peito e o rosário tornamse obrigatórios; daí
vêm certas celebrações em comum muito semelhantes às
novenas, aos meses de Maria. Logo exige-se a confissão secreta, a penitência;
formam-se sociedades de adorações, e pouco a pouco, por este
processo, cada templo protestante se vai convertendo numa igreja católica.
Debalde a Igreja oficial protesta, condena, grita.

A conversão vai-se fazendo lentamente mas seguramente. As mulheres,
sobretudo, são a grande alma do movimento: a inglesa é sensível,
exaltada, voluptuosa, e bem depressa encontra na nova cerimónia à
romana um encanto, uma ternura, uma poesia, que não lhe dão
a seca prédica protestante, numa casa nua e alumiada a gás.
Por isso, tantas mulheres se convertem. Além disso, na alta sociedade,
ser católico começa a ser elegante.

As grandes famílias aristocráticas de Inglaterra, Norfolk,
Ripon, Bute, são católicas e, para serem recebidos nos seus
círculos íntimos, os ambiciosos da sociedade não têm
dúvida em se converter. Mas este movimento, ao menos até aqui,
tem sido tímido, oculto, e acanhado: o Priest in Absolution é
a sua primeira exposição pública; é uma espécie
de grito místico lançado pela seita: «Comecemos pelas
mulheres e a sociedade é nossa!» Toda a Inglaterra protestante
e sensata tremeu de furor: a opinião geral é que para os jesuítas
não se deve empregar o argumento, mas a força. O Punch, como
crítica do livro, apresenta a forte figura simbólica de John
Bull agarrando o jesuíta pelas orelhas, arrastando-o para longe para
o sovar à vontade! Os jornais têm visos de cólera. Tem
havido interpelações ao Governo sobre a publicação
do livro – e todo este barulho tem lançado uma grande luz sobre
a sociedade católica que o publicou e que se chama Sociedade da Santa
Cruz.

Eu estou habilitado a dizer-lhes quais são os estatutos desta sociedade,
pois que li __fragmentos, e verão por eles qual é o espírito
dela e o seu objecto. A sociedade foi formada há doze anos e compõe-se
de bispos, vigários, diáconos e todos os que se preparam para
as ordens santas. Pela regra dos estatutos, cada membro é obrigado
a confessar-se todas as vezes que julgue a consciência sobrecarregada;
fazer um retiro todos os anos; benzer tudo o que comer; nunca se levantar
mais tarde que as sete e meia da manhã; nunca comer com prazer, mas
só com necessidade; vestir com pobreza; não ir a teatros nem
bailes, nem concertos, nem outros lugares de escândalo; nem falar mal
de ninguém, a não ser quando isto for um dever (!); evitar as
conversações frívolas e a sociedade das mulheres; nunca
encarar com o rosto ou com o corpo das mulheres (!)…, etc., etc.

Vêem por estas recomendações o espírito geral
da sociedade, e o que ela queria fazer da Inglaterra, se a sua influência
penetrasse o povo; e é realmente inaudito que uma seita queira converter
o país mais sensato, mais liberal, mais moderno, mais activo –
numa espécie de Espanha devota e lúgubre do tempo de Fernando
VII! Diz-se que diante da condenação geral que a opinião
deu ao livro, a Sociedade da Santa Cruz o vai retirar da circulação
e de certo modo renegá-lo. Isto não desculpa o espírito
da sociedade e aumenta-lhe o descrédito porque lhe revela a hipocrisia.

O outro livro, Frutos da Filosofia, de que se tem vendido, diz-se, milhões
de exemplares, é uma exposição semimédica e semiobscena
dos meios de impedir a gravidez! Com um impudor estupendo, este folheto que
a Inglaterra inteira está neste momento devorando começa por
dizer que nada mais desagradável do que ter filhos; em primeiro lugar,
que é um terrível encargo individual, em segundo lugar, porque
o aumento da população, em desproporção com os
meios de subsistência em Inglaterra, pode trazer a ruína do país.
E daí segue-se, num estilo bem trabalhado e técnico, uma série
de receitas medonhas para esterilizar a mulher, ou pior ainda… A gravidade
do facto – é que este livro vende-se aos milhões de exemplares
e que a avidez do público mostra que ele está convencido da
sua utilidade e deseja aprender os seus processos. Os autores, ou antes os
reprodutores, porque o livro é quase todo composto por um especialista
americano, foram condenados; mas o escândalo e a publicidade do processo
tiveram apenas como resultado dar ao livro uma fama insensata e enriquecer
os editores, e espalhá-lo de tal modo que é raro encontrar um
sujeito que não o tenha no bolso da sobrecasaca, como um manual cómodo
e à mão de desmoralização e de deboche.

Passemos à sociedade. O leão do dia em Londres é o
general Grant, ex-presidente dos Estados Unidos. Festas, bailes, recepções,
solenidades, tudo o que se pode fazer para celebrar um herói lhe tem
sido prodigalizado, com uma abundância forçada, ia quase a dizer
afectada. O ministro dos Estados Unidos deu-lhe um grande jantar, a que assistiu
o príncipe de Gales. A feição característica deste
jantar foi que, sendo dado pelo ministro americano, na legação
americana, a um presidente americano, havia tudo, excepto americanos! Diz-se
que a razão é que o ministro não encontrara em toda a
colónia americana que habita Londres ninguém à altura
de se sentar à mesa com o príncipe de Gales! Isto tem causado
em Londres uma doce hilaridade. O que mais impressiona, parece, no general
Grant é a sua taciturnidade.

E quase impossível arrancar-lhe uma palavra. Tem atravessado as festas,
os bailes, os jantares, com os lábios cerrados como um trapista. No
jantar que lhe deu o duque de Wellington esteve, até à sobremesa,
imóvel e mudo: e de repente, dirigindo-se ao duque, perguntou-lhe no
meio de um silêncio solene: – Qual foi o maior número de
soldados que seu pai comandou, duque? O duque disse que, aproximadamente,
duzentos mil homens.

– E eu meio milhão – respondeu Grant.

E desde então, há quinze dias, não tornou a falar.

Madame Grant tem divertido a sociedade inglesa com alguns equívocos
que se tornarão históricos. Há dias dizia no salão
do príncipe de Gales: – Tive ontem o prazer de conhecer um dos
grandes homens de Inglaterra, ao que me dizem, o senhor Blackstone.

Todo o mundo arregalou os olhos. Blackstone! Quem seria? Descobriu-se, depois
de grandes averiguações, que Blackstone era simplesmente –
Gladstone! Um cancã de sociedade: diz-se que o príncipe de Gales
estivera há dias para morrer. Depois da corrida de Ascot, tinha ido
visitar um amigo a Temple House, um esplêndido parque, ao pé
de Ascot.

Tinha estado a fumar um cigarro, conversando à sombra de um cedro
do Líbano – e acabava de se levantar quando, com um estalo formidável,
o cedro partiu e desabou! Um minuto mais cedo e o príncipe de Gales
estava com os seus antepassados. Será agoiro? O imperador do Brasil
continua a ser favorito, como aqui se diz, da sociedade de Londres. A sua
actividade sobretudo é admirada: a pé desde as seis da manhã,
não há instituição, museu, galeria, biblioteca,
palácio, hospital, curiosidade, homem ilustre, que não visite,
que não estude.

Em todas as sociedades de que é feito membro tem sempre uma palavra
interessante a dizer, uma comunicação curiosa a fazer. Com tudo
isto, uma simplicidade quase plebeia. A sua comitiva, porém, que ele
traz nesta roda-viva há um ano, começa a perder a cabeça,
de fadiga e de estonteamento: no dia em que suas majestades tomavam o trem
de Paris para Londres, a alguém da comitiva ia esquecendo na plataforma
da estação uma pequena mala contendo jóias no valor de
cento e vinte mil libras! Felizmente, segundos antes da partida do trem, a
imperatriz deu pela falta, e as jóias continuam a adornar as toilettes
de sua majestade.

Diz-se geralmente que, em Portugal, o público tem ideia de que o
Governo deve fazer tudo, pensar em tudo, iniciar tudo; tira-se daqui a conclusão
que somos um povo sem poderes iniciadores, bons para ser tutelados, indignos
de uma larga liberdade e inaptos para a independência. A nossa pobreza
relativa é atribuída a este hábito político e
social de depender para tudo do Governo, e de volver constantemente as mãos
e olhos para ele como para uma Providência sempre presente. Pois bem:
em Inglaterra, país de iniciativa individual, de alta independência
pessoal, o público considera o parlamento como uma espécie de
pai benévolo que tudo deve fazer, tudo remediar, tudo compor. As petições
feitas por indivíduos ao parlamento sobre negócios particulares
– contam-se por milhares e milhares em cada sessão.

Estas petições são metidas em grandes sacos e remetidas
para as fábricas de papel, onde vão ser matéria-prima
para petições futuras; mas algumas, por mais curiosas, são
conhecidas e fazem a felicidade dos jornais satíricos. Assim tem causado
hilaridade a petição muito séria e muito grave de uma
família de rendeiros que reclama ao parlamento contra o seguinte escândalo:
um empregado da polícia, seu vizinho, fez uma armadilha no quintal
e matou-lhe dois gatos! A família pede à câmara dos deputados
que a indemnize, processe a polícia e lhe substitua os gatos! Há
agora um costume, nas inculcadeiras de criadas em Londres, de que se fala
muito e que me parece suficientemente impudente. As inculcadeiras têm
álbuns com as fotografias das criadas, para que o patrão, ou
a patroa, possa ver se a cara lhe convém, antes de saber se lhes convêm
os serviços.

Até aqui muito bem. Uma cara simpática a servir à mesa
do almoço, com uma fresca touca branca, é certamente preferível
ao carão macilento de uma matrona azedada. Mas – coisa suspeita!
– a maior parte destas fotografias têm os braços nus e
o colo decotado!!! Que lhes parece? E para que é necessário,
antes de tomar uma criada, saber se ela tem os braços redondos e o
seio bonito? Sobretudo – quando este álbum é destinado
a ser examinado não só pelos patrões (e então
ainda se compreende) mas pelas patroas! A Inglaterra, positivamente, vai à
vela! Na Escócia, os jornais vêm cheios de detalhes sobre o caso
de Miss Grant. Miss Grant era há anos filha de um pobre caseiro, numa
aldeia da Escócia, que por morte de um tio, de quem ninguém
já se lembrava e que vivia na Índia, se achou, uma bela manhã
de Abril, senhora de uma fortuna prodigiosa: além das propriedades
riquíssimas, só em dinheiro recebeu esta gentil lavradeira a
bagatela romanesca de trezentas mil libras! Era bonita e esperta. Começou
a viver com grande luxo, fez um palácio para os pais, e era feliz –
quando aparece em cena uma linda rapariga, chamada Miss Temple. Desde esse
dia, Miss Grant começa a mostrar-se excêntrica: em primeiro lugar,
consegue que Miss Temple deixe pai, mãe, rompa com todas as suas relações
e venha viver com ela; em seguida, as duas gentis criaturas fazem um contrato
público pelo qual se Comprometem a nunca casar e a viverem sempre juntas:
finalmente, Miss Grant faz um testamento pelo qual, no caso de morrer primeiro,
deixaria a Miss Temple um milhão de libras se a mesma Miss Temple nunca
a deixasse e se comprometesse a repelir toda a corte e casamento. O romance
seguia encantadoramente quando, o ano passado, Miss Temple, muito ingrata,
muito desprendida, casou. Miss Grant não destruiu o testamento, mas
caiu numa melancolia mórbida e, há meses, morreu de paixão.

Um obscuro cirurgião de uma aldeia da Escócia herdou, ab intestado,
aquela colossal fortuna.

Mas agora a família Temple quer que o testamento se considere válido,
faz processo e esperam-se revelações extraordinárias,
que farão escândalo em toda a Inglaterra.

V – Londres, 1 de Agosto de 1877

Desde que os Russos estão do lado de lá dos Balcãs,
no caminho que leva a Constantinopla, todo o interesse da última semana
se tem resumido nesta interrogação: que vai fazer a Inglaterra?
Londres ficou atónita segunda-feira passada, quando soube que o Governo
ia mantas tropas para o Mediterrâneo. «E a guerra!«, exclamava-se
por toda a parte. Não era a guerra ainda, mas era aviso ao leitor.
O leitor, neste caso, é o czar. Com efeito, depois de muitas ordens
e contra-ordens, que mostravam uma grande vacilação, três
mil homens foram remetidos para Malta e Gibraltar, e instruções
dadas a outros corpos para estarem preparados, inclusive o Corpo de Administração
Militar, que só acompanha as divisões expedicionárias.
Isto tinha uma feição singularmente guerreira. Soube-se logo
que na Câmara dos Lordes e na Câmara dos Comuns o ministério
seria interrogado sobre a significação destes preparativos –
e havia uma curiosidade pungente em escutar a resposta de Lord Derby.

Lord Derby deu a única resposta que se podia dar – diplomática
e reservada. Declarou que as tropas são simplesmente para reforçar
as guarnições de Malta e de Gibraltar, que, nesta ocasião
em que a região mediterrânea está num estado de perturbação,
necessitavam ser fortemente completadas. Esta resposta naturalmente não
significava nada – senão que a verdade não podia ser dita.

Realmente Gibraltar só pode ser atacada por terra, pela Espanha,
e não consta que a Espanha tenha a mínima intenção
de declarar a guerra à Inglaterra; enquanto a Malta, só pode
ser atacada por mar – e não é portanto de nenhuma utilidade
aumentar a força de terra; sobretudo se se considerar que, entre as
tropas enviadas a Malta e a Gibraltar, vai o 17º de Lanceiros, e que
realmente não se concebe para que possa servir em Malta ou em Gibraltar
um forte regimento de cavalaria. Não está nos hábitos
da guerra opor a navios couraçados os regimentos de lanceiros. Era
evidente, portanto, que a expedição ia simplesmente a Gibraltar
e a Malta para estar mais perto do seu verdadeiro destino; e este destino,
ninguém o ignora, é Galípoli.

A pequena península onde está Galípoli, que domina
a entrada dos Dardanelos, pode ser, em poucos dias, convertida num campo entrincheirado,
inacessível por terra, inexpugnável por mar, onde a Inglaterra
se poderia estabelecer – e, senhora daquela posição formidável,
ditar as suas condições, se se tratasse de paz, ou preparar
os seus movimentos, se se tratasse de guerra.

Isto, porém, não parece tão fácil. Com que carácter
vai a Inglaterra estabelecer-se em Galípoli? Como aliada da Turquia?
Mas então tem de o manifestar claramente, por algum acto público
de aliança, e por este facto lança-se isolada em uma guerra
contra a Rússia, sem estar de modo nenhum preparada militarmente para
esta eventualidade temerária. Vai simplesmente a Galípoli como
neutral? Mas consentirão os Turcos que uma nação neutral
se estabeleça com armas e bagagens no seu território? Não
é natural; os Turcos estão extremamente despeitados com a Inglaterra
e com a sua atitude indiferente; sempre acreditaram que a Inglaterra, declarada
a guerra, os ajudaria e seguiria, sem hesitar, a sua política tradicional.

Consideram-se logrados; e não é presumível que lhe
permitissem um desembarque em Galípoli sem que a Inglaterra lhes prometesse
uma aliança decidida: haveria, com efeito, alguma coisa de monstruoso,
da parte da Inglaterra, em ocupas Galípoli pelos seus próprios
interesses, sem se dignar ajudar o dono do território quando ele está
em perigo. Os Turcos nunca consentiriam nesta humilhação; resistiriam
e, como não duvidam de nada, fariam fogo sobre o primeiro navio inglês
que se aproximasse de Galípoli, com tanta mais vontade quanto maior
é o despeito que lhes causa a neutralidade inglesa. Portanto, a Inglaterra
só pode ir a Galípoli – ou como aliada ou como inimiga
do Turco. No primeiro caso, provoca uma guerra gratuita, sem estar preparada
para tal; no segundo, tem de ajudar à destruição do Império
Turco, renegando a sua política e combatendo os seus próprios
interesses.

Leio em muitos jornais e ouço muitos políticos dizerem que
a ocupação de Galípoli é um acto de profunda política;
que os Turcos serão fatalmente batidos e que a Bulgária e a
Bósnia deverão ser arrancadas ao domínio turco; que,
assim, os Turcos serão zero na Europa, e o território que lhes
for deixado, cercado por todos os lados de inimigos, oferecendo poucas condições
de defesa e enormes facilidades de ataque, será inteiramente impotente
para formar uma barreira séria em torno de Constantinopla; que Constantinopla
ficará assim à mercê da menor invasão e que, portanto,
os Dardanelos, o mar da Mármara e o mar Negro não terão
quem os defenda, porque o Turco na Europa não será mais que
uma sombra! Portanto, dizem, logo que a Inglaterra esteja estabelecida em
Galípoli ela fará as vezes do Turco, e guardará a passagem
dos Dardanelos.

Tudo isto é muito engenhoso; mas, pergunto, para quem guardará
ela os Dardanelos? Se não for para si somente, de que lhe serve guardá-los
e defendê-los? E se for para si somente então declara a guerra
ao mundo inteiro. Se a Inglaterra pode fazer passar os Dardanelos aos seus
navios de guerra, é claro que os tratados que fecharam os estreitos
estão despedaçados e que, portanto, todas as nações
têm direito de os usar. Suponhamos que uma fragata alemã ou francesa
se apresenta para passar os Dardanelos: que fará a Inglaterra? Fazer-lhe
fogo? Então é a guerra contra a Europa e a América. Permitir
a passagem? Mas então com que fins se estabelece como guarda dos estreitos?
Se todo o mundo pode passar, é inútil que alguém os guarde.
Isto parece-me lógico.

A expedição, portanto, a Galípoli parece-me cercada
de tantas dificuldades e semente de tantas complicações que
realmente não creio que o Governo a decida tão facilmente.

A remessa de tropas é apenas, a meu ver, um destes movimentos que
às vezes faz um homem para mostrar que não dorme, que está
alerta e que não será prudente meter-lhe a mão na algibeira.
E a prova é que ontem o Governo, interpelado sobre se levantaria créditos
suplementares para fazer face à expedição de tropas,
declarou que não: que Malta e Gibraltar se achavam agora devidamente
defendidas, e que, este ano, não se tornaria a falas em remessa de
gente, nem havia ocasião de pedir, pelo Ministério da Guerra,
fundos excepcionais. No entanto, com esta terrível questão do
Oriente, a gente nunca está sossegada e, quando menos espera, no terreno
mais seguro abre-se uma fenda, e de trás da parede mais inofensiva
sai uma descarga.

O grande acontecimento da quinzena é a formidável insurreição
operária que rebentou nos Estados Unidos. As companhias de caminhos
de ferro de Baltimore e Ohio reduziram os salários dos empregados de
dez por cento e aumentaram duas horas de trabalho por dia. Isto originou uma
greve. As companhias recrutaram novo pessoal, mas os grevistas atacaram estes
intrusos, espancaram a polícia que os defendia e, final-mente,. resistiram
à Guarda Nacional. O movimento, então, espalhou-se como fogo
em restolho: dez estados tomaram parte na resistência, a greve estendeu-se
a cinquenta mil milhas de caminho de ferro, a população baixa
tomou o partido dos grevistas e esteve-se em véspera de uma temerosa
guerra civil. Houve verdadeiras batalhas entre os insurrectos e a tropa, e
pode-se fazer uma ideia do desastre sabendo que só em Pittsburgh os
prejuízos causados pela insurreição elevam-se a três
mil e seiscentos contos! Infelizmente as tropas dos Estados Unidos estão
muito espalhadas, ocupadas sempre em escaramuças com os índios
do interior; e como a maior parte dos caminhos de ferro estavam inúteis
não foi possível enviá-las logo para os pontos ameaçados;
por outro lado, a Guarda Nacional, composta da plebe, simpatizava por quase
toda a parte com a insurreição, ou pelo menos não a atacou
com energia. Felizmente, porém, os cidadãos, vendo o perigo,
organizaram-se em comités, armaram-se, improvisaram-se em exército
e conseguiram dominas a insurreição.

Tem-se procurado investigar as causas que quase tornaram uma greve numa
guerra civil, e tem-se dito geralmente que o motivo principal foi o ódio
que existe na América contra as companhias de caminhos de ferro.

Com efeito, o seu enorme poder, a sua maneira despótica de servir
o público, o excesso das suas tarifas, as vergonhosas especulações
que elas fazem, a pouca atenção que dão à segurança
dos passageiros, as fraudes que se cometem no transporte de mercadorias –
tudo isto tem-lhes alienado as simpatias da nação.

Lembram-se, decerto, que a agitação grangista teve há
anos por origem a organização de uma forte resistência
contra a tirania das companhias; os preços excessivos por que elas
transportavam todos os produtos agrícolas, sobretudo os grãos
do interior da América para os portos do Atlântico, absorvendo
o melhor do produto das lavouras, chegaram a causar uma tal oposição
que se falou por esse tempo em revolução da parte da população
agrícola do Oeste.

Não é sem razão, pois, que se pensa que as simpatias
que a população mostrou pela causa dos grevistas foram devidas
a este sentimento de hostilidade.

Isto, porém, não basta para explicar uma tão formidável
insurreição, uma insurreição que fez milhões
e milhões de prejuízos, que dispunha de artilharia, que formou
campos entrincheirados e que se preparava simplesmente para sustentar uma
guerra civil. A explicação, enquanto a mim, é esta: a
greve foi desenvolvida e transformada em revolta pelo imenso partido socialista
ou comunista. Este partido, na América, é muito diferente dos
socialistas europeus: aqui o socialismo é um sistema social, político,
moral, religioso. Na América o socialismo é uma hostilidade
bruta e instintiva contra todo o que possui e que acumula; lá não
há ideias, há apetites insatisfeitos. E o chamar realmente a
esses grupos socialistas é um erro que cometem frequentemente os jornais
europeus; na América dão-lhes um nome mais exacto, chamam-lhes
os roughs, isto é, a rudez, a canalha. Esta multidão violenta
é, sobretudo, estrangeira; não se deve esquecer que a América
é um refúgio, um asilo, o último recurso de tudo o que
a Europa tem de gente aventureira, turbulenta, descontente, ávida e
viciosa. A Irlanda, a França, a Alemanha mesmo, mandam o que têm
de pior – a par, já se vê, de muito trabalhador honesto
e útil. Esta multidão que vai procurar trabalho tem a mania
de se acumular nas cidades; ser-lhe-ia fácil encontrar emprego altamente
remunerado no interior, nos estados agrícolas tão faltos de
braços; mas os seus hábitos, os seus vícios, a antipatia
pela lavoura, prende-os às cidades. Aí, naturalmente, o trabalhador
é menos necessitado, e portanto milhares desses emigrantes encontram-se
na miséria, na ociosidade e na desesperação. Nova Iorque,
Filadélfia, San Francisco, Baltimore, Chicago, transbordam desta canalha.
Ora justamente sucede que, nestes últimos tempos, a crise prolongada
dos negócios, na América, tem dado a esta população
dias muito prolongados de miséria; e já há tempos se
notava nela uma funda e crescente irritação. O sentimento que
a domina é uma espécie de cólera bruta contra uma sociedade
rica, onde eles são mendigos – e contra um mundo que goza, e
no meio do qual eles sofrem.

A greve veio, a propósito, oferecer-lhes um meio de desforra. Logo
que viram que ela se espalhava, tomava proporções revolucionárias,
disparava os primeiros tiros, a canalha juntouse- lhe com entusiasmo. Em Nova
Iorque, em Chicago, em Pittsburgh, apareceram logo chefes agitadores que impeliram
as massas descontentes à revolta. O que queriam eles? Nada.

Destruir, vingar-se vagamente. E tanto isto é assim que em todos
os pontos mais atacados a revolta teve um carácter bruto de violência
ao acaso, destruíam, queimavam, abatiam sem discriminar, na excitação
da cólera satisfeita, sem outro fim do que dar cabo de uma sociedade
onde se achavam mal. Em Pittsburgh, por exemplo, a destruição
foi estúpida e bestial: escangalhar, escangalhar! – era o programa.
Certas barbaridades extraordinárias revelam a loucura de uma plebe
insensata: em Pittsburgh, depois de aprisionar destacamentos de Guarda Nacional,
fechavam-nos em casas e procuravam queimá-los vivos! Ao mesmo tempo,
e por toda a parte, se saqueava e se assassinava! E o Governo teve que empregar
contra esta insurreição da cólera uma repressão
de tirano. Colocava-se artilharia nas ruas e varria-se a canalha! As correspondências
que devem conter os terríveis detalhes da insurreição
ainda não chegaram à Europa; mas receia-se que o desastre, a
destruição de propriedades, a perda de vidas, serão maiores
do que os telegramas indicam, e que esta fatal revolta seja mais terrível
ainda por ser um sintoma e mostrar a existência de um elemento que pode
causar aos Estados Unidos, tarde ou cedo, uma pavorosa crise social.

Nos últimos três dias tem-se aqui recebido, da Índia,
noticias de um carácter aterrador. A fome ameaça, com uma intensidade
crescente. Só em Madras e em Mysore, o Governo está dando rações
mesquinhas (por não poder ser doutro modo) a um milhão e duzentos
mil esfomeados! E a proporção da mortalidade cresce de um modo
que, se isto dura por mais oito meses, a populaç&atiatilde;o do Sul da
Índia sofrerá uma diminuição sem antecedentes
na história.

A opinião, em Inglaterra, está-se preocupando muito com o
aspecto da política francesa. O dia das eleições ainda
não está fixado; mas as dificuldades crescem para o Governo,
porque a famosa aliança dos conservadores falhou. Os legitimistas estão
furiosos, porque vêem que a política do Governo tende para uma
vitória eleitoral dos bonapartistas; os bonapartistas gritam contra
o marechal, por ele não permitir que, antes de 1880, se reclame abertamente
o império; os orleanistas estão desinquietos com a influência
dos bonapartistas – que poderia, no caso do triunfo do império,
resultar num segundo desterro para os príncipes de Orleães –
e queixam-se da parcialidade que o ministério mostra contra eles na
escolha dos candidatos oficiais. Todos gritam, e no entanto os republicanos
ganham em força, em união, em táctica e em influência.

Daqui vêm os boatos recentes de novo golpe de estado. Mas em favor
de quem? E aqui que eu vou surpreender os leitores da Actualidade… «em
favor do filho de Mac Mahon!» E pelo menos o que se diz em Paris e o
que se imprime em Londres! No entanto, a mim parece-me que «mac mahonismo
por direito hereditário» e muito cómico para poder ser
verosímil. A Whitehall Review, o mais elegante jornal hebdomadário
de Londres, um órgão de alta sociedade, publica no seu último
número, num lugar proeminente, a declaração seguinte:

«Pede-se-nos para declarar que Sir Chames Tempest se valerá
dos únicos meios que a Igreja Católica lhe fornece para se lavar
da desonra que foi lançada sobre ele e a sua família, e que
intentará uma separação judicial. Igualmente se nos pede
para declarar que Sir Charles Tempest não foi a Paris em perseguição
dos fugitivos, mas ficou tranquilamente na sua propriedade de Northamptonshire,
sendo o último a saber do que se passava –tão pouco suspeitava
o infeliz gentleman a existência do mal.» E o jornal acrescenta,
como por sua conta e risco: «A esposa infiel e o seu amante estão
em Paris. Todas as simpatias estão com o infeliz Sir Charles.»

