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Eça de Queirós
Primeira Carta a Madame de Jouarre
Minha querida madrinha.
Ontem, em casa de Madame de Tressan, quando passei, levando para a ceia Libuska,
estava sentada, conversando consigo, por debaixo do atroz retrato da marechala
de Mouy, uma mulher loura, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez
por lhe pressentir, apesar de tão indolentemente enterrada num divã,
uma rara graça no andar, graça altiva e ligeira de deusa e de
ave. Bem diferente da nossa sapiente Libuska, que se move com o esplêndido
peso de uma estátua! E do interesse por esse outro passo, possivelmente
alado e diânico (de Diana), provém estas gratujas.
Quem era? Suponho que nos chegou do fundo da província, de algum
velho castelo do Anjou com erva nos fossos, porque me não lembro de
Ter encontrado em Paris aqueles cabelos fabulosamente louros como o sol de
Londres em Dezembro – nem aqueles ombros decaídos, dolentes,
angélicos, imitados de uma madona de Mantegna, e inteiramente desusados
em França desde o reinado de Carlos X, do “Lírio no Vale”
e dos corações incompreendidos. Não admirei com igual
fervor o vestido preto, onde reinavam coisas escandalosamente amarelas. Mas
os braços eram perfeitos; e nas pestanas, quando as baixava, parecia
pender um romance triste. Deu-me assim a impressão, ao começo,
de ser uma elegíaca do tempo de Chateaubriand. Nos olhos porém
surpreendi-lhe depois uma faísca de vivacidade sensível –
que a datava do século XVIII. Dirá minha madrinha: “Como
pude eu abranger tanto, ao passar, com Libuska ao lado fiscalizando?”
É que voltei. Voltei, e da ombreira da porta readmirei os ombros de
velas por trás, entre as orquídeas, nimbava de ouro; e sobretudo
o sutil encanto dos olhos – dos olhos finos e lânguidos… Olhos
finos e lânguidos. É a primeira expressão em que hoje
apanho decentemente a realidade.
Por que é que não me adiantei, e não pedi uma “
apresentação?” Nem sei. Talvez o requinte em retardar,
que fazia com que La Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse
sempre o caminho mais longo. Sabe o que dava tanta sedução ao
Palácio das Fadas, nos tempos do rei Artur? Não sabe. Resultados
de não ler Tennyson… Pois era a imensidade de anos que levava a chegar
lá, através de jardins encantados, onde cada recanto de bosque
oferecia a emoção inesperada de um flirt, de uma batalha, ou
de um banquete… (Com que mórbida propensão acordei hoje para
o estilo asiático!) O fato é que, depois da contemplação
junto à ombreira, voltei a cear ao pé da minha radiante tirana.
Mas por entre a banal sandwich de foie-gras, e um copo de Tokay que Voltaire,
já velho, se recordava de ter bebido em casa de Madame de Etioles (os
vinhos dos Tressans descendem em linha varonil dos venenos de Brinvilliers),
vi, constantemente vi, os olhos finos e lânguidos. Não há
senão o homem, entre os animais, para misturar a languidez de um olhar
fino a fatias de foie-gras. Não o faria decerto um cão de boa
raça. Mas seríamos nós desejados pelo “efêmero
feminino” se não fosse esta providencial brutalidade? Só
a porção da matéria que há no homem faz com que
as mulheres se resignem à incorrigível porção
de ideal, que nele há também – para eterna perturbação
do mundo. O que mais prejudicou Petrarca aos olhos de Laura – foram
os “Sonetos”. E quando Romeu, já com um pé na escada
de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações
à noite e à Lua – Julieta batia os dedos impacientes no
rebordo do balcão, e pensava: “Ai, que palrador que és,
filho dos Montaigus!” Este detalhe não vem em Shakespeare –
mas é comprovado por toda a Renascença. Não me amaldiçoe
por esta sinceridade de meridional céptico, e mande-me dizer que nome
tem, na paróquia, a loura castelã do Anjou. A propósito
de castelos: cartas de Portugal anunciam-me que o quiosque por mim mandado
erguer em Sintra, na minha quintarola, e que lhe destinava como “seu
pensadoiro e retiro nas horas de sesta” – abateu. Três mil
e oitocentos francos achatados em entulho. Tudo tende à ruína
num país de ruínas. O arquiteto que o construiu é deputado,
e escreve no “Jornal da Tarde” estudos melancólicos sobre
as Finanças! O meu procurador em Sintra aconselha agora, para reedificar
o quiosque, um estimável rapaz, de boa família, que entende
de construções e que é empregado na procuradoria Geral
da Coroa! Talvez se eu necessitasse um jurisconsulto, me propusessem um trolha.
