Bom Crioulo – Adolfo Caminha

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Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII

Capítulo I

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A velha e gloriosa corveta – que pena! – já nem sequer lembrava o mesmo navio d’outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como um galera de lenda, branca e leve no mar alto, grimpando serena o corcovo das ondas!…

Estava outra, muito outra com o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspecto guerreiro que entusiasmava a gente nos bons tempos de “patescaria”. Vista ao longe, na infinita extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante, desde a brancura límpida e triunfal das velas até a primitiva pintura do bojo.

No entanto ela aí vinha – esquife agourento – singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua marcha vagarosa; ela aí vinha, não já como uma enorme garça branca flechando a líquida planície, mas lenta, pesada, como se fora um grande morcego apocalíptico de asas abertas sobre o mar…

Havia pouco entrara na região das calmarias: o pano começava a bater frouxo, mole, inchando a cada solavanco, para recair depois, com uma pancada surda e igual, no mesmo abandono sonolento; a viagem tornava-se monótona; a larga superfície do oceano estendia-se muito polida e imóvel sob a irradiação meridional do sol, e a corveta deslizava apenas, tão de leve, tão de leve que mal se lhe percebia o movimento.

Nem sinal de vela na linha azul do horizonte, indício algum de criatura humana fora daquele estreito convés: água, somente água em derredor, como se o mundo houvesse desaparecido num dilúvio medonho…, e no alto, lá em cima, o silêncio infinito das esferas obumbradas pela chuva de ouro do dia.

Triste e nostálgica paisagem, onde as cores desmaiavam à força de luz e a voz humana perdia-se numa desolação imensa!

Marinheiros conversavam à proa, sentados uns no castelo, outros em pé, colhendo cabos ou estendendo roupa ao sol, tranqüilamente, esquecidos da faina. As chapas dos mastros, a culatra das peças, varais de escotilha, tudo quanto é aço e metal amarelo reluz fortemente, encandeando a vista.

De vez em quando há um grande rebuliço: a mastreação geme, como se fora desprender-se toda, o pano bate com força de encontro às vergas, chocam-se cabos com um ruidozinho seco, e ouve-se o cachoeirar da água no bojo da velha nau.

Agüenta! diz uma voz.

E volta o sossego e continua a pasmaceira, o tédio, a calmaria sem fim…

Já os primeiros sintomas de indolência refletiam-se no semblante da gente, convertendo-se em bocejos e espreguiçamentos de sesta, e ainda ficavam tão longe as montanhas da costa e os carinhos da família!…

Escasseavam os gêneros, e o regimen de carne-seca e das conservas em lata aproximava-se ameaçadoramente, causando apreensões à marinhagem.

Tinham dado onze horas na sineta de proa.

O tenente que estava de quarto no passadiço conferiu o relógio d’algibeira, um belo cronômetro de ouro comprado em Toulon, torceu o bigode, passou uma vista d’olhos no aparelho, e, dirigindo-se para a espada que descansava junto ao mastro, numa voz clara um pouco, metálica:

– Corneta!

Era um oficial distinto, moço, moreno, os olhos vivos e inteligentes, grande calculista, jogador da sueca e autor de um Tratado elementar de navegação prática.

Ninguém a bordo o excedia na procura dos logaritmos. Calculava d’olhos fechados, e senos e cosenos acudiam-lhe à ponta do lápis de um modo admirável. Era, invariavelmente, o primeiro que achava a hora meridiana. Tornara-se conhecido logo ao sair da escola pelo sei entranhado amor às matemáticas e à vida naval. Como guarda-marinha deixava-se ficar a bordo nos dias de folga, somente “para não perder o hábito”. Inimigo de terra, preferia o farniente de seu camarote, ali ao pé dos livros e das fotografias marítimas, ao movimento esterilizador e absorvente dos cafés e dos teatros.

– Corneta! repetiu, carregando o semblante numa sombria expressão de constrangimento.

Outras bocas foram transmitindo a ordem até que surgiu, correndo, a figura exótica de um marinheiro negro, d’olhos muito brancos, lábios enormemente grossos, abrindo-se num vago sorriso idiota, e em cuja fisionomia acentuavam-se linhas características de estupidez e subserviência

– Pronto! disse levando a mão ao boné com um jeito marcial.

– Toca mostra, ordenou o tenente.

Às primeiras notas da corneta, límpidas e sem eco no silêncio do mar alto, houve logo um estranho bulício em todos os recantos da corveta. – Agora os marinheiros que descansavam à proa, olhavam-se por cima dos ombros com ar desconfiado. Na tolda e pelas cobertas o movimento foi-se acelerando à proporção que o toque finalizava, sobressaindo no atropelo a voz dos guardiões: – Sobe, sobe, – tudo para cima! – de envolta com um barulho de ferros que vinha dos porões.

O “mestre d’armas”, cabrocha pedante, muito cheio de si e de seus galões reluzentes, ia enfileirando a marinhagem por alturas, num exagero metódico de instrutor de colégio, arredando uns para colocar outros, advertindo estes porque não tinham a camisa abotoada e aqueles porque não tinham “fita” no boné, ameaçando estoutro de levá-lo à presença de “seu” tenente porque recusava-se a perfilar…

Oficiais começavam a aparecer em segundo uniforme – boné e dragonas -, arrastando as espadas, mirando-se d’alto a baixo, apertados no talim de pano azul, por cima da farda.

Com pouco estava tudo pronto, marinheiros e oficiais – aqueles alinhados a dois de fundo, num e noutro bordo, estes a ré, perto do mastro grande, em atitude respeitosa de quem vai assistir a um ato solene.

Tinha-se feito silêncio. Uma ou outra voz segredava baixinho, timidamente. E agora, no silêncio da mostra, é que se ouvia bem o cachoeira de água no bojo da corveta caturrando…

– Agüenta!

Por fim apareceu o comandante abotoando a luva branca de camurça, teso na sua farda nova, o ar autoritário, solta a espada num abandono elegante, as dragonas tremulando sobre os ombros em cachos de ouro, todo ele comunicando respeito.

Era homem robusto de feições e presença nobre, olhar enérgico, muito moreno, desse moreno carregado, cor de bronze, que o sol imprime nos homens do mar, bigode largo e compacto, levemente grisalho, com uma ponta de arrogância convencional.

Silêncio absoluto nas fileiras da marinhagem. Cada olhar tinha um brilho especial de indiscreta curiosidade. Um frêmito de instintiva covardia, como uma corrente elétrica, vinha à face de toda aquela gente abespinhada ali assim perante um só homem, cuja palavra trazia sempre o cunho áspero da disciplina. Era um respeito profundo chegando às raias da subserviência animal que se agacha para receber o castigo, justo ou injusto, seja ele qual for.

– Os presos…, fez o comandante, sem se alterar, dando um puxão na manga da farda.

Todos os olhos voltaram-se para o fiel d’artilharia, vivamente curiosos, enquanto este, obedecendo à ordem, precipitou-se pela escada que ia ter à coberta, mudo e taciturno.

O tenente continuava no passadiço, a passear como se tudo corresse às mil maravilhas naquele pequeno mundo flutuante de que ele era, agora, uma espécie de rei provisório. Ouvia-se-lhe o passo vagaroso e igual como o de uma sentinela noturna.

A luz intensa do sol caía do alto, pondo brilhos de malacacheta no cristal imenso do mar clamo. Um calor forte e asfixiante penetrava a carne, acelerando a circulação, congestionando, irritando o sistema nervoso atrozmente, implacavelmente.

Toda a atmosfera parecia vibrar num incêndio universal.

E o pano, largo e frouxo, a bater, a bater como uma cousa desesperada…

– Calmaria estúpida! pensava o tenente consultando os horizontes. – Ele, o grande patesca, a olhar o tempo, sem fazer nada, por causa de um diabo de calma interminável. Raríssimas vezes lhe acontecia aquilo: era mesmo para danar uma pessoa…

Chegam os presos: um rapazinho magro, muito amarelo, rosto liso, completamente imberbe; outro regulando a mesma idade, mas um pouco moreno, também grumete; e um primeira-classe, negro alto, espadaúdo, cara lisa.

Vinham em ferros, um a um, arrastando os pés num passo curto e demorado, e encaminharam-se para o meio do convés, fazendo alto a um aceno do comandante. Este imediatamente segredou a outro oficial, que estava a seu lado com um livro na mão, e, dirigindo-se ao primeiro sentenciado, o da frente, o rapazinho amarelo, cor da terra:

– Sabe por que vai ser castigado?

O grumete, sem levantar a cabeça, murmurou afirmativamente: que sim, senhor…

Chamava-se Herculano e no seu rosto imberbe de adolescente havia uns longes de melancolia serena, assim como uma precoce morbidez sintomática… um secreto arrependimento.

Na gola quadrangular de flanela azul destacava a divisa branca de sua classe.

As unhas metiam náusea, muito quilotadas de alcatrão, desleixadas mesmo. Triste figura essa, cujo aspecto deixava uma impressão desagradável e persistente.

O comandante, depois de um breve discurso em que as palavras “disciplina e ordem” repetiam-se, fez um sinalzinho com a cabeça e logo o oficial imediato, um louro, de bigode, começou a leitura do Código na parte relativa a castigos corporais.

A marinhagem, analfabeta e rude, ouvia silenciosa, com um vago respeito no olhar, aquele repisado capítulo do livro disciplinar, em pé, à luz dura e mordente do meio dia, enquanto o oficial do quarto, gozando a sombra reparadora de um largo toldo estendido sobre sua cabeça, ia e vinha, de um bordo a outro bordo, sem se preocupar com o resto da humanidade.

Junto aos presos equilibrava-se um homem de grande estatura, largo e reforçado, tipo de caboclo nascido no Amazonas, trajando fardeta e boné e segurando com ambas as mãos, sobre o joelho em descanso, o instrumento de castigo: era o guardião Agostinho, o célebre guardião Agostinho, especialista consumado no ofício de aplicar a chibata, o mais robusto e valente de todos os guardiões, e cujo zelo em cousas de “patescaria” tornara-se proverbial, Nos momentos de manobra difícil, era ele quem auxiliava o mestre na faina, invariavelmente munido de um apito de prata, não se afastando nunca de suas obrigações.

– Caboclo macho! diziam os companheiros.

Se acontecia desprender-se um moitão, um cabo qualquer, lá cima nos mastros, em lugar arriscado, ele, mais que depressa, galgava os enfrechates, com aquele corpo muito pesado, transpunha o cesto da gávea, sem olhar para trás, e ei-lo agarradinho aos vaus, atando e desatando, ligeiro, alvo de todos os olhares, oscilando com o navio, em termos de precipitar-se no mar. Homem de poucas palavras, muito metido consigo, tolerante e enérgico ao mesmo tempo em matéria de serviço, não compreendia a disciplina sem chibata, “único meio de se fazer marinheiro”.

E tinha sempre esta frase na ponta da língua: – Navio de guerra sem chibata é pior que escuna mercante…

Por isso os companheiros não o estimavam muito; pelo contrário, evitavam a sua presença, procurando intrigá-lo com o mestre e com os outros inferiores. – O guardião Agostinho, sim, que era homem valente, capaz de comandar um quarto…

E riam às escondidas, praguejando contra “o burro do Agostinho, que nem ao menos tinha jeito para capitão de proa…”

Ele ali se achava também, no sue posto, à espera de um sinal para descarregar a chibata, implacavelmente, sobre a vítima. Sentia um prazer especial naquilo, que diabo! cada qual tem a sua mania…

– Vinte e cinco…, ordenou o comandante.

– Tira a camisa? quis logo saber Agostinho radiante, cheio de satisfação, vergando o junco para experimentar-lhe a flexibilidade.

– Não, não: com a camisa…

E solto agora dos machos, triste e resignado, Herculano sentiu sobre o dorso a força brutal do primeiro golpe, enquanto uma voz cantava, sonolenta e a arrastada:

– Uma!… e sucessivamente: duas!… três!… vinte e cinco!

Herculano já não suportava. Torcia-se todo no bico dos pés, erguendo os braços e encolhendo as pernas, cortado de dores agudíssimas que se espalhavam por todo o corpo, até pelo rosto, como se lhe rasgassem as carnes. A cada golpe escapava-lhe um gemido surdo e trêmulo que ninguém ouvia senão ele próprio no desespero de sua dor.

Toda gente assistia aquilo sem pesar, com a fria indiferença de múmias.

– Corja! regougou o comandante brandindo a luva. Não se compenetram de seus deveres, não respeitam a autoridade! Hei de ensiná-los: ou aprendem ou racho-os!

O caso era simples: Herculano tinha uns modos esquisitos de viver sempre retraído, pelos cantos, evitando a companhia dos outros, fazendo seu serviço calado, não se envolvendo em sambas à noite, na proa. Tímido e esquivo, cada vez mais pálido, o olhar morto com uma pronunciada auréola de bistre, a voz cansada, caindo de fraqueza, – tinham-lhe dado o apelido ridículo de Pinga…

O grumete não podia se conformar com esse tratamento, por mais inofensivo que ele fosse, e vingava-se dos companheiros atirando-lhes palavrões de regateira aprendidos ali mesmo a bordo.

– Ó Pinga!…

Bastava isto para que ele desenrolasse o vocabulário do insulto numa cólera ameaçadora que às vezes chegava ao delírio.

Os outros, porém, caíam na gargalhada:

– Olha o Pinga! Segura ele!

– Pinga é …

E lá ia uma obscenidade, um calão grosseiro.

Palavra puxa palavra, quase sempre o gracejo acabava em questões de outra ordem e daí prisões, castigos…

Ora, aconteceu que, na véspera desse dia, Herculano foi surpreendido, por outro marinheiro, a praticar uma ação feia e deprimente do caráter humano. Tinham-no encontrado sozinho, junto à amurada, em pé, a mexer com o braço numa posição torpe, cometendo, contra si próprio, o mais vergonhoso dos atentados.

O outro, um mulatinho esperto. que tinha o hábito de andar espiando, à noite, o que faziam os companheiros, precipitou-se a chamar o Sant’Ana, e, riscando um fósforo, aproximaram-se ambos “para examinar”…. No convés brilhava a nódoa de um escarro ainda fresco: Herculano acabava de cometer um verdadeiro crime não previsto nos códigos, um crime de lesa natureza, derramando inutilmente no convés seco e estéril, a seiva geradora do homem.

Grande foi o seu desapontamento ao ver-se apanhado em flagrante naquela grotesca situação. Investiu para o Sant’Ana, fulo de raiva, extremamente pálido, e com pouco estavam os dois agarrados numa luta corpo a corpo, aos trambolhões, acordando os que dormiam por ali o bom sono da madrugadinha… Terminou o alvoroço com a prisão de ambos.

– Ah! seu Pinga, seu Pinga!… repetia o guardião do quarto. Não pense que, por ser branco, há de fazer das suas…

Tal fora o delito de Herculano e do seu camarada Sant’Ana que também ia ser castigado.

O Sant’Ana, porém, não era lá rapaz de que sofresse calado: tinha sempre o que dizer na ocasião do castigo, desculpando-se como podia perante a autoridade a fim de escapar manhosamente à ação criminal, o que nunca lhe sucedera, porque toda gente o conhecia bastante.

Era um pobre diabo de terceira classe, moreno cor de jenipapo, cabelo rente, à escovinha, olhos negros, nariz acaçapado, cara magra, e cujo nome lá estava no livro de castigos um ror de vezes. Gago de nascença, fazia rir aos companheiros quando abria a boca para dizer qualquer cousa, principalmente se estava num de seus momentos de sobreexcitação colérica, porque, então, ninguém o compreendia.

Tinha a facilidade ingênita das lágrimas: a mais leve comoção fazia-o chorar, transformando-lhe os olhos em duas fontes de úmida ternura.

Pôs-se logo a gaguejar uma história de “implicações”: que estava bem sossegadinho no seu canto e o Herculano fora provocá-lo, “implicar com ele”…

– Vamos, guardião, vamos, que é tarde. Não estou para ouvir histórias. Vá!…

Agostinho vergou o junco e, resolutamente, sem inquirir cousa alguma, com um risinho de instintiva malvadez no canto da boca, desfechou o primeiro golpe:

– Uma! contou a mesma voz de há pouco.

O rapaz empinou-se na ponta dos pés, arregalando muito os olhos, esfregando as mãos.

– Ah! gemeu com um grito de dor. – Pe… pe… pelo amor de… de… de Deus, seu… seu… comandante!

– Vamos, vamos!…

Seguiram-se as outras chibatadas implacáveis, brutais como cáusticos de fogo, caindo uma a uma, dolorosamente, no corpo franzino do marinheiro.

Ele não teve jeito senão suportá-las todas, uma a uma, porque de nada lhe serviam os gritos, as súplicas e as lágrimas…

– Hei de corrigi-los, bradava o comandante, aceso em súbita cólera, mal humorado sob a luz ardentíssima do meio dia tropical. – Hei de corrigi-los: corja!

Nenhum frêmito de comoção na marinhagem, testemunha habitual daquelas cenas que já não logravam produzir efeitos sentimentais, como se fora a reprodução banal de um quadro muito visto.

Começava a cair uma aragenzinha leve, tão leve que apenas atenuava a força cáustica do sol, inflando as velas quase imperceptivelmente.

O tenente, um pouco animado agora com a viração que precede os ventos largos, tomava notas num pequeno caderno, ansioso por chamar a gente aos “braços”.

Meio dia quase e ainda não estava acabado o castigo.

Seguia-se o terceiro preso, um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração cadente e enervada, e cuja presença ali naquela ocasião, despertava grande interesse e viva curiosidade: era o Amaro, gajeiro da proa – o BOM CRIOULO na gíria de bordo.

– Aproxime-se, disse o comandante imperiosamente, carregando na voz e no semblante.

Houve um sussurro longínquo, um leve, um tímido murmúrio nas fileiras da marinhagem, assim como o vago estremecimento que assalta os espectadores de um teatro nas mutações de cenário. Agora a cousa era outra, na verdade. O Herculano e o Sant’Ana, de resto, não passavam de uns pulhas, de uns miseráveis marinheiros que dificilmente agüentavam no lombo vinte e cinco chibatadas: uns criançolas!… Queria-se ver o Amaro, o célebre, o terrível Bom-Crioulo.

Fez-se nova leitura do Código em voz lenta e cadenciada de ofício religioso, e o comandante, formalizando-se dentro de sua farda muito justa e luzida:

– Sabe por que vai ser castigado?

– Sim senhor.

Estas palavras, Bom-Crioulo proferiu-as num tom resoluto, sem o mais ligeiro constrangimento, firmando o olhar, atrevidamente, nos galões de ouro daquele oficial. Em pé, junto ao mastro, unidos os calcanhares, os braços caindo ao longo do corpo, militarmente perfilado, havia, contudo, na linha dos ombros, no jeito da cabeça, onde quer que fosse, um recolhido e traiçoeiro cunho de flexibilidade e destreza felinas.

Com efeito, Bom-Crioulo não era somente um homem robusto, uma dessas organizações privilegiadas que trazem no corpo a sobranceira resistência do bronze e que esmagam com o peso dos músculos.

A força nervosa era nele uma qualidade intrínseca sobrepujando todas as outras qualidades fisiológicas, emprestando-lhe movimentos extraordinários, invencíveis mesmo, de um acrobatismo imprevisto e raro.

Esse dom precioso e natural desenvolvera-se-lhe à força de um exercício continuado que o tornara conhecido em terra, nos conflitos com soldados e catraieiros, e a bordo, quando entrava embriagado.

Porque Bom-Crioulo de longe em longe sorvia o seu gole de aguardente, chegando mesmo a se chafurdar em bebedeiras que o obrigavam a toda a sorte de loucuras.

Armava-se de navalha, ia para os cais, todo transfigurado, os olhos dardejando fogo, o boné de um lado, a camisa aberta num desleixo de louco, e então era um risco, uma temeridade alguém aproximar-se dele. O negro parecia uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens da praia, porque ninguém estava para sofrer uma agressão…

Quando havia conflito no cais Pharoux, já toda gente sabia que era o Bom-Crioulo às voltas com a polícia . Reunia povo, toda a população do litoral corria enchendo a praça, como se tivesse acontecido uma desgraça enorme, formavam-se partidos a favor da polícia e da marinha… uma cousa indescritível!

O motivo, porém, de sua prisão agora, no alto mar, a borda da corveta, era outro, muito outro: Bom-Crioulo esmurrara desapiedadamente um segunda classe, porque este ousara, “sem o seu consentimento”, maltratar o grumete Aleixo, um belo marinheirito de olhos azuis , muito querido por todos e de quem diziam-se “cousas”.

Metido em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente manso, quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado o castigo. – Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! estava satisfeito: mostrara ainda uma vez que era homem… Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar inteiramente, como se conquista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país de ouro… Estava satisfeitíssimo.

A chibata não lhe fazia mossa; tinha costas de ferro para resistir como um Hércules ao pulso do guardião Agostinho. Já nem se lembrava do número das vezes que apanhara de chibata…

– Uma! cantou a mesma voz. – Duas!… três!…

Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura para cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso d’alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos.

Entretanto, já iam cinqüenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas do junco, umas sobre as outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos.

De repente, porém, Bom-Crioulo teve um estremecimento e soergueu um braço: a chibata vibrara em cheio sobre os rins, empolgando o baixo-ventre. Fora um golpe medonho, arremessado com uma força extraordinária.

Por sua vez Agostinho estremeceu, mas estremeceu de gozo ao ver, afinal, triunfar a rijeza de seu pulso.

Marinheiros e oficiais, num silêncio concentrado, alongavam o olhar, cheios de interesse, a cada golpe.

– Cento e cinqüenta!

Só então houve quem visse um ponto vermelho, uma gota rubra deslizar no espinhaço negro do marinheiro e logo este ponto vermelho se transformar numa fita de sangue.

Nesse momento o oficial, ponteirando o óculo de alcance, procurava reconhecer uma sombra quase invisível que parecia flutuar muito longe, nos confins do horizonte: era, talvez, a fumaça de algum transatlântico…

– Basta! impôs o comandante.

Estava terminado o castigo. Ia recomeçar a faina.

Capítulo II

Inda estava longe, bem longe a vitória do abolicionismo, quando Bom-Crioulo, então simplesmente Amaro, veio, ninguém sabe donde, metido em roupas d’algodãozinho, trouxa ao ombro, grande chapéu de palha na cabeça e alpercatas de couro cru. Menor (teria dezoito anos), ignorando as dificuldades por que passa todo homem de cor em um meio escravocrata e profundamente superficial como era a Corte – ingênuo e resoluto, abalou sem ao menos pensar nas conseqüências da fuga.

Nesse tempo o “negro fugido” aterrava as populações de um modo fantástico. Dava-se caça ao escravo como aos animais, de espora e garrucha, mato a dentro, saltando precipícios, atravessando rios a nado, galgando montanhas… Logo que o fato era denunciado – aqui-del-rei! – enchiam-se as florestas de tropel, saiam estafetas pelo sertão num clamor estranho, medindo pegadas, açulando cães, rompendo cafezais. Até fechavam-se as portas com medo… Jornais traziam na terceira página a figura de um “moleque” em fuga, trouxa ao ombro, e, por baixo, o anúncio, quase sempre em tipo cheio, minucioso, explícito, com todos os detalhes, indicando estatura, idade, lesões, vícios, e outros característicos do fugitivo. Além disso o “proprietário” gratificava generosamente a quem prendesse o escravo.

Conseguindo, porém, escapar à vigilância dos interessados, e depois de curtir uma noite, a mais escura de sua vida, numa espécie de jaula com grades de ferro, Amaro, que só temia regressar à “fazenda”, voltar ao seio da escravidão, estremeceu diante de um rio muito largo e muito calmo, onde havia barcos vogando em todos os sentidos, à vela, outros deitando fumaça, e lá em cima, beirando a água, um morro alto, em ponta, varando as nuvens, como ele nunca tinha visto.

Depois mandaram-no tirar a roupa do corpo (até ficou envergonhado…), examinaram-lhe as costas, o peito, as virilhas, e deram-lhe uma camisa azul de marinheiro.

No mesmo dia foi para a fortaleza, e , assim que a embarcação largou do cais a um impulso forte, o novo homem do mar sentiu pela primeira vez toda a alma vibrar de uma maneira extraordinária, como se lhe houvessem injetado no sangue de africano a frescura deliciosa de um fluido misterioso. A liberdade entrava-lhe pelos olhos , pelos ouvidos, pelas narinas, por todos os poros, enfim, como a própria alma da luz, do som, do odor e de todas as cousas etéreas… Tudo que o cercava: a planura da água cantando na proa do escaler, o imaculado azul do céu, o perfil longínquo das montanhas, navios balouçando entre ilhas, e a casaria imóvel da cidade que ficava para trás – os companheiros mesmo que iam remando igual, como se fossem um só braço -, e sobretudo, meu Deus!, sobretudo o ambiente largo e iluminado da baía: enfim, todo o conjunto da paisagem comunicava-lhe uma sensação tão forte de liberdade e vida, que até lhe vinha vontade de chorar, mas de chorar francamente, abertamente, na presença dos outros, como se estivesse enlouquecendo… Aquele magnífico cenário gravara-se-lhe na retina para toda a existência; nunca mais o havia de esquecer, ó, nunca mais! Ele, o escravo, o “negro fugido” sentia-se verdadeiramente homem, igual aos outros homens, feliz de o ser, grande como a natureza, em toda a pujança viril da sua mocidade, e tinha pena, muita pena dos que ficavam na “fazenda” trabalhando, sem ganhar dinheiro, desde a madrugada té … sabe Deus!

No princípio, antes de ir para bordo, foi-lhe difícil esquecer o passado, a “mãe Sabina”, os costumes que aprendera nos cafezais… Muita vez chegava a sentir um vago desejo de abraçar os seus antigos companheiros do eito, mas logo essa lembrança esvaía-se como a fumaça longínqua e tênue das queimadas, e ele voltava à realidade, abrindo os olhos, num gozo infinito para o mar crivado de embarcações…

A disciplina militar, como todos os seus excessos, não se comparava ao penoso trabalho da fazenda, ao regimen terrível do tronco e do chicote. Havia muita diferença… Ali ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca, seu travesseiro, sua roupa limpa, e comia bem, a fartar, como qualquer pessoa, hoje boa carne cozida, amanhã suculenta feijoada, e, às sextas-feiras, um bacalhauzinho com pimenta e “sangue de Cristo”… Para que vida melhor? Depois, a liberdade, minha gente, só a liberdade valia por tudo! Ali não se olhava a cor ou a raça do marinheiro: todos eram iguais, tinham as mesmas regalias – o mesmo serviço, a mesma folga. – “E quando a gente se faz estimar pelos superiores, quando não se tem inimigos, então é um viver abençoado esse: ninguém pensa no dia d’amanhã!”

Amaro soube ganhar logo a afeição dos oficiais. Não podiam eles, a princípio, conter o riso diante daquela figura de recruta alheio às praxes militares, rude como um selvagem, provocando a cada passo gargalhadas irresistíveis com seus modos ingênuos de tabaréu; mas, no fim de alguns meses, todos eram de parecer que “o negro dava para gente”. Amaro já sabia manejar uma espingarda segundo as regras do ofício, e não era lá nenhum botocudo em artilharia; criara fama de “patesca”.

Nunca, durante esse primeiro ano de aprendizagem, merecera a pena de um castigo disciplinar: seu caráter era tão meigo que os próprios oficiais começaram a tratá-lo por Bom-Crioulo. Seu maior desejo, porém, sua grande preocupação, era embarcar fosse em que navio fosse, acostumar-se a viver no mar, conhecer, enquanto estava moço, os costumes de bordo, saber praticamente “amichelar uma verga, rizar uma vela, fazer um quarto na agulha…” Podia muito bem ser promovido logo… Invejava os que andavam no alto-mar, longe de terra, bordejando à solta por esses mundos de Deus. Como devia de ser bom para a alma e para o corpo o ar livre que se respira lá fora, sobre as águas!…

Divertia-se a construir pequenas embarcações de madeira imitando navios de guerra com flâmula no tope do mastro e portinholas, cruzadores em miniatura, iatezinhos, tudo à ponta de canivete e com a paciência tenaz de um arquiteto.

Mas, nada de o fazerem embarcar definitivamente! Ia para bordo, às vezes, em exercício, remando no escaler, mas voltava logo com a turma dos outros aprendizes, triste por não ter ficado, sonhando histórias de viagens, cousas que havia de ver, quando pela primeira vez saísse pela barra fora…

Chegou afinal esse dia. Bom-Crioulo estava nomeado para embarcar num velho transporte que seguia para o sul.

– Ora, até! fez ele, erguendo os braços com um gesto de maravilhosa surpresa. Até que enfim, graças a deus, lembraram-se do Bom-Crioulo!

