Machado de Assis
MUSA CONSOLATRIX
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QUE A MÃO do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.
Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
De íntima paz, de vida e de conforto.
Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa
Que vales tu, desilusão dos homens?
Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
À enchente das angústias,
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.
Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me,— e haverá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!
VISIO
ERAS PÁLIDA. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos
Sobre as espáduas caíam…
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam…
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam…
Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes
Os tous lábios sequiosos.
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes..
Depois… depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei… silêncio de morte
Respirava a natureza —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.
Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado.
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.
E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
És outra, calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro do olhar sonhado,
Que a minha alma de peota
Não se vê a imagem presente
Foi a visão do passado
Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes:
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.
Inda assim, embora sonho,
Mas, sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida!
QUINZE ANOS
Oh! la fleur de l’Eden, pourquoi l’as-tu fannée,
Insoluciant enfant, belle Ève aux blonds cheveux!
Alfred de Musset
ERA UMA pobre criança …
—Pobre criança, se o eras! —
Entre as quinze primaveras
De sua vida cansada
Nem uma flor de esperança
Abria a medo. Eram rosas
Que a douda da esperdiçada
Tão festivas, tão formosas,
Desfolhava pelo chão.
— Pobre criança, se o eras! —
Os carinhos mal gozados
Eram por todos comprados,
Que os afetos de sua alma
Havia-os levado à feira,
Onde vendera sem pena
Até a ilusão primeira
Do seu doudo coração!
Pouco antes, a candura,
Coas brancas asas abertas,
Em um berço de ventura
A crianca acalentava
Na santa paz do Senhor;
Para acordá-la era cedo.
E a pobre ainda dormia
Naquele mudo segredo
Que só abre o seio um dia
Para dar entrada a amor.
Mas, por teu mal, acordaste!
Junto do berço passou-te
A festiva melodia
Da sedução … e acordou-te
Colhendo as límpidas asas,
O anjo que te velava
Nas mãos trêmulas e frias
Fechou o rosto… chorava!
Tu, na sede dos amores,
Colheste todas as flores
Que nas orlas do caminho
Foste encontrando ao passar;
Por elas, um só espinho
Não te feriu… vais andando…
Corre, criança, até quando
Fores forçada a parar!
Então, desflorada a alma
De tanta ilusão, perdida
Aquela primeira calma
Do teu sono de pureza;
Esfolhadas, uma a uma
Essas rosas de beleza
Que se esvaem como a escuma
Que a vaga cospe na praia
E que por si se desfaz;
Então quando nos teus olhos
Uma lágrima buscares,
E secos, secos de febre,
Uma só não encontrares
Das que em meio das angústias
São um consolo e uma paz;
Então, quando o frio ‘spectro
Do abandono e da penúria
Vier aos teus sofrimentos
Juntar a última injúria:
E que não vires ao lado
Um rosto, um olhar amigo,
Daqueles que são agora
Os desvelados contigo;
Criança, verás o engano
E o erro dos sonhos teus-
E dirás, – então já tarde, –
Que por tais gozos não vale
Deixar os braços de Deus.
STELLA
JÁ RARO e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o último pranto
Por todo o vasto espaço.
Tíbio clarão já cora
A tecla do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora.
À muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.
Uma por uma, vão
As pálidas estrelas,
E vão, e vão com elas
Teus sonhos, coração.
Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o úmido seio?
Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a névoa fria
Virá do roxo oriente.
Dos íntimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera,
Em lágrimas a pares,
Do amor silencioso,
Místico, doce, puro,
Dos sonhos de futuro,
Da paz, do etéreo gozo,
De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.
A virgem da manhã
Já todo o céu domina …
Espero-te, divina,
Espero-te, amanhã.
EPITÁFIO DO MÉXICO
DOBRA o joelho: — é um túmulo.
Embaixo amortalhado
Jaz o cadáver tépido
De um povo aniquilado;
A prece melancólica
Reza-lhe em torno à cruz.
Ante o universo atônito
Abriu-se a estranha liça
Travou-se a luta férvida
Da força e da justiça;
Contra a justiça, ó século,
Venceu a espada e o obus.
Venceu a força indômita;
Mas a infeliz vencida
A mágoa, a dor, o ódio,
Na face envilecida
Cuspiu-lhe. E a eterna mácula
Seus louros murchará.
E quando a voz fatídica
Da santa liberdade
Vier em dias prósperos
Clamar à humanidade
Então revivo o México
Da campa surgirá
POLÔNIA
E ao terceiro dia a alma deve voltar ao
corpo, e a nação ressuscitará.
Mickiewicz
COMO AURORA de um dia desejado,
Clarão suave o horizonte inunda.
É talvez a manhã. A noite amarga
Como que chega ao termo; e o sol dos livres,
Cansado de te ouvir o inútil pranto,
Alfim ressurge no dourado Oriente.
Eras livre —tão livre como as águas
Do teu formoso, celebrado rio;
A coroa dos tempos
Cingia-te a cabeça veneranda;
E a desvelada mãe, a irmã cuidosa,
A santa liberdade,
Como junto de um berço precioso,
À porta dos teus lares vigiava.
Eras feliz demais, demais formosa;
A sanhuda cobiça dos tiranos
Veio enlutar teus venturosos dias…
Infeliz! a medrosa liberdade
Em face dos canhões espavorida
Aos reis abandonou teu chão sagrado;
Sobre ti, moribunda,
Viste cair os duros opressores:
Tal a gazela que percorre os campos,
Se o caçador a fere,
Cai convulsa de dor em mortais ânsias,
E vê no extremo arranco
Abater-se sobre ela
Escura nuvem de famintos corvos.
Presa uma vez da ira dos tiranos,
Os membros retalhou-te
Dos senhores a esplêndida cobiça;
Em proveito dos reis a terra livre
Foi repartida, e os filhos teus—escravos—
Viram descer um véu de luto à pátria
E apagar-se na história a glória tua.
A glória, não!—É glória o cativeiro,
Quando a cativa, como tu, não perde
A aliança de Deus, a fé que alenta
E essa união universal e muda
Que faz comuns a dor, o ódio, a esperança.
Um dia, quando o cálix da amargura,
Mártir, até às fezes esgotaste,
Longo tremor correu as fibras tuas;
Em teu ventre de mãe, a liberdade
Parecia soltar esse vagido
Que faz rever o céu no olhar materno;
Teu coração estremeceu; teus lábios
Trêmulos de ansiedade e de esperança,
Buscaram aspirar a longos tragos
A vida nova nas celestes auras.
Então surgiu Kosciuszko;
Pela mão do Senhor vinha tocado
A fé no coração, a espada em punho,
E na ponta da espada a torva morte,
Chamou aos campos a nação caída.
De novo entre o direito e a força bruta
Empenhou-se o duelo atroz e infausto
Que a triste humanidade
Inda verá por séculos futuros.
Foi longa a luta; os filhos dessa terra
Ah! não pouparam nem valor nem sangue!
A mãe via partir sem pranto os filhos
A irmã o irmão, a esposa o esposo,
E todas abençoavam
A heróica legião que ia à conquista
Do grande livramento.
