Angústia – Graciliano Ramos

Graciliano Ramos

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Julgo que ainda não me restabeleci completamente.

Das visões que me perseguiam naquelas noites compri- das umas sombras permanecem, sombras que se mis- turam à realidade e me produzem calafrios.

Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, apro- ximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.

Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com des gosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas. exibindo tftulos e preços nos rostos, ven- dendo-se. E uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Bas- baques escutam, saem. E os autores, resignados, mos- tram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da La.ma.

Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.

Impossivel trabalhar. Dão-me um oficio, um re- latório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daf em diante a cara balofa de Julião Tava- res aparece em cima do original, e os meus dedos en- Contram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, ca pricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida.

A noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.

Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos reme- xem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua.

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisa, absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando nâo consigo formar combinaçôes novas traço rabiscos que representam uma espada, uma lira uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso err indivíduos e em objetos que nâo têm relação com o: desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretá rio, políticos, sujeitos remediados que me desprezan porque sou um pobre-diabo.

Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando no cafés e preguiçando, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como un rato assustado. Como um rato, exatamente. Fzjo do negociantes que soltam gargalhadas enormes, discuten política e putaria.

Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouvei aperta-me com bilhetes de cobrança. Bilhetes inútei: mas dr. Gouveia não compreende is.to. Há tambér o homem da luz, o Moisés das prestações, uma promi.

sória de quinhentos mil-réis, já reformulada. E coisa piores, muito piores.

O artigo que me pediram afasta-se do papel. ve: dade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quand bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresc Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatemp estúpido.

Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quint ano, duas colunas que publicou por dinheiro na secçã livre de um jornal ordinário. Meteu esse trabalhinh num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cim do bureau. Está cheio de erros e pastéis. Mas dr. Go veia não os sente. O espírito dele não tem ambiçôe Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda da propriedades e o cobre que o tesouro lhe pinga.

8 Não consigo escrever. Dinhefro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e ou- tras destruições, as duas colunas mal impressas, caixi- lho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, polfticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares mufto aumentada.

Essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, mis- turando-se, formando um novelo confuso.

Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas.

* * * Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vida monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estú pida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha, arrasto-me até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde de Ponta-da Terra.

Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma viagem, embria.guez, suicídio. . .

Peno no meu cadáver, magrfssimo, com os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem cas- ca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo Os conhecidos dirão que eu era um bom tipo e con- duzirão para o cemitërio, num caixão barato, a minha Carcaça meio bichada. Enquanto pegarem e soltarem as alças, revezando-se no mister piedoso e cacete de Carregar defunto pobre, procurarão saber quem será o meu substituto na Diretoria da Fazenda.

Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares.

Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento des- sas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato.

Tento distrair-me olhando a rua.

A medida que o carro se afasta do centro sinto que me vou desanuviando. Tenho a sensação de que 9 viajo para muito longe e não voltarei nunca. Do lad esquerdo são as casas da gente rica, dos homens qu me amedrontam, das mulheres que usam peles de cor tos de réis, Diante delas, Marina é uma ratufna. D lado direito, navios. As vezes hâ diversos ancorado; Rolam bondes para a cidade, que está invisível, lá er cima, distante. Vida de sururu.

Hâ quinze anos era diferente. O barulho dos bonde nã,o deixava a gente ouvir o sino da igreja. O me quarto, no primeiro andar, era um inferno de calo Por isso, à hora em que os outros hóspedes iam par a escola, estudar medicina, eu dava um salto ao Pa: seio Público e lia, debaixo das árvores, o noticiário d polfcia. Naturalmente a pensão se fechou e d. Aurorf que naquele tempo era velha, morreu.

O calor aqui também é grande demais. E faltar plantas. Apenas, um pouco afastados, coqueiros m cambúzios, perfilados, como se esperassem ordens.

Cidade grande, falta de trabalho. O meu quart ficava junto à escada, e à noite o cheiro do gás er insuportável. Quando escurecia, Dagoberto, estudant e repórter, vinha despejar sobre a minha cama uI compêndio de anatomia e uma cesta de ossos.

O bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro misE rável, casas de paIha, crianças doentes. Barcos de pe; cadores, as chaminés dos navios, longe.

D. Aurora, que tinha sobrenome inglês, às sei horas encostava-se ao guarda-roupa e rosnava, agitav os caracóis brancos, pregava os óculos nos hóspedE que comiam demais e nos que estavam em atras Havia um rapaz de Minas, dispêptico, que ela adorav e queria casar com a neta. Enquanto os outros mast gavam, Dagoberto esquecia o prato e falava sobre c discursos da Câmara.

Retorno à cidade. Os globos opalinos do Ater iluminam o gramado murcho e a praia branca. C coqueiros empertígados ficam para trás. Penso nuxr ditadura militar, em paradas, em disciplina. Os navu também ficam para trás. A pensão, o meu quarto ab fado, o focinho de d. Aurora e a cesta de ossos Dagoberto somem-se.

O carro passa pelos lundos do tesouro. E ali que trabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado.

Rua do Comércio. Lá estâo os grupos que me des- gostam. Conto as pessoas conhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me, esqueço Marina, que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grande desapareceu completamente. O bonde roda para oeste, diríge-se ao interior. Tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu municipio sertanejo. E nem percebo os casebres miseráveis que trepam o morro, à direi- ta, os palacetes que têm os pés na lama, junto ao mangue, à esquerda. Quanto mais me aproximo de Be- bedouro mais remoço. Marina, Julião Tavares, as apo- quentações que tenho experimentado estes últimos tempos, nunca existiram.

Volto a ser criança, revejo a figura de meu avó, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, fIcava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Cczrtos Magno, sonhando com a vitó- ria do partido que padre Inácio chefiava. Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, enver- gavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amar ro vaqueiro cortava nos cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as línhas da casa. No chiqueiro alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia deba,ixo das catingueiras sem folhas. Tinham amar- rado no pescoço da cachorra Maqueca um rosário de sabugos de milho queimados. Quitéria, na cozinha, mexia em cumbucos cheios de miudezas, escondia peles de fumo no caritó.

Eu andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Mínha avó, sinha Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que não exis- tiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tomava pileques tremendos. As vezes subia à vila, des- composto, um camisão vermelho por cima da ceroula II de algodão encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercata e varapau. Nos dias santos, de volta da igreja, mestr Domingos, que havía sído escravo dele e agora possuf venda sortida, encontrava o antigo senhor escoraido m balcão de Teotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jo gando três-setes com os soldados. O preto era un sujeíto perfeítamente respeftável. Em horas de solen: dade usava sobrecasaca de chita, correntão de our atravessado de um bolso a outro do colete, chinelo de trança, por causa dos calos, que não agüentavan sapatos. Por baixo do chapéu duro, a testa retinta úmída de suor, brilhava como um espelho. Pois, ape sar de tantas vantagens, mestre Domingos, quand vfa meu avô naquela desordem, dava-lhe o braço, leva va-o para casa, curava-lhe a bebedeira com amonfacc Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomi tava na sobrecasaca de mestre Domingos e grítava: – Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro Quando o carro pára, essas sombras antigas desa parecem de supetão – e vejo coisas que não me exci tam nenhum interesse: os focos da iluminação públ: ca, espaçados, cochilando, píongos, tão píongos com luzes de cemitério; um palácio transformado em al bergue de vagabundos; escuridões, capoeiras, barrefra cortadas a pique no monte; a frontaria de uma fábric, de tecidos; e, de Ionge em longe, através de ramagen: pedaços de mangue, cinzentos. A medida que no aproximamos do fim da linha as paradas são meno freqüentes. Os postes cintados de branco passam cor rendo, o carro está quase vazio, as recordações da mi nha infâncía precipitam-se. E a decadência de Trajan Pereira de Aquino Cavalcante e Silva precipita-s também.

Estava pegando um século quando entrou a c: ducar. Encolhido na cama de couro cru, mijava-, todo, contava os dedos dos pés e caía na madorn; De repente acordava sobressaltado: – Sinha Germana! Meu pai largava o Carlos Magno, abria o tabaquE ro, deixava a rede, impaciente: Que é que há? – Homem, você não me dirá onde está sua mãe? Aqui mais de uma hora chamando essa mulher! – Morreu.

– Que está me dizendo? estranhava o velho arr galando os olhos quase cegos. Quando foi isso? Camilo Pereira da Silva amolava-se: – Deixe de arrelia. Morreu o ano passado.

– Tanto tempo! dizia Trajano. E vocês calados. . .

– Punha-se a folgar com os dedos e pegava no sono. Quinze minutos depois estava berrando: – Sinha Germana! Acabou-se numa agonia leve que não queria ter fim. E enterrou-se na catacumba desmantelada que nossa família tinha no cemitério da vila. Mestre Do- mingos pegou na alça do caixão e declarou a meu pai que a morte é um mundéu. Fomos morar na vila. Me- teram-me na escola de seu Antônio Justino, para desas- nar, pois, como disse Camilo quando me apresentou ao mestre, eu era um cavalo de dez anos e não conhe- cia a mão direita. Aprendi leitura, o catecismo, a con- jugação dos verbos. O professor dormia durante as lições. E a gente bocejava olhando as paredes, espe- rando que uma réstia chegasse ao risco de lápis que marcava duas horas. Saíamos em algazarra. Eu ia jogar pião, sozinho, ou empinar papagaio. Sempre brïnquei só.

* * * Uma chuvinha renitente açoita as folhas da man- guefra que ensombra o fundo do meu quintal, a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qual- quer coisa desagradável persegue-me sem se fixar cla- ramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aper- reado Debaixo da chuva azucrinante, espécie de neblina pegajosa, a mangueira do quintal e as roseiras da casa vizinha estão quase invisíveis.

Emendo um artigo que Pimentel me pediu, artigo feito contra vontade, só para não descontentar Pi- mentel. Felizmente a idéia do livro que me persegue às vezes dias e dias desapareceu.

Penso em mestre Domingos, no velho Trajano, em meu pai. Não sei porque mexi com eles, tão remotos, dilufdos em tantos anos de separação. Não têm ne- nhuma relação com as pessoas e as coisas que me cercam.

Releio com desgosto o artigo que vou dar a Pi- mentel.

Os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva. Nos meses compridos daqueles in- vernos de serra muítas vezes fiquei tardes inteiras sen- tado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia aebaixo de um lençol branco de água em pó. Os chuviscos entravam pela sala, os móveis e a roupa da gente pareciam cobrir-se de pontinhas de alfinetes. De tempos a tempos um vulto embuçado passava na calçada. O velho Acrísio, de cachimbo na boca, chegava à janela para conversar com meu pai.

Nâo entrava: dava umas notfcias, esfregando as mãos, agüentando aqueles pinguinhos que não molhavam, apenas lhe umedeciam o capote e o cachenê de lã ver- melha.

Agora a chuva é um pouco diferente, o nevoeira menos denso. De longe em longe a água bate no te lhado com força, depois continua a peneira que oculta o jardim da casa vizinna.

Se Marina tivesse a idéia de se banhar ali àquela hora da tarde, eu não lhe veria o corno. Talvez visse apenas uma sombra, como acontece nõ cinema quandc se apresentam mulheres nuas. Este pensamento esqui sito – Marina despida, arrepiada, coberta de caroci nhos – bole comigo durante alguns minutos.

Gostava de me lavar assim quando era menino A trovoada ainda roncava no céu, e iá me preparava As vezes a preparação durava três dias. O trovão rolavs por este mundo, os relâmpagos sucediam-se com fúria Quitéria encafuava-se, oferecia peles de fumo a Santf Clara, escondia a cabeça debaixo das cobertas e gri tava: – “Misericórdial “; meu pai largava o romance nervoso; Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e SilvF chamava sinha Germana, que tínha morrido. Quandc o aguaceiro chegava, o couro cru da cama do velhc Trajano virava mingau, tanta goteira havia; a redi suja de Camilo fedia a bode; os bichos da fazenda vinham abrigar-se no copiar; o chão de terra batida ficava todo coberto de excremento.

Eu tirava as alpercatas, arrancava do corpo a ca- misinha de algodão encardida, agarrava um cabo de vassoura, fazia dele um cavalo e saía pinoteando, pe- rerê, pererê, pererê, até o fim do pátio, onde havia três pés de juá. Repetia o exercicio, cheio de alegria doida, e gritava para os animais do curral, que se lava- ram como eu. Fatigado, saltava no lombo do cavalo ‘ de fábrica, velho e lazarento, galopava até o Ipanema e cafa no poço da Pedra. As cobras tomavam banho com a gente, mas dentro da água não mordiam.

O poço da Pedra era uma piscina enorme. Antes de entrar nela, o Ipanema tinha dois metros de lar- gura e arrastava-se debaixo dos garranchos de algu- mas quixabeiras sem folhas.

Quando eu ainda nã.o sabfa nadar, meu paf me levava para ali, segurava-me um braço e atirava-me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-me respirar um instante. Em seguida repetia a tortura.

Com o correr do tempo aprendi natação com os biehos e livrei-me disso. Mais tarde, na escola de mestre An- t8nfo Justino, lf a história de um pintor e de um cachorro que morria afogado. Pois para mim era no poço da Pedra que se dava o desastre. Sempre imagi nei o pintor com a cara de Camilo Pereira da Silva, e o cachorro parecia-se comigo.

Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afogá-la devagar, trazendo-a para a superffcie quando ela estf- resse perdendo o fôlego, prolongar o suplicfo um dia inteiro . . .

Debaixo da chuva, a manguefra do quintal está toda branca. O papagaio na cozinha bate as asas, sa- cudindo os salpicos que vêm da biqueira. Afago o pêlo macio do meu gato mourisco, que dorme enroscado numa cadeira. As idéias ruins desaparecem. Marina desaparece.

Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os sermões e os desa- foros que padre Inácio pregava aos matutos: – Ar reda, povo, raça de cachorro com porco.” Sento-me no paredão do açude, ouço a cantilena dos sapos. Vejo a figura sinistra de seu Evaristo enforcado e os ho- mens que iam para a cadeia amarrados de cordas.

Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os doís vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, con fuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrfvel nocão de realidade, As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indïcios. Saíram da entorpecimento recordações que a imaginação com pletou.

A escola era triste. Mas, durante as lições, em pé; de braços cruzados, escutando as emboanças de mestre Antônio Justino, eu via, no outro lado da rua, uma casa que tinha sempre a porta escancarada mostrandc a sala, o corredor e o quintal cheio de roseiras. Mora vam ali três mulheres velhas que pareciam formigas.

Havia rosas em todo o canto. Os trastes cobriam-se de grandes manchas vermelhas. Enquanto uma das for migas, de mangas arregaçadas, remexia a terra do jar dím, podava, regava, as outras andavam atarefadas carregando braçadas de rosas.

Daqui também se véem algumas roseiras maltrata das no quintal da casa vizinha. Foi entre essas planta; que, no começo do ano passado, avistei Marina pelE primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo.

Lá estão novamente gritando os meus desejos. Ca lam-se acovardados, tornam-se inofensivos, transfor mam-se, correm para a vila recomposta. Um arrepu atravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre i papel. Naturalmente são os desejos que fazem isto, ma atribuo a coisa à chuva que bate no telhado e à recor dação daquela peneira ranzinza que descia do céu dia e dias.

Meu pai cochilava, encostado ao balcão. Na salet da nossa casa, por detrás da bodega, eu recordava a lições, entorpecido. Enfiando os olhos pela janela, vi na rua o meu vizinho Joaquim Sabiá, de cócoras, fazen do construções com areia molhada. Havia um grand silêncio, um silêncio incômodo. As vezes punha-me is tossir, para me convencer de que não tinha ficado surdo.

Era como se a gente houvesse deixado a Terra. De re- pente surgiam vozes estranhas. Que eram? Ainda hoje não sef. Vozes que iam crescendo, monótonas, e me cau- sa.vam medo. Um alarido, um queixume, clamor enor- me, sempre no mesmo tom. As ruas enchiam-se, s sa- leta enchia-se – e eu tinha a impressão de que o brado lastimoso saía das paredes, safa dos móveis. Fechava os ouvidos para não perceber aquilo: as vozes continua vam, cada vez mais fortes. Que seriam? Tentava desco- brir a causa do extraordinário lamento. Supunha que eram patos gritando, embora nunca tivesse ouvido a voz dos patos. Também me inclinava a admitir que fossem sapos. Mas os sapos do açude da Penha cantavam de outra forma. Não podiam ser sapos. A verdade é que muitas vezes perguntef a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros barulhos.

Perguntei naquele tempo ou perguntei depois? Não sei.

Tenho-me esforçado por tornar-me criança – e em con- seqüência misturo cofsas atuais a cofsas antigas.

* * * Penso na morte de meu pai. Quando voltef da es- cola, ele estava estirado num marquesão, coberto com um lençol branco que Ihe escondfa o corpo todo até a cabeça. Só ficavam expostos os pés, que iam além de uma das pontas do marquesão, pequeno para o defunto enorme. Muitas pessoas se tinham tornado donas da casa: Rosenda lavadeira, padre Inácio, cabo José da Luz, o velho Acrisio.

Fuf sentar-me numa prensa de farinha que havla no fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. Estava espantado, imaginando a vida que ia suportar, sozinho neste mundo. Sentia irfo e pena de mim mesmo. A casa era dos outros, o defunto era dos outros. Eu estava ali como um bichi- nho abandonado, encolhido na prensa que apodrecfa.

Ouvia o barulho de um descaroçador de algodão, pró- atmo, no Cavalo-Morto. E via o corredor da nossa casa por onde passavam a batina de padre Inácio, a fardá 1 de cabo José da Luz, o vestido vermelho de R.osenda e o capote do velho Acrfsio.

Que ia ser de mim, solto no mundo? Pensava nos pés de Camilo Pereira da Silva, sujos, com tendões da grossura de um dedo, cheios de nós, as unhas roxas, Eram magros, ossudos, enormes. O resto do corpo es tava debaixo do lençol branco, que fazia um vincc entre as pernas compridas. Eu não podfa ter saudade daqueles pés horríveis, cheios de calos e joanetes. Pra curava chorar – lembrava-me dos mergulhos no poçc da Pedra, das primeiras lições do alfabeto, que me ren diam cocorotes e bolos. Desejava em vão sentir a morte de meu pai. Tudo aquilo era desagradável. – “Istc é um cavalo ae dez anos e nã,o conhece a mão di reita.” Agora eu tinha catorze, conhecfa a mão direit2 e os verbos Voltei à sala9 nas pontas dos pés. Ninguém mi viu. Camilo Pereira da Silva continuava escondido de baixo do pano branco, que apresentava no lugar da cara uma nódoa vermelha coberta de moscas. Rosendf queimava alfazema num caco de telha. Seu Acrfsio nã servia para nada. Era impossfvel saber onde se fixavf 0 olho de padre Inácio, duro, de vidro, imóvel na órbi ta escura. Ninguém me vfu. Fiquei num canto, roendi as unhas, olhando os pés do finado, compridos, chatos amarelos.

