Auto da Feira – Gil Vicente

Gil Vicente

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A obra seguinte é chamada Auto da Feira. Foi representada ao mui excelente Príncipe El Rei Dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua nobre e sempre leal cidade de Lisboa, às matinas do Natal, na era do Senhor de 1527.

Figuras:

Mercúrio, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Diniz Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Justina, Leonarda, Teodora, Moneca, Giralda, Juliana, Tesaura, Merenciana, Doroteia, Gilberto, Nabor, Dionísio, Vicente, Mateus.

Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:

MERCÚRIO

Pera que me conheçais, e entendais meus partidos, todos quantos aqui estais afinai bem os sentidos, mais que nunca, muito mais. Eu sou estrela do céu, e depois vos direi qual, e quem me cá descendeu e a quê, e todo o al que me a mi aconteceu.

E porque a astronomia anda agora mui maneira, mal sabida e lisonjeira, eu, à honra deste dia, vos direi a verdadeira. Muitos presumem saber as operações dos céus, e que morte hão-de morrer, e o que há-de acontecer aos anjos e a Deus,e ao mundo e ao diabo. E que o sabem têm por fé; e eles todos em cabo terão um cão polo rabo, e não sabem cujo é. E cada um sabe o que monta nas estrelas que olhou; e ao moço que mandou, não lhe sabe tomar conta d’ um vintém que lh’ entregou.

Porém, quero-vos pregar, sem mentiras nem cautelas, o que per curso d’ estrelas se poderá adivinhar, pois no céu nasci com elas. E se Francisco de Melo, que sabe ciência avondo, diz que o céu é redondo, e o sol sobre amarelo; diz verdade, não lh’ o escondo.

Que se o céu fora quadrado, não fora redondo, senhor. E se o sol fora azulado, d’ azul fora a sua cor e não fora assi dourado. E porque está governado per seus cursos naturais, neste mundo onde morais nenhum homem aleijado, se for manco e corcovado, não corre por isso mais.

E assi os corpos celestes vos trazem tão compassados, que todos quantos nascestes, se nascestes e crescestes, primeiro fostes gerados. E que fazem os poderes dos sinos resplandecentes? Que fazem que todalas gentes ou são homens ou mulheres, ou crianças inocentes.

E porque Saturno a nenhum influi vida contina, a morte de cada um é aquela de que se fina, e não d’ outro mal nenhum. Outrossim o terremoto, que às vezes causa perigo, faz fazer ao morto voto de não bulir mais consigo, cantá de seu próprio moto.

E a claridade encendida dos raios piramidais causa sempre nesta vida que quando a vista é perdida, os olhos são por demais.

E que mais quereis saber desses temporais e disso, senão que, se quer chover, está o céu pera isso, e a terra pera a receber? a lüa tem este jeito: vê que clérigos e frades já não têm ao Céu respeito, mingua-lhes as santidades, e cresce-lhes o proveito.

Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus, Regina musicae, secundum Joanes Monteregio:

Mars, planeta dos soldados, faz nas guerras conteúdas, em que os reis são ocupados, que morrem de homens barbados mais que mulheres barbudas. E quando Vénus declina, e retrogada em seu cargo, não se paga o desembargo no dia que s’ ele assina mas antes por tempo largo.

Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer Capricornius positus in firmamento coeli:

E quanto ao Touro e Carneiro, são tão maus d’ haver agora que quando os põe no madeiro, chama o povo ao carniceiro Senhor, c’ os barretes fora. Depois do povo agravado, que já mais fazer não pode, invoca o signo do Bode, Capricórnio chamado, porque Libra não lhe acode.

E se este não hás tomado, nem Touro, Carneiro assi, vai-te ao sino do Pescado, chamado Piscis em latim, e serás remedeado: e se Piscis não tem ensejo, porque pode não no haver, vai-te ao signo do Cranguejo, Signum Cancer, Ribatejo, que está ali a quem no quer.

Sequuntur mirabilia Jupiter Rex regum, Dominus dominantium.

Júpiter, rei das estrelas, deus das pedras preciosas, mui mais precioso qu’ elas pintor de todalas rosas, rosa mais fermosa delas; é tão alto seu reinado , influência e senhoria, que faz percurso ordenado que tanto vale um cruzado de noite como de dia.