Coube às hostes da força
Da pugna o alto prêmio;
A opressão jubilosa
Cantou essa vitória de ignomínia;
E de novo, ó cativa, o véu de luto
Correu sobre teu rosto!
Deus continha
Em suas mãos o sol da liberdade,
E inda não quis que nesse dia infausto
Teu macerado corpo alumiasse.
Resignada à dor e ao infortúnio,
A mesma fé, o mesmo amor ardente
Davam-te a antiga força.
Triste viúva, o templo abriu-te as portas;
Foi a hora dos hinos e das preces;
Cantaste a Deus, tua alma consolada
Nas asas da oração aos céus subia,
Como a refugiar-se e a refazer-se
No seio do infinito.
E quando a forca do feroz cossaco
À casa do Senhor ia buscar-te,
Era ainda rezando
Que te arrastavas pelo chão da igreja.
Pobre nação!—é longo o teu martírio;
A tua dor pede vingança e termo;
Muito hás vertido em lágrimas e sangue;
É propícia esta hora. O sol dos livres
Como que surge no dourado Oriente.
Não ama a liberdade
Quem não chora contigo as dores tuas;
E não pede, e não ama, e não deseja
Tua ressurreição, finada heróica!
ERRO
ERRO É TEU. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Não foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indiferente,
Em tua presença, vivo,
Morto, se estavas ausente,
E se ora me vês esquivo
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que,—como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frívolas quimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A glória de me arrastar
Ao teu carro… Vãs quimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras…
ELEGIA
A bondade choremos inocente
Cortada em flor que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada dentre a gente.
CAMÕES
SE, COMO OUTRORA, nas florestas virgens,
Nos fosse dado—o esquife que te encerra
Erguer a um galho de árvore frondosa
Certo, não tinhas um melhor jazigo
Do que ali, ao ar livre, entre os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
Do clarão das estrelas.
Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa, a noite ali derramaria
De seus negros cabelos puro orvalho
À beira do teu último jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos
Nem letra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dor, um pranto oculto,
Dissesse: —Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transunto
De virtudes e graças.
Mal havia transposto da existência
Os dourados umbrais; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flores
Que o amor, que o talento e a mocidade
À uma repartiam.
Tudo lhe era presságio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o íris da esperança;
Era, enfim, entre os seus a cópia viva
Dessa ventura que os mortais almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem.
Deixa gozar na terra.
Mas eis que o anjo pálido da morte
A pressentiu feliz e bela e pura
E, abandonando a região do olvido,
Desceu à terra, e sob a asa negra
A fronte lhe escondeu; o frágil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
Veio fechar seus olhos
Enquanto a alma abrindo
As asas rutilantes pelo espaço.
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
Tal a assustada pomba, que na árvore
O ninho fabricou,—se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
No seio do infinito
O recatado asilo,—abrindo o vôo,
Deixa os inúteis restos
E, atravessando airosa os leves ares
Vai buscar noutra parte outra guarida.
Hoje, do que era inda lembrança resta
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra dela
O atento ouvido inda lhe escuta os passos
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes
Como que soltam essas doces notas
Que outrora ao seu contacto respondiam.
Ah! pesava-lhe este ar da terra impura
Faltava-lhe esse alento de outra esfera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
As palmas da virtude.
Mas, quando assim a flor da mocidade
Toda se esfolha sobre o chão da morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra? Tudo morre;
A sentença fatal nada se esquiva,
O que é fruto e o que é flor. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze
Um edifício resistente aos tempos
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
O castelo se abate,
Onde, doce ilusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
Encerra de esperanças.
Dorme, dorme tranqüila
Em teu último asilo: e se eu não pude
Ir espargir também algumas flores
Sobre a lájea da tua sepultura;
Se não pude,—eu que há pouco te saudava
Em teu erguer, estrela,—os tristes olhos
Banhar nos melancólicos fulgores,
Na triste luz do teu recente ocaso,
Deixo-te ao menos nesses pobres versos
Um penhor de saudade , e lá na esfera
Aonde aprouve ao Senhor chamar-te cedo
Possas tu ler nas pálidas estrofes
A tristeza do amigo.
SINHÁ
O teu nome é como o óleo derramado.
Cântico dos Cânticos.
NEM O PERFUME que expira
A flor, pela tarde amena,
Nem a nota que suspira
Canto de saudade e pena
Nas brandas cordas da lira;
Nem o murmúrio da veia
Que abriu sulco pelo chão
Entre margens de alva areia,
Onde se mira e recreia
Rosa fechada em botão;
Nem o arrulho enternecido
Das pombas nem do arvoredo
Esse amoroso arruído
Quando escuta algum segredo
Pela brisa repetido;
Nem esta saudade pura
Do canto do sabiá
Escondido na espessura
Nada respira doçura
Como o teu nome, Sinhá!
HORAS VIVAS
NOITE; abrem-se as flores.
Que esplendores!
Cíntia sonha amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas
Como um véu.
Mãos em mãos travadas
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar
Soltos os cabelos,
Em novelos
Puros, louros, belos
A voar.
“Homem, nos teus dias
Que agonias
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras
Como as derradeiras
Ilusões!
Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas malferidas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos
Vêm os desenganos
Afinal.
Dorme: se os pesares
Repousares.
Vês? —por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos—horas vivas
De dormir. —”
VERSOS A CORINA
Tacendo il nome di questa gentilissima
DANTE
I
TU NASCESTE de um beijo e de um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a forma peregrina,
Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!
De um júbilo divino os cantos entoava
A natureza mãe, e tudo palpitava,
A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude
De uma vida melhor e nova juventude.
Minh’alma adivinhou a origem do teu ser;
Quis cantar e sentir; quis amar e viver
A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre criatura;
Do amor grande elevado abriram-se-lhe as fontes
Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes
Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;
Era o dia marcado à minha redenção.
Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de querubim;
Era assim: fronte altiva e gesto soberano
Um porte de rainha a um tempo meigo e ufano
Em olhos senhoris uma luz tão serena,
E grave como Juno, e belo como Helena!
Era assim, a mulher que extasia e domina
A mulher que reúne a terra e o céu: Corina!
Neste fundo sentir, nesta fascinação,
Que pede do poeta o amante coração?
Viver como nasceste, ó beleza, ó primor
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.
Viver, —fundir a existência
Em um ósculo de amor,
Fazer de ambas—uma essência,
Apagar outras lembranças,
Perder outras ilusões,
E ter por sonho melhor
O sonho das esperanças
De que a única ventura
Não reside em outra vida,
Não vem de outra criatura;
Confundir olhos nos olhos,
Unir um seio a outro seio,
Derramar as mesmas lágrimas
E tremer do mesmo enleio,
Ter o mesmo coração,
Viver um do outro viver…
Tal era a minha ambição.
Donde viria a ventura
Desta vida? Em que jardim
Colheria esta flor pura?
Em que solitária fonte
Esta água iria beber’?
Em que incendido horizonte
Podiam meus olhos ver
Tão meiga, tão viva estrela,
Abrir-se e resplandecer?
Só em ti: —em ti que és bela,
Em ti que a paixão respiras,
Em ti cujo olhar se embebe
Na ilusão de que deliras,
Em ti, que um ósculo de Hebe
Teve a singular virtude
De encher, de animar teus dias,
De vida e de juventude…
Amemos! diz a flor à brisa peregrina,
Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor;
Cantemos esta lei e vivamos, Corina,
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.