E saiu por ali muito feliz, muito alegre, todo alvoroçado, anunciando seu destino. – Queriam alguma cousa do sul? Nem uma lembrançazinha do Rio Grande? Nada, nada ?…

– Traze uma paraguaia, ó Bom-Crioulo, gracejava um.

– Olha, eu me contento com uma dúzia d’ovos, de Santa Catarina…

Outros encomendavam-lhe cousas impossíveis: um pedaço de “gringo” assado; uma terça de sangue espanhol: a orelha de um “barriga-verde”…

E riam todos no rancho, e todos o que estimavam é que Amaro fosse muito feliz na sua primeira viagem, que voltasse gordo e forte “pra matar galego no cais dos Mineiros”.

Alguns gabavam o comandante do transporte, o velho Novais, bom homem, que não gostava de castigar e que era até amigo dos marinheiros.

– E o imediato?

Ora, o imediato era um tal Pontes, um de suíças, que naufragara na corveta Isabel, muito feio, coitado, mas boa pessoa; também não fazia mal a ninguém, pelo contrário – marinheiro que lhe caísse nas graças era tratado a vinho do Porto…

Bom-Crioulo exultava!

O embarque devia se efetuar à tardinha, pouco antes de “arriar a bandeira”.

Todo ele estava pronto, e via-se-lhe no olhar, na fala, nos modos, o grande contentamento de que estava cheio seu coração. Era uma felicidade estranha, um bem estar nunca visto, assim como o começo de uma loucura inofensiva e serena, que o fazia mais homem vinte vezes, que o tornava mais forte e retemperado para as lutas da vida. Suave embriaguez dos sentidos, essa que vem de uma grande alegria ou de uma tristeza imensa… Bom-Crioulo só experimentara prazer igual quando o tinham obrigado a conhecer o que é liberdade, recrutando-o para a marinha. Essa liberdade ampliava-se agora a seus olhos, crescia desmesuradamente em sua imaginação, provocando-lhe frêmitos de alucinado, abrindo-lhe n’alma horizontes cor-de-rosa, largos e ignorados.

Não deixava um só inimigo, um rival sequer na fortaleza; ia bem com todos, egoísta na sua felicidade, mas levando a saudades irresistível dos que se vão embora…

Quando o escaler que o conduzia se afastou da ponte, onde os companheiros acenavam com os bonés, num entusiasmo comovente, ele sentiu a quentura de uma lágrima fugitiva descer-lhe rosto abaixo, e, disfarçando, pôs-se também a acenar, em pé na embarcação, vendo sumirem-se pouco a pouco, na bruma do crepúsculo, os contornos da ilha e as saudações da maruja.

Parecia-lhe ouvir ainda, na proa do transporte, como as últimas reminiscências de um sonho, a voz dos companheiros abraçando-o: – Adeus, ó Bom-Crioulo: sê feliz!

Não dormiu toda essa noite. Estendido no convés sobre o dorso, como se estivesse num bom leito macio e amplo, viu desaparecerem as estrelas, uma a uma, na penumbra da antemanhã, e o dia ressurgir glorioso, dourando os Órgãos, ourejando os edifícios, cantando o hino triunfal da ressurreição.

E pouco depois o esplêndido cenário da baía transformara-se num vastíssimo oceano deserto e resplandecente, desdobrando-se num círculo imenso d’água, onde não verdejava sequer um canto de oásis… A grandeza do mar enchia-o de uma coragem espartana. Ali se achava, ao redor dele, a sublime expressão da liberdade infinita e da soberania absoluta, coisas que o seu instinto alcançava muito vagamente através de um nevoeiro de ignorância.

Dias e dias correram. A bordo todos o estimavam como na fortaleza, e a primeira vez que o viram, nu, uma bela manhã, depois da baldeação, refestelando-se num banho salgado – foi um clamor! Não havia osso naquele corpo de gigante: o peito largo e rijo, os braços, o ventre, os quadris, as pernas, formavam um conjunto respeitável de músculos, dando uma idéia de força física sobre-humana, dominando a maruja, que sorria boquiaberta diante do negro. Desde então Bom-Crioulo passou a ser considerado um “homem perigoso” exercendo uma influência decisiva no espírito daquela gente, impondo-se incondicionalmente, absolutamente, como o braço mais forte, o peito mais robusto de bordo. Os grandes pesos era ele quem levantava, para tudo aí vinha Bom-Crioulo com seu pulso de ferro, com a sua força de oitenta quilos, mostrar como se alava um braço grande, como se abafava uma vela em temporal, como se trabalhava com gosto.

Entretanto, o seu nome ia ganhando fama em todos os navios. – Um pedaço de bruto, aquele Bom-Crioulo! diziam os marinheiros. – Um animal inteiro é o que ele era!

Tinha um forte desejo ainda: suspirava por embarcar em certo navio, cujo comandante, um fidalgo, dizia-se amigo de todo marinheiro robusto; excelente educador da mocidade, perfeito cavalheiro no trato ameno e severo.

Bom-Crioulo conhecia-o de vista somente e ficara simpatizando imensamente com ele. Demais, o comandante Albuquerque recompensava os serviços de sua gente, não se negava a promover os seus afeiçoados. Isso de se dizer que preferia uma sexo a outro nas relações amorosas podia ser uma calúnia como tantas que inventam por aí… Ele, Bom-Crioulo, não tinha nada que ver com isso. Era uma questão à parte, que diabo! ninguém está livre de um vício.

Mas, anunciou-se a viagem da corveta, e lá Bom-Crioulo deixou o cruzador para seguir seu novo destino.

Contava então cerca de trinta anos e trazia a gola de marinheiro de segunda-classe. Por sua vontade não sairia mais barra fora: em dez anos viajara quase o mundo inteiro, arriscando a vida cinqüenta vezes, sacrificando-se inutilmente. – Afinal a gente aborrece… Um pobre marinheiro trabalha como besta, de sol a sol, passa noites acordado, atura desaforo de todo mundo, sem proveito, sem o menor proveito! O verdadeiro é levar a vida “na flauta”…

Nessa viagem Bom-Crioulo não foi mais feliz que nas outras. Nomeado gajeiro de proa, espécie de fiscal do mastro do traquete, a princípio dera conta irrepreensivelmente de suas obrigações e podia-se ver o asseio e a boa ordem que reinavam ali, desde a borla do tope té embaixo à chapa das malaguetas. Fazia gosto a presteza com que se efetuavam as manobras. A faina corria sempre na melhor ordem, livre de acidentes, como se todo o mastro fosse uma grande máquina movida a vapor, desafiando a gente dos outros mastros.

Agora, porém, de torna-viagem as cousas tinham mudado. O traquete era um dos últimos a estar pronto, havia sempre um obstáculo, uma dificuldade: era um cabo que “pegava”, um “andarivelo” que se partia ou cousa que faltava…

– Anda com isso! bradava o oficial do quarto já impaciente.

E só depois de muito tempo é que o Bom-Crioulo anunciava lá de cima do mastaréu, com a voz estragada:

– Pronto!

Diziam uns que a cachaça estava deitando a perder “o negro”, outros, porém, insinuavam que Bom-Crioulo tornara-se assim, esquecido e indiferente, dês que “se metera” com o Aleixo, o tal grumete, o belo marinheirito de olhos azuis, que embarcara no sul. – O ladrão do negro estava mesmo ficando sem vergonha! E não lhe fossem fazer recriminações, dar conselhos… Era muito homem para esmagar um!

O próprio comandante já sabia daquela amizade escandalosa com o pequeno. Fingia-se indiferente, como se nada soubesse, mas conhecia-se-lhe no olhar certa prevenção de quem deseja surpreender em flagrante…

Os oficiais comentavam baixinho o fato e muitas vezes riam maliciosamente na praça d’armas entre copos e limonadas.

Tudo isso, porém, não passava de suspeitas, e Bom-Crioulo, com o seu todo abrutalhado, uma grande pinta de sangue no olho esquerdo, o rosto largo de um prognatismo evidente, não se incomodava com o juízo dos outros. – Não lho dissessem na cara, porque então o negócio era feio… A chibata fizera-se para o marinheiro: apanhava até morrer, como um animal teimoso, mas havia de mostrar o que é ser homem!

Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexo contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas a espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã.

Chamou-o a si, com a voz cheia de brandura, e quis saber como ele se chamava.

– Eu me chamo Aleixo, disse o grumete baixando o olhar, muito calouro.

– Coitadinho, chama-se Aleixo, tornou Bom-Crioulo.

E imediatamente, sem tirara vista de cima do pequeno, com a mesma voz branda e carinhosa:

– Pois olhe: eu me chamo Bom-Crioulo, não se esqueça. Quando alguém o provocar, lhe fizer qualquer cousa, estou aqui eu, para o defender, ouviu?

– Sim senhor, fez o marinheirito levantando o olhar com uma expressão de agradecimento.

– Não tenha vergonha, não: Bom-Crioulo, gajeiro da proa. É só me chamar.

– Sim senhor…

– Olhe mais, tornou o negro segurando a mão da pequeno: – Muito sossegadinho no seu lugar para não sofrer castigo, sim?

Aleixo só fazia responder timidamente: – Sim senhor – com um arzinho ingênuo de menino obediente, os olhos muito claros, de um azul garço pontilhado, e os lábios grossos extremamente vermelhos.

Era filho de uma pobre família de pescadores que o tinham feito assentar praça em Santa Catarina, e estava se pondo rapazinho. Seu trabalho a bordo consistia em colher cabos e arear os metais, quando não se ocupava na ronda pela noite.

Bom-Crioulo metia-lhe medo a princípio, e quase o fizera chorar uma vez porque o encontrara fumando em intimidade com o sota de proa na coberta. O negro deitara-lhe uns olhos!… Felizmente não aconteceu nada. Mas daí em diante Aleixo foi-se acostumando, sem o sentir, àqueles carinhos, àquela generosa solicitude, que não enxergava sacrifícios, nem poupava dinheiro, e, por fim, já havia nele uma acentuada tendência para Bom-Crioulo, um visível começo de afeição reconhecida e sincera.

Foi então que o negro, zelosa da sua nova amizade, quis mostrar ao grumete o seu grande poder sobre os outros e té onde o levava esse zelo, esse egoísmo apaixonado, esmurrando implacavelmente o segunda-classe que maltratara Aleixo.

A idéia de que Bom-Crioulo sofrera por sua causa calou de tal maneira no espírito do grumete que ele agora estimava-o como a um protetor desinteressado, amigo dos fracos…

Quando regressou dessa longa viagem ao sul, estava inda mais forte, mais viçoso e mais homem. Era uma massa bruta de músculos ao serviço de um magnífico aparelho humano. No tocante à disciplina mudara também um pouco: já ninguém lhe via certos escrúpulos de obediência e seriedade, perdera mesmo aquele ar, aquela compostura de respeito que o fazia estimado pelos oficiais em Villegaignon, e o distinguia da marinhagem insubmissa e desbriada. A maioria dominara-o positivamente; aquele caráter dócil e tolerante, deixara-o ele no alto mar ou nas terras por onde andara. Agora tratava com desdém os superiores, abusando se esses lhe faziam concessões, maldizendo-os na ausência, achando-os maus e injustos. Uma cousa, porém, ele soubera conservar: a força física, impondo-se cada vez mais aos outros marinheiros, que não ousavam agredi-lo nem brincando. Sua fama de homem valente alargara-se de modo tal que mesmo na província falava-se com prudência no “Bom-Crioulo”. – Quem é que não o conhecia, meu Deus? Por sinal tinha sido escravo e até nem era feio o diabo do negro…

Do transporte em que fizera sua primeira viagem passou a servir num cruzador chegadinho da Europa. Aí a vida não lhe ocorreu muito calma. O comandante, um Varela, capitão-de-mar-e-guerra, severo e inflexível como nenhum outro oficial do seu tempo, homem que não ria nunca, chamou-o a conta um belo dia, e quase o deixou sem fala, simplesmente porque Bom-Crioulo dera com um remo na cabeça de outro marinheiro por uma questiúncula de ofício. Tal foi o seu primeiro castigo depois de quatro anos de serviço. Profundamente magoado, concentrou-se para reaparecer mandrião e insubmisso, cheio de ressentimento, não se importando, como dantes, com os seus deveres, trabalhando “por honra da firma” sem vexame nem sacrifício. – “Tolo era quem se matava. Havia de receber seu soldo quer trabalhasse, quer não trabalhasse. – … que os pariu!”

E ia se fazendo esquerdo, cuidando mais de seus interesses que de outra cousa, passando um mês no hospital e outro mês a bordo, ou em terra, com licença.

Capítulo III

À calmaria equatorial da véspera sucedera, felizmente, uma viração fresca e reparadora, crispando a larga superfície d’água, enchendo as velas e dando a todas as fisionomias um aspecto novo de bom humor e jovialidade.

O céu tinha uma cor azul esverdeada, limpo de nuvens, alto e imenso na eterna glória da luz… Avezinhas de colo branco acompanhavam a corveta, pousando n’água, trêfegas e alvissareiras, misturando sua alegria ruidosa com o surdo marulhar das vagas, num rápido espanejamento d’asas.

Agora, sim, todos regozijavam com a esperança de chegar breve, em paz e salvamento, à Guanabara, lá onde havia sossego e abastança, lá onde a vida corria suave e cheia de tranqüilidade, porque se estava perto da família, defronte da cidade, sem os cuidados de quem anda no alto-mar… E depois já era tempo! Vinte dias a bordejar estupidamente, sem ver um pedaço de terra, uma ilha sequer, passando mal como cão! Já era tempo…

Só uma pessoa desejava que a viagem se prolongasse indefinidamente, que a corveta não chegasse nunca mais, que o mar se alargasse de repente submergindo ilhas e continentes numa cheia tremenda, e a velha nau, só ela, como uma cousa fantástica, sobrevivesse ao cataclismo, ela somente, grandiosa e indestrutível, ficasse flutuando, flutuando por toda a eternidade. Era Bom-Crioulo, o negro Amaro, cujo espírito debatia-se, como um pássaro agonizante, em torno dessa única idéia – o grumete Aleixo, que o não deixava mais pensar noutra coisa, que o torturava dolorosamente… – Maldita hora em que o pequeno pusera os pés a bordo! Até então sua vida ia correndo como Deus queria, mais ou menos calma, sem preocupações incômodas, ora triste. ora alegre é verdade, porque não há nada firme no mundo, mas enfim, ia-se vivendo… E agora? Agora… hum, hum!… agora não havia remédio: era deixar o pau correr…

E vinha-lhe à imaginação o pequeno com seus olhinhos azuis, com o seu cabelo alourado, com suas formas rechonchudas, com o seu todo provocador.

Nas horas de folga, no serviço, chovesse ou caísse fogo em brasa do céu, ninguém lhe tirava da imaginação o petiz: era uma perseguição de todos os instantes, uma idéia fixa e tenaz, uma relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo desejo de unir-se ao marujo, como se ele fora de outro sexo, de possui-lo, de tê-lo junto a si, de amá-lo, de gozá-lo!…

Ao pensar nisso Bom-Crioulo transfigurava-se de um modo incrível, sentindo ferroar-lhe a carne, como a ponta de um aguilhão, como espinhos de urtiga brava, esse desejo veemente – uma sede tantálica de gozo proibido, que parecia queimar-lhe por dentro as vísceras e os nervos…

Não se lembrava de ter amado nunca ou de haver sequer arriscado uma dessas aventuras tão comuns na mocidade, em que entram mulheres fáceis, não: pelo contrário, sempre fora indiferente a certas cousas, preferindo antes a sua pândega entre rapazes a bordo mesmo, longe das intriguinhas e fingimentos de mulher. Sua memória registrava dois fatos apenas contra a pureza quase virginal de seus costumes, isso mesmo por uma eventualidade milagrosa: aos vinte anos, e sem o pensar, fora obrigado a dormir com uma rapariga em Angra dos Reis, perto das cachoeiras, por sinal dera péssima cópia de si como homem; e mais tarde, completamente embriagado, batera em casa de uma francesa no largo do Rocio, donde saíra envergonhadíssimo, jurando nunca mais se importar com “essas cousas”…

E agora, como é que não tinha forças para resistir aos impulsos do sangue? Como é que se compreendia o amor, o desejo da posse animal entre duas pessoas do mesmo sexo, entre dois homens?

Tudo isto fazia-lhe confusão no espírito, baralhando idéias, repugnando os sentidos, revivendo escrúpulos. – É certo que ele não seria o primeiro a dar exemplo, caso o pequeno se resolvesse a consentir… Mas – instinto ou falta de hábito – alguma cousa dentro de si revoltava-se contra semelhante imoralidade que os outros de categoria superior praticavam quase todas as noites ali mesmo sobre o convés… Não vivera tão bem sem isso? Então, que diabo! não valia a pena sacrificar o grumete, uma criança… Quando sentisse “a necessidade”, aí estavam mulheres de todas as nações, francesas, inglesas, espanholas… a escolher!

Caía em si, arrependido e frio, escrupulizando as cousas, traçando normas de proceder, enchendo-se de uma ternura por vezes lânguida e piedosa – o olhar erradio no azul inconsútil.

O castigo por causa do Aleixo trouxera-lhe outro prejuízo: no mesmo dia deixou ele o cargo de gajeiro de proa, o que afinal era um descanso, um alívio de trabalho. Tudo quanto lhe fizessem estava muito bem feito, contanto que o deixassem no seu canto, no seu ramerrão: nunca pedira favores a ninguém.

– Olha, dizia ele ao grumete com uma ironia na voz conselheira: não te metas com oficiais. São muito bons, muito amigos da gente, enquanto precisam de nós, só enquanto precisam, mas depois – adeus, hein! – dão-nos com o pé no focinho.

Aleixo estava satisfeitíssimo com a vida que ia levando naquele céu aberto da corveta, querido, estimado por todos, invejado por meia dúzia. Nada lhe faltava, absolutamente nada. Era mesmo uma espécie de principezinho entre os camaradas, o “menino bonito” dos oficiais, que o chamavam de “boy”. Habituando-se depressa àquela existência erradia, foi perdendo o acanhamento, a primitiva timidez, e quem o visse agora, lesto e vivo, acudindo à manobra, muito asseado sempre na sua roupa branca, o boné de um lado, a camisa um poucochinho decotada na frente, deixando ver a cova do pescoço, ficava lhe querendo bem, estimava-o deveras. Essa metamorfose rápida e sem transição perceptível, foi obra de Bom-Crioulo, cujos conselhos triunfaram sem esforço no ânimo do grumete, abrindo-lhe na alma ingênua de criançola o desejo de conquistar simpatias, de atrair sobre a sua pessoa a atenção de todos.

Gabando-se de conhecer “o mundo”, Bom-Crioulo cuidou primeiro em lisonjear a vaidade de Aleixo, dando-lhe um espelhinho barato que comprara no Rio de Janeiro – “para que ele visse quanto era bonito”. O pequeno mirou-se e…

sorriu, baixando o olhar. – Que bonito o quê!… Uma cara de carneiro mocho! – Mas não abandonou o trastezinho, guardando-o com zelo no fundo da trincheira, como quem guarda um objeto querido, uma preciosidade rara, e todas as manhãs ia ver-se, deitando a língua fora, examinando-se cuidadosamente, depois de ter lavado o rosto.

Bom-Crioulo compreendeu o efeito da experiência e tratou de completar a “educação” do marinheiro. Ensinou-lhe como se dava laço na gravata… (gravata não, dizia ele, isso não se chama gravata, chama-se lenço…); aconselhou-o que nunca usasse o boné no meio da cabeça: – Um marinheiro deve usar o boné de lado, com certa graça…

E a camisa? – Oh, a camisa devia ser um bocadinho aberta para mostrar a debaixo, a de meia. O hábito faz o monge.

O grumete aceitava tudo com um ar filial, sem procurar a razão de todo esse esmero. Via marinheiros imundos, mal vestidos, cheirando a suor, mas eram poucos. Havia os que até usavam essências no lenço e óleo no cabelo.

No fim de alguns dias Aleixo estava outro e Bom-Crioulo contemplava-o com esse orgulho de mestre que assiste ao desenvolvimento do discípulo.

Um belo domingo, em que todos deviam se apresentar com uniforme branco, segundo a tabela, o grumete foi o último a subir para a mostra. Vinha irrepreensível na sua toilette de sol, a gola azul dura de goma, calças boca-de-sino, boné de um lado, coturnos lustrosos.

Bom-Crioulo, que já estava em cima, na tolda, assim que o viu naquela pompa, ficou deslumbrado e por um triz esteve fazendo uma asneira. Seu desejo era abraçar o pequeno, ali na presença da guarnição, devorá-lo de beijos, esmagá-lo de carícias debaixo do seu corpo. – Sim senhor! Parecia uma menina com aquele traje. Esta mesmo apto! Então o espelhinho sempre servira, hein?

E com um gesto rápido, nervoso, disfarçando a concupiscência:

– Bonitinho!

O pequeno, longe de se amuar com o gracejo, mirou-se d’alto a baixo, risonho, deu um muxoxo e seguiu para a forma sem dizer palavra.

Depois de terminada a leitura do regulamento, feita a revista, Bom-Crioulo chamou-o à proa, e entraram numa longa palestra, deliciosa para o negro a julgar pela expressão cada vez mais fulgurante de sua fisionomia.

O mar estava relativamente calmo, apenas eriçado por uma viração branda que ameigava o mormaço. Nuvens aglomeravam-se para o sul, crescendo em bulcões pardacentos, como impelidas pela mesma força, longe ainda, rente com o horizonte. Em cima, no alto do grande hemisfério que a luz do meio dia incendiava, o azul sempre o azul claro, o azul imaculado, o azul transparente e doce, infinito e misterioso… Parecia que se estava muito perto de terra, porque no mesmo horizonte da corveta ia passando uma velinha triangular de jangada, microscópica e fugitiva. Pela alheta de boreste vinha-se chegando também o vulto sombrio de um grande vapor de dois canos.

Bom-Crioulo e Aleixo conversavam à sombra da bujarrona, lado a lado, indiferentes à alegria dos outros marinheiros, cuja atenção volvia-se agora para o transatlântico. Todos, menos os dois, queriam saber de que nacionalidade era o “bruto”. Uns afirmavam que era inglês, por causa do tamanho; outros viam na cor dupla das chaminés o distintivo das Messageries Maritimes: devia ser o Equateur ou o Gironde – um dos dois. Faziam-se apostas, enquanto o monstro se aproximava silenciosamente e a jangadinha sumia-se pouco a pouco…

– Mas, olhe, você não queira negócio com outra pessoa, dizia Bom-Crioulo. O Rio de Janeiro é uma terra dos diabos… Se eu o encontrar com alguém, já sabe…

O rapazinho mordia distraidamente a ponta do lenço de chita azul-escuro com pintinhas brancas, ouvindo as promessas do outro, sonhando uma vida cor-de-rosa lá nesse Rio de Janeiro tão falado, onde havia uma grande montanha chamada Pão d’Açúcar, e onde o imperador tinha o seu palácio, um casarão bonito com paredes de ouro…

Tudo avultava desmesuradamente em sua imaginação de marinheiro de primeira viagem. Bom-Crioulo tinha prometido levá-lo aos teatros, ao Corcovado (outra montanha donde se avistava a cidade inteira e o mar…), à Tijuca, ao Passeio Público, a toda parte. Haviam de morar juntos, num quarto da rua da Misericórdia, num comodozinho de quinze mil-réis onde coubessem duas camas de ferro, ou mesmo uma só, larga, espaçosa… Ele, Bom-Crioulo, pagava tudo com o seu soldo. Podia-se viver uma vida tranqüila. Se continuassem no mesmo navio, não haveria cousa melhor; se, porém, a sorte os separasse dava-se jeito. Nada é impossível debaixo do céu.

– E não tem que dizer isto a ninguém, concluiu o negro. Caladinho: deixe estar que eu toco os paus…

Nesse momento o transatlântico defrontava com a corveta, içando a ré a bandeira inglesa, uma grande lenço de tabaco, encarnado, e saudando com três guinchos medonhos o navio de guerra, cuja bandeira também flutuava na popa, verde e ouro.

Um mundo de gente movia-se na proa do inglês, decerto imigrantes italianos que chegavam ao Brasil. Distinguia-se bem o comandante, em uniforme branco, chapéu de cortiça, no passadiço, empunhando o óculo. Lenços acenavam para a corveta que ia ficando atrás, toda em panos, lenta e soberba.

E o paquete desapareceu como uma sombra, e ela continuou na sua derrota, sozinha no meio do mar, desolada e lúgubre. Os marinheiros tinham se espalhado pela tolda e pelas cobertas, entregues à labuta, esperando o rancho das quatro horas.

A montanha de nuvens que há pouco erguia-se fantasticamente lá longe, ao sul, alastrava o céu, aproximando-se cada vez mais, cor de chumbo, tempestuosa, desdobrando-se em contornos de feições bizarras, como uma barreira enorme que de repente se levantasse entre a corveta e o horizonte. Meio encoberto já, o sol coava sua luz triste através das nuvens, irisando-as de uma faixa multicor e brilhante, espécie de auréola, que descia para o mar.

O aguaceiro estava iminente.

– Obra dos joanetes e sobres! gritou o oficial de quarto.

A essa voz o movimento foi geral. Imediatamente soaram apitos e a tolda encheu-se de marinheiros e oficiais, que surgiam das escotilhas num alvoroço, correndo, empurrando-se. A figura do guardião Agostinho destacava à proa, calma e solene, medindo a mastreação.

– Arria, carrega!

Trilaram de novo os apitos num desespero de manobra açodada: avalanches de marinheiros precipitaram-se de um bordo e doutro, alando os cabos, atropelando-se em correrias de horda selvagem, batendo os pés, ao barulho dos moitões que chiavam como carro de bois na roça.

– Agüenta o leme! avisava o oficial todo embuçado na sua capa impermeável.

O tempo escurecera completamente, e a ventania refrescando, esfuziava na mastreação de modo sinistro, com a força extraordinária de titãs invisíveis. Mar e céu confundiam-se na escuridão, formando um só conjunto negro em torno da corveta, abarcando-a em todos os sentidos, como se tudo ali dentro fosse desaparecer debaixo das águas e das nuvens… Passavam grandes ondas altaneiras, rugindo sob a quilha, dançando uma dança medonha e vertiginosa na proa, cada vez que o navio mergulhava o bojo com risco de abrir pelo meio… Chuva copiosíssima alagava o convés obrigando os marinheiros a se arregaçar, encharcando as pilhas de cabo, numa baldeação geral e inesperada.

A corveta ficara somente em gáveas e mezena, e corria, agora, sobre o mar, como se fosse um simples iatezinho de recreio, leve, enfunada, cavalgando as ondas – a bordas quase rente com a água…

Que orgulho para o oficial de quarto! Como ele sentia-se bem naquele momento, debaixo de seu sueste, molhado té à ponta dos pés, todo olhos para que o navio não saísse fora do rumo, cheio de responsabilidade, calmo no seu posto, enquanto os outros descansavam na praça d’armas! De vez em quando olhava para a popa e via, com grande júbilo d’alma, a larga esteira de espuma que a corveta ia deixando atrás. Sentia-se forte, sentia-se homem! – Decididamente a marinha é, por excelência, uma escola de coragem! pensava.

Durou hora e meia o aguaceiro, uma chuva cerrada e insistente de revés, que parecia não acabar mais. O céu abriu-se de repente, claro e azul; a luz tornou a iluminar os horizontes; e pouco a pouco foram desaparecendo os últimos vestígios da “brincadeira”, como dizia, depois, o tenente Souza, o da calmaria, que entrava de quarto.

O vento, porém, continuava rijo, açoitando os cabos, fustigando a superfície d’água, gemendo tristemente salmodias de violoncelo fantástico, em lufadas que faziam estremecer todo o navio.

Dez milhas, acusava a barquinha, dez milhas por hora.

– Cuidado com o leme!

Marinheiros vassoiravam o convés, enquanto outros iam passando o lambaz onde já não havia água. De cima, da tolda, ouvia-se a voz dos oficiais conversando na bateria, sentados por ali numa desordem grotesca, fumando, rindo… O comissário, um de suíças longas, magro, estudava clarinete, embaixo, na praça d’armas, com admirável paciência, equilibrando-se. A chuva reanimara-os a todos, oficiais e marinheiros, desentorpecendo-lhes o corpo.

Bom-Crioulo, cansado da faina, descera à coberta, e conversava também com Aleixo, de quem só se separava na hora do serviço.

A umidade, o frio que entra pelas escotilhas, aquele ambiente glacial comunicava-lhe um desejo louco de amor físico, um enervamento irresistível. Unido ao grumete num quase abraço, a mão no ombro de Aleixo que, àquele contacto, experimentava uma vaga sensação de carícia, o negro esquecia todos os seus companheiros, tudo que o cercava para só pensar no grumete, no “seu bonitinho” e no futuro dessa amizade inexplicável.