E faz que üa nau veleira mui forte, muito segura, que inda que o mar não queira, e seja de cedro a madeira, não preste sem pregadura.

Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationem suam.

Ao Zodíaco acharão doze moradas palhaças, onde os sinos estão no Inverno e no Verão, dando a Deus infindas graças. Escutai bem, não durmais, sabereis por conjeituras que os corpos celestiais não são menos nem são mais que suas mesmas granduras.

E os que se desvelaram, se das estrelas souberam, foi que a estrela que olharam, está onde a puseram, e faz o que lhe mandaram. E cuidam que Ursa Maior, Ursa Menor e o Dragão, e Lepus, que têm paixão, porque um corregedor manda enforcar um ladrão.

Não, porque as constelações não alcançam mais poderes, que fazer que os ladrões sejam filhos de mulheres, e os mesmos pais varões. E aqui quero acabar. E pois vos disse atéqui o que se pode alcançar, quero-vos dizer de mi, e o que venho buscar.

Eu são Mercúrio, senhor de muitas sabedorias, e das moedas reitor, e deus das mercadorias: nestas tenho meu vigor. Todos tratos e contratos, valias, preços, avenças, carestias e baratos, ministro suas pertenças, até às compras dos sapatos.

E porquanto nunca vi na corte de Portugal feira em dia de Natal, ordeno üa feira aqui pera todos em geral. Faço mercador-mor ao Tempo, que aqui vem; e assi o hei por bem. E não falte comprador. Porque o tempo tudo tem.

Entra o Tempo, e arma üa tenda com muitas cousas e diz:

TEMPO

Em nome daquele que rege nas praças d’Anvers e Medina as feiras que têm, começa-se a feira chamada das Graças, à honra da Virgem parida em Belém. Quem quiser feirar, venha trocar, qu’ eu não hei-de vender; todas virtudes qu’ houverem mister nesta minha tenda as podem achar, a troco de cousas que hão-de trazer.

Todos remédios, especialmente contra fortunas ou adversidades aqui se vendem na tenda presente; conselhos maduros de sãs qualidades aqui se acharão. A mercadorias d’ amor a rezão justiça e verdade, a paz desejada, porque a Cristandade é toda gastada só em serviço da opinião.

Aqui achareis o temor de Deus, que é já perdido em todos Estados; aqui achareis as chaves dos Céus, muito bem guarnecidas em cordões dourados. E mais achareis soma de contas, todas de contar quão poucos e poucos haveis de lograr as feiras mundanas; e mais contareis as contas sem conto qu’ estão por contar. E porque as virtudes, Senhor Deus, que digo, se foram perdendo de dias em dias, com a vontade que deste ó Messias memoria o teu Anjo que ande comigo, Senhor, porque temo ser esta feira de maus compradores, porque agora os mais sabedores fazem as compras na feira do Demo, e os mesmos Diabos são seus corretores.

Entra um Serafim enviado por Deus a petição do Tempo, e diz:

SERAFIM À feira, a feira igrejas, mosteiros, pastores das almas, Papas adormidos; comprai aqui panos, mudai os vestidos, buscai as samarras dos outros primeiros, os antecessores. Feirai o carão que trazeis dourado; ó presidentes do crucificado, lembrai-vos da vida dos santos pastores do tempo passado.

Ó Príncipes altos, império facundo, guardai-vos da ira do Senhor dos Céus; comprai grande soma do temor de Deus na feira da Virgem, Senhora do Mundo, exemplo da paz, pastora dos anjos, luz das estrelas. À feira da Virgem, donas e donzelas, porque este mercador sabei que aqui traz as cousas mais belas.

Entra um Diabo com üa tendinha adiante de si, como bofalinheiro, e diz:

DIABO Eu bem me posso gavar, e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender, e acho quem me comprar. E mais, vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago siza a ninguém por tratos que ande fazendo.

Quero-me fazer à vela nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei quem m’ estorva de ser eu o maior dela. TEMPO És tu também mercador, que a tal feira t’ ofereces? DIABO Eu não sei se me conheces. TEMPO Falando com salvanor, tu Diabo me pareces.