II
A minha alma, talvez, não é tão pura,
Como era pura nos primeiros dias;
Eu sei; tive choradas agonias
De que conservo alguma nódoa escura,
Talvez. Apenas à manhã da vida
Abri meus olhos virgens e minha alma.
Nunca mais respirarei a paz e a calma,
E me perdi na porfiosa lida.
Não sei que fogo interno me impelia
À conquista da luz, do amor, do gozo,
Não sei que movimento imperioso
De um desusado ardor minha alma enchia.
Corri de campo em campo e plaga em plaga.
(Tanta ansiedade o coração encerra!)
A ver o lírio que brotasse a terra,
A ver a escuma que cuspisse — a vaga.
Mas, no areal da praia, no horto agreste,
Tudo aos meus olhos ávidos fugia…
Desci ao chão do vale que se abria,
Subi ao cume da montanha alpestre.
Nada! Volvi o olhar ao céu. Perdi-me
Em meus sonhos de moço e de poeta;
E contemplei, nesta ambição inquieta
Da muda noite a página sublime.
Tomei nas mãos a citara saudosa
E soltei entre lágrimas um canto.
A terra brava recebeu meu pranto
E o eco repetiu-me a voz chorosa.
Foi em vão. Como um languido suspiro,
A voz se me calou, e do ínvio monte
Olhei ainda as linhas do horizonte,
Como se olhasse o último retiro.
Nuvem negra e veloz corria solta
O anjo da tempestade anunciando
Vi ao longe as alcíones cantando
Doidas correndo à flor da água revolta.
Desiludido, exausto, ermo, perdido,
Busquei a triste estância do abandono
E esperei, aguardando o ultimo sono
Volver à terra, de que foi nascido.
“Ó Cibele fecunda, é no remanso
Do teu seio que vive a criatura;
Chamem-te outros morada triste e escura,
Chamo-te glória, chamo-te descanso!”
Assim falei. E murmurando aos ventos
Uma blasfêmia atroz — estreito abraço
Homem e terra uniu, e em longo espaço
Aos ecos repeti meus vãos lamentos.
Mas, tu passaste… Houve um grito
Dentro de mim. Aos meus olhos
Visão de amor infinito,
Visão de perpétuo gozo
Perpassava e me atraía,
Como um sonho voluptuoso
De sequiosa fantasia.
Ergui-me logo do chão,
E pousei meus olhos fundos
Em teus olhos soberanos,
Ardentes, vivos, profundos,
Como os olhos da beleza
Que das escumas nasceu…
Eras tu, maga visão
Eras tu o ideal sonhado
Que em toda a parte busquei,
E por quem houvera dado
A vida que fatiguei;
Por quem verti tanto pranto,
Por quem nos longos espinhos
Minhas mãos, meus pés sangrei!
Mas se minh’alma, acaso, é menos pura
De que era pura nos primeiros dias,
Por que não soube em tantas agonias
Abençoar a minha desventura;
Se a blasfêmia os meus lábios poluíra,
Quando, depois de tempo e do cansaço,
Beijei a terra no mortal abraço
E espedacei desanimado a lira;
Podes, visão formosa e peregrina,
No amor profundo, na existência calma
Desse passado resgatar minh’alma
E levantar-me aos olhos teus, — Corina!
III
Quando voarem minhas esperanças
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas ilusões doces e vivas
Só me restarem pálidas lembranças;
E abandonar-me a minha mãe Quimera,
Que me aleitou aos seios abundantes;
E vierem as nuvens flamejantes
Encher o céu da minha primavera;
E raiar para mim um triste dia,
Em que, por completar minha tristeza
Nem possa ver-te, musa da beleza,
Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;
Quando assim seja, por teus olhos juro,
Voto minh’alma à escura soledade,
Sem procurar melhor felicidade,
E sem ambicionar prazer mais puro,
Como o viajor que, da falaz miragem,
Volta desenganado ao lar tranqüilo
E procura, naquele último asilo,
Nem evocar memórias da viagem;
Envolvido em mim mesmo, olhos cerrados
A tudo mais,—a minha fantasia
As asas colherá com que algum dia
Quis alcançar os cimos elevados.
És tu a maior glória de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança
De que me servirá outra esperança?
Que glória tirarei de alheia palma?
IV
Tu que és bela e feliz, tu que tens por diadema
A dupla irradiação da beleza e do amor;
E sabes reunir, como o melhor poema,
Um desejo da terra e um toque do Senhor;
Tu que, como a ilusão, entre névoas deslizas
Aos versos do poeta um desvelado olhar,
Corina, ouve a canção das amorosas brisas,
Do poeta e da luz, das selvas e do mar.
AS BRISAS
Deu-nos a harpa eólia a excelsa melodia
Que a folhagem desperta e torna alegre a flor,
Mas que vale esta voz, ó musa da harmonia,
Ao pé da tua voz, filha da harpa do amor?
Diz-nos tu como houveste as notas do teu canto?
Que alma de serafim volteia aos lábios teus?
Donde houveste o segredo e o poderoso encanto
Que abre a ouvidos mortais a harmonia dos céus?
A LUZ
Eu sou a luz fecunda, alma da natureza;
Sou o vivo alimento à viva criação.
Deus lançou-me no espaço. A minha realeza
Vai até onde vai meu vívido clarão.
Mas, se derramo vida a Cibele fecunda,
Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor,
A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda.
Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor.
AS ÁGUAS
Do lume da beleza o berço celebrado
Foi o mar; Vênus bela entre espumas nasceu.
Veio a idade de ferro, e o nume venerado
Do venerado altar baqueou: —pereceu.
Mas a beleza és tu. Como Vênus marinha
Tens a inefável graça e o inefável ardor.
Se paras, és um nume; andas, uma rainha.
E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor.
Chamam-te as águas, vem! tu irás sobre a vaga.
A vaga, a tua mãe que te abre os seios nus,
Buscar adorações de uma plaga a outra plaga.
E das regiões da névoa às regiões da luz!
AS SELVAS
Um silêncio de morte entrou no seio às selvas.
Já não pisa Diana este sagrado chão,
Nem já vem repousar no leito destas relvas
Aguardando saudosa o amor e Endimião.
Da grande caçadora a um solicito aceno
Já não vem, não acode o grupo jovial;
Nem o eco repete a flauta de Sileno,
Após o grande ruído a mudez sepulcral.
Mas Diana aparece. A floresta palpita,
Uma seiva melhor circula mais veloz;
É vida que renasce, é vida que se agita;
À luz do teu olhar, ao som da tua voz!
O POETA
Também eu, sonhador, que vi correr meus dias
Na solene mudez da grande solidão,
E soltei, enterrando as minhas utopias,
O último suspiro e a última oração;
Também eu junto à voz da natureza,
E soltando o meu hino ardente e triunfal,
Beijarei ajoelhado as plantas da beleza,
E banharei minh’alma em tua luz, — Ideal!
Ouviste a natureza? Às súplicas e às mágoas
Tua alma de mulher deve de palpitar;
Mas que te não seduza o cântico das águas,
Não procures, Corina, o caminho do mar!