Este extraordinário parágrafo, que tão estranho parece
aos nossos hábitos meridionais, é a conclusão de um facto
que tem causado grande escândalo. É simples em si, como verão.
A mulher de Sir Tempest fugiu (como tantas outras fogem hoje em dia) com um
amante – ele mesmo casado com uma adorável senhora de vinte e
dois anos, íntima amiga da princesa de Gales.

O que fez escândalo foi pertencer a fugitiva a uma das mais respeitáveis
famílias católicas de Inglaterra e passar por ser uma das mulheres
mais sérias da aristocracia inglesa. O facto em si, digo, é
banal, e não merece uma linha de comentário: a grande sensação
provém de que alguns jornais, por esta ocasião, lembraram-se
de fazer uma espécie de revista retrospectiva da moralidade inglesa
durante os últimos dez anos e chegaram à conclusão, muito
exacta, que neste último período a imoralidade, sobretudo na
sociedade mais rica, tem tomado tais proporções que Paris, Madrid,
Viena, Nápoles, as cidades clássicas do adultério e do
escândalo, ficam humildemente na sombra perante a colossal corrupção
de Londres. Que tudo quanto o vício tem inventado de mais mórbido
e de mais excêntrico floresce em Londres era sabido; mas supunha-se
(os estrangeiros supunham, ao menos) que a sociedade cultivada tinha no mais
alto grau as qualidades de honestidade, de fidelidade, de pudor, de probidade
doméstica, que foram sempre um dos grandes orgulhos ingleses. Pois
bem, pelo que dizem os mais bem informados, os últimos dez anos têm
trazido uma transformação dissolvente da honestidade inglesa.
Os adultérios, as fugas, os raptos, as seduções, os divórcios,
os crimes de família, acumulam-se de ano para ano, dando à alta
sociedade inglesa o aspecto sucessivamente decomponente de um fruto que apodrece.
Enquanto a mim, sempre o pensei: mas não esperava vê-lo impresso
e com cores tão carregadas nas mais sérias revistas e pelos
moralistas mais estimados.

Basta observar um pouco as maneiras da inglesa moderna para se ver que ela
poderá ser tudo – uma hábil cavaleira, uma excelente caçadora,
um forte cocheiro, uma adorável amante, uma excelente atiradora à
pistola, um óptimo companheiro de viagem, um atrevido parceiro para
uma partida de bacará –, tudo, menos uma esposa e uma mãe.
A maneira como se vestem, o atrevimento dos olhares, o hábito das conversações
picantes, o vício do namoro, o gosto pelas bebidas fortes, a paixão
pelos exercícios masculinos, a avidez de independência, o desdém
público – tudo revela, a quem as conhece, uma tendência
irresistível para o amor livre. A isto junte-se o temperamento ardente,
uma imaginação excitada, uma natureza voluntária –
e compreender-se-á a situação. A única coisa que
retém ainda é o medo da opinião, do escândalo,
da impressão; no dia em que este salutar receio diminuir, ou por cair
em descrédito ou por o impulso da paixão ser mais forte –
a Inglaterra voltará aos tempos mais devassos da sua história,
e repetir-se-á a época fatal dos Stuarts.

Contra esta corrupção a corte procura reagir por uma áspera
severidade: assim é sabido que, quando se apresentou à rainha
o programa do último concerto real em Windsor, ela mesma, por seu punho,
riscou o nome de Madame Adelina Patti, declarando que nunca admitiria no paço
uma mulher que conhecidamente tinha um amante; o que não impede que
as aventuras amorosas de Madame Patti lhe tenham dado em Londres uma espécie
de auréola heróica – a ponto que a sua simples aparição
em cena é saudada por aclamações que parecem dirigir-se
menos à cantora ilustre que à heroína célebre
de um drama conjugal. Sinto não ter novidades literárias ou
dramáticas a dar-lhes. As últimas semanas têm sido estéreis:
o abuso das controvérsias políticas parece ter diminuído
a produção artística – e as forças intelectuais,
que em tempos calmos se empregam no romance ou no poema, voltam-se neste período
de excitação pública para o artigo de jornal ou para
o capítulo de revista.

A grande novidade em Londres é a chegada de um hóspede ilustre
– o Sr. Pongo. Quem é o Sr. Pongo? É uma personagem em
que todo o mundo fala, por quem as mulheres andam entusiasmadas, cuja fotografia
se vende a cada canto e cujas acções mais insignificantes são
registadas em tipo graúdo pelos jornais mais sérios.

O Sr. Pongo não é um príncipe, nem um general, nem
um escritor, nem um descobridor, nem sequer um rabequista – é
simplesmente um macaco! Mas que macaco! É um gorilha: o primeiro, o
único que tem vindo à Europa! Este ilustre hóspede, que
esteve primeiro em Berlim, que deu lugar a troca de notas diplomáticas
entre o Governo inglês e o alemão a respeito da sua posse, chegou
a Londres, onde é objecto de um fanatismo insensato. O Sr. Pongo (é
assim que é geralmente conhecido) tem quatro anos de idade, ainda não
entrou no período de dentição, já tem três
pés e três quartos de altura e os seus músculos são
de uma extrema força e agilidade. Comia ordinariamente farináceos
e frutas, mas ultimamente o seu guarda, tendo-lhe dado um pedaço de
bife, notou que Pongo o devorava com singular apetite. Começaram a
dar-lhe carne e água; come tudo o que come um gentleman: o seu almoço
é como o de qualquer de nos – ovos e costeletas ou beefsteak.

Ao princípio só bebia água, mas veio-se à conclusão
que poderia beber tudo – desde Bordéus até Moet et Chandon;
a sua bebida favorita, porém, é a cerveja. Depois dos repastos
dão-lhe um charuto, que ele fuma, deitando o fumo pelo nariz. A sua
fisionomia e tão inteligente, tão viva, que, sem falar, compreende-se
tudo o que ele quer dizer, pela vivacidade brilhante do olhar e pelo movimento
dos beiços.

Apesar de não se exprimir, parece compreender certas expressões
humanas: assim, quando ouve uma boa gargalhada, exalta-se, aplaude com as
mãos, ri e parece cheio de júbilo. Mas o que há nele
de mais humano é o instinto, próprio de crianças, de
levar tudo à boca: assim, se lhe dão um lápis, antes
de tratas de escrevinhar, leva o lápis à boca – como um
baby.

O gorilha é, como sabem, o animal do qual o homem provém directamente,
segundo as teorias modernas. Até aqui nunca fora possível caçar
um vivo – e explica-se o interesse fanático que excita em Londres
a presença deste nosso venerável antepassado.

Milhares de pessoas afluem a admirar esta espécie de homem primitivo,
que há alguns mil anos era o que havia de mais perfeito na superfície
da Terra e era então o rei da Criação! Quem sabe se daqui
a alguns mil anos, quando a raça humana, tal qual é hoje, tiver
quase desaparecido para dar lugar a uma forma humana mais perfeita, um sábio
então não encontrará, nos desertos ou nos bosques, um
último homem e não virá expô-lo, em triunfo, nalguma
Londres dessa época? E os seres mais perfeitos de então virão
contemplar com espanto o seu antepassado, o homem, como nós contemplamos
hoje o nosso antepassado, o gorilha! Segundo os especialistas, o que há
de mais extraordinário neste gorilha é que não tem pêlo,
o que prova, creio, que a sua raça é justamente a imediata antes
do homem…

Realmente, a não ser a sua cor escura, nada o distingue de um homem
feio, com uma barba por baixo do queixo. O Sr. Pongo, naturalmente, não
está preso: vive num pequeno parque (no Aquário de Westminster)
que lhe foi destinado.

A multidão não parece importuná-lo: de resto, todas
as medidas estão tomadas para que o não molestem. O sentimento
geral, quando a gente o vê, é de pasmo e de melancolia. A sua
face, a sua figura, os seus gestos, a maneira de se sentar, de passear encostado
à bengala, são tão humanos – ia quase a dizer,
tão modernos – que sentimos uma espécie de veneração
por aquele avô da raça humana e um certo desdém por nós
mesmos, que há alguns mil anos éramos apenas aquilo!.

O que mais o importuna, a meu entender, são as mulheres. As inglesas,
que positivamente são doidas, estão apaixonadas, em massa, pelo
gorilha. Um jornal, hoje, contava que ontem foi necessário arrancá-lo
dos braços de uma senhora, que o devorava de beijos e não o
queria largar, declarando que era encantador. O gorilha, que é ainda
infante e não chegou à idade do Sentimento, parece apreciar
mediocremente estes excessos de ternura. Noutro dia, encheu de bofetadas uma
miss que lhe estava a «fazer olho». E esta lição
de moralidade e de conveniência, dada por um macaco a uma senhora, aumentou
singularmente o meu respeito pelo simpático Pongo.

O único receio do povo de Londres é que ele morra.

Receia-se o Inverno, mas, até agora, dorme bem, almoça o seu
beefsteak, janta sopa, roastbeef e sobremesa, fuma três ou quatro charutos
por dia, palita os dentes, dorme a sesta – e faz tudo o que faz qualquer
inglês, excepto ter uma opinião sobre a questão do Oriente,
o que é, penso eu, uma qualidade a seu favor!

VI – Londres, 15 de Agosto de 1877

Devo dar nesta correspondência, como fez a rainha no discurso de encerramento
das câmaras, o lugar proeminente à preocupação
do dia – a fome na Índia. Uma calamidade, a maior decerto por
que tem passado a Índia desde que a Inglaterra a governa e que pode
arrastar graves consequências políticas, ameaça o vasto
território da presidência de Madras.

Dezoito milhões de habitantes têm fome! O ano passado as colheitas
da Índia do Sul falharam, mas então os celeiros estavam bem
providos, a população tinha economias, o gado de transporte
abundava, o tesouro do Governo não se esvaziava e a catástrofe
combateu-se com vantagem; depois, calculava-se que a colheita deste ano seria
imensa, e a escassez de que se sofria seria compensada» pela abundância
de que se ia gozar. Quando viesse a monção do sudoeste, a chuva
cairia, a colheita seria rica, podia-se esperar! Sucede, porém, que
a monção falha, a chuva não vem, a colheita perde-se
e a fome declarase.

A grande fome é sucedida por uma fome maior, e diante da calamidade
os celeiros achamse vazios, as economias da população exaustas,
o tesouro do Governo gasto e a esperança perdida. E o que é
mais: o ano de sofrimento, com uma alimentação escassa, enfraqueceu
a população moralmente e fisicamente; a nova fome encontra os
corpos alquebrados e as almas sucumbidas. Isto explica porque já têm
morrido nas primeiras semanas de escassez quinhentas mil pessoas! A presidência
de Madras é um vasto território cheio de aldeias: o número
dos proletários, dos que não têm nenhuma espécie
de propriedade, sobe a cinco milhões: esta parte da população
é a primeira, naturalmente, a sucumbir à necessidade. Os que
possuem, isto é, os que têm uma pouca de terra ou gado, poderão
durante algum tempo fazer face à escassez, sobretudo vendendo as suas
jóias, que são na Índia o emprego natural das economias;
mas, findo este recurso, morto todo o gado pela falta de pastos, tendo os
preços duplicado – estes doze milhões de homens ficam
no mesmo estado de miséria que os cinco milhões de proletários,
e toda a população, ou tem de ser sustentada pelo Governo ou
de morrer irremediavelmente.

Mas pode o Governo realmente alimentar dezoito milhões de habitantes
com cereal importado? E como há-de transportá-lo para o interior
de um território largo como três ou quatro vezes Portugal»?
Não há caminhos de ferro, quase todo o transporte é feito
em carros de bois, mas, se os homens morrem por falta de pão, os bois
estão morrendo rapidamente por falta de pastos. Os transportes escasseiam
como o alimento. De sorte que, em certas partes mais retiradas do território,
a população – dizem os jornais – tem «fatalmente
de ser abandonada à fome». Isto é horrível.

As descrições que começam a chegar do aspecto do distrito
fazem estremecer: a perder de vista, a terra seca, exausta, tem uma cor quase
negra; não se descobre nenhuma verdura. A água dos poços,
salobra e infecta, dá doenças terríveis aos que a bebem.
Só se vê gente lívida, de uma magreza de esqueleto, com
o tremor da febre, em andrajos. O colmo, que forma os tectos das casas, foi
por toda a parte tirado para substituir a forragem do gado de todos os pontos.
Milhares e milhares de pessoas vêm emigrando acossadas pela fome, implorando
desesperadamente socorro dos empregados do Governo. E começa a aparecer
uma doença própria da fome, que é a formação
de pústulas na pele! Nesta crise o governador do estado, o duque de
Buckingham, presidiu a um grande meeting em Madras, onde se resolveu pedir
auxílio à Inglaterra; a organização administrativa,
que obriga cada estado da Índia a prover às suas próprias
necessidades, não pode ser respeitada nesta desgraça. E necessário
recorrer ao resto da Índia, à Inglaterra, a todo o vasto Império
Britânico, e, se for necessário, estender a mão à
caridade do mundo» É justo dizer-se que a imprensa inglesa pede
com grande energia que todos os recursos da Inglaterra sejam postos em acção
para fornecimento rápido de alimento, ainda que se gastem milhões.
Reclama-se que se encham de cereal os depósitos; que se estabeleçam
caminhos de ferro de campanha, para levar socorro aos pontos mais remotos;
que se formem serviços de transporte de carros puxados por homens;
que se promova um vasto sistema de poços artesianos; que se levantem
grandes acampamentos-asilos – onde os esfomeados recebam rações;
que se inste fortemente com a caridade de todo o império – e,
enfim, que se faça tudo o que pode dar o dinheiro! Se a calamidade
se pode combater com libras esterlinas, diz-se que se empenhe a luta. Libras
esterlinas não faltam! E que me dizem à campanha do Danúbio?
Positivamente, os Turcos são um povo de surpresas. Há dois meses,
entusiastas da Rússia diziam-nos: «Vão ver, vão
ver, o que é uma guerra rápida e uma lição tremenda!
A Rússia vai mandar dois exércitos: um à Ásia,
outro ao Danúbio; um conquista a Arménia, outra entra em Constantinopla;
e o Império Otomano esfarela-se como um torrão seco!»
E os melhores amigos da Turquia calavam-se, receando bem que esta profecia
atrevida se realizasse em quatro semanas…

Com efeito, uma invasão preparada, de há muito apregoada,
ornada de proclamações e coberta de bênçãos,
começa a mover-se e, como um rio que se bifurca, corre de um lado sobre
a Ásia, do outro sobre o Danúbio. E a profecia começa
sinistramente a realizar-se! Em quatro semanas o exército russo, com
uma tranquilidade de parada e, por assim dizer, a divertir-se, quase que conquista
a Arménia. E os entusiastas da Rússia a gritar logo: «Que
lhes dizíamos nós? Lá devorámos a Arménia.»
As igrejas de Sampetersburgo ressoavam de te Deum, e o czar começava
a fazer a lista dos funcionários que deviam ir administrar a nova conquista
e levar às populações arménias as doçuras
da tirania russa.

De repente, zás! Sem se saber como, de manhã para a noite,
Muktar Paxá aparece – e os Russos vitoriosos, os Russos conquistadores,
começam a recuar, a perder terreno, a abandonar posições,
a levantar os cercos começados; a retirada transforma-se em debandada;
Muktar Paxá, sempre, sem se saber muito bem como, vai-os levando, de
derrota em derrota, até os sacudir, com o sabre sobre a ilharga, para
lá da fronteira persa! E a Arménia estava livre! Os entusiastas
da Rússia mordiam um pouco o beiço; mas, com o seu aplomb ordinário,
recomeçavam: «É verdade, é uma derrota. Mas também,
a falar verdade, nós não queríamos a Arménia para
nada. A campanha da Arménia era uma diversão. O verdadeiro fim,
o objecto da guerra é Constantinopla. A verdadeira luta é aqui
no Danúbio, na Bulgária. Vão ver. Vão ver como
em duas semanas nós estamos em Constantinopla!» E os apaixonados
da Turquia, ainda os mais ingénuos, pensavam com terror que era bem
possível que assim fosse. A Turquia estava tão pobre! O seu
exército tão mal comandado! A sua administração
tão corrupta! O seu armamento tão incompleto! A sua vitalidade
tão debilitada!… Com efeito, a Rússia põe-se em movimento,
e a nova profecia começa a ter uma realização maravilhosa.
Em duas semanas os Russos atravessam o Danúbio, estabelecem-se na Bulgária,
dirigem-se para os Balcãs, passam os Balcãs como numa mágica
e começam a preparar a marcha triunfal sobre Constantinopla. «Que
lhes dizíamos nós?», exclamam os russófilos. «Lá
vão eles. Além de amanhã, o estandarte russo flutuará
em Santa Sofia!» Sampetersburgo recomeçava os seus te Deum, o
czar reescrevia as suas listas de funcionários, a Europa estremecia.
Pensava-se em intervir. Positivamente, santo Deus!, o fim da Turquia chegou!…
A Áustria, assustada com o novo vizinho que se instala, começa
a mobilizar: a Inglaterra manda três mil homens para Malta e fala em
ocupar Galípoli: a Grécia agita-se, como um abutre que esvoaça
sobre um ferido que vai morrer, e o sultão faz à pressa as suas
malas, para passar para a Ásia, de volta aos lugares originários
da sua raça – com o Alcorão, o serralho, o estandarte
do Profeta e o seu cozinheiro francês! De repente, sem se saber como
também, os Russos sofrem o desastre medonho de Plevna; no dia seguinte,
são batidos em Lotcha; no outro dia, em Osman Bazar. Osman Paxá
acossaos contra o Danúbio; o general Gurko, que passava os Balcãs,
é derrotado; o exército que ocupava a Bulgária tem de
evacuar aos pedaços; cercos importantes são levantados, campos
formidáveis desfeitos. E o que se tinha passado na Arménia repetiu-se
no Danúbio! A invasão que falhou na Ásia, falhou na Europa!
Sampetersburgo engole os seus te Deum, o czar rasga as listas, a Áustria
respira e desmobiliza, o sultão desfaz as malas – e os Turcos,
espantados, olhando em roda de si, acham-se vitoriosos na Ásia e na
Europa! A que se deve esta prodigiosa aventura? A muitas causas, creio eu.
Mas a primeira, a principal, a causa-mãe, é que os Russos desprezaram
os Turcos de mais: não lhes supunham – nem coragem, nem estratégia,
nem armamento, nem dinheiro, nem actividade, nem dedicação.
Entenderam que um punhado de russos podia ir e comer províncias como
bagos de uvas. Portanto mandavam forças incompletas, dividiam-nas,
dispersavam-nas, iam para diante, à tonta, com uma bravura de guerrilha
e uma imprudência de estudantes quando de repente se encontraram diante
de exércitos mais numerosos, com generais mais hábeis, planos
mais definidos; o resultado é a derrota! Acresce a isto que no exército
russo tudo é mau, excepto o soldado e a arma. Os generais são
estúpidos, a administração é corrupta. Quando
o soldado se bate, é sacrificado pela inépcia dos chefes, quando
se não bate, é esfomeado pela fraude do comissariado. O que
se conta dos planos dos grão-duques que comandam é tão
atroz como o que se diz dos administradores que fornecem. O desastre de Plevna
é um erro idiota do grão-duque: mandar milhares de soldados
atacar posições elevadas, entrincheiradas, ocupadas por artilharia
e por um número superior de gente – é o mesmo que condenar
soldados à morte em conselho de guerra. Por outro lado, deixá-los
um e dois dias sem ração, sem água, ou com mantimentos
podres e água insalubre, sem tendas e sem provisões –
e o mesmo que espalhar voluntariamente num exército os germes de uma
epidemia. Em qualquer dos casos, é crime! O que perdeu a Rússia,
nesta campanha de quatro meses, foi o excesso impaciente de ambição:
quiseram fazer ao mesmo tempo muitas coisas brilhantes: atravessar o Danúbio,
cercar Rustchuk, invadir a Bulgária, passar os Balcãs, investir
Sistova. Para todas estas empresas tiveram que dividir o exército,
fraccioná-lo, enfraquecê-lo. Em lugar de conservar na mão
um grosso cacete sólido, desfizeram-no numas poucas de frágeis
bandines.

Os Turcos, bons estratégicos, reuniram fortes massas e foram quebrando
e destruindo uma a uma estas forças dispersas. Os Russos, reconhecendo
agora o seu erro, concentram-se no Danúbio e preparam-se para uma acção
mais concreta. Mas e tarde: o Inverno adianta-se, e esta campanha de Verão,
com os sacrifícios que custou, os milhões que absorveu, as vidas
que destruiu – está perdida: é como uma bola de sabão
quebrada, que produz nada, nada, nada! De quem é a culpa? Do regime
russo, incontestavelmente do absolutismo. Num país em que nada depende
do mérito e tudo depende da posição do nascimento, o
resultado é este: em lugar de dar o comando a um estratégico,
dá-se a um grão-duque idiota, porque é grão-duque;
em lugar de confiar a administração a uma inteligência,
confia-se a um príncipe, porque é príncipe. O grão-duque
é batido sempre e o príncipe desorganiza tudo. É lógico.
E todos os correspondentes ingleses, os mais hábeis, os mais experientes
de coisas militares, são acordes em dizer que, se a administração
militar continua nas mesmas mãos inábeis e se os planos da campanha
continuam a ser feitos pelos grão-duques, a Rússia pode sofrer
a desfeita histórica de ser posta fora dos domínios turcos,
à coronhada! Em Sampetersburgo começa-se a murmurar com muito
despeito da direcção da campanha. E é bem possível
que um desastre militar fosse a origem de uma transformação
social. O Russo é já bastante instruído para saber perfeitamente
que vive sob um regime odioso. As conspirações repetidas que,
de tempos a tempos, vêm abortar nas mãos da Polícia são
as explosões impacientes e extemporâneas de um forte sentimento,
que trabalha surdamente a massa da nação. Esta guerra actual
foi considerada sem entusiasmo: viam-se muito bem os sacrifícios que
ela custava, sem se ter uma grande fé nas vantagens que ela traria.

Mas, depois de começada, naturalmente, o grande orgulho nacional
exaltou-se e interessouse.

Se a Rússia agora se visse derrotada pelo Turco, isto é, pelo
seu inimigo de raça e de religião, pelo desprezado Turco, atribuiria
logo a derrota aos erros do Governo e aos vícios do regime, e uma grande
revolução seria provável.

Não é de espantar que o mesmo exército concorresse
para essa revolução. O exército conhece as suas altas
qualidades e está descontente pela má direcção
que o leva aos desastres» Além disso, para a multidão
de oficiais, moços, entusiastas, instruídos, apaixonados de
ideias modernas, esta campanha é um complemento de educação
liberal.

Em primeiro lugar, acostumam-se a ver de perto os vícios da administração.
As falsificações dos comissariados, a vergonhosa qualidade das
rações, a insuficiência dos socorros sanitários,
a desorganização das ambulâncias, das pagadorias, de tudo;
os hospitais apinhados, a imbecilidade visível dos generais –
não são condições favoráveis para aumentar
o respeito pelo regime autocrático. Além disso, o país
em que operam é um ninho de republicanos, de socialistas, de descontentes.
Belgrado, Bucareste, etc.», fervilham de espíritos revolucionários:
o contacto com esse mundo, com a multidão de correspondentes, de jornalistas,
a leitura mais assídua dos periódicos, etc., são outras
tantas ocasiões de fazer no espírito dessa mocidade militar
um lento trabalho de oposição ao regime que os governa tão
mal! E esta classe enérgica voltaria à Rússia cheia de
esperanças de emancipações e de ideias de democracia.

Talvez as pessoas que me lêem creiam que isto são hipóteses
fantasmagóricas. Pois bem, que me expliquem então este facto,
que vários correspondentes ingleses testemunham. Há semanas
dava-se num teatro de Bucareste uma representação a que assistiu
grande número de oficiais. Uma actriz francesa tinha que dizer uma
canção num dos actos da peça: no momento em que a orquestra
preludiava e ela ia gorjear o seu couplet, uma voz gritou: – A Marselhesa.
A Marselhesa! E imediatamente, numerosos oficiais russos, fardados, esqueceram-se,
gritando com frenesi: – A Marselhesa, A Marselhesa! Ora justamente,
A Marselhesa é proibida em Bucareste. Grande embaraço nos bastidores.
A mocidade militar berrava, uivava, gania: – A Marselhesa, A Marselhesa!
Alguns bancos começavam a perder os pés e as travessas. O chefe
da orquestra, assustado, fez um sinal: A Marselhesa rompeu, a actriz segue
cantando com grande vigor e os oficiais, delirantes, fazem uma ovação
à cantora–e à cantiga! No outro dia o teatro foi fechado
a pedido do grão-duque Nicolau! As câmaras encerraram-se sem
ter feito nada de glorioso: e, a respeito de câmaras e de constitucionalismo,
deixem-me contar-lhes o caso da eleição de Lord Burghley, que
é um exemplo curioso do valor que tem em Inglaterra a representação
parlamentar. E mais uma ilusão a perder sobre esta pobre Inglaterra!
O circulo de Northamptonshire fica vago pela morte do ministro da Marinha,
Mr. Ward Hunt. No círculo, um dos grandes personagens é o marquês
de Exeter – o qual, nesta circunstância, tratou de fazer nomear,
segundo a tradição das velhas famílias inglesas, seu
filho primogénito, Lord Burghley. Os influentes do circulo (os influentes
conservadores, naturalmente) aplaudiram a escolha: não trataram de
saber se Lord Burghley tinha aptidões, prática ou conhecimento
qualquer das coisas públicas; era um lorde, filho de um pai conservador,
rico, deveria possuir um dia grandes propriedades no circulo, podia votar
– era o que bastava! Quer, porém, a etiqueta eleitoral que o
candidato faça um discurso de profissão de fé aos seus
eleitores nas vésperas de eleição. Sucede tambén
que Lord Burghley é um rapaz de vinte e oito anos, foi militar e até
agora a sua ocupação tem sido valsar, folgar, caçar e
cumprir os deveres gentis de um janota de Londres.

Podia-se, pois, recear que o seu discurso aos eleitores não tivesse
nem uma grande altura política, nem um grande valor oratório:
mas, realmente, não se supunha que o mancebo pudesse juntar numa oração
de um quarto de hora tantas coisas singulares. Começou este moço
por dizer – «que realmente não entendia nada, mas absolutamente
nada, a respeito de política! Que os seus princípios não
importavam também, porque os que lhe queriam bem votariam por ele,
sem fazer caso dos princípios!» Depois deste exórdio,
o candidato deu a sua opinião a respeito da questão do Oriente,
e exprimiu-se assim: «Enquanto à questão do Oriente e
se a Inglaterra deve fazer guerra, parece-me que a maior parte dos que me
escutam têm amigos no exército e não gostariam de saber
que esses amigos tinham tido os narizes rachados, ou as orelhas cortadas;
por mim», exclamou, «se há uma coisa a que eu ponha objecção
é a que me esborrachem o nariz ou que me cortem as orelhas»»
Que lhes parece»? Mas aí vai o melhor: Um eleitor então
fez-lhe várias perguntas a respeito das suas ideias sobre a administração
local: o nobre lorde fitou-o e respondeu atónito: «Administração
local»? É a primeira vez que ouço falar em semelhante
coisa!» Gargalhada estridente. O mancebo enfurece-se e grita «que
não tem obrigação de saber nada a respeito dessa trapalhada,
porque foi tomado de surpresa nesta eleição e só teve
um dia para decorar alguma coisa!» – Basta! Basta! – gritaram
alguns.