É com estes elementos alegres, que nós procuramos restaurar
o nosso império de África! Servo humilde e devoto.
Primeira Carta a Clara
Não, não foi na Exposição dos Aguarelistas, em
Março, que eu tive consigo o meu primeiro encontro, por mandado dos
Fados. Foi no inverno, minha adorada amiga, no baile dos Tressans. Foi aí
que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante de um console, cujas luzes,
entre os molhos de orquídeas, punham nos seus cabelos aquele nimbo
de ouro que tão justamente lhe pertence como “rainha de graça
entre as mulheres”. Lembro ainda, bem religiosamente, o seu sorrir cansado,
o vestido preto com relevos cor de botão de ouro, o leque antigo que
tinha fechado no regaço; mas logo tudo em redor me pareceu irreparavelmente
enfadonho e feio; e voltei a readmirar, a meditar em silêncio a sua
beleza, que me prendia pelo esplendor patente e compreensível, e ainda
por não sei quê de fino, de espiritual, de dolente e de meigo
que brilhava através e vinha da alma. E tão intensamente me
embebi nessa contemplação, que levei comigo a sua imagem, decorada
e inteira, sem esquecer um fio dos seus cabelos ou uma ondulação
da seda que a cobria, e corri a encerrar-me com ela, alvoroçado, como
um artista que nalgum escuro armazém, entre poeira e cacos, descobrisse
a obra sublime de um mestre perfeito.
E, por que o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao princípio,
meramente um quadro, pendurado no fundo da minha alma, que eu a cada doce
momento olhava – mas para lhe louvar apenas, com crescente surpresa,
os encantos diversos de linha e de cor. Era somente uma rara tela, posta em
sacrário, imóvel e muda no seu brilho, sem outra influência
mais sobre mim que a de uma forma muito bela que cativa um gosto muito educado.
O meu ser continuava livre, atento às curiosidades que até aí
o seduziam, aberto aos sentimentos que até aí o solicitavam;
– e só quando sentia a fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo
de uma ocupação mais pura, regressava à imagem que em
mim guardava, como um Fra Angélico, no seu claustro, pousando os pincéis
ao fim do dia, e ajoelhando ante a Madona a implorar dela repouso e inspiração
superior.
Pouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta contemplação,
perdeu para mim o valor e encanto. Comecei a viver cada dia mais retirado
no fundo da minha alma, perdido na admiração da imagem que lá
rebrilhava – até que só essa ocupação me pareceu
digna da vida, no mundo todo não reconheci mais que uma aparência
inconstante, e fui como um monge na sua cela, alheio às coisas mais
reais, de joelhos e hirto no seu sonho, que é para ele a única
realidade.
Mas não era, minha adorada amiga, um pálido e passivo êxtase
diante da sua imagem. Não! Era antes um ansioso e forte estudo dela,
com que eu procurava conhecer através da forma e essência, e
(pois a Beleza é o esplendor da Verdade) deduzir das perfeições
do seu Corpo as superioridades da sua Alma. E foi assim que lentamente surpreendi
o segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabelo descobre, tão
clara e lisa, logo me contou a retidão do seu pensar: o seu sorriso,
de uma nobreza tão intelectual, facilmente me revelou o seu desdém
do mundanal e do efêmero, a sua incansável aspiração
para um viver de verdade: cada graça de seus movimentos me traiu uma
delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos diferenciei o que neles tão
adoravelmente se confunde, luz de razão, calor que melhor alumia…
Já a certeza de tantas perfeições bastaria a fazer dobrar,
numa adoração perpétua, os joelhos mais rebeldes. Mas
sucedeu ainda que, ao passo que a compreendia e que a sua Essência se
me manifestava, assim visível e quase tangível, uma influência
descia dela sobre mim – uma influência estranha, diferente de
todas as influências humanas, e que me dominava com transcendente onipotência.