V
Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alivio à minha soledade,
Como um dever do meu amor, e quando
Houver em ti um eco de saudade
Beija estes versos que escrevi chorando.
Único em meio das paixões vulgares
Fui a teus pés queimar minh`alma ansiosa,
Como se queima o óleo ante os altares;
Tive a paixão indômita e fogosa,
Única em meio das paixões vulgares.
Cheio de amor, vazio de esperança,
Dei para ti os meus primeiros passos
Minha ilusão fez-me talvez, criança;
E eu pretende dormir aos teus abraços,
Cheio de amor, vazio de esperança.
Refugiado à sombra do mistério
Pude cantar meu hino doloroso:
E o mundo ouviu o som doce ou funéreo
Sem conhecer o coração ansioso
Refugiado à sombra do mistério.
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Vejo que em teus olhares de princesa
Transluz uma alma ardente e compassiva
Capaz de reanimar minha incerteza
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Como um réu indefeso e abandonado
Fatalidade, curvo-me ao teu gesto;
E se a perseguição me tem cansado.
Embora, escutarei o teu aresto.
Como um réu indefeso e abandonado,
Embora fujas aos meus olhos tristes
Minh’alma irá saudosa, enamorada
Acercar-se de ti lá onde existes
Ouvirás minha lira apaixonada,
Embora fujas aos meus olhos tristes,
Talvez um dia meu amor se extinga,
Como fogo de Vesta mal cuidado,
Que sem o zelo da Vestal não vinga;
Na ausência e no silêncio condenado
Talvez um dia meu amor se extinga,
Então não busques reavivar a chama.
Evoca apenas a lembrança casta
Do fundo amor daquele que não ama
Esta consolação apenas basta;
Então não busques reavivar a chama.
Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alívio à minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade
Beija estes versos que escrevi chorando.
VI
Em vão! Contrário a amor é nada o esforço humano;
É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano.
Solta do chão abrindo as asas luminosas
Minh’alma se ergue e voa às regiões venturosas,
Onde ao teu brando olhar, ó formosa Corina?
Reveste a natureza a púrpura divina!
Lá, como quando volta a primavera em flor,
Tudo sorri de luz tudo sorri de amor;
Ao influxo celeste e doce da beleza,
Pulsa, canta, irradia e vive a natureza;
Mais languida e mais bala, a tarde pensativa
Desce do monte ao vale: e a viração lasciva
Vai despertar à noite a melodia estranha
Que falam entre si os olmos da montanha;
A flor tem mais perfume e a noite mais poesia;
O mar tem novos sons e mais viva ardentia;
A onda enamorada arfa e beija as areias,
Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!
O esplendor da beleza é raio criador:
Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor.
Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de vida
Eu, tão longe de ti, sinto a dor mal sofrida
Da saudade que punge e do amor que lacera
E palpita e soluça e sangra e desespera.
Sinto em torno de mim a muda natureza
Respirando, como eu, a saudade e a tristeza
E deste ermo que eu vou, alma desventurada,
Murmurar junto a ti a estrofe imaculada
Do amor que não perdeu, com a última esperança.
Nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança.
Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda,
Do meu sombrio céu alma estrela bem-vinda!
Como divaga a abelha inquieta e sequiosa
Do cálice do lírio ao cálice da rosa,
Divaguei de alma em alma em busca deste amor;
Gota de mel divino, era divina a flor
Que o devia conter. Eras tu.
No delírio
De te amar— olvidei as lutas e o martírio;
Eras tu. Eu só quis, numa ventura calma,
Sentir e ver o amor através de uma alma;
De outras belezas vãs não valeu o esplendor,
A beleza eras tu: — tinhas a alma e o amor.
Pelicano do amor dilacerei meu peito,
E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;
Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
Por eles reparti minh’alma. Na provança
Ele não fraqueou, antes surgiu mais forte;
É que eu pus neste amor, neste último transporte,
Tudo o que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
A vênia do passado e a ambição do futuro,
O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro.
Deste profundo amor, doce e amada Corina,
Acorda-te a lembrança um eco de aflição?
Minh’alma pena e chora à dor que a desatina:
Sente tua alma acaso a mesma comoção?
Em vão! Contrário a amor é nada o esforço humano,
É nada o vasto espaço, é nada o vasto oceano!
Vou, sequioso espírito,
Cobrando novo alento
N’asa veloz do vento
Correr de mar em mar;
Posso, fugindo ao cárcere,
Que à terra me tem preso,
Em novo ardor aceso,
Voar, voar, voar!
Então, se à hora lânguida
Da tarde que declina
Do arbusto da colina
Beijando a folha e a flor
A brisa melancólica
Levar-te entre perfumes
Uns tímidos queixumes
Ecos de mágoa e dor;
Então, se o arroio tímido
Que passa e que murmura
À sombra da espessura
Dos verdes salgueirais,
Mandar-te entre os murmúrios
Que solta nos seus giros,
Uns como que suspiros
De amor, uns ternos ais;
Então, se no silêncio
Da noite adormecida
Sentires—mal dormida
Em sonho ou em visão,
Um beijo em tuas pálpebras,
Um nome aos teus ouvidos
E ao som de uns ais partidos
Pulsar teu coração.
Da mágoa que consome
O meu amor venceu
Não tremas: — é teu nome,
Não fujas— que sou eu!
ÚLTIMA FOLHA
MUSA, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.
Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.
Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.
Desce. Virá um dia em que mais bela.
Mais alegre, mais cheia de harmonias
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.
Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã,—e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos
Irás, musa celeste!
Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;
Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalo;
E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar
Parecem, como um concerto
Palpitar, sorrir, orar;
Então, sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza
A ventura, o amor e a paz!
Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;
Lá onde, abrindo as asas ambiciosas
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro
Fartar-se do infinito!
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia.
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
CRISÁLIDAS
(DA PRIMEIRA EDIÇÃO)
LÚCIA 1860
(ALFRED DE MUSSET)
Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balças
E temendo acordar a ave no bosque;
Em tomo respiravam as boninas
Das noites belas as volúpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Branco embalavam orvalhados ramos;
Ouvíamos a noite; entrefechada,
A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos,
E tínhamos quinze anos!
Lúcia era loura e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a arriava – e tanto! –
Era assim de um irmão o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!
Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mãos nas minhas;
Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,
E a cada movimento – na minh’alma
Eu sentia, meu Deus, como fascinam
Os dois signos de paz e de ventura:
Mocidade da fronte
E primavera d’alma.
A lua levantada em céu sem nuvens
Com uma onda de luz veio inundá-la;
Ela viu sua imagem nos meus olhos,
Um riso de anjo desfolhou nos lábios
E murmurou um canto.
Filha da dor, ó lânguida harmonia!
Língua que o gênio para amor criara –
E que, herdara do céu, nos deu a Itália!
Língua do coração – onde alva idéia,
– Virgem medrosa da mais leve sombra,
Passa envolta num véu e oculta aos olhos!
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
Nascidos do ar, que ele respira – o infante?
Vê-se um olhar, uma lágrima na face,
O resto é um mistério ignoto às turbas,
Como o do mar, da noite e das florestas!