– Tiveste muito medo?

– De quê?

– Do tempo…

– Não, nem por isso.

E Aleixo aproveitou o ensejo para narrar rum caso de vento sul em Santa Catarina: – Tinham saído, ele e o pai, numa canoa de pesca, assim pelo meio-dia. De repente o mar começa a encrespar, o vento desaba… e agora? Estavam sozinhos perto da ilha dos Ratones dentro de uma canoa que era ver uma casquinha de noz. O velho, coitado, não teve dúvida, não! puxou pelo remo: – vuco, te vuco…, vuco, te vuco…- Segura-te, meu filho! E o vento cada vez mais forte, zunindo no ouvido que nem o diabo. Mas veio uma rajada de supetão, um golpe de vento medonho, e quando ele, Aleixo, quis agarrar-se ao pai, era tarde: a canoa emborcou!

– Emborcou?

– Emborcou de verdade, pois então? Sei bem que fui ao fundo e voltei à tona. Aí perdi o sentido… quando acordei estava na praia, são e salvo, graças a Deus!

– Assim mesmo foste feliz, disse o negro com interesse. Podias morrer afogado…

Bom-Crioulo também quis contar sua história, e a conversa prolongou-se té ao anoitecer, quando todos subiram par a distribuição do serviço.

Em vez de abrandar, o sueste soprava com mais força, duro e tenaz, ameaçando levar tudo quanto era cabo e pano. A corveta, o “velho esquife”, como a chamavam, ia numa vertigem por aqueles mares, arfando suavemente, oscilando às vezes, quando o vagalhão era maior, com os seus dois faróis de cor – o encarnado a boreste, o verde a bombordo – e a lanterninha do traquete, pálida e microscópica no alto do estai da giba.

Sempre em gáveas e mezena, vento em popa, grande e sombria na noite clara, espectral e silenciosa, ela voava desesperadamente caminho da pátria.

A lua surgindo lenta e lenta, cor de fogo a princípio, depois fria e opalescente, misto de névoa e luz, alma da solidão, melancolizava o largo cenário das ondas, derramando sobre o mar essa luz meiga, essa luz ideal que penetra o coração do marinheiro, comunicando-lhe a saudade infinita dos que navegam.

E nada de serenar o vento!

Naquele caminhar, cedo se estaria em terra. Cousa talvez de um dia mais…

Enquanto não chegava a hora triste do silêncio oficial, a hora do sono, que se prolongava té o romper d’alvorada, marinheiros divertiam-se à proa, cantando ao som de uma viola chorosa, numa toada sertaneja, rindo, sapateando, a ver quem melhor improvisava modinhas de pé quebrado, “cantigas do mato”… – Não se perdia um luar como aquele! Tinham trabalhado muito: era preciso folgar também. Deitados no convés, de ventre para o ar, outros em sentido contrário, queixos na mão – um sentado pacatamente, aquele outro de pernas cruzadas fumando – todos em plena liberdade, formavam roda em cima do castelo, enquanto era cedo.

O oficial do quarto passeando, passeando, escutava-os enternecido, cheio de contemplação por aquela pobre gente sem lar nem família, que morria cantando, longe de todo carinho, às vezes longe da pátria, onde quer que o destino os conduzisse. Aquelas cantigas assim rudes, assim improvisadas, quase sem metro e sem rima, tinham, contudo, o sabor penetrante dos frutos naturais e o misterioso encanto de confissões ingênuas… Fazia bem ouvi-las, como que o coração dilatava-se numa hipertrofia de saudade terna e consoladora.

Deixá-los cantar, os pobres marinheiros, deixá-los esquecer a vida incerta que levam – deixá-los cantar!…

Geme a viola, soluça uma alma em cada bordão; ressoam cantares em desafio no silêncio infinito da noite clara…

O tempo voa, ninguém se apercebe das horas, ninguém se lembra de dormir, de fechar os olhos à paisagem translúcida e fria do luar tropical varrida pelo vento sul. Misterioso instrumento essa viola, que fazia esquecer as agruras da vida, embriagando a alma, tonificando o espírito!

Bom-Crioulo não tomou parte no folguedo. – Estava cansado de ouvir cantigas: fora-se o tempo em que também gostava de fazer seu pé-de-alferes, dançando o baião, fazendo rir a rapaziada.

E quando a sineta de proa badalou nove horas, viram-no passar esgueirando-se felinamente, sobraçando a maca. Ia depressa, furtando-se à vista dos outros, mudo, impenetrável, sombrio… Embarafustou pela escotilha, escadas abaixo, e sumiu-se na coberta.

Que iria ele fazer? Algum crime? Alguma traição? – Nada: Bom-Crioulo tratava de se agasalhar como qualquer mortal, o mais comodamente possível. – Lá em cima fazia um arzinho de gelo, caramba! A coberta sempre era um pouco mais quente. O seguro morreu de velho…

Abriu a maca, estendeu-se sobre o convés cautelosamente, com mãos de mulher, examinou o lençol, e, sacando fora a camisa de flanela azul, deitou-se com um largo suspiro de conforto. – Ah! estava como queria. Boa noite!…

Nem uma voz rompia o silêncio regulamentar, senão a do oficial, de hora em hora:

– Barca!

Ventava forte ainda.

O convés, tanto na coberta como na tolda, apresentava o aspecto de um acampamento nômade. A marinhagem entorpecida pelo trabalho, caíra numa sonolência profunda, espalhada por ali ao relento, numa desordem geral de ciganos que não escolhem o terreno para repousar. Pouco lhe importavam o chão úmido, as correntes de ar, as constipações, o beribéri. Embaixo era maior o atravancamento. Macas de lona suspensas em varais de ferro, umas sobre as outras, encardidas como panos de cozinha, oscilavam à luz moribunda e macilenta das lanternas. Imagine-se o porão de um navio mercante carregado de miséria. No intervalo das peças, na meia escuridão dos recôncavos moviam-se corpos seminus, indistintos. Respirava-se um odor nauseabundo de cárcere, um cheiro acre de suor humano diluído em urina e alcatrão. Negros, de boca aberta, roncavam profundamente, contorcendo-se na inconsciência do sono. Viam-se torsos nus abraçando o convés, aspectos indecorosos que a luz evidenciava cruelmente. De vez em quando uma voz entrava a sonambular cousas ininteligíveis. Houve um marinheiro que se levantou, no meio dos outros, nu em pêlo, os olhos arregalados, medonho, gritando que o queriam matar. No fim de contas o pobre-diabo era vítima de um pesadelo, nada mais. Tudo voltou ao silêncio.

E lá cima, no passadiço, o oficial de quarto, vigilante e imperturbável, de hora em hora:

– Barca!

Havia um rebuliço ligeiro; o guardião apitava acordando a gente de serviço: – Levanta, levanta! olha a barca!… – e as horas iam correndo assim, monotonamente.

Bom-Crioulo estava de folga. Seu espírito não sossegara toda a tarde, ruminando estratagemas com que desse batalha definitiva ao grumete, realizando, por fim, o seu forte desejo de macho torturado pela carnalidade grega.

Por vezes tinha querido sondar o ânimo do grumete, procurando convencê-lo, estimulando-lhe o organismo, mas o pequeno fazia-se de esquerdo, repelindo brandamente, com jeitos de namorada, certos carinhos do negro. – Deixe disso, Bom-Crioulo, porte-se sério!

Nesse dia Priapo jurou chegar ao cabo da luta. Ou vencer ou morrer! – Ou o pequeno se resolvia ou estavam desfeitas as relações. Era preciso resolver “aquilo”.

– Aquilo quê? perguntou o rapazinho, muito admirado.

– Nada; o que eu quero é que não te zangues comigo.

E precipitadamente:

– Onde vais dormir esta noite?

– Lá bem à proa, na coberta, por causa do frio.

– Bem: havemos de conversar.

Às nove horas, quando Bom-Crioulo viu Aleixo descer, agarrou a maca e precipitou-se no encalço do pequeno. Foi justamente quando o viram passar com a trouxa debaixo do braço, esgueirando-se felinamente…

Uma vez lado a lado com o grumete, sentindo-lhe o calor do corpo roliço, a branda tepidez daquela carne desejada e virgem de contactos impuros, um apetite selvagem cortou a palavra ao negro. A claridade não chegava sequer à meia distância do esconderijo onde eles tinham se refugiado. Não se viam um ao outro: sentiam-se, adivinhavam-se por baixo dos cobertores.

Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioulo, aconchegando-se ao grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se, instintivamente de sono, ouvindo, com o ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na proa, não teve ânimo de murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma promessas de Bom-Crioulo: o quartinho da Rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros, os passeios….; lembrou-se do castigo que o negro sofrera por sua causa; mas não disse nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se em todo o corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse – uma vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade…

– Ande logo! murmurou apressadamente, voltando-se.

E consumou-se o delito contra a natureza.

Capítulo IV

Amanhecera um belo dia de sol, quente, luminoso, de uma transparência fina de cristal lavado.

Logo pela madrugadinha, antes de apagar-se a última estrela, a corveta “acendera fogos”, e demandava o porto, em árvore seca, impulsionada pela sua velha máquina de sistema antigo – um estafermo quase imprestável, porejando vapor, abrindo-se toda em desconjuntamentos de maquinismo secular.

Enfim se chegava!

Agora cada um tratava de si, de sua roupa, do que trouxera da longa viagem ao sul, dessa viagem maldita que parecia não acabar nunca.

Lá estava bem defronte, por bombordo, o Pão d’Açúcar, talhado a pique, sombrio, íngreme, batido pelas ondas, guardando a entrada; e mais longe para o sul – termo final de uma espécie de cordilheira primitiva e bronca – o cocuruto da Gávea, cinzento, dominando o mar…

– E aquela ilha com ponto branco? perguntou Aleixo curiosamente,

Estava ao lado do Bom-Crioulo, contemplando embevecido a costa fluminense.

– Aquela ilha é a Rasa, explicou o negro. Não vês o farol, aquilo branco?…

E começou a descrever o pedaço do litoral que se ia desdobrando à luz, alcantilado e fulgurante, como essa terras lendárias de tamoios e caramurus… Aquela faixa de areia, muito estreita, do outro lado (e estendia o braço por cima do ombro do pequeno), beirando a água, chamava-se Marambaia. Lá adiante, uma montanha quase apagada, era o Cabo Frio…

E foi indicando, um a um, com exclamações de patriotismo, os acidentes da entrada, os edifícios: as fortalezas de S. João no alto, e de Santa Cruz à beira mar, olhando-se, com sua artilharia muda; a Praia Vermelha, entre morros; o hospício; Botafogo…

Tudo aquilo, dizia ele abarcando com um gesto largo, morros e casas, tudo aquilo é a cidade de Niterói, ouviste falar?

– Não …

– Pois é ali.

Aleixo, de resto, não experimentava grande surpresa. Entre montanhas havia ele nascido e perto do mar. O entusiasmo de Bom-Crioulo nem sequer o abalava: fazia outra idéia do Rio de Janeiro!

– Mas isto ainda não é a cidade, meu tolo, explicava o negro. Tu não viste nada por enquanto…

A corveta aproximava-se de Villegaignon…

Bom-Crioulo mal teve tempo de dizer ao grumete: -“Foi ali que eu comecei…” E desapareceu entre a chusma da marinhagem.

Era quase meio-dia. Escaleres de guerra vinham em direção da fortaleza, cortando a água numa carreira macia de out-riggers. Ouvia-se a pancada igual dos remos acompanhando a voga.

Ao redor da barca de banhos pairavam botes de comércio. Lanchas apitavam cruzando a baía. Navios de guerra imóveis, aproados à barra, faziam sinais, içando e arriando bandeiras. Entre esses havia uma grande couraçado ao lume d’água, raso, chato e bojudo, com uma flâmula azul no mastro grande.

A corveta diminuiu a marcha, seguindo vagarosa e dominando com seu porte de nau antiga e legendária, o conjunto de embarcações que por ali estacionavam.

Pouco adiante de Villegaignon fez uma parada imperceptível, tocando atrás: ouviu-se um grande baque n’água e logo um rumos de amarras que se desenrolam, que se precipitam…

– Ora, graças! exclamaram algumas vozes ao mesmo tempo, como se houvessem combinado fazer coro de alegria.

Entretanto, Bom-Crioulo começava a sentir uns longes de tristeza n’alma, cousa que raríssimas vezes lhe acontecia. Lembrava-se do mar alto, da primeira vez que vira o Aleixo, da vida nova em que ia entrar, preocupando-o sobre a amizade do grumete, o futuro dessa afeição nascida em viagem e ameaçada agora pelas conveniências do serviço militar. Em menos de vinte e quatro horas Aleixo podia ser transferido para outro navio – ele mesmo, Bom-Crioulo, quem sabe? talvez não continuasse na corveta…

Instintivamente seu olhar procurava o pequeno, acendia-se num desejo sôfrego de vê-lo sempre, sempre, ali perto, vivendo a mesma vida de obediência e de trabalho, crescendo a seu lado como um irmão querido e inseparável.

Por outro lado estava tranqüilo porque a maior prova de amizade Aleixo tinha lhe dado a um simples aceno, a um simples olhar. Onde quer que estivessem haviam de se lembrar daquela noite fria dormida sob o mesmo lençol na proa da corveta, abraçados, como um casal de noivos em plena luxúria da primeira coabitação…

Ao pensar nisso Bom-Crioulo sentia uma febre extraordinária de erotismo, um delírio invencível de gozo pederasta… Agora compreendia que só no homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurara nas mulheres.

Nunca se apercebera de semelhante anomalia, nunca em sua vida tivera a lembrança de perscrutar suas tendências em matéria de sexualidade. As mulheres o desarmavam para os combates do amor, é certo, mas também não concebia, por forma alguma, esse comércio grosseiro entre indivíduos do mesmo sexo; entretanto, quem diria!, o fato passava-se agora consigo próprio, sem premeditação, inesperadamente. E o mais interessante é que “aquilo” ameaçava ir longe, para mal de seus pecados… Não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a “natureza” impunha-lhe esse castigo.

Afinal de contas era homem, tinha suas necessidades, como qualquer outro: fizera muito em conservar-se virgem té aos trinta anos, passando vergonhas que ninguém acreditava, sendo muitas vezes obrigado a cometer excessos que os médicos proíbem. De qualquer modo estava justificado perante sua consciência, tanto mais quanto havia exemplos ali mesmo a bordo, para não falar em certo oficial de quem se diziam cousas medonhas no tocante à vida particular. Se os brancos faziam, quanto mais os negros! É que nem todos têm força para resistir: a natureza pode mais que a vontade humana…

Começou a faina de arriar escaleres, uma lufa-lufa barulhenta e ensurdecedora, um incessante rumor de cabos e moitões, de vozes e apitos, confundindo-se em algaravia de mercado público, ressoando clamorosamente no silêncio da baía.

Em torno da corveta agitava-se uma multidão de escaleres e lanchas conduzindo oficiais de marinha e senhoras, que acenavam para bordo – aqueles em uniforme de “visita”, espada e luva branca, afetando autoridade, aprumando-se no paineiro com essa desenvoltura natural dos homens do mar; aquelas em toilletes de verão, muito rubras do sol.

Houve um momento de geral precipitação, em que todos procuravam subir a escadinha do portaló, investindo a um tempo, quando a visita sanitária pôs-se ao largo. – Atraca daí! gritava uma voz. – Larga a canoa! bradava a outra. – Ciando à ré! – Abre de proa! – Rema avante!

Ninguém se compreendia no tumulto.

Daí a apouco, porém, foi-se restabelecendo a ordem, todo aquele alvoroço desapareceu e ouvia-se apenas a voz dos marinheiros conversando. Foi então que atracou um escaler coma bandeira inglesa, e um oficial ruivo, de suíças, muito parecido com o rei Guilherme, da Alemanha. Era o comandante do Ironside, cruzador britânico.

Austero, hermeticamente abotoado, subiu e desceu logo, sem se voltar, pisando forte nos degraus da escadinha.

Bom-Crioulo que se debruçara na amurada, assim que o viu saltar no escaler: – Inglês bruto! murmurou entre dentes, e ficou-se com sua indignação, olhando a água calma… Ele ali estava, enfim, na baía do Rio de Janeiro, depois de uma ausência de seis longos meses! Precisava ir à terra naquele mesmo dia para arranjar o negócio do quarto da Rua da Misericórdia, antes que o pequeno se arrependesse; tinha umas compras a fazer…

Mas, havia ordem para não desembarcar, e Bom-Crioulo, como toda a guarnição passou a tarde numa sensaboria, cabeceando de fadiga e sono, ocupado em pequenos trabalhos de asseio e manobras rudimentares. – Diabo de vida sem descanso! O tempo era pouco para um desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com ele, quando não era logo metido em ferros… Ah! vida, vida!… Escravo na fazendo, escravo a bordo, escravo em toda a parte… E chamava-se a isso de servir à pátria!

Anoiteceu. Noite estrelada, cheia de silêncio, profundamente calma e reparadora. A guarnição da corveta dormia sem abalos um sono tranqüilo e delicioso de oito horas, ao ar livre, sobre o convés desbastado.

Bom-Crioulo nem sequer pensou em Aleixo: estava incapaz de trocar palavra, sucumbido pela canseira, o corpo mole reclamando conforto, o espírito parado; todo ele sem ânimo para cousa alguma. Trabalhara brutalmente; não havia resistir à fadiga. Momentos há em que os próprios animais caem extenuados… Deitou-se a um canto, longe de todos, e adormeceu imediatamente num sono cataléptico. Ao primeiro toque d’alvorada espreguiçou-se, abrindo os olhos com surpresa, e sentiu-se alagado. – Oh! … – Passou a mão no lugar úmido, tateando, e verificou, cheio de indignação, cheio de tédio, com um gesto de náusea, a irreparável perda que sofrera inconscientemente durante o sono – um verdadeiro esgotamento de líquido seminal, de forças procriadoras, de vida, enfim, que “aquilo” era sangue transformado em matéria! Se ao menos tivesse gozado… Mas não sentira nada, absolutamente nada, mesmo em sonho! Dormira toda a noite como um porco, e o resultado ali se achava no lençol – quase um rio de goma prolífica!

E triste, desesperado, maldizendo a natureza na linguagem torpe das galés, ergue-se e foi juntando a roupa de cama bruscamente, atabalhoadamente, como se alguém houvesse concorrido para a sua “desgraça”.

Entrou pelo dia com ares de quem não quer se incomodar, o semblante carregado numa sombria expressão de aborrecimento, falando pouco e em tom grosseiro, ameaçando: – que o deixassem, que o deixassem; não queria brincadeira; ainda rachava a cabeça dum!

Os outros pediam-lhe desculpa, humilhavam-se, adulavam-no, porque sabiam que “o negro era meio doido”.

À tarde, porém, esse estado nervoso amainou, graças ao Aleixo que lhe fora perguntar, com certo interesse e com uma meiguice na voz de adolescente, se ele, Bom-Crioulo, estava disposto a ir à terra.

– Por que não? Já estava concedida a licença.

– Ah! pensei que tinha se esquecido.

– Qual esquecido! Pois eu não te disse que hoje mesmo havíamos de arranjar nosso ninho?

E muito carinhoso:

– Espero em Deus estrear hoje…

Faltava, entretanto, a licença do grumete. Aleixo não se animava a pedir que o deixassem ir à terra, com receio de uma negativa. Bom-Crioulo encorajou-o – Não fosse tolo! Isso a gente dizia que voltava logo, que era um instante, ou então forjava qualquer história…

– Dize ao imediato que tens um padrinho rico em terra, uma cousa assim…

Aleixo criou ânimo, e daí a pouco voltava muito satisfeito, risonho, dando pinchos.

– Não havia nada como a gente ser um menino bonito! Até os oficiais gostavam…

Bom-Crioulo é que não gostou da pilhéria. Ferrou o olhar no pequeno – hum! hum! – como para o fulminar. Mas o grumete corrigiu prontamente: – Brincadeira, menino, brincadeira… pois não se podia brincar?

– Isso não são brinquedos, repreendeu o negro. Eu quando gosto de uma pessoa gosto mesmo e acabou-se! Já lhe disse que ande muito direitinho…

Vestiram-se e abalaram no escaler das cinco horas, depois da ceia.

– Vamos primeiro tomar um golezinho de jeribita, disse Bom-Crioulo ao saltar no cais Pharoux. Aqui mesmo no quiosque … É preciso esquentar os rins.

– Eu não quero.

– Hás de tomar nem que seja um copo de maduro.

– Maduro?

– Sim, maduro: é uma bebida muito boa.

Foram andando…

O relógio das barcas marcava seis horas menos um quarto, e a cidade, mergulhada no crepúsculo, adormecia lentamente, caía pouco a pouco numa estagnação de praça abandonada, num triste silêncio de aldeia longínqua…

Acendiam-se as luzes e rareavam os transeuntes no Largo do Paço. Um ou outro retardatário, em pé na sombra, e sujeitos que saltavam dos bondes em frente à estação das barcas, conduzindo embrulhos. O velho pardieiro dos Braganças, o sombrio casarão, em que, durante quase um século, a monarquia fez reclamo de suas pratas, imobilizava-se lugubremente, ermo e fechado aquela hora.

Bom-Crioulo tomou à esquerda, por baixo da arcada do Paço, enfiando pela rua da Misericórdia, braço a braço com o grumete, fumando um charuto que comprara no quiosque.

Lá adiante, nas proximidades do Arsenal de Guerra, pararam defronte um sobradinho com persianas, de aspecto antigo, duas varandolas de madeira carcomida no primeiro andar, e lá em cima, no telhado, uma espécie de trapeira sumindo-se , enterrando-se, dependurada quase. Embaixo, na loja, morava uma família de pretos d’Angola; ouvia-se naquele momento, no escuro interior desse coito africano, a vozeria dos negros.

– É aqui, disse Bom-Crioulo, reconhecendo a casa, e desaparecendo no corredor sem luz, que ia ter ao sobradinho. Aleixo acompanhava-o taciturno, silenciosos, cosendo-se à parede, como quem pela primeira vez entra num lugar estranho.

– Anda tolo! fez o outro, segurando-lhe o braço. De que tens medo?…

Subiram cautelosos, por ali acima, uma escada triste e deserta, cujos degraus, muito íngremes, ameaçavam fugir sob os pés.

O negro puxou o cordão que pendia da cancela e lá dentro, na sala de jantar, uma campainha fez sinal, timbrando surdamente.

Bom-Crioulo tornou a puxar com força.

– Quem é? Oh!…

– Sou eu, D. Carolina: tenha bondade.

– Já vai…

E com pouco o marinheiro atirava-se nos braços de uma senhora gorda, redonda e meio idosa, estreitando-a contra o peito, suspendendo-a mesmo, apesar de toda a sua gordura, com essa alegria natural de pessoas que se tornam a ver, depois de um ausência.

– Conta-m’lá, Bom-Crioulo, anda, entra… Quem é este pequeno?

– Este pequeno?… Por causa dele mesmo é que estou aqui. Depois conversaremos…

– E tu, como vais, meu crioulo? Dize, conta… Ora, se eu soubesse que era tu… Dá cá outro abraço, anda!

Abraçaram-se de novo, com grande alvoroço, rindo, gargalhando, ela de avental, muito rechonchuda, o cabelo em duas tranças, partido ao meio, Bom-Crioulo fazendo-se amável, cobrindo-a de exclamações, achando-a mais gorda, mais bonita, mais moça!…

  1. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na Rua da Misericórdia somente a pessoas de “certa ordem”, gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos… Não fazia questão de cor e tampouco se importava com classe ou profissão do sujeito. Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a mesmíssima cousa! o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros.

Vivia de sua casa, de seus cômodos, do aluguelzinho por mês ou por hora. Tinha o seu homem, lá isso pra que negar? Mas, independente dele e de outros arranjos que pudesse fazer, precisava ir ganhando a vida com um emprego certo, um emprego mais ou menos rendoso para garantia do futuro. Isso de homens não há que fiar: hoje com Deus, amanhã com o diabo.

Quando moça, tinha seus vinte anos, abrira casa na rua da Lampadosa. Bom tempo! O dinheiro entrava-lhe pela porta em jorros como a luz do dia, sem ela se incomodar. Uma fortuna de jóias, de ouro e brilhante! Já era gorducha, então: chamavam-na Carola Bunda, um apelido de mau gosto, invenção da rua…

Depois esteve muito doente, saíram-lhe feridas pelo corpo, julgou não escapar. E, como tudo passa, ela nunca mais pode reerguer-se, chegando, por desgraça, ao ponto de empenhar jóias e tudo, porque ninguém a procurava, ninguém a queria – pobre cadela sem dono… Passou misérias! até quis entrar para um teatro como qualquer cousa, como criada mesmo. Foi nessa época, num dia de carnaval (lembrava-se bem!), que começou a melhorar de sorte. Um clubezinho pagou-lhe alguns mil-réis para ela fazer de Vênus, no alto de um carro triunfal. Foi um escândalo, um “sucesso”: atiraram-lhe flores, deram-lhe vivas, muita palma, presentes, – o diabo! Durante quase um ano só se falou na Carola, nas pernas da Carola, na portuguesa da rua do Núncio.

A pobre mulher narrava isso com lágrimas e suspiros de profunda e melancólica saudade, e repetia: Bom Tempo! Bom tempo!

Esteve duas vezes amigada, tornou a cair doente, foi à Portugal, regressou ao Brasil, cheia de corpo e de novas ambições, amigou-se outra vez, e, afinal de contas, depois de muito gozar e de muito sofrer, lá estava na Rua da Misericórdia, fazendo pela vida, meu rico!, explorando a humanidade brejeira, enquanto o seu “macacão” trabalhava por outro lado em negócios de carne verde e fornecimento para os quartéis.

De resto, essa aliança com o açougueiro, uma senhor Brás, homem de grandes barbas e muitos haveres, essa aliança pouco ou nada lhe rendia, a ela, porque o sujeito era casado e só de mês em mês dava o ar de sua graça, deixando-lhe a ninharia de cento e cinqüenta mil-réis para o aluguel do sobradinho, fora a carne que mandava diariamente.

– Tenho quarenta anos de experiência, dizia, quarenta anos e alguns fios de prata na cabeça. Conheço este mundo velho, meu amor; tudo isso pra mim é miséria.

Estimava Bom-Crioulo desde o dia em que ele, desinteressadamente, por um acaso providencial, livrou-a de morrer na ponta uma faca; história de ladrões… Era caso até para beijar os pés do marinheiro, porque nunca vira tanta coragem e tanto desinteresse!

  1. Carolina buscava sempre ocasião de recordar o fato, narrando-o com todas as cores, dando-lhe mesmo umas tintas de paleta rembrantesca, desfazendo-se em elogios à gente da marinha, gabando os homens do mar, “uns benfeitores da humanidade”.

Uma noite – só ao pensar tinha calafrios! – vinha de assistir ao Drama no alto-mar, que se representava na Phenix, quando, ao meter a chave na porte, foi surpreendida por dois indivíduos, cuja fisionomia não pode reconhecer e que lhe pediram os anéis e dinheiro que porventura trouxesse.

Ela, com efeito, além de um anel de brilhante, lembrança dos bons tempos! e duas esmeraldas, levava cinqüenta mil-réis. Ora, já se passava de meia noite e a Rua da Misericórdia estava deserta que nem um cemitério. Nenhum guarda por ali! Quis abrir a boca e pedir socorro, mas os gatunos foram dizendo logo que, se ela ousasse gritar, morria. E brandiram os punhais, duas lâminas de bom aço, tamanho de facões! Ah! mas Deus é grande! Nesse momento ia passando o vulto de um marinheiro e ela disparou correndo, sobre ele: – Socorro! Socorro! – Travou-se uma luta. O marujo saltava fugindo aos punhais e investindo logo, como uma fera, de navalha em punho. Felizmente (Deus sabe o que faz!) aos gritos de socorro, encheram-se as janelas de gente em camisa de dormir, soaram apitos no escuro e a polícia chegou a tempo de prender os ladrões, completamente desarmados pelo bem-vindo marinheiro. – Qualquer pessoa nos casos dela faria o que ela fez: abriu cerveja para o seu protetor, que disse chamar-se Amaro, vulgo Bom-Crioulo, marinheiro de um navio da esquadra. E, como no sobradinho moravam praças de bordo, Bom-Crioulo deu-se a conhecer, havendo logo uma intimidade entre ela, Carolina, e o negro. Palavra d’honra como nunca vira tanta coragem num homem.

Estimava-o por isso: porque era um marinheiro valente – homem para quatro!

Bom-Crioulo começou a freqüentar o sobradinho onde iam outros marinheiros, e daí a grande amizade da portuguesa por ele, não que houvesse outra intenção: ela sabia que o negro não era homem para mulheres…

– Vamos, conta-m’lá essa viagem!