Sempre abafando os passos, dirigf-me novament ao fundo do quintal, com medo daquela gente que nen me havfa mandado buscar à escola para assistir morte de meu paf. Até a preta Quitéria se esquecer de mim. Ao passar pela cozinha, encontrei-a mexend nas panelas e lastimando-se. Sentei-me na prensa, can sado, o estômago doendo. Que iria fazer por af à toa miúdo, tão miúdo que ninguém me via? Encostei-m ao muro, escorreguei por cima da madeira bichad a.dormecf pensando nos mergulhos do poço da Pedrs nos bolos e nos pés de Camilo Pereira da Silva. E, en quanto dormia, ouvfa a cantiga dos sapos no açud da Penha, o burburinho dos intrusos que se acavala vam no corredor, o barulho do descaroçador de algc dão no Cavalo-Morto. Vozes chegavam-me, confusas, eu não conseguia apreender o sentido delas. Visões tam- bém. Via a casa da fazenda, arruinada, os bichos defi- nhando na morrinha, o chiqueiro bodejando, relâm- pagos cortando o céu. A chuva caía, eu andava pelo pátio, nu, montado num cabo de vassoura. Quem me acordou foi Rosenda, que me trazia uma xícara de café.

– Muito obrigado, Rosenda.

E comecei a soluçar como um desgraçado.

Desde esse dia tenho recebido muito coice. Tam- bém me apareceram alguns sujeitos que me fizeram favores. Mas até hoje, que me lembre, nada me sensi- bilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala mansa que me despertava.

– Obrigado, Rosenda.

Iam levando o cadáver de Camilo Pereira da Silva.

Corri para a sala, chorando. Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui en- ganar-me e evitei remorsos.

Na casa escura, cheia das lamentações de Quitéria, não encontrei sossego. Adormeci pela madrugada.

No dia seguinte os credores passaram os gada- nhos no que acharam. Tipos desconhecidos entravam na loja, mediam peças de pano. Chegavam de chapéu na cabeça, cigarro no bico, invadiam os quartos, pra- guejavam. Enterrar os mortos, obra de misericórdia.

0 morto estava enterrado. Padre Inácio e os outros sumiram-se. E os homens batiam os pés com força, levavam ,as mercadorias, levavam os móveis, nem me olhavam, nem olhavam Quitéria, que se encolhia ge- mendo “Misericórdia! “, como quando o trovão rolava no céu e os bichos iam abrigar-se no copiar da fazenda.

Passei a noite a um canto da sala de jantar, numa ede encardida, a cabeça debaixo do cobertor, com medo da alma de Camilo Pereira da Silva. Pensava na rede armada no copiar, no poço da Pedra, no pátio branco onde se arrastavam cascavéis e jararacas. Aqui- lo agora tinha outro dono. O cupim continuava a roer os mourões do curral e os caibros da casa, o carro de bois apodrecia sob as catingueiras, os bichos bodeja- vam no chiqueiro. Mas a sombra do velho Trajano não brincava com os dedos dos pés, Amaro vaqueiro não cortava mandacaru para o gado, a cachorra Moquec tinha morrido, Camilo Pereira da 8ilva não foiheav o romance.

Que estaria fazendo a alma de Camilo Pereïra d Silva? Provavelmente rondava a casa, entrava pela portas fechadas, olhava as prateleiras vazias. As outra almas mais antigas, Trajano, seu Evaristo, sinh Cle mana, nã,o me atemorizavam; mas aquela, tão próx ma, ainda agarrada ao corpo, dava-me tremuras. iJ suo corria-me pelo rosto. Como estariam os pés de (amil Pereira da Silva? Certamente estavam inchados, ve des, com pedaços ficando pretos.

* * * Seu Ivo, silencioso e faminto, vem visitar-rrde. Fs agrados ao gato e ao papagaio, entende-se com Vitór; e arranja um osso na cozinha. Não quero vê-lo, baiz os olhos para não vê-lo.

Fico de pé, encostado à mesa da sala de y anta olhando a janela, a porta aberta, os degraus de cime to que dão para o quintal. tgua estagnada, lixo, o ca teiro de alfaces amarelas, a sombra da manguei.;a. Pi cima do muro baixo ao fundo vêem-se pipas, nont de cisco e cacos de vidro, um homem triste que encl dornas sob um telheiro, uma mulher magra que la garrafas.

Seu Ivo está invisivel. Ouço a voz áspera de Vitór e isto me desagrada. Entro no quarto, procuro u refúgio no passado. Mas não me posso esconder intt ramente nele. Não sou o que era naquele temp Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou fei um molambo que a cidade puiu demais e sujou.

Fumo. Assisto a uma discussão do barbeira And Laerte com o negociante Filipe Benigno. As palavr me chegam quase apagadas, destituidas de senso. E pr vável que não digam nada. Filipe Benigno é u n pom nebuloso : só percebo dele claramente as barbas bra cas e os olhos miúdos. Mas a figura de André Laer tem bastante nitidez. Parece um gato: anda er i red do outro como se estivesse preparando um salo pa agarrá-lo. Tem um avental manchado de sang;ze, u bigodinho ralo e faz “Pfu!” Seu Batista, vestído em robe-de-chambre, passeia na calçada, com as mãos atrás das costas. D. Conceição, mulher de Teotoninho Sabiá, prepara milho para o xerém. Carcará solta gargalha- das que se ouvem na outra extremidade da rua. O dou- tor juiz de direito conta ao vigário histórias de onças e jacarés do Amazonas. Cabo José da Luz, à porta do quartel, espalha tristezas: Assentei praça Na polícia eu vivo Por ser amigo da distinta farda…

O sino da igrejinha bate a primeira pancada das ave-marias.

Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia. Preciso vestir-me depressaw chegar à repartição às nove horas. Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário.

Assaltam-me dúvidas idíotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho conscíêncía dos movímen- tos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fíco assim.

Provavelmente um segundo, mas um segundo que pa- rece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer. Mexo-me, atravesso a rua a grandes pernadas.

Tenho contudo a impressão de que os transeuntes me olham espantados por eu estar ímóvel.

Tmóvel. Camilo Pereira da Silva também estava imóvel, debaixo da terra. D. Conceição vinha ofere- cer-me comida. As meninas dela, d. Maria e Teresa, tentavam consolar-me. Retraía-me como um animal acuado, fechava os ouvidos às consolações, cerrava os olhos, apalpava a cabeça e sentia a dureza de ossos, dava estalos com os dedos e ouvia o som de ossos.

– Obrigado, muito obrigado.

Nâo precisava de nada. Os ossos de Camilo Pereira da Silva desconjuntavam-se na podrïdão da cova, e a alma já nã,o me fazia medo. Era uma alma que envelhecia e estava fora da terra, provavelmente no purga tório. Quitéria rezava alto na cozinha: – Ofereço este padre-nosso e esta ave-maria às almas do purgatório.

Era lá que devia estacionar uma parte de meu pai, curando uns restos de pecados. Leves pecados. Apenas muita preguiça. Por isso eu agüentava fome e ouvia &Q lamentações de Quitéria.

Para que banda ficaria o purgatório? Seu Antônio Justino não sabia. Nem eu. Sabia onde ficavam o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, lugares que me atrafam, que atraem a minha raça vagabunda e queimada pela seca. Resolvi desertar para uma dessas terras distantes.

Abandonei a vila, com uma trouxa debaixo do braço e os livros da escola. – “Adeus, d. Conceição. Muito obrigado pela comida com que me matou a fome.

Adeus, Joaquim Sabiá, d. Maria, Teresa. Adeus, Quité- ria, Rosenda, cabo José da Luz.” E comecei a andar lenta.mente pelo caminho estreito, afastando-me da vila adormecida.

Começo a andar depressa, receando encontrar o ponto encerrado. Tolice. Provavelmente tudo aquilo se passou num segundo. Tenho a impressão de que uma objetiva me pegou, num instantâneo. Ficarei assim , com a perna erguida, a pasta debaixo do braço, o cha- péu embicado.

Lufs da Silva, a caminho da repartição, lesando.

pensando em defuntos.

i ; Este mês ffz um sacriffcio: def uns dinheiros ao Moisés das prestações para amortizar a minha conta.

Dr. Gouveia há de ter paciência: espera mais uns dias.

Deixarei de andar pela Rua do Sol para não encon- trá-lo. O que não posso é continuar a esconder-me de Moisés. Escondo-me, estive algumas semanas sem ir ao café, com receio de ver o judeu. E gosto do café, passo lá uma hora por dia, olhando as caras.

Há o grupo dos médicos, o dos advogados, o dos comerciantes, o dos funcionários públicos, o dos litera- tos. Certos indivfduos pertencem a mais de um grupo, outros circulam, procurando familfaridades provefto sas. Naquele espaço de dez metros formam-se vária; sociedades com caracteres perfeitamente definidos, mui to distanciadas. A mesa a que me sento fica ao pé da vitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoa; que entram e as que saem empurram-me as pernas Contudo não poderia sentar-me dois passos adiante porque às seis horas da tarde estão lá os desembar gadores. E agradável observar aquela gente. Com uma despesa de doís tostões, passo alí uma hora, encolhídc junto à porta, distraindò-me.

Pois-ultimamente precisef renuncfar ao café, po causa de Moisés. Ele também se esquivava. Iiá dia; deu de cara comigo ao dobrar uma esquina e empalf deceu, balbuciou na sua lingua avariada: – Olá! Como vai? Estou com muita pressa.

É um péssimo cobrador. Dei-lhe este mês cem mil réis para pôr termo a esses vexames, Mas ainda devc muito, nem sei quanto. A culpa é minha. Quando m vendeu as fazendas, Moisés foi franco: – Isto é caro como o diabo. Você faz melhor ne gócio comprando a dinheiro noutra loja.

Mas eu estava na pindaïba e precisava adquirir o; trapos para Marina. Desde entâo venho suando parf reduzir o débito. Quando me atraso, Moisés foge d mim. Agora, depois de receber o cobre, declarou-mi que as mercadorias já tinham sido pagas. Infelizment não me podia dar quitação, porque os troços que vendi são do tio, judeu verdadeiro.

– Está muito bem.

E o constrangimento desapareceu. As sefs hora estamos de novo sentados junto à vitrina dos cigarro Moisés fala com abundância, desforrando-se do silên cio em que estivemos ultimamente. Procura a expre, são, coça a testa, franze os beiços numa careta qu lhe mostra os dentes largos e diz: – Está percebendo? Sim, percebo, embora ele tenha sintaxe medonh e pronúncia incrfvel. Faz rodeios fatigantes, deturpa sentido das palavras e usa esdrúxulas de maneira ir sensata. Escuto-o. Os ouvídos são para ele, os olhc para as figuras habituais do café. Os olhos estão qua invisfveis por baixo da aba do chapéu, e uma folha da porta oculta-me o corpo. Uma criaturinha insigni- ficante, um percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem.

Perto um capitalista fala muito alto, e os cotov los sobre o mármore dão-lhe na sala estreita espaço excessivo. No grupo da justiça as palavras tombam medidas, pesadas, e os gestos são lentos. Além, dois políticos cochicham e olham para os lados.

Moisés comenta o jornal. Nunca vi ninguém ler com tanta rapidez. Percorre as colunas com o dedo e pára no ponto que lhe interessa. Engrola, saltando linhas, a.quela prosa em lfngua estranha, relaciona o conteúdo com leituras anteriores e passa adiante. E um dedo inteligente o do Moisés. O resto do corpo tem pouca importância; os ombros estreitos, a corcunda, os dertes que se mostram num sorriso parado. O que a gente nota é o dedo. O dedo e a voz sibilada, des- contente, sempre a anunciar desgraças. Moisés é uma coruja. Acha que tudo vai acabar, tudo, a começar pelo tio, que esfola os fregueses. E eu acredito em Moisés, que não escora as suas opiniões com a palavra do Senhor, como os antigos: cita livros, argumenta.

Prega a revolução, baixinho, e tem os bolsos cheios de folhetos incendiários.

De repente cala-se: foi o doutor chefe de policia que apareceu e começou a cochichar com os polfticos.

0 dedo de Moisés some-se entre as folhas do jornal, o revolucionário esconde-se por detrás do sorriso inex- pressivo. Covardia. Mas afasto este pensamento severo.

Moisés não tem jeito de herói: é apenas um sujeito bom e inteligente. Por isso fiz o sacrificio de lhe dar oem mil-réis, que me vão transtornar o orçamento.

Estava tão abandonado neste deserto. . . Só se diri- giam a mim para dar ordens: – Seu Luís, é bom modificar esta informaçã,o.

Corrija isto, seu Luís.

Fora daí, o silêncio, a indiferença. Agradavam-me os passageiros que mP pisavam os pés, nos bondes, e se voltavam, atenciosos: – Perdão, perdão. Faz favor de desculpar.

– Sem dúvida. Ora essa.

Ou então: – Tem a bondade de me dizer onde fica a Rua do Apolo? – Perfeftamente, minha senhora. Vamos para lá É o meu caminho.

Agora estou defronte de um amigo, amigo que mf liga pouca importâ,ncia, é verdade, amigo todo entre gue aos telegramas estrangefros, mas que me custou cem mil-réis. Parece-me que até certo ponto Moisé: é propriedade minha. Os cem mil-réfs me vão faze muita falta.

Estremeço : dr. Cfouvefa entra na sala, marchs para a vitrina dos cigarros.

– Vamos dar o fora, Moisés? Dois minutos depois estamos sentados num bancc da Praça Montepio. Aqui há sossego, não vêm cá cer tos indivfduos impertinentes. O que me desgosta é ve de relance, nos bancos do centro, que a folhagem dis farça mal, pessoas atracadas. Sinto furores de mora tista. Cães! Amando-se em público, descaradamentel Cães! Tremo de indignação. Depois esmoreço: julguei distinguir entre as folhas dos crótons o vulto de Ma rina. Foi ilusão, mas a imagem permanece. Cachor rada! Moisés fala em polfticos reacionárfos. Encho-me de ferocidade: – Malandros! Ladrões! Agora Moisés está contando as perseguições ao: judeus, na Europa. Lembro-me do tío dele e digo co- migo que provavelmente a narração é exagerada. SE Moisés não fosse inteligente, com certeza muitos da queles fatos não existlriam. Sofrlmentos. Iniqüidades – Aqui há tanto dísso! Mas somos fatalistas, es tamos habituados e não temos imaginação como vocês Entro a falar sobre a minha vida de cigano, d fazenda em fazenda, transformado em mestre de me ninos. Quando ensinava tudo que seu Antônio Justim me ensinara, passava a outra escola. Tinha o sustentc Depois era a caserna. Todas as manhãs nos exercl cios. – “Meia-volta! Ordinário!” As peças do fuzil marchas na lama, a bandeira nacional, o hino, a tarimbas sujas, os desaforos do sargento Em seguid vinha a banca de revisão: seis hora,s de trabalho por noite, os olhos queimando junto a um foco de cem velas, cinco mil-réis de salário, multas, suspensões.

E coisas piores, que me envergonham e não conto a Moisés. Empregos vasqueiros, a bainha das calças rofda, o estômago roído, noites passadas num banco, importunado pelo guarda. Farejava o provinciano de longe, conhecia o nordestino pela roupa, pela cor des ; botada, pela pronúncia. E assaltava-o: – Um filho do nordeste, perseguido pela adversi dade, apela para a generosidade de v. exa.

! Valorizava a esmola: – Trago um romance entre os meus papéis. Com- pus um livro de versos, um livro de contos. Sou obri- gado a recorrer aos meus conterrâneos. Até que me srranje, até que possa editar as minhas obras.

lecebia, com um sorriso, o níquel e o gesto de desprezo. O frege-moscas fedia a vinho podre, e o ga- lego, de tamancos, coberto de nódoas, era asqueroso.

Mais tarde, já aqui em Maceió, gastando sola pelas repartições, indignidades, curvaturas, mentiras, na caça I ao pistolo.

– Escrevi muito atacando a república velha, dou tor; sacrifiquei-me, endividei-me, estive preso por causa da ideologia, doutor.

Afinal, para se livrarem de mim, atiraram-me este ! osso que vou roendo com ódio.

– Chegue mais cedo amanhã, seu Luis.

E eu chego.

– Informe lá, seu Luís.

E eu informo. Como sou diferente de meu av8! Um dia um cabra de Cabo Preto apareceu na fa- zenda com uma carta do chefe. Deixou o clavinote encostado a um dos juazeiros do fim do pátio, e de longe ia varrendo o chd,o com a aba do chapéu de couro. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva 8oletrou o papel que o homem lhe deu e mandou Ama- ro laçar uma novilha. O cabra jantou, recebeu uma nota de vinte mil-réis, que naquele tempo era muito dinheiro, e atravessou o Ipanema, tangendo o bicho.

Dia de Natal meu avó foi à vila, com a mulher, e en- controu no caminho o grupo de Cabo Preto, que se meteu na capueira para não assustar a dona, .inr Germana, de saias arregaçadas, escanchada na sel um mosquetão na maçaneta, não viu nada, mas me avô fez um gesto de agradecimento aos angicos e ac mandacarus que marginavam a estrada. Quando a p Iftica de padre Inâcio caiu, o delegado prendeu u cangaceiro de Cabo Preto. O velho Trajano suiu vila e pediu ao doutor juiz de direito a soltu:~a c criminoso. Impossível. Andou, virou, mexeu, yastc dinheiro com habeas-corpus – e o doutor duro com chifre.

– Está direito, exclamou Trajano plantando o s pato de couro cru na palha da cadeira do juz. E vou soltar o rapaz.

No sábado reuniu o povo da feira, nomens :: mi lheres, moços e velhos, mandou desmanchar o eFrca do vigário, armou todos com estacas e foi derrt:bar cadeia.