Estávamos a sós e pensativos.
Eu contemplava-a. Da canção saudosa
Como que em nós estremecia um eco.
Ela curvou a lânguida cabeça…
Pobre criança! – no teu seio acaso
Desdêmona gemia? Tu choravas,
E em tua boca consentias triste
Que eu depusesse estremecido beijo;
Guardou-a a tua dor ciosa e muda:
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvalaste à campa;
Foi, com a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.
Doces mistérios do singelo tecto
Onde a inocência habita;
Cantos, sonhos d’amor, gozos de infante,
E tu, fascinação doce e invencível,
Que à porta já de Margarida, – o Fausto
Fez hesitar ainda,
Candura santa dos primeiros anos,
Onde parais agora?
Paz à tua alma, pálida menina!
Ermo de vida, o piano em que tocavas
Já não acordará: sob os teus dedos!
O DILÚVIO 1863
E caiu a chuva sobre a terra quarenta
dias e quarenta noites.
GÊNESIS – C. V14 V. 12
Do sol ao raio esplêndido, Pôs termo à imensa cólera
Fecundo, abençoado, Do imenso Jeová!
A terra exausta e úmida
Surge, revive já; Que mar não foi! que túmidas
Que a morte inteira e rápida As águas não rolavam!
Dos filhos do pecado
Tudo tornou-se um mar; Dentro a esperança, os cânticos,
E nesta cena lúgubre A calma, a paz e o bem,
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono Cheio de amor, solícito,
Que a terra ia acabar. O olhar da divindade,
Vela os escapos náufragos
Em vão, ó pai atônito, Da imensa aluvião.
Ao seio o filho estreitas; Assim, por sobre o túmulo
Filhos, esposos, míseros, Da extinta humanidade
Em vão tentais fugir! Salva-se um berço; o vínculo
Que as águas do dilúvio Da nova criação.
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros Íris, da paz o núncio,
Subir, subir, subir! O núncio do concerto,
Só, como a idéia única Riso do Eterno em júbilo,
De um mundo que se acaba, Nuvens do céu rasgou;
Erma, boiava intrépida, E a pomba, a pomba mística,
A arca de Noé; Voltando ao lenho aberto,
Pura das velhas nódoas Do arbusto da planície
De tudo o que desaba, Um ramo despencou.
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé. Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Lá vai! Que um vento alígero, Viçam de novo as árvores,
Entre os contrários ventos, Brota de novo a flor;
Ao lenho calmo e impávido E ao som de nossos cânticos,
Abre caminho além … Ao fumo do holocausto
Lá vai! Em torno angústias, Desaparece a cólera
Clamores e lamentos; Do rosto do Senhor.
FÉ 1863
Muéveme, en fin, tu amor en tal manera,
Que, aunque no hubiera cielo, yo te amara
SANTA TERESA DE JESUS
As orações dos homens
Subam eternamente aos teus ouvidos;
Eternamente aos teus ouvidos soem
Os cânticos da terra.
No turvo mar da vida
Onde aos parcéis do crime a alma naufraga,
A derradeira bússola nos seja,
Senhor, tua palavra,
A melhor segurança
Da nos íntima paz, Senhor, é esta;
Esta a luz que há de abrir à estância eterna
O fúlgido caminho.
Ah! feliz o que pode,
No extremo adeus às coisas deste mundo,
Quando a alma, despida de vaidade,
Vê quanto vale a terra;
Quando das glórias frias
Que o tempo dá e o mesmo tempo some,
Despida já, – Os olhos moribundos
Volta às eternas glórias;
Feliz o que nos lábios,
No coração, na mente põe teu nome,
E só por ele cuida entrar cantando
No seio do infinito.
A CARIDADE
ELA TINHA no rosto uma expressão tão calma
como o sono inocente e primeiro de uma alma
Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;
Uma serena graça, uma graça dos céus,
Era-lhe o casto, o brando, o delicado andar,
E nas asas da brisa iam-lhe a ondear
Sobre o gracioso colo as delicadas tranças.
Levava pela mão duas gentis crianças.
Ia caminho. A um lado ouve magoado pranto.
Parou. E na ansiedade ainda o mesmo encanto
Descia-lhe às feições. Procurou. Na calçada
À chuva, ao ar ao sol, despida, abandonada
A infância lacrimosa a infância desvalida,
Pedia leito e pão, amparo, amor, guarida.
E tu, ó caridade, ó virgem do Senhor,
No amoroso seio as crianças tomaste,
E entre beijos – só teus – o pranto lhes secaste
Dando-lhes pão, guarida, amparo, leito e amor.
A JOVEM CATIVA
(ANDRÉ CHENIER)
– “Respeita a fouce a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora; morrer não quero ainda!
De olhos secos, o estóico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tímida cabeça.
Se há dias maus. também os há felizes!
Que mel não deixa um travo de desgosto?
Que mar não incha a um temporal desfeito?
Tu, fecunda ilusão, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisão do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.
Devo acaso morrer? Tranqüila durmo,
Tranqüila velo; e a fera do remorso
Não me perturba na vigília ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado júbilo.
Desta bela jornada é longe o termo.
Mal começo; e dos olmos do caminho
Passei apenas os primeiros olmos.
No festim em começo da existência
Um só instante os lábios meus tocaram
A taça em minhas mãos ainda cheia.
Na primavera estou, quero a colheita
Ver ainda, e bem como o rei dos astros,
De sazão em sazão findar meu ano.
Viçosa sobre a haste, honra das flores,
Hei visto apenas da manhã serena
Romper a luz, — quero acabar meu dia.
Morte, tu podes esperar; afasta-te!
Vai consolar os que a vergonha, o medo,
O desespero pálido devora.
Pales inda me guarda um verde abrigo,
Ósculos O amor, as musas harmonias;
Afaste-te, morrer não quero ainda!”
Assim. triste e cativa, a minha lira
Despertou escutando a voz magoada
De uma jovem e-ativa; e sacudindo
o peso de meus dias langorosos,
Acomodei à branda lei. do verso
Os acentos da linda e ingênua boca.
Sócios meus de meu cárcere, estes cantos
Farão a quem os ler buscar solícito
Quem a cativa foi; ria-lhe a graça
Na ingênua fronte, nas palavras meigas;
De um termo à vinda há de tremer, como ela,
Quem aos teus dias for casar seus dias.
NO LIMIAR 1863
CAÍA A TARDE. Do infeliz à porta,
Onde mofino arbusto aparecia
De tronco seco e de folhagem morta,
Ele que entrava e Ela que saía
Um instante pararam; um instante
Ela escutou o que Ele lhe dizia:
“Que fizeste? Teu gesto insinuante
Que lhe ensinou? Que fé lhe entrou no peito
Ao mago som da tua voz amante?
“Quando lhe ia o temporal desfeito
De que raio de sol o mantiveste?
E de que flores lhe forraste o leito.
Ela, volvendo o olhar brando e celeste,
Disse: “- Varre-lhe a alma desolada,
Que nem um ramo, uma só flor lhe reste!
“Torna-lhe, em vez da paz abençoada,
Uma vida de dor e de miséria,
Uma morte contínua e angustiada.
“Essa é a tua missão torva e funérea.