DIABO Falando com salvos rabos inda que me tens por vil, acharás homens cem mil honrados, que são Diabos, (que eu não tenho nem ceitil) e bem honrados te digo, e homens de muita renda, que têm dívida comigo. Pois não me tolhas a venda, que não hei nada contigo.

Tempo ao Serafim

TEMPO Senhor, em toda maneira acudi a este ladrão, que há-de danar a feira.

DIABO Ladrão? Pois haj’ eu perdão se vos meter em canseira. Olhai cá, Anjo de bem, eu, como cousa perdida, nunca me tolhe ninguém que não ganhe minha vida, como quem vida não tem.

Vendo dessa marmelada, e às vezes grãos torrados, isto não releva nada; e em todolos mercados entra a minha quintalada. SERAFIM Muito bem sabemos nós que vendes tu cousas vis. DIABO I há de homens ruins mais mil vezes que não bôs, como vós mui bem sentis.

E estes hão-de comprar disto que trago a vender, que são artes de enganar, e cousas pera esquecer o que deviam lembrar. Que o sages mercador há-de levar ao mercado o que lhe compram melhor; porque a ruim comprador levar-lhe ruim borcado.

E mais as boas pessoas são todas pobres a eito; e eu por este respeito nunca trato em cousas boas, porque não trazem proveito. Toda a glória de viver das gentes é ter dinheiro, e quem muito quiser ter cumpre-lhe de ser primeiro o mais ruim que puder.

E pois são desta maneira os contratos dos mortais, não me lanceis vós da feira onde eu hei-de vender mais que todos à derradeira. SERAFIM Venderás muito perigo, que tens nas trevas escuras. DIABO Eu vendo perfumaduras, que, pondo-as no embigo, se salvam as criaturas.

Às vezes vendo virotes, e trago d’ Andaluzia naipes com que os sacerdotes arreneguem cada dia, e joguem até os pelotes. SERAFIM Não venderás tu aqui isso, que esta feira é dos céus: vai lá vender ao abisso, logo, da parte de Deus! DIABO Senhor, apelo eu disso.

S’ eu fosse tão mau rapaz que fizesse força a alguém, era isso muito bem; mas cada um veja o que faz, porque eu não forço ninguém. Se me vem comprar qualquer clérigo, ou leigo, ou frade falsas manhas de viver, muito por sua vontade; senhor, que lh’ hei-de fazer?

E se o que quer bispar há mister hipocrisia e com ela quer caçar, tendo eu tanta em perfia, porque lh’ a hei-de negar? E se üa doce freira vem à feira por comprar um inguento, com que voe do convento, senhor, inda que eu não queira, lh’ hei-de dar aviamento.

MERCÚRIO Alto, Tempo, aparelhar, porque Roma vem à feira. DIABO Quero-me eu concertar, porque lhe sei a maneira de seu vender e comprar.

Entra Roma, cantando.

ROMA «Sobre mi armavam guerra; «ver quero eu quem a mi leva.

«Três amigos que eu havia, «sobre mi armam porfia; «ver quero eu quem a mi leva».

Fala:

Vejamos se nesta feira, que Mercúrio aqui faz, acharei a vender paz, que me livre da canseira em que a fortuna me traz. Se os meus me desbaratam, o meu socorro onde está Se os Cristãos mesmos me matam, a vida quem m’ a dará, que todos me desacatam?

Pois s’ eu aqui não achar a paz firme e de verdade na santa feira a comprar, cant’ a mi dá-me a vontade que mourisco hei-de falar. DIABO Senhora, se vos prouver, eu vos darei bom recado. ROMA Não pareces tu azado pera trazer a vender o que eu trago no cuidado.

Não julgueis vós pola cor, porque em al vai o engano; cá dizem que sob mau pano está o bom bebedor; nem vós digais mal do ano.

Eu venho à feira direita comprar paz, verdade e fé. DIABO A verdade pera quê? Cousa que não aproveita, e aborrece, pera que é? Não trazeis bons fundamentos pera o que haveis mister; e a segundo são os tempos, assim hão-de ser os tentos, pera saberdes viver.