– Também me parece que basta, porque realmente estou farto
da maçada! – exclamou o elegante lorde» No dia seguinte,
os influentes do círculo publicaram a seguinte extraordinária
declaração, de que dou um resumo:

«Que sentiam muito ter aconselhado Lord Burghley a fazer um discurso,
porque, tendo sua senhoria tido muito pouco tempo para se preparar para discussões
políticas, não pudera responder decentemente às perguntas
que lhe tinham sido dirigidas pelos principais eleitores. Mas que afirmavam
que sua senhoria daria um excelente deputado!».

Isto parece fantástico.

Os amigos do candidato liberal estavam radiosos; era impossível que
depois daquele discurso, em que Lord Burghley se declarou, ingenuamente, idiota,
sua senhoria tivesse um voto, não contando com o seu! Não se
podia realmente supor que um dos círculos mais ricos, mais importantes,
mais progressivos da Inglaterra, que até aí fora representado
pela alta capacidade de Mr. Ward Hunt, o ministro da Marinha, mandasse ao
parlamento um sujeito – que «nunca ouviu falar de semelhante coisa»,
referindo-se à administração local. Pois bem: dada a
votação, verificou-se que Lord Burghley era deputado por uma
maioria de mil e quinhentos votos! Os jornais dizem, com razão, que
isto faz desesperar de tudo. Porque enfim que razão tiveram para preferir
aquele estúrdio imbecil ao seu opositor, um homem instruído,
digno, com uma educação política e uma prática
administrativa? A razão decrépita, obsoleta, feudal –
de que Lord Burghley é um lorde, filho de lorde, da antiga família
Cecil, milionário, proprietário… e foram levados pelo prejuízo
tradicional, que lhes fez admirar, venerar, servir e preferir a tudo aquela
família ilustre que reina no condado e que lhes faz a honra de lhes
aceitar uma renda enorme em troco da licença que lhes outorga de lavrarem
a terra e de lhe mandarem as melhores frutas ao castelo!… Que o lorde seja
estúpido, infame, devasso, que importa»? É o lorde.

Como tal, é ele que deve administrar, ser deputado, general e almirante.».
E quando se lhe fala em administração local, nada mais natural
que ele encolha os ombros e declare que nunca ouviu falar em semelhante coisa!…
Também não tem obrigação» É o lorde!
Um processo instaurado contra três agentes de policia, implicados numa
grande fraude financeira e acusados de terem feito escapar um certo número
de falsários notáveis, tem chamado as atenções
críticas para a organização da polícia inglesa.
E reconhece-se com melancolia que, neste ponto, a Inglaterra está muito
abaixo, como sistema e como pessoal, das nações continentais.

Os agentes da policia (detectives) são decerto suficientes, como
estratégia e como finura para capturar o ladrão vulgar, bronco
e assustado, que abre com chave falsa uma porta traseira ou vasculha as algibeiras
de um sujeito distraído: mas desde que se trata de um criminoso astuto,
com meios, vastas relações, inventivo e expedito, o detective
actual é invariavelmente logrado.

Isto provém de que são escolhidos sem educação.
A policia é uma ciência que devia ter a sua aprendizagem, os
seus compêndios, a sua prática. Mas aqui tudo o que se exige
num detective é que ele conheça bem Londres e que tenha uma
certa coragem; ora os grandes ladrões conhecem Londres ainda melhor
e são, por profissão, mais destemidos! O perigo dálhes
a invenção, a ideia, a faísca; e enquanto o detective
vai farejando e seguindo antiquados e rotineiros meios de caça (que
os criminosos sabem de cor e que evitam a rir) o pássaro desaparece.
Em França, na Áustria, na Itália, a polícia é
composta de homens que recebem na prefeitura uma educação demorada,
que trabalham ao principio sob a direcção de chefes hábeis
e que se vão assim iniciando lentamente nas tácticas, nas regras,
nos segredos, nas invenções recentes da profissão: ganham
deste modo um tacto, um hábito de expediente rápido, um faro,
um espírito de intriga e de enredo, uma percepção repentina,
um talento inventivo, que os tornam temíveis.

Enquanto ao polícia ordinário, o policeman, que vigia a rua,
pode dizer-se que em Inglaterra, pouco a pouco, um sistema errado tem-nos
tornado inúteis para tudo que não seja policiar o movimento
das ruas, dar indicações a quem não conhece a cidade
e acompanhar os bêbados mais sonolentos. Não se lhes peça
mais nada. Isto provém de que ultimamente todos os comissários
e chefes de policia são antigos oficiais do exército; e o seu
primeiro cuidado é, por consequência, com o hábito do
regimento, dar à força policial. à sua disposição,
um aspecto militar» Escolhem os homens não pela sua aptidão,
mas pela sua estatura. Contanto que sejam enormes, barbados, de movimentos
secos, direitos como um poste e agranadeirados, não se lhes reclama
mais nada» Fardam-nos, ensinam-lhes a marchar com tesura e entregamlhes
a protecção da cidade. Isto explica porque se vê a cada
esquina de Londres um policeman colossal, hercúleo, imóvel,
rolando em roda olhares severos, e na esquina oposta, risonho, um pickpocket
– é que se procurou um tambor-mor e não um hábil.

Os comissários têm orgulho nestas colecções de
corpanzis, fazem manobras a desfilar a dois de fundo, e no entanto o cidadão
é roubado e assassinado com um doce sossego de facínora.

É que estes gigantes são ordinariamente estúpidos,
como todos os gigantes. Naquela imensa massa de músculos e osso, há
lá no alto, num canto, um bocadinho de miolos, bastante para que ele
saiba distinguir o nome das ruas. De resto, força de braço,
sério! Se se trata de levantas um bêbado, bem! Agarram nele,
como numa pele, metem-no debaixo do braço e vão a marche-marche;
mas se se trata de descobrir um crime, boas noites! O gigante, a quem se pede
um esforço do intelecto, arregala os olhos e baba-se! O herdeiro presuntivo
do herdeiro presuntivo, isto é, o filho mais velho do príncipe
de Gales, está perigosamente doente há semanas, com uma febre
tifóide. Recentemente uma recaída tem-no colocado em perigo.
O que me espanta é a indiferença gelada que o público
inglês, sempre tão sôfrego de fazer espalhafato com o seu
amor à dinastia, tem mostrado por esta infeliz criança. Nem
uma linha oratória nos jornais, nem uma expressão dedicada de
simpatia, nada! Apenas, nas notícias da corte, as quatro palavras secas
que o declaram mal. Não me espanta menos ler logo, mais abaixo, nessas
notícias, as caçadas, os jantares, as corridas de que o príncipe
de Gales é o centro glorioso: enfim, a realeza tem certas escravidões
de etiqueta, que não deixa tempo aos deveres da paternidade, ou às
inquietações do sentimento.

Mas porque é que, na ocasião em que o príncipe está
pior, a princesa de Gales, sua mãe, uma senhora de tão altas
virtudes, um carácter tão nobre, tão dedicado, vai para
o Teatro do Criterion ouvir as pilhérias de uma farsa picante –
os Dominós Cor-de-Rosa. Decerto não é por sua vontade;
a princesa de Gales tem as qualidades antigas da mãe de família
romana: o seu desejo seria criar seus filhos e fiar o linho. Mas porque vai
então ao Criterion? Ingleses, a quem tenho feito esta pergunta, encolhem
misteriosamente os ombros e murmuram: «A etiqueta!» Nenhuma novidade
literária, a não ser o livro de Gallenga, o correspondente do
Times em Constantinopla, sobre alguns dos episódios mais característicos
da questão do Oriente. Este livro, que é a reprodução
da sua correspondência, tem um lado curioso: mostra o poder, em Inglaterra,
de um correspondente de jornal. Gallenga convenceu-se em Constantinopla que
o embaixador inglês, Sir G. Elliot, não representava com vanta-gem
os interesses britânicos na Turquia. Apenas formou esta ideia, dirigiu-se
à embaixada e intimou o embaixador para mudar rapidamente uma política
que ele, correspondente do Times, julgava nociva.

O embaixador não o mandou expulsar pelo mordomo, porque isso seria
insultar o Times, o que equivale a ofender a City, o que significa injuriar
a Inglaterra, mas contentou-se em resmungar monossílabos com os olhos
fitos obstinadamente no fogão, que, sendo Verão, estava apagado.
Gallenga, como ele diz, escandalizou-se com aquela falta de atenção
às suas observações e com aquele costume ridículo
de olhar para um fogão apagado. Deixou a embaixada, veio para o seu
hotel e começou aquela série de correspondências, que
revolveram profundamente a opinião e obrigaram o Governo a demitir
o embaixador! Gallenga, agora, no seu livro, conta esta curiosa campanha,
todo enlevado num doce júbilo! Feliz Gallenga! Outro dia entrei por
acaso no primeiro tribunal de Londres onde o lord chief justice, o primeiro
magistrado da Inglaterra, estava resumindo um caso de tentativa de assassinato.
O réu, um homem grosso, de barba amarelada, foi condenado a trabalhos
públicos por toda a vida; depois de ler a sentença, o lord chief
justice parou um momento, fitou o réu e, com aquele largo e pomposo
gesto que todo Londres conhece, exclamou: – Aí está! Vivereis
em servidão penal! Não tivestes a inteligência de prever
as consequências que vos traria a vossa conduta, e é deplorável
que não tivésseis a coragem de deixar este mundo antes do que
incorrer nesta pena infamante! Se isto não é descompor um réu
por ele se não ter suicidado, então não sei o que é.
Fiquei atónito. Meditem bem nisto: censurar o réu, asperamente,
por ele não ter tomado arsénico, ou se não ter enforcado
com a gravata! Não, realmente é das coisas mais singulares de
que podem rezar os anais da magistratura europeia! Notícias do amigo
Pongo.

Está óptimo. Como parecia aborrecer-se bastante, os sábios,
que o vigiam zelosamente, resolveram cercá-lo de alguma sociedade.
Vieram dos jardins zoológicos três chimpanzés para lhe
fazerem – ia quase a dizer, a partida de whist –, para lhe fazerem
companhia ao jantar e falarem das queridas florestas de África. Um
dos chimpanzés é engraçado como um clown e estroina como
um lorde: desde a sua chegada, a casa do amigo Pongo ressoa de gritos, vacila
com os pulos, vibra de toda a ágil, espirituosa, ladina inquietação
do faceto chimpanzé. Pongo aprecia esta vivacidade, e tem por ele uma
estima reflectida e protectora: faz em geral, aos seus três hóspedes,
as honras da casa com benevolência, mas as delicadezas mais especiais
são para esse chimpanzé: se lhe dão charutos, oferece-lhe
sempre o maior; há dias deram-lhe um chapéu e o excelente Pongo
foi logo enterrá-lo na cómica cabeça do seu amigo, recuando
um pouco, depois de saborear a pilhéria daquela toilette humana. Quando
bebe, passa-lhe logo em seguida o copo, gravemente, com um sorriso. Agora
uma coisa extraordinária: Mr.

Pongo detesta Darwin! Darwin é, como sabem (é quase ridículo
lembrá-lo), o grande filósofo e naturalista que primeiro estabeleceu
a teoria da descendência do homem, e declarou-o nascido directamente
do macaco. Parecia natural que Pongo, vendo pela primeira vez o sábio
ilustre que lhe deu uma tão alta posição na criação,
fazendo-o pai do género humano, lhe daria ao menos um shakehands cordial.
Pois não senhor! Detesta-o. Com uma ingratidão africana, apenas
o avista, franze a testa, arreganha os dentes, fita-o, volta-lhe as costas.
E todavia se há uma bela e doce fisionomia, é a de Darwin com
a sua longa barba branca! A amizade de Pongo é pelo ilustre professor
Tyndall: quando o vê, atira-se- lhe aos braços e, com uma ideia
infame da limpeza do grande sábio, começa a catá-lo com
frenesi! E o que Tyndall ri! Comoveu-me, há dias, ver Darwin, e Tyndall,
e Fawcett, e outros sábios famosos, honra e esplendor da humanidade,
virem fazer a sua visita de amizade a este venerável avô da raça
humana! Mas francamente, a atitude do gorilha para com Darwin chocou-me. Estimo-o
talvez menos. E a única explicação é esta: Pongo
conhece que Darwin o declarou pai do homem: e Pongo, que já tem viajado
bastante, que esteve em Berlim, que conhece a população toda
de Londres, que tem feito observações prolongadas sobre o homem,
está furioso com Darwin e com a sua teoria. «O quê!»,
pensa ele; «isto, este ser de chapéu alto e luneta no olho, que
paga um xelim para me vir ver, é que é o meu descendente? E
a isto que Darwin chama um gorilha aperfeiçoado? Mas esse sábio
não tem então escrúpulo em lançar uma nódoa
infamante na respeitável classe dos gorilhas? Esse sábio é
um mau homem!» E volta-lhe as costas. A razão é clara:
ele não o considera um observador profundo, acha-o um reles caluniador!

VII – Londres, 1 de Setembro de 1877

Há oito dias que dura a batalha de Chipka. Pela tenacidade heróica,
é, creio, o maior duelo militar dos tempos modernos. Chipka é
uma das passagens, uma das portas abertas naquela grande parede dos Balcãs,
que defende a Turquia turca. Não é propriamente um desfiladeiro,
como a Porta de Ferro, ou os outros passes; é um vale formado pela
interrupção da cordilheira, de quase cem milhas de largura:
não um vale plano, docemente cavado e por toda a parte praticável,
mas um vale rugoso com colinas ásperas, precipícios, rochas
e, a espaços, espessamente arborizado. Foi por ali que o general Gurko
passou, há um mês, triunfantemente, na sua marcha para Constantinopla!
Essa aventura, tão interessante pelo romanesco como ridícula
pela estratégia, falhou; mas os Russos conservaram-se senhores da passagem,
e tinham ali uma guarnição de três mil homens, Foi contra
esta fraca força, bem entrincheirada todavia, que Suleiman Paxá
arremessou todo o seu exército. Os Russos foram logo poderosamente
reforçados, e desde então uma luta colérica, desesperada,
heróica, redemoinha por todo o vale, sem que os Russos tenham sido
desalojados, sem que os Turcos hajam enfraquecido por um momento a violência
do ataque! Batem-se com fuzilaria, com artilharia, a baioneta, desde os primeiros
clarões da madrugada; e, como as noites são de luar –
o claro luar do Sul da Europa –, o duelo não cessa com a noite.
Nos primeiros dois dias, as tropas não dormiram, nem cozinharam. Agora
os regimentos revezam-se, e como os dois lados estão constantemente
recebendo reforços, o combate sustenta-se numa fúria crescente.

Para quê semelhante luta, pergunta-se com espanto. Compreende-se,
até certo ponto, porque os Russos defendem Chipka: conquistaram aquela
posição, não se querem deixar expulsar sem resistência,
é natural; abandoná-la sem luta a Suleiman Paxá era uma
prova de desalento, que faria nas tropas russas, já desanimadas, a
impressão repetida de uma nova derrota.

Além disso, Chipka domina toda a região de Grabova, onde vivem
nas aldeias cristãs alguns milhares de búlgaros; estes interessantes
eslavos, quando viram os Russos senhores de Chipka e se julgaram implicitamente
vitoriosos, apressaram-se a destruir a população turca pelo
processo sumário de queimar os homens em fogueiras, violar as mulheres
até à morte e degolar corajosamente as crianças. Ora
se os Russos se retiram de Chipka e os Turcos a ocupam, tornando-se senhores
da região, é evidente que farão passar aos búlgaros
um quarto de hora desagradável, o que, no fundo, é odiosamente
justo. Portanto, os Russos, sustentando-se em Chipka, procuram salvar os búlgaros
desta temerosa represália; se tanto é que esta consideração
humanitária é bastante para explicar a resistência russa.

Mas, os amigos dos Russos explicam-na assim, e e lisonjeiro para a humanidade
que essa seja a razão exacta.

Mas porque atacam os Turcos a passagem de Chipka? Que lhes importa que três
mil homens ocupem sem utilidade e sem vantagem aquele vale? Se Suleiman Paxá
se quer vir juntar do lado de cá dos Balcãs com Osmand Paxá,
porque não atravessou por alguma das outras passagens que estão
livres, em lugar de escolher justamente aquela que os Russos ocupam? E se
não queria deixar atrás de si aquele núcleo de força
inimiga, porque não fez cercar as posições russas em
lugar de as atacar? Quatro ou cinco mil turcos em redor de Chipka, bem fortificados
e ocupando as alturas, seriam bastantes para terem os Russos inúteis
e fechados, como pássaros numa gaiola. Mas não; ataca Chipka
e perde já perto de vinte mil home_______________________________ns
naquela tentativa insensata. Pergunta-se geralmente: porquê? Eu estou
habilitado a dar a minha interpretação; não a garanto,
mas foi-me revelada por pessoa que está muito informada da política
miúda e das intrigas de Constantinopla. Suleiman Paxá atacou
Chipka porque isso lhe foi ordenado pelo sultão. Esta batalha monstruosa,
em que já morreram vinte mil turcos, não foi decidida num conselho
de guerra, foi resolvida no serralho. Desde que o general Gurko ocupou há
um mês Chipka, passando os Balcãs, entrando na Romélia
e fazendo pisar assim às tropas russas o solo sagrado da Turquia turca,
um terror pueril mas indominável apossou-se do sultão.

Via já os Russos em Constantinopla, os seus palácios do Bósforo
saqueados, o serralho disperso e vendido a retalho pelos mercados da Pérsia
e da Arábia, ele mesmo talvez prisioneiro na Sibéria. Debalde
o corpo diplomático e ministros o tranquilizavam: o seu terror crescia
todos os dias, excitado pelo pavor das mulheres. Realmente é difícil
que um sultão se conserve a sangue-frio, sentindo em roda de si os
gemidos de angústia, os gritos de medo das suas três mil concubinas!
Um coro lacrimoso de mulheres soluçantes amolece o temperamento mais
resistente. Uma bela manhã o sultão declara que abandonava Constantinopla
e que se ia refugiar na Ásia, em Brussa; esta resolução
tinha-lhe sido inspirada por Mahmed Paxá, o seu favorito, um intrigante
tortuoso e covarde, que domina pelas mulheres e que representa na política
turca o verdadeiro elemento asiático – a intriga do serralho.
Os ministros, o divan, ficaram aterrados com esta resolução
fantástica, e iam empregar talvez meios extremos de coerção,
quando a vitória de Plevna, a vitória de Lochta, a vitória
do rio Lon, sobretudo a retirada do general Gurko, vieram dar um certo alento
ao sultão: desfizeram-se as malas momentaneamente; mas o serralho conservou
um terror oculto daqueles três mil ou quatro mil homens que tinham ficado
em Chipka, que eram uma ameaça permanente, e com a mão do inimigo
ainda estendida para Constantinopla.

À maneira que os dias decorriam e que aquela força se ia mantendo
em Chipka, impassível e teimosa, a inquietação no serralho
crescia. Chipka tomou-se um pesadelo: aqueles malditos regimentos estabelecidos
às portas da Romélia e comendo tranquilamente o seu rancho traziam
o palácio numa atroz irritação nervosa. Porque se não
iam também? Que faziam ali com os seus olhos azuis de eslavos fitos
em Constantinopla? Por fim, o sultão e o serralho perdiam o sono, o
apetite, o gozo tranquilo dos prazeres do amor. Aquilo não podia durar.
E uma manhã o sultão escrevia directamente a Suleiman: que fizesse
todos os sacrifícios, abandonasse todos os planos, mas que lhe sacudisse
aqueles russos de Chipka, para ele poder, enfim, dormir, comer e saborear
os encantos do sentimento.

E ai está porque já lá vão vinte mil turcos
– para acalmar os nervos do sultão! Esta batalha de Chipka deu
lugar ao maior feito jornalístico de que há memória –
o telegrama do correspondente do Daily News, o célebre jornal de Londres.

Este rapaz, porque tem apenas vinte e quatro anos, que se chama Forbes e
que já era ilustre por correspondências admiráveis (telegrafadas),
sobretudo a que descrevia a passagem do Danúbio e a que contava a batalha
de Plevna, logo que soube que havia combate em Chipka e antevendo a importância
da luta, partiu do quartel-general russo onde se achava e chegou, a marchas
forçadas, a Chipka, no segundo dia de batalha: ali esteve três
dias tomando notas e estudando a situação, ora a cavalo, ora
nas trincheiras, sempre no meio do fogo, até que adquiriu a noção
exacta da contenda; voltou sem descansar, rebentando cavalos, para o quartel-general
russo; aí o czar interrogou-o, e foi ele o primeiro a dar detalhes
da batalha ao Estado-Maior; e, imediatamente, por meios que ele não
revela, mas que constituem toda uma campanha, conseguiu mandar ao Daily News
um telegrama de seis colunas e meia (como esta página de Actualidade
em letra miúda) descrevendo o combate, e os seus episódios,
com um vigor, um colorido, um realismo, que fazem deste telegrama uma maravilha
de informação e um primor de literatura. Que diferença
dos magros e melancólicos telegramas que a Agência Havas fornece,
por grosso, aos jornais de aí. Mas também nós não
tiramos, como o Daily News, duzentos mil exemplares por dia! O processo feito
a Gambetta é aqui motivo de um espanto extremo. Há, todavia,
na crítica dos jornais ingleses, conservadores e radicais, mais desdém
que indignação; o facto é classificado com uma profusão
de epítetos infamantes, que se podem resumir neste: disparate idiota.

Como! O Governo processa um homem político por um discurso da mais
moderada oposição parlamentar, pronunciado numa reunião
particular? Como! Tendo os jornais de França publicado por inteiro
ou por extractos esse documento o Governo só processa a Repúblique
Française? Como! Na véspera das eleições, quando
a sua prudência devia procurar chamar todos os sufrágios, irrita
e desespera o país por um acto tão inconstitucional, alienando
de si as simpatias mais conservadoras? Como! Querendo aniquilar o radicalismo,
dá-lhe as honras de uma perseguição injusta, o que é
o mesmo que criar-lhe uma propaganda gratuita? Como! Sendo-lhe indispensável
pôr na sombra a influência de Gambetta, procura dar-lhe a maior
glória e torná-lo, pelo martírio, quase augusto? Como!
Desejando abafar-lhe a voz, dá-lhe ocasião de fazer uma defesa
que ecoará em toda a França e em toda a Europa? Mas estão
idiotas! O doutrinarismo de M. de Broglie emparveceu-o e o bonapartismo de
M. de Fourton ensandeceu-o. Aí está como falam os jornais ingleses.

Não creio porém que estejam na verdade. M. de Broglie e M.
de Fourton são tudo menos tolos.

Os tolos não são usualmente primeiros-ministros de França.
M. de Broglie e M. de Fourton são simplesmente lógicos. Realmente
o que pretendem eles? Impor à França um governo militar, ditatorial,
despótico, reaccionário e clerical, de que Mac Mahon seja o
Deus e eles seus profetas.

Mas enquanto houver em França uma coisa que se chama a constituição
é forçoso, por mais M. de Broglie que se seja, governar dentro
da constituição; pode-se torná-la elástica, interpretá-la
com todas as subtilezas maquiavélicas e todas as tortuosidades jesuíticas,
alargar-lhe as costuras, torcê-la até quase a quebrar, fazer-lhe
espremer as decisões mais absurdas, violá-la mesmo um pouco
aqui e acolá, mas há uma coisa que se não pode fazer:
é atirá-la para debaixo da mesa, para os papéis sujos!
E enquanto a constituição for a lei da França o Governo
não pode ser uma ditadura. Mas como se há-de então suprimir
esta constituição atravancadora e impertinente? Por um golpe
de estado. E o motivo para um golpe de estado? Há muitos, mas o melhor
– é a insurreição. E onde está a insurreição?
Provoca-se. E por este declive lógico que o Governo decidiu processar
Gambetta. O que se pretende é irritar os republicanos, até lhes
fazer perder a cabeça e os levar às barricadas. Para isso, um
processo como este de Gambetta, algumas violências mais, uma perseguição
sistemática à imprensa, meia dúzia de actos bem inconstitucionais
e, pensam os homens ilustres da direita, é impossível que Paris,
Lião ou Marselha não saiam para a rua. E então, dada
a insurreição, espantada a França, o Governo atira a
constituição pelos ares, assume a ditadura para salvar a ordem
e fez-se a escamoteação. É este, parece-me, o fim do
Governo. Somente, para lograr um francês, não há como
outro francês. E o francês tem sobretudo a paixão de lograr
o Governo. Os republicanos sentem perfeitamente a que terreno o ministério
os quer chamar, e com uma virtude maliciosa conservam-se teimosamente na ordem,
embrulham-se na legalidade, abraçam-se sofregamente na constituição.
E dá-se o espectáculo curioso de velhos conspiradores, insurrectos
de profissão, defendendo com grande pompa e com ardor a ordem, e o
ministério, composto de conservadores, fermentando tortuosamente a
insurreição.

E se este sistema continuar, o ministério será logrado: pode
perseguir, irritar e vexar; os republicanos sorrirão, cumprimentarão
e volverão olhos devotos. resignados, para a estátua da lei;
e quando chegarem as eleições mandarão, com bonomia,
quatro-centos deputados republicanos! E o ministério, não tendo
podido vencer pela insurreição e não podendo viver pela
legalidade, tem de se dobrar ou de se safar! E aqui está o que é
uma alta comédia política. Esta estação é
para tudo, em Inglaterra, um tempo de férias. A gente rica, que é
a que faz tudo em Inglaterra, não faz nada neste mês senão
caçar, viajar no continente, banhar-se no mar salgado, ou bordejar
nos iates.

Não há política, não se escreve, não
se inventa, não se intriga. O bem e o mal estão em férias.