Eu procurei no lar do infortunado
Dos meus olhos ver-lhe a luz etérea.
“Busquei fazer-lhe um leito semeado
De rosas festivais, onde tivesse
Um sono sem tortura nem cuidado,
“E por que o céu que mais se lhe enegrece,
Tivesse algum reflexo de ventura
Onde o cansado olhar espairecesse,
Uma réstia de luz suave e pura
Fiz-lhe descer à erma fantasia,
De mel ungi-lhe o cálix da amargura.
“Foi tudo vão, – Foi tudo vã porfia, i
A aventura não veio. A tua hora
Chega na hora que termina o dia.
“Entra” – E o virgíneo rosto que descora
Nas mãos esconde. Nuvens que correram
Cobrem o céu que o sol já mal colora.
Ambos com um olhar se compreenderam.
Um penetrou no lar com passo ufano;
Outra tomou por um desvio: Eram:
Ela a Esperança. Ele o Desengano.
ASPIRAÇÃO
A. F. X DE VOVAIS
Qu’ apercois-tu, mon âme? Au fond, n’ est-ce-pas Dieu?
Tu vas à lui…
V. DE LAPRADE
SINTO QUE HÁ na minh’alma um vácuo imenso e fundo
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;
Muita vez, ó poeta. a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,
E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes comoções da verde mocidade.
E responde sorrindo à cruel realidade.
Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;
Tu que corres, como eu. na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmã junto a irmã,
Em santa comunhão, sem cárcere, sem véus,
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.
Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
Traja de luto a folha em que lhe deixa escritas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro.
Neste primeiro e fundo e triste limbo do erro,
Chora a pátria celeste, o foco, o cetro, a luz
Onde o anjo da morte, ou da vida, o conduz
No dia festival do grande livramento;
Antes disso, a tristeza, o sombrio tormento,
O torvo azar, e mais, a torva solidão,
Embaciam-lhe n’alma o espelho da ilusão.
O poeta chora e vê perderem-se esfolhadas
Da verde primavera as flores tão cuidadas;
Rasga, como Jesus, no caminho das dores,
Os lassos pés; o sangue umedece-lhe as flores
Mortas ali, – e a fé, a fé mãe, a fé santa,
Ao vento impuro e mau que as ilusões quebranta,
Na alma que ali se vai muitas vezes vacila …
Oh! feliz o que pode, alma alegre e tranqüila,
A esperança vivaz e as ilusões floridas,
Atravessar cantando as longas avenidas
Que levam do presente ao secreto porvir!
Feliz esse! Esse pode amar, gozar, sentir,
Viver enfim! A vida é o amor, é a paz,
É a doce ilusão e a esperança vivaz;
Não esta do poeta, esta que Deus nos pôs
Nem como inútil fardo, antes como um algoz.
O poeta busca sempre o almejado ideal…
Triste e funesto afã! tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome de amor,
O poeta corre a estrela, à brisa, ao mar, à flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,
Quer-lhe o cheiro aspirar na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar,
Ó inútil esforço! ó ímprobo lutar!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento ou da voz,
Acha-se o nada, o torvo, o impassível algoz!
Onde te escondes, pois, ideal da ventura?
Em que canto da terra, em que funda espessura
Foste esconder, ó fada, o teu esquivo lar?
Dos homens esquecido, em ermo recatado,
Que voz do coração, que lágrima, que brado
Do sono em que ora estás te virá despertar?
A esta sede de amar só Deus conhece a fonte?
Jorra ele ainda além deste fundo horizonte
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar?
Que asas nos deste, ó Deus, para transpor o espaço?
Ao ermo do desterro inda nos prende um laço:
Onde encontrar a mão que o venha desatar?
Creio que só em ti há essa luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta,
Esse alvo, esse termo esse mago ideal;
Fonte de todo o ser e fonte da verdade,
Nós vamos para ti, e em tua imensidade
É que havemos de ter o repouso final.
É triste quando a vida. erma, como esta, passa,
E quando nos impele o sopro da desgraça
Longe de ti, ó Deus, e distante do amor!
Mas guardemos, poeta, a melhor esperança:
Sucederá a glória à salutar provança:
O que a terra não deu, dar-nos-á o Senhor!
CLEÓPATRA
Canto de um escravo
(MME. EMILE DE GIRARDIN)
FILHA PÁLIDA da noite. Para a poder contemplar;
Nume feroz de inclemência, Era uma sombra calada
Sem culto nem reverencia, Que oculta força levava,
Nem crentes e nem altar, E no caminho aguardava
A cujos pés descarnados… Para saudá-la e passar.
A teus negros pés, ó morte!
Só enjeitados da sorte Um dia veio ela às fontes
Ousam frios implorar; Ver os trabalhos… não pude,
Fraqueou minha virtude,
Toma a tua foice aguda, Caí-lhe tremendo aos pés.
A arma dos teus furores; Todo o amor que devora,
Venho c’roado de flores Ó Vênus, o íntimo peito,
Da vida entregar-te a flor; Falou naquele respeito,
É um feliz que te implora Falou naquela mudez.
Na madrugada da vida,
Uma cabeça perdida Só lhe conquistam amores
E perdida amor. O herói, o bravo, o triunfante;
Era rainha e formosa, E que coroa radiante
Sobre cem povos reinava, Tinha eu para oferecer?
E tinha uma turba escrava Disse uma palavra apenas
Dos mais poderosos reis. Que um mundo inteiro continha:
Eu era apenas um servo, – Sou um escravo, rainha,
Mas amava-a tanto, tanto,
Que nem tinha um desencanto Amo-te e quero morrer.
Nos seus desprezos cruéis. E a nova Ísis que o Egito
Adora curvo e humilhado
Sem falar-lhe nem ouvi-Ia; O pobre servo curvado
Vivia distante dela Olhou lânguida a sorrir;
Só me vingava em segui-la Vi Cleópatra, a rainha,
Tremer pálida em meu seio; Escolhe dos teus castigos
Morte, foi-se-me o receio, O que infundir mais terror,
Aqui estou, podes ferir, Mas por ela, só por ela
Seja o meu padecimento
Vem! que as glórias insensatas E tenha o intenso tormento
Das convulsões mais lascivas, Na intensidade do amor.
As fantasias mais vivas,
De mais febre e mais ardor, Deixa alimentar teus corvos
Toda a ardente ebriedade Em minhas carnes rasgadas,
Dos seus reais pensamento Venham rochas despenhadas
Tudo gozei uns momentos Sobre o meu corpo rolar,
Na minha noite de amor. Mas não me tires dos lábios
Aquele nome adorado,
Pronto estou para a jornada E ao meu olhar encantado
Da estância escura e escondida; Deixa essa imagem ficar.
O sangue, o futuro, a vida
Dou-te a morte, e vou morrer; Posso sofrer os teus golpes
Uma graça única – peço Sem murmurar da sentença;
Como última esperança: A minha ventura é imensa
Não me apagues a lembrança E foi em ti que eu a achei;
Do amor que me fez viver Mas não me apagues na fronte
Os sulcos quentes e vivos
Beleza completa e rara Daqueles beijos lascivos
Deram-lhe os numes amigos: Que já me fizeram rei.