Está af uma histórfa que narro com satisfação Moisés. Ouve-me desatento. O que Ihe intere: sa r minha terra é o sofrimento da multidão, a tragéd: periódíca das secas. Procuro recordar-me dos verõ sertanejos, que duram anos. A lembrança chega mi turada com episódios agarrados aqui e alf, em roma ces. D’ficilmente poderia distinguir a realidade à ficção. De resto a dor dos flagelados naquele tem nã.o me fazia mossa. Penso em coisas percebias v gamente: o gado, escuro de carrapatos, roendo a ma deira do curral; o cavalo de fábrica, lazarerto e co esparavões; bodes defínhando na morrinha; o carro c bois apodrecendo; na catinga parda, mancha: bra cas de ossadas e vôo negro dos urubus. Tento len brar-me de uma dor humana. As leituras auxiliar-m atiçam-me o sentimento. Mas a verdade é que o pe soal da nossa casa sofria pouco. Trajano Per:ira i Aquino Cavalcante e Silva caáucava; meu ps.i viv preocupado com os doze pares de França; sinha th mana tinha morrído; Quitéria, coitada, era bruta c mais e por isso insensfvel. Os outros moradores fazenda, as criaturas que viviam em ranchos d pal construídos nas ribanceiras do Ipanema, não :e qu xavam. José Bafa falava baixo e ria sempre Sin: Terta rezava novenas e fazia partos pela vizinhança.

Amaro vaqueiro alimentava-se, nas secas, com sementes de mucunã lavadas em sete águas, raiz de imbu, miolo de xique-xique, e de tempos a tempos furtava uma cabra no chiqueiro e atirava a culpa à suçuarana.

Dores só as minhas, mas estas vieram depois.

* * * A minha criada Vitória anda em cinqüenta anos, é meio surda e possui um papagaio inteframente mudo, que pretende educar assim : Currupaco, lcagaco, A mulher do rnacczco Ela fia, ela cose, Ela toma tabaco Torrado no ca,oo.

O papagaio prega na velha o olho redondo. Em seguida cerra as pálpebras e baixa a cabeça. As vezes se aborrece da gaiola e bate as asas. A dona corre para o quintal e espia a folhagem da mangueira: – Meu louro, meu louro! Currupaco, papaco. Meu Meu louro! Onde andará o sem-vergonha desse pa pagaio? Só se acomoda depois de percorrer a vizinhança e encontrar o fugitivo. Pega então a parolar com ele, que não diz nada. Quando se cansa, agarra o jornal e lê com atenção os nomes dos navios que chegam e dos que saem. Nunca embarcou, sempre viveu em Ma- ceió, mas tem o espfrito cheio de barcos. Dá-me fre- qüentemente notícias deste gênero: – O Pedro II chega amanhã. O Aratimbó vem m atraso. Terá havido desastre? Não sei como se pode capacitar de que a comu- nicação me interessa. Há três anos, quando a conheci, a mania dela me espantava. Agora estou habituado.

heio o jornal e deixo-o em cima da mesa, dobrado na página em que se publica o movimento do porto. Vitó- rIa toma a folha e vai para a cozinha ler ao papagaio a lista dos viajantes.

No princípio do mês, quando se aproxima o rece bimento do ordenado, excita-se e não larga o Diâric Oficíal.

– Faltam dois dias, falta um dia, é hoje.

E faz cálculos que não acabam, cálculos inúteis porque não gasta nada: usa os meus sapatos velho: e traz um xale preto amarelento que deve ter dez anos Recolhe a mensa.lidade e mete-se no fundo do quintal põe-se a esgaravatar a terra como se plantasse quat quer coisa. Esquece os navios e as lições ao papagaio Volta a tratar das ocupações domésticas, mas dE quando em quando lá vai rondar a mangueira e aco corar-se junto ao canteiro das alfaces. Dá um saltc à cozinha, fala com o louro, tempera a bóia. Minuto: depois está novamente remexendo a terra.

Observo esses manejos. Sentindo-se observada, le vanta-se, deita água no caco das galinhas, vai ao ba nheiro, sai com uma braçada de roupa, que estendE no arame esticado entre a cerca e um dos ramos d mangueira. Entra em casa, abre o jornal e anuncia; – O delegado fiscal viajou ontem.

Nota, pela minha eara, que o delegado fiseai nãc me fnteressa e dá uma notícia importante: – O arcebispo chegou do Rio.

Escapole-se, vai consertar a cerca, tapar os bura cos por onde passam bichos que estragam a horta. D2 minha cadeira vejo-lhe o cocó grisalho, a cabeça curva atenta sobre a terra que escava, fingindo tratar do: canteiros ou fincar as estacas da cerca. No outro dia tirará as estacas, que, de tanto removidas, fizeram al uma espécie de porteira.

Nem à noite a pobre descansa: levanta-se pela madrugada e abre a porta do fundo, cautelosamente Cautela inútil. Como é meio surda, pensa que não fa barulho, mas arrasta os sapatões com força, e as per nas reumáticas atiram-na contra os móveis, às esçura: tropeçam nos degraus de címento quebrado. Ausenta-s uma hora. Depois a porta range de novo e as pisada reaparecem. Daí a pouco estâ a criatura resmungand fazendo contas intermináveis. Erra os números e recomeça. Esta agitação dura quatro, cinco dias por mês.

Sossega, volta às listas dos passageiros, à tagarelice com o papagaio : Currupaco, papczco, A muLher do macaco…

A voz é áspera e desdentada. E, acompanhando a cadência, tremem as pelancas do pescoço engelhado como um pescoço de peru, tremem os pêlos do buço e as duas verrugas escuras. É terrivelmente feia.

Logo que me entrou em casa, descobri nela uma particularidade alarmante. Sou um desleixado. Quando mudo a roupa, esqueço papéis nos bolsos. Deixo freqüen- temente níqueis e pratas sobre os móveis. Essas fra- ções de pecúnia somem-se, e certa vez desapareceu-me da carteira uma cédula de cinqüenta mil-réis. As fal- tas coincidem com uma grande excitação da velha.

Recomeçam as fugas para o quintal. Vendo-lhe o cocó bambeante entre as folhas de alface, sei perfeitamente que ela está enterrando o dinheiro. Descubro ao pé da cerca, junto à raiz da mangueira, covas frescas.

Assustei-me a princípio, depois me tranqüilizei.

A nota de cinqüenta mil-réis foi achada entre as pá- ginas de um livro. E as moedas voltam para os luga- res donde saíram. Finjo não prestar atenção a elas, para a mulher não se ofender, meto algumas no bolso, com indiferença. Só quando estou necessitado, digo por alto, escolhendo as palavras: – Vitória, hoje pela manhã deixei cair umas pra- tas no chão. Apanhei duas ou trës, mas parece que as outras rolaram para trás da cama. Você, varrendo o quarto, não terá encontrado algumas? Vitória estica-se, o pescoço encarquilhado incha, os olhos miúdos fuzilam, as verrugas tremem indig- nadas: – O senhor tem cada uma! Se não está satis- feito comigo, é dizer. Já vivi em muita casa de gente rica, seu Luís. Criei-me vendo dinheiro, seu Lufs. Se to está achando bom, é arriar a trouxa. Descon- fiança comigo, não.

– Deixe disso, criatura. Quem falou em descon- fiança? E que derrubei as moedas. Que vocé não viu esté, claro, náo se discute. Dé uma busca.

– Ah! exlama Vitória. Eu não tinha compreen- dido bem.

Torna-se amável, coça o queixo cabeludo, puxa conversa fora de propósito, a voz sumida, uns risinhos encabulados. Julgando-me distraido, afasta-se nas pon- tas dos pés, olhando-me com o rabo do olho, e vai apanhar alfaces. Daí a pouco volta, entra no quarto, arrasta a cama, examina os cantos da parede: – Só vejo teia de aranha.

De repente aparece chocalhando as moedas: – Estão aqui. Não sei quando o senhor quer to- mar jeito. A vida inteira perdendo dinheiro! Cluardo algumas pratas e deixo o resto em cima da mesa. Npo há perigo. Receio é que Vitória se en- gane nas contas e me traga mais que o que tirou.

* Em janeiro do ano passado estava eu uma tardE no qu;ntal, deitado numa espreguiçadeira, fuma.ndo lendo um romance. O romance nã.o prestava, mas o; meus negócios iam equilibrados, os chefes me tolera vam, as dívidas eram pequenas – e eu rosnava con um bocejo tranqüilo: – Tem coisas boas este livro.

Lia desatento, e as letras esmoreciam na sombr que a mangueira estirava sobre o quintal.

Moisés e Pimentel apareciam-me às vezes, e algun rapazes acanhados vinham pedir-me em segredo arti gos e composições poéticas, que eu vendia a dez, a quin ze mil-réis. Isto chegava para o aluguel da casa – e dr. Glouveia não me importunava. Distraia-me con leituras inúteis. Quando me caia nas mãos uma obr ordinária, ficava contentíssimo: – Ora, muito bem. Isto é tão ruim que eu, cor trabalho, poderia fazer coisa igual.

Os livros idiotas animam a gente. Se não fosser eles, nem sei quem se atreveria a começar.

Esse que eu lia debaixo da mangueira, saltando páginas, era bem safado. Por isso interrompia a leitu- ra, acendia o cigarro.

Foi numa dessas suspensões que percebi um vulto mexendo-se no quintal da casa vizinha. Como já disse, existe apenas uma cerca separando os dois quintais.

Do lado esquerdo há um muro, e ignoro completamen- te o que se passa além dele. Mas daquela banda o que temos é a cerca baixa, que Vitória conserta sempre por causa das galinhas e para guardar dinheiro nos pés das estacas podres. Para lá dessa linha de demar- cação tudo me era familiar: o banheiro, paredes meias com o meu, algumas roseiras, um monte de lixo que a inquilina, senhora idosa, às vezes queimava.

O vulto que se mexia não era a senhora idosa: era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e ca- belos tão amarelos que pareciam oxigenados. Foi só o que vi, de supetão, porque nã.o sou indiscreto, era inconveniente olhar aquela desconhecida como um bas- baque. Demais não havia nada interessante nela.

Onde andaria a senhora idosa, que todas as ma- nhãs ia regar as plantas, com um pano branco amar- rado à cabeça? Mudara-se, provavelmente, e aquela que ali estava devia ser moradora nova.

– Sim senhor, disse comigo, muito poética, ai entre as roseiras, com os cabelos pegando fogo e a cara pintada.

Sentia a ausência da senhora idosa, cheia de rugas, tranqüila, um pano amarrado à cabeça e o rega,dor na mão, movendo-se tão devagar que era como se esti- vesse parada. Essa outra estava em todos os lugares ao mesmo tempo, ocupava o quintal inteiro. Um azougue.

– Quem diabo tem ela? E mergulhei na leitura, desatento, está claro, por- qve o livro não valia nada. Virava a página muitas oezes, e quando isto acontecia, olhava, fingindo desin- teresse, a mulher dos cabelos de fogo. Tinha as unhas pintadas.

– Lambisgóiat Fiquei lendo o romance, péssimo romance, enquan- tO a tipinha se mexeu entre as roseiras. Notei, notei positivamente que ela me observava. Encabulei. Sou .

tímido: quando me vejo diante de senhoras, emburro digo besteiras. Trinta e cinco anos, funcionário públi- co, homem de ocupações marcadas pelo regulamento.

O Estado não me paga para eu olhar as pernas das garotas. E aquilo era uma garota. Além de tudo sei que sou feio. Perfeitamente, tenho espelho em casa.

Os olhos baços, a boca muito grande, o nariz grosso.

Como se chamava a senhora idosa que vinha regar as plantas? A verdade é que nunca me empatou a leitura.

Fiquei ali até que escureceu e a mulherinha deu o fora.

Mais tarde informei-me: – Ó Vitória, a vizinha aqui da direita mudou-se? – Morreu, disse Vitória depois de me fazer repe tir a pergunta quatro vezes, porque era lua nova e ela estava inteiramente surda. O senhor não viu o enterro7 Pois é. Agora há outros moradores.

Pobre da velha. Morta e enterrada, e eu nem havia percebido alteraçâo na casa.

Moisés e Pimentel apareceram à noite e conver saram muito, mas ouvi-os distrafdo.

Além das plantas mencionadas, havia também un mamoeiro no quintal vizinho. Era engraçada o diabc da pequena. Para o inferno. Um homem lido e corrido pegando trinta e cinco anos, amolecendo, preocupan do-se com aquela guenza! – Vamos deixar de tolice.

E contrariei Pimentel e Moisés, arranjei umas opi niôes descabidas, porque realmente não sabia o qm eles estavam dizendo.

No dia seguinte (era sábado e não havia expe diente à tarde) sentei-me de novo à sombra da man gueira, com o romance. A coisinha loura tornou a apa , recer, em companhia de uma mulherona sardenta começaram ambas a cortar os ramos secos das rc seiras. A pequena estouvada nâo me prestava atenção descontentara-a provavelmente o exame da véspera. Un sujeito feio: os olhos baços, o nariz grosso, um sorris besta e a atrapalhação, o encolhimento que é mesm uma desgraça.

Apesar destas desvantagens, os negócios não iar mal. E foi exatamente por me correr a vida quase berque a mulherinha me inspirou interesse – novidade, pofs sempre fuf alhefo aos casos de sentimento. Traba lhos, compreendem? Trabalhos e pobreza. As vezes o coração se apertava como corda de relógio bem enro- ¡ lada. Um rato rofa-me as entranhas.

Nestes últimos tempos nem por isso. Antigamente ‘ era uma existência de cachorro. As mulheres tinham chefros excessivos, e eu me sentia impelido vfolenta- mente para elas. Mas a voz do chefe da revisão estava colada aos meus ouvidos: – Suspenso por cinco dfas, seu Silva.

A unha suja de tinta rfscava na prova o corpo de delito. Vida de cachorro. Como irfa pagar a pensão? – D. Aurora, tenha pu,ciêncfa. Veja se me arranja um quarto mafs barato. Os tempos andam safados, d. Aurora.

‘ As ruas estavam chefas de mulheres. E o rato ‘ rofa-me por dentro.

Ora, um dia, sem motivo, convidef d. Aurora para o cinema. Tenho desses rompantes idiotas. Faço uma Ï tohce sabendo perfeitamente que estou fazendo tolice.

Quando tento corrigir o disparate, caio noutro e cada vez mais me complico. Foi o que se deu. Convidef d. Au- rora e a neta para o cinema. Arrependi-me e ofere- d-Ihes refrescos. Aceitaram tudo – e começou a minha tortura. Lá fui com elas, capiongo, pagar bonde, sor- vetes e três cadeiras. Tipo besta.

– Agüenta, maluco, trouxa, filho de uma puta.

E contava mentalmente o dinheiro suado e mes- quinho. Na sala de projeçâo a neta de d. Aurora abriu um leque enorme em cima das coxas e meteu a minha perna entre as dela. Subitamente o rato deixou de roer-me. O que eu estava era indignado. E calculava.

Três passagens de bonde – mil e duzentos. Três sor- vetes – três vezes cinco, quinze. E entradas no cf- riema. As coxas da moça eram frias. Com certeza fazia squilo por hábito. Naquele tempo eu andava como um bode. Mas esfriei também. Cinco mil-réis por seis horas de trabalho, à noite, suspensões, multas, o jor- nal indo para cima e para baixo. Era um sofrimento a idéia de que no fim da quinzena ficaríamos sem o cobre que estava enganchado.

– Hoje ninguém recebe.

Lá ia, de cabeça baixa, beber um copo de catdc de cana e comer um pastel. Os niqueis amarrado; como dfnheiro de matuto. Pofs, numa quebra,deir assim, bande, sorvete, cfnema. E ainda faltavam a passagens de volta. A fita era tão compridal A moçf tinha as pernas frias.

Aquela que estava ali a meia dúzfa de passos, cor tando os ramos secos das roseiras, vermelha como pi menta, os braços levantados mostrando os sovacos devía ser quente demais.

– Carga de risco! A mulher sardenta e sarará tinha traços dela.

Com o livro esquecido nos f oelhos, o cigarro apa, gado, o olho meio cerrado, lembrei-me com preguiç: de coísas vagas, sem importância. Havta no Cavalo Morto uma rapariga desbragadfssima. Não tinha de com, amava aos gritos, como os gatos e os ciganos Em horas de recolhimento natural berrava danada mente : – Rasga, diabo! Vai fazer isso com tua mãe peste! Eu era mu;to moço, e aquela fúria me espantava Amores selvagens.

Da janela de seu Antônio Justino via-se um jar dim bem tratado, onde três mulheres velhas que pare ciam formigas cavavam, podavam, regavam.

Berta, uma alemãzinha bonita que antigament conheci, também tinha as unhas pintadas e pontia tzdas. Aquilo arranhava docemente. A orimefra mu lher de jeito com quem me atraquei. Eu levava nc bolso uns dinheiros curtos anhos no jogo e a catt de recomendação aue um deputado, depois de muito salamaIeques e muítas viagens, me havfa dado na C5 mara para o diretor de um jornal. Cada solecismo hoi rfvel. Metia a mão no bolso e certificava-me de qu as pelegas machucadas e os solecismos exfstiam. Ia d cabeça baixa, ruminando projeto.s. De repente uma vc estrangeirada, cheia de rr, gargarejou perto de mirr – Senhor não quer entrar? E duas mãos miúdas agarrara.m-me um braço, a rastaram-me por uma porta até a escada. Escorei-me ao corrimã,o, acuado, pigarreef com um nó na gar ganta: – Madame, eu sou um bfcho do mato, nunca me encostei a uma pessoa como a senhora. Seja franca, madame. Quanto é que lhe devo dar? Berta era engraçada : lourinha, gordinha, uma voz suave, apesar dos rr.

– Deixa disso. Não faz feio.

E eu, a mão no bolso, apertando os cobres: – Não brinque, madame. Sou um sertanejo, um bruto, um selvagerr. Quanto é que a senhora costuma receber? Bonitinha, Berta. E mais decente que a neta de d. Aurora. Bonde, cinema, refrescos. Menina viciada.

Dagoberto fugia dela. Uma piranha. Ser rofdo por aquilo! Ah! não. Lembrava-me dos bancos do passefo, das botinas de elástico bambo.

– Senhor, um nordestino perseguido pela adversi- dade apela para v. exa.

E o frege-moscas fedorento, as toalhas cobertas de nódoas de vinho, bóia nauseabunda, o galego, de tamancos, sujo, cantando. Com semelhantes recorda- ções, quem pensa em mulheres? A mocinha, no lado de lá da cerca, não me dava atenção. Perua. Cabelos de milho, unhas pintadas, bei- ços vermelhos e o pernão aparecendo.

– As vezes aquilo é só ã casca. Por baixo – mar- cas de feridas e molambos. Sirigaita. Sou um homem prático, passado pelos corrimboques do diabo, lido e eorrido. Para o inferno.

Levantei-me, aprumei-me e recolhi-me, com o livro : debaixo do braço, a cara enferrujada, importante. Na ,r véspera o diretor me tinha dito: – Necessitamos um governo forte, seu Lufs, um governo que estique a corda. Esse povo anda de rédea solta. Um governo duro.

E eu havia concordado, naturalmente: – E o que eu digo, doutor. Um governo duro.

E que reconheça os valores.

Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espé- `. eie de niquel .social, mas enfim valor. O aluguel da ; eesa estava pago. Andava em todas as ruas sem precisar dobrar esquinas. Por uma diferença de doiz votos, tinha deixado de ser eleito Secretário da .Assocfação Alagoana de Imprensa. Quinhentos mil-réis de orde- nado. Com alguns ganchos, embirava uns setecentos.

Podia até casar. Casar ou amigar-me com uma cria,tura sensata, amante da ordem. Nada de melíndrosas pin- tadas. Mulher direita, sisuda. Passar a vida naquela insipidez, agüentando uma cria,da surda, reumática, cheia de manias! – õ Vitória, gritei ao ouvido da velha, quem é essa gente que chegou si ao lado? Vitória não sabia. Tentei ler um srtigo político de Pimentel, mas estava distraido, pensava em Berta, na neta de d. Aurora e na rapariga do Cavalo-Morto. Dei- tei-me cedo. Não pude dormir: os cabelos de fogo, os olhos e especialmente as pernas da vizinha começaram a bulir comigo. Aquilo devia ser uma pimenta. Passei a noite imaginando cenas terríveis com ela. No outro dia levantei-me aperreado. Quando me aparecem esses aces- sos, fico açsim uma semana, calado, murcho, pensando em safadezas.

r r r Ainda não disse que moro na Rua do Macena, perto da usina elétrica. Ocupado em várias coisas, freqüent mente esqueço o essencial. Que, para mim, a casa ande moramos não tem importância grande demais. Tenho vivido em numerosos chiqueiras. Provavelmente esses imóveis influiram no meu caráter, mas sou incapaz de recordar-me das divisões de qualquer deles. Não espe- rem a descrição destas paredes velhas que dr. Clouveia me aluga, sem remorso, por cento e vinte mil-réis men- sais, fora a pena de água.

Afinal, para a minha história, o quintal vale mais que a casa. Era ali, debaixo da mangueira, que, de volta da repaxtição, me sentava todas as tardes, com um livro. Foí Iá que vi Marina pela primeira vez, em janeiro do ano passado. E lá nos tornamos amígos.

Se ela morasse no prédio à esquerda, talvez não nos conhecêssemos. Quando saio para o serviço, passo em irente da casa à direita e cumprimento as pessoas que estão à janela. Transito raramente pelo outro lado.

Reside ali uma d. Rosália, que tem o marido sempre ausente. Mulher antipática, amarela, muito faladora.

Quase nunca a encontro. Felizmente há o muro que nos afasta. Vejo às vezes por cima dele cabecinhas de crianças que esperam momento favorável para furtar as mangas dos galhos que lhes chegam ao alcance das garras. Fujo para não importuná-las, mas são assusta- diças e escondem-se.

O meu horizonte ali era o quintal da casa à di- reita: as roseiras, o monte de lixo, o mamoeiro. Tudo feio, pobre, sujo. Até as roseiras eram mesquinhas: algumas rosas apenas, miúdas. Monturos próximos, águas estagnadas, mandavam para cá emanações desa- gradáveis. Mas havia silêncio, havia sombra. O vozei- rão de Vitória era um murmúrio abafado. Talvez o ma- moeiro, as roseiras, o monte de lixo me passassem des- percebidos, e se os menciono, é que, escrevendo estas notas, revejo-os daqui.

Tornei-me, pois, amigo de Marina. Com certeza começamos por olhares, movimentos de cabeça, sorri- sos, como sempre acontece. Depois, palavra aqui, pala- vra ali, em pouco tempo estávamos camaradas, tratan- do-nos por você. Procurando reproduzir os nossos diá- lagos, compreendo que não dizíamos nada. Frfvola, in- capaz de agarrar uma idéia, a mocinha pulava como uma cabra em redor dos canteiros e pulava de um assunto para outro. O que me aborrecia nela eram Certas inclinações imbecis ou safadas.

– Porque é que você não manda fazer urr, synoking, Lufs? Um rapaz que ganha dinheiro andar com essas roupas mal-amanhadas! Eu, se fosse você, brilhava, vivia no trinque.

Eu pilheriava com ela: – Maria, nem só de smoking vive o homem.

Outras vezes: – D. Mercedes estava hoje chamando a atenção de todo o mundo na Igreja do Rosário. Vestido cor de Cinza com vivos encarnados, luvas cor de cinza, bolsa encarnada, chapéu encarnado e sapatos encarnados.

Você gosta do encarnado? D. Mercedes é uma espanhola madura da vizi- nhança, axnigada em segredo com uma personagem oficial que lhe entra em casa alta noite. Possui mobi- lia complicadfssima, passa os dias olhando-se ao espe- lho e polindo as unhas, metida num peigno’ir de seda, e quando mergulha na banheira, sente-se de longe o cheiro da água-de-colônia. Marina admirava-a com exa- gero, arregalando os olhos: – D. Mercedes é linda. Parece uma artista de ci nema.

Eu me aperreava: – Que tolice! Vocé elogiando uma tipa ordinária uma galega de arribação que ninguém sabe donde saiul Não está direito. Uma bicha feia e velha, um couro, mr canhão! Marina excitava-se: – Que couro, que nada! D. Mercedes é uma se nhora vistosa, bem conservada, muito distinta. E rica Tem filha no colégio e manda dinheiro ao marido.

Vejam que miolo. E que tendências. Eu, se nã fosse um idiota com fumaças de homem prático, lidi e corrido, teria cortado relações com aquela criaturE Admirar uma estrangeira que vive só, tem filha no cc légio e sustenta marido ausente! Estirava-me na espreguiçadeira, abria o livro; cat rancudo. A leitura não me atraía, mas atirava-me a ela Marina ficava por ali, rondando, machucando pétala de rosas, acanhada, o nariz comprido, procurando con versa. Dava um giro entre os canteiros, temperava goela e, de repente : – Que livro é esse que você está lendo? Fingia-me distraído, encostava a cara ao volumi – Deve ser uma obra interessante.

– Nem por isso.

– Eu também estou lendo um livro interessant da biblioteca das moças. Muito penoso.

Olhava-a com ódio: – Passe bem, Marina.

Aproximando-me da cozinha, percebia a voz de V tória, que resmungava junto à gaiola do Currupaco: – Franguinha assanhada. Cochichando com u homem no escurol Cabrita enxerida.

Realmente estava escuro. As vezes a gente se es- quecia do tempo e entrava pela noite na prosa. Um foco da iluminação da rua embranquecia um pedaço do muro.

Currupaco pregava-me o olho redondo, encolhia a perna e escondia a cabeça com’ tédio.

– Safadinha, enxerida, insistia Vitória quando me via as co.stas.

Punha-me a passear pela casa. Chegava à porta da rua, voltava, marchava até a sala de jantar, fazia meia-volta, e assim por diante, pisando com força.

Um smoking, imaginem. Para que diabo queria eu um . srrcokiag? Teria graça estar ali contando os passos ou ir ao café, vestido num synaking. Estúpida.

– Um romance comovente. Esquécf o nome do autor. Enredo bonito.

Estúpida. Lia as notas sociais, casamentos, batiza,- dos, aniversários, coisas deste gênero. Estúpida.

Fatigado, sentava-me um instante na sala de jan- tar. A parada justificava outra, instantes depois, à ja nela da rua. Debruçava-me, olhava os paralelepfpedos, a sarjeta, o poste de ferro, os arames, a calçada da casa à esquerda. Virava-me para a esquerda. O outro lado não me interessava. Uma pancada no postigo, e recomeçava o passeio. Nova demora na sala de jantar.

Coçava a barriga do gato, que se espreguiçava, esti- rava as pernas. Sem-vergonha, parecia mulher. O quin- tal estava escuro. Por cima das árvores havia claridade, até se enxergava, a distância, um anúncio que se podia ler; mas perto do chão era aquele pretume. Fastidiosa música de grilos, certamente no canteiro das horta liças.

A quanto subiria a fortuna que Vitória tinha ali enterrada? A minha situação não era das piores. Uns três contos de economias depositados no banco. Hát gente que se casa com menos e vive.

Pela porta da cozinha via-se na parede a sombra da cabeça de Vitória, enorme, por cima da sombra do jornal.

– b Vitória, prepare o café.

Precisava ir sacudi-la: – O café, Vitória.

– An! Afastava-me. A chaleira chiava no fogão. A som- bra desaparecia. Arrastar de pés e sons resmungados: – Peruinha, cabritinha descarada.

Punha-me também a arrastar os pés na sala de jantar, fumava, bebia um trago de aguãrdente.

– Mulheres há muitas.

E o diabo da música dos grilos. As letras do anún- cio eram enormes.

Daf a pouco lá ia de novo para o corredor, che- gava à janela da frente, abria o postigo, olhava a rua.

Mas não me voltava para a direita. Os paralelepípedos, os arames, a sarjeta. A bichinha sem-vergonha devia andar ali perto, saracoteando na calçada, indo espiar a s.ala de d. Mercedes e os móveis de d. Mercedes.

Não me voltava.

– Para o diabo. Aqui me preocupando com aque- la burra! Unhas pintadas, beiços pintados, blblioteca das moças, preguiça, admiraçâo a d. Mercedes – total: Rua da Lama. Acaba na Rua da Lama, sangrando na pedra-lipes. Vamos deixar de besteira, seu Luís. Um homem é um homem.

* * * Foi por aquele tempo que Julião Tavares deu para aparecer aqui em casa. Lembram-se dele. Os jornais andaram a elogiá-lo, mas disseram mentira. Julião Ta- vares não tinha nenhuma das qualidades que lhe atri- buíram. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, pa- triota, falador e escrevedor. No relógio oficial, nos cafés e noutros lugares freqüentadcs cumprimentava-me da longe, fingindo suberioridade: – Como vai, Silva? A noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava, desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinete de trabalho. E lá vinham intimidades que me aborre- ciam. Linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensa- mento nenhum.

Conheci esse monstro numa festa de arte no Insti- tuto Histórico. De quando em quando um cidadão se levantava e lia uma composição literária. Em seguid uma senhora abancava ao piano e tocava. Depois outr declamava. Aí chegava de novo a vez do homem, assim por diante. Pelo meio da função um sujeito got do assaltou a tribuna e gritou um discurso furios e patriótico. Citou os coqueiros, as praias, o céu azu; os canais e outras preciosidades alagoanas, desceu começou a bater palmas terrfveis aos oradores, ao poetas e às cantoras que vieram depois dele. A safd deu-me um encontrão, segurou-me um braço e impe diu que me despencasse pela escada abaixo. D°s culpou-se por me haver empurrado, agradeci ter-m agarrado o braço e saímos juntos pela Rua do Sol Repetiu pouco mais ou menos o que tinha dito no dis curso e afirmou que adorava o Brasil.

– Ah! Eu vi perfeitamente que o senhor é pa triota.

Foi a conta.

– Quem o não é, meu amigo? Nesta hora trágic; em que a sorte da nacionalidade está em jogo. ..

– Efetivamente, murmurei, as coisas andam preta Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo po alto a vida, o nom° e as intenções do homem. Famíli; rica. Tavares & Cia., negociantes de secos e molhado; donos de prédios, membros influentes da Associaçã Comercial, eram uns ratos. Quando eu passava pel; Rua do Comércio, via-os por detrás do balcão, doi sujeitos papudos, carrancudos, vestidos de linho pard e absolutamente iguais. Esse Julião, literato e bacha rel, filho de um deles, tinha os dentes miúdos, afiado, e devia ser um rato, como o pai. Reacionário e ca tólico.

– Por disciplina, entende? Considero a religião un sustentáculo da ordem, uma necessidade social.

– Se o senhor permite…

E divergi dele, porque o achei horrivelmente anti pático. Ouviu-me atento e mostrou desejo de saber o qm eu era. Encolhi os ombros, olhei os quatro cantos, fi; um gesto vago, procurando no ar fragmentos da mi nha existência espalhada.

– Luís da 8ilva, Rua do Macena, número tanto Prazer em conhecê-lo.

E meti-me no primeiro bonde que passou. Mas não consegui desembaraçar-me do homem. Dias depois fez-me uma visita. Em seguida familiarizou-se. E era Luis para aqui, Luís para ali, elogios na tábua da venta, só com o fim de receber outros. Não tenho jeito para isso. Duas, três horas de chateação, que me dei- xavam enervado, besta, roendo as unhas.

Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca es- tudei, sou um ignorante, e julgo que os meus escritos não prestam. Mas adquiri cedo o vício de ler romances e posso, com facilidade, arranjar um artigo, talvez um conto. Compus, no tempo da métrica e da rima, um livro de versos. Eram duzentos sonetos, aproximada- mente. Não me foi possível publicá-los, e com a idade compreendi que não valiam nada. Em todo o caso acompanharam-me por onde andei. Um dia, na pensão de d. Aurora; o meu vizinho Macedo começou a elo- giar um desses sonetos, que por sinal era dos piores, e acabou oferecendo-me por ele cinqüenta mil-réis. Nem foi preciso copiar: arranquei a folha do livro e recebi o dinheiro, depois de jurar que a coisa estava inédita.

Macedo transigiu comigo umas vinte vezes. Infeliz- mente voltou para S. Paulo sem concluir o curso. Des- de então procuro avistar-me com moços ingênuos que me compram esses produtos. Antigamente eram estam- pados em revistas, mas agora figuram em semanários da roça, e vendo-os a dez mil-réis. O volume está re- duzido a um caderno de cinqüenta folhas amarelas e roídas pelos ratos.

Trabalho num jornal. A noite dou um salto por lá escrevo umas linhas. Os chefes politicos do interior brigam demais. Procuram-me, explicam os aconteci- mentos locais, e faço diatribes medonhas que, assina- dae por eles, vão para a matéria paga. Ganho pela redação e ganho uns tantos por cento pela publicação.

Arrumo desaforos em quantidade, e para redigi-los ne- cessito longas explicações, porque os matutos são con- fusos, e acontece-me defender sujeitos que deviam ser atacados. Além disso recebo de casas editoras de se- gunda ordem traduções feitas à pressa, livros idiotas desses que Marina aprecia. Passo uma vista nisso, alinhavo notas ligeiras e vendo os volumes no sebo. Al guns rapazes vêm consultar-me : – Fulano é bom escritor, Luis? Quando não conheço Fulano, respondo sempre: – E uma besta.

E os rapazes acreditam.

Ora, foi uma vida assim cheia de ocupações cace tes que Julião Tavares veio perturbar. Atravancou-m; o caminho, obrigou-me a paradas constantes, buiiu-mE com os nervos.

As vezes eu estava espremendo o miolo para obte uma coluna de amabilidades ou descomposturas. É c que sei fazer, alinhar adjetivos, doces ou amargos, err conformidade com a encomenda. Moisés entrava, pu xava uma cadeira, sentava-se, abria o jornal. Vinh Pimentel, amarelo, triste, silencioso. Seu Ivo, bëbedo acocorava-se a um canto e punha-se a babar, cochi lando. Nenhuma dessas pessoas me incomodava. Tra balhava diante delas como se estivesse só, e ninguérr me interrompia.

– Revolução na China, dizia Moisés.

Pimentel estirava o pescoço e enrugava a testa farejando assunto. E lá vinham confusamente os chi neses do telegrama. Seu Ivo queixava-se da carestia do: gêneros. Apertava o cinturão, bocejava, pedia comida Eu dava respostas sem perceber direito as pergunta: e sem interromper o trabalho. As frases iam pingandc no papel, umas traziam as outras, e no fim lá estav aquela prosa medida, certinha, que me enjoava. Quan do a expressão fugia ou as idéias se misturavam, acen dia um cigarro. E, enquanto desanuviava a cabeça punha os olhos distraídos na figura aniquilada de seL Ivo, que ali estava no canto da parede, babando-se, a: pálpebras cerradas. As mãos eram dois calos escuros os pés descalços eram patas achatadas.

Seu Ivo não mora em parte nenhuma. Conhecf o Estado inteiro, julgo que viaja por todo o nordeste Entra nas casas sem se anunciar, como um cachorro dirige-se às pessoas familiarmente, sempre a pedir co mida. Passa alguns meses numa cidade, some-se de repente; aboleta-se nas povoações, nas fazendas, na capital. Freqüenta as salas de jantar e as cozinhas.

I Quase não fala: balbucia lrases ambfguas, aperreado, sempre na carraspana. Faz o que lhe mandam, recebe ‘ o que lhe dão, mas não agradece e não faz nada com jeito.

– Seu Luisinho, sinha Vitôria, cadê a bóia? E se não lhe damos atenção, conversa com o gato, conversa com o papagaio, acaba mexendo nas panelas, furtando objetos miúdos que não utiliza.

Depois de um ano de ausência, pergunto-lhe: – Como vai, seu Ivo? Mas estou pensando noutra coisa.

– Ruim, tudo safado, seu Luisinho. A barriga tinindo.

E põe-se a chorar como um desgraçado. Continuo a construir mentalmente o período interrompido.

– Vá comer, seu Ivo. Vitória, um prato para seu Ivo.

O homem do Instituto atrapalhou-me a vida e se- parou-me dos meus amigos.

* * * – Que diabo vem fazer este sujeito? murmurei com raiva no dia em que Julião Tavares atravessou o corredor sem pedir licença e entrou na sala de jan- tar, vermelho e com modos de camarada, Soltei a pena, Moisés dobrou o jornal, Pimentel roeu as unhas. E assim ficamos seis meses, roendo as unhas, o jornal dobrado, a pena suspensa, ouvindo opiniões muito diferentes das nossas. As de Moisés são francamente revolucionárias; as minhas são fragmen- tadas, instáveis e numerosas; Pimentel às vezes está Comigo, outras vezes inclina-se para Moisés.

Raramente discutfamos. O judeu cansava-se em dissertações longas, que eu aprovava ou desaprovava com a cabeça. Acontecia aprovar agora e reprovar de- pois. Quando bebia, tornava-me loquaz e discordava de tudo só por espírito de contradição: – Históriat Esta porcaria não endireita. Revolu- çâ,o no Brasil! Conversa! Quem vai fazer revolução? Os operários? Espere por isso. Estão encolhidos, homem.

4? E os camponeses votam com o governo, gostam do vigário.

O que eu queria era convencer-me de que não tf- nha razão. Desejava que Moisés estirasse argumentos e seu Ivo se revoltasse.

– Números. Nada de tapeaçâo. Estatistica.

O judeu falava em milhões de desempregados, em consciência de classe, voltava-se para seu Ivo, que não compreendia a Ifngua dele: – Não entendo. Vossemecês são brancos, lá se arrumem .

Eu aritava ao ouvido da criada: – Ele diz que a gente não precisa de Deus. Nem de Deus nem de padres. Vai acabar tudo.

– Credo em cruz! opinava a mulher.