Londres está absolutamente deserta, isto é, dos seus quatro
milhões de habitantes, apenas lhe restam três milhões
novecentos e cinquenta mil. Mas justamente os cinquenta mil que faltam é
que são Londres; são os políticos, os estadistas, os
romancistas, os pintores, os filósofos, os inventores, os elegantes,
os cantores, as cocotes e os lordes. O que resta é a vil e escura multidão,
que redemoinha na City labutando e traficando. Não conta. Os palácios
estão fechados, o parlamento cerrado, as óperas mudas, as galerias
desertas, os ateliers abandonados, os clubes solitários, as escolas
em férias, a imprensa ociosa, os parques lúgubres, a vida dispersa.
Não tenho por isso nenhum livro a criticar, nenhum escândalo
a contar, nenhuma obra de arte a celebrar. Nada, nada, nada! É nesta
ociosidade e nesta melancólica escassez que às vezes me entretenho
a seguir o novo divertimento que tem por nome os casos difíceis. Este
exercício do intelecto, que é feito por meio dos jornais, não
os grandes jornais políticos e literários mas os pequenos jornais
de escândalo, de mexerico, de pilhéria, ou de curiosidade, este
divertimento, digo, consiste no seguinte: o jornal propõe aos seus
leitores a solução de um caso difícil da vida e na semana
seguinte publica a resposta obtida. É muito interessante ler estas
opiniões, que formam positivamente um guia social nas dificuldades
humanas. Assim, por exemplo, há dias um destes, o Vanity, propunha
o seguinte caso: Miss A. recebe no mesmo dia duas propostas de casamento:
uma de João, que ela ama e que é pobre, outra de Paulo, que
ela não ama e que é muito rico, bastante agradável e
simpático, e por quem ela tem uma estima completa. Que deve fazer Miss
A.? Vamos lá, qual é a opinião dos leitores da Actualidade?
Hem? Querem saber a opinião em Inglaterra? O jornal fez a pergunta
a semana passada, sábado. Pois bem: imediatamente, de todos os pontos
de Inglaterra, das vilas e das cidades, de nobres e de plebeus, pelo telégrafo
e pelo correio, vieram centenares, milhares, dezenas de milhares de respostas!
E todas a mesma.

Qual? Esta: «Que case com Paulo e que se arranje depois com João!»
O Diabo, no inferno, deu uivos de prazer com esta decisão tão
unânime.

Outro jornal apresentava há dias um caso difícil, que eu proponho
igualmente aos leitores da Actualidade, pedindo que enviem ao jornal as suas
respostas e suplicando à redacção que as publique integralmente.

É um caso interessante, que nos pode acontecer a todos, e de uma
solução difícil. Eu modifico-o um pouco, porque tal como
aparece no jornal inglês não seria bem compreendido em Portugal.
Ei-lo: A. convida para jantar na sua casa de rapaz solteiro o amigo João
e o amigo Pedro, para as seis horas. As seis horas menos um quarto o amigo
João chega e conta a A. que nessa manhã teve uma questão
seriíssima com o amigo Pedro, que a honra não lhes permite uma
reconciliação e que, se se encontrarem, é para se dilacerarem.
Neste momento dão seis horas e entra o amigo Pedro. Que deve fazer
o infeliz A.? P. S. – Um amigo meu que se interessa vivamente pelos
casos difíceis corre, neste momento, todo alvoroçado, a comunicar-me
uma resposta, uma nova solução dada ao caso de Miss A.

É tão profunda, tão profundamente moderna, que a transcrevo
integralmente: «Se Miss A. ama João, que é pobre, e é
amada por Paulo, que é rico (reparem bem!) – case com João
e entenda-se depois com Paulo!» Esta resposta, que vem num jornal muito
elegante de Londres, é das coisas mais hábeis que tenho lido
nos meus tenros anos! Sobretudo se se reparar na observação
que a acompanha, e que reza assim: «Porque aconselhar Miss A. a que
case com Paulo e que se arranje com João é completamente pueril.»
Pueril, é sublime!

VIII – Londres, 18 de Outubro de 1877

Peço aos meus leitores (se tenho dois) ou ao meu leitor (se tenho
um) que não atribuam o meu silêncio de algumas semanas a uma
suspensão absoluta de acontecimentos em Inglaterra e no universo. Não.
O mundo tem continuado a rolar com uma tolerável regularidade e os
homens, sobre ele, a fornecerem assunto a localistas e a correspondentes.

Os motivos do meu recolhimento são todos particulares. Assim, por
exemplo, só a França que matéria não tem dado,
nestas últimas semanas, a uma pena de boa vontade! Manifestos de sensação,
tiranias de Governo, eleições impressionadoras, ameaças
de golpe de estado – tudo essa boa França, que não gosta
de deixar o mundo sem objecto de conversação, tem prodigalizado
com a sua fecundidade de país de génio.

Aqui, em Londres, quem abrir um jornal inglês há-de pensar
que no universo só existe a França: é dela que se fala,
é sobre ela que se escreve; tudo o mais fica numa penumbra subalterna.
As eleições de 14 de Outubro não foram para ninguém
uma surpresa. A maioria republicana era certa. Podia-se supor, como sucedeu,
que a pressão ministerial, tão miúda e tão pesada,
tão vexatória e tão arbitrária, roubaria alguns
votos aos republica-nos; mas em definitivo, a França, que é
centro-esquerda, daria uma maioria mais ou menos numerosa à república.
Alguns jornais dizem que a esquerda, pelo facto de não trazer à
câmara os históricos e famosos trezentos e sessenta e três,
sofreu uma derrota moral: eu penso que a circunstância de conseguir
trazer trezentos e vinte, pouco mais ou menos, dada uma tal tirania governamental,
é uma vitória eloquente.

A administração em França exerce, além da força
que lhe dá a sua organização poderosa e sagaz, uma irresistível
atracção sobre um povo educado na centralização.
Tudo treme quando ela franze o sobrolho, e ninguém deixa de ficar enlevado
quando ela sorri; em tais circunstâncias, ter-lhe resistido, como lhe
resistiu, mostra na França convicções bem serias e uma
vontade bem definida.

Que resta ao marechal agora? Num país sensato, como a Inglaterra,
a coisa seria simples: o ministério batido seria demitido e o partido
triunfante chamado ao poder, ninguém se agitaria, e a complicada máquina
do Estado continuaria a rolar docemente nos seus carris. Em França,
não. O ministério vencido teima, pela voz dos seus jornais,
em se considerar vencedor e ameaça com baionetadas todos os que não
forem dessa opinião extravagante. Consultou-se a vontade do país,
e quando ele respondeu por milhões de vozes anão! o ministério
diz, com um sorriso: «Bem; como o país respondeu «sim!»
nós cá ficamos, para obedecer ao país.» E se o
país amanhã, vendo que o «não!» que ele dissera
pela boca das suas pessoas não era escutado, se resolvesse repetir
o «não» pela boca das suas espingardas, o ministério
traria para a rua a artilharia, conti-nuando a afirmar com tranquilidade:
«Como o país insiste em dizer que «sim», nós
não podemos ceder! Nós não podemos!…» A indignação
contra o marechal, aqui, continua a exprimir-se violentamente. Uma pergunta
às vezes faço eu a mim mesmo, pasmado: «Será possível
que o Governo francês não leia os jornais ingleses? E, se os
lê, não lhe faz impressão nenhuma ver a imprensa unânime
de um grande país, da Inglaterra, condenando ao longo das suas primeiras
páginas a ilegalidade da sua existência? Pode-se desprezar assim
a opinião de uma nação tão inteligente, tão
sensata, tão positiva, tão imparcial?» O ministério,
é verdade, embirra profundamente com os jornais ingleses, a ponto de
lhes proibir a venda como peçonhenta, mas o facto de lhes proibir a
propaganda não obsta a que lhe deva reconhecer a sensatez: e todos
os dias os jornais mostram claramente aos Srs. de Broglie e de Fourton que
eles estão simplesmente levando o seu país à guerra civil
e à guerra estrangeira. Que eles não o acreditem quando o lêem
nos jornais radicais de Paris, compreende-se, mas que o não escutem
quando são os jornais estrangeiros conservadores que o gritam por todas
as linhas, é de espantar! A não ser que, ciente e conscientemente,
eles queiram a guerra estrangeira e a guerra civil; nesse caso, espera-os,
é de recear, uma grilheta nova e de bom ferro nas galés amáveis
de Toulon.

As novidades daqui são escassas. Chove. O Inverno instalou-se, e
vem este ano de um humor terrível: os duches que nos atira para cima,
as lançadas de nordeste agudo com que nos trespassa, as rajadas com
que nos sacode, não têm conta. Ouço-o todas as noites
rugir e chorar, e não compreendo o que fizeram a este rabugento velho.
Por ora ainda não nos cobriu de neve: é uma galanteria que guarda
provavelmente para o Natal; os meteorologistas seus amigos, a quem ele faz
confidências, dizem-nos que não há a esperar dele, este
ano, nem demência, nem desleixo. Vem activo e mau. O que nos espera!
De resto o grande acontecimento é o Caso Ponge. Não sei se sabem
aí deste episódio judicial.

A história é simples. Um sujeito, Louis Stanton, casou por
dinheiro com uma mulher e vivia por amor com outra. Para não se ver
embaraçado nos seus sentimentos colocou a esposa em casa do seu irmão
e foi habitar com a amante para o campo. Passado tempo, a esposa começou
a definhar, a adoecer – e quando ela morreu num estado de anemia e de
magreza medonhas, os médicos chamados a examinar (em vista das suspeitas
nascentes) declararam que a pobre senhora fora sistematicamente morta à
fome! Ergueu-se um grito de horror em toda a Inglaterra. Louis Stanton, a
sua amante (uma rapariga de dezanove anos), o irmão de Louis e a cunhada
foram presos, julgados e condenados à morte.

Aqui está, em resumo, o prólogo.

As audiências causaram a excitação de um drama, comovente:
os depoimentos das testemunhas, as respostas dos réus, os discursos
e réplicas dos advogados, as frases sempre notáveis do ilustre
juiz Hawkins, eram devorados por todo o país com a sofreguidão
de uma novela de sensação! O tribunal estava apinhado de celebridades,
mesmo de ladies famosas, cujos lacaios traziam em cestos lanche e champanhe
para sustentar as forças da dama delicada, nas fadigas daquelas longas
audiências.

Desenhistas hábeis, postados em todos os cantos, esboçavam
a atitude dos réus, os gestos de aflição, as convulsões
da pobre amante (Alice Rhodes) – e estes desenhos eram vendidos nas
ruas e encaixilhados em salões. Enfim, um verdadeiro processo de prazer.

A última audiência, de que pude surpreender, através
da multidão, alguns episódios, foi trágica. Nunca ouvi
nada tão poderoso como o discurso do juiz aos jurados, fazendo o sumário
do processo. De pé, falou durante sete horas, com uma eloquência
sombria e elevada que destilava a morte. Pareceu-me ter mais a paixão
de um acusador do que a veracidade de um juiz. Mas como arte, era maravilhoso.
Quando o júri voltou com o veredicto, provando o crime, houve um momento
de terrível impressão. O juiz ergueu-se, colocou sobre a cabeça
um gorro negro e todo o mundo se pôs de pé, num silêncio
ansioso.

Então leu, com voz lenta, a sentença de morte.

Os dois réus estavam como hirtos; mas as duas senhoras estavam sustentadas
nos braços de dois comissários de polícia.

Quando o juiz Hawkins findou a leitura, ergueu o braço e disse: –
Que Deus tenha misericórdia das vossas almas.

Toda a audiência respondeu com a mesma voz lamentosa: – Amen!
No dia seguinte um jornal, o Daily Telegraph creio eu, insinuou que lhe parecia
bem pouco comprovado o crime, e bem severa a sentença. Outro jornal
retomou o assunto, repetindo a mesma opinião; e depois outro, outro
e outro. Imediatamente a opinião agita-se: os jornais começam
a publicar cartas, que, numa argumentação cerrada e sagaz, provavam
a falta de provas do homicídio; depois advogados escreveram, censurando
a marcha do processo, cheio de nulidades; logo sacerdotes, membros do parlamento,
mulheres, mães de família, de todas as partes de Inglaterra,
cada um do seu ponto de vista, com os seus argumentos especiais, censuraram
a condenação: e enfim, coisa grave, os médicos começaram
a declarar que os sintomas apresentados no exame do cadáver não
eram de morte por fome, mas de tubérculos no cérebro.

Imediatamente, instala-se em Canon Street Hotel uma comissão de pessoas
importantes para obter da rainha a comutação da pena: fazem-se
meetings, abrem-se petições à assinatura pública,
e toda a Inglaterra, profundamente revolvida por esta agitação,
pede o perdão para os réus! Em vista disto, o Governo perdoa!
Ao princípio foi um clamor de triunfo. Mas depois vem a reflexão.
Que tinha feito a Inglaterra? Tinha destruído a sentença de
um tribunal, com uma agitação popular. Mas então a lei,
os códigos, a justiça, os magistrados, as fórmulas, tudo
é inútil, só quem decide em último recurso é
a imprensa e o público. Todo o mundo estava um pouco embaraçado
com a vitória. E então francamente cada um começou a
considerar que se tinha ido longe no movimento apaixonado da sensibilidade.

A rainha tinha-se talvez apressado de mais a perdoar. A administração
da justiça passara, por um golpe de estado popular, das mãos
da magistratura para as mãos do público; a instituição
do júri é inútil; os processos ociosos; os crimes seriam
condenados ou absolvidos segundo o bom ou mau humor da opinião.

Se basta fazer meetings para perdoar um réu, nada impede hoje uma
absolvição permanente para o crime. E aqui têm este grande
país que, depois de ter feito comutar uma pena por sentimentalismo,
desejaria aqui vê-la aplicada por legalidade. Singular situação,
não é verdade? E exclusivamente inglesa! Enquanto a mim penso
que os réus não eram absolutamente culpados: houve negligência
em tratar a pobre senhora, mas não houve intenção de
a matar; por outro lado, parece-me que o exemplo é mau e que abala
toda a constituição da Inglaterra esta obediência do Governo
às impressões da multidão. Em todo o caso, aí
dirão consigo, «antes tremelique a constituição
que se enforquem quatro inocentes!» E do Oriente? Depois de uma suspensão
de hostilidades, imposta pela neve e pela chuva, os Turcos foram horrivelmente
batidos na Ásia. Muktar Paxá perdeu dezenas de canhões,
milhares de prisioneiros e fugiu para Kars derrotado. E um desastre, mas facilmente
reparável.

Em virtude da estação, os Russos não se podem aproveitar
da sua vitória: vem tarde, se Muktar Paxá fugiu e não
se lhe pode opor, lá está o Inverno para substituir o general
vencido e pôr barreiras de gelo e de torrentes onde faltam as barreiras
de homens. Kars, que Muktar Paxá protegia, fica em todo o caso protegida
pelo mesmo, e não é nesta campanha que os Russos poderão
ocupar aquela fortaleza, chave da Arménia.

De resto, no Danúbio, silêncio, expectativa, frio e doenças,
nos exércitos ociosos. Novidades literárias ou teatrais, zero.
A Inglaterra intelectual ou dorme ou trabalha em silêncio.

A costumada produção de novelas, sim, essa continua regular
como a fabricação do pão, para manter vibrantes os nervos
das misses e das ladies.

Notícias comerciais tristes: uma estagnação total dos
negócios: uma pausa terrível na estrutura industrial.

Este Inverno vem carrancudo: que nos reserva ele? Por toda a parte inquietações,
apreensões, necessidades…

Fez excelente efeito aqui a maneira inteligente e delicada por que Stanley,
ao fim da sua épica viagem através de África, foi recebido
pelos Portugueses. Tudo se passou com excelente gosto. Não era natural
realmente que o recebessem à paulada; mas era de recear, com a indiferença
nacional, que ele passasse despercebido ou que o incomodassem, pedindo-lhe
o passaporte. Felizmente, a recepção foi digna e honrosa para
nós. Ainda há portugueses em Portugal!

IX – Londres, 10 de Dezembro de 1877

É impossível começar uma correspondência –
é quase impossível começar uma carta particular –
sem falar da França. A questão do Oriente está no último
plano: apenas a gente se lembra que há algures um país assolado
pela guerra, milhares de homens que morrem, guarnições esfomeadas,
generais heróicos, cidades tomadas, um czar impossível e um
sultão absurdo! O que lembra é a França. Quais são
as notícias de França, hoje? – é a pergunta inglesa
de antes de almoço.

É da França que se ocupam os literatos políticos nos
seus artigos de fundo, os caricaturistas nos seus desenhos, os sacerdotes
nos seus sermões e os autores de cançonetas nas suas rimas.
Falemos, pois, da França. E em primeiro lugar façamos justiça
ao marechal Mac Mahon.

Este excelente homem não é culpado em coisa alguma do que
se passa, do que se tem passado em França desde 16 de Maio: velho,
um pouco reumático, entendendo alguma coisa de soldados e muito de
jardinagem, ocupando-se imensamente das suas rosas e dos seus lilases e quase
nada do seu país, um pouco apertado de dívidas e cheio de um
humor condescendente e amável – o presidente da República
não é um carácter, é um cabide.

Um grupo intrigante, fanático, egoísta, glutão de poder
imoral, ridículo – se não fosse trágico –,
serve-se dele como de um aparelho de pau onde dependura decisões e
as suas frases.

Este grupo, que se compõe de padres astutos, de devotos elegantes,
de doutrinários de salão, de alguns caducos aristocratas de
outras eras e de ajudantes-de-campo crivados de dívidas, cheios de
galões e abundantes de facécias, este grupo tem uma ambição
decente: possuir a França – para seu uso, em primeiro lugar,
e um pouco para uso do papa também. Possuir a França, dispor
do seu exército, das suas finanças, de tantos empregos a dar,
representá-la diante do mundo, fazer as honras da casa por ocasião
da Exposição, ocupar os seus palácios, tratar de mano
a mano imperadores e rainhas, entrar na história, ainda que seja com
uma chave falsa – é realmente, devemos confessá-lo, muito
agradável. E o marechal Mac Mahon, ou antes, o grupo que o inspira
e que lhe puxa os cordéis – tem realmente toda a razão
em querer guardar aposta.

Somente há uma certa entidade que se opõe a esta amável
combinação e que se chama a França republicana: é
quase nada: são apenas dez milhões de eleitores. Esta entidade
tem a loucura de querer que a França não pertença a um
grupo equívoco de batinas, e de saias, mas que se pertença a
si mesma. Esta entidade é portanto considerada – no Palácio
do Eliseu – como perfeitamente plebeia, impertinente, grosseira e perigosa
para os interesses dos bispos e das duquesas.

Que se há-de fazer portanto a esta entidade? Esmagá-la. Como?
Dar-lhe um nome feio, chamar-lhe radical, atribuir-lhe intenções
criminosas e usar por isso todos os meios de a repelir – pelas eleições
ao princípio, pelos tiros depois. Tentou-se primeiro a eleição:
a intriga falhou: a entidade temida, a França republicana, voltou mais
ameaçadora e mais forte. Que resta portanto? Tentar o tiro. E vamos
ter tiros, verão.

Aqui ninguém duvida que o marechal vai obter uma segunda dissolução;
a câmara dos deputados é natural recusar-se a obedecer, e constitui-se
em convenção: o marechal manda contra a câmara alguns
regimentos: que fará então o povo? Que farão então
os soldados? Esta última questão é grave: qual será
a atitude do exército? Terá a obediência passiva e estúpida
dos primeiros tempos do império – ou mais educado, mais saido
do seio do povo, tendo simpatias republicanas, recusar-se-á a tentar
a destruição da república? Esta é a questão:
todas as tentativas de compromisso são efémeras: são
episódios: o fundo da discussão é este – a França
republicana quer que o marechal saia e o marechal não quer sair.

Não quer sair porque se acha bem: a marechala quer fazer aos reis
e aos príncipes as honras da Exposição: os padres que
o cercam não querem que o triunfo da república inaugure uma
política antipapal; o visconde de Harcourt, alma danada (ao que dizem)
desta intriga, não quer perder os salões do Eliseu, onde triunfa
e onde é leão; o duque de Broglie não quer abdicar da
sua influência, oculta ou clara, no Governo da França: ninguém
quer sair, todos se acham confortáveis no poder. E, como não
podem coabitar com a república, hão-de fazer tudo para que a
república saia. Para isso contam com uma espingarda: resta saber se
a espingarda lhes rebentará nas mãos.

Os negócios da Turquia vão mal. Os generais a que o sultão
concedera o título sonoro de Vitoriosos – começam regularmente
a ser vencidos. Muktar Paxá, na Ásia, viu o seu exército
destruído; e Osman Paxá, na Europa, teve de entregar Plevna,
render-se sem condições, depois de uma luta heróica em
que ele foi gravemente ferido. Faltam detalhes deste desastre, mas as suas
consequências são terríveis: os Russos podem agora arremessar
contra Suleiman, ou contra Mehemet-Ali, o grosso dos exércitos que
cercavam Plevna. E aqueles generais acham-se diante dos números superiores
de tropas exaltadas pela vitória, com boas comunicações
asseguradas, e tendo ganho, numa campanha de cinco ou seis meses, uma experiência
militar onde os erros se tornam mais raros. Plevna fez, no entanto, uma defesa
admirável: parece que (ao contrário do que diziam os jornais
amigos da Turquia, afirmando que as provisões abundavam dentro da cidade)
o exército de Osman Paxá morria de fome: o primeiro grito dos
soldados rendidos foi pedir pão! Compreende-se que Osman Paxá
quisesse fazer uma surtida desesperada: e colhido pela frente e pela retaguarda,
sucumbisse numa luta desigual. Quase cem mil homens cercavam Plevna: os reforços
aglomerados ultimamente elevavam este número a cento e cinquenta mil.
Osman Paxá não devia ter mais do que trinta e cinco a quarenta
mil soldados, que as privações, a fome, o desalento, tornavam
de pouco uso perante forças bem providas. Agora o caminho para Andrinopla
está aberto, ou, pelo menos, os exércitos turcos em campanha
não são bastante fortes para se oporem ao grosso do exército
russo, logo que ele tenha esse objectivo. Andrinopla pode oferecer uma resistência
prolongada: mas os Russos não se demorariam nas operações
difíceis de um cerco de Inverno, nem quereriam renovar os assaltos
mortíferos que dizimaram as suas forças nas primeiras tentativas
contra Plevna: e, portanto, o mais natural é que deixem diante de Andrinopla
uma força de observação, que torneiem a cidade e se dirijam
a Constantinopla. E aí é que começa uma nova fase da
guerra: ou campanha diplomática, ou conflito geral, ou então,
a paz! É agora que se vai ver quais são as verdadeiras intenções
da Rússia. Se fez a guerra com um fim puramente cristão e libertador,
está já, pelas vitórias ganhas, no direito de propor
a paz, impondo à Turquia condições que garantam a felicidade
das populações eslavas: se porém a virem avançar
para Constantinopla, então ela descobre a garra conquistadora, e resta
saber o que dirão a Inglaterra e a Áustria.

O acontecimento mais notável da última quinzena, em Londres,
foi o casamento do duque de Norfolk, o primeiro fidalgo de Inglaterra, conde-marechal
do reino, chefe do partido católico.

Toda a alta aristocracia papista assistiu à cerimónia, que
foi celebrada na capela dos padres do Oratório, em Brompton, com um
esplendor romano. A noiva é Lady Flora Hastings, filha da condessa
de London, novamente convertida ao catolicismo; os presentes que recebeu são
de uma prodigalidade e de um luxo incomparáveis: entre a profusão
de jóias, colares de diamantes, colecções de rubis sem
igual, adereços de safiras que levaram anos a coleccionar, montes de
pérolas inigualáveis, apareceram dois presentes notáveis:
um é uma relíquia de um santo, 5. Tomás de Aquino, creio
eu; outro é um colar de diamantes e rubis que pertencia a Maria Stuart,
e que entrará por herança nas jóias da Casa de Norfolk.
A rainha que, nestes casamentos aristocráticos, faz, segundo a antiga
tradição, um presente à noiva, desta vez absteve-se.
Daqui, grande escândalo. Ordinariamente o presente da rainha é
um rico xaile de caxemira: e são tantos os que distribui que parece
que em Windsor ou no Palácio de S. James deve haver armazéns
subterrâneos atulhados daquele vistoso artigo. Os jornais alegres perguntam
todos, com grandes facécias, porque é que no casamento do primeiro
nobre de Inglaterra, de um parente de reis, que na corte tem lugar antes dos
príncipes, sua majestade não deu ao menos o xaile. Que dê
o xaile! Que não se fique com o xaile! – grita a imprensa satírica.
Porque é um erro continental supor que a rainha de Inglaterra é
cercada de uma tal veneração que a pilhéria não
se atreva a transpor as portas do paço. Não: a rainha, como
outra qualquer mortal, é (quando isso é justo) criticada, epigramatizada
e caricaturada; e nesta ocasião a ocorrência do xaile tem sido
objecto da muito grossa jovialidade saxónia.

A verdade é que a rainha ofendeu todo o partido católico;
diz-se que a razão da sua abstenção foi o ser Lady Flora
uma nova convertida e o detestar a rainha as novas convertidas. Admite as
antigas famílias católicas, mas as conversões recentes
são-lhe particularmente antipáticas.

Uma condessa muito ilustre e ainda mais bonita, casada com um católico,
mostrava tendência ultimamente de «passar para Roma», como
aqui se diz. A rainha, na última recepção, chamoua e
disse-lhe simplesmente: – Não há nada pior para uma senhora
que abandonar a religião de seus pais.

Foi o bastante: a pobre condessa perdeu toda a veleidade de beijar a chinela
do papa; ficou-se no protestantismo por ordem superior. Acho este caso delicioso.
Uma devota – morrendo do desejo de ouvir uma boa missa cantada ou de
seguir o mês de Maria – é obrigada a contentar-se com a
seca leitura da Bíblia para não desagradarás reais pessoas.

A propósito da religião, ouço dizer, mas não
o garanto, que o príncipe Leopoldo, o filho mais novo da rainha, se
vai fazer padre. Este moço, de uma natureza e de um temperamento diferente
dos irmãos, letrado, um pouco poeta, místico e extremamente
doente – daria talvez, nos tempos passados, um daqueles príncipes
que edificavam um mosteiro e, na falta de um reino temporal, ali ficavam governando
um pequeno povo de monges, escreviam um tratado sobre um meio de expurgar
o Demónio e obtinham, pela sua parentela real, uma canonização
em Roma.

As façanhas da força muscular repetem-se sob as formas mais
inesperadas; depois dos sujeitos que nadam vinte léguas em doze horas;
depois dos indivíduos que caminham em volta de um circo quinhentas
milhas em três dias, temos agora um novo herói: o homem que valsa
seis horas consecutivas. Este maganão é débil, esguio,
alourado, frisado, com uns olhinhos vivos, ademanes nervosos e uma voz de
grilo. Das seis da tarde à meia-noite, valsa, valsa, valsa, sem respirar
mais alto, sem suar, sem se lhe desmanchar o frisado, cansando vinte, trinta,
quarenta pares e bebendo, sempre a valsar, caldos pelo bico de um bule. É
sublime e odioso. Na primeira hora, o espectáculo é trivial
e pouco elegante porque o homem valsa pior que qualquer dançarino;
na segunda hora, o facto começa a surpreender; na terceira hora, principia-se
a achar extraordinário e não se vêem pelos cantos da sala,
senão mulheres extenuadas que o maganão esfalfou, valsando,
valsando; na quarta hora, o caso torna-se fenomenal, a cabeça anda
à roda; na quinta hora, começa-se a ter ódio àquela
personagem, que, com um sorriso ameno, gira, torneia, perpassa, delira, sempre
à roda, sempre à roda; na sexta hora, a gente começa
a ter vontade de matar o mariola: felizmente há policias; mas a impressão
é terrível, e vem-se para a rua meio louco, sentindo as casas,
os candeeiros, as carruagens, valsar, valsar com um sorriso doce e cabelos
frisados. E um espectáculo medonho! Agora uma notícia triste:
o nosso amigo Pongo morreu, o ilustre gorilha. Foram chamados os médicos
mais ilustres, mas os seus dias estavam contados pelas Parcas que se ocupam
dos macacos.