OS ARLEQUINS 1864
Sátira
Que deviendra dans 1’éternité 1’âme d’un
homme qui a fait Polichinelle toute sa vie?
MME. DE STÁEL.
MUSA, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, torna a vergasta,
E os arlequins fustiga.
Como aos olhos de Roma,
– Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, –
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;
E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caias,
Ó raio chamejante!
Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!
Vede; o aspecto vistoso,
O olhar, seguro, altivo e penetrante,
E certo ar arrogante
Que impõe com aparências de assombroso;
Não vacila, não tomba,
Caminha sobre a corda firme e alerta;
Tem consigo a maromba
E a ovação é certa.
Tamanha gentileza,
Tal segurança, ostentação tão grande,
A multidão expande
Com ares de legítima grandeza.
O gosto pervertido
Acha o sublime abatimento,
E dá-lhe agradecido
O louro e o monumento.
Do saber, da virtude,
Logra fazer, em prêmio dos trabalhos,
Um manto de retalhos
Que à consciência universal ilude.
Não cora, não se peja
Do papel, nem da máscara indecente,
E ainda inspira inveja
Esta glória insolente!
Não são contrastes novos;
Já vêm de longe; e de remotos dias
Tornam em cinzas frias
O amor da pátria e as ilusões dos povos.
Torpe ambição sem peias
De mocidade em mocidade corre,
E o culto das idéias
Treme, convulsa e morre.
Que sonho apetecido
Leva o ânimo vil a tais empresas?
O sonho das baixezas:
Um fumo que se esvai e um vão ruído;
Uma sombra ilusória rude;
E a esta infausta glória
Que a turba adora ignorante e rude
Imola-se a virtude.
A tão estranha liça
Chega a hora por fim do encerramento,
E lá soa o momento
Em que reluz a espada da justiça.
Então, musa da História,
Abres o grande livro, e sem detença
À envilecida glória
Fulminas a sentença.
AS ONDINAS
(NOTURNO DE H. HEINE)
BEIJAM AS ONDAS a deserta praia;
Cai do luar a luz serena e pura;
Cavaleiro na areia reclinado
Sonha em hora de amor e de aventura.
As ondinas, em nívea gaze envoltas,
Deixam do vasto mar seio enorme;
Tímidas vão, acercam-se do moço,
Olham-se e entre si murmuram: “Dorme!”
Uma – mulher enfim – curiosa palpa
De seu penacho a pluma flutuante;
Outra procura decifrar o mote
Que traz escrito o escudo rutilante.
Esta risonha, olhos de vivo fogo,
Tira-lhe a espada límpida e lustrosa,
E apoiando-se nela, a contemplá-la
Perde-se toda em êxtase amorosa.
Fita-lhe aquela namorados olhos,
E após girar-lhe em torno embriagada,
Diz: “Que formoso estás, ó flor da guerra,
Quanto te eu dera por te ser amada!”
Uma, tomando a mão ao cavaleiro,
Um beijo imprime-lhe; outra duvidosa,
Audaz por fim, a boca adormecida
Casa num beijo à boca desejosa.
Faz-se de sonso o jovem; caladinho
Finge do sono o plácido desmaio,
E deixa-se beijar pelas ondinas
Da branca lua ao doce e brando raio.
MARIA DUPLESSIS 1859
(A. DUMAS FILHO)
Fiz PROMESSA, dizendo-te que um dia
Eu iria pedir-te, o meu perdão;
Era dever ir abraçar primeiro
A minha doce e última afeição.
E quando ia apagar tanta saudade
Encontrei já fechada a tua porta;
Soube que uma recente sepultura
Muda fechava a tua fronte morta.
Soube que, após um longo sofrimento,
Agravara-se a tua enfermidade;
Viva esperança que eu nutria ainda
Despedaçou cruel fatalidade.
Vi, apertado de fatais lembranças,
A escada que eu subira tão contente;
E as paredes, herdeiras do passado,
Que vêm falar dos mortos ao vivente.
Subi e abri com lágrimas a porta
Que ambos abrimos a chorar um dia;
E evoquei o fantasma da ventura
Que outrora um céu de rosas nos abria.
Sentei-me à mesa, onde contigo outrora
Em noites belas de verão ceava;
Desses amores plácidos e amenos
Tudo ao meu triste coração falava.
Fui ao teu camarim, e vi-o ainda
Brilhar com o esplendor das mesmas cores;
E pousei meu olhar nas porcelanas
Onde morriam inda algumas flores…
Vi aberto o piano em que tocavas;
Tua morte o deixou mudo e vazio,
Como o deixa o arbusto sem folhagem,
Passando pelo vale, o ardente estio.
Tornei a ver o teu sombrio quarto
Onde estava a saudade de outros dias …
Um raio iluminava o leito ao fundo
Onde, rosa de amor, já não dormias.
As cortinas abri que te amparavam
Da luz mortiça da manhã, querida,
Para que um raio depusesse um toque
De prazer em tua fronte adormecida.
Era ali que, depois da meia-noite,
Tanto amor nós sonhávamos outrora;
E onde até o raiar da madrugada
Ouvíamos bater hora por hora!
Então olhavas tu a chama ativa
Correr ali no lar, como a serpente;
É que o sono fugia de teus olhos
Onde já te queimava a febre ardente.
Lembras-te agora, nesse mundo novo,
Dos gozos desta vida em que passaste?
Ouves passar, no túmulo em que domes,
A turba dos festins que acompanhaste?
A insônia, como um verme em flor que murcha,
De contínuo essas faces desbotava;
E pronta para amores e banquetes
Conviva e cortesã te preparava.
Hoje, Maria, entre virentes flores,
Dormes em doce e plácido abandono;
A tua alma acordou mais bela e pura,
E Deus pagou-te o retardado sono.
Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dois amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.
AS ROSAS
A CAETANO FILGUEIRAS
ROSAS que desabrochais,
Como os primeiros amores,
Aos suaves resplendores
Matinais;
Em vão ostentais, em vão,
A vossa graça suprema;
De pouco vale; é o diadema
Da ilusão.
Em vão encheis de aroma o ar da tarde;
Em vão abris o seio úmido e fresco
Do sol nascente aos beijos amorosos;
Em vão ornais a fronte à meiga virgem;
Em vão, como penhor de puro afeto,
Como um elo das almas,
Passais do seio amante ao seio amante;
Lá bate a hora infausta
Em que é força morrer; as folhas lindas
Perdem o viço da manhã primeira,
As graças e o perfume.
Rosas, que sois então? – Restos perdidos,
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha
Brisa do inverno ou mão indiferente.
Tal é o vosso destino,
Ó filhas da natureza;
Em que vos pese à beleza,
Pereceis;
Mas, não … Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas,
Mais vivas, mais jubilosas,
Floresceis.
OS DOUS HORIZONTES 1863
A M. FERREIRA GUIMARÃES
DOUS HORIZONTES fecham nossa vida:
Um horizonte, – a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, – a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, – sempre escuro, –
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.
Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.
Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.
No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, – tais são
Limites no mar vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado.
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.
Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
Dous horizontes fecham nossa vida.