E ia para a cozinha. Julgo que nunca se ocupou com assuntos referentes à alma. Rezava em voz alta.

A noite sapecava o padre-nosso e a ave-maria, antes das somas. Agora dizia “Credo em cruz!” e ia prepasar o café, ler os embarques e os desembarques, junto à gaiola do Currupaco. Seu Ivo metia os olhos gulosos pelos vidros do guarda-comidas: – Seu Luisinho vai bem. Tanto pão! Tanta carne! Escancarava a boca, mostrava os dentes brancos, estirava os braços musculosos.

– Uma fora perdida, dizia Moisés.

Talvez houvesse também algurria inteligência per- dida por detrás daqueles olhos mortos pela cachaça.

Um sujeito inútil, sujo, descontente, remendado, fa- minto.

O outro sujeito inútil que nos apareceu era muito diferente. Gordo, bem vestido, perfumado e falador, tão falador que ficávamos enjoados com as lorotas dele. Não podíamos ser amigos. Em primeiro lugar o homem era bacharel, o que nos distanciava. Pimentel, forte na palavra escrita, anulava-se diante de Julião Tavares. Moisés, apesar de falar cinco línguas, emu- decia. Eu, que viajei muito e sei que há doutores quar- taus, metia também a viola no saco.

Além disso Julião Tavares tinha educação diferen- te da nossa. Vestia casaca, freqüentava os bailes da Associação Comercial e era amável em demasia. Amabilidade toda na casca. Ouvi-o, na festa de aniversário de um figurão, conversar com uma sirigaita. Eu estava bebendo cerveja no jardim, e eles num caramanchão diziam besteiras horrfveis. Como falavam alto, percebi claramente as palavras de Julião Tavares. Não tinham sentido. Como o discurso do Instituto Histórico.

Pois foram tolices assim que aquele tipo nos veio impingir. Horrivel. Diante dele eu me sentia estúpido.

Sorria, esfregava as mãos com esta covardia que a vida áspera me deu e não encontrava uma palavra para dizer. A minha linguagem é baixa, a,canalhada. As ve- zes sapeco palavrões obscenos. Não os adoto escre- vendo por falta de hábito e porque os jornais nâo os publicariam, mas é a minha maneira ordinária de falar quando não estou na presença dos chefes. Com Moisés dá-se coisa semelhante. Apenas, se lhe acontece engasgar-se, recorre a locuções estrangeiras. As nossas conversas são naturais, não temos papas na língua.

Abro um livro, fico alguns minutos fazendo cacoetes, de repente dou um grito: — Que sujeito burro! Puta que o pariu! Isto é um cavalo.

Moisés toma o volume, lé uma página com aten- ção, funga.ndo: – Tem coisas boas, tem idéias.

– Que idéia! Isto é um sendeiro, não sabe es- Crever.

Julião Tavares veio tornar impossíveis expansõe3 assim. Dizia, referindo-se a um poeta morto: – Era um grande espírito, um nobre espírito.

Quanta emoção! Além disso conhecimento perfeito da língua. Artista privilegiado.

Filho de uma puta. Esse artista privilegiado aper- reou-me durante semanas, tirou-me o apetite. Na re- partição, no cinema, no jornaa, no café, perseguia-me a lemrrança da voz antipática: – Um grande espirito, um nobre espirito. Emoção e conhecimento perfeito da língua.

‘ Filho de uma puta. Não podia ser nosso amigo.

Encontrava-me na rua: – Como vai, Silva? E ali, no outro lado da mesa, as pernas cruzadas, com a intenção de se demorar – sorrisos, patriotis- mo, a grandeza do poeta morto.

Comecei a odiar Julião Tavares. Farejava-o, perce- bia-o de longe, só pelo modo de empurrar a porta e atravessar o corredor.

– Canalha! E rangia os dentes, arrumava os papéis tremendo de raiva. Tudo nele era postiço, tudo dos outros Se aquele patife tivesse chegado aqui natural- mente, eu não me zangaria. Se me tivesse encomen dado e pago um artigo de elogio à firma Tavares & Cia., eu teria escrito o artigo. E isto. Pratiquei neste mundo muita safadeza. Para que dizer que nãe pratiquei safa- dezas? Se eu as pratiquei! E melhor botar a trouxa abaixo e contar a história direito. Teria escrito o ar- tigo e recebido o dinheiro. O que não achava certo era ouvir Julião Tavares todos os dias afirmar, em linguar gem pulha, que o Brasil é um mundo, os poetas alagoanos uns poetas enormes e Tavares pai, chefe da firma Tavares & Cia., um talento notável, porque jun- tou dinheiro. Essas coisas a gente diz no jornal, e ne- nhuma pessoa medianamente sensata liga importância a elas. Mas na sala de jantar, fumando, de perna trançada, é falta de vergonha. Francamente, é falta de vergonha.

* * * – Boa tarde, d. Adélia. Como vai a senhora? – Assim, assim, respondeu a mãe de Marina en- costando-se à janela para esconder a saia encardida.

Hoje em dia quem é que vai bem? Agora eu conhecia mais ou menos d. Adélia, fa- lava com ela, parava na calçada às vezes: – “Bom dia, boa tarde, sim senhora, como tem passado?” Conhecia também o marido, seu Ra,malho, sujeito ca- lado, sério, asxrático, eletricista da Nordeste. Não gos- tava de mim, provavelmente por causa das minhas palestras com a filha. Perturbava-nos: – Marina, venha lavar os pratos. Marina, venha cuidar das panela,s. Lugar de moça é a cozinha.

T Ora, se Marina lfdava com pratos e panelas! – Velho pau! E continuava na prosa.

– Cuidado com o sereno, Marfna.

– Se isto é coisa que se suporte! Entrava dando muxoxos, arrelfada.

Seu Ramalho era uma criatura seca por natureza e humilde por offcio. Tinha um sorriso franzido, um ombro alto e outro baixo. D. Adélia, bamba, a voz su- mida, os olhos assustados, parecia viver escondendo-se.

Agora estava resolvida a conversar. Serfa a respeito do meu namoro com Marina? Suspirou, mexeu os beiços, tornou a suspirar: – Tudo pela hora da morte, seu Luis.

– É verdade, tudo pela hora da morte, d. Adélfa.

A senhora já reparou nos preços dos remédios? A far- mácia tem uma goela! D. Adélia fez um gesto de desalento: – Nem me fale. A gente não pode adoecer mais não, seu Luis.

Ficamos um instante calados, olhando a rua, cons- trangfdos.

– Sim senhora, murmurei esfregando as mãas e 8orri;ndo para o mulherão sardento.

– E isso mesmo, respondeu d. Adélia.

E, depofs de um silêncio comprfdo, enrolando as mãos no babado da roupa: – Para sustentar uma casa a gente torce a orelha.

Concordef com alvoroço: – Torce, d. Adélfa. Que dúvfda! Depois do dia vinte é preciso que uma pessoa se tranque para en- curtar a despesa. Porque na rua é o café, o bilhete de teatro, a subscrfção. Um horror.

– E o mercado, seu Luís! Quer chova, quer faça sol, é alf no duro. Nfnguém pode passar sem comer.

– Perfeitamente, d. Adélfa. Ninguém pode passar eem comer. O pior é o aluguel da casa. O aluguel da casa, d. Adélfa! Quanto paga a senhora pelo aluguel da casa? – Cento e trinta mfl-réis. Um roubo.

– Eu pago cento e vinte. Um roubo mafor, que aquilo não é casa. Uns quartfnhos escuros, sujos. E tan to buraco de rato como nunca se viu. Uns ratinhos miúdos, deste tamanho, não sef se a senhora conhece danados para roer pano. Não tenho um lenço inteiro, tudo furado.

– Aqui é o mesmo, declarou d. Adélia.

Deu um suspiro que elevou o peito volumoso, curvou-se mais para fora : – õ seu Lufs, eu queria pedir-lhe um favor. Faz uma semana que estou matutando e sem coragem. Ioje botei a vergonha de banda.

– Que é que há, d. Adélia? D. Adélia reeditou o suspiro : . – Estive pensando . . . Se o senhor puder, ouviu? Pedir nâo é desonra. A gente faz das tripas coraçâo.

Necessidade tem cara de herege.

– Diga, d. Adélia.

A vizinha baixou mais a voz, que tremia, e o carão sardento ficou encarnado como o vestido de chita: – É por causa da Marina. Assim desocupada com as mãos abanando . . . Ela não é preguiçosa. Cose, borda mas trabalho de mulher em casa nã.o adfanta. Gasta-se tempo sem fim num bordado e recebe-se uma ninharia.

Se fosse possivel arranjar um emprego para Marina. .

Acendi um cigarro, pus-me a contãr os paralelepi- pedos sem me animar a desiludir a vizinha.

– Dê uma penada por ela.

Coitado de mim.

– Diffcil. E preciso pistolão.

– Eu sei, disse d. Adélia. Foi por isso que me lem- brei do senhor, que é bem relacionado. Só conhecemos o senhor.

– Mas d. Adélia, respondi aflito, a senhora está enganada. Eu sou um infeliz, não tenho onde cair morto. Uma recomendação minha não serve. Mas voa tentar, ouvfu? Seu Ramalho dobrou o beco da usina elétrica e veio vindo, lento, negro de azeite e carvão.

– Boa tarde.

– Boa tarde, seu Ramalho. Como vai essa gordura? Estávamos falando sobre a ca,restia.

Seu Ramalho estirou o beiço : – Cada dia vai ficando pior. 7 de fazer um cristão endoidecer. Ora, eu lhe conto.

Mas nã,o contou nada. Costuma defxar as frases em meio.

– Pois é como lhe disse, murmurei. Vamos ver.

Que, para ser franco, nem sei se a Marina se ajeita.

Ela. sabe datilografia? – Não sabe nada, atalhou seu Ramalho. Você foi amolar o rapaz com peditórios, mulher? Eu não lhe tinha dito que não tocasse nisso? – Que é que tem, seu Ramalho? Ela quer que a moça trabalhe. L na,tural.

– Trabalhar .em qué, meu amigo? Só se for em pintar a cara, que é o que ela sabe fazer.

D. Adélia, vexada, continuava a enrolar os dedos trémulos no vestido.

– Eu falei por falar. 8e fosse possfvel. Um orde- nadozinho gue desse para a roupa. Não há tantas moças empregadas? Nos telefones, nos correios . . .

– São pessoas que sabem onde têm as ventas, cria- tura, interrompeu seu Ramalho. Ou que arranjaram proteçáo. E sua filha entrou na escola e saiu como entrou. Ou as escolas não prestam ou ela é bruta de- mais. Emprego para roupa. Tem graça. Cinqüenta mil- réis de sapatos todos os meses. Não há dinheiro que chegue.

– O senhor é duro, seu Ramalho, arrisquei.

– Pois sim, respondeu o homem arqueja,ndo por causa da asma. E que vivo no toco, roendo um chifre.

Falava de cabeça baixa, os olhos no chão, os mí.s- culos da cara imóveis, a boca entreaberta, a voz bran- da, provavelmente pelo hábito de obedecer.

– Eu falei por falar, gaguejou d. Adélia caindo para uma banda, as banhas derramadas no parapeito da janela, onde fincava o cotovelo. Foi, a menina com as mâos abanando . . .

8eu Ramalho acendeu o cachimbo e p8s-se a esga- ravatar as unhas com o fósforo queimado : – E isso. Eu aqui não sei nada. Todo o mundo de rédea no pescoço. Casa de Conçalo. As mulheres mandam, e o corno velho é o último que tem conheci- mento das coisas.

58 Ant8nia, a criada de d. Rosátia, passou bambo- leando-se, foi até a esquina da Rua Augusta e esteve algum tempo conversando com um soldado de policia.

Voltou, sempre se rebolando e com as pernas abertas.

É uma criatura ingênua, meio selvagem. Acredita em tudo quanto lhe dizem e tem grande necessidade de machos. Quando pega um, entrega-se inteiramente.

Não escolhe, é uma rede.

Todas as tardes, findo o serviço, arruma a louça, veste os trapos melhores, calça os sapatos de verniz e sai. Se arranja algum dinheiro, deixa o emprego e amiga-se. Erra sempre. Ciasta as economias, volta ao trabalho, vai acumular novo pecúlio para sustentar novos amantes, novas decepções. E doida pelas crian- ças: passa o dia gritando, brincando com elas. Mas à noite esquece tudo e corre para a crápula. D. Rosália atura-a por causa dos filhos. Quando lhe faz as contas, diz numa voz áspera que ouço perfeitamente na sala de j antar: – Pegue o seu ordenado, Ant8nla, e suma-se, não torne a aparecer aqui.

Antônia recebe o salário, entrouxa os cacarecos, beij a as crianças e sai cantando, certa de que encon trou um homem. Volta faminta, com marcas novas de Ant8nia.

berreiro feio – e An vagabunda e galicada A cabocla respondeu descerrando os beiços gros- sos e mostrando os dentes largos num sorriso infantil.

Seu Ramalho não a viu: estaa de cabeça baixa, mono- logando, remexendo a cinza do cachimbo com o iós- foro. D. Adélia continuava encalistrada, bicuda, ma- chucando o vestido. Senti-me leve, quase alegre, e es- pantei-me de ver aquelas caras fúnebres.

– Isso no tem importãncia. Procurando bem…

Há muitas por ai cavando a vida. Vamos ver se arran- jamos alguma coisa, d. Adélia. Vamos ver. Depois lhe digo.

feridas.

– acabas no hospital, Mas as crianças fazem um t8nia fica.

A presença dessa criatura traz-me sentimentos bons.

– Como vai, Ant8nia? – História, murmurou seu Ramalho com desãni mo. Aquela não dá para nada. O homem que casar com ela faz negócio ruim.

* * * Como era grande o calor, abri a janela do quintal.

Uma baforada de ar quente bateu-me no rosto. Debru- cei-me e distrai-me acompanhando com a vista os mo- vimentos da mulher que lava garrafas. O gato pulou de um galho da mangueira, saltou o muro, trepou num monte de lixo e cacos de vidro. O homem triste andava entre as pipas, debaixo do telheiro, a encher dornas.

Que estaria fazendo Marina? Pensei em d. Merce- des. Vida bem sossegada a dessa galega. Um sem-ver gonha o figurão que a sustentava, um caloteiro: devia os cabelos da cabeça e dava festas, punha automóveis à disposição da amásia. Como diabõ podia um macho gostar daquela tipa de carnes bambas? – Ladrões, velhacos, porcos! Bati a janela com força. Depois voltei a abri-la.

A mulher magra, de cócoras, a saia entalada entre as pernas, continuava a lavar garrafas. O homem triste passeava entre as pipas.

Com certeza a minha vizinha àquela hora pintava as unhas. Indignei-me: – õ Vitória, porque não varre esta casa direito? Cisco por toda a parte, montes de cisco. Tudo cheio de poeira.

Vitória rião percebeu a repreensão. Agarrei uma toalha e esfreguei com ela o guarda-louça: – Porcaria! Peguei urn livro, abri a porta e desci os degraus do quintal, furioso com o amante de d. Mercedes. Ve- lhaco. Devia nas lojas, devia nas mercearias, devia ao alfaiate. Atracado aos usineiros, aos banqueiros, os ho- mens da Associação Comercial, numa adulação torpe.

Os credores miúdos deixavam-se esfolar com medo; os grandes sangravam por conveniência: tinham interes- ses, arranjavam o que queriam. E um safado como aquele era troço no Estado. Que desgraça! Deitei-me na espreguiçadeira, acendi um cigarro, abri o livro e comecei a ler maquinalmente. De quan- do em quando bocejava, suspendia a leitura incom- i. preensfvel.

O jardim, que a antiga inquilina vinha regar todas as manhãs, estava sujo, maltratado, coberto de gar- ranchos e folhas secas.

Soltei o livro e fechei os olhos, aborrecido. Mas os olhos não ficaram bem fechados: através das pálpebras meio cerradas distinguiam-se as coisas que estavam perto do chão, dez ou quinze metros em redor – o tronco do mamoeiro, o monte de lixo, as florinhas desbotadas. D. Adélia, no banheiro, lavava roupa, e a água espumosa corria de lá, vinha estagnar-se numa poça junto à cerca.

Se aquela tonta prestasse, estaria ajudando a mãe, ensaboando panos. Preguiça. Estava era lendo bestei- ras, arrancando cabelos das sobrancelhas com a pinça ou raspando os sovacos. A princfpio ainda tratara dos canteiros. Habituara-se depois a levar para ali um ro- mance, que não abria. Conversava. E eu me zangava com as conversas dela, que, como já disse, eram ma- lucas. Zangava-me de verdade. Mas estava ali com os olhos meio fechados, espiando os canteiros e esperando que a mulherinha chegasse.

Fazia uma semana que eu andava cavando uma colocação para ela. Arranjar emprego, como não igno- ram, é dificuldade. As pessoas a que a gente se dirige sorriem. Tudo fácil, às ordens, perfeitamente. Escutam as choradeiras com paciência e escrevem cartões a ou- tras pessoas. Estas escrevem outros cartões, e assim por diante. Cada um se desaperta. Eu falara ao diretor da minha repartição.

– Doutor, tenho uma vizinha que faz pena, moça prendada. Mata-se para ajudar a familia, mas, como sabe, trabalho de mulher em casa não rende. Se o se- nhor pudesse, com a sua influência…

O diretor respondera distrafdo: – Está bem. Vamos ver.

Noutras repartições, a mesma história com peque- nas variantes: – Moça decente, instruida, matando-se para au- xiliar a familia. Um modelo. A mãe doente . .

Enfim uma cambada de mentiras inúteis. Nos t bancos: – Moça digna, alguns conhecimentos de escritu- ração mercantil e de aritmética.

. Nos armazéns: – Muito preparo, muita leitura, excelente cal- culista. Podia encarregar-se da correspondência.

Nas redações: – ó Fulano, você não me arranja ai na expedi- ção qualquer coisa para uma moça que eu conheço? Um osso, uma sinecura que justifique dofs ou três vales ; por mês.

I Afinal fora encontrar para Marina um emprego de cem mil-réis numa loja de fazendas. E ali estava espiando o quinta,l com o rabo do olho.

Chap, chap, chap. Era o vascolejar da água naz I , garrafas. Lfquido se derramava: o homem triste en- chia dornas. D. Adélia tossia no banheiro, espremendo ( . roupa. E Vitória, na cozinha, cantava: – “Currupa- ! co, papaco. A mulher do macaco . . . ” Um galo no gali- nheiro pôs-se a arrastar a asa a uma franga. Eu estar J , va fazendo ali a mesma coisa, apena,s com mais habi- lidade e mais demora. A franga não aparecia. Quem I,;F. se ligasse a ela faria negócio mau, seu Ramalho tinha ,.,, . razão. Se ele, que era pai, sustentava opinião assim, ° imaginem. Sovaco raspado, unhas cor de sangue e so- ‘ brancelhas que eram dofs traços. Mulher pelada. Para : que diabo uma pessoa arrancar as sobrancelhas.