E pois agora à verdade chamam Maria Peçonha, e parvoíce à vergonha, e aviso à ruindade, peitai a quem vo-la ponha, a ruindade digo eu: e aconselho-vos mui bem, porque quem bondade tem nunca o mundo será seu, e mil canseiras lhe vem.

Vender-vos-ei nesta feira mentiras vinta três mil, todas de nova maneira, cada üa tão subtil, que não vivais em canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os amores, mentiras, que a todas as horas vos nasçam delas favores.

E como formos avindos nos preços disto que digo, vender-vos-ei como amigo muitos enganos infindos, que aqui trago comigo. ROMA Tudo isso tu vendias, e tudo isso feirei tanto, que inda venderei, e outras sujas mercancias, que por meu mal te comprei.

Porque a troco do amor de Deus, te comprei mentira, e a troco do temor que tinha da sua ira, me deste o seu desamor; e a troco da fama minha e santas prosperidades, me deste mil torpidades; e quantas virtudes tinha te troquei polas maldades.

E pois já sei o teu jeito, quero ir ver que vai cá. DIABO As cousas que vendem lá são de bem pouco proveito a quem quer que as comprará.

Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio e diz Roma:

ROMA Tão honrados mercadores não podem leixar de ter cousas de grandes primores; e quant’ eu houver mister deveis vós de ter, senhores. SERAFIM Sinal é de boa feira virem a ela as donas tais, e pois vós sois a primeira, queremos ver que feirais segundo vossa maneira.

Cá, se vós a paz quereis senhora, sereis servida, e logo a levareis a troco de santa vida; mas não sei se a trazeis. Porque, senhora eu me fundo que quem tem guerra com Deus, não pode ter paz c ‘ o mundo ; porque tudo vem dos céus, daquele poder profundo.

ROMA A troco das estações não fareis algum partido, e a troco dos perdões, que é tesouro concedido pera quaisquer remissões? Oh, vendei-me a paz dos céus, pois tenho o poder na terra. SERAFIM Senhora, a quem Deus dá guerra, grande guerra faz a Deus, que é certo que Deus não erra.

Vede vós que lhe fazeis, vede como o estimais, vede bem se o temeis ; atentai com quem lidais, que temo que caireis. ROMA Assi que a paz não se dá a troco de jubileus? MERCÚRIO Ó Roma, sempre vi lá que matas pecados cá, e leixas viver os teus.

Tu não te corras de mi; mas com teu poder facundo assolves a todo o mundo, e não te lembras de ti, nem vês que te vás ao fundo. ROMA Ó Mercúrio, valei-me ora, que vejo maus aparelhos. MERCÚRIO Dá-lhe, Tempo, a essa senhora o cofre de meus conselhos: e podes-te ir muit’ embora.

Um espelho aí acharás, que foi da Virgem Sagrada, co’ ele te toucarás porque vives mal toucada, e não sentes como estás: e acharás a maneira como emendes a vida: e não digas mal da feira; porque tu serás perdida, se não mudas a carreira.

Não culpes aos reis do mundo, que tudo te vem de cima, pelo que fazes cá em fundo: que, ofendendo a causa prima, se resulta o mal segundo. E também o digo a vós e a qualquer meu amigo, quem não quer guerra consigo: tenha sempre paz com Deus, e não temerá perigo.

DIABO Prepósito Frei Sueiro, diz lá o exemplo velho: dá-me tu a mi dinheiro, e dá ao demo o conselho.

Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz e outro Diniz Lourenço, e diz Amâncio Vaz:

AMÂNCIO VAZ Compadre, vás tu à feira? DINIZ LOURENÇO À feira, compadre. AMÂNCIO VAZ Assi, ora vamos eu e ti ó longo desta ribeira. DINIZ LOURENÇO Bofá, vamos. AMÂNCIO VAZ Folgo bem de te vir aqui achar. DINIZ LOURENÇO Vás tu lá buscar alguém, ou esperas de comprar?

AMÂNCIO VAZ Isso te quero contar, e iremos patorneando, e er também aguardando polas moças do lugar. Compadre, enha mulher é muito destemperada, e agora, se Deus quiser, faço conta de a vender, e dá-la-ei por quase nada.