Tinham-se sentado, os três, numa sala de jantar, à luz do gás. D. Carolina estufada, muitíssimo gorda, cabeceando, sem fôlego, estava ansiosa por saber notícias. O negro, de boné no alto da cabeça, recostado familiarmente, acabava o charuto, cuja cinza abria-se de vez em quando num clarão rubro e quente. Aleixo, imóvel numa cadeira, olhava as paredes, examinando o papel do forro, os quadros – oleografias de carregação figurando assunto de alcova, duas em cada parede, colocadas simetricamente -, o guarda-louça quase vazio, e uma coleção de estampilhas de caixa de fósforo armada em leque. Tudo velho e incolor, poento e maltratado. Respirava-se uma atmosfera de sebo e cânfora, renovada por uma triste janelinha que abria para a espécie de área pertencente à loja.

Bom-Crioulo resumiu em poucas palavras a viagem da corveta: – Seis meses de estupidez! O Aleixo é que trouxera um pouquinho de alegria na volta…

E desfiou a história do grumete.

– Agora D. Carolina vais no arranjar um quartinho, mesmo que seja no sótão, rematou; mas um quartinho sem luxo, para quando viermos à terra.

– Uma cama ou duas? perguntou sorrindo a quarentona.

– Como quiser… Marinheiro é gente que dorme aos quatro, aos cinco… aos cinqüenta! Se houvesse uma caminha larga…

– Arranja-se, meu Deus, arranja-se, tornou a portuguesa. O comodozinho de cima está desocupado, e, quer que lhe diga? eu acho que ficavam melhor…

Sempre risonha e trêfega, sufocada pelo calor, a mulher piscou o olho a Bom-Crioulo.

– Então, já sei que vens outro… Bendita viagem! ou o mar ou as tais cantáridas!…

Riram, compreendendo-se, enquanto Aleixo, debruçado à janela, cuspia para baixo, para o quintalejo dos africanos.

Capítulo V

Bom-Crioulo, desde a primeira noite dormida no sobradinho, começou a experimentar uma delícia muito íntima, assim como um recolhido gozo espiritual – certo amor à vida obscura daquela casa onde ultimamente quase ninguém ia, e que era o seu querido valhacouto de marujo em folga, o doce remanso de sua alma voluptuosa. Não sonhava melhor vida, conchego mais ideal: o mundo para ele resumia-se agora naquilo: um quartinho pegado às telhas, o Aleixo e … nada mais! Enquanto Deus lhe conservasse o juízo e a saúde, não desejava outra cousa.

O quarto era independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão, ruído pelo cupim e tresandando a ácido fênico. Nele morrera de febre amarela um portuguesinho recém chegado. Mas Bom-Crioulo, conquanto receasse as febres de mau caráter, não se importou com isso, tratando de esquecer o caso e instalando-se definitivamente. Todo dinheiro que apanhava era para a compra de móveis e objetos de fantasia rococó, “figuras”, enfeites, cousas sem valor, muita vez trazida de bordo… Pouco a pouco o pequeno “cômodo” foi adquirindo uma feição nova de bazar hebreu, enchendo-se de bugigangas, amontoando-se de caixas vazias, búzios grosseiros e outros acessórios ornamentais. O leito era uma “cama de vento” já muito usada, sobre a qual Bom-Crioulo tinha o zelo de estender, pela manhã, quando se levantava, um grosso cobertor encarnado “para ocultar as nódoas”.

Durante meses viveu ele uma vida calma, escrupulosamente pautada, rigorosamente metódica, cumprindo seus deveres a bordo, vindo à terra duas vezes por semana em companhia de Aleixo, sem dar motivo a castigos ou recriminações. Até os oficiais estranhavam-lhe o procedimento, admiravam-lhe os modos. – “Isso é cousa passageira, insinuava o tenente Souza. Breve temo-lo aqui, bêbedo e medonho. Sempre o conheci refratário a toda norma de viver. Hoje manso como um cordeiro, amanhã tempestuoso como uma fera. Cousas de caráter africano…”

O grumete, por sua vez, trazia a alma na perpétua alegria dos que não têm cuidados. Em terra ou a bordo, não tinha de que se queixar: andava sempre limpo, ninguém o via deitado no convés, ou emporcalhando-se de alcatrão à proa. Felizmente o imediato escolhera-o para o serviço de cabo-marinheiro, em atenção à sua conduta, reconhecendo nele um rapazinho de bons costumes, amigo do asseio, obediente e trabalhador. De modo que raro via-se Aleixo entre a marinhagem. Seu lugar predileto era o passadiço ou a ré cosendo bandeiras, tesourando flâmulas, aprendendo certos misteres do ofício. Às vezes tinha palestras com o oficial do quarto, narrando histórias de Santa Catarina, casos da província, do tempo em que ele era um simples filho de pescador, um pobre menino da beira-mar. Os outros marinheiros olhavam-no com inveja, tocando-se os cotovelos maliciosamente. Havia um guarda-marinha, moço bem educado e muito democrata, que, uma vez por outra, dava-lhe dinheiro, níqueis para cigarros. Ele ia logo mostrar a Bom-Crioulo as moedinhas de tostão que “seu guarda-marinha lhe dera”. Todos a bordo lhe faziam festa; o próprio guardião Agostinho, seco e ríspido, tratava-o bem, com branduras na voz. Uma vida regalada!

Em terra, no quarto da Misericórdia, nem se falava! – ouro sobre azul. Ficavam em ceroulas, ele e o negro, espojavam-se à vontade na velha cama de lona, muito fresca pelo calor, a garrafa de aguardente ali perto, sozinhos, numa independência absoluta, rindo e conversando à larga, sem que ninguém os fosse perturbar – volta na chave por via das dúvidas…

Um cousa desgostava o grumete: os caprichos libertinos do outro. Porque Bom-Crioulo não se contentava em possuí-lo a qualquer hora do dia ou da noite, queria muito mais, obrigava-o a excessos, fazia dele um escravo, uma “mulher-a-toa” propondo quanta extravagância lhe vinha à imaginação. Logo na primeira noite exigiu que ele ficasse nu, mas nuzinho em pêlo: queria ver o corpo…

Aleixo amuou: aquilo não era cousa que se pedisse a um homem! Tudo menos aquilo. Mas o negro insistiu: Ninguém o levava a capricho:- Ou bem que somos ou bem que não somos… – Que asneira! fez o grumete. Por-se agora nu em pêlo defronte do Bom-Crioulo ! Está visto que tinha vergonha.

– Vergonha de quê? tornou o outro. Não és homem como eu? Donde veio essa vergonha?

– Decerto!…

– Ora, deixa-te de luxo, menino, vamos: tira a roupa…

Havia luz no quarto, uma luz mortiça. no topo de uma vela de sebo.

– Nem se vê nada… fez Aleixo choramingando, sem lágrimas.

– Sempre há se de se ver alguma cousa…

E o pequeno, submisso e covarde, foi desabotoando a camisa de flanela, depois as calças, em pé, colocando a roupa sobre a cama, peça por peça.

Estava satisfeita a vontade de Bom-Crioulo. Aleixo surgia-lhe agora em pleno e exuberante nudez, muito alvo, as formas roliças de calipígio ressaltando na meia sombra voluptuosa do aposento, na penumbra acariciadora daquele ignorado e impudico santuário de paixões inconfessáveis… Belo modelo de efebo que a Grécia de Vênus talvez imortalizasse em estrofes de ouro límpido e estatuas duma escultura sensual e pujante. Sodoma ressurgia agora numa triste e desolada baiúca da Rua da Misericórdia, onde àquela hora tudo permanecia numa doce quietação de ermo longínquo.

– Veja logo… murmurou o pequeno, firmando-se nos pés.

Bom-Crioulo ficou extático! A brancura láctea e maciça daquela carne tenra punha-lhe frêmitos no corpo, abalando-o nervosamente de um modo estranho, excitando-o como uma bebida forte, atraindo-o, alvoroçando-lhe o coração. Nunca vira formas de homem tão bem torneadas, braços assim, quadris rijos e carnudos como aqueles… Faltavam-lhe os seios para que Aleixo fosse uma verdadeira mulher!… Que beleza de pescoço, que delícia de ombros, que desespero!…

Dentro do negro rugiam desejos de touro ao pressentir a fêmea… Todo ele vibrava, demorando-se na idolatria pagã daquela nudez sensual como um fetiche diante de um símbolo de ouro ou como um artista diante duma obra prima. Ignorante e grosseiro, sentia-se, contudo, abalado até os nervos mais recônditos, até às profundezas do seu duplo ser moral e físico, dominado por um quase respeito cego pelo grumete que atingia proporções de ente sobrenatural a seus olhos de marinheiro rude.

– Basta! … suplicou Aleixo.

– Não, não! Um bocadinho mais…

Bom-Crioulo tomou a vela, meio trêmulo, e, aproximando-se, continuou o exame atencioso do grumete, palpando-lhe as carnes, gabando-lhe o cheiro da pele, no auge da volúpia, no extremo da concupiscência, os olhos deitando chispas de gozo…

– Acabou-se! tornou Aleixo depressa, impaciente já, soprando a luz.

Seguiu-se, então, no escuro, um ligeiro duelo de palavras gemidas à surdina. e, quando Bom-Crioulo riscou o fósforo, ainda uma vez triunfante, mal podia ter-se em pé.

Tais eram os “desgostos” de Aleixo. Fora disso a vida corria-lhe admiravelmente, como um leve barco à feição…

  1. Carolina, essa tratava-o pelo carinhoso apelido de bonitinho: -“o meu bonitinho” é como ela dizia, ameigando o sotaque peninsular.

Achava uma graça infinita naquele pedacinho de homem vestido de marinheiro, alvo e louro, sempre muito bem penteado, o cabelo sedoso, os borzeguins lustrosos, todo ele cheirando a essência, como uma rapariga que se vai que se vai fazendo mulher…

O pequeno, muito acessível a tudo quanto fosse carinho, mostrava-se reconhecido, não subia para o quarto sem primeiro dar os bons-dias à portuguesa, abrindo-se com ela com franquezas ingênuas, deixando-se agradar.

Ele, D. Carolina a Bom-Crioulo eram como uma pequena família, não tinham segredos ente si, estimavam-se mutuamente.

Para que vida melhor? Longe de seus pais, numa terra estranha, encontrava naquela casa um asilo de amor, um paraíso de felicidade…

A corveta, dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, entrou para o dique.

Esgotada a grande bacia de granito, larga e profunda, como um abismo natural, aberta à picareta nos seio da rocha dura e implacável, começaram as obras.

Um martelar contínuo reboava ciclopicamente no interior daquela sepultura de pedra, como numa forja subterrânea: operários em mangas de camisa recomeçavam todos os dias a mesma faina brutal de calafetar o bojo da velha “barcaça”, enquanto os marinheiros iam, por outro lado, raspando o mexilhão que o calor apodrecia no fundo seco do dique. Sufocava, lá embaixo, o cheiro forte dos mariscos em decomposição: subindo como bafos de monturo, resistindo à potassa e ao ácido fênico.

Era justamente em dezembro, mês de epidemias e de insuportável calor.

Dir-se-ia que aqueles homens, operários e marinheiros, não tinham aparelho respiratório, não tinham pulmões, ou estavam saturados de miasmas.

Trabalhavam cantando e martelavam assobiando, com uma indiferença heróica, sem pensar no grande perigo que os ameaçava.

Pela noite, desde o escurecer, o odor pestilento aumentava e então não havia remédio: a marinhagem toda precipitava-se para fora, como um formigueiro alvoroçado tapando o nariz: – Foge! foge! olha a febre amarela!

Navio no dique, marinheiro à solta. O serviço diminuía, tinha-se mais liberdade, podia-se folgar à vontade, porque o campo era largo, o convés estendia-se pela ilha até certa distância. Dali para terra era um pulo, não faltavam botes de ganho; breus em quantidade atracavam próximo ao dique: vivia-se como em qualquer parte.

De vez em quando: “Seu tenente dá licença que eu visite um amigo no hospital? – Vá, mas não demore…”

O hospital ficava no topo da ilha, numa eminência que dava acesso por uma estrada em ziguezague. Todas as tardes passavam marinheiros naquela direção, subindo lentamente aos quatro, em procissões: iam visitar os companheiros, ou eram baixas que vinham da esquadra.

Bom-Crioulo agora multiplicava os passeios à terra. Assíduo no trabalho, nunca se negando a fazer o que lhe ordenavam, cumprindo suas obrigações com a mesma paciência de outrora, quando o futuro lhe sorria esperanças de vida melhor, reabilitava-se a olhos vistos de umas tantas falcatruas que cometera em viagem. O imediato fazia-lhe concessões prevenindo-o que “tomasse cuidado, não fosse beber demasiadamente”.

Todo marinheiro trabalhador e disciplinado tinha nele um amigo, um verdadeiro pai: a questão era andar direitinho, “portar-se como gente”.

E Bom-Crioulo compreendendo isso, fazia o possível para o não descontentar, trabalhando sempre que havia serviço, de cara alegre, sem constrangimento, na certeza de ir à terra.

Um dia sim outro não ei-lo no seu quarto da Rua da Misericórdia, todo entregue ao descanso, livre, completamente livre de incômodos e obrigações.

Não esquecia de beber seu golito de “conhaque brasileiro”, mas sabia se conter evitando excessos. De resto, era tão calma sua vida, corria-lhe a existência tão doce, tão suave, que ele até estranhava.

Ultimamente começou a achar-se magro, sentindo mesmo uns longe de fraqueza no peito. Quando trabalhava muito ou fazia qualquer esforço, vinha-lhe uma sonolência profunda, uma vontade de estirar o corpo na cama fresca e macia, um relaxamento dos nervos… Os próprios companheiros notavam certa mudança em sua fisionomia: – Estás magro, ó Bom-Crioulo, que diabo é isso?

– Eu, magro?… e passava a mão no rosto examinando-se. Estarei doente?

– Alguma crioula, hein?

– Qual crioula!

Um dia consultou ao grumete:

– Achas que estou emagrecendo?

Aleixo também foi de parecer que sim, mas “era pouca cousa”.

Bom-Crioulo não se importou: foi continuando a viver tranqüilamente, ora a bordo, ora em terra, numa grande paz de espírito, vendo crescer a seu lado o Aleixo, assistindo-lhe o desenvolvimento prematuro de certos órgãos, o desabrochar da segunda idade, como quem estuda a evolução de uma flor curiosa.

Sua amizade ao grumete já não era lúbrica e ardente: mudara-se num sentimento calmo, numa afeição comum, sem estos febris nem zelo de amante apaixonado.

Quase um ano de convivência fora bastante para que ele se identificasse absolutamente com o grumete, para que o ficasse conhecendo, e a convicção de que Aleixo não o traía, entregando-se à fúria selvagem de qualquer marmanjo, a certeza de que era respeitado, a certeza que era respeitado pelo outro, comunicava-lhe essa tranqüilidade confiante de marido feliz, de capitalista zeloso que traz o dinheiro guardado inviolavelmente.

Decorreu quase um ano sem que o fio tenaz dessa amizade misteriosa, cultivada no alto da Rua da Misericórdia, sofresse o mais leve abalo. Os dois marinheiros viviam um para o outro: completavam-se.

– Vocês acabam tendo filhos, gracejava D. Carolina.

Nunca vira dois homens gostarem-se tanto! Bom-Crioulo não era tolo nem nada… Tolo era quem se fiasse nele…

E o negro sorria orgulhoso, com seus dentes de marfim, meio aguçados, como presas de tubarão.

A corveta saíra do dique, indo amarrar numa bóia por trás do morro de S. Bento com fronte ao Arsenal.

Em todo caso sempre era mais perto de terra que no poço, no ancoradouro dos navios de guerra, onde a gente não tinha liberdade.

Mas Bom-Crioulo um dia foi surpreendido com a notícia de que estava nomeado para servir noutro navio – um de aço, muito conhecido pelo seu maquinismo complicado e pela sua formidável artilharia; belo conjunto de forças navais, que fazia desse couraçado uma dos mais poderosos do mundo.

Bom-Crioulo desapontou: -… que os pariu! Nem se tinha tempo de conhecer bem os navios: hoje num, amanhã noutro… Até parecia brincadeira!”

E furiosos, amarrando o saco de lona, trombudo:

– Por isso é que um marinheiro fica relaxado: por isso…

Enquanto os outros passavam e tornavam a passar de popa à proa, tranqüilos, no seu descanso, ele, somente porque era uma boa praça, lá ia para o couraçado – aquele diabo de ferro, aquele monstro, sem o Aleixo, sem o seu Aleixo… Vivera tantos meses ali a bordo da corveta mais o pequeno e agora, de repente, sem quê nem para quê: – Passe… Era mesmo uma perversidade!

Mas, Deus é grande! pensava Bom-Crioulo . Deus sabe o que faz: a gente não tinha remédio senão obedecer calada, porque marinheiro e negro cativo, afinal de contas, vem a ser a mesma cousa.

Aleixo consolava-se, resignado: paciência, homem, o mundo não se acabava. Sempre haviam de se ver, que diabo! Para isso é que tinham alugado quarto. Um dia sim outro não podiam se encontrar do mesmo modo em terra…

– Agora vê lá se vais fazer alguma… preveniu o negro.

Renasciam-lhe os zelos; aquela separação brusca e inesperada irritava-o, acordando no fundo de sua alma um egoísmo exacerbado, uma desconfiança vaga no futuro. – É verdade que o grumete já não era uma criança para se deixar iludir, mas, meu amigo, podia o rapaz se entusiasmar por algum oficialzinho bonito, e, adeus, Bom-Crioulo!…

Com o espírito cheio de apreensões, o olhar triste e a face carrancuda, estreitou ao peito seu querido Aleixo, e, sem proferir palavra, mudo na sua tristeza, como um preso que deixa uma prisão para entrar noutra, viu desaparecerem os mastros da corveta e a sombra do grumete que lhe acenava ao longe, na penumbra crepuscular, vaga e nebulosa, como a própria saudade.

O couraçado lá estava encoberto pela ilha, muito grande e solene, com o seu belo aspecto de casamata flutuante, aproado à maré, respeitável e glorioso.

– Rema força, que é tarde.

E a pequena embarcação, impelida vigorosamente, ia deixando atrás, sem o saber, a alma de Bom-Crioulo, terna e dolente…

Capítulo VI

No dia seguinte Aleixo encontrou fechada a porta do quarto.

– Oh! Bom-Crioulo não tinha ido à terra, como prometera. – Exigências do serviço, pensou. No couraçado a disciplina era outra; o imediato, homem feroz, só falava de chibata e golilha. Estava muito satisfeito na sua corveta assim mesmo velha e triste…

Abriu a janela para entrar luz e começou a se despir, trauteando qualquer coisa, o olhar perdido lá fora no ar imóvel, no azul coruscante… O calor abrasava. Nenhuma aragem sequer. O sol das duas horas caía obliquamente, pondo reflexos de ouro sobre os telhados, vitorioso e torrencial, pulverizando crisólitos de brilho raro ao longe nas vidraçarias… Uma opulência de luz nunca vista!

Aleixo despiu-se, pela primeira vez acendeu um cigarro, deitando-se à larga na velha cama de lona. – Passa ! Que forno!…

Queria descansar um bocado, esperar Bom-Crioulo té às cinco horas, dormir uma soneca. Saíra de bordo muito cedo porque ajustara com o negro, e agora não tinha remédio senão esperar naquela pasmaceira, naquele calor. Enfim, como fizera quarto a noite passada, ia ver se conseguia dormir…

Não chegou ao fim do cigarro, um detestável mata-ratos que Bom-Crioulo esquecera sobre a mesinha, e que abriu-se de todo em sua mão desajeitada. – Não sabia que diabo de gosto o dos fumantes. Qual! decididamente não se acostumava com o fumo. Vinha-lhe logo a dor de cabeça…

Pôs-se a olhar o teto, as paredes, um retrato do imperador, já muito apagado, que viera na primeira página de um jornal ilustrado, preso em caixilhos de bambu, um cromo de desfolhar, examinando com atenção o pequeno aposento, os móveis – a mesa e duas cadeiras -, como se estivesse num museu de cousas raras.

Adormeceu justamente quando soaram duas horas no relógio de D. Carolina, embaixo, no primeiro andar.

Acordou indisposto, sobressaltado, num banho de suor, a língua seca – torcendo-se em espreguiçamentos de quem dormiu toda uma noite.

O sol abrandara um pouco e já havia nuvens no alto, quebrando a monotonia do azul. – Nada; com certeza Bom-Crioulo não vinha mais, pensou o grumete. Diabo de insipidez!

De resto, o negro não lhe fazia muita falta: estimava-o, é verdade, mas aquilo não era sangria desatada que não acabasse nunca…

Essa idéia penetrou-o com uma lembrança feliz, como um fluido esquisito que lhe inoculassem no sangue. – Podia encontrar algum homem de posição, de dinheiro: já agora estava acostumado “àquilo”… O próprio Bom-Crioulo disseram que não se reparavam essas cousas no Rio de Janeiro. Sim, que podia ele esperar de Bom-Crioulo? Nada, e, no entanto, estava sacrificando a saúde, o corpo, a mocidade… Ora, não valia a pena!

Saltou da cama e foi se vestindo devagar, assobiando baixinho, dominado por aquela idéia. – Estava aborrecido, muito aborrecido; precisava mudar de vida…

– Dá licença?

– Oh! madama…

Era a portuguesa: ainda não tinha visto o “seu bonitinho”, dera-lhe uma saudade…

– Bom-Crioulo não veio hoje?

Não , não tinha vindo. E Aleixo contou a paisagem do negro para o couraçado, o desgosto de Bom-Crioulo, a vida de trabalho que o outro ia levar…

– Coitado! lamentou D. Carolina. Mas há de vir à terra…

– Sim, por que não? Sempre há de vir. Não será tanto como na corveta…

– Coitado!…

– Tem aí uma cadeira, ofereceu Aleixo. Por que não se senta?

– Que calor, hein? tornou a mulher sentando-se. Temos chuva.

E logo, muito curiosa:

– Vai sair?

– Vou dar uma volta, passei o dia tão aborrecido…

– Que falta, o negro, hein? acentuou a portuguesa sublinhando um risinho, abanando-se com o avental.

Tinha-se sentado, muito vermelha, o casaco arregaçado, os pés nus dentro de uns tamancos de pano com que batia a roupa no quintal.

– Não, disse Aleixo, com um desdém na voz. Aquilo já está me aborrecendo…

– Oh! Já?… Muito cedo, homem.

E fraternalmente:

– Pois é uma boa criatura, coitado. Eu, às vezes, tenho-lhe pena.

– É porque madama não sabe quem está ali… Muito bom, mas quando se zanga, Jesus! chega a meter medo…

– Assim?

– Ora!…

– Pois, meu filho, se eu lhe disser que nunca vi Bom-Crioulo zangado…

– Uma fera!

Aleixo estava defronte do espelho acabando a toilette. O cabelo cheio d’óleo, escorrido e liso, tinha um brilho fugaz de seda preta. Abria-o de um lado, puxando em pasta sobre a calote esquerda, até quase a sobrancelha. Era uma de suas grandes preocupações – o cabelo bem penteado, úmido sempre. Que trabalho para lhe dar jeito! Desmanchava-o um sem número de vezes, tornava a acertá-lo, e, afinal, depois de repetidas tentativas, punha o boné devagar, jeitosamente.

– Pronto! fez ele dando a última demão.

– Gosto de ver um marinheiro assim, elogiou a mulher, erguendo-se para endireitar a gola do grumete, que estava dobrada. Ninguém me venha falar em homem porco.

E colocando-se diante de Aleixo, os braços em arco e as mãos nos quadris:

– Está mesmo d’encantar, o diabinho! Vai daqui namorar alguma biraia no Largo do Rocio, aposto!

O efebo soltou uma risada muito sem gosto, olhando-se ainda uma vez no espelho.

– Qual o quê, madama! Vou daqui ao Passeio Público; às nove horas, o mais tardar, cá estou de volta.

– E não me convida?

– Quer ir, vamos…

– Não, obrigada; bom proveito e volte direitinho, é o que eu quero…

Foram saindo.

– Mas, olhe, tornou D. Carolina com resolução, no alto da escada. Preciso lhe falar: volte cedo.

– Por que não diz agora?

– Não, não: quando voltar; prefiro conversar à vontade.

– Pois sim… é um instante. Até logo!

– Té loguinho.

E alto, de cima da escada, enquanto o grumete desaparecia no corredor:

– Cuidado hein?!

Estaca escurecendo: seriam seis e pouco. Na rua já havia luz. Continuava o calor, um ar abafadiço, de subterrâneo, sem oxigênio, pesado e asfixiante.

A portuguesa desceu a escadinha do sótão, que estalava com o seu peso, e foi acender o gás da sala de jantar, muito alegre, cantando uma modinha sentimental lá da terra, numa voz lânguida e tremida.

Há dias metera-se-lhe na cabeça uma extravagância: conquistar o Aleixo, o bonitinho, toma-lo para si, tê-lo como amantezinho do seu coração avelhentado e gasto, amigar-se com ele secretamente, dando-lhe tudo quanto fosse preciso: roupa, calçados, almoço e jantar nos dias de folga – dando-lhe tudo enfim.

Era uma esquisitice como qualquer outra: estava cansada de aturar marmanjos. Queria agora experimentar um meninote, um criançola sem barba, que lhe fizesse todas as vontades. Nenhum melhor que Aleixo, cuja beleza impressionara-a desde a primeira vez que se tinham visto. Aleixo estava mesmo a calhar: bonito, forte, virgem talvez…

Arranjava-se perfeitamente, sem que Bom-Crioulo soubesse. Mas como falar ao grumete, como propor-lhe o negócio? Ele talvez ficasse ofendido, e podia haver um escândalo…

O verdadeiro era pouco a pouco ir lhe dando a compreender que o estimava muito, oferecendo-se-lhe pouco a pouco, excitando-o.

Outras mais velhas gabavam-se, por que é que ela, com os seus trinta e oito anos, não tinha o direito de gozar? Histórias! mulher sempre é mulher e homem sempre é homem.

Viu-se ao espelho e notou que realmente ainda “prestava serviço”: – Qual velha! Nem um pé-de-galinha sequer, nem uma ruga – pois isso era ser velha? Certo que não. Lá quanto à idade ninguém queria saber. A questão era de cara e corpo… Ora, adeus!…

Começou a fazer-se muito meiga para o rapazinho, guardando-lhe doces, guloseimas, passando a ferro, ela própria, seus lenços, gabando-se na presença de estranhos, fingindo-se distraída quando queria mostrar-lhe a exuberância de suas carnes – perna, braço ou seios… Uma ocasião Aleixo vira-a em camisa curta, deitada, com as pernas de fora; porque os aposentos da portuguesa davam para o corredor e, nesse dia, ela esquecera de fechar a porta. O grumete voltou o rosto depressa, todo cheio de respeito, como se aquilo fosse uma profanação: mas, depois, ao lembrar-se do caso, tinha sempre uns arrepios voluptuosos, não podia evitar certa quebreira, certo desfalecimento acompanhado de ereção nervosa…

Nunca mais lhe saíra da lembrança aquela cena de alcova: uma mulher deitada com as pernas à mostra, muito gordas e penugentas – num desalinho irresistível, braços nus, cabelo solto. – Devia de ser esplêndido a gente dormir nos braços de uma mulher. A portuguesa não era mazinha.

Aleixo, porém, estava longe de supor que D. Carolina, aquela D. Carolina, que o tratava como filho, bondosa e meiga, pretendesse fazê-lo seu amante.

Semelhante idéia nunca lhe passara pela imaginação. Via entrar homens no quarto dela, sabia os amores do açougueiro, mas isso era lá com os outros de barba; o que lhe parecia impossível, e ele nem sequer pensava, é que D. Carolina tivesse intenções com um rapazinho de sua idade, uma criança quase…

– Pronto! fez ele ao voltar do Passeio Público.

– Oh! depressa! exclamou a portuguesa, erguendo-se. Venha cá, no meu quarto está mais fresco…

O quarto de D. Carolina ficava justamente por baixo do sótão, na frente da casa, um largo aposento de mulher solteira, onde havia uma bela cama de casal com travesseiros de renda.

Quando o grumete chegou, ela estava na sala de jantar lendo os anúncios do Jornal do Comércio, à luz do gás.

– Divertiu-se muito?

– Qual! Fui e voltei logo.

– Por minha causa?

– Não, o Passeio é que estava insípido… Pouca gente.

Aleixo parou à porta do quarto como quem receia entrar.

– Entra, filhinho, entra, que isto aqui é nosso, isto aqui é da tua portuguesinha, não vês?