De repente a frangufnha surgiu dentro do meu re- r; duzido campo de observação. Com.o disse, eu apenas ., enxergava uns dez ou quinze metros do jardim. Pri- meframente distingui as biqueiras vermelhas de uns sa.patos, aqueles sapatos que, segundo a declaração de seu Ramalho, custavam cinqüenta mil-réis e duravam um mês. Para ir ao quintal, sapato de sair e meia de seda esticada no pernão bem feito. Õtimas pernas. As coxas e as nádegas, apertadas na saia estreita, esta- vam com vontade de rebentar as costuras.

Talvez a franguinha tivesse percebido que eu fin- gia dormir: pôs-ss a ciscar por ali, rindo baiadnho, : T avançando, recuando, mostrando-se pela frente e pela retaguarda. Eu respirava com dificuldade e pensava nas lições de geografia de seu Antônio Justino: – “Primeiro desaparece o casco, depois os mastros.” Era o contrário que se dava agora: quando Marina se afas- tava, desaparecia em primeiro lugar a parte superior do corpo, isto é, a cintura, pois a cabeça e o tronco estavam fora do meu campo de observação.

Voltava-me as costas: – Chi, chi, chi.

Um riso semelhante a um cochicho. Curvava-se para a frente: a cintura fina sumia-se, os quadris au- mentavam. O pano marcava-lhe a s.eparação das nádegas. Um passo, outro passo. As ancas morriam, agora eram as coxas grossãs. flutro passo: uma ruga na meia cor de creme mostrava a articulaçâo da coxa com a perna. E a perna cheia ia adelgaçando até fin- dar num jarrete fino encastoado no tacão vermelho do sapato.

– Chi, chi, chi.

O cochicho risonho afastava-se, chegava-me aos ouvidos como o chiar de um rato. Chiar de rato, exata- mente. Chiar de rato ou carne assada na grelha. Pa- recia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, Gue a minha carne se assava e chiava. Os tacões verme- lhos viravam-se para o outro lado. As biqueiras sur- giam e avançavam. Lá vinham pedaços de canelas. As mãos puxavam a saia para trás, distinguiam-se os joe- lhos e as coxas. Como vinha curvada para a frente, a barriga desaparecia.

– Chi, chi, chi.

O rato roía-me por dentro. Senti cheiro de carne assada. Não, cheiro de fêmea, o mesmo cheiro que antigamente me perseguia, em rreses de quebradeira.

– “D. Aurora, veja se me arranja um quarto mais barato. Os tempos andam safados, d. Aurora.” As pernas de Berta eram assim bem torneadas.

Apenas as de Berta eram nuas, tudo em Berta era nu.

– Chi, chi, chi.

Lá estavam novamente os quadris expostos. Para que aqueles panos? gritei interiormente. Não era melhor que se descobrisse tudo? Coxas descobertas, rabo descoberto.

Foi assim que vi Marina entre as pestanas meio cerradas, como Berta me aparecia. As nádegas cres- ciam monstruosamente – e eu mal podia respirar.

Se d. Adélia e Vitória viessem ali, veriam aquela ar- mada: Marina despida, curvada para a frente, mos- trando um traseiro enorme.

Tolice. D. Adélia, fria, com o pensamento distante de coisas assim, espremia camisas molhadas no ba- nheiro. E Vitória conversava com o Currupaco, o vi- vente que ela estima e não lhe provoca imagens in- decentes.

Chap, chap, chap. A mulher magra não acabava de lavar garrafas. Ã torneira derramava líquido na dorna. Ouvia-se perfeitamente. A princípio chega- va-me um som confuso. Agora, porém, os sentidos irri- tados percebiam tudo. O chap-chap da mulher, o ru- mor do líquido, pregões de vendedores ambulantes, rolar de automóveis, a correria dos filhos de d. Rosá- lia no quintal próximo, o cheiro das flores, dos mon- turos, da água estagnada, da carne de Marina, entra- vam-me no corpo violentamente. Apertei as pálpebras.

A poça de água, os canteiros mofinos, o monte de lixo sumiram-se. O que eu via bem eram os quartos brancos de Marina curvada, as coxas brancas.

– Chi, chi, chi.

Devia estar um pouco afastada, mostrando apenas os tacões ou as biqueiras dos sapatos. Mais perto, mais perto, o cheiro mais vivo, o chichichi mais perceptfvel – e eu sentia uma espécie de desmaio com aquela apro- imação. O livro caiu, cruzei as pernas, sentei-me, vi Marina em pé junto da cerca, rindo como uma doida: – Puxa! Que olhos abotoados! Parece que vai ter uma congestão.

Eu devia estar ridículo. Baixei a cara, com ver- gonha, e pus-me a esfregar as pálpebras, a agitar a cabeça para espalhar as ruindades que havia dentro dela. Quando terminei a esfregação, Marina continua- va no mesmo lugar, exibindo os dentinhos, com tanta malícia no rosto que fiquei besta, acuado. Felizmente podia vê-la da barriga para cima.

..

– Cara de mal-assombrado, pilheriou Marina. S nhou com alma do outro mundo? A visão obscena e os desejos lúbricos esmoreceran – Sonhei nada! Estava num entorpecimento estúpido. Tive a in pressão extravagante de que o ar havia tomado c repente a consistência mole e pegajosa de goma-ar! bica. Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, n dava, desesperadamente bonita, o peitinho redondo si bindo e descendo, a querer saltar pelo decote baix pimenta nos olhos azuis, os cabelos de fogo desmax chando-se ao vento morno e empestado que soprav dos quintais. Veio-me o pensamento maluco de que t nham dividido Marina. Serrada viva, como se fazi antigamente. Esta idéia absurda e sangüinária deu-rr: grande satisfação. Nádegas e pernas para um lado, cf beça e tronco para outro. A parte inferior mexia-; como um rabo de lagartixa cortado. Mas eu nâo repa rava na parte inferior, que tanto me perturbara: reci bia as faíscas dos olhos azuis e deejava enxugar cor beijos a saliva que umedecia os beiços um pouco gro sos da minha amiga. Estava linda. Tinha corrido pc ali alguns minutos como um rato, chiando. Eu era m gato ordnário. Podia saltar em cima dela e abocf nhá-la: ao pé das estacas podres que Vitória remov todos os meses, desafiava-me com os olhos e com c dentes miúdos. Não saltei. O que fiz foi arranjar um carranca sérfa, que devia ser burlesca, porque Marin soltou uma gargalhada.

– Marina, grunhi, sua mâe não lhe falou? – Sobre o quê? – Sobre uma colocação. Uma colocação para voci Sim, é bom uma pessoa pensar no futuro. Vocês nã conversaram? – Não.

– Ah! Pensei que tivessem conversado. Pois Sua mâe me falou e eu andei por aí rrartelando. Fi o que pude.

Marina tinha agora o rosto comprido e uma rug entre as sobrancelhas: – Parece que minha mãe está com pena do bc cado que me dá.

so – Não diga isso, crfatura. E para o seu bem.

D. Adélia saiu do banheiro com uma bacfa de roupa molhada, que fa enxugar lá dentro, a ferro.

– Boa noite, gritou de longe.

E entrou logo. Ia escurecendo, e aquele boa naite era uma espécie de censura, que ela não fazia clara- mente porque tinha medo da filha.

– Está af, Marina. A pobre a esta hora lavando roupa! Marina, em silêncio, quebrava torrões com o salto do sapato.

– Você me desculpa a franqueza. Eu não devfa estar dando opinião sobre sua casa. E porque Ihe te- nho muita amizade. Por isso andei pedindo por af.

– Encontrou alguma coisa? perguntou Marina sem entusiasmo.

– Encontrei. Para bem dizer, não encontref coisa boa não. Emprego público nã.o há. Tudo fechado, tudo escuro. Enfim sempre achei um gancho.

– Onde? – Numa loja. Cem mil-réis por mês. Um prin- cipio. Depois a gente cava serviço mais fácil e mais rendoso. O que é preciso é começar.

– Numa loja? disse Marina com um risinho mau.

Obrigação de aturar pilhérias e até descomposturas dos fregueses. E beliscões dos empregados. Muito bem.

– Oh! Marina! – Julgo que minha mãe está com intenção de me ver na rua. E você também está.

– Oh! Marina! Que horror! Se você não quer, acabou-se. Meti-me nisso porque sua mãe me pediu, compreende? E porque lhe quero muito bem.

Marina sensibilizou-se. Os olhos aguaram-se, o bef- cinho tremeu : – Obrigada, Lufs.

E estirou a mão. Levantei-me, tomef-lhe os dedos, 0 contacto da pele quente deu-me tremuras, acendeu os desejos brutais que tinham esmorecido. Olhando-a de cima para baixo, via-lhe os seios, que subiam e des- ciam, as coxas, a curva dos quadris. Veio-me a tenta- ção de rasgar-lhe a saia. E repetia como um demente: – É porque Ihe quero muito bem, Marina.

Apertei-lhe a mão, mordi-a, mordf o pulso e o braço. Marina, pálida, só fazia perguntar: ; – Que é isso, Lufs? Que doidice é essa.? Mas não se afastava. Desloquei as estacas podres, puxei Marina para junto de mim, abracei-a, beijei-lhe a boca, o colo. Enquanto fazia isto, as minhas mãos percorriam-lhe o corpo. Quando nos separamos, fica- mos comendo-nos cõm os olhos, tremendo. Tudo em redor girava. E Marina estava tão perturbada que se esqueceu de recolher um peito que havia escapado da roupa. Eu queria mordê-lo e receava ao mesmo tempo que d. Adélia nos surpreendesse, encontrasse a filha descomposta.

– Meu Deus! exclamou Marina sobressaltada.

E virou-se rapidamente. Quando tornou a mostrai o rosto, o peito havia desaparecido.

– Que foi que nós fizemos, Luís? E começou a choramigar. A comoção dela me trou xe alguma vaidade, um pouco de arrependimento e quase a certeza de que nunca ninguém lhe havia to cado nos peitos. Apesar da admiração idiota que Ma rina tinha a d. Mercedes, tomei aqueles soluços comc prova de inocência.

– Que foi que nós fizemos, Luís? A cantilena chorosa arrasava-me os nervos. Cocei a testa, agoniado: – É o diabo, Marina. Ninguém tem culpa. Fo; uma topada. E agora é continuar. Qualquer dia a gen te casa. E verdade, precisamos tratar disso. Você quf acha? Concordou pa.ssivamente, numa sílaba: – É.

Esta anuêncfa chocha me desorientou. Várias ve zes tinha pensado em amarrar-me a ela, e nunca mE passara pela cabeça a idéia de que a minha amigz hesitasse. Mordi os beiços, despeitado: – Falei nisto porque pensei . . . Compreende. Sim perfeitamente. Enfim você é quem sabe.

– Marina! gritou lá de dentro seu Iamalho. Cuf dado com o sereno.

– Está certo, disse Marina rapidamente. Velhc pau. Se você acha que deve ser . . . Adeus.

– Adeus, Marina. Outra coisa. Vamos deixar de besteira. Porque é que a gente não se encontra aqui no escuro, meia-noite, quando estiverem dormindo? Valeu? Dá cá um beijo.

– Venha lavar os pratos, Marina.

– Já vou.

E escapuliu-se correndo. Sentei-me na espreguiça- deira, apanhei o livro: – É uma dos diabos. Eu queria dar a ela alguma independéncia. Acabou-se. Gfosto da pequena, amarro uma pedra no pescoço e mergulho.

* * * Defronte da minha casa veio morar uma família esquisita, que não se relacionou com a vizinhança: um velho barbudo, encolhido, e trés moças amarelas, sujas, mal vestidas, ruivas e arrepiadas. O homem, de nome ignorado, andava olhando os pés, carrancudo, e não cumprimentava ninguém. As vezes surgia a figura de uma das moças à janela; mas se alguém aparecia na rua, o postigo se fechava silenciosamente.

– Eu queria saber que esnécie de gente é aquela, resmungava d. Adélia. Só bicho.

– E mesmo, d. Adélia, concordava AntBnia Tudo entocado. Só b;cho.

Seu Ivo procurou entrar na toca, bateu, pediu com:- da: não teve resposta. Um dia d. Mercedes atracou-me na passagem: – O senhor não me dirá que mistério é esse? – E eu sei? minha senhora.

– De que viverão eles? perguntava d. Adélia.

Seu Ramalho explicava.

– Cada qual tem seus ganchos.

– É exato, confirmava d. Adélia.

Enquanto a criada andava em busca de machos, d. Rosália esquecia os meninos e ficava horas ganhan- do calos nos cotovelos, o olho pregado na casa da fa- milia esquisita: – Que vidal Uma pessoa assim cria mofo. rTem vão à igreja.

– Talvez sejam protestantes, comentava seu Ra f malho.

– Com certeza. Devem ser bodes.

Até Marina fervia de curiosidade: – Luís, descubra isso, meu filho.

‘ De repente começaram a circular boatos fefos: a moças eram filhas e amantes do velho.

– Que horror! Logo três! – E por isso que ele anda capiongo. São remorsos ‘ – Provavelmente.

– Eu queria que me dissessem como se soube.

– Ora como se soube! Sabe-se tudo.

– Mas quem viu? O carvoeiro tinha visto o homem abotoado a um das sujeitas, no quarto. Porcaria. Nem fechavam porta. D. Mercedes resumiu o caso: – E verdade.

– O carvoeiro lhe contou, d. Mercedes? – Não, foi outra pessoa. Na cidade onde eles mc ravam todo o mundo falava. Foi o que me disseraxr Sei de fonte limpa.

Quem teria dito? Com certeza a personagem grat da que vivia com ela.

– Estâo ouvindo? d. Mercedes garantiu.

, – Até dá engulhos, exclamou Antônio cuspindc Comer três filhas! Que lobisomem! Daí em diante o velho se chamou Lobisomem.

– Parece que Lobisomem amanheceu doente. Nã saiu hoje.

– São pecados.

As crianças de d. Rosália contavam histórias d lobisomens, e o herói delas era o vizinho. A notfcia chE gou a,os ouvidos de Julião Tavares: – Diz que um velho por aqui destambocou a filhas? Como é? – Calúnias, respondeu Moisés.

– Em todo o caso é bom verificar isso. TalvE a gente pudesse agarrar uma.

Cachorro! Lobisomem continuava como tinha ch gado, indiferente, a cara enferrujada, tão distrafdo qu esbarrava com as pessoas, e os choferes paravam c autos violentamente para não atropelá-lo. E as filha coitadas, amarelas, feias, nem se penteavam. Saberiam alguma coisa? Talvez não soubessem. Ao mudar-se para ali, certamente já traziam uma carga de infeli- cidades. E era possfvel que houvessem percebido frag- mentos de horrores, gestos de desprezo, pilhérias ladra- das na rua. Pobre do Lobisomem! Não tinha hora para sair, hora para chegár. Sempre só. Nem um guarda- chuva, nem uma bengala, trãstes necessários a homem tão curvado. Ora para um lado, ora para outro, sem destino. Que vida! Nem um hábito. Esta idéia de uma pessoa viver sem hábitos era para mim extremamente dolorosa. Apesar de haver atravessado uma existência horrível, sempre encontrara nela, mesmo nos tempos mais duros, ocupações que me entretinham. Compara- va-me a Lobisomem. Eu era quase feliz, e a compara- ção me atenazava.

Marina tinha deixado de ver-me à tarde, mas todas as noites a gente se reunia no fundo do quintal. Ela passava pelo buraco da cerca, encostava-se ao tronco da mangueira, e eram beijos, amolegações que nos enervavam.

– Vamos entrar, descansar um bocado, Marina.

Já que chegou aqui, dê mais uns passos.

– Você está maluco? Eu vou dar o fora. Qual- quer dia a gente mete o rabo na ratoeira. Os velhos descobrem tudo, estrilam, e é um fuzuê da desgraça – Deixa disso, Marina, vamos lá para dentro.

– Good-bye.

– Vem cá, Marina.

– Vai-te embora, Lobisomem.

Até ali, àquela hora, surgia o nome do vizinho.

O que mais me aborrecia era não saber se as pessoas que falavam dele acreditavam na história suja. En- chia-me de raiva por não conseguir livrar-me dos fuxicos. Desprezava involuntariamente o desgraçado Lobisomem. Se aquilo fosse verdade? Não tinha verossi- milhança, era aleive, disparate. Mas tanta gente repe- tindo as mesmas palavras… E casos iguais já se ti- nham visto.

– Besteira. Perdendo tempo com bobagens. Para o inferno.

Realmente a cara de Lobisom.em não inspirava simpatia. E as fílhas, de boca aberta, brancas, enros- cadas, moles… Gente suspeita. Estas dúvidas eram terrfveis. Agarrava-me ao judeu para libertar-me delas: ‘` – Isto é o diabo. Uma criatura inofensíva, uma criatura parada! 4’ – Safadeza, dizia Moísés tranqüilamente.

– Infâmia. Esta canalha precisa chicote.

– Pois não fale nisso, homem. Para que mexer em porcaria? – Não é tanto assim, intervinha Juliã.o Tavares.

;,.

O incesto é natural, explica-se.

– Lá vem pedantismo.

E nâo prestava atenção à conversa de Julião Tava- res. Lembrava-me de outro indivíduo infeliz, um serta- nejo que vi há muitos anos, quando ele saia da prisão depois de cumprir sentença. Era um cearense esfomeado que tinha aparecido na vila em tempo de seca. Esmo- lambado, cheio de feridas, trazia escanchada no pescoço uma filhinha de quatro anos. Tinham ido morar na rua das putas e viviam de esmolas. Um dia as vizinhas ouviram gritos na casinha de palha e taipa que eles ocupavam. Juntaram-se curiosos, olharam por um bu- ; raco da parede e viram o homem na esteira, nu, abrin- do à força as pernas da filha nua, ensangüentada. Ar- rombaram a porta, passaram o homem na embira, deram-lhe pancada de criar bicho – e ele confessou, debaixo do zinco, meio morto, que tinha estuprado a menina. Processo, condenação no júri. Anos depois os médicos examinaram a pequena: estava inteírinha.

O que havia era sujidade e um corrimento. Tratando a doença da filha com remédios brutos da medicina ser- taneja, o homem tinha sido preso, espancado, julgado e condenado.

– Está ouvindo, seu Moisés? Cipó de boi, facão e pé no tronco.