Qu’eu quando casei com ela diziam-me, «Hétega é». E eu cuidei pola abofé que mais cedo morresse ela, e ela anda inda em pé. E porque era hétega assim foi o que m’ a mim danou: avonda qu’ela engordou e fez-me hétego a mim.

DINIZ LOURENÇO Tens boa mulher de teu: não sei que tu hás, amigo. AMÂNCIO VAZ S’ela casara contigo renegaras tu com’ eu e dixeras o que eu digo. DINIZ LOURENÇO Pois, compadre, cant’à minha, é tão mole e desatada, que nunca dá peneirada que não derrame a farinha.

E não põe cousa a guardar, que a tope quanda a cata; e por mais que homem se mata, de birra não quer falar. Trás d’ üa pulga andará três dias, e oito, e dez, sem lhe lembrar o que fez, nem tão pouco o que fará.

Pera que t’hei-de falar? Quando ontem cheguei do mato pôs üa enguia a assar, e crua a leixou levar, por não dizer sape a um gato. Quant’a mansa, mansa é ela; dei-m’ê logo conta disso. AMÂNCIO VAZ Juro-t’eu que mais vale isso cinquenta vezes qu’ela.

A minha te digo eu que se a visses assanhada, parece demoninhada, ante São Bertolameu. DINIZ LOURENÇO Já sequer terá esp’rito: mas renega da mulher que ó tempo do mister não é cabra nem cabrito.

AMÂNCIO VAZ A minha tinh’eu em guarda pera bem da minha prol, cuidando que era ourinol, e tornou-se-me bombarda. Folga tu que ess’outra tenhas, porque a minha é tal perigo, que por nada que lhe digo logo me salta nas grenhas.

Então tanto punho seco me chimpa nestes focinhos; eu chamo polos vizinhos, e ela nego dar-me em xeco. DINIZ LOURENÇO Isso é de coraçuda; não cures de a vender, que s’alguém te mal fizer, já sequer tens quem te acuda.

Mas a minha é tão cortês, que se viesse ora à mão que m’espancasse um rascão, não diria, «Mal fazês». Mas antes s’ assentaria a olhar como eu bradava. Todavia a mulher brava é, compadre, a qu’eu queria.

AMÂNCIO VAZ Pardeus! Tanto me farás que feire a minha contigo. DINIZ LOURENÇO Se queres feirar comigo, vejamos que me darás. AMÂNCIO VAZ Mas antes m’ hás-de tornar pois te dou mulher tão forte, que te castigue de sorte que não ouses de falar, nem no mato nem na corte.

Outro bem terás com ela: quando vieres da arada, comerás sardinha assada, porqu ‘ ela jenta a panela. Então geme, pardeus, si, diz que lhe dói a moleira. DINIZ LOURENÇO Eu faria per maneira que esperasse ela por mi. AMÂNCIO VAZ Que lh’havias de fazer?

DINIZ LOURENÇO Amâncio Vaz, eu o sei bem. AMÂNCIO VAZ Diniz Lourenço, ei-las cá vêm! Vamo-nos nós esconder, vejamos que vêm catar, qu’elas ambas vêm à feira. Mete-te nessa silveira, qu’eu daqui hei-d’ espreitar.

Vêm Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

BRANCA ANES Pois casei má hora, e nela, e com tal marido, prima, comprarei cá üa gamela, para o ter debaixo dela, e um grão penedo em cima. Porque vai-se-me às figueiras, e come verde e maduro ; e quantas uvas penduro jeita nas gorgomileiras: parece negro monturo.

Vai-se-m’às ameixieiras antes que sejam maduras, ele quebra as cerejeiras, ele vindima as parreiras, e não sei que faz das uvas. Ele não vai à lavrada, ele todo o dia come, ele toda a noite dorme, ele não faz nunca nada, e sempre me diz que há fome.

Jesu! Jesu! Posso-te dizer e jurar e tresjurar, e provar e reprovar, e andar e revolver, qu’ é melhor pera beber, que não pera maridar. O demo que o fez marido, que assim seco como é beberá a torre da Sé! Então arma um arruído assi debaixo do pé.