Como lhe poderei dizer? Monge, fechado na minha cela, comecei a aspirar à
santidade, para me harmonizar e merecer a convivência com a Santa a
que me votara. Fiz então sobre mim um áspero exame de consciência.
Investiguei com inquietação se o meu pensar era condigno da
pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria desconcertos que
pudessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha idéia da vida
era tão alta e séria como aquela que eu pressentira na espiritualidade
do seu olhar, do seu sorrir; e se meu coração não se
dispersara e enfraquecera de mais para poder palpitar com paralelo vigor junto
do seu coração. E tem sido em mim agora um arquejante esforço
para subir a uma perfeição idêntica àquela que
em si tão submissamente adoro.
De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha educadora.
E tão dependente fiquei logo desta direção, que já
não posso conceber os movimentos do meu ser senão governados
por ela e por ela enobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje surge
em mim de algum valor, idéia ou sentimento, é obra dessa educação
que a sua alma dá à minha, de longe, só com existir e
ser compreendida. Se hoje me abandonasse a sua influência – devia antes
dizer, como um asceta, a sua Graça – todo eu rolaria para uma
inferioridade sem remição. Veja pois como se me tornou necessária
e preciosa… E considere que, para exercer esta supremacia salvadora, as
suas mãos não tiveram de se impor sobre as minhas – bastou
que eu a avistasse de longe, numa festa, resplandecendo. Assim um arbusto
silvestre floresce à borda de um fosso, porque lá em cima nos
remotos céus fulge um grande sol, que não o vê, não
o conhece, e magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto
aroma… Por isso o meu amor tinge esse sentimento indescrito e sem nome que
a Planta, se tivesse consciência, sentiria pela luz.
E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo, nenhum
bem imploro de quem tanto pode e é para mim dona de todo bem. Só
desejo que me deixe viver sob essa influência, que, emanando do simples
brilho das suas perfeições, tão fácil e docemente
opera o meu aperfeiçoamento. Só peco esta permissão caridosa.
Veja pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade de uma
adoração que até receia que o seu murmúrio, um
murmúrio de prece, roce o vestido da imagem divina…
Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a toda
a recompensa terrestre, me permitisse desenrolar junto de si, num dia de solidão,
a agitada confidência do meu peito, decerto faria um ato de inefável
misericórdia – como outrora a Virgem Maria quando animava os
seus adoradores, ermitas e santos, descendo numa nuvem e concedendo-lhes um
sorriso fugitivo, ou deixando-lhes cair entre as mãos erguidas uma
rosa do paraíso. Assim, amanhã, vou passar a tarde com Madame
de Jouarre. Não há aí a santidade de uma cela ou de uma
ermida, mas quase o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em
pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa, mas um
sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que este amor, ou este
meu sentimento indescrito e sem nome que vai além do amor, encontra
ante seus olhos piedade e permissão para esperar.
Fradique
Segunda Carta a Clara
Meu amor.
Ainda há poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que tanto gastei
num desolador desde a nossa Torre de Marfim), eu sentia o rumor do teu coração
junto ao meu, sem que nada os separasse senão uma pouca de argila mortal,
em ti tão bela, em mim tão rude – e já estou tentando
reconfigura ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável
estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema
e única vida. É que , longe da tua presença, cesso de
viver, as coisas para mim cessam de ser – e fico como um morto jazendo
no meio de um mundo morto, Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento
de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o
meu nome – recomeço a aspirar desesperadamente para ti, como
uma ressurreição! Antes de te amar, antes de receber das mãos
de meu deus a minha Eva – que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando
entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade,
e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu – “Amo,
logo existo!” E não foi só a minha realidade que me desvendaste
– mas ainda a realidade de todo este universo, que me envolvia como
um ininteligível e cinzento montão de aparências. Quando
há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que
eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse
o adormecer das colinas junto ao calor dos teus ombros – não
sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação
era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas
coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas por uma emanação
que te é própria, e que antes de viver ao teu lado, nunca eu
lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das rosas
ou o verde tenro das relvas antes de nascer o Sol! Foste tu, minha bem-amada,
que alumiaste o mundo. No teu amor recebi a minha iniciação.