Pensou-se ao princípio que o clima, a nostalgia, ou talvez o tédio
o teriam morto; mas os anatomistas, que o abriram para o estudarem, mostraram
que o mal que o destruiu tinha uma causa bem mais natural num macaco: dentro
do estômago do ilustre Pongo acharam-se pregos, um pequeno canivete,
rolhas, uma luneta, uma luva, um cabo de guarda-sol e outras curiosidades.
Este avô da raça humana não tinha da escolha dos seus
alimentos nem mais discernimento nem mais dignidade que um qualquer reles
macaco de meia moeda o casal.

Grande desilusão!

X – Londres, 21 de Dezembro de 1877

Londres foi ontem à noite agitada pelo espantoso boato de que a Inglaterra
tinha comprado o Egipto!!! Nos teatros, nas ruas, nos clubes, nos restaurantes,
dizia-se com uma satisfação um pouco estonteada: – Comprámos
o Egipto! Demos um ror de milhões pelo Egipto! Eu soube a notícia
por um amigo meu, que à uma hora da noite se precipitou na minha sala;
esguedelhado, com o laço da gravata branca para as costas, soprando
como um monstro dos mares, atirou-se para uma poltrona ao pé do fogão
e exclamou com palavras ofegantes: – Acabou-se! Está terminada
a crise! Acabámos agora mesmo de comprar o Egipto!…

Eu levantei a cabeça do meu trabalho e, dominando uma comoção
violenta, perguntei com tranquilidade: – Por quanto? – Centenas
de milhões. Um negócio óptimo. A questão do Oriente
está acabada: agora que espatifem à vontade o Império
Turco. Nós temos o que precisávamos – o Egipto e o canal
de Suez! Constantinopla não nos serve para nada! E sem derramar uma
gota de sangue! Derramando, sim, ondas de ouro! Mas pouh!… O ouro sobra.
Além disso, o rendimento do Egipto em três ou quatro anos dá
quinze por cento do capital empregado! E que golpe para a Rússia! Com
o dinheiro que recebe, a Turquia paga a sua dívida, ganha crédito,
equipa exércitos, continua a guerra e faz repassar o Danúbio
aos Russos – a pontapés! Grande homem Lord Beaconsfield! Hem!?
Confesso francamente que dormi mal. Comprar o Egipto! O quê! A grande
e bela terra dos faraós, dos Ptolomeus, dos sultões, de As Mil
e Uma Noites; o Egipto de Sesóstris, de Cleópatra, e de Harun
Al-Raschid; a terra monumental e hierática, o país do Nilo,
das Pirâmides e dos templos maravilhosos; o vale onde está Tebas
de cem portas e o Cairo de cem mesquitas; o terreno fecundo e inesgotável
que alimentou o Império Romano; este país prodigioso onde a
história é mais maravilhosa que a legenda, o quê! Esta
nação-avó, mais antiga que Jeová, comprada, vilmente
comprada como um chapéu do Roxo, ou um quarteirão de pêras
da tia Vicência! É possível isto? Um sujeito de suíças
e de polainas, chegando a Constantinopla e, depois de um olhar de conhecedor
e de uma tossezinha de decisão, dizer sossegadamente, apontando para
o Egipto: – Isto: quanto? – Tanto. – Bem. Embrulhe e mande
a casa! Hão-de concordar que é forte. Que conquistassem, vá,
que lhe dessem a honra de o invadir, de o assolar, de o acorrentar, compreende-se:
é da tradição: o Egipto tem passado a sua existência
a ser invadido: quem o quer, dá-lhe ao menos a satisfação
de lutar por ele; mas comprá-lo! Dar por ele – não sangue,
mas notas do Banco de Inglaterra! Chamá-lo a si e entregar um recibo…
E verdadeiramente uma ideia de merceeiro! Mas que tem a sua grandeza, concordemos:
uma transacção desta ordem eleva a compra e venda à altura
da epopeia: e um balcão sobre o qual se regateiam destes negócios
é tão poético como o campo de batalha de Tróia.

Hoje, porém, averigua-se que o boato era prematuro: alguns ainda
insistem que se comprou, sim – não o Egipto, mas a ilha de Creta:
a verdade, porém, é que as decisões do Governo, se estão
já expressas em facto são ainda secretas – e eu apenas
conto este incidente para dar a medida da excitação que existe
em Londres.

Este excitement foi produzido pela convocação extraordinária
do parlamento: os rumores mais fantásticos circularam logo, e os consolidados
desceram três quartos por cento, o que, diga-se de passagem, custa aos
possuidores de títulos a pequena soma de cinco milhões de libras
esterlinas. A primeira ideia foi que o Governo ia declarar a guerra à
Rússia e que reunia o parlamento para lhe pedir a aprovação
constitucional desta aventura dramática: mas semelhante suposição
era absurda: o Governo não pode senão expor às câmaras
a gravidade da situação, apresentar a sua opinião, ver
se o parlamento a aprova e perguntar-lhe se não seria conveniente colocar
o exército e a armada à altura da crise. Em todo o caso as câmaras
do comércio estão-se já apresentando ao Governo em favor
de uma política pacífica e neutra, e nas principais cidades
celebram-se meetings para lembrar a Lord Beaconsfield que o contribuinte inglês
não tem a mínima intenção de pagar um xelim a
mais para que o grão-turco continue a divertir-se nos langorosos ócios
do serralho! Eu julgo que o país faz bem e exprimiu com tempo e com
firmeza o seu desejo de paz, porque, abandonando-se às suas próprias
inspirações e aspirações, Lord Beaconsfield declararia
a guerra amanhã: o seu ódio à Rússia e à
raça eslava só é igualado pela sua paixão pela
raça semítica e pelas nações arábicas:
ama, além disso, na política, o elemento dramático e
brilhante: tem o temperamento batalhador e militante que ele outrora atribuiu
ao seu herói Tancredo: tem-se colocado como um antagonista histórico
do czar, o que lisonjeia o seu orgulho de judeu e de plebeu: além disso,
sendo um perfeito cortesão, desejaria dar à rainha Vitória
o presente que mais a encantaria – uma guerra em favor da Turquia. Porque
a pessoa que no reino é mais anti-russa, mais pró-turca, mais
fanática da política tradicional, da aliança otomana,
mais zelosa dos chamados interesses britânicos e mais pronta à
guerra, é a rainha.

E tem-no mostrado ultimamente de um modo tão saliente que causa alguma
surpresa e muita tristeza aos que estão acostumados a vê-la observar,
religiosamente, as regras mais exactas da abstenção constitucional.
Em primeiro lugar a rainha publicou ultimamente um «panfleto contra
a Rússia»: e eu me explico: o Sr. Theodore Martin está
imprimindo uma biografia do príncipe Alberto, cujos elementos e documentos
são fornecidos pela rainha: a rainha é, de facto, a colaboradora
essencial deste trabalho: há páginas que estão tão
profundamente impregnadas das suas opiniões, das suas simpatias, direi
mesmo das suas afeições, que parece que o nome de Theodore Martin
é apenas um pseudónimo literário sob o qual se oculta
a rainha Vitória: ora justamente o terceiro tomo desta biografia acaba
de ser publicado, e refere-se ao período da vida do príncipe
no tempo da Guerra da Crimeia: as cartas do príncipe transcritas, os
seus discursos, as suas opiniões, a reprodução das suas
conversações, sobretudo a história da sua influência
na política inglesa desse tempo, mostram que ele tinha a maior simpatia
pela guerra contra a Rússia e que concorreu poderosamente para a sua
realização: o volume inteiro é a apologia prolongada
desta simpatia, e a rainha, por intermédio do Sr. Martin, revestindo-se
das opiniões do seu marido, e fazendo, neste momento, a sua glorificação,
dá claramente ao país a expressão das suas opiniões
pessoais. Diz-se mesmo que, depois de um dos últimos conselhos de ministros,
em que Lord Derby e Lord Salisbury tinham energicamente advogado uma política
de abstenção, a rainha disse a Lord Beaconsfield, dando-lhe
este terceiro volume da Vida do Príncipe Alberto: – Peça
aos seus colegas que desejam a paz que leiam este livro: têm muito que
aprender aqui. De facto o volume é um ataque terrível contra
a Rússia, contra a falsidade tortuosa da sua política, a instabilidade
desonesta das suas promessas e a intensidade das suas ambições.

Mas a maior demonstração da rainha em favor da guerra, foi
a sua recente visita a Lord Beaconsfield: não uma visita particular,
mas oficial, em cerimónia, como rainha de Inglaterra e imperatriz das
Índias. Semelhante honra é tão extraordinária,
tão contrária aos hábitos da corte e aos costumes da
rainha, que, ao saber tal, todo o reino ficou mudo de espanto. O imperador
do Brasil, o imperador da Rússia, a imperatriz da Áustria, todos
os príncipes herdeiros e todas as coroas europeias têm vindo
a Inglaterra, e a rainha nunca lhes fez uma visita: é inútil
dizer que nunca a fez a um lorde de Inglaterra nem a nenhum dos seus primeiros-ministros,
nem mesmo a Lord Granville, por quem ela tem a maior simpatia pessoal. Portanto,
a sua cerimoniosa jornada a Hughender Manor, propriedade e residência
castelã de Lord Beaconsfield, deu origem às interpretações
mais fantásticas e aos boatos mais insensatos; mas a verdade é
(e todas as pessoas razoáveis o compreendem) que a rainha, fazendo
uma tal honra ao ministro que mais advoga a guerra, quis manifestar que lhe
dava todo o seu apoio e que estava com ele na mais perfeita comunidade de
vistas e talvez de decisões. Mas que importa toda esta manobra de ministros
e da rainha se a Inglaterra quer o contrário? E quando o forte John
Bull exprimir resolutamente a sua vontade, os altos personagens do ministério
e da corte têm de obedecer como os bois obedecem ao carreiro.

Da guerra não há senão notícias mais ou menos
incertas: assim não creio que se deva dar muito crédito ao espantoso
boato de que Suleiman Paxá apareceu inesperadamente em Constantinopla
à testa de dez mil homens, para fazer uma revolução,
derrubar o Governo, exonerar o sultão e criar uma ditadura militar
sob o nome do ex-sultão Murad, destinada a continuar a guerra até
à última extremidade. Suleiman Paxá, é certo,
pertence ao partido fanático, é uma espécie de general
softa, inimigo das reformas europeias, ciumento das velhas tradições
otomanas, hostil ao estrangeiro e à sua influencia: mas, por isso mesmo,
creio, bastante patriota para não querer complicar a guerra estrangeira
com uma revolta interior, e pôr à testa do Governo homens de
quem a Europa desconfia, neste momento em que o seu país mais precisa
a benevolência e a confiança da Europa.

E o mais crível é que a ele fosse a Constantinopla organizar
um exército que defenda o caminho para a capital no caso que Andrinopla
fosse tomada ou torneada.

Tudo isto indica que a paz ainda vem longe: a Rússia, exaltada com
as suas últimas vitórias, sentindo-se fortemente apoiada pela
Alemanha e tendo todas as razões para se julgar apoiada pela Áustria,
alarga as suas pretensões, e quase não oculta que planeia a
desmembração do Império Otomano; a Turquia, pelo seu
lado, exasperada pela humilhação das derrotas, tendo adquirido
com as primeiras vitórias uma extrema confiança em si mesma,
animada pela atitude activa da Inglaterra, pressentindo a proximidade de uma
intervenção em seu favor, objecta, mais que nunca, a meter a
espada na bainha: e os sofrimentos na Bulgária e na Ásia, agora
que as inclemências se vêm juntar aos desastres da guerra, ameaçam
protrair-se indefinidamente. E, para haver mais uma acha na fogueira, a Sérvia
acaba de lançar o seu exército de aventura sobre a Turquia meio
vencida. O procedimento do príncipe Milan e do Governo sérvio
é aqui julgado (mesmo pelos inimigos da Turquia) com uma severidade
em que há mais desprezo que indignação. Alguns jornais
mesmo afectam não tocar no assunto, como muito vil para uma pena honesta.
Com efeito, a Sérvia tem-se comportado pulhamente: batida pela Turquia,
quase sem esforço, tratada de covarde pelo imperador da Rússia
no célebre discurso de Moscovo, aceita com reconhecimento uma paz que
as nações mendigaram para ela, e obriga-se por um tratado a
conservar-se neutral, forem quais forem as ocorrências: a Rússia
declara a guerra, e no primeiro momento parece levar de vencida os exércitos
otomanos; a Sérvia logo, com a cobardia de quem é forte para
com homem derrubado, tira metade da espada fora da bainha; mas as coisas mudam,
e é a Turquia que sobre toda a linha ganha vitórias decisivas;
imediatamente a Sérvia esconde a espada e dá parabéns
cortesãos ao sultão. Os Turcos são de novo batidos na
Arménia e no Danúbio, e eis a Sérvia a menear-se num
repentino impulso guerreiro; Plevna cai, e a Sérvia une-se ao imperador,
que a tratou publicamente de covarde, e contra todas as leis da honra e todos
os deveres da coragem vai dar na Turquia o coice do asno! Não me espanto
de que o Daily Telegraph trate o príncipe Milan de biltrezito! Estamos
em férias do Natal; é esta a época das festas de família,
do plum-pudding e de uma praga de versos, de publicações, de
baladas, de contos alegóricos, de cromos-litografias, celebrando o
velho ano, o bom Christmas, o ano novo e as doçuras do lar! O Natal
dá lugar a uma singular espécie de literatura, que é
para as letras o que o plum-pudding é para a confeitaria – um
produto pesado e indigesto que todo o mundo gosta de ver sobre a mesa, em
que ninguém toca e que a gente grande estima pela alegria que dá
às crianças. E sobretudo para as crianças que são
escritas estas poesias piegas e estas histórias de fantasmas, desenhadas
estas vistas convencionais da neve e estas figuras grotescas da caridade.
Os jornais ou revistas, todas as publicações, põem de
parte o bom senso, a ciência ou a arte e dedicam um número a
estas criancices, que se chama o «número de Natal», e que,
pela venda prodigiosa que tem, constitui um dos rendimentos das publicações
inglesas. Os teatros fazem o mesmo: e todos, sem excepção, representam
nesta época a pantomima, espécie de mágica desordenada,
cheia de transformação, de bailados e de glórias, onde
aparecem simultaneamente actores, palhaços, cães sábios,
virtuosos ilustres, feras, dançarmos célebres, habitantes de
países exóticos (lapónios ou patagónios), macacos,
esquadrões de cavalaria e cascatas naturais! Estas representações
duram três meses, e toda a família verdadeiramente inglesa e
que respeita as tradições vai ver a pantomima pelo menos três
vezes, com todas as crianças e todos os criados: é uma solenidade
doméstica.

De resto o tempo tem estado esplêndido, em toda a Inglaterra; neve
e sol: de noite a neve cai para dar a sua beleza especial aos campos e às
cidades; de dia o sol vem para iluminar a neve e fazer o ar alegre. Já
se patina, porque toda a água parada está gelada. Temos tido
oito a dez graus abaixo de zero (centígrados).

Depois do Natal começa a emigração da gente rica para
o Sul. O lugar favorito é a formosa ilha de Wight, onde há bosques
de camélias e erra no ar de Inverno uma perpétua reminiscência
da Primavera. A propósito da ilha de Wight, um amigo meu que de lá
veio contame uma deliciosa anedota sobre o ilustre Tennyson, o maior poeta
de Inglaterra e do seu tempo, talvez.

Tennyson vive na ilha de Wight, no seu delicioso retiro cheio de flores
e de pássaros: está velho agora, e a sua qualidade característica,
que foi sempre a modéstia, tem tomado sempre com os anos uma intensidade
exagerada: não há nada que o sublime poeta de Locksley Hall,
de Mand e dos Idílios de El-Rei deteste mais do que ver um curioso
contemplá-lo. Tennyson é pessoalmente uma figura poética,
e os seus longos cabelos brancos, em anéis, a sua comprida barba nevada
e a extraordinária doçura dos seus olhos exercem um encanto
e provocam um respeito enternecedor em quem pela primeira vez o encontra.
E portanto, natural que a sua celebridade, o fanatismo que os Ingleses, e
sobretudo as inglesas, têm por ele, a beleza da sua pessoa, o exponham
a ser muitas vezes objecto da curiosidade e de uma admiração
impertinente. O que faz, pois, Tennyson quando passeia nos deliciosos caminhos
da ilha de Wight? Que imaginam que faz? Traz um grande lenço na mão
e, apenas sente passos, atira-o para cima do chapéu e cobre cuidadosamente
o rosto! Um inglês é sempre excêntrico, mesmo quando é
sublime.

XI Londres, 10 de Janeiro de 1878

Onde estão os tempos saudosos, em que cada telegrama nos trazia uma
vitória turca? Onde estão esses dias em que os correspondentes
nos pintavam as cargas irresistíveis da infantaria otomana, atroando
os céus com o grito de «Alá! Alá!» e pulverizando
divisões russas? Onde estão os Vitoriosos e os ghazis? Onde
estão as lágrimas do imperador da Rússia choradas nas
noites da derrota? Onde estão as horas alegres em que um coração
liberal se regozijava, pensando que o czar e o seu Governo autoritário,
despótico, teocrático, semibárbaro, humilhado pelas derrotas
na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma
revolução niilista? Ai, tudo nos passou! Hoje o que se nos diz
cada dia é que mais uma fortaleza turca foi tomada, mais um regimento
aprisionado, mais um passe dos Balcãs atravessado, mais uma enxada
cavada na sepultura da Turquia. O czar não só não é
destronado, mas é recebido em Sampetersburgo com um fanatismo tão
alucinado que pessoas deixam-se atropelar para se poderem prostrar, beijar-lhes
as botas, tocar com a ponta dos dedos na bainha da sua espada santa! E são
os ministros do sultão que dizem ao novo parlamento em Constantinopla:
«Estamos perdidos, rendamo-nos!» É doloroso ver que esta
guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um governo
inimigo de toda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça
se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia,
que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que
liberta os servos para melhor os poder explorar pelos impostos, que condena
um romancista ou um poeta a prisão perpétua se o seu poema ou
a sua novela desagradam à polícia, que expulsa o estrangeiro
suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema
de governo a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres
cujos maridos não convêm, que exila os maridos cujas mulheres
convêm e que civiliza as raças de civilização inferior
– destruindo-as. Eu não tenho certamente nenhuma simpatia pelo
sultão: uma tão rica porção de território
europeu, como a Turquia, nas mãos de uma raça preguiçosa
e asiaticamente passiva é certamente uma perda para a civilização,
é uma esterilização de força produtiva; mas se
o golpe ao Urso Branco, ao campeão da tirania, pudesse vir da Turquia,
hurra pela Turquia!, hurra pelo china ou pelo mongol!, hurra por qualquer
povo negro ou nu que pudesse libertar a Rússia, a Europa, a liberdade
e o pensamento desta tenebrosa entidade, o Governo do czar! Infelizmente não
nos é dada essa doce consolação. E, todavia, é
neste momento ou nunca que a Rússia corre um perigo. O armistício
com a Turquia está assinado, parece. O czar deve agora apresentar,
necessariamente, as suas condições de paz e revelar a extensão
das pretensões: se elas forem tais que prejudiquem os interesses britânicos,
o Governo de Lord Beaconsfield está ligado, pelas suas declarações
e pela sua honra, a fazer a guerra. E este o momento crítico. A Inglaterra
há meses que diz: «Esperemos, até ver o que a Rússia
quer.» A Rússia tem nestas semanas últimas de dizer o
que quer. E a Inglaterra de dizer o que faz.

É evidente que uma coisa é o Governo de Inglaterra e outra
coisa é a Inglaterra: que a rainha e Lord Beaconsfield desejam a guerra,
pelas suas inclinações pessoais, é certo; mas estes bons
desejos dos elementos decorativos da constituição não
bastam; é necessário que a grande massa, o contribuinte, o eleitor
se queiram bater – e é neste elemento dominante que eu vejo uma
antipatia muito decidida por qualquer acção militar. O Partido
Conservador, em Inglaterra, vive num estado de irritabilidade acerca de política
estrangeira; é, de natureza, bélico e fanfarrão: conserva
o antigo ideal da canção: «Britânia governando as
ondas e árbitra das nações.» Que em qualquer ponto
da Europa haja um tiro, e os conservadores ingleses querem logo mandar lá
a frota, a vasta frota! Foram eles que fizeram a Guerra da Crimeia: foram
eles que gritaram que a Inglaterra devia intervir, pelo Sul, na guerra da
América. Fora eles que declararam que a nação estava
para sempre desonrada por não ter tirado a espada em favor da França.
Se a nação os tivesse escutado, tê-la-iam lançado
nas aventuras mais desastrosas.

Desde o começo desta complicação do Oriente têm
estado constantemente a levar a mão aos copos da espada, de testa franzida
para a Rússia: e foram em parte estes actos de arreganho que provocaram
a guerra; e se o Governo não tivesse recusado aceitar o memorando de
Berlim, a Turquia não se teria mostrado tão resistente nas conferências
de Constantinopla; se o Governo não tivesse mandado a esquadra à
baia de Besika, a Turquia, que se julgou logo apoiada, não teria sido
tão intratável. E agora, que a guerra está finda, põe
outra vez a mão na espada a propósito das condições
de paz. Resta saber se o país lhe não tirará a espada
da mão. Até aqui parece muito resolvido a isso; pelo menos,
a julgar pelas petições, protestos, meetings. representações,
a maioria liberal da nação quer trabalhar e não guerrear;
e firmemente declaram – que nenhuma condição de paz, «nenhuma
exigência russa põe em perigo os interesses da Inglaterra, nem
mesmo a posse de Constantinopla». E aqui está o argumento: os
que querem a guerra dizem que se a Rússia for a Constantinopla, primeiro,
põe em perigo a supremacia da marinha inglesa no Mediterrâneo;
segundo, abala o prestígio inglês na Índia; terceiro,
tornando-se uma forte potência, pode arrancar à Inglaterra o
uso do canal de Suez e do seu caminho para a Índia. E, dizem os partidários
da paz, nós respondemos a isto: primeiro, que a marinha inglesa é
mais forte que todas as marinhas do mundo juntas, e que os Russos não
têm nem dinheiro, nem os construtores para criar uma frota que tenha
a décima quinta parte da força da nossa, nem num século;
segundo, que os hindus não nos amam nem nos desamam pela maior ou menor
protecção que nós damos aos seus correligionários
maometanos na Europa; e a prova é que, meses depois de nós nos
termos batido pelos maometanos da Europa, na Crimeia, os maometanos da Índia
mostraram-nos a sua indelével gratidão, fazendo contra nós
a mais formidável insurreição dos tempos modernos!; terceiro,
que a Rússia, em Constantinopla, tornar-se-ia a mais fraca das potências
ocidentais: cercada do ódio da Áustria, da rivalidade da Alemanha
e da nossa contínua vigilância, a sua posição seria
de um perigo permanente, obrigando-a a armamentos ruinosos, a um estado de
incerteza fatal ao seu comércio. E bastaria uma frota nas alturas de
Creta para a manter num estado de inacção impotente.

Há muita verdade nesta argumentação do partido da paz,
e é esta a argumentação em que se baseiam as representações
dos meetings. Mas são estes meetings a expressão exacta do pensamento
do país? Eu tive ocasião de assistir ao grande meeting de Newcastle.
Ë verdade que era em favor da guerra. Mas não é das suas
resoluções que eu quero contar, é da sua atitude. Havia
todas as condições de seriedade: estavam três a quatro
mil pessoas; era na sala monstro dos Paços do Concelho; falava o deputado
Hammond, homem estimado. E aqui está o que se passou.

Durante um quarto de hora Hammond falou, entre aplausos dos conservadores
e assobios dos radicais. Mas, nas palmas ou nos apupos, havia como uma indiferença
distraída. As suas imagens mais preparadas, os adjectivos mais sonoros,
não conseguiam encadear a atenção; e eu notei que parte
da sua vasta audiência se voltava repetidamente para o fundo da sala,
onde se eleva uma galeria em anfiteatro, naquela noite tão escura de
uma multidão espessa. Era evidente que na galeria alguma coisa produzia
aquele frémito de curiosidade. Eu mesmo esqueci o orador que bracejava
na plataforma falando da honra da Inglaterra, e apliquei-me a descobrir o
caso interessante da galeria. Até que achei. Era um homem, um velho,
que estava num dos bancos da frente, imóvel, com uma larga face barbada
e risonha. E verifiquei que o que produzia impressão era uma coisa
que ele tinha na cabeça; evidentemente o público, como eu, desejava
saber o que era, porque, estando a galeria mal alumiada, não era possível,
à distância, apreciar-se: não era um chapéu redondo,
nem um chapéu de bicos, nem um barrete, nem um capuz, nem um turbante,
nem um capacete: o que era então? As risadas convulsivas das pessoas
que na galeria o cercavam picavam mais a minha curiosidade e a de três
mil pessoas que estavam em baixo, na sala. Pouco a pouco, por um movimento
comunicativo, toda a gente se voltara para a galeria, estendendo o pescoço,
aguçando o olhar, erguendo-se em bicos de pés; e o deputado
Hammond não tinha diante de si, para receber os argumentos políticos,
senão nucas e costas. O velho, decerto compreendendo que era o centro
daquela curiosidade lisonjeira, ergueu-se com solenidade. Gritaram-lhe logo
que viesse para os degraus de baixo! A reclamação era engenhosa;
mal ele descesse, a luz de um dos lustres alumiar-lhe-ia a cabeça e
poderíamos enfim saber que estranho objecto Lhe cercava as cãs.
O velho condescendeu e, apenas entrou no foco de luz, uma gargalhada estridente,
ecoante, trovejante, fez oscilar os muros. Tinham visto o que ele tinha na
cabeça, o velho! Era uma coroa de louros! Porquê? Era um bardo?
Era o Tasso? Era o nosso Camões? Quem o coroara? Que batalha ganhara?
Que epopeia compusera? Era um deus marinho? Enfim descobrimos o motivo: o
respeitável ancião estava profundamente bêbado! E, vendo-se
acolhido por uma aclamação tão jovial, não hesitou
e falou! Falou dez minutos: salvas de palmas virgulavam-lhe cada oração;
que triunfo, por Júpiter! O deputado Hammond, na plataforma, lívido,
mascando uma bela imagem que começara a desenrolar, cruzava os braços
com um desespero trágico: o seu olhar dizia claramente: «Povo
vil, nação imunda!» Mas o povo delirava; e eu, aplicando
o ouvido, pude vagamente perceber que o velho aconselhava os seus concidadãos
a que fossem, em massa, à taverna dos Braços de El-Rei, onde
o gim era especialmente bom e as raparigas que o serviam singularmente rechonchudas;
aconselhava-o com exaltação, com a fé de um missionário;
e, coroado de louro sorria, o bom velho! Hammond não se conteve, invocou
a polícia. Mas então o verás! O público, num frenesi,
assobiou a polícia. O quê? Levar, expulsar um homem que tinha
verdades tão proveitosas a revelar aos seus compatriotas? Não!
E o velho debatia-se entre dois polícias, surpreendido, mostrando as
suas cãs, a sua inocência e a sua coroa de louros. A polícia
não o expulsou, mas fê-lo sentar. O deputado recomeçou.
Mas ai! Quem o escutava? Todos os olhos, todos os corações,
são para o bom velho que, sentado no mais alto degrau da galeria, como
na glória de um trono, ostentava a sua face honesta e pacífica,
com um bom sorriso jovial, coroado de louros, profundamente bêbado.