MARTA DIAS Pois bom homem parece ele. DINIZ LOURENÇO Aquela é a minha frouxa. MARTA DIAS Deu-t’ele a fraldinha roxa? BRANCA ANES Melhor lh’esfole eu a pele. Que homem há i da puxa. Ó diabo que o eu dou, que o leve em fatiota, e o ladrão que m’o gabou; e o frade que me casou inda o veja na picota.

E rogo à Virgem da Estrela, e a santa Gerjalem, e ós choros de Madanela e à asninha de Belém, que o veja ir à vela pera donde nunca vem. DINIZ LOURENÇO Compadre, no mais sofrer: sai de lá desse silvado. AMÂNCIO VAZ Pera eu ser arrepelado. Não havi’eu mais mister.

DINIZ LOURENÇO E não n’hás tu de vender? AMÂNCIO VAZ Tu dizes que a qués feirar. DINIZ LOURENÇO Não qu’ela se me tomar leixar-m’á quando quiser. Mas demo-las à má estreia; e voto que nos tornemos, e er depois tornaremos com as cachopas d’aldeia: entonces concertaremos.

AMÂNCIO VAZ Isso me parece a rni muito melhor que eu ir lá. Oh, que couces que me dá, quando me colhe sob si! DINIZ LOURENÇO Cant’ àquela si dará. DIABO Mulheres, vós que quereis? Nesta feira que buscais? MARTA DIAS Queremo-la ver, no mais. Pera ver em que tratais, e as cousas que vendeis.

Tendes vós aqui anéis? DIABO Quejandos? De que feição? MARTA DIAS D’uns que fazem de latão. DIABO Pera as mãos, ou pera os pés? MARTA DIAS Não — Jesu, nome de Jesu, Deus e homem verdadeiro!

Foge o Diabo e Marta Dias diz:

MARTA DIAS Nunca eu vi bofalinheiro tão prestes tomar o mu. Branc’Anes mana, crê tu que, como Jesu é Jesu, era este o Diabo inteiro.

BRANCA ANES Não é ele pau de boa lenha, nem lenha de bom madeiro. MARTA DIAS Bofá, nunc’ele cá venha. BRANCA ANES Viagem de Jão Moleiro, que foi pola cal d’azenha. MARTA DIAS Pasmada estou eu de Deus fazer o Demo marchante! Mana, daqui por diante não caminhemos nós sós.

BRANCA ANES S’eu soubera quem ele era, fizera-lhe bom partido: que me levara o marido, e quanto tenho lhe dera, e o toucado e o vestido. Inda que mais não levara desta feira, em extremo. Me alegrara e descansara, se o vira levar o Demo, e que nunca mais tornara.

Porque, inda que era Diabo, fizera serviço a Deus, e a mi mercê em cabo; e viera-me dos céus, como vem a frol ao nabo.

Vão-se ao Tempo e diz Marta Dias:

MARTA DIAS Dizei, senhores de bem, nesta tenda, que vendeis? SERAFIM Esta tenda tudo tem; vede vós o que quereis, que tudo se fará bem. Consciência quereis comprar, de que vistais vossa alma?

MARTA DIAS Tendes sombreiros de palma muito bons pera segar, e tapados pera a calma? SERAFIM Consciência digo eu, que vos leve ao Paraíso. BRANCA ANES Não sabemos nós qu’é isso: dai-o ó decho por seu, que já não é tempo disso.

MARTA DIAS Tendes vós aqui burel, do pardo de lã meirinha? BRANCA ANES Eu queria üa pucarinha pequenina pera mel. SERAFIM Esta feira é chamada das virtudes em seus tratos. MARTA DIAS Das virtudes! E há aqui patos? BRANCA ANES Quereis feirar a cevada quatro pares de sapatos? SERAFIM Oh, piedoso Deus eterno! Não comprareis pera os céus um pouco d’amor de Deus que vos livre do Inferno? BRANCA ANES Isso é falar per pincéus.

SERAFIM Esta feira não se fez para as cousas que quereis. BRANCA ANES Pois cant’ a essas que vendeis, daqui afirmo outra vez que nunca as vendereis. Porque neste sigro em fundo todos somos negligentes: foi ar que deu polas gentes, foi ar que deu polo mundo, de que as almas são doentes.