Agora entendo, agora sei. E, como o antigo iniciado, posso afirmar: “Também
fui a Elêusis; pela larga estrada pendurei muita flor que não
era verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a Elêusis
cheguei, em Elêusis penetrei – e vi e senti a verdade!…”
E acresce ainda, para meu martírio e glória, que tu és
tão suntuosamente bela e tão etereamente bela, de uma beleza
feita de Céu e de Terra, beleza completa e só tua, que eu já
concebera – que nunca julgara Ainda há poucos instantes (dez
instantes, dez minutos, que tanto gastei num desolador desde a nossa Torre
de Marfim), eu sentia o rumor do teu coração junto ao meu, sem
que nada os separasse senão uma pouca de argila mortal, em ti tão
bela, em mim tão rude – e já estou tentando reconfigura
ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo
que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única
vida. É que , longe da tua presença, cesso de viver, as coisas
para mim cessam de ser – e fico como um morto jazendo no meio de um
mundo morto, Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida
que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome
– recomeço a aspirar desesperadamente para ti, como uma ressurreição!
Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu deus a minha Eva
– que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando entre sombras. Mas tu
vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permitir
que eu bradasse também triunfalmente o meu – “Amo, logo
existo!” E não foi só a minha realidade que me desvendaste
– mas ainda a realidade de todo este universo, que me envolvia como
um ininteligível e cinzento montão de aparências. Quando
há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que
eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse
o adormecer das colinas junto ao calor dos teus ombros – não
sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação
era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas
coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas por uma emanação
que te é própria, e que antes de viver ao teu lado, nunca eu
lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das rosas
ou o verde tenro das relvas antes de nascer o Sol! Foste tu, minha bem-amada,
que alumiaste o mundo. No teu amor recebi a minha iniciação.
Agora entendo, agora sei. E, como o antigo iniciado, posso afirmar: “Também
fui a Elêusis; pela larga estrada pendurei muita flor que não
era verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a Elêusis
cheguei, em Elêusis penetrei – e vi e senti a verdade!…”
E acresce ainda, para meu martírio e glória, que tu és
tão suntuosamente bela e tão etereamente bela, de uma beleza
feita de Céu e de Terra, beleza completa e só tua, que eu já
concebera – que nunca julgara oração. E nesta desoladora
insuficiência do verbo humano, é como o mais inculto e o mais
iletrado que ajoelho ante ti, e levanto as mãos, e te asseguro a única
verdade, melhor que todas as verdades – que te amo, e te amo, e te amo,
e te amo!…
Fradique
Terceira Carta a Clara
Toda em queixumes, quase rabugenta, e mentalmente trajada de luto, me apareceu
hoje a tua carta com os primeiros frios de Outubro. E por quê, minha
doce descontente? Porque, mais fero de coração que um Trastamara
ou um Bórgia, estive cinco dias (cinco curtos dias de Outono) sem te
mandar uma linha, afirmando essa verdade tão patente e de ti conhecida
como o disco do Sol – “que só em ti penso, e só
em ti vivo!…” Mas não sabes tu, oh super amada, que a tua lembrança
me palpita na alma tão natural e perenemente como o sangue no coração?
Que outro princípio governa e mantém a minha vida senão
o teu amor? Realmente necessitas ainda, cada manha, um certificado, em letra
bem firme, de que minha paixão está viva e viçosa e te
envia os bons-dias? Para quê? Para sossego da tua incerteza? Meu Deus!
Não será antes par regalo do teu orgulho? Sabes que és
deusa, e reclamas incessantemente o incenso e os cânticos do teu devoto.