O meeting dispersou, sem se tomar nenhuma resolução: e creio
que a maioria foi aos Braços de El-Rei verificar a qualidade do gim
e as formas das serventes.

A Inglaterra é uma grande nação. Longe de mim apresentar
este meeting como o tipo clássico dos meetings ingleses. Não.
Conto apenas o que me parece ser um caso divertido.

Chega-me neste momento uma triste notícia. Vítor Manuel morreu:
ainda ontem o seu antigo ministro, velho amigo e camarada de armas, o cavalheiresco
general de La Marmora era enterrado – já hoje desaparece ele,
o rei galantuomo, uma das personalidades mais interessantes da política
moderna. Perde-se assim um grande patriota; porque o traço eficiente
do seu carácter foi este: amar a sua pátria; não a sua
pequena pátria, a Sabóia, mas a sua grande pátria, a
Itália.

A sua biografia é ao mesmo tempo a crónica da Itália
unida. No fim da batalha de Novara, Vítor Manuel, então moço,
que se batera heroicamente, retirava-se do campo desastroso –quando
de repente, estacando o cavalo e brandindo a espada para o lado onde se acendiam
os fogos do acampamento austríaco, exclamou: – Per Dio! L’Italia
se farà! E toda a sua vida foi passada a fazer a Itália. Foi
este o seu pensamento central; a ele sacrificou tudo; inclinações
pessoais, repugnâncias de educação, devoções
secretas, até orgulhos de família; decerto lhe custou a ele,
educado por padres e amigo de Pio IX, católico fervente no fundo, causar
tanta amargura ao chefe da Igreja; decerto lhe doeu a ele, de uma raça
tão altiva, ceder à França a Sabóia, berço
da sua raça; decerto lhe foi amargo o dia em que teve de dar sua filha
Clotilde ao príncipe Napoleão, ateu, de uma família de
aventureiros, quase velho, de costumes tão livres. Mas a Itália
exigia um sacrifício. Decerto havia nele muita ambição.
A família de Sabóia é orgulhosa, e ele não seria
homem se lhe não fizesse bater o coração a ideia de reinar
na Itália unida, e de deixar o trono, que foi de césares e de
papas, à sua raça; mas se esse orgulho concorreu para fazer
uma grande nação livre, que esse orgulho seja bendito! Pessoalmente
era o tipo do fidalgo: nobre, fiel à sua palavra, bravo, de hábitos
sóbrios; caçar o chamois, comer a pulenta, viver nos montes,
bastava-lhe; nos jantares oficiais conversava sem tocar nos pratos, com as
mãos apoiadas aos copos da espada; era um conversador fino, vivo, rápido,
sobretudo quando falava no seu querido dialecto piemontês. Em campanha
gostava de dormir ao relento, embrulhado numa capa. Amava o cavalo como um
cavaleiro andante.

Depois da batalha de Novara, quando o despótico general Radeztky
veio combinar à sua tenda as condições do armistício,
Vítor Manuel não quis tratar sem que lhe fosse restituído
o seu cavalo favorito, que fora perdido na confusão da retirada. Este
traço tem um ar de legenda heróica, que encanta. Eram estes
rasgos que o faziam amado.

Fala-se, com um certo ar repreensivo, dos seus muitos amores; para mim torna-se
simplesmente mais simpático; ele não era um filósofo,
nem um abade, nem um místico: a sua adoração da beleza
faz parte do seu carácter de herói. A fidelidade a uma só
é sentimento belo, mas pertence aos tempos líricos do rei Artur
e da Távola Redonda. Sir Galahad, que tinha um lírio no escudo,
dizia, percorrendo o mundo à busca do Santo Graal: «Eu sou forte,
porque sou virgem.» E uma santa palavra; mas Sir Galahad, a não
ser em verso e interpretado por Tennyson, faz ligeiramente sorrir. E neste
ponto, o rei galantuomo seguia as tradições de seus avós
da Renascença, e não as dos cavaleiros do rei Artur.

Foi uma pleurisia que o matou. Os príncipes de Sabóia vivem
pouco. Em crianças são débeis; depois, subitamente, tomam
um desenvolvimento robusto e declinam depressa. Até ao momento extremo
conservou o espírito lúcido. Minutos antes de expirar, chamou
o príncipe Humberto, apertou-lhe a mão, deu-lhe um olhar de
amor e disse serenamente: «Addio!» O príncipe saiu chorando
desesperadamente, e o rei morria. Tinha comungado. Dois vigários do
Vaticano tinham vindo, com a bênção do papa, levantar
a excomunhão. Pio IX, ao saber que a agonia do rei se aproximava, disse,
muito agitado: – Se não fossem estas pernas, que não querem,
eu mesmo levaria os sacramentos ao rei! É singular que Vítor
Manuel, que vira passar como um sonho toda a velha Itália, tudo o que
se lhe opôs e que o combateu – príncipes despóticos,
grão-duques intriguistas, Bourbons fanáticos, o grande Mazzini,
carbonários e conspiradores, camisas-vermelhas e garibaldinos –
só não sobreviveu ao seu grande adversário: o papa. Esse
aí fica, como uma personificação da velha Itália
sacerdotal e autoritária. E é esse que, depois de tantas lutas
e de tantas injúrias, o ajuda a bem morrer.

Assim vão desaparecendo os grandes italianos da unificação:
Cavour, Ratazzi, Mazzini e Vítor Manuel. Garibaldi resta, mas tão
velho que está mais na história que na vida.

E o velho papa fica, intratável, indomável, perturbando o
mundo mesmo do seu leito de morte, vendo os seus inimigos morrerem um a um,
e tendo a consolação de ver alguns virem, na hora final, pedir-lhe
humildemente a sua bênção. Por isso os católicos
aqui estão radiosos. Mas que importa? Os homens passam, são
a parte decorativa das ideias; e se é Vítor Manuel que morre
e o papa que sobrevive, é todavia o ultramontanismo que expira e a
democracia que fica.

XII – Londres, 26 de Janeiro de 1878

Esta semana tem sido certamente fecunda em episódios históricos
e que pela sua natureza fornecem belas antíteses retóricas:
pompas funerárias em Itália, pompas nupciais em Espanha; o papa,
que materialmente agoniza, o sultão, que agoniza politicamente; intrigas
eclesiásticas e intrigas diplomáticas; isto com algumas guerrazinhas
secundárias, aqui e além, na África e na América,
alimenta com superfluidade a curiosidade europeia. Mas, ainda assim, é
em Londres que se tem concentrado o interesse dramático do momento;
temos vivido aqui numa excitação, um excitement capaz de arruinar
a constituição mais robusta. Sobretudo nestes últimos
três dias cada hora nos traz uma grande sensação; e cada
notícia é um choque eléctrico. Ora é o Governo
que vai pedir para armamentos sessenta milhões de libras! Ora é
a frota inglesa que é mandada a Constantinopla! Ora são trinta
mil homens expedidos para Galípoli! Depois é Lord Derby que
pediu o demissão, por ser oposto à guerra! Em seguida, é
a Inglaterra que, prevendo a partilha do Império Turco, fez desembarcar
cem mil homens no Egipto!… Toda a sorte de boatos fantasistas, de que aproveitam
os jogadores de fundos e as administrações dos jornais. E tudo
isto dá lugar a uma questão feroz, desde que um inglês
encontra outro inglês; porque o país, dominado por impressões,
e portanto indiferente aos raciocínios, está dividido em dois
partidos: os que querem a guerra a todo o preço e os que a todo o preço
querem a paz.

Uns parecem querer tomar como casus belli o simples facto de que o embaixador
russo passeie nas ruas de Londres; os outros parecem quase dispostos a não
se mexer nem mesmo que um exército invasor desembarcasse em Dover!
O Governo, esse, pretende tomar um caminho médio: desejar a paz em
princípio e esforçar-se por a conservar; mas fazer a guerra,
se a Rússia, pelas suas exigências, ferir alguns dos grandes
interesses britânicos. Isto parece, com efeito, o racional: é
uma neutralidade condicional, que vela, armada.

Eu, por mim, desejaria bem que a Rússia ferisse, mas ferisse mortalmente,
algum interesse inglês, para que a Inglaterra fosse obrigada a atirar
um golpe ao Urso Branco. Um dos meus grandes ódios políticos
é a Rússia, não o povo russo, que tem qualidades magníficas,
mas o Governo russo, que não só exerce o despotismo em sua casa
mas que o defende, o auxilia e o promove nas casas alheias. O czar Nicolau,
como seu pai Alexandre, foi, enquanto vivo, o grande paladino do absolutismo
na Europa; em toda a parte em que um movimento de liberdade se manifestava,
ele corria a ajudar a sufocá-lo; todo o trono despótico e tirânico
que uma revolução abalava, tinha-o ao seu lado como defensor
oficial do despotismo.

O actual czar, apesar dos sentimentos humanitários que se lhe atribuem
e de que as suas alocuções transbordam até à pieguice,
herdou esta missão desgraçada; não teve ainda ocasião
de tirar a espada em favor de uma tirania sacudida; mas tem apoiado com a
sua influência, com os seus conselhos, com o seu dinheiro, todas as
tentativas mais ou menos aventureiras que se têm feito contra o livre
espírito da época: foi ele que mais embaraçou e contrariou
o movimento liberal de 68 em Espanha, foi ele que deu o mais alto aplauso
ao ministério Broglie, de ominosa memória; foi dele que D. Carlos,
na sua criminosa guerra civil, recebeu as palavras mais animadoras; o seu
desejo de colocar o conde de Chambord em França, D. Miguel em Portugal,
restabelecer os Bourbons em Nápoles e restituir os ducados de Itália
aos príncipes fanáticos e tiranetes. Isto, reunido à
maneira como a Rússia é governada, tomam-no pouco simpático
a todo o espírito liberal. É claro que não falo aqui
do czar-homem, esse, dizem, é bondoso, compassivo, afável, sensível,
um perfeito gentleman; falo do czarideia, da missão que ele encarna
e da política que representa.

Seria portanto com ganidos de júbilo que os liberais veriam a Inglaterra
dar-lhe um golpe valente; não como no tempo da Crimeira: então
os aliados, atacando e tomando Sebastopol, não fizeram mais do que
fazer cócegas no calcanhar do colosso e limar uma unha do imenso urso;
não, o que se deseja é que o golpe seja ao coração,
bem ao meio do coração.

O czar vencido era a Rússia libertada. O povo russo perdeu a docilidade
de criança dependente: tem visto, tem olhado para fora da fronteira,
sabe que há uma coisa que se chama liberdade, outra que se chama constituição,
uma certa reunião de vontades e de razões que se chama parlamento,
etc., etc. – e tem vontade de provar destes frutos excelentes que crescem
nas terras alheias. Se o povo sofresse duas ou três derrotas providenciais,
perdia todo o respeito, toda a ilusão sobre o seu czar, e ou o obrigava
delicadamente a ir divertir-se para a Itália ou o forçava a
não ser mais que a fórmula simbólica do Governo, de que
ele, povo, será, pelos seus representantes e pelos seus jornais, o
motor real. Por isso, é com mágoa, é com prantos, que
vemos escapar esta ocasião única de ver a Inglaterra, campeã
da liberdade, como diz a canção, desfazer a tiros o Governo
do czar e o seu terrível maquinismo.

Porque lançada a Inglaterra contra a Rússia, o resultado não
era duvidoso. E é triste, é desolante, ver em lugar disto o
czar ganhando batalhas, tomando cidades, arrecadando indemnizações
de guerra, o czar alargando o seu território, o czar crescendo em força,
o czar consolidando-se, o czar amado, o czar vitorioso! Esta inimizade ao
czar não implica, todavia, nenhuma simpatia pelo sultão. O Governo
da Porta é tão detestável como o Governo do Palácio
de Inverno. Talvez mais, mesmo. Decerto a situação dos cristãos
na Bulgária e nas províncias turcas era lamentável; muitos
correspondentes ingleses, pró-turcos, esforçam-se em provar
que os cristãos eram felizes, pouco carregados de impostos, de nenhum
modo violentados nas suas crenças, gozando uma liberdade considerável
de trabalho e possuindo mesmo uma prosperidade relativa. Mas se isto é
assim, porque eram os Russos recebidos por estas populações
com o entusiasmo com que se recebe um salvador? Quando o general Gurko passou
os Balcãs, por cada camponês búlgaro que se reclamava
para puxar, nas passagens das montanhas, as peças de artilharia, apareciam
cem! E os que, por supérfluos, eram excluídos deste serviço
muar, queriam ao menos, por dedicação, ir ao pé da carreta
puxar por uma ponta da corda, tocar a peça libertadora com as suas
próprias mãos, fazer qualquer serviço, mostrar a gratidão
e o reconhecimento do homem salvo.

Quando os Russos entravam em Sófia, em Andrinopla, eram recebidos
com fanatismo: os soldados desapareciam sob as flores arremessadas; os lojistas
ofereciam os seus armazéns de graça. O russo era o Messias muito
esperado. Ora é evidente que se eles (como querem dizer certos correspondentes)
eram tão felizes sob a lei turca não teriam recebido com tanta
paixão quem vinha destruir essa lei. E, pois, de crer que a prosperidade
de que se fala não existiu nunca senão na prosa dos correspondentes,
de envolta com alguma má gramática. Eu não conheço
a Bulgária, nem observei nunca de perto espécime algum da administração
turca; mas estive no Egipto e lembro-me da impressão geral que me ficou
da condição dos felás, pobres cultivadores da terra;
o chino nas Antilhas, o negro nas colónias espanholas, gozam uma verdadeira
felicidade, comparados com o miserável, o acabrunhado, o desgraçado
felá.

Quem observa como eles vivem, como os tratam, sente vagamente um insulto
à natureza humana; não quero dizer que os cristãos da
Bulgária estivessem nas mesmas condições abjectas; mas
a similitude da administração egípcia e turca deve produzir
uma igualdade de vexame. Portanto, honra e glória a quem os fosse libertar!
A Rússia não era talvez o país mais autorizado para o
fazer, ela que trata… como trata os pobres camponeses, antigos servos.

Mas, enfim, foi a Rússia que se dedicou, que apareceu na Bulgária
a sacudir a tirania otomana: bem!, hurra pela Rússia! Hurra pela Patagónia,
se tivesse sido a Patagónia! Mas agora que o czar livrou os Búlgaros
do sultão, venha alguém, mais civilizado ainda, a livrar os
Russos do czar. Eis o verdadeiro ideal liberal.

Mas esta esperança devemo-la perder. Toda a esperança da guerra
findou. Direi mesmo que, há dias, o procedimento do Governo inglês
foi tal que se pode acreditar que ele tinha esquecido as suas declarações
orgulhosas e que, fosse qual fosse a ofensa feita pela Rússia aos interesses
ingleses, o leão britânico, caduco e pesado com a sua indigestão
de ouro, não mexeria nem uma pata. Um jornal francês, mesmo,
começou o seu artigo de fundo, dizendo: «A Inglaterra não
existe! A Inglaterra desapareceu da superfície do orbe! Alvíssaras
a quem achar a Inglaterra!» O Journal des Debats, dizia, com mais gravidade
de estilo: «L’affaissement d’Angleterre est complet.»
Com efeito, o Governo convocara o parlamento para lhe pedir fundos dado o
caso que alguma coisa sucedesse; pois bem, o armistício estava-se tratando,
uma divisão russa marchava sobre Galípoli, outra sobre Constantinopla
– e o Governo não pedia os fundos! A tomada de Constantinopla
não era considerada grave! O que seria grave, então? Mas a opinião
fez tanto barulho que o Governo acordou e, ainda meio a dormir, declarou que
havia de pedir os fundos «além de amanhã». Graças
a Deus! Mas esses fundos não serão empregados, nem pedidos talvez,
porque hoje conhecem-se as exigências da Rússia, e elas não
contêm nada que ofenda os interesses ingleses. O urso teve medo do leão.
Estende a pata de um modo suave e prudente. Eis o que, em resumo e tanto quanto
se sabe, a Rússia pede: Autonomia da România; Autonomia da Sérvia;
Anexação da Bessarábia; Cessão do porto de Batum;
Entrada das tropas em Constantinopla para aí embarcarem para Odessa.

Indemnização de um milliard de rublos, ou sejam, quatro milliards
de francos, ou sejam, cento e cinquenta milhões de libras esterlinas,
e para garantia, até inteiro pagamento, ocupação da Arménia.

Não há nestas condições (a questão dos
Dardanelos é deixada para mais tarde) nada que ofenda os interesses
ingleses. Há, é verdade, a entrada em Constantinopla: mas nesta
exigência os Russos têm razão: em primeiro lugar, não
é possível negar às tropas vitoriosas, que tanto sofreram
e tão bem se bateram, esta marcha triunfal na capital inimiga, que
é a grande recompensa militar e a consagração visível
da glória: mas há outra razão; é que embarcar
as tropas em Constantinopla e fazê-las ir para Odessa é a maneira
mais fácil, mais barata, mais prática, quase a única
possível de chamar o exército à Rússia. Imagine-se
que despesa, que trabalho, que sofrimento, se as tropas tiverem, nesta estação,
de tomar a atravessar os Balcãs, de repassar o Danúbio (o que
é, em virtude do gelo, quase impraticável) e de voltar à
Rússia por terra. Além disso, se os Prussianos entraram em Paris,
capital da civilização, não há razão, nem
política nem moral, por que os Russos não entrem em Constantinopla,
simples cidade pitoresca.

A indemnização não creio que ofereça dificuldades.
Eis, penso, o que se vai passar: a Rússia, como garantia, ocupa a Arménia:
é claro que a Turquia, nem como pilhéria, pode pensar em pagar
cento e cinquenta milhões de libras: portanto, os Russos estabelecem-se
na Arménia; mas como esta ocupação, num dos caminhos
possíveis para a Índia, é extremamente desagradável
aos Ingleses, a Inglaterra empresta os milhões à Turquia para
pagar à Rússia e recebe como garantia a suserania do Egipto.
A Rússia embolsa, a Inglaterra estabelece-se no seu bem-amado canal
de Suez e todo o mundo fica contente, excepto, já se sabe, o pobre
Turco.

Eis o que eu penso provável; mas nesta questão do Oriente
as complicações crescem como os tortulhos – conjecturar
torna-se tão pretensioso como adivinhar.

Não creio que a imprensa portuguesa se tenha ocupado muito de um
assunto que profundamente interessa ao país e a que a imprensa inglesa
desde ontem dá uma certa atenção. Refiro-me à
morte de Pio IX e ao direito que tem Portugal de opor o seu veto à
nomeação de novo papa. Este direito, que pertence igualmente
à França, Espanha e Áustria, está nas vésperas
de ser oportunamente reclamado, porque sua santidade tem bem próxima
a hora de subir para o seio de Aquele que há trinta anos, com fortunas
diversas, ele representa oficialmente na Terra. A esta hora há no Vaticano
uma destas intrigas subtis e maravilhosas, perante as quais os enredos diplomáticos
ou os antigos imbróglios das comédias espanholas são
coisas simples e elementares.

Os cardeais têm, na sua dupla qualidade de italianos e de padres,
o génio refinado da intriga astuta: e neste caso de sucessão
papal são italianos contra italianos e padres contra padres.

Os cardeais estrangeiros, ou ausentes nas suas dioceses, ou afastados da
frequentação íntima dos quartos de sua santidade, são
apenas como o coro de certas óperas antiquadas, que na cena final,
dos dois lados do palco, se pronunciam uns por este, outros por aquele pretendente
à mão da princesa. O grande enredo é entre os italianos:
aí tudo o que a finura tem de mais aguçado, tudo o que a duplicidade
tem de mais tortuoso, os disfarces mais rebuçados, as escavações
mais subterrâneas, as influenciazinhas mais distantes, as caluniazinhas
picantes, a preciosa posse de segredos, as captações melífluas,
tudo serve, tudo se emprega para fazer um papa.

É bizantino e maquiavélico. A primeira coisa a conseguir para
um cardeal pretendente é a recomendação do papa. Sua
santidade, se conservar o espírito claro na hora suprema, decerto por
uma palavra, um olhar, um aperto de mão, uma alusão, há-de
mostrar a sua preferência: isto é esperado, é certo: e
uma tal escolha da boca do papa, num tal momento, terá para muitos
a força de uma ordem divina.

A outra coisa a obter é mais moderna e toda eleitoral: são
votos. E aqui que os fios da intriga se emaranham.

Enfim a última condição é que não haja
oposição ou veto. É neste ponto que Portugal tem hoje,
em Roma e no Vaticano, mais importância que as grandes potências
unidas. O conclave sabe e todos são acordes que a França, a
Espanha, a Áustria, todas com razões diversas, não exercerão
o seu direito. Mas Portugal pretende exercê-lo ou, pelo menos, assim
o crêem os cardeais. Daqui uma comoção muito nervosa,
em suas eminências. Nos princípios deste mês o senhor conde
de Tomar, nosso embaixador em Roma, foi recebido pelo papa, e este simples
facto causou, posso afirmá-lo, no mundo eclesiástico de Roma,
tanta sensação como a morte de Vítor Manuel.

Porque o que se receia entre os cardeais não é que Portugal
interfira por interesses propriamente seus, mas que se encarregue de representar
os interesses das potências que não têm direito de veto.
Estas duas potências são a Alemanha e a Itália: os seus
interesses seriam um papa liberal; Portugal é essencialmente liberal
e, além disso, unido às duas cortes pela Casa de Sabóia
e pela Casa de Coburgo; portanto, concluem os cardeais, é bem possível
que Portugal vá, pela sua oposição, fazer valer no conclave
os interesses das duas nações inimigas do Vaticano.

O direito de veto não é exercido pelo embaixador, mas por
um cardeal, que se encarrega de apresentar no conclave o protesto, em nome
da nação que o lança: diz-se em Roma que há já
um cardeal que tem na algibeira da sua batina o veto de Portugal – na
ausência do único cardeal português, que é o patriarca
de Lisboa. Daqui uma intriga desesperada, ávida de saber quem o cardeal
portador.

Os dois cardeais que têm mais probabilidades de se sentar no trono
de 5. Pedro são o cardeal Billio e o cardeal Monaco de la Valleta.
Têm ambos cinquenta anos, a mais alta jerarquia eclesiástica,
uma ambição extrema, uma astúcia penetrante. Monaco de
la Valleta ajudou à composição do Syllabus, mas exprime
opiniões liberais quando vê que, numa circunstância dada,
isso pode trazer-lhe um apoio forte na realização da sua esperança.
Isto pinta o fino prelado. Billio tem seguido sempre a mesma táctica:
e ambos eles procuram ansiosamente averiguar qual é o cardeal portador
do veto de Portugal, que pode no momento último separá-los da
desejada tiara. Portugal tem pois, neste momento, uma voz, numa grave questão
europeia, em que poucos a têm. E os que não podem falar têm
os mais altos interesses na solução desta questão.

Portugal pode entrar e falar no conclave. A Alemanha, a Itália, a
Inglaterra, não podem. É fácil de ver a nossa importância
neste momento, em que temos o privilégio de entrar quando as grandes
potências têm de ficar à porta.

De todos os fenómenos naturais, o som era decerto aquele que, até
aqui, a ciência e os inventores tinham perturbado menos. Pelo menos,
em comparação da electricidade e da luz – obrigadas a
fazer o mais reles do serviço –, o som gozava uma tranquilidade
relativa. Neste século uma tal paz não podia durar. O Dr. Bell
foi o primeiro a inquietá-lo, com a invenção do telefone.
E agora temos um outro fantasista, que apenas pretende isso – guardar
o som de conserva. O aparelho (há necessariamente um aparelho) recebe,
por exemplo, o discurso do orador, guarda-o e daí a meses, ou anos,
pode reproduzi-lo com a voz do orador e as suas menores inflexões,
desde os ímpetos da retórica até à tosse ou espirros
casuais. Deve-se fazer proximamente em Londres uma grande experiência.
A primeira aplicação em que se vai empregar, ao que parece,
é nas disposições da última vontade. Em lugar
de fazer o testamento por escrito, o moribundo fala o seu testamento, o aparelho
recolhe as palavras e, dado o caso de uma contestação judiciária,
o aparelho vem ao tribunal e reproduz a mesma voz do moribundo cortada dos
mesmos gemidos. A descrição do aparelho é complicada,
mas, tanto quanto pude perceber, consiste nisto, por alto: um tímpano,
de uma sensibilidade quase sobrenatural, à medida que vibra com os
sons recebidos vai imprimindo numa tira de massa um certo número de
sinais côncavos; essa tira, voltada do avesso e solidificada, apresenta
as saliências correspondentes às pressões que recebeu
do outro lado; essas saliências, operando sobre um complicadíssimo
aparelho pelo sistema dos cilindros de realejo, reproduzem com uma excitação
milagrosa os sons recebidos pelo tímpano.

Nada mais simples…

As criadas inglesas, julgando sem dúvida que as soldadas actuais
eram perfeitamente indignas de seres inteligentes, formaram uma espécie
de associação para se criarem benefícios suplementares;
e estes consistem em apanhar cartas comprome-tedoras às amas e venderem-lhas
por preços respeitáveis. O caso infeliz de uma senhora muito
sensível que se viu obrigada a pagar por um bilhete de três linhas
vinte e cinco contos de réis revelou a existência desta quadrilha
amável.

Os negócios de cartas têm-se reproduzido com uma tal abundância
que os jornais pedem a intervenção do parlamento e a criação
de leis severas. Mas a melancolia do caso, quem jamais o diria?, é
que as criadas tinham por associados, imaginem quem… Não, não
podem imaginar! Tinham por associados os próprios amantes das amas.
Sujeitos elegantes, de formas robustas e fisionomia simpática (tudo
o que reclamam os compêndios de retórica em Portugal para se
ser um bom orador), tinham por profissão impressionar senhoras de temperamento
sentimental, provocar uma correspondência picante e deixar, por descuido,
cair um bilhete diabólico nas mãos subtis de uma criada de quarto:
esta reclama da senhora o preço do bilhete (havia uma tarifa: simples
platonismo, quinhentas libras; rendez-vous, mil libras; alusões ao
facto consumado, preços variáveis e em proporção
com a fortuna da frágil esposa) e, obtida a soma, partilha-a com o
sedutor. É simples e prático. As senhoras sensíveis andam
aterradas; será impossível, de ora em diante, o começar
uma intriga poética antes de se ter a certeza que o cavalheiro não
pertence a esta terrível sociedade, ou que, pelo menos, os seus preços
são razoáveis. Não há fortuna que baste –
se as senhoras têm de pagar por vinte e cinco contos cada bilhete inflamado.
A ternura torna-se uma coisa tão cara, sobretudo a ternura ilegítima,
que apenas as esposas dos mais poderosos banqueiros da Europa estão
habilitadas a poder amar. E o que é mais curioso é que aos que
pedem leis severas contra esta inteligente especulação sentimental
respondem os homens práticos que diminuir o perigo do escândalo
é aumentar implicitamente o pecado – e que esta terrível
associação, sendo da mais alta moralidade indirecta, em lugar
de ser perseguida deve ser favorecida. Pobres senhoras sensíveis!