E se hão-de correger quando for todo danado: muito cedo se há-de ver; que já ele não pode ser mais torto nem aleijado. Vamo-nos, Marta, à carreira, que as moças do lugar virão cá fazer a feira, que estes não sabem ganhar, nem têm cousa que homem queira.

MARTA DIAS Eu não vejo aqui cantar, nem gaita, nem tamboril, e outros folgares mil, que nas feiras soem d’estar: e mais feira de Natal, e mais de Nossa Senhora, e estar todo Portugal. BRANCA ALVES S’eu soubera que era tal, não estivera eu cá agora.

Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas com cestos nas cabeças, cobertos, cantando. E, como chegam, se assentam por ordem a vender; e diz-lhe o Serafim:

SERAFIM Pois vindes vender à feira, sabei que é feira dos céus; por tal, vendei de maneira que não ofendais a Deus, roubando a gente estrangeira. TESAURA Responde-lhe, Leonarda, tu Justina, ou Juliana. JULIANA Mas responda-lhe Giralda, Tesaura, ou Merenciana.

MERENCIANA Responde-lhe, Teodora, porque creio que a ti creia. TESAURA Responda-lhe Doroteia. pois que mora, junto c’o Juiz d’aldeia. DOROTEIA Moneca responderá que falou já com senhor. MONECA Responde-lhe tu, Nabor, contigo s’entenderá.

Ou Denísio, ou Gilberto, qualquer de vós outros três e não vos embaraceis ou torveis, porque é certo que bem vos entendereis. GILBERTO Estas cachopas não vêm à feira nego a folgar, e trazem de merendar nestes cestos que i têm.

Mas pois quanto ao que entendo, sois, samica, anjo de Deus; quando partistes dos céus, que ficava Ele fazendo? SERAFIM Ficava vendo o seu gado. GILBERTO Santa Maria! Gado há lá? Oh, Jesu! como o terá o Senhor gordo e guardado!

E há lá boas ladeiras, como na serra d’Estrela? SERAFIM Si. GILBERTO E a Virgem que faz ela? SERAFIM A Virgem olha as cordeiras, e as cordeiras a ela. GILBERTO E os Santos de saúde todos, a Deus louvores? SERAFIM Si. GILBERTO E que léguas haverá daqui à porta do Paraíso, onde São Pedro está?

NABOR Lá vêm ó redor das vinhas compradores a comprar samica ovos e galinhas. DOROTEIA Não lhe hei-de vender as minhas, que as trago pera dar.

Vêm dous compradores, um per nome Vicente e outro Mateus, e diz Mateus a Justina:

MATEUS Vós rosa do amarelo, mana, tendes i queijadas. JUSTINA Tenho vosso avô marmelo! Conhecei-lo? MATEUS Aqui estão emborilhadas. JUSTINA Estade má ora quedo, pela vossa negra vida. MATEUS Menina, não hajais medo: vós sois mais engrandecida que Branca de Figueiredo.

Se trazeis ovos, meus olhos, não m’os vendais a ninguém. JUSTINA Andar em burra e ter bem: ouvide ora o rasca-piolhos (azeite no micho!) em que vem! VICENTE Minha vida, Leonarda, traz caça pera vender? LEONARDA Vossa vida negra e parda não lhe abastará comer da vaca com da mostarda?

VICENTE E a mesa de meu senhor irá sem ave de pena? LEONARDA Quem? E vós sois comprador? Pois nem grande nem pequena não matou o caçador. VICENTE Matais-me vós logo bem com dous olhinhos qu’eu digo. LEONARDA Mais vos mata a vós o trigo, porque não vale a vintém, e traz mau micho consigo.

VICENTE Vós fazeis de mi rascão. LEONARDA Pação vos fizestes vós; porém bem nos vimos nós guardar bois no Alqueidão. MATEUS Que vindes vender à feira, Teodora, alma minha? minha alma, minha canseira? Trazei algüa galinha? TEODORA São vossa alma galinheira.