Moisés indignava-se. Julião Tavares bocejava: – Natural. A justiça não é infalível.

* * * – Marina, a gente deve acabar com isto, minha filha. Vamos para dentro.

– Vou nada! Torcia o corpo, defendia a virgindade com unhas e dentes.

– Está direito. Então é melhor apressar o casório.

– Com que roupa? disse Marina.

– Que é que falta? – Tudo. Eu sou uma noiva pelada, meu filho.

Impacientei-me : – Ora! ora! ora! Entre nós não há cerim8nia. Ar- ranja-se. Eu tenho umas economias, pouco, mas tenho.

Também você não precisa de muita coisa. Urrtas fronhas, umas camisas.

Como vêem, eu tinha boa vontade. O que receava era transformar as nossas relações, miúdas, num acon- tecimento social importante.

Aquilo viera pouco a pouco, sem a gente sentir.

Naturalmente gastei meses construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela. Antes de eu conhecer a moci- nha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se combinavam bem, davam-me a im- pressão de que a vizinha estava desconjuntada. Agora mesmo temo deixar aqui uma sucessão de peças e de qualidades: nádegas, coxas, olhos, braços, inquietação, vivacidade, arror ao luxo, quentura, admiração a d. Mercedes. Foi difícil reunir essas coisas e muitas outras, formar com elas a máquina que ia encon- trar-me à noite, ao pé da mangueira. Preguiçosa, in- grata, leviana. Os defeitos, porém, só me pareceram censuráveis no começo das nossas rela.ções. Logo que se juntaram para formar com o resto uma criatura completa, achei-os naturais, e náo poderia imaginar Marina sem eles, como não a poderia imaginar sem corpo. Além disso ela era meiga, muito limpa. Asseio, cuidado excessivo com as mâos. Passava uma hora no banheiro, e a roupa branca que vestia cheirava. Nos nossos momentos de intimidade eu sentia às vezes uma tentação maluca; baixava-me, agarrava-lhe a orla da camisa, beijava-a, mordia-s. Isto me dava um praze muito vivo.

– O pior é que você ainda não me pediu, gemet Marina.

E fingiu-se amuada. Liguei pouca importância a amuo, mas fiquei remoendo aquela idéia desagradâve de explicar-me aos outros sobre coisas que só eram in ;.

teressantes para nós. Explicações horríveis. Necessári entender-me com seu Ramalho, pedir o consentimentt dele, dizer besteiras. Ia escrever-lhe uma carta con laços sagrados, felicidade conjugal, himeneu. Infâmia Só a idéia de escrever isto me dava náuseas. Intençõe; puras. E era preciso comprar móveis, trastes de cozi nha, cortinas para janelas, almofadas. Intenções puras Domingo, na missa, o padre leria: – “Querem casar-s Luís Pereira da Silva, com trinta e cinco anos, etc.

etc., e Marina Ramalho, etc., etc.”. Luís Pereira da Sil va, com trinta e cinco anos, estava longe da igrej e dos banhos. Que necessidade tinha Luis Pereira d Silva daquela verbiagem? Depois os cartões de comu nicação, grandes, com letras douradas, aos colegas d repartição, aos conhecidos, às amigas de Marina, aa padrinho, oficial do exército. Indispensável um cartã ‘ ao padrinho, que era oficial do exército e servia en ° Mato Qrosso. Alguém me mandaria um telegrama Intenções puras. Marina dá grande valor aos tele gramas.

– Peço amanhã, murmurei compondo mental mente as frases bestas da carta. Falo amanhã. Ou es crevo.

Mão de esposo, união conjugal, intenções puras – Marina gosta disto. Provavelmente iria recortar e guar dar com cuidado a notícia que o jornal publicari na sétima página, junto aos versos. Em pé, diante di livro aberto, o juiz me perguntaria: – “O senhor Lui da Suva quer casar com d. Marina Ramalho?” Eu, en cabulado, mastigaria uma sflaba, esirega,ndo as mãoa Marina, de roupa branca e flores de laranjeira, aür ma,ria com a cabeça, pálida e comovida. O diretor m diria: – “Entrou no rol dos homens sérios, seu Luis.’ D. Adélia choraria abraçada à filha, como é de cos tume. Os sapatos me apertariam os calos, e o telegra i ma seria pouco mais ou menos assim: “Felicitaçóes ao prezado amigo.” Automóveis da casa para a igreja e da igreja para a casa. Haveria na minha sala alguns tro- ços novos e inúteis. A noite, quando eu fosse procurar em minha mulher as últimas novidades, ela me falaria com entusiasmo naquela glória toda. No dia segninte d. Rosália, se penduraria à janela para gritar: – “Es- tava muito bonita a sua grinalda, minha negra.” Quan- to iriam custar tantas maçadas? Talvez os três contos de réis voassem.

– d o diabo, Marina. Vamos ver se arranjamos isto com simplicidade.

* * * No outro dia retirei quinhentos mil-réis do banco e fui à casa vizinha: – Õ d. Adélia, faça o favor de chamar a Marina.

E, enquanto esperava: – Ela contou à senhora, nã,o contou? Pois é. Pa- rece que o mês vindouro a gente se engancha. Tenha a bondade de explicar isto a seu Rsmalho. Ele já sabe, não? D. Adélfa embrenhou-se em circunlóquios para dizer que o marido sabia e não sabia. 8abia que eu gostava da menina. Isto se via perfeitamente. Agora ir para a igreja assim tão depressa era surpresa.

Marina se vestia num quarto próximo, topando nos móveis, derrubando as coisas.

– E isto, d. Adélia. Quem tem de se empenha,r que se venda logo. A senhora não acha? Esplique a seu Ramalho. Esse negócio de pedido de casamento é mui- to pau, não tenho jeito. Apareça, àãarina.

– Um minuto, respondeu a minha amiga mos- trando um pedaço da cara pela porta entresberta.

Estou acabando de me calçar.

– Está nada! Está pintando os beiços. Essa sua filha é uma pintura, d. Adélia.

Sem saber se aquilo era eloglo ou censura, d. Ad lia sorriu veuada e justüicou ãarinav: – E a mocidade.

Metf a mão no bolso para tirar os quinhentos mil-réis, acanhei-me. Tirei um cigarro, que machuquef olhando as figuras das paredes: – A senhora tem um Coração de Jesus muíto bo- nito.

Marina apareceu, enroscando-se como uma cobra de cipó e tão bem vestida como se fosse para uma festa. Ao pegar-me a mão, ficou agarrada, os dedos contrafdos, o braço estirado, mostrando-se, na faixa de luz que entrava pela janela. Isto me dava a im- pressão de que o meu braço havia crescido enorme- mente. Na extremidade dele um formigueiro em rebu- liço tinha tomado subitamente a conformação de um corpo de mulher. As formigas fam e vinham, entra- vam-me pelos dedos, pela palma e pelas costas da mão, corriam-me por baixo da pele, e eram ferroadas medo- nhas, eu estava cheio de calombos envenenados. Não distinguia os m,ovimentos desses bichinhos insignifi- cantes que formavam o peito, a cara, as coxas e as nádegas de Marina, mas sentia as pícadas – e tinha provavelmente os olhos acesos e esbugalhados. Com uma sacudidela, desembaracei-me da garra que me prendia e tornei-me um sujeito razoável: – Estávamos combinando, Marina. Quanto mais depressa melhor, foi o que eu disse a d. Adélia. Gente pobre não tem luxo.

– E preciso fazer as coisas com decência, opinou Marina.

– Claro. Mas com modéstia. Não é, d. Adélia? Dispensa-se o véu. Para que véu? Eu por mim casava hoj e.

Marina escandalizou-se, trombuda. E d. Adélia, me- xendo-se aflita na cadeira, que rangia sob as banhas excessivas, baixava os olhos, escondia as mãos papu- das debaixo do avental, dava razão a mim, dava razão à filha, num desconchavo: – É mesmo, seu Luís, gente pobre não tem luxo.

Com decência, e então? Antigamente um noivado era serviço. Preparar a roupa branca, bordar a colcha, que trabalhão! Tarefa para meses. Hoje em dia, na máquí na, vuco, vuco, vuco, num instante se borda uma colcha.

– A gente podia passar sem a colcha bordada.

– Isso é casamento de cambembe, disse Marina.

D. Adélia, com os olhos suplicantes, pedia silêncio.

– A propósito de roupa branca, d. Adélia. .

Calei-me, com vergonha de oferecer os quinhentos mil-réis. O mulherão suspirou : – No meu tempo de moça um pedido de casa- mento era coisa muito séria.

Agora eu estava ali conversando sobre lençóis.

– A propósito de roupa branca, d. Adélia, estive pensando . . . Até falei com a Marina, provavelmente ela disse à senhora. Para abreviar, compreende? Compreendia.

– Cedo ou tarde eu havia de comprar esse panos.

Para que etiqueta? Por isso me lembrei de propor a Marina . . . A senhora não leva a mal, suponho.

Não levava: – Quando duas pessoas se entendem . .

– Pois é. Uma espécie de adiantamento. É tirar de uma mão e botar ná outra. Fica tudo em casa.

Entreguei a Marina a pelega de quinhentos: – Está aqui, minha filha. Comece os arranjos.

E adeus, que não quero perder o ponto.

Marina recebeu o dinheiro sem constrangimento, e eu me sensibilizei julgando que ela procedia assim por estar identificada comigo. Fiz-lhe algumas reco- mendações miúdas e retirei-me.

A primeira pessoa conhecida que encontrei na rua foi Julião Tavares. Senti um estremecimento desagra- dável, a repugnância que sempre me vinha quando dava de cara com aquele sujeito, e fingi não vê-lo, entrei numa loja para não falar com ele. Na reparti- ção as horas correram doces e rápidas. O café estava cheio de caras amáveis. Guardei na memória pedaçUs de sonversas. O cego dos bilhetes de loteria passou enre as cadeiras, batendo com o cajado no chão, can- tando o número.

Se eu pegasse a sorte grande, Marina teria colchas bordadas a mão. Pobre de Marina! Precisava fazenda macia, pulseiras de ouro, penduricalhos.

As cadeiras da minha casa eram bem ordinárias.

No tijolo safado não havia tapete. Nem um quadro na ?1 parede. E o colchão, duro como pedra, faria escorfações no corpo de Marina. Contento-me com muito pouco, habituei-me cedo a dormir nas estradas, nos bancos dos jardins.

– 16.384, gemfa o cego batendo com a bengala no cimento.

Ou seria outro número. Cem contos de réls, di- nheiro bastante para a felicldade de Marina. Se eu pos- sufsse aquilo, construiria um bangalô no alto do Farol, um bangalô com vista para a lagoa. Sentar-me-ia ali, de volta da repartição, à tarde, como Tavares & Cia., dr. Clouveia e os outros, contaria histórias à minha mulher, olhando os coqueiros, as canoas dos pesca- dores.

– 16.384.

Vestido de pijama, fumando, olharia lá de cima os telhados da cidade, os bondes pequeninos a rodar quase parados e sem rumor, os focos da iluminação pública, os coqueiros negros à noite. Uns quadros a óleo enfei- tariam a minha sala. Marina dormiria num colchão de paina. E quando saltasse da cama, pisaria num ta- pete felpudo que lhe acariciaria os pés descalços.

– 16.384.

; Um tapete fofo, sem dúvida. E a cama teria uma colcha bordada cobrindo o colchão de paina, uma col- cha bordada em seis meses.

* * * Alguns dias depois Marina me chamou para mos trar os objetos que tinha comprado. Não era quase nada: calças de seda, camisas de seda e outras ni- nharias.

– Que é do resto? – Que resto? perguntou espantada. E só isto. Veja se as camisas estão bem feitas, diga se as cores lhe agradam.

– Mufto boas, murmurei.

– Mas você nem está olhando.

– Para quê? Não entendo. O que vejo é que falta quase tudo.

– Que se há de fazer? E a carestia. Em todo 0 caso julgo que vocé aprova..

Que remédio! Havia de brigar com ela, dizer-lhe que tivesse juízo, explicar que sou pobre, não posso comprar camisas de seda, pde-arroz caro, seis pares de meias de uma vez? Seis pares de meias, que des- perdício! Se ela suasse no veio da máquina ou agüen- tasse as enxaquecas do chefe na repartição, não faria semelhante loucura. Mas não despropositei, como 0 coração me pedia.

; – Está bem. Vamos comprar o resto. Faço eco- nomia, ouviu? Os cobres estâ,o escassos.

Sangrei mais quinhentos mil-réis. Depois sangrei duzentos, adquiriu móveis em leilão e vesti-me de novo, porque as minhas camisas estavam esfiapadas e o paletó se cobria de nódoas. Ma.rina aplaudia a transformação que se ia operando no meu exterior: . – Precisa é mandar consertar essa gola. O corpo está bom. Os pés não prestam, com esses sapatos inde- centes. Dê por visto um pavã:o.

Ofereci a seu Ivo os meus sapatos cambaios e re- formei os pés. O dinheiro sumia-se, essas alterações chu- pavam-me as reservas acumuladas com paciência. Eu vivia preocupado, fazendo cálculos na rua. E ainda nã,o ; havia comprado uma lembrança para Marina.

Liquidei a minha conta no banco, estudei cuidado- samente uma vitrina de jóias, escolhi um relógio-pul- seira e um anel. Saf da joalheria com vinte mil-réis na carteira, algumas pratas e nfqueis. Mais nada.

Apenas confiança no futuro, apesar dos encontrões que tenho suportado. Os matutos acreditaram na mi- nha literatura. Vinte mil-réis para café e cigarros.

Ia cheio de satis;fação maluca. Não tirava a mão do bolso, apalpava as ca,ixinhas, sentia através do papel de seda a macieza do veludo. Na alvura do braço ro- liço a fita do relógio faria uma cinta negra; a pedri- nha branca faiscaria no dedo miúdo.

– Moisés me emprestará cinqüenta mil-réis até o mês vindouro.

Ao chegar à Rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepçâo maior que já experimentei.

A janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embe- bida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fi- quei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um de- sejo enorme de apertar-lhe as goelas. O homem per- turbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.

– Tem negócio comigo? A cólera engasgava-me. Julião Tavares começou a falar e pouco a pouco serenou, mas não compreendi o que ele disse. Canalha. Meses atrás se entalara num processo de defloramento, de que se tinha livrado gra- ças ao dinheiro do pai. Com o olho guloso em cima das mulheres bonitas, estava mesmo precisando uma surra. E um cachorro daquele fazia versos, era poeta.

Aprumava-se, as palavras corriam-lhe facilmente, mas continuei a ignorar o que significavam.

– Tem negócio comigo? repeti sem pensar que o tipo já havia provavelmente dado resposta.

A loquacidade de Julião Tavares aborrecia-me. Uma voz líquida e oleosa que escorria sem parar. A minha cólera esfriava, o suor colava-me a camisa ao corpo.

A roupa do intruso era bem feita, os sapatos bri- lhavam. Baixpi a cabeça. Os meus sapatos novos esta- vam mal engraxados, cobertos de poeira. Pés de pavão.

Julião Tavares falou sobre a política do pafs.

A enxurrada cobria-se de nódoas de gordura, que se alastravam.

Ia lá discutir com aquele bandido? O meu desejo era insultá-lo.

– Nunca estou em casa a esta hora. Estou no serviço, percebe? Sou um homem ocupado.

– Perfeitamente, respondeu Julião Tavares. Uma vida cheia, uma vida nobre, dedicada ao trabalho.

Só a pontapés.

– Muito bonito, seu doutor.

Ultimamente, embora repugnado, eu o tratava por vocé.

– Uma coisa é jogar frases em cima do trabalho alheio, outra é pegar no pesado.

Julião Tavares fechou a cara: – Todos nós temos as nossas obrigações, homem.

Cada qual sabe onde o sapato lhe aperta.

Olhei os pés dele, e o meu ódio aumentou: – Os seus não devem apertar muito.

– Acha? Baixei a cabeça, mordi os beiços para não grital os desaforos que me subiam à garganta e que eu en golia, pus-me a marchar na sala estreita, batendo os calcanhares com força. De uma parede a outra qua- tro passos. A porta, que tinha ficado aberta, mostra- va-me os paralelepfpedos, as sarjetas, as pernas dos transeuntes, só as pernas, porque, como já disse, eu tinha a cabeça baixa. A minha curiosidade se concen- trava nos sapatos dos transeuntes. Passaram os taman- cos de um carregador, os chinelos de Antónia, umas botínas velhas que julguei serem de Lobisomem. A críanças de d. Rosállía corriam e gritavam, mas esta- vam descalças.

Lembrei-me da fazenda de meu avô. As cobras se arrastavam no pátio. Eu juntava punha,dos de seixos miúdos que atirava nelas até matá-las. As vezes a brin- cadeira se prolongava, mas afina,l as cobras morriam, e perto dos cadáveres ficavam montes de pedras. Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia no banco do copiar. Eu olhava üe longe aquele enfeite esquisito. A cascavel chocalha- va, Trajano dançava no chão de terra batida e gri tava: – “Tira, tira, tira.” As alpercatas de Amaro va queiro iam do curral dos bois ão chiqueiro de cabras, Em dias de pega Camilo Pereira da Silva desenrosca va-se, vestia o gibão, calçava as perneiras. O barbica cho do chapéu de couro terminava debaixo do queixc numa borla que lhe fazia uma barbinha ridïcula. Assin paramentado, Camflo Pereira da Silva andava emproa do como um galo, e as rosetas das esporas de ferrc tilintavam.

Levantei a cabeça. Julião Tava,res sorria e conti nuava a derramar a voz azeitada. Perto, pancadas di ferro tinindo. Eram as picaretas dos calceteiros qm deslocavam as pedras da rua, consertavam o calça mento. No fim de uma daquelas viagens de quatro pas sos eu via, a alguns metros de distância, um montâ ?6 de paralelepipedos que a poeira cobria. E, nessa nu- vem de poeira, figuras curvadas, movendo-se. Desejei atirar todos aqueles paralelepfpedos em cima de Julião Tavares.

Tornei a bafxar a cabeça, desanimado, continuei a olhar os pés dos raros transeuntes que passavam na rua. Ia e vinha. Um, dois, um, dois – meia-volta. Este exercicio era irritante. A porta escancarada convidar va-me a abandonar tudo, a sair sem destino – um, dois, um, dois – e não parar tão cedo. Nenhum sar- gento me mandaria fazer meia-volta. Os meus passos me levariam para oeste, e à medida que me embre- nhasse no interior, perderia as peias que me impuse- ram, como a um cavalo que aprende a trotar. Tor- nar-me-ia de novo meio cigano, meio selvagem, anda- ria numa corrida vagabunda pelas fazendas sertane- jas, ouviria as cantigas dos cantadores e as conversas das velhas nas fontes, veria à beira dos caminhos es- treitos pequenas cruzes de madeira, as mesmas que vi há muitos anos, enfeitadas de flores secas e fitas des- botadas. Indicaria uma delas, estirando o beiço. Quem teria morrido ali? E alguém me informaria, repetindo as histórias dos cantadores e as conversas das velhas nas fontes: – “Um sujeito que namorou a noiva de outro.” Estremeci. Os meus dedos contrafram-se, move- ram-se para Julião Tavares. Com um salto eu poderfa agarrá-lo.