XIII – Londres, 5 de Março de 1878

Finalmente ontem, pelas três horas da tarde, em San Stefano, a paz
entre a Turquia e a Rússia foi assinada. Ontem era na história
imperial da Rússia um dia ilustre: era o aniversário da emancipação
dos servos, do nascimento do imperador e da sua subida ao trono: e por um
refinamento de vaidade czariana foi ontem o dia escolhido para completar,
por uma assinatura num papel, o fim do Império Turco. Devia ter sido
decerto para Alexandre II um momento de orgulho hiperbólico ouvindo
debaixo da janela do Palácio de Inverno milhares de vassalos cantarem,
com a cabeça descoberta, como no respeito de uma celebração
religiosa, o hino do czar – o pensar que no dia em que fazia vinte e
três anos que seu pai Nicolau vencido e humilhado morria de despeito,
ele tomava a desforra das derrotas passadas, recuperava as províncias
perdidas, rasgava o ofensivo Tratado de Paris, destruía o Império
Otomano, humilhava grandes potências e ganhava um lugar entre os grandes
conquistadores do século.

Nesse momento verdadeiramente pôde crer na missão da Santa
Rússia.

De resto em Sampetersburgo, ao que dizem os telegramas desta manhã,
o entusiasmo tomou as proporções de um delirium tremens. O imperador
levou três horas a ir do palácio ao teatro, no meio de uma multidão
fanática uivando o hino imperial, ébria de orgulho nacional,
aclamando Alexandre, o Libertador. Em San Stefano, o grão-duque Nicolau
passou uma revista de cerimonial às tropas, e os arautos anunciaram,
ao som das músicas triunfais, o fim da campanha. Depois te Deum, jantares,
champanhe e hurras pela Santa Rússia! De resto, os Turcos, com a passividade
e a resignação da raça fatalista, aceitam a derrota,
que é uma determinação de Alá, e não parecem
ter conservado rancor aos Russos. Os correspondentes citam como perfeita a
confraternização dos soldados russos e turcos: vêem-se,
junto às linhas de demarcação, conversando, jogando,
cantando, dançando, fumando, numa patuscada de bons amigos: um correspondente
telegrafa que anteontem, na estrada de Pera, encontrara dois fortes destacamentos
de tropas russas e turcas, que, tendo-se encontrado no mesmo caminho, faziam
a passeata em fileiras misturadas, os oficiais em grupo, formando adiante,
as bandas unidas tocando com denodo A Filha de Madame Angot. Os Turcos não
parecem protestar: de Istambul vêm todos os dias a San Stefano milhares
de curiosos ver os Russos, apertar-lhes a mão, dar-lhes os parabéns
de boa chegada: de resto, os negociantes de Constantinopla estão encantados
com a presença daqueles milhares de consumidores, que duplicarão
os preços dos géneros.

A única criatura viva que em San Stefano protestou foi um jumento.
Este ilustre descendente do amigo de Sancho e do amigo de Maomet mostrou desde
o começo das negociatas da paz uma inquietação que bem
depressa se definiu num ódio asinino contra os Russos. E o burro de
um cangalheiro – e apenas pressente um uniforme russo afila a orelha,
firma-se nas patas dianteiras e escouceia com um patriotismo que deve fazer
corar o sultão e os paxás. E, dizem os correspondentes, a grande
curiosidade de San Stefano, e faz o divertimento dos oficiais de sua alteza
o grão-duque Vitorino. Debalde se tem procurado convencê-lo da
nova vantagem e do novo progresso que a Turquia, ou o bocadito da Turquia
que resta, vai gozar sob o protectorado russo; o jumento, com a teima que
faz a honra e a força da sua raça, responde com coices aos argumentos.
Este jumento ficará na história. É, depois de Osman Paxá,
a única alma viril do império. É o último patriota
turco! Eis pois enfim finda a Turquia: as condições da paz não
são conhecidas senão nas suas linhas gerais, mas tanto quanto
se sabe, e não se sabe tudo, a Turquia perde a România, a Sérvia,
o Montenegro como tributários, perde a Bósnia, perde toda a
Bulgária, perde quase toda a Romélia e fica-lhe apenas na Europa
uma tira de terra em volta de Constantinopla: o espaço para se plantarem
as hortas da cidade, uma migalha de território para os legumes. Na
Ásia perde o melhor da Arménia. Como potência europeia
findou: é uma potência asiática. Ei-los enfim, depois
de tantos séculos, expulsos do continente; mas custou: entre a guerra
que os arrojou do Algarve e da Andaluzia até à campanha que
os sacode da Romélia e da Bulgária mediaram séculos.
A luta começada pelos reis católicos da Península é
completada pelo czar e será terminada pelo czar; Constantinopla é
deixada simplesmente aos Turcos, como um favor transitório, que bem
depressa perderão também; o sultão levará a sua
corte, o seu serralho, os seus eunucos e os seus tamborins para Drussa ou
para Esmirna, na Ásia Menor, e nunca mais ouviremos falar dele; reentrarão,
com toda a inércia do fatalismo, na passividade e no animalismo da
vida puramente asiática; esquecerão tudo o que aprenderam na
Europa, e na desgraça, prendendo-se mais ao mais puro maometanismo
e isolando-se no Alcorão, não serão bem depressa mais
do que um povo pitoresco e semibárbaro que se irá visitar, com
risco e com fadiga, ao interior da Ásia Menor! Assim acabam os impérios.

Evidentemente, o sultão, os paxás, cederam tudo para conservar
Constantinopla: Constantinopla é a vida doce e mole nos haréns
de Istambul e nos jaliks do Bósforo: contanto que lhes restem as doçuras
do kief, a sesta nos quiosques das Aguas Doces da Europa e as belas circassianas
bem educadas no deboche, que lhes importa o mais? A filosofia deste país
é a seguinte: um país sacrificado ao egoísmo da sua classe
dirigente. O Times chega a afiançar que por um contrato secreto com
a Rússia os paxás continuarão a receber os seus rendimentos
e os seus tributos especiais, que não serão afectados pelo pagamento
da indemnização de guerra. Quem vai pagar é o pobre camponês
otomano, tão sóbrio, tão bravo, tão honesto. Sempre
a velha, a velha história: aristocracias ligando-se para a exploração
das suas plebes! E que faz, no entanto, a Inglaterra? Arma-se até aos
dentes: arma-se com um luxo quase bárbaro: solta dos seus estaleiros
fileiras de couraçados; acumula montanhas de torpedos; quer tornar
os seus obuses mais numerosos que as areias das praias! Leio todos os dias,
por curiosidade, a lista dos preparativos nos arsenais, nas usinas do Governo,
nas fábricas de canhões; confunde a imaginação!
Os seis milhões de libras votados há um mês estão,
diz-se, quase gastos – e tudo isto para quê? Para ir à
conferência. Está fazendo a sua toilette da conferência.
Com efeito, como ninguém sabe as condições da paz, todo
o interesse está na conferência. Em que prejudicam essas condições
a Inglaterra ou a Áustria? Mistério. Há-de saber-se amanhã,
ou além. E é então que a dificuldade começa, se
se vir que elas são incompatíveis com os interesses, com a dignidade,
com a mesma segurança da Inglaterra.

Duas das condições que decerto seriam um motivo de conflito,
a entrega da frota turca aos Russos e a hipoteca do tributo do Egipto ao pagamento
da indemnização da guerra, diz-se que foram suprimidas. Foram?
Alguns jornais duvidam. Assim a impaciência de saber verdadeiramente
as verdadeiras condições desta paz é ansiosa, cheia de
pânico. Da sua publicação sairá uma nova guerra?
Elas devem ser, com efeito, bem extraordinárias, visto que a Rússia
as tem conservado tão secretas e que se está preparando como
para uma outra campanha: mobilização de corpos de exército,
encomenda de torpedos, fabricação de canhões, tudo isto
prova que o czar conta com a oposição da Inglaterra e talvez
da Áustria, quando sabidas as condições da paz, e que
esta preparado para se bater em sua defesa.

Mas que pode fazer a Inglaterra? A Inglaterra tem de aceitar os factos realizados.
Não tem alianças: a França está decidida a não
se mexer, nem para dar uma opinião; até declarou que vai à
conferência contra vontade, por dever de etiqueta; a Áustria
está imobilizada pela Alemanha; a Itália igualmente. O que resta
à Inglaterra? Os pequenos estados constitucionais, com que ela poderia
formar uma cruzada liberal contra a Rússia. Armemos os pequenos estados
constitucionais, diz-se aqui, armemos a Bélgica, a Holanda, Portugal,
e teremos um efectivo de duzentos mil homens. Mas esta aliança com
os pequenos não parece do gosto da política de Lord Beaconsfield;
os jornais tories nem mesmo lhe dão a importância de lhe enunciar
a possibilidade; ela não daria à Inglaterra, estrategicamente,
um concurso eficaz, e só traria a esses estados catástrofes.
Nenhum deles tem interesses na questão do Oriente; nenhum deles tem
a loucura de gastar o seu sangue (dado que a Inglaterra forneça o dinheiro)
para batalhar as batalhas da Inglaterra; nenhum deles aceitaria comprometer
o seu progresso, a sua tranquilidade, o seu comércio, o seu trabalho,
sem mesmo poder esperar compensações; a Inglaterra não
tem sido uma mãe tão carinhosa que mereça que se faça
por ela sacrifícios quando ela está em dificuldades: a sua gratidão
é suspeita; não há, como ela, para abandonar um amigo
num dia de crise; vide a história lamentável da Dinamarca. Os
pequenos estados, portanto, declinariam, sem dúvida, a honra desta
aliança ilustre. E a Inglaterra só tem a continuar isolada.

E é assim que a Alemanha paga à Rússia a sua dívida
de 1870 e 1871. O que tem sido esta guerra do Oriente? O pagamento de uma
dívida de gratidão. A Rússia em 1870 deixou a Alemanha
arrancar à França duas províncias e cinco milliards e
constituir a unidade germânica na família dos Hohenzollerns.
A Alemanha, por seu turno, deixa a Rússia estender-se do lado da Ásia
e da Turquia, encarregando-se de conservar a Europa quieta e imóvel.
Tudo isto se passa entre Guilherme Hohenzollern e Alexandre Romanoff, e entre
os dois velhos amigos, os dois velhos compadres de Frankfürt, Bismarck
e Gortschatcoff. Delicadezas trocadas entre personagens! E Bismarck, por outro
lado, consegue um grande fim: a Rússia quanto mais se alarga mais se
enfraquece, quanto mais se arma mais se arruína. A Alemanha anima-a
neste caminho, como os agiotas animam os filhos-famílias à vida
aventureira e rica. A Rússia, concentrando-se, desenvolvendo os seus
poderosos recursos, formando-se para a liberdade, será um terrível
vizinho para a Alemanha; mas a Rússia, lançando-se nas aventuras
da cruzada cristã na Ásia e da cruzada pan-eslavista no Sul
da Europa, marcha à sua ruína, pelos desperdícios da
força. De modo que Bismarck, ao mesmo tempo que paga a dívida
de gratidão ao seu aliado, impele-o implicitamente à decadência.
Política sábia, bem própria do antigo coronel dos couraceiros
que uma retórica consagrada transformou no solitário de Varzin.

Annuncio vobis gaundium magnum: habemos pontificem. Desde esta declaração
lançada de uma janela do Vaticano sobre o povo romano, na Praça
de 5. Pedro, todas as preocupações do mundo católico
e incatólico estão fixadas em Joaquin Pecci, Leão XIII,
papa infalível pela reunião dos votos de quarenta e cinco cardeais
falíveis. O que prova que quarenta e cinco falibilidades fazem uma
infalibilidade. Leão XIII parece ser um homem rígido, com experiência
do mundo e do governo, prático, bom administrador, de tendências
ligeiramente liberais, de vida austera, letrado, poeta mesmo. A sua figura
é um pouco ascética, não tem nada daquela doce e risonha
velhice de Pio IX, tão cheia de afabilidade, de suavidade, de graça
e de finura: Leão XIII tem uma velhice seca, imponente, um pouco triste.

O povo romano deu vivas ao saber a sua nomeação, o que não
impediu que ontem apedrejasse as janelas do Palácio Toleschi, que se
iluminara para celebrar a coroação de Leão XIII.

Isto provém do exacto sentimento italiano: estimam bem que o papa
seja um italiano que resida em Roma, depois de ter sido nomeado em Roma, e
que seja liberal – mas não querem que o papado saia do Vaticano
e se misture à vida civil. A nomeação do italiano Pecci
agradou-lhes – mas que os palácios de Roma façam iluminações,
agora que ele está nomeado, não! O Governo é absolutamente
da mesma ideia: e toda a demonstração papal fora das sombras
do Vaticano encontrará a sua reprovação; e assim não
permitiu que a coroação de Leão XIII fosse pública.
Isto dará em breve a sua consequência. Leão XIII encerrar-se-á
no Vaticano, como Pio IX, e pôr-se-á em hostili-dade ao Governo
italiano e ao mundo liberal, como Pio IX, o que é no fundo a lógica,
a força e a glória do papa e do papado.

Não há nenhuma novidade literária ou teatral. A política
absorve toda a actividade cerebral: os filósofos fazem artigos de política
nas revistas; os romancistas, mais batalhadores e mais exaltados, fazem-na
nos jornais; os poetas fazem canções bélicas; e os pintores
alegorias patrióticas: e todas estas produções são
medíocres. A imprensa tem-se, sobre a questão do Oriente, entregado
a um fluxo labial desordenado. Rolam torrentes de prosa e de retórica.

Entre os que se chamam partido da paz – e os que se chamam partido
da guerra – há uma luta de eloquência, que tem todos os
pesados furores, todo o animal encarniçamento do boxe.

Os jornais da guerra – tomam sobretudo à sua conta o infeliz
Lord Derby. Este político é digno de piedade: todas as contrariedades
por que tem passado a Inglaterra são-lhe atribuídas com um luxo
de epítetos injuriosos e um hiperbolismo de verrina – que causa
melancolia. A Vanity Fair, um jornal elegante, de boa sociedade, estimado,
respeitável, abandona-se sobre Lord Derby a excessos que a política
costuma reprimir. Às vezes começa os seus artigos com moderação,
bom raciocínio, linguagem correcta: de repente, encontra na sua argumentação
o nome de Lord Derby. Endoidece. Atira-se a ele, morde-o, espezinha-o, arranca-lhe
pedaços de membros, bate-o como um bife, chafurda-o na lama, baba-se
de cólera. Há dias representava Lord Derby, de joelhos diante
do embaixador russo Schuvalloff, rogando-lhe que por piedade não humilhasse
mais a Inglaterra: Lord Derby beijava-lhe as mãos, abraçava-lhe
as pernas…

Aqui traduzo: – Fora daqui! – brada Schuvalloff.

– Não, conde, deixe-me estar a seus pés. Não
humilhe mais a Inglaterra. Nós fazemos tudo.

Retiramos a frota. Destruímos a frota. Quer que destruamos a frota?
É só vossa excelência dizê-lo! É um momento,
com dinamite.

– Fora daqui, pulha! – Sim, sou um pulha! Obrigado. Que honra
que vossa excelência se digne notar que eu sou um pulha! Sou-o realmente,
já que vossa excelência o diz. Deixe-me beijar mais a sua mão;
que quer que eu faça para lhe provar a minha adoração?
Quer que cante de galo? Neste momento o público, fora, vem fazer um
charivari debaixo das janelas do embaixador.

Uma pedrada quebra um vidro. E logo entra, arremessado pela janela, um gato
morto.

Schuvalloff dá um pontapé em Lord Derby, exclamando: –
Vê, imbecil. Aí está já esse grosseiro povo da
Inglaterra a insultar-me, a atirar-me bichos mortos.

– O gato morto? – grita Lord Derby. – O gato morto era
para mim! Todos os gatos mortos são para mim! Eles sabem que eu mordo-me
por gatos mortos. (Abraça-se ao gato morto, beija o gato morto.) Senhor
conde, uma palavra! Diga que a Rússia, a santa Rússia, a nobre
Rússia, a Rússia nossa ama –não há-de bater
na Inglaterra, nem fazer-nos mal, nem assustar-nos.

Diga-o, senhor conde! Veja: rojo a minha cabeleira no chão, verto
as minhas lágrimas – apertando contra mim o meu gato morto! –
Fora daqui, covarde, ou trabalha o chicote – diz Schuvalloff.

– Eu saio, eu saio, excelentíssimo senhor. Vossa excelência
mande; eu saio, eu saio aos recuões. Mas primeiro permita, dê
licença, é um instante… (Atira-se-lhe aos pés e põe-se
com humildade a lamber-lhe o verniz das botas.) Que me dizem a este meio de
fazer polémica – com um ministro da Inglaterra? O Echo, jornal
de paz, procede de outro modo. Traduzo um dos seus últimos períodos:
«Os estudantes de medicina de Londres, que têm sido tão
conspícuos em todas as manifestações belicosas dos últimos
dias, escrevem uma carta ao Echo prevenindo-nos de que virão a esta
redacção dar-nos uma correcção que, segundo eles,
merece a maneira como temos castigado esta importuna e imbecil intervenção
dos senhores estudantes nos meetings bélicos. Pois bem, prevenimos
apenas os senhores estudantes disto: que há, empregadas na redacção
e imprensa do Echo, cento e cinquenta pessoas, que a provisão de bengalas
é sólida e que a vontade é boa. Que suas senhorias venham
quanto antes.» O Echo é um dos melhores e mais acreditados jornais
de Londres. Naturalmente, os grandes jornais, os jornais-personagens, o Times,
o Daily Telegraph, o Daily News, o Standard, o Morning Post, conservam uma
compostura mais digna, e nunca perdem a linha majestosa.

Mas tudo o que a ironia, o sarcasmo, a alusão pérfida, podem
produzir de mais acerado é trocado entre eles numa prosa correcta e
grave. São gentlemen que se trocam num salão injúrias
bem redigidas, com uma atitude cortês, o fel no coração
e o sorriso nos lábios. Nunca vi tanto ódio – sob tanta
polidez.

XIV – Londres, 28 de Março de 1878

Lord Derby, e com ele toda a Inglaterra, acaba de fazer uma descoberta imensa:
Lord Derby descobriu a Grécia. Desde a renovação da questão
do Oriente, há dois anos, a Grécia, por um imobilidade obrigatória,
nos últimos planos, sem que ninguém parecesse reconhecer a justiça
dos seus direitos, ou pensar na utilidade da sua intervenção.
Todas as províncias sujeitas à Porta e todos os estados tributários
tinham sido autorizados ou chamados a cooperar, pela insurreição
ou pela guerra aberta, na destruição do poder otomano. A Rússia
tinha ajudado a Sérvia, animado e lisonjeado o Montenegro, e especialmente
apelado para a România: todos estes principados cristãos deviam
naturalmente, em justificação do seu patriotismo e em demonstração
da sua fé, ajudar a grande cruzada da libertação dos
cristãos empreendida pelo czar. Acontece, porém, que a Grécia
tinha províncias suas, pela religião e pela raça, sob
o domínio turco, e ninguém parecia desejar que ela tentasse
pelos seus correligionários o que estavam tentando os principados.
E todavia o Epiro, a Tessália, a Macedónia, são províncias
gregas e cristãs, que a Porta explora e tiraniza, como a Bulgária
ou como a Bósnia. Para libertar as suas populações, em
idênticas condições, a Sérvia, o Montenegro, a
România, tinham tomado as armas com admiração da Europa,
e apenas alguns vagos protestos platónicos rosnados em surdina pela
Áustria. Mas apenas a Grécia mostrou um desejo de libertar as
suas províncias os protestos vieram de todas as partes, muito precisos,
muito impacientes: a Rússia ficou indignada, a Áustria descontente,
a Inglaterra nervosa.

Às primeiras veleidades belicosas do ministério de Atenas
todos os representantes das potências, com uma rara uniformidade, correram
a impor-lhe uma inacção forçada. Quando o Governo grego,
arrastado pela pressão iniludível do sentimento popular, fez
mobilizar o pequeno exército grego, as grandes potências ameaçaram-na
claramente de a deixar exposta as vinganças da Porta, e de não
impedir o bombardeamento do Pireu pela esquadra de Hobbart Paxá. Quando
num momento de impulso patriótico o Governo grego, indiferente às
advertências da Europa, ou não as julgando sinceras e apenas
pró-forma, fez avançar tropas na Tessália, as potências
obrigaram-na, quase sob pressão de um ultimato, a fazer retroceder
o exército e dar explicações ao sultão. A Grécia
roeu o seu freio e limitou-se a manter na Tessália e no Epiro uma pequena
insurreição inflama-tória, para não deixar morrer
o fogo patriótico e para dar ocupação aos temperamentos
mais exaltados.

Mal sabia a Grécia, tão descontente então, que estava
nas vésperas de ser chamada pela Inglaterra a representar um grande
papel na questão do Oriente; ou, se o sabia, com a sua finura habitual
esperava, fazendo um rosto triste que iludiu os mais astutos, a ocorrência
gloriosa. Ela não tardou a aparecer sob a forma da proposta de Lord
Derby na sua grande campanha diplomática. Opor ao pan-eslavismo o helenismo
é sem dúvida um belo pensamento, e a oposição
impaciente e quase rancorosa que a Rússia fez à proposta inglesa
mostra, só por si, como ela julgou a grande obra eslava profundamente
ameaçada pela aparição em cena deste novo factor, a Grécia.
Lord Derby jogou uma brilhante carta: fazer entrar a Grécia no congresso,
mesmo sem voto, era ipso facto levantar no congresso a questão grega:
a Rússia, mesmo a seu pesar, não poderia opor-se a que a sua
obra de libertação fosse completada, restituindo-se à
Grécia a Macedónia, a Tessália e o Epiro, Creta, etc.
Quem se bateu para libertar os cristãos da Bulgária não
pode opor-se a que se libertem os cristãos das outras províncias.

Com estes novos territórios, tão férteis, a Grécia
ganha uma força inesperada e torna-se uma potência forte.

Os cristãos do ex-Império Turco vêem-se assim colocados
entre a influência de dois países da sua religião: mas
um, a Rússia, despótico e opressivo – outro, a Grécia,
constitucional e liberal; um puramente militar, outro exclusivamente comercial;
um pensando em conquistar, o outro em enriquecer. E naturalmente as simpatias
dos cristãos irão para a Grécia; esta anexação
moral de simpatias transformar-se-á mais tarde em anexação
material de territórios. A Bulgária cristã do rito grego
penderia fatalmente para a Grécia. Que daqui a anos reapareça
a questão do Oriente sob a forma mais resumida e mais directa de saber
a quem em definitivo deve pertencer Constantinopla – e apresenta-se
uma solução natural, pacifica, que é não deixar
Constantinopla nem aos Russos nem aos Ingleses, e dá-la simplesmente
aos Gregos, seus donos por direito histórico. E aqui temos um forte
império helénico, fazendo barreira as tendências invasoras
do império eslavo.

Esta solução não poderia levantar oposição
no povo russo, porque o seu interesse na questão do Oriente é
todo de religião. E que maior satisfação que ver os gregos
em Constantinopla e Santa Sofia catedral do rito grego? O povo na Rússia
não é pan-eslavista; o pan-eslavismo é um fanatismo puramente
militar do estado-maior e de alguns oficiais exaltados: o povo o que deseja
é mais pão, menos tributo, uma constituição talvez
(e isto os mais ilustrados), e que os seus correligionários não
estejam sob o domínio odiado do Turco: que a cruz grega volte a dominar
nas mesquitas de Constantinopla, e todas as aspirações do povo
russo, em matéria de política externa, estão amplamente
realizadas.

Por seu lado, a Áustria não poderia senão felicitar-se
de ver junto às suas fronteiras um reino helénico: as suas províncias
eslavas não correm risco de tender então a unir-se .ao império
eslavo, o que seria inevitável se em lugar dos Gregos fossem os Russos
que se viessem estabelecer junto dela. A Hungria, para quem o ódio
do pan-eslavismo é uma tradição sagrada, veria com prazer
os Gregos em Constantinopla. A Alemanha não poderia opor-se a uma combinação
que impede a Rússia, sua aliada presente e sua inimiga provável,
de se estender até ao Mediterrâneo. As potências ocidentais
regozijar-se-iam de ver dominar nos Dardanelos uma nação comercial,
que não impediria, como a Rússia, o tráfico do mar Negro,
antes o facilitaria. E a Inglaterra, tendo feito o império helénico,
obtinha o resultado mais agradável e mais seguro; não podendo
ela mesmo estabelecer-se nos Dardanelos, colocava lá uma potência
amiga e aliada, sua própria obra, governada por uma imitação
da sua constituição, reconhecida ao benfeitor, facilmente dominável
no caso de ingratidão, sem ambições na Índia,
nem interesses no canal de Suez, e que seria no Oriente uma espécie
de seu mordomo.

A oposição, portanto, só pode vir do czar, da corte
e do partido militar na Rússia. Para esses, o estabelecimento de um
império grego é a destruição das suas ambições,
do seu ideal político e histórico, do que eles chamam a sua
missão; seria além disso uma diminuição considerável
na autoridade do czar; hoje o imperador é papa; mas que amanhã
o patriarca do rito grego se estabeleça em Constantinopla, capital
do império Grego, e o sacerdócio moscovita, em breve o povo
mesmo, o reconhecerá como seu chefe espiritual. Portanto, o czar vai
opor-se à entrada da Grécia no congresso com todas as obstinações,
todas as manhas, todos os equívocos, todos os subterfúgios que
constituem a perigosa ciência dos diplomatas russos; se assim não
obtiver o seu fim, embrulhará a questão de modo que o congresso
se não reúna; e em último caso apelará para as
armas, porque prefere uma nova guerra, mesmo no estado de fraqueza e de pobreza
das suas finanças, a consentir que se agite sequer a questão
do império helénico.

Por isso eu penso que a resposta de Lord Derby, hábil, racional,
útil, é no fim o meio de apressar a crise e de trazer a Inglaterra
e a Rússia a um conflito; e ainda que se dêem outras razões
de rompimento, no fundo, se a Rússia tira de novo a espada um dos seus
fins será impedir uma extensão de território da Grécia,
núcleo e base de um império helénico.