MONTE ALVERNE 1858
AO PADRE-MESTRE A. J. DA SILVEIRA SARMENTO
MORREU! – Assim baqueia a estátua erguida
No alto do pedestal;
Assim o cedro das florestas virgens
Cai pelo embate do corcel dos ventos
Na hora do temporal… …
Morreu! – Fechou-se o pórtico sublime
De um paço secular;
Da mocidade a romaria augusta
Amanhã ante as pálidas ruínas
Há de vir meditar!
Tinha na fronte de profeta ungido
A inspiração do céu.
Pela escada do púlpito moderno
Subiu outrora festival mancebo
E Bossuet desceu!
Ah! que perdeste num só homem, claustro!
Era uma augusta voz,
Quando essa boca divinal se abria,
Mais viva a crença dissipava n’alma
Uma dúvida atroz!
Era tempo? – A argila se alquebrava
Num áspero crisol;
Corrido o véu pelos cansados olhos
Nem via o sol que lhe contava os dias,
Ele – fecundo sol!
A doença o prendia ao leito infausto
Da derradeira dor;
A terra reclamava o que era terra,
E o gelo dos invernos coroava
A fronte do orador.
Mas lá dentro o espírito fervente
Era como um fanal;
Não, não dormia nesse régio crânio
A alma gentil do Cícero dos púlpitos,
– Cuidadosa Vestal!
Era tempo! – O romeiro do deserto
Pára um dia também;
E ante a cidade que almejou por anos
Desdobra um riso nos doridos lábios,
Descansa e passa além!
Caíste! – Mas foi só a argila, o vaso,
Que o tempo derrubou;
Não todo à essa foi teu vulto olímpico;
Como deixa o cometa uma áurea cauda,
A lembrança ficou!
O que hoje resta era a terrena púrpura
Daquele gênio-rei;
A alma voou ao seio do infinito,
Voltou à pátria das divinas glórias
O apóstolo da lei.
Pátria, curva o joelho ante esses restos
Do orador imortal!
Por esses lábios não falava um homem,
Era uma geração, Um século inteiro,
Grande, monumental!
Morreu! – Assim baqueia a estátua erguida
No alto do pedestal;
Assim o cedro das florestas virgens
Cai pelo embate do corcel dos ventos
Na hora do temporal!
AS VENTOINHAS 1863
Com seus olhos vaganaus,
Bons de dar, bons de tolher.
SÁ DE MIRANDA
A MULHER é um cata-vento, Chega o mar e vai a ameia
Vai ao vento, Com a areia,
Vai ao vento que soprar; Com a areia confundir.
Como vai também ao vento
Turbulento, Ouço dizer de umas fadas
Turbulento e incerto o mar. Que abraçadas,
Que abraçadas como irmãs,
Sopra o sul; a ventoinha Caçam almas descuidadas…
Volta asinha, Ah! que fadas!
Volta asinha para o sul; Ah! que fadas tão vilãs!
Vem taful; a cabecinha
Volta asinha, Pois, como essas das baladas;
Volta asinha ao meu taful. Umas fadas,
Umas fadas dentre nós,
Quem lhe puser confiança, Caçam, como nas baladas;
De esperança, E são fadas,
De esperança mal está; E são fadas de alma e voz.
Nem desta sorte a esperança
Confiança, É que – como o cata-vento,
Confiança nos dará. Vão ao vento,
Vão ao vento que lhes der;
Valera o mesmo na areia Cedem três coisas ao vento:
Rija ameia, Cata-vento,
Rija ameia construir; Cata-vento, água e mulher.
ALPUJARRA 1863
(MICKIEWICZ)
JAZ EM RUÍNAS o torrão dos mouros;
Pesados ferros o infiel arrasta;
Inda resiste a intrépida Granada;
Mas em Granada a peste assola os povos.
Cum punhado de heróis sustenta a luta
Fero Almansor nas torres de Alpujarra;
Flutua perto a hispânica bandeira;
Há de o sol d’amanhã guiar o assalto.
Deu sinal, ao romper do dia, o bronze;
Arrasam-se trincheiras e muralhas;
No alto dos minaretes erguem-se as cruzes;
Do Castelhano a cidadela é presa.
Só, e vendo as coortes destroçadas,
O valente Almansor após a luta
Abre caminho entre as inimigas lanças,
Foge e ilude os cristãos que o perseguiam.
Sobre as quentes ruínas do castelo,
Entre corpos e restos da batalha,
Dá um banquete o Castelhano, e as presas
E os despojos pelos seus reparte.
Eis que o guarda da porta fala aos chefes:
“Um cavaleiro diz, de terra estranha
Quer falar-vos; – notícias importantes
Declara que vos traz e urgência pede”.
Era Almansor o emir dos Muçulmanos,
Que, fugindo ao refúgio que buscara,
Vem entregar-se às mãos do Castelhano,
A quem só pede conservar a vida.
“Castelhanos”, exclama, “o emir vencido
No limiar do vencedor se prostra;
Vem professar a vossa fé e culto
E crer no verbo dos profetas vossos.
“Espalhe a fama pela terra toda
Que um árabe, que um chefe de valentes,
Irmão dos vencedores quis tornar-se,
E vassalo ficar de estranho cetro”‘
Cala no ânimo nobre ao Castelhano
Um ato nobre … O chefe comovido,
Corre abraçá-lo, à sua vez os outros
Fazem o mesmo ao novo companheiro.
As saudações responde o emir valente
Com saudações. Em cordial abraço
Aperta ao seio o comovido chefe,
Toma-lhe as mãos e pende-lhe dos lábios.
Súbito cai, sem forças, nos joelhos;
Arranca do turbante, e com mão trêmula
O enrola aos pés do chefe admirado,
E junto dele arrasta-se por terra.
Os olhos volve em torno e assombra a todos:
Tinha azuladas, lívidas as faces,
Torcidos lábios por feroz sorriso,
Injetados de sangue ávidos olhos.
“Desfigurado e pálido me vedes,
Ó infiéis! Sabeis o que vos trago?
Enganei–vos: eu volto de Granada,
E a peste fulminante aqui vos trouxe
Ria-se ainda – morto já – e ainda
Abertos tinha as pálpebras e os lábios;
Um sorriso infernal de escárnio impresso
Deixara a morte nas feições do morto.
Da medonha cidade os castelhanos
Fogem. A peste os segue. Antes que a custo
Deixado houvessem de Alpujarra a serra
Sucumbiram os últimos soldados.
VERSOS A CORINA
[Fragmento de III]
QUE VALEM glórias vãs? A glória, a melhor glória
É esta que nos orna a poesia da história;
É a glória do céu, e a glória do amor.
É Tasso eternizando a princesa Leonor;
É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;
É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,
Seguindo além da vida as viagens do Dante;
É do cantor do Gama o hino triste e amante
Levando à eternidade o amor de Catarina;
É o amor que une Ovídio à formosa Corina;
O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;
O da divina Délia ao divino Tibulo.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;
Outra não há melhor.
Se faltar esta esmola,
Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,
Com que se alenta e vive o amante coração,
Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,
Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.
Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,
Viver na solidão a vida de outros seres,
Vegetar corno o arbusto, e murchar, como a flor,
Como um corpo sem alma ou alma sem amor.
Fonte: www.cce.ufsc.br
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