Mas Santa Clara, tua padroeira, era uma grande santa, de alta linhagem, de
triunfal beleza, amiga de S> Francisco de Assis, confidente de Gregório
IX, fundadora de mosteiros, suave fonte de piedade e milagres – e todavia
só é festejada uma vez, cada ano, a 27 de Agosto! Sabes bem
que estou gracejando, Santa Clara da minha fé! Não! Não
mandei linha supérflua, porque todos os males bruscamente se abateram
sobre mim: um defluxo burlesco, com melancolia, obtusidade e espirros: um
confuso duelo, de que fui o enfastiado padrinho, e em que apenas um ramo seco
de olaia sofreu, cortado por uma bala; e, enfim, um amigo que regressou da
Abissínia, cruelmente abissinizante, e a quem tive de escutar com resignado
pasmo as caravanas, os perigos, os amores, as façanhas e os leões!…
E aí está a minha pobre Clara, solitária nas suas florestas,
ficou sem essa folha, cheia das minhas letras, e tão inútil
par a segurança do seu coração como as folhas que a cerca,
já murchas decerto e dançando no vento.
Porque não sei como se comportam os teus bosques; – mas aqui as folhas
do meu pobre jardim amarelam e rolam na erva úmida. Para me consolar
da verdura perdida, acendi o meu lume: – e toda a noite de ontem mergulhei
na muito velha crônica de um cronista medieval da minha terra, que se
chama Fernão Lopes. Aí se conta de um rei que recebeu o débil
nome de “Formoso”, e que, por causa de um grande amor, desdenhou
princesas de Castela e de Ararão, dissipou tesouros, afrontou sedições,
sofreu a desafeição dos povos, perdeu a vassalagem de castelos
e terras, e quase estragou o reino! Eu já conhecia a crônica
– mas só agora compreendo o rei. E grandemente o invejo, minha
linda Clara! Quando se ama como ele (ou como eu), deve ser um contentamento
esplêndido o ter princesas da cristandade, e tesouros, e um povo, e
um reino forte para sacrificar a dois olhos, finos e lânguidos, sorrindo
pelo que esperam e mais pelo que prometem… Na verdade só se deve
amar quando se é rei – porque só então se pode
comprovar a altura do sentimento com a magnificência do sacrifício.
Mas um mero vassalo como eu (sem hoste ou castelo), que possui ele de rico,
ou de nobre, ou de belo para sacrificar? Tempo, fortuna, vida? Mesquinhos
valores. É como ofertar na mão aberta um pouco de pó.
E depois a bem-amada nem sequer fica na história.
E por história – muito aprovo, minha estudiosa Clara, que andes
lendo a do divino Buda. Dizes, desconsoladamente, que ele te parece apenas
“um Jesus muito complicado”. Mas, meu amor, é necessário
desentulhar esse pobre Buda da densa aluvião de Lendas e Maravilhas
que sobre ele tem acarretado, durante séculos, a imaginação
da Ásia. Tal como ela foi, desprendida da sua mitologia, e na sua nudez
histórica – nunca alma melhor visitou a Terra, e nada iguala,
como virtude heróica, a “Noite do Renunciamento”. Jesus
foi um proletário, um mendigo sem vinha ou leira, sem amor nenhum terrestre,
que errava pelos campos da Galiléia, aconselhando aos homens a que
abandonassem como ele os seus lares e bens, descessem à solidão
e à mendicidade, para penetrarem um dia num Reino venturoso, abstrato,
que está nos Céus. Nada sacrificava em si e instigava os outros
ao sacrifício – chamando todas as grandezas ao nível da
sua humildade. O Buda, pelo contrário, era um Príncipe, e como
eles costumam ser na Ásia, de ilimitado poder, de ilimitada riqueza:
casara por um imenso amor, e daí lhe viera um filho, em quem esse amor
mais se sublimara: – e este príncipe, este esposo, este pai, um dia,
por dedicação aos homens, deixa o seu palácio, o seu
reino, a esposada do seu coração, o filhinho adormecido no berço
de nácar, e, sob a rude estamenha de um mendicante, vai através
do mundo esmolando e pregando a renúncia aos deleites, o aniquilamento
de todo o desejo, o ilimitado amor pelos seres, o incessante aperfeiçoamento
na caridade, o desdém forte do ascetismo que se tortura, a cultura
perene da misericórdia que resgata, e a confiança na morte…
Incontestavelmente, a meu ver (tanto quanto estas excelsas coisas se podem