Mas reunir-se-á esse famoso congresso? As probabilidades diminuem
todos os dias: o que o adia hoje, e que talvez o impeça mais tarde,
é aparentemente uma simples questão de forma; a Inglaterra pretende
que o congresso tenha direito a discutir todos os artigos do tratado de paz
russo-turco. A Rússia recusa esta larga liberdade de discussão.
Para facilitar uma conciliação, a Inglaterra pede ao menos que
a Rússia declare que todos os artigos do tratado estarão sujeitos
a discussão, ainda que praticamente estabeleça que alguns não
serão discutidos; a Rússia recusa a fazer mesmo esta declaração.
Em tais condições, a Inglaterra não vai ao congresso.
As razões de Lord Derby são óbvias: se os três
imperadores estão de acordo, se a Áustria e a Alemanha estão
decididas a aprovar o tratado, se o voto da Itália pertence, como é
provável, igualmente à Rússia, que iria a Inglaterra
fazer ao congresso? Pôr a sua assinatura num documento que fere os seus
interesses? Fazer um simples protesto platónico, que seria como a confirmação
pública da sua fraqueza e do seu isolamento? Mais vale, portanto, não
ir ao congresso e tomar medidas decisivas para que, sejam quais forem as circunstâncias
do futuro, os dois grandes interesses britânicos na Turquia europeia,
Constantinopla e Galípoli, sejam conservados intactos e inatacados.

Nestas recusas sucessivas da Rússia a toda a conciliação,
vê-se bem a intenção que a domina: é impedir a
reunião do congresso, com receio de que, além das objecções
ao tratado, apareça a terrível questão helénica,
sob a protecção da Inglaterra. E da parte da Inglaterra todo
o esforço é fazer introduzir esta questão no congresso.
A Grécia é, penso, neste momento um pomo de discórdia.
E a questão do Oriente toma enfim uma fase mais clara e mais definida:
em substituição ao Império Turco a Inglaterra quero estabelecimento
de um império grego, que seja uma barreira histórico-militar
contra a Rússia; a Rússia opõe-se com todas as suas forças
a esta solução ajudada pelos dois imperadores seus aliados,
que são movidos por simpatia de corte a corte, em desprezo dos seus
verdadeiros interesses nacionais.

Mas que fazem as duas outras grandes potências? A Itália hesita,
a França cala-se. Se estas duas nações latinas se decidissem
a ajudar a ideia inglesa, teríamos assim duas formidáveis coalizões
em face uma da outra: de um lado, a Rússia, a Alemanha, a Áustria,
espécie de Santa Aliança dos três imperadores autoritários;
do outro, a Inglaterra, a França, a Itália, os três estados
livres e democráticos: o Oriente contra o Ocidente: o Ocidente querendo
o império helénico em substituição do Turco, e
o Oriente querendo a partilha do Império Turco entre si, sendo a maior
parte destinada a formar uma dependência moscovita. Não é
improvável que a questão do Oriente, num certo tempo, tome estas
formidáveis e dramáticas proporções.

Mas serão os Gregos gente para constituir e formar um império?
Até aqui os Gregos têm sido os mais absurdos políticos
da Europa: o Governo de Atenas é uma farsa que About pintou, com muito
espírito e muita verdade, como uma das grandes bambochatas constitucionais
do século. As suas finanças são deploráveis. A
sua administração uma balbúrdia.

Mas a isto pode-se dizer que aos Gregos tem faltado uma oportunidade de
revelar as suas qualidades industriosas, sagazes, activas, expansivas. O território
que possuem é o mais árido e o mais estéril da Europa.
Sem agricultura e sem indústria, as forças vitais emigram e
vão levar a outras terras a sua perseverança e a sua habilidade.
Os gregos mais ricos, mais prósperos, a alta burguesia grega que tem
o capital e a iniciativa não está na Grécia; está
em Londres, em Berlim, em Viena, em Frankfürt, em Constantinopla, em
Sampetersburgo e em Paris. Dê-se-lhe um território fértil,
uma cidade como Constantinopla que seja um grande entreposto de comercio,
minas a explorar, uma frota de transporte, e não há dúvida
que a habilidade comercial do grego, a mais fina raça do Levante, poderia
constituir uma nação próspera. A política, a administração,
as finanças, não seriam como agora governadas pelos intrigantes
de Atenas, mas pelas verdadeiras capacidades gregas que neste momento estão
espalhadas pela Europa à testa de grandes firmas comerciais e industriais.
E lentamente a experiência da própria força, a responsabilidade
de governar uma grande extensão de território, uma comunicação
mais directa com a civilização ocidental, a necessidade de se
organizarem para se fortalecerem, daria ao povo grego aquela seriedade política
e aquela ciência social que fazem os países prósperos.

Estão lembrados talvez do desastre sucedido há anos no navio
inglês Captain, que de repente, por um tempo quase sereno, na baía
de Biscaia, se voltou, como um simples caíque do Tejo, destruindo mais
de quatrocentas vidas. Um desastre quase igual acaba de suceder a uma admirável
fragata de guerra, a Eurídice, que voltava das Antilhas Inglesas com
mais de trezentas pessoas a bordo. Ao avistar a praia de Inglaterra, a distância
de tiro da ilha de Wight, navegando com todo o pano, é de repente apanhada
por um furacão de neve, embrulhada, e em cinco minutos desaparece no
fundo do mar, arrastando todas as vidas num furioso turbilhão de água.

Apenas duas pessoas se salvaram. Uma tal catástrofe aterra pela quantidade
de existências perdidas e pela facilidade com que foi produzida. Uma
fragata de primeira ordem, que em tempo quase sereno navega a todo o pano,
parece um maquinismo indestrutível ou, pelo menos, oferecendo uma resistência
eficaz; pois bem, levanta-se um sopro de vento, embrulhase a vela e mergulha-a
no fundo do mar, com a rapidez com que uma criança afunda com a mão
um barquinho de cortiça numa bacia de água! O furacão
de neve foi instantâneo e fugitivo como um sopro que apaga uma vela.
As pessoas que passeavam na esplanada de Ventuar tinham visto a fragata passando
a todo o pano, juntamente com um brigue e uma pequena escuna. De repente abate-se
o turbilhão de neve de vendaval. A gente tem apenas tempo de segurar
os chapéus e de se abafar nos paletós.

Quando, passado o furacão, tornam a olhar para o mar, vêem
apenas o brigue e a escuna, seguindo tranquilamente: a fragata tinha desaparecido.
Nem a ponta de um mastro era visível: o mar, um pouco grosso, balançava-se
tranquilamente e trezentas pessoas estavam agonizando debaixo de água.

Que trezentos homens sãos, fortes e alegres, voltando ao país,
à família, estejam à vista das suas casas; que passe
um sopro de neve e que em alguns segundos os arroje para o fundo do mar, que
o céu clareie e que o Sol imediatamente continue a brilhar, como se
nada se tivesse passado – é lúgubre! Tinha escrito estas
linhas, e ia falar-lhes de algumas curiosas novidades literárias e
artísticas, quando notícias inesperadas e surpreendentes me
forçaram a voltar de novo à política.

Em primeiro lugar, a Rússia deu ontem a sua resposta definitiva à
Inglaterra: não admite a livre discussão da totalidade ao tratado
de paz e declara que, neste ponto, o seu interesse e a sua honra não
lhe permitem nenhuma concessão. Portanto, o congresso não se
reúne.

Em segundo lugar, Lord Derby deu hoje a sua demissão. Esta demissão,
tantas vezes anunciada e contradita em ocasiões em que oferecia uma
certa lógica, veio quando parecia quase absolutamente impossível.

Ninguém o sabia até ao momento em que, entrando ontem na Câmara
dos Lordes, Lord Derby não se sentou no banco dos ministros e foi ocupar
um lugar nos bancos da oposição. As suas explicações
foram breves e feitas com uma solenidade triste: disse que até àquele
dia estivera na mais estreita concordância de ideias com os seus colegas,
mas que, tendo eles tomado ultimamente resoluções que lhe pareciam
contrárias aos interesses do país, ele vira-se forçado,
com mágoa, a separar-se dos seus colegas. Estas palavras causaram na
Câmara uma inquietação extrema: que resoluções
eram essas? Se Lord Derby, que fora no gabinete o sustentáculo da paz,
se retirava, é que essas resoluções que o tornavam incompatível
com os seus amigos tinham o carácter de um principio da guerra. Que
seria? Estaria a esquadra em Constantinopla? Ter-se-ia tomado Galípoli?
Lord Beaconsfield, erguendo-se, pôs um termo às incertezas: começou
por fazer o que se poderia chamar a oração fúnebre de
Lord Derby: falou na amizade que durante trinta anos de vida pública
o ligara a Lord Derby e que ele considerava uma das felicidades e honras da
sua carreira; fez, com traços à romancista, como romancista
que é, o retrato moral de Lord Derby; e as suas palavras demonstravam
uma mágoa tão grave daquela separação e uma estima
tão elevada pelo estadista que Lord Derby, sob uma emoção
irreprimível, pôs as mãos sobre o rosto e soluçou.
A Câmara, impressionada, assustada, não sabia se aquelas lágrimas
eram pela perda dos seus amigos, se pelas desgraças que antevia ao
seu país. Enfim, Lord Beaconsfield declarou que a resolução
tomada e que tinha determinado a demissão de Lord Derby fora a chamada
às armas dos corpos de reserva.

Desapontamento geral! O quê? Por uma simples medida preventiva, Lord
Derby, o chefe da mais ilustre casa tory, separava-se dos tories? E que falta
de lógica! Não fora Lord Derby que pelas suas exigências,
aliás justificadas, fizera abortar o congresso? Podia ele pois reprovar
que o Governo tomasse as precauções que exigiam logicamente
os interesses ingleses desde que o congresso falhara? Constituído de
boa ou má fé, o congresso era o único meio de trazer
uma solução pacífica às questões pendentes,
que, tendo ela falhado, só podem ser decididas pelas armas. Como é
que Lord Derby, depois de ter pela sua política desarranjado essa solução
pacífica, se opõe a que se adoptem prevenções
para o caso do conflito armado? A Inglaterra só podia defender os seus
interesses ou com razões no congresso ou com canhões no campo
de batalha: Lord Derby não quer ir ao congresso das razões e
zanga-se porque o Governo, em consequência disso, se prepara a carregar
as peças. Por que modo pretende ele então defender os interesses
britânicos, de que ele há três anos é o porta-voz
e o arauto? Nem pelo direito, nem pela força. Como então? Lord
Derby é um homem muito prático para cair numa tal inconsequência.
Nem é de supor que vendo diante de si a crise que ele provocou, com
razão, pela sua política queira fugir, por timidez e excesso
de temperamento pacifico, às responsabilidades que ela traz. Há
portanto outra coisa: isto é, a simples chamada da reserva não
é toda a razão da demissão de Lord Derby. Se ele se separa
dos seus colegas, é porque os seus colegas decerto decidiram alguma
outra coisa, bem mais definitiva que uma simples precaução.
O quê? That is the question. É o que se saberá dentro
de dias.

En attendant, o esquema do congresso, do império helénico,
etc., todas as belas concepções diplomáticas e geográficas
de Lord Derby estão perdidas, ficam nos cartões do Foreign Office.

E o que resta é Lord Beaconsfield, com o seu ardente desejo de guerra,
livre dos embaraços pacíficos que punha Lord Derby, apoiado
pela corte, que também deseja a guerra, e sustentado à outrance
pela parte dos tories que não têm repouso nem alegria enquanto
se não trocarem entre Ingleses e Russos os primeiros tiros no Bósforo.

Esta carta já vai longa. Mas preciso contar-lhes um pequeno facto
picante de que falam aqui os jornais da sociedade, e que, sendo para nós
apenas engraçado, tem produzido nos Ingleses um furor sombrio. Trata-se,
como quase sempre, do príncipe de Gales. Sua alteza, a semana passada
estando em Paris, fez uma visita ao Figaro. Até aqui nada de extraordinário.

Querendo dar uma tal honra a um jornal francês, escolheu um jornal
das cocotes e dos apostadores de corridas, o órgão oficial da
vida escandalosa. Até aqui nada de criminoso. A visita foi feita às
duas horas da noite, e nas salas do Figaro estavam os artistas mais estroinas
de Paris e algumas lindas actrizes que, além da arte dramática,
professam acessoriamente o amor livre por preços conhecidos no Bulevar.
Até aqui nada de violento. Houve uma ceia, nada mais natural. Mas foi
ao fim da ceia que se deu o pequeno facto que causa nos Ingleses desespero
soturno; o elegante redactor Francis Magnard ergueu-se e, de copo em punho,
propôs uma saúde à rainha Vitória: é do
estilo inglês que esta saúde seja seguida de aplausos e é
da etiqueta que o sinal dos aplausos seja dado pela pessoa mais respeitável.
A pessoa mais respeitável que nessa ocasião bateu as palmas
de cerimónia foi Mademoiselle Theo, uma das actrizes dos Buffos, a
quem não julgo fazer injúria chamando-lhe uma esbelta e ilustre
prostituta. O príncipe de Gales, numa espirituosa resposta, agradeceu
a Mademoiselle Theo e a outras cocotes e folhetinistas a honra que faziam
em beber às duas horas da noite, na redacção do Figaro,
à saúde de sua mãe, a rainha de Inglaterra.

Como vêem é apenas picante – mas há ingleses severos
a quem tem caído o cabelo de pensar neste toast singular.

Um jornal de Londres observa que se têm feito toasts à rainha
de Inglaterra nos lugares mais extraordinários, no alto das Pirâmides,
nas ruínas de Tebas, nos sertões de África, nos templos
de Pequim, no Pólo Norte, nos juncais do Ganges, no alto do Calvário,
sobre o Niagara, nas cabanas dos cafres, nos mosteiros do Líbano; mas
que é a primeira vez que se faz num lupanar! Lupanar, acho severo para
o Figuro. Mas que é um lugar esquisito para uma saúde tão
respeitável – é.

XV – Londres, 21 de Maio de 1878

Há entre os provérbios diplomáticos um que diz: «Quando
a França está descontente, a Europa está em perigo.»
Pode-se dizer que quando a França está feliz, a Europa está
tranquila: desde que a Exposição se abriu, e que a França
celebra em Paris a sua grande festa de ressurreição, toda a
Europa tem um tom mais calmo; corre uma aragem consoladora de paz e de conciliação,
a mesma actividade de armamentos afrouxou e os homens de guerra e de rapina,
os Bismarcks e os Gortschakoffs, aproveitam este intervalo sereno para curarem
os seus reumatismos. Exala-se da Exposição, parece, uma emanação
de concórdia, de trabalho, de civilização, que enche
os espíritos de um salutar desejo de fraternidade e de paz.

As espadas meio saídas recaem na bainha, as vozes irritadas de desafio
adoçam-se em explicações plácidas, o czar humaniza-se,
a Inglaterra desfranze a carranca e todo o mundo respira um vago aroma de
folhas de oliveira, símbolos de paz. E a Exposição de
Paris, é essa colossal acumulação de ciência, de
arte, de indústria, que espalha em redor, na Europa, um influxo santo
de serenidade. Paris, no fundo, é a grande capital da civilização;
o seu messianismo é incontestável; o que ela pensa é-nos
dogma, o que ela quer é-nos lei: o mundo instintivamente obedece-lhe:
há nela não sei que graça magnetizadora, que forte ascendência
espiritual a que se não resiste: a humanidade civilizada tem por ela
um vago amor e deixa-se docemente tiranizar: se ela nos impõe a idiota
canção C’est l’amant d’Amanda, protestamos primeiro, rimos
depois. Terminamos todos por a cantar; se ela nos impõe uma ideia social,
podemos um momento hesitar, acabamos todos por a servir: o que ela cria tem
a nossa admiração certa, ou seja Offenbach ou seja Gambetta;
ela exerce a fascinação de certos olhos de mulheres, cuja luz
convence; hoje Paris quer a paz, e a Europa já não se atreve
a fazer a guerra.

Aqui, pelo menos, não se fala senão da Exposição:
a ordem do dia é ir a Paris; os indivíduos que ainda murmuram
algumas frases sobre a Bulgária, o Tratado de San Stefano, Constantinopla,
etc., parecem obsoletos e caturras. Quem se ocupa do eslavo? Que significam
essas antigualhas lúgubres? O que importa é chegar a Paris,
saltar a um fiacre e abalar para o Trocadero! E o que atrai a Paris não
é tanto admirar as maravilhas que o mundo lá reuniu, como ver
a valente cidade outra vez feliz e triunfante; ver a formosa cabeça
da França de novo levantada ao alto, depois de ter estado durante oito
anos voluntariamente curvada para o chão. Há oito anos! Neste
mesmo mês de Maio, franceses bateram-se contra franceses numa guerra
feroz e fanática, sob os frios olhares dos Prussianos, que de redor,
de braços cruzados, esperando sossegadamente os seus cinco milliards,
viam, cofiando as barbas doutorais, Paris a arder! E sete anos depois, pagas
todas as dívidas, libertado todo o território e reedificadas
todas as ruínas, replantados todos os campos, a França está
bastante de posse de si mesma, bastante rica, com vagares bastantes para dar
ao mundo, na sua capital embelezada, a maior festa de civilização
deste século. Valente nação! Diz-se que toda esta forte
ressurreição é devida à república. Bom
Deus, sejamos justos, é devida à França! É o seu
imenso poder recuperativo, o seu génio, a sua laboriosidade, a sua
ordem, a sua economia, a sua sábia previdência, que a habilitaram,
depois de um curto espaço de recolhimento e de trabalho, a reaparecer
à frente da civilização, mais forte, mais rica, mais
inteligente, outra vez la belle France. E aparece-nos com uma feição
que lhe não conhecíamos – nós os que fomos educados
quando já o império estava feito – aparece-nos grave e
alegre.

Não perdeu nada de verve, e ganhou muito de reflexão: abandonou
sobretudo um dos seus defeitos irritantes, a jactância – aquele
alarde fanfarrão, retorcendo as guias e de mão na cinta, que
fazia propor aos mais práticos, aos mais moderados, como Emile de Girardon,
que não se batessem os Prussianos a tiro, mas a coronhadas, por desprezo!
As felicitações da imprensa inglesa à França pela
sua aleluia têm sido nobres, fraternais, profundas. A França
tem-se enternecido. Mas o que a lisonjeou, o que a electrizou, foram as belas
palavras do príncipe de Gales no banquete que lhe ofereceram em Paris
os expositores ingleses. Respondendo à saúde que lhe fizera
Lord Granville, dirigiu-se ao ministro das Obras Públicas de França,
e disse-lhe: «Diga à França que a amo de todo o coração,
que ninguém segue mais comovido a sua prodigiosa prosperidade e que
a Inglaterra se regozija em concorrer para o esplendor da Exposição,
feita no país que sobre todos estima, e a quem tanto deve. Estas frases
foram cobertas por um hurra prodigioso dos trezentos expositores ingleses
que se sentavam no banquete, que eram todos celebridades da aristocracia,
da ciência, da arte, da indústria – e no outro dia ecoavam
por toda a França. A alegria dos jornais republicanos foi imensa: em
artigos comovidos, todos agradeceram as palavras mais amigas, e as primeiras
que um príncipe estrangeiro dirige à França depois dos
seus desastres. O Paris Journal, como um homem que a emoção
sufoca e que põe todo o seu reconhecimento numa exclamação
curta e balbuciada, imprimiu apenas em caracteres grossos: Merci, monseigneur!
O facto é que o príncipe de Gales é hoje um dos homens
mais populares da França. Paris adora-o; sem lhe fazerem as ovações,
que a gravidade republicana não comporta, cercam-no, onde quer que
vá, de uma simpatia comovida. Em Inglaterra mesmo, a satisfação
pelo discurso do príncipe é grande. No fundo, se a Inglaterra
tem uma simpatia, digamos um fraco, é a França. E ama-a desinteressadamente:
a Inglaterra é um pais de raciocínio muito prático para
sonhar quimeras, e supor que a França, porque um príncipe inglês
ergue o seu copo de champanhe e lhe dirige em francês muito parisiense
algumas palavras de simpatia pessoal no calor de um bom jantar – que
a França vai, toda reconhecida, apoiar a Inglaterra nas suas pretensões
ou nos seus interesses políticos.

A Inglaterra, por exemplo, na questão do Oriente, não conta
com a França; não espera nada dela, em circunstância alguma,
a não ser naturalmente aquele alto apoio moral, a simpatia de espírito
que se devem duas grandes nações que são no mundo responsáveis
pelo progresso humano. O amor da Inglaterra à França (que se
tem sempre desenvolvido desde 1830, mas que tomou uma feição
mais íntima desde a queda do infecto império) tem bases seguras,
com raízes no mesmo temperamento das duas nações, e é
a garantia, creio, de uma longa paz entre elas. Em primeiro lugar estimam-se
como dois velhos combatentes leais, que foram um para outro causa de grande
glória: se a Inglaterra expulsou a França da Índia, a
França promoveu e realizou a expulsão dos Ingleses da América;
se Napoleão, durante dez anos, teve, através do continente,
a Inglaterra em perpétuo échec, o leão britânico
tomou a sua desforra em Waterloo; depois foram aliados na Crimeia e aliados
na China. Mesmo combatendo-a, ou recusando-lhe o seu auxílio, a Inglaterra
i5ez à França impagáveis serviços: em Waterloo
desembaraçou-a de um tirano insensato; em 1870, deixando consumar o
grande desastre, desembaraçou-a para sempre dos Bonapartes. Terminado
o período da guerra, as relações comerciais das duas
nações vizinhas cresceram a ponto que, sem uma, a outra faria
bancarrota. O Inglês, que não sabe língua nenhuma, só
condescende em aprender o francês; é por isso talvez que é
a nação que mais visita; é raro o inglês que não
tenha percorrido a França; socialmente, Paris é quase tanto
a sua capital como Londres; se em Paris encontra a vivacidade, o brilho, a
verve da vida que o seduz, na província encontra as sólidas
qualidades que admira e sem as quais não concede a sua estima –
as qualidades de trabalho, de virtude doméstica, de perseverança
e de probidade. A França é o jardim de Inglaterra: e lá
que o negociante vai descansar do tráfico da City, o fidalgo da monotonia
da vida do campo, o professor dos trabalhos da escola, o clérigo da
secura das missões. É a única nação que
o baixo povo estima; french, frenchman, são as palavras com que a população
designa o estrangeiro amável; quando as ruas, nalguma gala nacional,
se empavezam e se adornam, a única bandeira europeia que se vê
é a heróica tricolor; nos livreiros das mais pequenas vilas
se vendem livros franceses. O inglês tem um reconhecimento profundo
ao pais que produz o vinho de Borgonha; a inglesa é grata à
terra que lhe manda as sedas de Lião.

A gente menos educada, que não sabe qual é a forma de governo
que rege a Espanha ou a Itália, está ao facto inteiramente da
moderna história da França.

Nas classes ilustradas, a história e a literatura francesas são
tão familiares como a inglesa. Em todos os grandes jornais há
diariamente um artigo de fundo sobre os negócios interiores da França;
a campanha contra o ministério Broglie, o ano passado, era dirigida
pelo Times. E a amizade da Inglaterra pela França é tão
forte que lhe faz sacrifícios; há um ano que a Inglaterra é
aconselhada, instada, persuadida, tentada a que ocupe o Egipto: e porque tem
resistido? Para não ferir susceptibilidades francesas.

O Daily Telegraph disse num artigo memorável: «Percamos todos
os interesses, mas não desagrademos aos Parisienses.» E foi para
agradar aos Parisienses que a Inglaterra mandou à Exposição
o que em arte e indústria tinha de melhor, do passado e do presente.
E a Inglaterra certamente que mais concorre para o esplendor da Exposição,
e a Inglaterra inteira, como dizem os grandes jornais, falou pela boca do
príncipe de Gales.

Têm sido singularmente lamentáveis os sucessos do Lancashire,
onde milhares e milhares de operários tecelões estão
em greve. Os motivos desta greve são complicados e prendem-se com uma
difícil questão de economia política. Em presença
da grande depressão no comércio dos algodões e dos tecidos,
os operários entendem que é necessário produzir menos
para que os grandes depósitos existentes se esvaziem e o equilíbrio
do mercado se restabeleça: os patrões entendem que é
necessário produzir na mesma proporção anterior, mas
que é indispensável baixar o preço da mão-de-obra.
Esta desinteligência produziu uma greve, a maior que se tem dado em
Inglaterra há cinquenta anos. Greve cuja especialidade bem triste foi
a de que esteve próxima a tomar o aspecto de uma revolta. Os operários
de Lancashire passaram sempre por serem os mais inteligentes, os mais sérios,
os mais honestos, da grande população obreira da Inglaterra:
numa semana, num momento de irritação, de vingança ou
de desesperança, perderam esta nobre reputação. Hoje
os jornais sérios consideram-nos «como a mais infecta populaça».
Que se passou? Que os operários, em lugar de discutirem tranquilamente
(como pediam jornais sérios) o meio de conciliar as suas divergências
com os patrões, preferiram fazer uma pequena insurreição
local com todos os incidentes típicos – janelas quebradas, polícia
apedrejada, etc. Ao princípio, isto pareceu apenas um desabafo de temperamento
exaltado: esperou-se que a razão voltaria, com ela a tranquilidade.
Mas ou que a impassibilidade dos patrões diante desta manifestação
de força os irritava; ou que pequenas desordens locais lhes dessem
o apetite de uma verdadeira insurreição provincial; ou que uma
multidão imensa de populaça vadia e ociosa se viesse reunir,
na esperança dos proveitos que traz a anarquia, à massa mais
séria dos operários, o facto é que o que começara
por uma algazarra ia terminando numa revolução.

As janelas quebradas levaram às portas arrombadas; depois de algumas
pedradas atiradas à polícia vieram os tiros dados contra as
tropas – e por todo o distrito que cerca Manchéster, durante
três dias, reinou uma anarquia que lembra as clássicas guerras
civis de Navarra.

Manufacturas incendiadas, casas destruídas, lojas de bebidas saqueadas,
patrões perseguidos a tiros, reclamações forçadas
de dinheiro e de provisões, nada faltou para dar ao distrito de Manchéster
o aspecto atroz de uma província em poder das hordas de Saballs ou
de Dorregaray. No entanto, a feição típica deste sucesso
é que os jornais radicais e liberais não só não
se indignaram, mas nem sequer lamentaram: limitaram-se a contar secamente
os ultrajes cometidos. Das associações operárias não
saiu um único protesto contra estas desordens. E não se pode
negar que a insurreição tenha nas classes radicais uma vaga,
uma imponderável simpatia.

Tropas rapidamente concentradas puseram, naturalmente, fim a este estado
tumultuoso, e os patrões sentiram logo a necessidade de entrar em conciliação
com os operários, que montam a mais de cem mil.

Se esta conciliação se não fizer, creio que veremos
graves acontecimentos. E muito bonito realmente falar na ordem, no respeito
à propriedade, no sentimento de obediência à lei, etc.,
mas quando milhares de homens vêem a sua família sem lume na
lareira, sem um pedaço de pão, os filhos a morrer de miséria,
e ao mesmo tempo os patrões, prósperos e fartos, comprando propriedades,
quadros, apostando nas corridas e dando bailes que custam centos de libras,
bom Deus, é difícil ir falar aos desgraçados de regras
de economia política e convencê-los que, em virtude dos melhores
autores da ciência económica, eles devem continuar por alguns
meses mais a comer vento e aquecer-se à cal das paredes!

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