E, alegre como nunca, foi abrindo as janelas que diziam para a Rua da Misericórdia, num alvoroço.

Enquanto o pequeno andava fora, ela fizera nova toilette, penteara-se, mudara a roupa, trocara os tamancos por umas sapatinhas cor de sangue e colocara os anéis, os célebres anéis que lhe tinham querido roubar: transformara-se completamente.

– Senta, deixa de tolice, filho!

Aleixo sentou-se muito acanhado, com um ar de colegial que pela primeira vez penetra num lugar suspeito. Morava naquela casa há um ano e só agora entrava ali, no quarto da portuguesa.

– Bonita sala!

Bonita o quê, ó pequeno; estás a debicar, hein? disse a mulher acendendo o gás, no bico dos pés, rindo. Bonito és tu – tu é que és bonitinho…

– D. Carolina gosta de caçoar com a gente!…

E a portuguesa, sentando-se também, alisando-lhe o cabelo com as mãos, rubra de calor:

– Pois é isto, minha flor: o que eu tinha a dizer é que estou apaixonada por ti!

– Ora!…

– Estou falando sério; não vais dizer a Bom-Crioulo que eu lhe quero tomar o amigo… Olha que o negro é capaz de estrangular-me…

– Já está D. Carolina com brincadeiras…

– Não é brincadeira, não, filho, tornou a outra, afetando seriedade. Quero que durmas hoje, ao menos hoje, com a tua velha…

E foi se derreando sobre os ombros de Aleixo, com uma fingida ternura de mulher nova.

O pequeno desviava o olhar dos olhos dela, cheio de pudor, um sorriso fixo na boca sombreada por um buço em perspectiva, muito encolhido na sua cadeira, sem dizer palavra.

O contato de sua perna com a da portuguesa produzia-lhe um calorzinho especial, um brando enleio d’alma, uma vaga e deliciosa canseira no fundo do ser, um esquisito bem-estar.

Por sua vontade ficaria naquela posição eternamente, sentindo cada vez mais forte a influência magnética daquele corpo de mulher sobre os seus nervos de adolescente ainda virgem…

  1. Carolina chegava-se pouco a pouco, estreitando-o, colando-se-lhe num grande ímpeto de fúria lúbrica, de mulher gasta que acorda para uma sensação nova…

– Tu não podes comigo, disse trançando a perna sobre o joelho do Aleixo.

E envolvendo-o todo com o seu corpo largo de portuguesa rude:

– Dize lá: ficas ou não ficas?

O efebo teve um arranco de novilho excitado, e, segurando-se à cadeira com as mãos ambas, todo trêmulo agora, sem sangue no rosto:

– Fico!

Então ela, como se lhe houvessem aberto de repente uma caudal de gozo, cravou os dentes na face do grumete, numa fúria brutal, e segurando-o pelas nádegas, o olhar cintilante, o rosto congestionado, foi depô-lo na cama:

– Pr’aí, meu jasmim de estufa, pr’aí! Vais conhecer uma portuguesa velha de sangue quente. Deixa a inocência pro lado, vamos!…

Bateu a porta e começou a se despir a toda pressa, diante de Aleixo, enquanto ele deixava-se estar imóvel, muito admirado para essa mulher-homem que o queria deflorar ali assim, torpemente como um animal.

– Anda, meu tolinho, despe-te também: aprende com tua velha… Anda, que eu estou que nem uma brasa!…

Aleixo não tinha tempo de coordenar idéias. D. Carolina o absorvia, transfigurando-se a seus olhos.

Ela, de ordinário tão meiga, tão comedida, tão escrupulosa mesmo, aparecia-lhe como um animal formidável, cheio de sensualidade, como uma vaca do campo extraordinariamente excitada, que se atira ao macho antes que ele prepare o bote…

Era incrível aquilo!

A mulher só faltava urrar.

E a sua admiração cresceu ainda mais quando ela, sacando fora a camisa ensopada de suor, caiu nua no leito, arquejante, segurando os seios moles, com um estranho fulgor no olhar de basilisco.

Mas Aleixo sabia, por Bom-Crioulo, até onde chega a animalidade humana, e, passando o primeiro momento de surpresa, sentiu que também era feito de carne e osso, como o negro e D. Carolina: – Valia a pena decerto uma noite como aquela!

Acordou cedinho, pela madrugada. Queria ir para bordo no escaler das compras.

A portuguesa ergue-se, fez café ali mesmo no quarto, sem despertar ninguém, jubilosa como uma noiva, exultando!

Graças a Deus estava muito conservadinha, não era tão velha como se pensava. Ainda tinha forças para inutilizar muito homem robusto, olá se tinha!

– E agora já sabes, meu pequerrucho: quando o negro não vier à terra – um abracinho à Carola. D’hoje em diante quero que me chames Carola, ouviste? É mais bonito, entre pessoas que se estimam… Carola e Bonitinho é como nos devemos tratar.

Vinha amanhecendo quando o grumete, ainda bêbedo de sono, os olhos apertados, o passo leve, saiu direto ao Cais dos Mineiros. Estava muito pálido, com grandes olheiras, repetia maquinalmente: – Se Bom-Crioulo soubesse!… ao mesmo tempo que seu espírito voltava-se todo para o sobradinho da Rua da Misericórdia, onde aquela hora D. Carolina encharcava-se num magnífico banho frio de chuveiro.

– Se fosse possível não me encontrar mais, nunca mais, com aquele negro, ah! que felicidade! pensava o grumete aproximando-se de um grupo de marinheiros, perto do cais.

E a figura da portuguesa, muito gorda e risonha, os dentes muito alvos, os quadris largos, a face rubra, dançava em sua imaginação, como um sonho diabólico.

Capítulo VII

Bom-Crioulo não estava satisfeito no couraçado, naquela formidável prisão de aço, que lhe consumia o tempo, e cuja disciplina – um horror de trabalho – privava-o de ir à terra hoje sim, amanhã não, como nos outros navios, Ah! mil vezes a corveta. mil vezes! Ao menos tinha-se liberdade. Separado agora de Aleixo, vivendo no meio de toda gente desconhecida e sem amor, lembrava-se, com tristeza, da bela vida que passara em companhia do grumete: um ano quase de sossego e felicidade!… Era bem certo o ditado: não há bem que sempre dure…

Enchia-se ódio contra os superiores: – Uma cáfila! Todos a mesma cousa; faziam do pobre marinheiro um burro… Ninguém os entendia. – Revoltava-se principalmente contra o Quartel-General que o mandara passar da corveta para o couraçado. Não lhe custava nada ir ao ministro, contar uma história muito grande e pedir, inda que fosse de joelhos, outro embarque. Se duvidasse muito, baixava ao hospital, desertava, ia-se embora pelo mundo com o pequeno. Estavam enganadinhos! Bom-Crioulo tinha sangue nas guelras e era homem para viver só num deserto…: “-… que os pariu!…”

Logo no primeiro dia teve o desgosto de ficar à bordo: seu nome fora recomendado ao imediato em bilhete especial: -“Muita cautela com o Amaro (Bom-Crioulo). É uma praça irrepreensível quando não bebe, mas em chupando seu copito, guarda debaixo! faz um salseiro dos diabos”. Houve logo prevenção entre os oficiais.

– Era bom não o deixar ir à terra muitas vezes. Um homem daquele até metia medo!

E ficou assentado que ele só teria licença um vez por mês. Passou o primeiro dia, o segundo, o terceiro. O quarto era um sábado.

– Seu imediato, eu precisava ir à terra, implorou o negro perfilado, a mão em pala no boné.

– Ainda não, resmungou o oficial, sem prestar-lhe atenção. Quando chegar sua vez eu direi.

– Mas seu imediato…

– Já lhe disse, não me amole!

Bom-Crioulo retirou-se calado, o olhar no convés, mordiscando o beiço. Ia cheio de uma cólera muda. jurando vingança talvez… – Ah! era assim? calculava ele depois, na proa. Havia de mostrar…

E no dia seguinte pela manhã ofereceu-se ao guardião para remar no escaler que ia às compras. Embarcou, sem dar à perceber cálculo algum, e lá foi remando na voga, o boné carregado pra frente, muito sério, teso na sua bancada.

O domingo amanhecia esplêndido e preguiçoso numa soberba ostentação de azul, fresco e transparente. As montanhas da baía, o Pão d’Áçucar, os Órgãos, e, lá longe, o Corcovado, sem um floco de nuvem no topo, desenhava-se na eteral limpidez do ar calmo, davam à vista uma doce impressão de aquarela.

Bela manhã para um bródio sobre a água. O vulto de um paquete alemão ia saindo barra fora, impassível e misterioso… O mastro do Castelo fazia sinais. Os navios de guerra pareciam dormitar ainda silencioso e imóveis.

Era quase dia…

– Leva! manobrou o patrão do escaler. Tinham chegado ao cais. Os marinheiros, todos a um tempo, suspenderam os remos, arriando-os logo, com um movimento igual, dentro da embarcação.

Daí ao mercado era perto. Começaram a atracar os escaleres doutros navios. Pouco a pouco ia clareando… A praça, entretanto, permanecia quase deserta ainda; um ou outro galego, homem de ganho, vagava em torno dos quiosques.

Bom-Crioulo desembarcou, a pretexto de “fazer uma necessidade”, prometendo voltar logo.

– Era um pulo…

Enfiou pelo jardim que decorava o largo, e, uma vez fora da vista dos companheiros, estugou o passo em direção à Rua da Misericórdia, resmungando insultos que ninguém ouvia. A porta do sobradinho estava fechada. Bateu. D. Carolina ressonava. Tornou a bater, impaciente, dando fortes punhadas na porta.

O caixeiro da padaria defronte, veio espiar quem é que batia com todo aquele desespero.

– Quem havia de ser? Um negro!…

Afinal vieram abrir: um senhor de longas barbas, obeso, em suspensórios, com cara de réu, e que se afastou para deixar passar o marinheiro.

– Bom dia!

– Bom dia! correspondeu o barbaças.

– Quem é? perguntou lá de cima a voz abafada da portuguesa.

– Sou eu, D. Carolina; desculpe a maçada.

– Ah! é o Bom-Crioulo? Que maçada o quê! Por aqui tão cedo? Ninguém o vê mais!… A chave está no prego!…

– Obrigado…

E com pouco Bom-Crioulo escancarava a janelinha do quarto, recebendo em cheio, no rosto, a frescura matinal: – Agora queria ver se o arrancavam dali. Uma ova! Estava em sua casa, muito bem escondido. Não era nenhum burro de carga!…

Veio-lhe à mente o grumete: – Aleixo ainda se lembraria dele? Sim, porque neste mundo a gente vive enganada… Quanto mais se estima uma pessoa, mais essa pessoa trata com desprezo. E afinal, ele, Bom-Crioulo , não caíra do céu…

Abriu as gavetinhas da mesa, revistou móveis, remexeu papéis, como quem procura um objeto, examinou a cama, farejando, tateando… O vidro de óleo não estava na cantoneira e tinha sofrido uma limpa; a garrafa d’água Florida, que ele deixara pelo gargalo, quando muito podia ter seis dedos…; a latinha de graxa imobilizava-se no chão, de borco, ao pé do lavatório de ferro; o assoalho era uma imundície de pontas de cigarro e cuspo.

– Eu faço idéia! … murmurou Bom-Crioulo interpretando aquela desordem habitual. Eu faço idéia!…

Nesse instante o carrilhão de S. José começou a bimbalhar os “Sinos de Corneville”, enchendo o espaço de uma alacridade sonora e festiva que multiplicava-se em notas de uma limpidez offenbachiana, como se fosse um maravilhoso instrumento de cristal suspenso nos ares… Instintivamente o marinheiro cantarolou o velho trecho da opereta:

Dlingo, dlingo, dlingo,

Dlingo, dlingo, dlão!

No fundo estava alegre, sentia-se humorado, com ímpetos de criança brejeira, como um pássaro solto… Estranhava-se até! Há muito não amanhecia tão bem disposto…

O retrato do imperador sorria-lhe meigo, com a sua barba de patriarca indulgente. Era o seu homem. Diziam mal dele, os tais “republicanos”, porque o velho tinha sentimento e gostava do povo…

Acendeu um cigarro e deitou-se.

– Ah! isso era outra cousa! não lhe fossem falar em navios de guerra: preferia sua cama, seu bem estar, seu descanso.

Pela janela entrava agora uma réstia de sol, e o carrilhão continuava o seu interminável estribilho musical…

Dlingo, dlingo, dlingo,

Dlingo, dlingo, dlão!

– Bom-Crioulo, ó Bom-Crioulo!

– Anh!… Que é?

– Acorda rapaz, olha que não tarda meio-dia.

– Meio-dia?

– Sim, pois não vês o sol como vai alto?

  1. Carolina, vendo que o marinheiro estava custando a descer, foi acordá-lo. Amaro dormia profundamente, com a boca aberta, estendido na cama, o boné sobre os olhos, um fio de baba escorrendo pelo queixo, imóvel… Pendiam-lhe os braços numa frouxidão cadavérica. A mulher, ao entrar no quarto recuou pálida. – Jesus! estaria morto? O negro, porém, ressonava alto. – Que susto. Aproximou-se timidamente para o não sobressaltar e, quando ele abriu os olhos, viu-a, diante de si, muito gorda e risonha, toda em roupa nova, um avental branco.

– Acorde, seu preguiçoso! fez ela dando uma palmada na coxa do negro. Vamos, levante-se, que isto não são horas de dormir.

Bom-Crioulo ergueu-se vagarosamente, limpando a saliva com a manga, perguntou pelas horas, o corpo mole, os olhos vermelhos, um sabor esquisito na boca.

– Então que foi isso hoje? perguntou a portuguesa…

– Eu que fugi, disse o marinheiro naturalmente, abrindo os braços num bocejo. Vim no escaler das compras e aqui estou sem licença.

– Que loucura, filho! São capazes de mandar-te prender…

-… que os pariu! Não sou escravo de ninguém. Fujo quantas vezes quiser; ninguém me proíbe…

– Modera-te, rapaz. É preciso ir com jeito…

– Qual jeito qual nada, minha senhora! Depois que estou naquele navio ainda não tive descanso. Isso também é demais!

– Ora, meu filho, paciência. Deus há de ajudar…

– É a tal história: fia-te na Virgem e não corras…

– Vocês lá se entendem, rematou a portuguesa, fitando o retrato do imperador, como se nunca o tivesse visto.

– Uma cousa, tornou Bom-Crioulo: o Aleixo tem vindo à terra?

– Veio quinta feira, se não me engano…

E o outro contando os dedos:

– Quinta, sexta, sábado, domingo: ontem era dia dele vir…

– Agora vocês vivem sempre desencontrados. Não combinam…

– Vamos a saber, disse a mulher. Queres comer alguma cousa, ou já almoçaste?

– Nada, vou petiscar ali no frege.

– Manda-se comprar…

– Não, obrigado, preciso mesmo dar uma volta, esticar as pernas, fazer exercício.

– Cuidado! Olha algum oficial…

E dirigindo-se para a escadinha:

– Bom, vim apenas te acordar. Até logo.

– Té logo, madama. Então o pequeno só veio uma vez, hein?

– Uma vezinha, coitado…

E o negro ficou pensando no grumete, sentado à mesa, de crista caída, esgravatando maquinalmente a unha com um fósforo – “Aquilo” não ia bem… Precisava tomar uma resolução: abandonar o Aleixo, acabar de uma vez, meter-se a bordo, ou então amigar-se aí com uma rapariga de sua cor e viver tranqüilo. Estava emagrecendo à toa, não comia, não tinha descanso, em termos de adoecer, de apanhar uma moléstia, por causa do “senhor Aleixo”. Se ao menos pudesse vê-lo todos os dias, como na corveta…; mas assim, longe um do outro? Não valia a pena, era cair no desfrute…

E, tomando o boné, com uma expressão de aborrecimento:

– Ora, adeus! havia de se resolver hoje ou amanhã;

Bateu a porta, deu volta à chave, e saiu por ali fora, palpando os bolsos. com desespero.

  1. Carolina estava para dentro e lá ficou estendendo uma roupinha no coradouro.

Faiscavam as pedras da rua sob a luz perpendicular do meio-dia. Na taverna da esquina, ali perto, havia uma aglomeração de gente e cada transeunte que passava era mais uma curioso, um basbaque. Os moradores debruçavam-se às janelas, esticando o pescoço com uma interrogação no olhar. Um oficial de bombeiros passou correndo para o lugar do “acontecimento”. Gente punha-se em pé nos bondes. O padeiro, em mangas de camisa, chegou à porta, com um lápis atrás da orelha, arrastando os chinelos.

Bom-Crioulo supôs logo que fosse algum “rolo” e precipitou-se, abrindo caminho. Era um sujeito acometido de gota, que se espojava no chão, babando, o rosto ensangüentado, a barba suja de areia, em contorções horrorosas.

Caíra de repente, ao sair da venda.

– Tinha bebido muita cachaça, dizia penalizado o taverneiro. Se soubesse, não teria vendido…

Dois guardas tentaram erguer o homem pelo torso, mas fraquejaram. – Passa fora, o animal pesava que nem chumbo!

– Espera, espera! saltou Bom-Crioulo. Vocês também não prestam pra nada…

O povo recuou, admirado, e viu o negro suspender o homem com as duas mãos e levá-lo ao ombro à Santa Casa de Misericórdia, sem grande esforço, como se pegasse uma criança.

Fez-lhe pena ver aquele pobre homem caído ali assim, no meio da rua, cercado de gente, estrebuchando como um animal sem dono. Aquilo apertou-lhe o coração, fê-lo estremecer, comoveu-o… Talvez fosse algum pai de família, coitado, algum infeliz… Um horror, a tal gota! já noutra ocasião salvara uma mulher bêbeda que ia sendo pisada por um bonde.

E o português da venda, o padeiro, os guardas, um doutor que passava casualmente, o dono do açougue, todos gabavam o pulso do negro.

“- Sim senhor, tinha força para desancar um burro! – Essa gente do mar é uma gente perigosa! – Dois guardas não puderam com o homem, no entanto só o negro fez tudo! – A marinha sempre é a marinha…”

Um soldado, que estava presente, ergueu o seu protesto:

– Não senhor, não era tanto assim. Cá e lá más fadas há… No exército também se encontravam homens de pulso, assim como na armada havia gente fraca, rapazinhos de papelão…

Ninguém disse mais uma palavra, e pouco a pouco o ajuntamento reduziu-se a duas ou três pessoas que ficaram por ali conversando.

Bom-Crioulo voltou imediatamente no seu passo largo, sacudindo os braços, o boné derreado como de costume, a face radiante. – Na verdade o homem pesava seu bocadinho, mas era uma vergonha dois guardas não poderem com ele. Olhe que eram dois guardas!

E, dirigindo-se ao vendeiro:

– Uma terça, faz favor…

O português, muito amável, sem despregar os olhos do marinheiro, encheu a medida. – Sim, era uma vergonha para o Brasil, murmurou sorrindo. Em Portugal…

Bom-Crioulo tossiu, escarrou, e escorropichando o copo: – Puah!… fez com repugnância. – Arre, diabo, que isto é mesmo que beber fogo!

Desatou a ponta do lenço, onde costumava trazer o cobre – um triste lenço enxovalhado, com desenhos na margem.

– São os últimos vinténs; resto do soldinho, do miserável soldinho… Felizmente eu não me aperto enquanto existir uma portuguesa chamada Carolina…

O bodegueiro piscou o olho: – Ahn, ahn!… Como era fino, hein?…

– Que quer, meu amigo, faz-se pela vida…

Tinha a cabeça muito fraca, muito leve: um gole de aguardente. uma dose insignificante de líquido espirituoso, um martelo de vinho punha-lhe os olhos em brasa, desequilibrava-o, subindo logo ao cérebro. E, quando bebia demais, em pândega, lá uma vez ou outra – santo Deus! ninguém podia com ele: redobrava de força, não conhecia os amigos, insultava a humanidade, ameaçando, brandindo o punho fechado, carregando o boné, gingando o corpo – medonho, terrível!

Nesse dia como que Bom-Crioulo resolvera se embriagar propositalmente. Pouco depois de engolir a cachaça, meio tonto, empinando-se para não demonstrar fraqueza, mas com a vista caliginosa e um azedume na língua, retirou-se da venda sem rumo certo, para os lados do cais do Pharoux. Ia triste, zarolho, vendo casas em duplicata e rodando em torno de sua cabeça, encostando-se à parede, monologando cousas imperceptíveis, transfigurado já.

Confundiam-se-lhe as idéias numa turva agitação de quem vai perder o juízo; os objetos começavam a parecer-lhe sombrios, tinha vontade de cometer loucuras, de se sentar no meio da rua e abrir a boca e dizer horrores como um alienado.

– Eu daqui vou direitinho, mas é para bordo, murmurava. Hei de mostrar à canalha! Vou porque quero, porque sou livre!

E batia com força no peito.

– … que os pariu! Salvei o homem da gota, fiz um ato de caridade, agora podem falar! Papagaio de noite não tem olho, como dizia meu comandante… já não me lembra o nome…

Eram duas horas da tarde. As lojas tinham-se fechado: os armazéns de madeira, todas as casas de negócio, com exceção de raríssimos cafés, estavam trancadas àquela hora dominical.

Poucos transeuntes iam passando vagarosamente, ao sol, numa marcha lenta de gado que recolhe à tardinha, calados, pensando na vida…

Bom-Crioulo desceu rua abaixo, cambaleando, ziguezagueando, sem prestar atenção à ninguém. Mas, ao desembocar no Largo do Paço, um cachorro vadio começou a ladrar, atirando-se a ele, perseguindo-o, cercando-o. Outros cães vieram se juntar ao primeiro e fez-se logo em torno do negro um alarido infernal, que aumentava pouco a pouco, ensurdecedor e azucrinante. Garotos açulavam a canzoada com assobios e gritos. Houve um alarma entre os galegos do cais. – Ora quem havia de ser? Quem havia de ser?… O negralhão, o marinheiro!

No entanto, Bom-Crioulo caminhava sempre, aos tombos, equilibrando-se, investindo contra os cães, ameaçando-os à pedra, ganindo insultos: -… que os pariu!”

Viram-no se dirigir para o cais.

– Ó do escaler! gritou ele avistando uma pequena embarcação de guerra imóvel sob os remos, ao largo.

Ninguém respondeu.

Havia calma no mar. A água reluzia como aço polido. Abafava!

Defronte, lá muito longe, em Niterói, via-se a torre branca de uma igreja, pequenina, esguia como um obelisco.

Botes de ganho flutuavam silenciosamente, com o toldo aberto, amarrados uns aos outros, na lingüeta de mar, entre as estações das barcas, quietos, modorrentos…

– Ó do escaler! bradou o negro.

A embarcação não se movia: era como se não houvesse ninguém a bordo. Os marinheiros fingiam-se distraídos.

– Cambada de burros! Atraca essa porcaria!

E abriu a boca numa tremenda explosão de impropérios, fechando o punho ameaçadoramente, desenrolando todo o vocabulário imundo e obsceno das tarimbas contra os companheiros, berrando em alta voz “que era livre, que havia de fazer, que havia de acontecer!…”

– Infames! Não preciso de vocês pra nada! Pra nada!

Mas, ao voltar, deu de ombros com um português, que estava a seu lado rindo tranqüilamente, segurando um remo.

– E você também, seu galego; você está se rindo, porque ainda não apanhou nessa lata! fez Bom-Crioulo dando um empurrão no homem.

O português carregou o rosto, medindo o negro d’alto a baixo, sem dizer palavra.

– E não tem que olhar não, não! Se dúvida faço-o beber água salgada.

– Vá-s’embora, homem de Deus! murmurou o outro com benevolência. Vá-s’embora…

– O quê?

– Mal vai a cousa…

– O quê, seu galego, o quê?

E “abotoou” o português, oferecendo-lhe o peito e sacando fora o boné.

– O senhor não me provoque…

– Arrebento-lhe a cara, seu galego, aqui mesmo!

O homem perdeu a calma Nos seus olhos fulgurou um clarão de raiva, o sangue tomou-lhe o rosto, o remo caiu-lhe da mão, e, investindo para o Bom-Crioulo, quis derrubá-lo corpo a corpo, naquele mesmo instante. Era sujeito baixote, rijo, de bigode fulvo, muito vermelho, com pintas de sarda.

Abriu-se a luta imediatamente. O cais, todo o espaço entre as duas estações marítimas, coalhou-se de gente rumorosa, alvoraçada, que vinha de todos os ângulos da praça numa precipitação de avançada. – “Rolo! Rolo!”

E, no desespero da briga, os dois homens iam ganhando terreno para o largo, afastando-se daquele ponto insustentável, onde não se podiam mover livremente, sem risco de cair n’água, abraçados, corpo a corpo, enroscados um no outro, qual mais forte – iguais na envergadura muscular.

O escaler de guerra tinha se aproximado.

Havia grande rebuliço nos botes: o alarma era geral no cais e imediações.

– Desaparta! Desaparta! gritavam os catraieiros.

Assobios, canzoada, berros: – Não pode! não pode! confundiam-se num alvoroço descomunal, reboando na praça.

De repente, com um safanão medonho, Bom-Crioulo separa-se do português e rápido, ligeiro, esgueirando-se, puxa do cós um objeto: logo toda gente viu, com espanto, reluzir na mão do marinheiro o aço de uma anavalha.

– É agora! disse uma voz no meios do povo.

A multidão espalhou-se, recuando, abandonando o campo da luta. O clamor aumentava: – Pega! Pega! não pode!

O português, com a roupa em frangalhos e o cabelo em desordem, abalou na carreira; mas o negro, vendo se aproximarem polícias, brandindo a arma furioso, ameaçou:

– Quem for homem, venha!

A figura do “galego” tinha desaparecido: sua cólera voltava-se agora contra o povo e contra a polícia. Ninguém ousava se aproximar daquele homem-fera, cujo olhar fazia medo…

Quatro horas no relógio da estação.

Daí a pouco saltou no cais um oficial da marinha. Bom-Crioulo esperou-o a pé firme: – Não venha, que leva!

Era um primeiro tenente; acompanhavam-no marinheiros.

– Segurem aquele homem, ordenou, parando à distância.

– Não venha! Não venha! exclamou o negro, gingando com a navalha no ar.

Os homens dividiram-se, três para cada lado, e marcharam impavidamente, de prancha desembainhada.

Foi um momento de ansiedade e assombro.

A figura colossal do negro, multiplicando-se em movimentos de requintada clownerie, torcia-se, evitando as baionetas, como se o impelisse oculta mola de arame. – Não venha! Não venha!…

Mas, quando, num formidável arranco, salta à direita, um pulso mais forte “gruda-o” pela esquerda e Bom-Crioulo, o invencível Bom-Crioulo, sente-se agarrado, preso como um animal feroz!

O povo todo afluiu vitorioso ao lugar do conflito, sem o receio de agressões, comentando o fato, e o marinheiro foi acompanhado à beira d’água por uma onda de curiosos.

Que luta para o embarcar! O negro escabujava, mordia, no auge de um desespero hidrofóbico, insultando, rogando pragas.

Afinal, lá o conduziram à viva força, e a embarcação deslizou, toda branca, na baía calma…

Capítulo VIII

O comandante do couraçado, bela estampa de militar fidalgo, irrepreensível e caprichoso, era o mesmo, aquele mesmo de quem, na frase tosca de Bom-Crioulo, “falavam-se cousas…”

Um lenda obscura e vaga levantara-se em torno do seu nome, transformando-o numa espécie de Gilles de Rais menos pavoroso que o da crônica, cheio de indiferença pelo sexo feminino, e cujo ideal genésico ele ia rebuscar na própria adolescência masculina, entre os de sua classe.

Calúnia, talvez, insinuações de mau gosto.

Os marinheiros narravam entre si, por noites de luar e calmaria, quando não tinham que fazer, lendas e histórias muitas vezes forjadas ali mesmo no fio da conversa…

O comandante, diziam, não gostava de saias, era homem de gênio esquisito, sem entusiasmo pela mulher, preferindo viver a seu modo, lá com a sua gente, com os seus marinheiros…

E havia sempre uma dissimulação respeitosa, um pigarrear malicioso, quando se falava no comandante.

Fosse como fosse, ninguém o desrespeitava, todos o queriam assim mesmo cheio de mistério, com o seu belo porte de fidalgo, manso às vezes, disciplinador intransigente, modelo dos oficiais.

Bom-Crioulo, porém, nunca o estimara verdadeiramente: olhava-o com certa desconfiança, não podia se acostumar àquela voz untuosa, àquele derretido aspecto protetoral que ele sabia fingir nos momentos de bom humor. Evitava-o como se evita um inimigo irreconciliável. Por quê? Ele próprio, Bom-Crioulo, ignorava. Repugnância instintiva, natural antipatia – forças opostas que se repelem…

– Esse homem nasceu para me fazer mal, pensava o negro supersticiosamente.