discernir de uma casa de Paris, no século XIX e com defluxo) a vida
do Buda é mais meritória. E depois considera a diferença
do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz: “Eu sou filho de
Deus, e insto com cada um de vós, homens mortais, em que pratiqueis
o bem durante os poucos anos que passais na Terra, para que eu depois, em
prêmio, vos dê a cada um, individualmente, uma existência
superior, infinita em anos e infinita em delícias, num palácio
que está além das nuvens e que é de meu Pai!” O
Buda, esse, diz simplesmente: “Eu sou um pobre frade mendicante, e peco-vos
que sejais bons durante a vida, porque de vós, em recompensa, nascerão
outros melhores, e desses outros ainda mais perfeitos, e assim, pela prática
crescente da virtude em cada geração, se estabelecerá
pouco a pouco na Terra a virtude universal!” A justiça do justo,
portanto, segundo Jesus, só aproveita egoisticamente ao justo. E a
justiça do justo, segundo Buda, aproveira ao ser que o substituir na
existência, e depois ao outro que deve nascer, sempre durante a passagem
na Terra, para lucro eterno da Terra. Jesus cria uma aristocracia de santos,
que arrebata para o Céu onde ele é Rei, e que constituem a corte
do Céu para deleite da sua divindade: – e não vem dela proveito
direto para o Mundo, que continua a sofrer da sua porção de
Mal, sempre indiminuída. O Buda, esse, cria, pela soma das virtudes
individuais, santamente acumuladas, uma humanidade que em cada ciclo nasce
progressivamente melhor, que por fim se torna perfeita, e que se estende a
toda Terra donde o Mal desaparece, e onde o Buda é sempre, à
beira do caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha flor, sou pelo
Buda. Em todo o caso, esses dois Mestres possuíram, para bem dos homens,
a maior Porção de divindade que até hoje tem sido dado
à alma humana conter. De resto, tudo isto é muito complicado;
e tu sabiamente procederias em deixar o Buda no seu budismo, e, uma vez que
esses teus bosques são tão admiráveis, em te retemperar
na sua forca e nos seus aromas salutares. O Buda pertence à cidade
e ao colégio de Franca: no campo a verdadeira Ciência deve cair
das árvores, como nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina
mais que todas as folhas dos livros. Sobretudo do que eu – que aqui estou
pontificando, e fazendo pedantemente, ante os teus lindos olhos, tão
finos e meigos, um curso escandaloso de Religiões Comparadas.
Só me restam três polegadas de papel – e ainda te não
contei, oh doce exilada, as novas de Paris, acta Urbis. (Bom, agora latim!)
São raras, e pálidas. Chove; continuamos em república;
Madame de Jouarre, que chegou da Rocha com menos cabelos brancos, mas mais
cruel, convidou alguns desventurados (dos quais eu o maior) para escutarem
três capítulos dum novo atentado do barão de Fernay sobre
a Grécia; os jornais publicam outro prefácio do sr. Renan, todo
cheio do sr. Renan, e em que ele se mostra, como sempre, o enternecido e erudito
vigário de Nossa Senhora da razão; e temos, enfim, um casamento
de paixão e de luxo, o do nosso escultural visconde de Fonblant com
mademoiselle Degrave, aquela nariguda, magrinha e de maus dentes, que herdou,
milagrosamente, os dois milhões do cervejeiro e que tem tão
lindamente engordado e ri com dentes tão lindos. Eis tudo, minha adorada…
E é tempo que te mande, em montão, nesta linha, as saudades,
os desejos e as coisas ardentes e suaves e sem nome de que meu coração
está cheio, sem que se esgote por mais que plenamente as arremesse
aos teus pés adoráveis, que beijo com submissão e com
fé.
Fradique
Quarta Carta a Clara
Minha amiga.
É verdade que eu parto, e para uma viagem muito longa e remota, que
será como um desaparecimento. E é verdade ainda que a empreendo
assim bruscamente, não por curiosidade de um espírito que já
não tem curiosidades – mas para findar do modo mais condigno
e mais belo uma ligação, que, como a nossa, não deveria
nunca ser maculada por uma agonia tormentosa e lenta.