Que má ora cá viestes pera quem vos pôs no paço! MATEUS Senhora, eu vos faço, que vos agastais tão prestes? Dizei-me vós, Teodora, trazeis vós tal cousa e tal deste jeito, muito embora? Mas lá dessoutro metal não falam à lavradora.

VICENTE Senhora Moneca, trazeis algum cabrito recente? MONECA Não bofé, Senhor Vicente: quisera ora trazer três, de que vós foreis contente. VICENTE Juro à Santa Cruz de palha qu’ hei-de ver o que aqui está. MONECA Não revolvais aramá, que não trago nemigalha.

VICENTE Não me façais descortês, nem queirais ser tão garrida. MONECA Pola vossa negra vida! Olhade como é cortês ! Oh, que lhe saia má saída. MATEUS Giralda, eu achar-vos-ei dous pares de passarinhos? GIRALDA Irei por eles aos ninhos, entonces os venderei. Comereis vós estorninhos? MATEUS Respondeis como mulher muito de sua vontade. GIRALDA Pois digo-vo-la verdade: pássaros hei-de vender? Olhai aquela piedade!

VICENTE Senhora minha Juliana peço-vos que me faleis discreta palenciana, e dizei-me que vendeis. JULIANA Vendo favas de Viana. VICENTE Tendes alguns laparinhos? JULIANA Sim, de porca. VICENTE Nem coelhos? JULIANA Quereis comprar dous francelhos, pera caçardes ratinhos? JULIANA Quero, polos Evangelhos!

MATEUS Vós, Tesaura, minha estrela, não viríeis cá em vão. TESAURA Pois si, vossa estrela vos er’ela: como aquilo é de rascão! MATEUS Mas como isso é de donzela! Porém vá já como vai, e casemo-nos, senhora. TESAURA Pois casai co’ele, casai, Casar, ma ora, meu ai, casar, má hora.

MATEUS Porém trazeis algum pato? TESAURA E quanto dareis por ele? Hui, e ele revolve o fato: olho mau se meta nele. MATEUS Não trazeis vós o qu’eu cato. VICENTE Merenciana deve ter neste cesto algum cabrito. Não m’haveis de revolver MERENCIANA senão, pardeus, que dê grito tamanho, que haveis de ver.

VICENTE Eu hei-de ver que trazeis. MERENCIANA se vós no cesto bulis. . . VICENTE Senhora, que me fareis? MERENCIANA Um aqui-d’el-rei, ouvis? Não sejais vós descortês. VICENTE Não quero senão amores, pois vosso, senhora, sou. MERENCIANA Amores de vosso avô, o da ilha dos Açores. Andar aramá vós só.

MATEUS Vamo-nos daqui, Vicente. VICENTE Bofá vamos. MATEUS Nunca vi tal feira. VICENTE Vamos comprar à Ribeira, que anda lá cousa mais quente.

Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:

SERAFIM Vós outras quereis comprar das virtudes? Senhor, não. SERAFIM Saibamos por que rezão. DOROTEIA Porque no nosso lugar não dão por virtudes pão. Nem casar não vejo eu por virtudes a ninguém. Quem tiver muito de seu, e tão bons olhos com’eu sem isso casará bem.

SERAFIM Pois porque viestes ora cansar à feira de pé?

TEODORA Porque nos dizem que é feira de Nossa Senhora: e vedes aqui porquê. E as graças que dizeis que tendes aqui na praça, se vós outros as vendeis, a Virgem as dá de graça aos bons, como sabeis.

E porque a graça e alegria, a madre da consolação deu ao mundo neste dia, nós vimos com devação a cantar-lhe úa folia. E pois que já descansámos assi em boa maneira, moças, assi como estamos, demos fim a esta feira, primeiro que nos partamos.

Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte, com que se despediram.

Cantiga.

I CORO «Blanca estais colorada, «Virgem sagrada. «Em Belém vila do amor «da rosa nasceu a flor: «Virgem sagrada.»

II CORO «Em Belém vila do amor «nasceu a rosa do rosal: «Virgem sagrada.»

I CORO «Da rosa nasceu a flor: «pera nosso Salvador: «Virgem sagrada.»

II CORO «Nasceu a rosa do rosal, «Deus e homem natural: «Virgem sagrada.»

Gratias agamus Domino Deo nostro

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