Metido em ferros no mesmo dia do “rolo”, a imagem do comandante brilhou na caligem de sua embriaguez e o perseguiu toda a noite sem trégua, sem o deixar um instante, ora terrível, ameaçadora, implacável, outras vezes, doce, meiga e complacente…

Dormiu essa noite numa sepultura de ferro, espécie de jaula estreita e sem luz onde só cabia um homem. Trancado ali dentro, imóvel, porque os pés e as mãos estavam presos, adormeceu quando os outros acordavam, ao primeiro toque d’alvorada, quase dia. Durante o sono viu a figura do português inchando para ele com uma faca, desafiando-o: “Vem, negro, vem, que eu te mostro!” Era um homem reforçado, em cuja roupa havia manchas de sangue – barba longa, olhar atrevido.

Iam se pegar, mas Aleixo não consentiu dizendo que a polícia vinha os prender, que não valia a pena brigar por uma cousa à toa… Então Bom-Crioulo, como gostava do pequeno, fugiu, deixando o português no meio de uma praça muito grande, cheia de arvoredos.

A realidade, porém, veio despertá-lo. Eram onze horas. Tinha-se aberto a porta da solitária e, mesmo em jejum, ele ia ser castigado. Faltava o comandante para se dar princípio à solenidade. Uma onda de luz banhou a prisão iluminando o rosto do marinheiro.

– Levante-se! ordenou o sargento da guarda.

 

Bom-Crioulo não podia se mover: foi preciso que o segurassem. Apertava-lhe a boca uma mordaça de ferro. Havia no seu olhar uma indignação muda e triste.

Ergueu-se trôpego, bambo, os olhos como duas tochas, uma equimose roxa na face, porque adormecera com a cabeça no joelho em posição de múmia indígena. Fez-lhe bem o ar livre da manhã; a luz que se esperdiçava no espaço reanimou-o; todo ele sentiu-se vibrar; oferecia-se ao castigo, sem medo, impávido e sereno, odiando intimamente, lá no fundo de sua natureza humana, aquela gente que o cercava exultando, talvez, com a sua desgraça. Não tinha ninguém por ele – era um abandonado, um infeliz… O próprio Aleixo onde estaria?

Essa lembrança o comoveu. Sim, o Aleixo era a causa de tudo… Enquanto vivera na companhia do grumete, nunca se embriagara positivamente: bebia, de longe em longe, um golezinho de cachaça para aquecer, e ficava satisfeito. Agora não, só se contentava com uma terça e gostava de repetir. – Ah! seu Aleixo, seu Aleixo!…

Como da outra vez, na corveta, houve “mostra geral”, a guarnição inteira formou à ré, na tolda.

O castigo foi tremendo.

– Não se iluda a guarnição deste navio! perorou o comandante. Desobediência, embriaguez e pederastia são crimes de primeira ordem. Não se iludam!…

E, como da outra vez, Bom-Crioulo emudeceu profundamente sob os golpes da chibata. Apanhou calado, retorcendo-se a cada golpe na dor imensa que o cortava d’alto a baixo, como se todo ele fosse uma grande chaga aberta, viva e cruenta… Morria-lhe na garganta um grunhido estertoroso e imperceptível, cheio de angústia, comprimido e seco; dilatavam-se-lhe os músculos da face em contrações galvânicas; o sangue convulsionado, rugia dentro, nas artérias, no coração, no íntimo de sua natureza física, palpitante, caudaloso, numa pletora descomunal!

Ele sofria tudo com aquele orgulho selvagem de animal ferido, que se não pode vingar porque está preso, e que morre sem um gemido, com um olhar aceso de cólera impotente!

Errava na luz intensa do meio dia uma tristeza vaga e universal. Lá de fora, da barra, vinha, encrespando a agia, um arzinho fresco impregnado de maresia. A cidade, em anfiteatro, cintilava entre montanhas na lânguida apatia daquela hora calmosa. O vulto do couraçado, largo e imóvel no meio da baía, com seu enorme aríete, com sua cobertura de lona, resplandecia destacado, longe dos outros navios, longe de terra, fantástico, arquitetural!

À última chibatada, Bom-Crioulo rodou e caiu em cheio sobre o convés, porejando sangue. Ah! mas não havia no seu dorso uma nesga de pele que não fosse atingida pelo vime. Caiu fatalmente, quando já não lhe restava a menor energia no organismo, quando se tornara desumano o castigo e a dor sobrepujara a vontade.

Só então apareceu o médico, trêmulo e nervoso, dizendo que “não era nada, que não era nada; que trouxessem o vidrinho de éter e água, um pouco d’água…”

O comandante aproximou-se também, mas retirou-se logo com o seu desdenhoso aspecto de fofa nobreza: – “Não se iludam, não se iludam!”

E daí a pouco largava um escaler sem flâmula, conduzindo o marinheiro para o hospital.

Fica-te malvado, fica-te! exclamou Bom-Crioulo, voltando-se para o couraçado, em caminho: – Fica-te!

Aleixo nesse dia estava de folga, e muito cedo, cousa de um hora, veio à terra impelido por uma grande saudade que o fazia agora escravo da portuguesa. Receava encontrar Bom-Crioulo, ter de o suportar com seus caprichos, com o seu bodum africano, com os seus ímpetos de touro, e esta lembrança entristecia-o como um arrependimento. Ficara abominando o negro, odiando-o quase, cheio de repugnância, cheio de nojo por aquele animal com formas de homem, que se dizia seu amigo unicamente para o gozar. Tinha pena dele, compadecia-se, porque, afinal, devia-lhe favores, mas não o estimava: nunca o estimara!

Subiu devagar, pé ante pé, a escada do sobradinho, meticulosos, agarrando-se à parede, ouvido alerta, comprimindo a respiração. – Felizmente a porta de cima estava aberta…

De vez em quando pisava em falso e os coturnos de bezerro gemiam surdamente. – Era o diabo se o Bom-Crioulo estivesse…

Foi andando sempre cauteloso, té à sala de jantar. Ninguém! Enfiou pela cozinha; e, da janela que abria para o quintal, viu lá baixo, vergada sobre um montão de roupa úmida, a portuguesa em tamancos, arregaçada e sem casaco, às voltas, cantarolando. O instinto fê-la voltar-se e olhar para cima; seu primeiro movimento foi um grito de surpresa e alegria: – Oh! o pequenino, o meu pequenino! já lá vou. Espera, sim?

Aleixo pediu silêncio, com o dedo na boca, e, indicando o sótão, perguntou, debruçando-se à janela, sem Bom-Crioulo estava…

– Qual Bom-Crioulo! rompeu D. Carolina alto e sem mistério, estabanadamente. Qual Bom-Crioulo! Tua negra está só, meu pequenino! Já lá vou.

Mas o grumete não se conteve: desceu ao quintal para examinar aquela fartura de mulher em trajos de lavadeira, que seus olhos viam extasiados.

Com efeito, a portuguesa estava irresistível para um adolescente nas condições de Aleixo, bisonho em aventuras dessa ordem, e cuja virilidade apenas começava a destoucar-se.

  1. Carolina vestia camisa e saia curta que lhe dava pelo joelho; a cabeça estava coberta com um grande lenço de chita amarrado por baixo do pescoço.

– Não venhas, meu pequeno, disse ela, percebendo as intenções de Aleixo. Olha, deixa-me acabar isto, sim?

O grumete formalizou-se: – “Oh! podia acabar podia acabar…”

E logo, aproximando-se:

– Vim apenas vê-la de perto…

– Estás caçoando, hein! estás caçoando com a tua velha…

– Caçoando, não. Estou falando sério.

A portuguesa desatou numa risada límpida e gostosa, de uma sonoridade vibrante, sacudindo os quadris, cabeceando histericamente:

– Ora o meu pimpolho! Ora o rico pimpolhozinho!

E ria, ria num desespero.

Aleixo encavacou:

– Está bom, vou-me embora.

– Oh! não, não… Brincadeira! Se vais, fico zangada. Vê lá, hein! vê lá…

E com fingida ternura, ameigando a voz:

– Fica, meu bonitinho, fica, junto à tua negra…

Ele sorriu vagamente e entraram a conversar como bons amigos.

Estiveram ali, debaixo do telheiro de zinco, um ror de tempo – o grumete sentado à beira do tanque, perna trançada, a portuguesa muito açodada na faina de concluir a lavagem.

Fora daquele pequeno espaço refrescado pela água, brilhava o sol com uma intensidade rútila e abrasadora. O capim seco do coradouro ardia, muito raso, muito desolado e outoniço. Na vizinhança, um papagaio de estima berrava estridentemente. Havia grande calma. A água da bica não cessava de cantar no tanque, escorrendo, escorrendo…

Aleixo dependurou a jaqueta de flanela azul e deixou-se ficar em camisa de meia, ouvindo cantar a água, enquanto D. Carolina ia enxaguando a roupa.

Falaram em Bom-Crioulo e riram à custa do negro, baixinho, à socapa.

– Boa criatura! sentenciou a portuguesa com um quê de ironia.

– Para o fogo! acrescentou Aleixo.

Não sabiam do “rolo”. A portuguesa disse apenas que o outro saíra na véspera, depois do meio dia, e não regressara. – Naturalmente fora preso…

Um relógio deu horas.

– Quantas? perguntou a mulher.

– Quatro, disse o grumete.

– Jesus! Vou acabar, vou acabar! Fica pr’amanhã o resto.

– É! Basta de trabalho, isso não vai a matar, disse Aleixo erguendo-se.

E seus olhos pousavam traiçoeiramente sobre o colo nu, sobre a espádua nua de D. Carolina, cheios de desejo, ávidos de gozo.

Ela, como se sentisse no próprio corpo as ferroadas daquele olhar, como se lhe experimentas e o calor vivo, a força magnética, o poder físico, material e irresistível, chegou-se ao grumete e disse-lhe ao ouvido estas palavras, que produzira, nele o efeito indizível e vago de um estremecimento nervoso: – Vamos tomar banho?…

– Aqui?

– Por que não?

– Podem ver…

– Fecha-se a porta da rua. Não tenho inquilinos agora…

Aleixo não disse que sim nem que não. Espreguiçou-se todo, contorcendo-se num espasmo incompleto, sentindo um friozinho bem, extraordinariamente bom, uma comoçãozinha maravilhosa percorrer-lhe as fibras, descendo pelo espinhaço e espalhando-se por todo o organismo.

A portuguesa foi depressa lá cima, ao sobrado, e voltou, sem demora, com a face radiante.

Quis ela mesma despir o rapaz, tirar-lhe a camisa de meia, tirar-lhe as calças, pô-lo nu a seus olhos. Bom-Crioulo já lhe havia dito que Aleixo “tinha formas de mulher”.

Depois começou a se despir também…

O tanque estava cheio a transbordar. Via-se-lhe o fundo claro através da água límpida e fresca.

Ninguém os via naquela nudez primitiva, frente a frente – o corpo largo e mole da portuguesa em contraste com as formas ideais e rijas do efebo -, escandalosamente nus, pecadoramente bíblicos no silêncio do quintalejo ao abrigo do sol que vibrava em torno do pequeno alpendre a sua luz de ouro fulvo!

O que eles fizeram, antes e depois do banho, ninguém saberá nunca. Os muros do quintal abafaram toda essa misteriosa cena de erotismo consumada ali por trás da Rua da Misericórdia num belíssimo dia de novembro.

  1. Carolina realizara, enfim, o seu desejo, a sua ambição de mulher gasta: possuir um amante novo, mocinho, imberbe, com uma ponta de ingenuidade a ruborizar-lhe a face, um amante quase ideal, que fosse para ela o que um animal de estima é para o seu dono – leal, sincero, dedicado até ao sacrifício.

Aleixo remoçava-a como um elixir estranho, milagrosamente afrodisíaco. Sentia-se outra depois que se metera com o pequerrucho: retesavam-se-lhe os nervos, abria-se-lhe o apetite, entrava-lhe n’alma uma extraordinária alegria de noiva em plena lua-de-mel, toda ela vibrava numa festiva exuberância de vida, numa eclosão torrencial de felicidade – o corpo leve, o espírito calmo… Aleixo pertencia-lhe, enfim; era seu, completamente seu; ela o tinha agora preso como um belo pássaro que se deixasse engaiolar; tinha-lhe ensinado segredinho de amor, e ele gostara imenso, e jurara nunca mais abandoná-la, nunca mais!

O grumete, por sua vez, experimentava o que experimentaria qualquer adolescente – uma tendência fatal para a portuguesa, um forte desejo de possuí-la sempre, sempre, a toda hora, uma vontade irresistível de morde-la, de cheira-la, de palpa-la num frenesi de gozo, num grande ímpeto selvagem de novilho insaciável.

A tarde passou rapidamente. Depois do jantar (sopa, cozido e bananas de S. Tomé, fora o vinho fornecido pelo açougueiro) dirigiram-se à sala da frente. Aleixo quis ver o álbum de retratos; a portuguesa trouxe-lho. E sentado no velho sofá, num quase abraço – ele muito curioso, desejando saber de quem eram as fotografias, ela meio derreada, o cabelo úmido e solto, explicando minuciosamente cada figura, paisagens da Europa, trechos de Portugal e das ilhas -, esperaram a noite.

Escureceu. D. Carolina foi acender o bico de gás, queixando-se do calor, “que a sua vontade era não sair d’água, viver dentro d’água, morrer n’água, flutuando…”

Aleixo riu, achou graça, lembrando-se, talvez, da semelhança que havia entre a portuguesa e uma grande corveta bojuda…

– Ora, dize uma cousa, ó pequerrucho, tu me queres bem mesmo ou isso é uma esquisitice, uma pândega?

E risonha, sentando-se:

– Mas olha, dize a verdade! Vê lá me vens com história…

Ele então disse que estimava-a do fundo do coração e tornou a jurar que havia de morrer junto dela, na mesma cama – juntinho, lado a lado…

– E se morreres a bordo, no mar?

– Paciência, murmurou o grumete num tom de tristeza.

Mas, arrependida, ela o cobriu de beijos:

– Não, ele não morreria no mar. Brincadeira, brincadeira…

Havia no rosto imberbe e liso do grumete uns tons fugitivos de ternura virginal, o quer que era breve e delicado, a branca melancolia de certas flores, o recolhimento ingênuo e discreto de uma educanda; e era isso justamente, esse quê indefinível, essa poesia inocente derramada no semblante de Aleixo, que provocava a portuguesa, ferindo a corda sensível do seu coração abandonado e gasto. Era uma pena, decerto, ver aquele rosto de mulher, aquelas formas de mulher, aquela estatuazinha de mármore, entregue às mãos grosseiras de um marinheiro, de um negro… Muita vez o pequeno fora seduzido, arrastado. Ela até fazia um benefício, uma obra de caridade… Aquilo com o outro, afinal, era uma grossa patifaria, uma bandalheira, um pecado, um crime! Se Aleixo havia de se desgraçar nas unhas do negro, era melhor que ela, uma mulher, o salvasse. Lucravam ambos, ele e ela…

Mas Aleixo não podia esquecer Bom-Crioulo. A figura do negro acompanhava-o a toda parte, a bordo e em terra, quer ele quisesse quer não, com uma insistência de remorso. Desejava odiá-lo sinceramente, positivamente, esquecê-lo para sempre, varrê-lo da imaginação como a um pensamento mau, como a uma obsessão insólita e enervante; mas, debalde! O aspecto repreensivo do marinheiro estava gravado em seu espírito indelevelmente; a cada instante lembrava-se da musculatura rija de Bom-Crioulo, de seu gênio rancoroso e vingativo, de sua natureza extraordinária – híbrido conjunto de malvadez e tolerância -, de seus arrebatamentos, de sua tendência para o crime, e tudo isso, todas essas recordações o acovardavam, punham-lhe no sangue um calafrio de terror, um vago estremecimento de medo, qualquer cousa latente e aflitiva… Suas expansões com a portuguesa eram incompletas, vibravam-lhe os lábios em sorrisos de falsário, cada vez que ela o exaltava para deprimir o outro…

Todavia a noite foi como um delírio de gozo e sensualidade. D. Carolina cevou o seu hermafroditismo agudo com beijos e abraços e sucções violentas…

Capítulo IX

Vida triste era a de Bom-Crioulo, agora, no hospital, longe da Rua da Misericórdia e do seu único afeto, obrigado a um regimen conventual, alimentando-se parcamente, ouvindo a toda hora gemidos que lhe entravam na alma como uma salmodia agourenta, como a dorida expressão de seu próprio abandono, metido entre as paredes de uma lúgubre enfermaria – ele que amava a liberdade com um entusiasmo selvagem, e cujo ideal era viver sempre na companhia de Aleixo, do ingrato Aleixo…

A figura do rapazinho, rechonchuda e nédia, esvoaçava-lhe na imaginação provocadoramente, seduzindo-o, arrastando-o para um mundo de gozos, para uma atmosfera de lubricidade, para o silêncio misterioso de uma existência devotada ao amor clandestino, ao regalo soberano da carne , a todos os delírios de uma paixão que chegava à loucura.

A ausência aumentava-lhe o desespero, aquela vida triste de hospital enchia-o de aborrecimentos, era um castigo sem nome para quem, como ele, reclamava liberdade e amor – liberdade absoluta de proceder conforme o seu temperamento, amor físico por uma criatura do mesmo sexo que o seu, extraordinariamente querida como Aleixo… Nunca mais tivera notícias dele, nunca mais o vira, nunca mais haviam trocado um simples olhar…

Entretanto, quê de recordações povoavam-lhe o cérebro, à noite, quando, só ele Bom-Crioulo, d’olhos abertos no escuro, fitando o teto da enfermaria, velava, ele só, ali dentro! Quê de recordações, meu Deus! Via, como se estivesse vendo na realidade, as formas do grumete, o seu olhar azul e a face branca, o quartinho morno da Rua da Misericórdia, trepado, lá cima, no sótão, à beira do telhado, a cama de lona, o retrato do imperador, pregado à parede, muito sério, com um ar de suprema bonomia, e tudo que o cercava no voluptuoso ambiente, onde vivera tantos dias de felicidade… Ficava horas e horas pensando, horas e horas mergulhado numa abstração vagarosa, num êxtase calmo, recordando, capítulo por capítulo, a história de seu amor. Daí um profundo e inexplicável desgosto, uma idiossincrasia especial feita de ciúme e de ternura dolente. Imaginava cousas de homem que perdeu o juízo: – Aleixo ainda o estimaria? Não, com certeza. Se ainda o estimasse, tê-lo-ia procurado, onde quer que ele, Bom-Crioulo, estivesse; mas Aleixo nunca mais se importara, desde o dia da separação. Quem sabe? novos amores…

O negro enchia-se de ódio ao mesmo tempo que sentia aumentar dentro do coração o desejo de possuir eternamente o rapazinho.

Desejava-o, sim, mas virgem de qualquer outro contato que não fosse o dele, queria-o como dantes, para si unicamente, para viver a seu lado, obediente a seus caprichos, fiel a um regimen de existência comum, serena e cheia de dedicações mútuas.

Era-lhe impossível abandonar o grumete; e agora principalmente, agora é que esse amor, essa obsessão doentia redobrava com uma força prodigiosa impelindo-o para o outro, acordando zelos que pareciam estagnados, comovendo fibras que já tinham perdido antigas energias. o Bom-Crioulo da corveta, sensual e uranista, cheio de desejos inconfessáveis, perseguindo o aprendiz de marinheiro com quem fareja uma rapariga que estréia na libertinagem, o Bom-Crioulo erotômano da Rua da Misericórdia, caindo em êxtase perante um efebo nu, como um selvagem de Zanzibar diante de um ídolo sagrado pelo fetichismo africano – ressurgia milagrosamente.

Ele ali se achava no hospital, abandonado e só, gemendo tristezas inconsoláveis, arrastando os farrapos de sua alma, ganindo – pobre cão sem dono – blasfêmias contra a sorte que o desligara de Aleixo, contra Deus, contra tudo!

As janelas da enfermaria davam para o mar, ficavam defronte dos Órgãos, abriam para o fundo melancólico da baía. Na sala umas dez camas de ferro, colocadas em ordem, simetricamente imobilizavam-se com os seus cobertores de lã vermelha dobrados a meio e pondo uma nota viva de sangue na brancura dos lençóis. Aí, como em todos os alojamentos do hospital, predominava um cheiro erradio de desinfetantes, o vago odor característico das casas de saúde e dos necrotérios, insuportável, às vezes, como uma exalação de sepultura aberta. Os doentes, em seu uniforme branco de algodão, erguiam-se e tinham licença para recrear fora, nas dependências do estabelecimento, licença especial do médico a quem estavam entregues. Cada enfermaria tinha o seu especialista. Bom-Crioulo fora recolhido à seção dos escrofulosos, à grande sala que dizia para o mar e donde se gozava um belíssimo aspecto de natureza americana. Indiferente a tudo que não fosse o grumete, cuja lembrança infligia-lhe as maiores torturas, ninguém o vira sorrir depois que baixara ao hospital.

Carrancudo, o olhar atrevido e ameaçador – fugindo à companhia dos outros, não podia esquecer, não podia apagar do espírito aquela idéia-pesadelo: o grumete nos braços doutro homem… Ah! bastava isso para tirar-lhe o sossego, para fazer dele um ente miserável, contorcendo-se nas angústias de um ciúme bárbaro. Aleixo fazia-o padecer noites inteiras, dias sucessivos, como ave que se debate em estreita gaiola de ferro. – Amava muito decerto, queria um bem louco ao pequeno, preferia-o a todas as mulheres bonitas do mundo!

Enquanto iam-lhe cicatrizando as feridas roxas do corpo tatuado pela chibata, abria-se-lhe na alma rude de marinheiro uma grande vácuo; terrível sensação de desespero acometia-o cada vez que pensava no outro, nesse grumete sem alma que o iniciara no amor e que o fazia sofrer as amarguras de uma vida de condenada… Bom-Crioulo sentia-se transformar inteiramente; alguma cousa profunda e grave, que ele próprio não sabia explicar, assim como um prenúncio fatal de desgraça, punha-o triste, arrebatava-o às alegrias da camaradagem, dando-lhe um aspecto estranho de malvadez rebuçada.

– Aquilo não era hospital, aquilo era um inferno! monologava crispando o beiço em assomos de raiva feroz. Estava-se-lhe esgotando a paciência.

Já uma vez pedira alta; se o queriam levar a capricho, então adeus!… Morria, mas não dava parte de fraco… Era homem, que diabo! e um homem deve mostrar para que veio ao mundo…

Embirrava com toda gente, afinal: – Enfermeiros brutos! Cozinheiros de frege! O próprio médico, assim que lhe dava as costas, era logo insultado.

Seu consolo nesse abandono de galé, nessa espécie de viuvez d’alma, era o retrato de Aleixo, uma fotografia de baixo preço tirada na rua do Hospício, quando ele e o pequeno moravam juntos na corveta. Representava o grumete em uniforme azul, perfilado, teso, com um sorriso pulha descerrando-lhe os lábios, a mão direita pousada frouxamente nos espaldar de uma larga cadeira de braços, todo meigo, todo petit-jesus… Bom-Crioulo guardava essa miniatura religiosamente, com cautelas de namorado, e à noite, quando se ia deitar, despedia-se dela com um beijo úmido e voluptuoso. Habituara-se àquilo do mesmo modo que se habituara a fazer o sinal-da-cruz antes de fechar os olhos. Uma superstição pueril de amante cheio de ternuras… Agora, porém, esse amuleto inestimável acompanhava-o a toda a parte. Durante o dia mesmo, ele sacava-o fora do bolso e punha-se numa contemplação mística, num vago enleio ideal, a olhar o retrato de Aleixo, como se daquele cartão inanimado e frio lhe pudesse vir um raio de amor, um luar de esperança…

Achava-o muito parecido com o original, oh! mesmo muito… Os olhos, a boca, o sorriso, o nariz… tudo! Como é que se podia, num momento, copiar assim as feições de uma criatura! Era ele, exatamente o Aleixo!

E ficava admirado, ficava idiota, perdia a cabeça, quando seus olhos caíam sobre o pequeno “registro”… Ria-se, às vezes, para ele, sem que ninguém visse, retirado para um cano obscuro, longe dos outros.

E cada dia que passava era como se fosse um ano, um século, uma eternidade!

Lembrou-se de pedir a alguém que lhe escrevesse um recado ao grumete, duas palavras, uma linha…

Talvez ele nem soubesse onde estava o Bom-Crioulo… Falou a um rapazinho empregado no hospital: era favor, sim? um favorzinho… E ali mesmo, na enfermaria, perto da janela que olhava para os Órgãos, quase ao escurecer, traçaram estas palavras:

“Meu querido Aleixo

Não sei o que é feito de ti, não sei o que é feito do meu bom e carinhoso amigo da Rua da Misericórdia; Parece que tudo acabou entre nós. Eu aqui estou no hospital, já vai quase um mês, e espero que me venhas consolar algumas horas com a tua presença. Estou sempre a me lembrar do nosso quartinho… Não faltes. Vem amanhã, que é domingo.

Teu

Bom-Crioulo”

Somente isto. – Queria ver agora como se portava o “senhor Aleixo”, se ainda o estimava, se era o mesmo da corveta, o mesmo da Rua da Misericórdia, meigo e dócil, carinhosos e reconhecido.

No dia seguinte, pela manhã cedo, o primeiro escaler que largou da ilha para a terra conduzia o bilhetinho cautelosamente fechado, escrito numa garatuja desigual, tortuosa, indecifrável, que o empregado traçara ao crepúsculo, defronte do mar e à pressa.

O negro ficou ansioso pela resposta, numa inquietação de namorado que espera o desejado momento de abraçar a sua ela, contando as horas minuto por minuto, frenético às vezes; quando, por uma ilusão do ouvido, julgava perceber a voz do outro, animado agora e depois completamente desanimado, à proporção que as horas iam passando, fazendo cálculos ideais, balbuciando monólogos imperceptíveis, indo e vindo pelos corredores, pelas dependências do hospital como um idiota, como uma pessoa inconsciente. – E se ele não viesse? Ah! decididamente é porque já não o estimava: é porque o desprezava. Mas, ao menos, havia de responder fosse o que fosse.

Não podia acreditar que ele, sempre tão amável, tão bom e solícito, rasgasse o bilhete sem dar uma respostazinha, um sim ou um não. Qual…

Tinha penteado o cabelo, mudado de roupa, e de instante a instante fazia uma chegada ao espelhinho, ao seu miserável caco de espelho, um traste que possuía no fundo da maca.

Passou a hora do almoço, chegou a hora do jantar, entraram e saíram marinheiros, a sineta badalou novas baixas, tocou meio-dia, e nada! nem sinal de Aleixo, nem sombra dele! – Era mesmo para uma pessoa danar! Se não quisesse ir, dissesse!

Começava a perder a esperança. – Amigos! fie-se a gente em amigos!…

Crescia-lhe a inquietação moral, crescia-lhe o desespero como uma onda que vai pouco a pouco intumescendo, empolando-se, até se desfazer em espuma, quebrar-se de encontro à rocha… – Não almoçara, não jantara, e o resultado era aquele: o senhor Aleixo divertia-se!

E quando as corvetas da esquadra fizeram sinal de “arriar a bandeira”, quando o portão do hospital fechou-se às visitas, uma tempestade de ódio levantou-se no interior daquele homem capaz de todas as dedicações e de todos os horrores.

Bom-Crioulo rugiu interiormente; alguma cousa despedaçou-se dentro dele, tamanho foi o abalo do seu corpo. Entrara-lhe no espírito a convicção, a certeza absoluta de que o pequeno estava com “outro”, abandonara-o. Recolheu-se à enfermaria taciturno, cheio de cólera, num delírio de raiva surda, numa febre de vingança que até lhe incendiava o rosto por fora, queimando a pele…

Veio a noite e ele não pode dormir, nem fechar os olhos.

Espojava-se na cama, de um lado para o outro, abafado, sem ar que lhe enchesse os pulmões, numa terrível crise de nervos, como se estivesse a lutar com fantasmas, ora repuxando os lençóis, ora descobrindo-se todo na agonia de uma formidável dispnéia. – Abandonado, ele! abandonado por aquele que o devia estimar como a um pai! Abandonado por Aleixo, por seu querido Aleixo!…

Parecia-lhe incrível! desespero igual nunca ele experimentara. Só lhe vinham à imaginação cousas tristes, idéias lúgubres. E, para maior infelicidade, para maior desgraça, ouviu toda a noite alguém gemer na enfermaria vizinha – uma voz de homem, grossa, abafada, inimitável, chamando pelo nome de Jesus e que a ele, Bom-Crioulo, parecia a sua própria voz de amante infeliz apelando para a suprema bondade de Deus… O desgraçado, quem quer que fosse, gemia, gemia sem trégua, cortado de dores horríveis.