Decerto, agora que eu dolorosamente reconheço que sobre o nosso tão
viçoso e forte amor se vai em breve exercer a lei universal de perecimento
e fim das coisas – eu poderia, poderíamos ambos, tentar, por
um esforço destro e delicado do coração e da inteligência,
o seu prolongamento fictício. Mas seria essa tentativa digna de si,
de mim, da nossa lealdade – e da nossa paixão? Não! Só
nos prepararíamos assim um arrastado tormento, sem a beleza dos tormentos
que a alma apetece e aceita, nos puros momentos de fé e todo deslustrado
e desfeado por impaciências, recriminações, inconfessados
arrependimentos, falsa ressurreições do desejo, e de todos os
enervamentos as saciedade. Não conseguiríamos deter a marcha
da lei inexorável – e um dia nos encontraríamos, um diante
do outro, como vazios, irreparavelmente tristes, e cheios do amargor da luta
inútil. E de uma cousa tão pura e sã e luminosa, como
foi o nosso amor, só nos ficaria, presente e pungente, a recordação
de destroços e farrapos feitos por nossas mãos, e por elas rojados
com desespero no pó derradeiro de tudo.
Não! Tal acabar seria intolerável. E depois como toda a luta
é ruidosa, e se ano pode nunca disciplinar e enclausurar no segredo
do coração, nós deixaríamos decerto entrever enfim
ao mundo um sentimento que dele escondemos por altivez, não por cautela
– e o mundo conheceria o nosso amor justamente quando ele já
perdera a elevação e a grandeza que quase o santificam… De
resto, que importa o mundo? Só para nós, que fomos um para o
outro e amplamente o mundo todo, é que devemos evitar ao nosso amor
a lenta decomposição que degrada.
Para perpétuo orgulho do nosso coração é necessário
que desse amor, que tem de perecer como tudo o que vive, mesmo o Sol –
nos fique uma memória tão límpida e perfeita que ela
só por si nos possa dar, durante o porvir melancólico, um pouco
dessa felicidade e encanto que o próprio amor nos deu quando era em
nós uma sublime realidade governando o nosso ser.
A morte, na plenitude da beleza e da força, era considerada pelos
antigos como o melhor benefício dos deuses – sobretudo para os
que sobreviviam, porque sempre a face amada que passara lhes permanecia na
memória com o seu natural viço e sã formosura, e não
mirrada e deteriorada pela fadiga, pelas lágrimas, pela desesperança,
pelo amor. Assim deve ser também com o nosso amor.
Por isso mal lhe surpreendi os primeiros desfalecimentos, e, desolado, verifiquei
que o tempo o roçara com a frialdade da sua foice – decidi partir,
desaparecer. O nosso amor, minha amiga, será assim como uma flor milagrosa
que cresceu, desabrochou, deu todo o seu aroma – e, nunca cortada, nem
sacudida dos ventos ou das chuvas, nem de leve emurchecida, fica na sua haste
solitária, encantando ainda com as suas cores os nossos olhos quando
para ela de longe se volvem, e para sempre, através da idade, e perfumando
a nossa vida.
Da minha vida sei, pelo menos, que ela perpetuamente será iluminada
e perfumada pela sua lembrança. Eu sou na verdade como um desses pastores
que outrora, caminhando pensativamente por uma colina da Grécia, viam
de repente, ante os seus olhos extáticos, Vênus magnífica
e amorosa que lhes abria os braços brancos. Durante um momento o pastor
mortal repousava sobre o seio divino, e sentia o murmúrio do divino
suspirar. Depois havia um leve frêmito – e ele só encontrava
ante si uma nuvem recendente que se levantavam se sumia nos ares por entre
o vôo claro das pombas. Apanhava seu cajado, descia a colina… Mas
para sempre, através da vida, conservava um deslumbramento inefável.
Os anos poderiam rolar, e o seu gado morrer, e a ventania levar o colmo da
sua choupana, e todas as misérias da velhice sobre ele caírem
– que sem cessar sua alma resplandecia, e um sentimento de glória
ultra-humano o elevava acima do transitório e do perecível,
porque na fresca manha de Maio, além, sobre o cimo da colina, ele tivera
o seu momento de divinização entre o mirto e o tomilho! Adeus,
minha amiga. Pela felicidade incomparável que me deu – seja perpetuamente
bendita.
Fradique
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