Pairava na atmosfera calma do hospital um cheiro muito vivo de alfazema queimada, assim como um vago odor de câmara mortuária. Bom-Crioulo que nunca em sua vida, tivera medo, e que sempre desafiara a morte corajosamente, não pode evitar, essa noite, um calefriozinho de pavor. Houve um momento em que se revoltou contra o pobre doente que gemia. – Diabo! Não se podia dormir com aquele agouro!… Se tinha de morrer, morresse logo…

Mas, arrependeu-se: – Coitado! era algum desgraçado como ele, algum pobre marinheiro sem amigo na terra…

Os gemidos foram pouco a pouco cessando, pouco a pouco diminuindo – triste monodia que se cala no silêncio da noite. Pela madrugada sentia-se ainda o cheiro de alfazema, enjoativo e penetrante, mas o doente cessara de gemer. Quem sabe se teria morrido? Foi embalado por essa idéia desoladora que o Bom-Crioulo caiu no sono…

Davam três horas.

Nesse dia, como nos outros, a mesma preocupação, a mesma idéia fixa, obstinada e mortificante, encheu a alma do pederasta. Ele próprio se admirava de como é que “aquilo” renascera – ele que se julgava forte para não se impressionar com tolices, ele que supunha tudo fácil, tudo passageiro na vida! – Porque afinal (refletia) quando se ama uma rapariga bonita, uma mulher nova, branca ou mesmo de cor – vá! Um homem perde a cabeça, e com razão; mas, andar uma pessoa triste, sem comer, sem dormir, sem fazer pela vida, por causa de outro homem, por causa de um “individuozinho” que se abre para todo mundo – é uma grande loucura…

Mas embalde procurava iludir-se: a imagem de Aleixo agarrara-se-lhe ao espírito e cada vez o torturava mais; borboleta importuna, esvoaçava em torno dele, provocando-lhe o apetite sensual, estimulando-o como um afrodisíaco milagroso, fazendo-lhe renascerem todas as forças vivas do organismo genital, que ele julgara enfraquecidas pelo excesso, pela intemperança.

Sentia-se forte ainda para grandes cometimentos, para maiores provas de virilidade, e nenhuma criatura humana, fosse a mais bela de todas as mulheres, alcançaria proporcionar-lhe tanto gozo, tanta felicidade, num só momento, como Aleixo, o delicioso e incomparável grumete, que era, agora, o seu único desejo, a sua única ambição no mundo. Havia de o possuir, havia de o gozar, como dantes, por que não?: Morto ou vivo, deste ou daquele modo, Aleixo havia de lhe pertencer!

Começou a imaginar um meio de fugir, de abandonar o hospital em procura do grumete. – Ora, adeus! o que tem de ser sempre é! Já não podia suportar cheiro de hospital. Para castigo bastava…

Mas, como fugir? como iludir a vigilância das sentinelas? Uma vez embaixo, no cais, era fácil tomar um bote de ganho, ou mesmo ir à nado…

E os dias passavam, uns após outros, com a mesma uniformidade, cheios de monotonia, cheios do sol quente de estio, e Bom-Crioulo não achava ocasião oportuna de realizar seu plano de fuga.

Ia-se-lhe tornando cada vez mais insuportável a existência naquela espécie de convento de inválidos. Estava magro, visivelmente magro: – “estava acabado!” E que sonhos terríveis, que pesadelos! Uma noite sonhou que Aleixo tinha morrido com uma facada no coração; que ele, Bom-Crioulo, via o pequeno ensangüentado numa cama de vento, nuzinho, os beiços muito roxos… e que a portuguesa, D. Carolina, chorava perdidamente, enxugando os olhos com um grande lenço de tabaco… – Já viram que extravagância?…

E outros e outros sonhos… Se continuasse ali, naquele presídio, acabava maluco, era capaz de morrer doido. – Oh! sim, queria fugir, não tolerava mais aquilo. “-… que os pariu”…”

E todos os dias a mesma cousa, o mesmo penar, a mesma série de idéias vagas, incompletas, as mesmas oscilações, as mesmas dúvidas. Uma noite ia sendo preso, quando tentava escalar o muro do hospital…

Capítulo X

Mais tranqüilo agora, sem receio de que Bom-Crioulo o procurasse para uma vingança, identificado com a portuguesa, esquecido mesmo de certas cousas que o faziam tímido e medroso, Aleixo ia passando uma vida regalada, ora em terra, ora a bordo da corveta, sem outros cuidados que não os da sua rude profissão. Estava gordo, forte, sadio, muito mais homem, apesar da pouca idade que tinha, os músculos desenvolvidos como os de uma acrobata, o olhar azul penetrante, o rosto largo e queimado. Em pouco tempo adquirira uma expressão admirável de robustez física, tornando-se ainda mais belo e querido. A portuguesa, essa vivia dele; amava-o, adorava-o!

Ah! era muito capaz, ela, de fazer uma loucura por causa do seu bonitinho! – Quando Aleixo vinha de bordo, nada lhe faltava naquele pobre sobradinho da Rua da Misericórdia. Tudo ela guardava para o seu formoso marinheirito: eram frutas, doces, comidas especiais, quitutes à portuguesa, isso, aquilo, aquilo outro… Ela mesma batia, engomava a roupa dele com um melindroso carinho de mãe amorosa, dobrando as camisas, perfumando-as de alecrim para ele mudar quando viesse do trabalho. Como tudo mudara naquela casa depois que o negro saíra! O sótão, o misterioso sotãozinho estava abandonado, Aleixo não queria saber dele, odiava-o, porque ali é que se tinha feito escravo de Bom-Crioulo, ali é que “tinha perdido a vergonha”. O pobre quarto era como um lugar de maldições: vivia trancado à chave, lúgubre e poeirento. D. Carolina raríssimas vezes abria-o, isso mesmo quando tinha de recolher algum traste velho, algum móvel sem préstimo. O retrato do imperador, a cama de lona, os cacaréus de Bom-Crioulo e do grumete, aquilo tudo que dantes fazia o encanto do dois amigos tinha desaparecido. Nada restava agora daquele viver comum.

– E se o negro vem por aí um belo dia? imaginou Aleixo, receoso.

– Qual vem, qual nada! fez a portuguesa com um gesto de profunda convicção. Bom-Crioulo já nem se lembra de ti; anda na bilontragem;

o que ele queria era te desfrutar.

E logo:

– Se vier, é a mesma cousa. Ninguém morre de careta. Diz-se-lhe que os engenheiros proibiram morar no sótão; que o teto ameaça desabar…. Inventa-se…

E os objetos de Aleixo, somente os dele, foram colocados na alcova da portuguesa, embaixo, no primeiro andar. De então em diante passaram a dormir juntos, como um casal, na mesma cama larga. E ninguém pisou mais no sotãozinho, agora transformado em depósito de móveis inúteis, coberto de pó, abrigo de insetos, ninho de ratos.

Há quase um mês que isso durava, e, longe de se aborrecer, Aleixo sentia, pelo contrário, uma inabalável e profunda afeição por D. Carolina, exigindo até que ela não recebesse mais o barbaças do açougue. Queria-a para si, unicamente para si, ou estava tudo acabado!

Ela procurou convencê-lo que o sujeito, o Man’el, era um tipão “necessário”, porque lhe dava mesada, pagava o aluguel do sobrado: uma pechincha! Quanto a ser homem, ora! o “bonitinho” ficasse descansado: não havia perigo…. Man’el era um pobre coitado, uma criatura sem forças, um porcalhão…

Mas Aleixo indignou-se: – Não senhora, não admitia outro homem!… Ela bem podia trabalhar honestamente e ganhar dinheiro para o aluguel. Não senhora, ou ele, Aleixo, ou o barbaças.

  1. Carolina riu e protestou não receber mais o Man’el. Haviam de viver “honradamente”!

Aleixo ficou muito satisfeito, muito orgulhoso, muito convencido.

Mas a verdade é que, se o açougueiro não continuasse a fornecer carne e a pagar o aluguel do sobradinho, tanto ele como a portuguesa teriam renunciado àquele amor.

– Nem o Man’el sabe do bonitinho, nem o bonitinho sabe do Man’el, pensava D. Carolina.

E tudo ia marchando sem atropelos – dourada embarcação em mar de rosas…

… Vai senão quando chega o bilhete do negro: – Meu querido Aleixo…

  1. Carolina passou os olhos com sofreguidão, correndo logo à assinatura, e, ao deparar com o nome do Bom-Crioulo meneou a cabeça desdenhosamente. Depois releu aquelas palavras tocadas de amor e de saudade, e ficou um ror de tempo no meio da sala, em pé, como se houvesse enlouquecido.

Seriam onze horas; – uma manhã quente de dezembro, cheia de luz e de poeira.

Tinha acabado de almoçar, como de costume, o seu bife e o seu café com leite, quando bateram:

Era o bilhete do negro, do “maldito”!

Aleixo tinha ido para bordo naquela manhã e só devia regressar no outro dia. – Felizmente, meu Deus, felizmente o “bonitinho” não estava em casa, porque, então, podia se impressionar…

Passou um último olhar no papel, como se quisesse decorar o recado, e fê-lo em miuçalhas atirando os bocadinhos no caixão do cisco. – Ora, adeus! aquilo não servia para nada!

Mas ficou pensativa, cheia de um vago e misterioso pressentimento que lhe fazia bater o coração. Assaltaram-lhe idéias horrorosas de crimes, de homicídios de sangue; relembrava casos que tinham alvoroçado o Rio de Janeiro, casos de ciúmes, de traições… Na Rua do Senhor dos Passos um sargento esfaqueara uma pobre “mulher da vida”; encontrara-a com outro… A polícia correu ao lugar do sinistro, mas o assassino. como era noite, evadira-se, deixando o cadáver da rapariga crivado de golpes, rubro de sangue. Lembrava-se também de outro caso medonho; fora na Rua dos Arcos: o assassino cortara a mulher em bocados como se esquarteja uma rês. O povo correra em massa para ver o espetáculo; dizia-se até que a vítima era uma espanhola de alto bordo chamada Lola.

Tudo isso vinha-lhe à imaginação desordenadamente, esfriando o seu amor, enchendo-a de receios, de um medo pueril, que era como um aviso de desgraça próxima.

Passou o dia sem fazer nada, inquieta, ora na alcova, deitada, a pensar, calculando o futuro, rememorando uma cousa ou outra, suspirando pelos bons tempos da sua mocidade, ora nos fundos da casa, indo e vindo como tonta: – “que não se podia com o calor de dezembro, uf!…”

Ficou muito admirada quando ouviu bater duas horas: – Ainda! Jesus, que dia longo! E nem roupa havia para lavar, nem um servicinho, nem uma distração… Era contra seus hábitos aquilo: não podia estar em pé sem fazer cousa alguma, Que ferro!

Não lhe saía da cabeça o bilhetinho do negro que ela espedaçara. – E não é que o tal Bom-Crioulo ainda se lembrava do Aleixo! Grandessíssimo pederasta! Nunca supusera que uma paixão amorosa de homem a homem, fosse tão duradoura, tão persistente! E logo um negro, Senhor Bom-Jesus, logo um crioulo imoral e repugnante daquele!

Entrou pela noite com a mesma inquietação, com o mesmo receio vago e indefinido, quase arrependida de se ter metido com o Aleixo. Bem que estava sossegada no seu cantinho da Rua da Misericórdia, vivendo como Deus queria, sem se incomodar. Afinal de contas, o grumete era uma criança e ela uma senhora de idade…

E logo, refletindo: – Ah! mas ninguém está livre: homem e mulher são como fogo e pólvora … Assim mesmo quarentona, ela era mulher, tinha sangue nas veias e um coração para sentir…

Bateu as portas, mais cautelosa que nunca, revistou o quintal, e foi deitar muito cedo, pensando em Bom-Crioulo, no Aleixo e nas loucuras da humanidade. Quase toda a noite ouviu rodarem os bondes. Fazia um grande calor abafado de estufa, e ela não podia conciliar o sono, adormecer tranqüilamente; fechava os olhos em vão, para tornar a abrir, no mesmo instante, sufocada, agitada por um nervoso ridículo de mulherzinha histérica, ela, um mulherão daquele, gorda, forte e sadia!

Nenhuma posição lhe agradava na cama: um mal estar, uma asma, que lhe tirava o fôlego e o sono. Era a primeira vez que tal cousa lhe sucedia. Debalde escancarou as portas da alcova – a que dizia para a sala de jantar e a do corredor. Qual! A mesma falta de ar, o mesmo inferno. E sempre a lembrança do negro e do outro atormentado-a como um pesadelo cruel. Via Bom-Crioulo entrar pela casa bêbedo, os olhos em chama, segurando uma navalha de marinheiro, brandindo a arma, cheio de ódio feroz, terrível, hediondo, e, de repente, cair sobre o grumete, espumando ciúme, cortando-lhe de navalhadas; e parecia-lhe estar vendo o outro rolar no chão sem fala, num rio de sangue, morto!… E depois a polícia, gritos de socorro, vergonhas, curiosos que vinham ver…

Bateu duas horas da madrugada. Já se não ouviam os bondes. Um silêncio absoluto na rua, e, dentro, no sobrado, a mesma quietação dormente e abafada – uma calma infinita de subterrâneo.

Mais um quarto de hora e portuguesa caiu no sono profundamente – um sono de pedra, inabalável como o sono eterno…

Como de costume, Aleixo “folgou” no dia seguinte, e, como de costume, veio direto à casa, muito leve, muito desobrigado, no seu uniforme azul, capa branca no boné, oloroso e risonho. D. Carolina estava para dentro, às voltas com a cozinha. Eram três horas da tarde. O grumete estranhou que a porta da rua estivesse fechada àquela hora, e bateu com força. – Oh! isso era novidade!…

A mulher correu logo a ver da janela: – Seria o bonitinho?

Houve um pequeno rebuliço na vizinhança. Embaixo, na loja, apareceu uma cabeça negra, toda curiosa, fingindo que chegava ao postigo naturalmente, por acaso… O caixeiro da padaria estirou o pescoço, de dentro do balcão.

  1. Carolina, mal reconheceu o marinheiro, veio abrir logo com uma exclamação de surpresa: – Oh! não o esperava tão cedo!

– Tão cedo? Pois ainda achava cedo? É boa: quase noite!

– Oh! filho são duas horas…

– Duas não senhora: já vai para as quatro.

E foram subindo a escada, ela com o braço no ombro do rapazinho, ele muito sério, muito desconfiado, os olhos baixos, uma expressão melancólica no rosto púbere. – Que lembrança fechar a porta da rua àquela hora!..

E a portuguesa beijando-o na face:

– Não te zangues, meu jasmim, não te zangues. Porta fechada livra de tentações… Deu-me uma cousa, um medo…

– Qual tentações, qual medo! Você já não é criança para andar se escondendo… Isso até faz a gente desconfiar.

Mas D. Carolina não queria dizer a verdade, os seus escrúpulos com relação à Bom-Crioulo, o caso do bilhete. Para que sobressaltar Aleixo? Ele bem sabia que o outro não o abandonava facilmente: negro é raça do diabo, raça maldita, que não sabe perdoar, que não sabe esquecer… Aleixo bem conhecia o gênio de Bom-Crioulo. De resto, o caso do bilhete era uma tolice em que ninguém devia pensar: – Cousas de negro…

– Olha, ó pequenino, juro-te que não fecharei mais a porta da rua. Sossega, ouviste? sossega…

Estavam na alcova. O grumete corria o olhar nos móveis, na cama, pelo quarto e pela sala, como quem procurava descobrir vestígios de infidelidade. A mulher ajudava-o a se despir, tomando-lhe a roupa úmida de suor, toda cheia de cautelas para que ele não se constipasse. – Olha, muda a camisa; olha, toma um o pouquinho de aguardente; olha, cuidado com o vento; olha os chinelos…

Nunca vira tanto carinho, zelo tanto. A portuguesa multiplicava-se em dedicações, em ternuras quase infantis, desejando até que ele a maltratasse, que ele a espezinhasse. O olhar azul de Aleixo tinha sobre ela um poder maravilhoso, uma fascinação irresistível: penetrava o fundo de sua alma, dominando-a, transformando-a num pobre animal sem vontade, queimando-a como uma brasa ardente, impelindo-a para todos os sacrifícios… Perto dele, fugiam-lhe todos os receios, todas as dívidas: era capaz de atirar-se a um homem, de morrer na ponta de uma faca, de assassinar, de fazer loucuras!

Nesse dia principalmente, ao contrário da véspera, em que ela, no meio de seus temores, desejava ver-se longe do rapazinho, nesse dia principalmente achava-se de uma bondade maternal: a amizade convertera-se-lhe numa espécie de fanatismo, numa adoração religiosa. Beijava-o a cada instante, meiga, cariciosa e feliz, como se todas as virtudes estivessem reunidas ali, no olhar de Aleixo, nesse olhar ideal, de uma doçura infinita.

– Tu és o meu santo, ó pequenino, dizia ela; tu és a minha única felicidade neste velho mundo tão cheio de misérias…

E abraçava-o, rilhando os dentes, nervosa, excitada, oferecendo-se ao rapazinho numa fúria sensual e mórbida.

– Mas, que diabo é isso, filha, estás louca? ralhava o grumete cuja fisionomia, desde que chegara, não se abrira num sorriso amável: – que desespero é esse?

– Oh! mas eu te quero tanto bem, meu queridinho, eu te amo tanto!

Ele não disse palavra. O jantar correu frio. D. Carolina retraiu-se por sua vez, humilhada com as maneiras de Aleixo, porque ele, seco e indiferente, não lhe fazia o menor agrado. Ambos permaneceram calados, como duas pessoas estranhas na mesa de um hotel. Mas, para o fim, ela não pode suportar aquele silêncio incômodo.

– Que te fiz eu, ó filho, dize, que te fiz eu? Não me encontraste só, em casa, trabalhando, mourejando? Que te fiz eu?

Aleixo continuava mudo, os beiços agitados por um tremor convulso, o olhar na parede.

– Vamos, dize, que te fiz eu? insistiu a portuguesa tocando-lhe no braço. Hás de ter alguma razão para te zangares…

Ele, porém, não se movia, não dava resposta, impenetrável na sua mudez obstinada e cruel, que estava quase arrancado lágrimas à mulher. Então D. Carolina sentiu um desespero n’alma, e, erguendo-se triste, foi-se para a alcova, maldizendo-se, lamentando a “sua desgraça”: – Que era uma infeliz, que todos a desprezavam, que estava cansada de sofrer, que a vida era um inferno, que preferia morrer!

– Para que fechou, então, a porta da rua? tornou ele. Há algum mistério nesta casa? A senhora não me esperava hoje?

– Ó filho, pois eu já não te disse que fechei apor causa de um medo que me assaltou de repente?…

– Que medo, senhora, que medo! Para tudo há desculpa. A senhora não está procedendo bem…

  1. Carolina tinha se deitado na cama, fungava, limpando os olhos com o avental, muito queixosa.

– Donde é que veio esse medo hoje? Todos os dias a senhora não abre a porta, não a deixa escancarada?

– Está você fazendo barulho à toa, por uma ninharia… Ou o homem tem confiança na mulher ou não tem. Você nunca me encontrou com outro, para fazer mau juízo da gente…

– Bom, mas, então, seja franca, explique-se. Por que é que fechou a porta da rua?

Havia já um princípio de reconciliação. Aleixo aproximara-se da cama sensibilizado pela voz magoada da portuguesa que lhe botava uns olhos muito ternos, muito cheios de humildade e resignação.

– Queres que eu te diga porque é que fechei a porta da rua? Pois senta-te pr’aí que eu te vou dizer. Calei-me por tua causa mesmo, para não te dar cuidado.

O grumete imaginou logo uma série de cousas desagradáveis: tentativas de roubo, ameaças e prisão, violências, um horror! Estava longe, porém, de pensar em Bom-Crioulo; a seus olhos o negro morrera, desaparecera; ninguém lhe dava notícias dele; decididamente nunca mais voltaria; talvez andasse nalguma viagem, mar afora, nalgum cruzeiro. ..

E a portuguesa narrou o caso do bilhete, que ela rasgara., “porque não valia a pena a gente se amofinar…”

Aleixo ouviu tudo curioso, a face na mão, derreado na cama larga.

– E onde está ele? perguntou vivamente.

– No hospital de marinha, na ilha, com alguma doença… Quem o não conhecer que o compre.

Aleixo não quis dizer nada; mas a história do bilhete comovera-o, enchera-o de uma vaga melancolia: – Bom-Crioulo ainda se lembrava!…

Pensou em visitar o negro, talvez fosse mais prudente…

– Que acha?

  1. Carolina reprovou: – Jesus, que asneira! Isso era o mesmo que uma pessoa se atirar do Corcovado. Não, nunca!

– Deixa-o lá, filho: pouco a pouco ele irá se esquecendo; faze pela vida e deixa-o lá. Vamos indo muito bem sem ele. Nada!

– E se ele entrar por aqui adentro um belo dia?

– Qual!… Por isso é que eu trago a porta da rua fechada…

– Bom, murmurou o grumete, erguendo-se. A vida é esta!…

– E ninguém deve ir contra as leis da Providência, resumiu D. Carolina dogmaticamente.

Serenara a pequena discórdia. Estava tudo explicado. Aleixo reconhecera sua injustiça para com a portuguesa, e ela o perdoara, sempre boa, sempre generosa. Do alto do sobradinho viam ambos, agora, aconchegados, felizes, rindo, os que passavam embaixo, na rua. Que importava Bom-Crioulo? Que importava a febre amarela? Em todo o Rio de Janeiro, em todo o mundo só havia duas criaturas felizes: ele, o grumete, e ela, a portuguesa – felizes como Adão e Eva antes do pecado, felizes como todos os casais que se amam…

Saíram juntos, a dar uma volta, nessa noite. Aleixo propôs irem ao Passeio Público tomar um sorvete, um refresco, uma bebida qualquer. Não se podia estar em casa com o calor! D. Carolina lembrou a Guarda-Velha: – Não seria melhor irem à Guarda-Velha, à fábrica de cerveja? Havia música também…

Mas o grumete ponderou que na Guarda-Velha estava-se muito à vista, iam marinheiros de bordo, havia muita gente. O Passeio Público era maior e menos freqüentado: tinha-se mais liberdade. E depois era só tomar o bondinho da Lapa.

– Oh! vai com a roupa de marinheiro! suplicou D. Carolina, vendo-o enfiar um jaquetão à paisana. É mais fresca e dá respeito…

– O respeito não está na roupa, doutrinou Aleixo, abotoando-se; é respeitado quem procede bem. Deixa-me ao menos variar!

Ela gostava tanto de o ver em seu uniforme, “todo bonitinho”, como uma pintura, chamando a atenção dos burgueses, admirado, invejado, gabado. Assentava-lhe muito mais a roupa de marinheiro; sem comparação! O que era um soldado à paisana? Um homem como qualquer outro, um pobre-diabo que ninguém respeitava. Oh! a farda…

– Mas eu não quero, filha, não gosto. São cousas…

– Bom, não precisa brigar. Vai como quiseres.

Estava escurecendo. No interior do sobradinho já se não distinguiam os objetos. Fora, na rua, acendiam-se os primeiros bicos de gás e havia grande calma, uma sonolência profunda no quarteirão.

– Creio que vamos ter chuva, disse Aleixo dando um salto à janela.

Com efeito, nuvens escuras alastravam-se pelo céu, baixas, pesadas, rolando como fumarada negra de incêndio. O tempo refrescava. Corria mesmo uma aragenzinha branda e acariciadora. Uma voz humana imitava guinchos de locomotiva para os lados da Misericórdia.

Passava o bonde da Lapa. D. Carolina e Aleixo embarcaram, ela muito alegre, muito expansiva, na sua toilette improvisada, que lhe dava um ar bonachão e honesto, ele um pouco triste, chapéu de palhinha derreado para a nuca, mostrando o cabelo penteado em pastas, uma gravata cor de sangue – aprumado e circunspecto.

O bonde tocou.

Capítulo XI

Um desespero surdo, um desespero incrível, aumentado por acidentes patológicos, fomentado por uma espécie de lepra contagiosa que brotara, rápido, em seu corpo, onde sangravam ainda, obstinadamente, lívidas marcas de castigo – um desespero fantástico enchia o coração amargurado de Bom-Crioulo. Não lhe restava mais esperança que Aleixo fosse vê-lo ao hospital: estava desiludido. O grumete abandonara-o, esquecera-o, e nem ao menos dera-lhe uma satisfação! – Atrás dos apedrejados vem as pedras… Uma pessoa, no fim das contas, era obrigada a tornar-se ruim, a fazer todas as loucuras… Isso de a gente pensar na vida, sacrificar-se, proceder bem, não vale nada, é uma grande tolice, uma grande asneira.

Tinha momentos de calma, procurando afastar do espírito qualquer idéia de vingança, de desforra, como quem se julga superior às pequeninas misérias da vida. Durante o dia jogava a dama com o tal empregado que lhe fizera o bilhete, resignado, sem cólera, prazenteiro mesmo, não perdendo, entretanto, aquela vaga expressão de melancolia que boiava em seus olhos traindo mistérios d’alma…

Era à noite, porém, que o caso de Aleixo voltava-lhe à imaginação, enchendo-a de fantasmas, povoando-a de sonhos, com a insistência de um remorso -à noite, nas horas de repouso, quando tudo era silêncio no hospital.

Positivamente não se conformava com a idéia de que o Aleixo o abandonara por outro… E quem seria esse outro? Algum marinheiro também, decerto, algum “primeira-classe”… Era muita ingratidão, muita baixeza! Abandoná-lo, por quê? Porque era negro, porque fora escravo? Tão bom era ele quanto o imperador!…

Consumia-se em reflexões pueris, verberando o procedimento de Aleixo, uivando pragas que ninguém escutava, dardejando cóleras, tempestuoso e medonho na sua mudez alucinada. Eram noites e noites de um sonambulismo fantástico e enervante, de uma obsessão rude e esmagadora. E quando, pela madrugada, vinha-lhe o sono, era impossível dormir, porque vinham-lhe também o que ele chamava “as coceiras”, um horroroso prurido na pele, no corpo todo, como se o sangue fosse esguichar pelos poros numa hemorragia formidável ou como se estivesse crivado de alfinetes da cabeça aos pés; – não podia fechar os olhos, nem tranqüilizar o espírito. Seu desejo era sair como um doído por ali fora, meter-se num banho e ficar n’água um ror de tempo agachado, nu em pêlo. Parecia uma maldição! Rebentavam-lhe feridas: havia uma grande aberta no joelho esquerdo. Não atinava com aquilo. Talvez alguma praga injusta… Era horroroso! Levar um homem a noite inteira sem dormir, pensando numa cousa, noutra, e, ainda por cima, o diabo de umas coceiras que punham a gente doida!

Então é que tinha raiva de Aleixo, então é que se revoltava contra o grumete, o “causador de todos os seus males”. Naquele estado aflitivo de desespero de corpo e d’alma ia-se-lhe a razão – Bom-Crioulo só tinha uma idéia: vingar-se do efebo, persegui-lo até a morte, aniquilá-lo para sempre!

Era um misto de ódio, de amor e de ciúme, o que ele experimentava nesses momentos. Longe de apagar-se o desejo de tornar a possuir o grumete, esse desejo aumentava em seu coração ferido pelo desprezo do rapazinho. Aleixo era uma terra perdida que ele devia reconquistar fosse como fosse; ninguém tinha o direito de lhe roubar aquela amizade, aquele tesouro de gozos, aquela torre de marfim construída pelas suas próprias mãos. Aleixo era seu, pertencia-lhe de direito, como uma cousa inviolável. Daí também o ódio ao grumete, um ódio surdo, mastigado, brutal como as cóleras de Otelo…

Aleixo com outro homem! Esta idéia fazia-o enlouquecer de ciúme, torturava-o como um sofrimento agudo, como uma chaga viva e dolorosa.

Que felicidade, que alívio, que suprema ventura, quando pela manhã, já dia claro, o sol, tépido e loução, entrava cheio de mistério pela enfermaria dentro, e recomeçava em todo o hospital a bela vida!…

Foi justamente numa dessas noites e obsessão e desespero que Bom-Crioulo galgou a muralha do estabelecimento e abalou vertiginoso para a Rua da Misericórdia, cego, às tontas, como quem vai precipitar-se num abismo.

Era um sábado feriado. Entre os marinheiros que tinham ido ao hospital visitar os amigos, Bom-Crioulo reconhecera o Pinga da corveta, seu companheiro de viagem outrora – o Pinga, o Herculano, que fora surpreendido a praticar uma ação feia e deprimente do caráter humano, junto à amurada, na proa, certa noite…

– Ó Herculano, vem cá!

– Oh! Bom-Crioulo!

– Então, que é feito de ti? perguntou o negro, interessado, conduzindo o outro pelo braço. Onde é que estás agora?

Herculano estava mudado, já não era o mesmo Pinga retraído e esquivo, com olheiras, falando pausadamente. Estava outro, admiravelmente outro, O Herculano – gordo, rosado, o olhar vivo e brilhante, sem melancolia, nem sombra alguma de tristeza. Perdera a antiga palidez que lhe dava um arzinho pulha de cousa à-toa, falava desempenado, alto, e ria, como uma criança, por ninharias. – “Onde estava agora? Na corveta, sempre na corveta.”

– Ainda? fez Bom-Crioulo admirado, ocultando a satisfação que lhe fazia a resposta. Ainda estás na corveta, homem de Deus?

– Por que não? Aquilo é que é navio. Depois que saiu do dique, nem parece a mesma. Faz gosto vê-la. Toda pintadinha, toda nova, que é ver uma tetéia.

– Mas, como é que se muda assim, rapaz? Tu, que eras tão pobre de sangue, estás me parecendo bonito, homem!

– Qual o quê! sorriu Herculano. Já estive mais gordo…

Ia reparando em Bom-Crioulo. Como estava acabado o negro! Viam-se-lhe os ossos da cara; tinha uma grande cicatriz, uma espécie de ruga funda no pescoço…

– Estás doente? perguntou.

– Ando com umas coceiras, umas feridas no corpo… Diz que é sarna.

– Ah!… Porque estás magro, meu velho, estás na espinha. Que diabo!

E depois de uma pausa.

– Eu vim ver o Anacleto, que está com uma carregação… Não sabias que tinha baixado também, que andavas por aqui. Fazia-te longe…

– É verdade, há quase um mês nesta desgraça, me acabando!

Chegaram à enfermaria. Os doentes olhavam-nos, palrando, em grupos, nos corredores, nas dependências do hospital. Alguns convalescentes jogavam a peteca num largo donde se avistava o mar.

Ia para as seis da tarde. Os navios de guerra, imóveis e embandeirados, tinham um aspecto festivo. Ouviam-se toques de corneta ao longe e sons de música em terra, na cidade. Barcas de Niterói cruzavam-se no meio da baía calma. Por toda a parte, no mar e em terra, um frêmito de alegria universal e domingueira, uma estranha alacridade perdendo-se ao longe, nas primeiras névoas do crepúsculo. Já se não via o disco de ouro do sol; a claridade ia pouco a pouco tornando-se difusa, esmaecida, langue, como uma manhã de brumas. O perfil das embarcações, o contorno das montanhas, torres e chaminés – tudo mergulhava na noite que descia palpitante de mistérios…

Ao Herculano pouco se lhe dava que anoitecesse, porque estava de folga; daí, do hospital, iria para terra num bote de ganho. Mas era preciso não demorar muito, sob pena de fechar-se o portão do estabelecimento, e ele amanhecer naquele “cemitério de vivos”…

Bom-Crioulo tranqüilizou-o: – Ainda era cedo,. Que pressa, que vexame!

E muito jeitoso, muito amável:

– Senta um pouco. Nada de cerimônias: isto aqui é meu, é teu, é do Governo. Podemos conversar à vontade.

Herculano correu o olhar pela enfermaria, pelo chão, pelo teto, pelas camas alinhadas. De resto, não era má vida… Boas camas, bom passadio, liberdade…

– É porque ainda não passaste uma noite aqui dentro, meu velho. Um inferno é o que isto é. Só mesmo para quem não pode agüentar-se. Boa cama temos nós a bordo.

– Pode-se fumar? perguntou o outro.

– É proibido, mas fuma lá teu cigarro.

Tinham se sentado na cama do negro, muito encardida. – “Era só um instantinho”, avisou o grumete.

E Bom-Crioulo puxou conversa:

– Dá-me notícias daquela gente, ó Herculano. Como vai o Aleixo, como vai o guardião Agostinho, como vão todos?…

– Bem. O guardião Agostinho sempre malvado, aquele cabra – malvado e “implicante”. Eu, felizmente, não lhe tenho caído nas unhas; felizmente! O Aleixo, aqui pra nós, anda muito metido com os oficiais. Vive na praça d’armas, é quem dá corda no relógio, é quem arruma os camarotes, quem faz tudo. Está um pelintra, filho, um grande pelintra: é o nenenzinho de bordo. Sai quando quer, entra quando quer…

Bom-Crioulo pigarreou.

– Eu, por mim, não troco palavra com ele, continuou Herculano. Estamos de mal, por uma asneira, por uma tolice… Outro dia quase nos pegamos. Dizem até que está amigado, em terra, com uma rapariga.

– Amigado!?…

– Sim, amigado, um pitorra daquele. É o que dizem, eu não sei.

Bom-Crioulo tomava sentido, cheio de interesse, dominando-se, abafando uma golfada de palavrões, uma onda de cólera, que estava quase a irromper-lhe da boca. Desesperava. Na tépida penumbra da enfermaria o seu olhar tomava uma expressão dolorida e úmida, como o olhar de um náufrago perdido no círculo imenso das águas. Era uma tempestade surda e impenetrável, um desabar de todas as crenças, de todas as ilusões, de todas as forças que mantém o equilíbrio de uma natureza humana em revolta…

– O Sant’Ana, esse desertou, foi-se embora, foi-se embora, ninguém sabe para onde. Também, coitado! apanhava que nem boi ladrão. Era um pobre diabo…

Trocaram ainda algumas palavras. Herculano contou episódios íntimos de bordo, muito loquaz, muito verboso; e como já fosse noite:

– Adeus, Bom-Crioulo, que eu me vou chegando. Estimo que fiques bom, hein! que fiques completamente bom. Eu lá estou, na corveta, para o que quiseres. Boa noite!

– Boa noite, murmurou o negro com uma voz triste e profunda, quase lúgubre.

Acendiam-se as estrelas no céu muito alto e de uma limpidez outonal…

Bom-Crioulo não pensou em dormir, cheio, como estava, de ódio e desespero. Ecoavam-lhe ainda no ouvido, como um dobre fúnebre, aquelas palavras de uma veracidade brutal, e de uma rudez pungente : -“Dizem até que está amigado!”

Amigado, o Aleixo! Amigado, ele que era todo seu, que lhe pertencia como o seu próprio coração: ele, que nunca lhe falara em mulheres, que dantes era tão ingênuo, tão dedicado, tão bom!… Amigar-se, viver com uma mulher, sentir o contacto de outro corpo que não o seu, deixar-se beijar, morder, nas ânsias do gozo, por outra pessoa que não ele, Bom-Crioulo!…

Agora é que tinha um desejo enorme, uma sofreguidão louca de vê-lo, rendido a seus pés, como um animalzinho; agora é que lhe renasciam ímpetos vorazes de novilho solto, incongruências de macho em cio, nostalgias de libertino fogoso… As palavras de Herculano (aquela história do grumete com uma rapariga) tinham-lhe despertado o sangue, fora como uma espécie de urtiga brava arranhando-lhe a pele, excitando-o, enfurecendo-o de desejo. Agora sim, fazia questão! E não era somente questão de possuir o grumete, de gozá-lo como outrora, lá cima, no quartinho da Rua da Misericórdia: – era questão de gozá-lo, maltratando-o, vendo-o sofrer, ouvindo-o gemer… Não, não era somente o gozo comum, a sensação ordinária, o que ele queria depois das palavras de Herculano: era o prazer brutal, doloroso, fora de todas as leis, de todas as normas… E havia de tê-lo, custasse o que custasse!

Decididamente ia realizar o seu plano de fuga essa noite, ia desertar pelo mundo à procura de Aleixo.

Inquieto, sobreexcitado, nervoso, pôs-se a meditar. O grumete aparecia-lhe com uma feição nova, transfigurado pelos excessos do amor, degenerado, sem aquele arzinho bisonho que todos lhe admiravam, o rosto áspero, crivado de espinhas, magro, sem cor, sem sangue nos lábios… Pudera! Um homem não resiste, quanto mais uma criança! Aleixo devia estar muito acabado; via-o nos braços da amante, da tal rapariga – ele novo, ela mocinha, na flor dos vinte anos -, via-o rolar em espasmos luxuriosos, grudado à mulher, sobre uma cama fresca e alva – rolar e cair extenuado, crucificado, morto de fraqueza… Depois a rapariga debruçava-se sobre ele, juntava boca à boca num grande beijo de reconhecimento. E no dia seguinte, na noite seguinte, a mesma cousa.

Bom-Crioulo desnorteava. Inconscientemente era arrastado para um mundo de idéias vagas que não o permitiam tomar uma solução pronta, definitiva. Só uma idéia conservava-se firme e clara em seu espírito: fugir, fugir quanto antes, não esperar mais nem um segundo, romper os diques de seu isolamento e amanhecer na rua, no meio da cidade, longe do hospital, “desse hospital de merda”!

Seus cálculos não podiam falhar. Deixava uma janela aberta, pretextando calor, arrumava a trouxa…- qual trouxa! nem era preciso trouxa! – e, alta noite, descia por um cabo. As janelas que davam para os Órgãos ficavam sobre um terreno anfractuoso, espécie de ladeira bronca, meio íngreme, despenhando para umas oficinas e estaleiros que havia embaixo, na ilha. Não eram, porém, tão altas que se não pudesse, embora dificilmente, com agilidade, tentar uma escalada. E Bom-Crioulo não seria o primeiro; antes dele, outros haviam desertado por ali. Contava-se de um que rolara a montanha, sendo encontrado quase morto ao pé de uma árvore, o corpo todo cheio de pisaduras, vertendo sangue pelo nariz; veio a morrer da queda, que lhe produzira uma doença grave na espinha.

O negro não teve dúvida; ergueu-se (era uma hora da madrugada), foi à casinha, para não dar a perceber, amarrou na cintura uma navalha de marinheiro que o acompanhava sempre, vestiu, por baixo da roupa branca de doente, a camisa de gola, e voltou cauteloso, perscrutando o silêncio e a escuridão. Depois, foi tudo rápido: deu volta ao cabo na janela, um cabo grosso trançado, e -… que os pariu! – saltou fora. Uma escuridão medonha na baía e um silêncio de arrepiar cabelo. Era a hora do sono forte, do sono pesado. As sentinelas bradavam, de instante a instante, o seu prolongado – alerta! que o eco repetia no mar e em terra. Nenhuma outra voz, nenhum outro sinal de vida. A cidade iluminada, estrelada de luzes microscópicas, era como vasta necrópole na lúgubre inquietação da noite.

Bom-Crioulo sentia um friozinho brando, um leve bafejo matinal arrepiar-lhe a nuca. Dirigiu-se tateando, tateando, rente com o paredão do hospital, sem olhar pra trás, sem ver nada. Tinha examinado bem o terreno antes de se aventurar; por esse modo, caminhando naquele rumo, ia direito a uma descida pouco escabrosa. Embaixo ficava o dique. era preciso muita cautela, muito jeito para não precipitar-se. Foi indo, foi indo, ora agachado, ora em pé, segurando aqui, segurando acolá, às apalpadelas, e pôde enfim -que os pariu! – chegar ao cais, à beira d’água, sem o mais leve arranhão. Dava meia hora na Candelária – uma pancada sonora e cheia, que reboou longe, soturnamente, acordando os ecos. – “Faltava atravessar o canal, pensou Bom-Crioulo, medindo com o olhar a extensão líquida que separava o arsenal da ilha. Paciência, um pouquinho de paciência. Devagar…” Encolheu-se todo por trás de um guindaste, reflexionando. – Ia dali rente para o sobrado: queria ver como estava aquilo; queria fazer uma surpresa ao senhor Aleixo. E a portuguesa? Já não se lembrava dela!… É verdade, a portuguesa?…

Um relâmpago, uma dúvida passou rápida em seu espírito, deslumbrando-o: – Qual! Não era possível!… Que tolice!…

O friozinho aumentava. O relógio da Candelária, sonoro e profundo, badalou duas horas. Bom-Crioulo ergueu a vista para o céu: – as estrelas palpitavam; a via-láctea resplandecia, branca e tortuosa, na infinita serenidade da noite. Defronte, no arsenal, erguia-se o perfil de uma grande chaminé sombria. A água marulhava no cais monotonamente, em seu eterno fluxo e refluxo. – Alerta! bradavam as sentinelas a cada instante, na ilha, no arsenal, na Alfândega, nos trapiches. Em toda parte o mesmo silêncio, a mesma quietação, a mesma clama profunda.

A noite parecia não acabar, não ter fim: era como uma eternidade. Arrastado pela maré, um objeto ia flutuando águas abaixo, vagarosamente. – Algum trapo velho, pensou o negro, talvez mesmo, quem sabe? algum “corpo”…

E nada de clarear, nada de amanhecer; já se ia impacientando! Que diabo fazia ele que não tomava uma resolução? Era para isso que tinha fugido, pra estar ali de boca aberta, caindo de sono? Mas não havia remédio, senão esperar, não havia outro jeito. Ir a nado? Qual! E as sentinelas?… Paciência, paciência…

Duas horas no relógio da Candelária. Apenas uma voz bradou, longínqua e desolada, sem eco: – Alerta!

Bom-Crioulo recostou a cabeça no guindaste, bêbedo de sono, um peso nas pálpebras, uma indisposição no corpo; e, não obstante as “coceiras”, que aí vinham-lhe subindo nas pernas, como um formigueiro, adormeceu ao rumorzinho da água no cais.

Quando ergueu a vista, momentos depois, era quase dia. Começava o tumulto de escaleres e catraieiros para os lados da Alfândega. Ouvia-se o barulho de remos e o arquejar de uma lancha deitando vapor fora. Os Órgãos, indistintos ainda na meia sombra do alvorecer, iam pouco a pouco evidenciando sua bela configuração de harmônium colossal. Uma ou outra luzinha pálida no anfiteatro da cidade. Tinha-se apagado a iluminação. No mosteiro de S. Bento um sino fanhoso vibrava matinas desde as três horas, insistentemente, num alvoroço de igrejinha d’aldeia que acordas proclamando os triunfos da cristandade. A bordo, nos navios de guerra, cornetas preludiavam o hino do amanhecer. Do outro lado da baía, em Niterói, uma névoa fina, transparente, como a evaporação de um grande lago, fraldejava as montanhas, ocultando a paisagem de um extremo a outro. E lá fora da Barra, para além do Pão d’Áçucar, um listrão cor de rosa, pouco apouco ia-se tornando mais vivo, mais fulgurante no céu lívido…

Bom-Crioulo circunvagou o olhar, muito admirado, muito surpreendido, como se estivesse num lugar estranho, e a primeira palavra que lhe veio à boca foi uma obscenidade: – “… que os pariu! Ia-se desgraçando!… Mãos à obra! Felizmente ainda não era dia claro…”

Nenhum bote, nenhuma embarcação, ali perto, no canal, O movimento era todo na vizinhança da Alfândega, no cais dos Mineiros. Passavam escaleres de guerra: Bom-Crioulo escondia-se para não ser visto. – Diabo! diabo! Tudo por causa de um grumetezinho!…

De repente, ouviu barulho n’água – aproximou-se: era um bote de ganho.

– “Até que enfim! Ora até que enfim!”

A pequena embarcação vinha-se chegando para a ilha sem toldo, remada por um galego de suíças, meio velho. Trazia à popa, no recosto do paineiro, o dístico – Luis de Camões, por cima de uma figura à óleo, que tanto podia ser a do grande épico como a de qualquer outra pessoa barbada, em cuja fronte se houvesse desenhado uma coroa de louros. Nessa infame garatuja, o poeta tinha o olho esquerdo vazado, o que, afinal de contas, não interessava ao negro.

– Quer me levar ao cais? perguntou Bom-Crioulo ao português,

– É já! disse o homem atracando. O Luis de Camões não dorme.

– Vamos.

– Pode embarcar.

– Upa!

E, com um salto, Bom-Crioulo embarcou. Estava, enfim, livre de perigo; – “… que os pariu!”

Daí a instante perdia-se no labirinto da cidade, marchando no seu passo largo, muito desenvolto, quebrando ruas, dobrando esquinas, “bordejando”…

Estava um dia lindo, lindo! Um dia de galas no azul e nas montanha, um dia e liberdade!

Capítulo XII

Quase nenhum movimento ainda na Rua da Misericórdia; sujeitos mal vestidos, operários e ganhadores, desciam com ar miserável e bisonho de ovelhas mansas que seguem fatalmente, num passo ronceiro, numa lentidão arrastada, numa quase indolência de eunucos. A vaca do leite, com as grandes tetas pesadas, um chocalho ao pescoço, ia no seu giro quotidiano, muito dócil, o ventre bojudo, uma baba a escorrer-lhe do focinho em fios d’espuma. A carrocinha do lixo, pintada de azul, andava na sua faina matinal, parando aqui, parando acolá.

Nenhum esto de vista quebrava a monotonia do quarteirão; somente o ruído dos bondes e uma ou outra voz falando alto. Pairava um cheiro forte de urina, assim como uma emanação agressiva de mictório público, envenenando a atmosfera, intoxicando a respiração. Os primeiros reflexos do sol batiam nas vidraças obliquamente acordando os moradores, colorindo a frente das casas em pinceladas de ouro, dando brilhos de cristal puro ao granito dos portais, doendo na vista com fulgurações quentes de revérbero; e já se começava a sentir um calorzinho brando, uma tepidez morrinhenta, um princípio de mormaço.

Abriam-se botequins preguiçosos, lojas de negócio, estabelecimentos de madeira, carvoarias, quitandas.

O movimento, porém, aumentava com a luz; multiplicavam-se os transeuntes numa confusão bizarra de cores e toilettes: daqui, dali, surgiam caras estranhas, fisionomias amarrotadas pelo sono, como abelhas de um cortiço.

A vida recomeçava.

Bom-Crioulo foi encurtando o passo, diminuindo a marcha, calculando a distância, lento e lento, rumo do sobradinho. Já o avistava: era o mesmo de outrora, o mesmíssimo, com as duas janelas da frente, com o seu aspecto antigo, do tempo del-rei, e lá, no alto, lá cima, no telhado, a trapeira sumindo-se, enterrando-se, dependurada quase…

Veio-lhe um não sei quê, uma saudade, como cousa que lhe entrasse n’alma, a dor de uma ingratidão: ali é que ele se juntara ao outro com uma confiança de noivos; ali é que ele tinha passado o melhor da sua vida; ali é que ele tinha aprendido a amar, a “querer bem”…

E murmurava entre dentes, banhado no eflúvio da suas reminiscências, levado pelo fio inquebrantável das doces recordações: – “Aquele sobradinho, aquele sobradinho!…”

Lembrava-se claramente, nitidamente, de quando ele e o pequeno voltaram do cruzeiro e lá foram juntinhos para o quarto de cima, onde morrera, dias antes, o português, de febre amarela. Oh! tinha tudo na cabeça; lembrava-se bem: a primeira noite, os modos ingênuos de Aleixo, a cena da vela… – tudo estava gravado em sua imaginação, tudo!

Enchiam-se-lhe os olhos d’água, turvava-se-lhe a vista, nem era bom pensar…

Bom-Crioulo sentia-se mais do que nunca abandonado, mais do que nunca lhe doía fundo o desprezo do grumete, esse desprezo calculado, proposital, voluntário, com que Aleixo o esmagava, o ludibriava impunemente. “-Ah! era assim, hein? Pois havia de lhas pagar hoje ou amanhã. A gente é como um copo d’água: vai-se enchendo, vai-se enchendo, até não poder mais!”

Faiscavam-lhe as retinas como duas brasas, como dois fogachos, por trás da névoa úmida das lágrimas; todo ele vibrava, todo ele tremia como um epiléptico: vinham-lhe cóleras, ímpetos, aflições… Quase não se podia conter diante daquela casa, que era como o túmulo mesmo das suas ilusões. Transfigurava-se, enlouquecia de ódio, espumava de cólera, de raiva, de ciúme! O aspecto das cousas, o mundo exterior, a gente que passava para o trabalho, tudo quanto seus olhos viam naquela hora de amargura, o próprio sol, a própria luz torrencial do dia causava-lhe um tédio imenso; arrancando-lhe blasfêmias da boca entreaberta num sorriso agoniado e convulso. Não tinha coragem de fitar, de demorar os olhos no sobradinho: baixava-os logo gelado: – “Era ali mesmo, tal e qual!”

Começou, de repente, a sentir uma zoada no ouvido, um rumor vago de insetos, uma cousa desagradável, incômoda e amofinadora; tremiam-lhe as pernas; ia-se-lhe faltando a respiração. Era um mal-estar, um nervoso, uma aflição, um delírio, um vago desejo de matar, de assassinar, de ver sangue… Passou a mão nos olhos, trêmulo, encostando-se à coluna de um gás; quase não podia ter-se em pé: estava sem forças, o hospital enfraquecera-o, debilitara-o horrorosamente, o “maldito hospital”. -“Nunca mais havia de lá, por os pés, nunca mais!”

A porta do sobrado estava fechada; em cima a meia vidraça de uma janela conservava-se aberta; nem parecia morar gente ali: uma imobilidade sepulcral, desoladora!

Bom-Crioulo rodou nos calcanhares, atônito, sem consciência do meio em que estava, o olhar perdido ao longe, na rua, e foi andando, andando, muito devagar por ali acima.

De repente: – “Ah! a padaria!” Já se não lembrava; era a mesma também, a mesmíssima, com seu grande letreiro na fachada – Padaria Lusitana, com suas três portas, debaixo de uma sobrado, quase defronte da portuguesa. Vinha lá dos fundos um cheiro bom de massa, um apetitoso cheiro de pão quente.

Enfiou pelo estabelecimento, e, sem reflexionar, dirigiu-se ao empregado, um muito vivo, rapazola, que, pelos modos, parecia de além-mar.

– O senhor sabe me dizer se ainda mora ali defronte, no sobradinho, uma portuguesa?

– D. Carolina?

– Essa mesma: uma gorda, bonitona…

– Mora, pois não! disse o outro com um quê de malícia nos olhos.

– E um rapazinho, marinheiro, de olhos azuis…?

– Também, Acordam tarde. Ultimamente a porta vive fechada. Costumam sair juntos à noite…

– Saem juntos?

– Pois não! A mim me parece que o menino é bem espertinho…

Bom-Crioulo estremeceu. Ia saber tudo agora, pela boca do caixeiro: a ocasião era a melhor porque o dono do estabelecimento andava fora.

– O senhor não estará enganado? tornou ele muito curioso, precipitadamente, numa voz quase humilde, o olhar grudado no rapaz.

E entrou a explicar, a dizer como era a portuguesa, como era o marinheiro: – Uma gorda, bonitona, muito vistosa, d’olhos grandes, que alugava quartos…

– Essa mesma, homem!

– O outro não tinha barba, era meio criança ainda, olhos azuis, muito alvo, bonitinho…

– Exatamente, informou o caixeiro. Foram ao teatro, ontem, à Tomada da Bastilha. Conheço muito D. Carolina. Dizem até que está amigada com o pequeno…

Quase as mesmas palavras do Herculano! A mesma história de mulher! Bom-Crioulo ficou imóvel, calado, perdido nas suas idéias. – Aleixo amigado com a portuguesa, com a D. Carolina! Era inacreditável, era um desaforo sem nome, um desrespeito, uma falta de vergonha, um escândalo!

– Está admirado? perguntou o rapaz fitando o negro, cujo olhar tinha agora uma dolorosa, uma extraordinária, uma indizível expressão de melancolia e surpresa. Não se admire, não, que é que o todos dizem…

E logo, interrompendo-se, com o braço estendido:

– Olhe, nem de propósito: aí vem ele, o pequeno…

Aleixo ia saindo porta fora, tranqüilamente, apertado na sua roupa azul e branca de marinheiro, a camisa decotada, a calça justa.

O negro teve um daqueles ímpetos medonhos, que o acometiam às vezes; garganteou um – oh! rouco, abafado, comprimido, e, ligeiro, furioso, perdido de cólera, sem dar tempo a nada, precipitou-se, numa vertigem de seta, para a rua. Não via nada, tresvariado, como se de repente lhe houvesse fugido a luz dos olhos e a razão do cérebro. Precipitou-se, e, esbarrando com o grumete, fintou-o pelo braço.

Tremia numa crise formidável de desespero, os olhos congestionados, um suor frio a porejar-lhe da testa negra e reluzente.

O pequeno estacou surpreendido:

– Sou eu mesmo, rugiu Bom-Crioulo, sou eu mesmo! Pensavas que era só meter-te com a portuguesa, hein? Olha para esta cara, olha como estou magro, como estou acabado… Olha, olha!

E apertava bruscamente o outro, sacudindo-lhe como se o quisesse atirar no chão.

– Vê lá se me conheces, anda! Olha bem para esta cara!

O efebo debatia-se, pálido, aterrado:

– Me largue! Não me provoque, senão eu grito!

– Anda pr’aí, grita, se és capaz! Grita, safado, sem-vergonha… mal-agradecido!

Sua voz tomava uma inflexão voluptuosa e terrível ao mesmo tempo; a palavra saía-lhe gaguejada, estuporada e trêmula.

– Grita, anda!

O outro mudava de cores, recuava trôpego, a língua presa, quase a chorar, numa aflição de culpado, o olhar azul submisso refletindo a imagem do negro:

– Me largue, repetiu. Eu lhe peço: me largue!

Transeuntes olhavam-nos de banda e voltavam-se para os ver naquela posição, rosto a rosto, juntinhos, agarrados misteriosamente. Porque Bom-Crioulo não falava alto, que todos ouvissem, não dava escândalo, não fazia alarme: sua voz era um rugido cavernoso e histérico, um regougo abafado. longínquo e profundo.

– Grita, anda, grita pela vaca da Carolina!

– Me solte! continuou o efebo trêmulo, acovardado. Me largue!

– Não te largo, não, coisinha ruim, não te largo, não! Bom-Crioulo, este que aqui está, não é o que tu pensas…

– Mas eu não fiz nada! Me solte, que é tarde!

Os olhos do negro tinham uma expressão feroz e amargurada, muito rubros, cruzando-se, às vezes, num estrabismo nervoso de alucinado.

Um sujeito parou defronte, a olhá-los; vieram depois outras pessoas, outros curiosos; um marinheiro da Capitania, um italiano carregado de flandres, um guarda municipal, crianças, mulheres…

Houve logo um fecha-fecha, um tumulto, um alvoroço. Trilaram apitos; vozes gritavam – rolo! rolo! e a multidão crescia no meio da rua, procurando lugar, empurrando, abrindo caminho, precipitando-se, formando um grande círculo de gentes ao redor dos dois marinheiros, invisíveis agora.

Os bondes paravam. Senhoras vinham à janela, compondo os cabelos, numa ânsia de novidade. Latiam cães. Um movimento cheio de rumores, uma balbúrdia! Circulavam boatos aterradores, notícias vagas, incompletas. Inventavam-se histórias de assassinato, de cabeça quebrada, de sangue. Cada olhar, cada fisionomia era uma interrogação. Chegavam soldados, marinheiros, policiais. Fechavam-se portas com estrondo.

Alguma cousa extraordinária tinha havido porque, de repente, o povo recuou, abrindo passagem, num atropelo.

– Abre! abre! diziam soldados erguendo o rifle.

De cima, das casa, mãos apontavam pra baixo.

E D. Carolina também chegara à janela com a vozeria, com o barulho, viu, entre duas filas de curiosos, o grumete ensangüentado…

– Jesus! Meu Deus!

Uma nuvem escureceu-lhe a vista, correu um frio pelo corpo, e toda ela tremia horrorizada, branca, imóvel.

Muitas vistas dirigiam-se para o sobradinho.

Aleixo passava nos braços de dois marinheiros, levado como um fardo, o corpo mole, a cabeça pendida para trás, roxo, os olhos imóveis, a boca entreaberta. O azul-escuro da camisa e a calça branca tinha grandes nódoas vermelhas. O pescoço estava envolvido num chumaço de panos. Os braços caiam-lhe, sem vida, inertes, bambos, numa frouxidão de membros mutilados.

A rua enchia-se de gente pelas janelas, pelas portas, pelas calçadas. Era uma curiosidade tumultuosa e flagrante a saltar dos olhos, um desejo irresistível de ver, uma irresistível atração, uma ânsia!

Ninguém se importava com o “o outro”, com o negro, que lá ia, rua abaixo, triste e desolado, entre as baionetas, à luz quente da manhã: todos, porém, queriam “ver o cadáver”, analisar o ferimento, meter o nariz na chaga…

Mas, um carro rodou, todo lúgubre, todo fechado, e a onda dos curiosos foi se espalhando, se espalhando, té cair tudo na monotonia habitual, no eterno vaivém.

Fonte: www.bibvirt.futuro.usp.br

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