Pensei em seu Evaristo e na cobra enrolada no pescoço do velho Trajano. Parei no meio da sala, ater- rado com a imagem medonha que me apareceu. O pes- coço do homem estirava-se, os ossos afastavam-se, os beiços entreabriram-se, roxos, intumescidos, mostran- do a língua escura e os dentinhos de rato.

– Está doente? perguntou-me Julião Tavares.

Suponho que a minha resposta foi despropositada.

0 rapaz levantou-se, aproximou-se, e eu me desviei dele com um palavrão. Não me lembro do que disse, mas sei perfeitamente que terminei com um palavrão obsce- no. Juliáo Tavares aprumou-se.

– Puta que o pariu, resmunguef.

?7 Parece que ele ouviu. Mas fingiu que não tinha ouvido. Agarrou o chapéu e saiu.

– Bonitol E pus-me a esfregar as mãos: – Por causa de uma guenza de maus costumes estar um homem a aperrear-se. Enrolem-se, durmam, danem-se, vão para a casa do diabo.

Fui à cozinha e conversei um minuto com o Curru- paco.

– O jantar está na mesa, disse Vitória.

Entrei na sala de jantar, bebi um pouco de aguar- dente, fiquei um instante olhando, por cima do muro, a mulher que lava garrafas e o homem que enche dornas.

A sombra da mangueira ia cobrindo o quintal.

– As moscas estão comendo o jantar, gritou Vi- tória.

Cheguei-me à mesa, bebi mais um trago de aguar- dente e tomei o caminho da rua. Marina estava à ja- nela : – Que é isso? Vai com tanta pressa! Fale com os pobres.

Pareceu-me contrafeita. Sem-vergonha.

– Não matei seu boi não, moço. Me largue.

` Passeei à toa pelas ruas, parando em frente às vitrinas, com a tentação de destruir os objetos expos- tos. As mulheres que ali estavarr em pasmaceira, ad- mirando aquelas porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os telegramas. Eram notícias sem importân- cia, mas julguei perceber nelas graves sintomas de de- composiçâo social. Estive olhando sem ler os cartazes do cinema, entrei maquinalmente. O porteiro sabe que trabalho na imprensa e não pediu bilhete de ingresso.

Na sala de projeção fiquei de pé, ao fundo, por baixo da cabina, sem ver a tela. Nunca presto atenção às coisas, não sei para que diabo quero olhos. Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como s’ou vaidoso e como sou besta! Caminhei tanto, e o que fiz foi mastigar papel impresso. Idiota.

Podia estar ali a distrair-me com a fita. Depois, finda a projeção, instruir-me vendo as caras. Sou uma besta.

Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pe- ?8 queno mundo desaba. A safda encontref Moisés enco tado a um poste de iluminação, lendo um jornal.

– Acabe com essa literatura, Moisés, exclamef im- paciente. Nâo serve.

Moisés dobrou a folha, sorrindo: – Que história é essa? – E o que lhe digo. Não serve. A linguagem es- crita é uma safadeza que vocês inventaram para engar nar a hurranidade, em negócios ou com mentiras.

– Que diabo tem você? perguntou Moisés.

– Não é nada não. E que nso vale a pena, acre- dite que não vale a pena. Uma pessoa passa a vida remoendo essas bobagens. Tempo perdido. Uma crfança mete a gente num chinelo, Moisés; qualquer imbecil mete a gente num chinelo, Moisés.

As onze horas achava-me encostado a uma banca do Helvética, bebendo aguardente e nâo distinguindo bem as pessoas que se serviam nas outras mesas, fun- cionários, políticos, negociantes, choferes, prostitutas.

Uma criaturinha magra empurrou uma das portinho- las que dão para a Igreja do Livramento, avançou de manso. Ninguém lhe prestou atenção.

– Pst. Senta af.

Chegou-se acanhada e esperou a repetição do con- vite.

– Senta af.

Sentou-se. O peito era uma tábua, os braços finos, as pernas uns cambitos, que nem sei como agüenta- vam o corpo. A carinha não era feia, talvez tivesse sido bonita.

– Beba alguma coisa.

– Não, muito obrigada.

E espalhou a vista pelas mesas.

– Procurando algném? – Era. Parece que ele hoje nâo vem. Já é tão tarde! – Onde mora? – Aqui na Rua da Lama. É perto.

E mostrou a chave que trazia na mão.

– Beba alguma coisa, insisti.

– Não senhor, eu não bebo.

Tossia e olhava a porta da cozinha.

?9 – Um petisco.

Pimentel entrou na sala e perguntou-me ao ouvido: – Onde arranjou esse canhão? Coitadinha. Não era feia, o que estava era estra- gada.

– Aceite.

A criatura hesitava, afogueada. Afinal se resolveu: – Muito obrigada. Eu aceito. O senhor vai comi- go, não? E aqui pertinho.

Comeu de cabeça baixa, em silêncio, e repetiu o prato. Só falou ao terminar o café: – Vamos? Meti a mão no bolso e lembrei-me de que me res- tava uma cédula de vinte mil-réis. Recebi o troco e levantei-me.

– Vai com.igo? tornou a perguntar a mulher.

Bebi o resto da aguardente: ; – Vamos lá.

No quartinho sujo a rapariga despiu-se e veio abra- çar-me desajeitada. O cabelo tinha um óleo de cheiro enjoativo.

– Esteja quieta.

E afastei-me, sentei-me na cama, sem tirar o chapéu. Ela acomodou-se, as pernas cruzadas, os bra- ços cruzados escondendo os peitos bambos. Curvada, mostrava apenas um pedaço da barriga engelhada e escura.

– Anda na vida há muito tempo? – Nem por isso. Quatro anos.

– An.

Quatro anos. E ali estava aquela carcaça comida pelo treponema. Panos caídos no chão, o irrigador com permanganato. Na mesinha da cabeceira essências or- dinárias disfarçavam um cheiro forte de esperma. Tive necessidade de fumar. Encontrei cigarros, mas procurei fósforos em todos os bolsos, e o que achei foi o pacote com as caixinhas de veludo – o relógio-pulseira e o anel.

– Faz o obséquio de me arranjar uma caixa de fósforos?

A mulher levantou-se. Escanzelada, coxas finas ‘ com marcas de varizes, nádegas murchas. Chi! que pe- ! leiro! – Muito obrigado.

Acendi o cigarro. A mulher sentou-se junto de Í mim e começou o seu trabalho de abraços, beijos, etc – Esteja quieta.

Meti a mão no bolso, senti através do papel da ; seda a macieza do veludo. A fita do relógio faria uma cinta negra no braço roliço, um braço macio como ve- ludo. Os beijos começavam no pulso, onde a fita se enrolaria. O tique-taque seria do relógio ou do sangue correndo na artéria? Na escuridão do quintal os meus beiços avançavam na pele, que se cobria de borbulhas pequenas como pontas de alfinetes.

– Sempre foi assim magra? – Ah! nãol respondeu as mulher ocultando as pe- Iancas dos peitos com os cotovelos ossudos. Era cheia, gordinha.

Acariciei com as pontas dos dedos o papel de seda.

A mulher bocejava, caceteada. Que horas seriam? Tal- vez uma hora. A folhagem da mangueira estendia um pretume no quintal. Os mais insignificantes rumores cresciam: o salto dos grilos nos canteiros, a queda das folhas, o trabalho das formigas. A luz vermelha do farol espalhava-se pelo telhado. Um minuto depois não era vermelha, era branca- Usávamos precauções exces- sivas, receávamos que os nossos suspiros fossem ouvi- dos nas casas fechadas.

– Parece que isso rende pouco, hem? perguntei abarcando com a vista a mesinha, o espelho rachado, o irrigador, as camisas sujas, toda a miséria do quarto.

A mulher teve um gesto de esmorecimento: – E então! Não está vendo? – E. Não se da. Por que não arranja outra vida? Levantou os ombros, quase agastada: – Ora outra vida! Que vida? Sempre os mesmos conselhos. Daqui só para a cova.

Realmente, coitada, dali era para a cova, com es- cala pelo hospital. Infelicidade. Eu é que me podia 81 conslderar um sujeito feliz. Repetia isto maquinal- mente, enquanto apalpava as caixinhas de veludo. Sol- tei-as com raiva, ergui-me, esfreguei as mã,os. O senti- do das palavras que me dançavam no espírito tornou-se claro. Perfeitamente, um sujeito feliz. Que é que me faltava? Livre. Se me viesse aquela desgra,ça depois do casamento? A sem-vergonha, admiradora de d. Merce- des, tinha feitio para cornear marido mais vigilante que eu. – “D. Mercedes é linda, parece uma artista de ‘cinema.” Sem-vergonha. Recuperava a minha liber- dade. Muito bem. Fazia tempo que não freqüextava as mulheres. Pois estava em casa de uma. O pior é que so me restavam catorze mil-réis e uns niqueis. J di- nheiro tinha voado, tinha-se esbagaçado, virara cami- sas de seda, po-de-arroz. Dos males o menor.

– Vão-se os anéis, fiquem os dedos.

Magnífica solução. Liberdade, liberdade completa.

Pus-me a cantar estupidamente, batendo com os edos na tábua da mesinha: Liberdade, liberdacle Abre as asas sobre nós…

– Está indisposto? perguntou a mulher. E bom deitar-se, descansar. Vamos dormir.

Dormir, que lembrança! – Não, adeus. Está aqui. Não lhe dou mai.a por que não tenho, ouviu? Desculpe.

A criatura recusou os dez mil-réis que Ihe apre sentei: ; – Pode guardar. Nós não fizemos nada. Além dissc pagou a ceia. Eu estava com fome.

– Não senhora. Receba. E o que tenho.

– Muito obrigada. Já não lhe disse que não aceito ï Eu estava com fome.

Encolerizei-me de verdade e despropositei: – Não me faça cometer um desatino. A senYzora E ; relógio para trabalhar de graça? A senhora tem obri gação de andar nua diante de mim? Duas horas d chateação, de conversa mole! A senhora é relógio? A se nhora não é relógio.

82 A mulher recebeu o dinheiro, espantada. Julgou-me doido, suponho. Realmente as últimas palavras me ha- viam tornado furioso.

* * * Marina me explicou muito direitinho que eu não tinha razão. O que tinha era falta de confiança nela.

Chorou, e fiquei meio lá, meio cá, propenso a acreditar que me havia enganado.

– Posso obrigar uma pessoa a não olhar para mim? Posso furar os olhos do povo? Não senhora. A coisa era diferente. Eles tinham sido pegados com a boca na botija, grelando, esquecidos do mundo. Tinham ou não tinham? Sim senhor, mas sem malícia.

– Posso furar os olhos do povo? Esta frase besta foi repetida muitas vezes, e, em falta de coisa melhor, aceitei-a. Sem dúvida. As mulhe- res hoje não vivem como antigamente, escondidas, evi- tando os homens. Tudo é descoberto, cara a cara. Uma pessoa topa outra. Se gostou, gostou : se não gostou, até logo. E eu de fato não tinha visto nada. As aparências mentem. A terra não é redonda? Esta prova da ino- cência de Marina me pareceu considerável. Tantos indi- vfduos condenados injustamente neste mundo ruim! O retirante que fora encontrado violando a filha de quatro anos – estava aí um exemplo. As vizinhas ti- nham visto o homem afastando as pernas da menina, todo o mundo pensava que ele era um monstro. Engano.

Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado? Pro- curei mesmo capacitar-me de que Julião Tavares não existia. Julião Tavares era uma sensação. Uma sensação desagradável, que eu pretendia afastar de minha casa quando me juntasse àquela sensação agradável que ali estava a choramigar.

– Pois bem, minha filha, não vale a pena falar mais nisso. Enxugue os olhos. Se você diz que não foi, não foi. Acabou-se, não se discute. Está aqui uma lem- brancinha que eu lhe trouxe. Vamos ver se fica bonito.

Marina .desembaraçou-se das lamúrias, passou a uma alegria ruidosa. Muitos agradecimentos, uns beijos 83 ainda com a cara molhada. Estranhei aquela, mudança repentina.

– Nervoso. Quando casar, endireita.

Marina examinava o relógio e o anel: levantava a mão, afa,stava-a, aproximava-a.

– Uma beleza. Você tomando incômodo! Incômodo! Eu estava com o bolso pegando fogo E devendo cinqüenta mil-réis ao Pimentel.

” – Não se preocupe. O que precisamos é acertar essa história do casamento. Quando é isso? Respondeu vagamente. Andava bordando uma: guarnições, preparando umas almofadas. E faltavarr certas coisas. Impacientei-me: – Se você só decidir quando tiver tudo . . . Assirr ninguém acaba. Vamos marcar o dia. Valeu? Dê um nota dos troços que faltam.

– Talvez fosse melhor eu fazer a compra.

– É. Talvez fosse, gaguejei aflito. Eu vou se franco. Estou na pindaíba, ouviu? E necessário a gentE escolher mercadoria barata.

Esperei que minha noiva se conformasse com a si tuação. Baixou a eabeça, e as partes do rosto que nãc estavam pintadas empalideceram: – Bém.

– Dê cá a nota.

– Para quê? Assim com essa pobreza. . .

– Deixa disso, murmurei ressentido. Donde verr i tanto luxo? Riqueza não tenho, mas para vivermo; com decência o que há chega. Dá cá a nota.

Marina entregou-me lápis e papel, ditou coisa: absurdas, com um risinho ruim, e eu percebi nela a in tenção perversa de me humilhar. Quando falou err tapetes e tapeçarias, não me contive: – Oh! Isso também é demais. Eu estava fazendc das fraquezas forças, compreenda. Diga os objetos in dispensáveis. Meu avô não possuía tapetes e foi uxr homem feliz.

– Naquele tempo era diferente, respondeu Ma rina.

– Está bem.

84 Náo escrevi as tapeçarias, terminei a nota e de pedi-me bastante aperreado. Tudo aquilo estava fora dos eicos. Mais tarde encontrei Moisés: – Olhe cá. 8eu tio me quererá vender estas por- carias a crédito? – Esse negócio de prestações é por preço horri- rel, disse Moisés. Era melhor voc comprar a dinheiro.

– Mas se não tenho! Fstou na quebradeira, Moi- aés. Mande as iasendas.

Assim, acabei de encalacrar-me. Marina recebeu os panos iriamente, insensivel ao sacrificio que eu iazia, aquela ingrata. Se eu não tivesse cataratas no enten- dimento, teria percebido logo que ela estava com a ca- beça virada. Virada para um sujeito que podia pagar-lhe camisas de seda, meiaa de seda. Que valiam os tecidos grosseiros comprados ao velho Abraão, ou Salomão, o tio de Moisés? Nem olhou os pobres trapos, que üca- ram em cima de uma cadeira, esquecidos.

Lembro-me perieitamente da cena muda que hou- ve naquela tarde. 8entada, a cabeça caída para o en- costo da cadeira, aa pernas cruzadas, os dedos cruzados num joelho, não me via, era como se estivesse só. A cara parada mostrava cansaço, enjbo. De longe em longe batia com o calcanhar no chão. A saia esticada exibia a coxa, mas a minha atenção se concentrava nos bra- ços e nos dedos. Não trazia o relógio nem o anel que eu lhe tinha oferecido na véspera. Isto me desapon- tava, arrancava-me pragas e insultos, que eu engolia com medo de praticar uma violóncia – “Ordinária! Arrasa-se a gente para ser agradável a uma peste as- sim, e o resultado é este : coice. Ordinária. Safada.” Desejei falar novamente em Julião Tavares, mas temi não convencer-me de que me havia enganado. O rostó imóvel, como se eu niïo estivesse ali. As mãos ünas cruzadas sobre o joelho. Ia escurecendo. Aquela hora ssu Ramalho, coberto de azeite, abreriaa os dias no calor da usina elétrica, limando bmn8es. D. Adélia, na cozinha, enchio- se de fumaça, envenenava-se. Marina permanecia imóvel. Que é que eu estava iazendo, na- quele constrangimento, olhando o pacote aberto, estri- pado, em cima de uma cadeira? As entreristas no quin- tal eram coisas muito antigas. O relógio e o anel ti- 85 nham sido oferecidos na véspera, mas eram antigos também. E parecia-me que tinham sido dados a outra pessoa. Em que estaria pensando Marina? Agora eu não lhe via o rosto: as feições dilufam-se na escuridão.

Sentia-me atordoado, com um nó na garganta. Se fa- lasse, diria injúrias. Uma ingratidão assim! Nâo espe- rava aquilo. Fatos e indivíduos desencontrados, velhos e novos, fervilhavam-me na cabeça, misturavam-se. No cop:ar da fazenda José Baía explicava-me as virtudes da oração da cabra preta. Sen Evaristo balançava, pendurado num galho de carrapateira. Berta me havia segurado um braço e arrastado até a escada. E eu, agarrando-me ao corrimão: – “Madame, a senhora não está vendo que não posso encostar-me a uma cria- tura da sua marca?” Tavares & Cia., negociantes de secos e molhados na Rua do Comércio, vestidos de brim de linho, viviam escondidos por detrás dos fardos e eram uns ratos. – “Escrevi muito atacando a primei- ra república, doutor. As minhas opiniões são conhe- cidas.” Pobre da mulher da Rua da Lama. Rondando as mesas, com fome, às onze horas da noite.

– Bem. Parece que me vou embora, Marina. Boa noite.

– Já vai? perguntou Marina sem se mexer.

– Já.

Saf resmungando: – Escolher marido por dinheiro. Que miséria! Não há pior espécie de prostituição.

* * * Porque foi que aquela criatura não procedeu com franqueza? Devia ter-me chamado e dito: – “Luís, va- mos acabar com isto. Pensei que gostava de você, en- ganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangado comigo?” E eu teria respondido: – “Não fico não, Ma- rina. Você havia de casar contra a vontade? Seria um desastre. Adeus. Seja feliz.” Era o que eu teria dito.

Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acon- tecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até com orgulho: – “Sim senhor, gostei de uma mulher de 86 i, caráter, mulher de cabelo na venta.” Nã,o seria esta miséria, esta recordação de coisas mesquinhas.

De todo aquele romance as particularida,des que melhor guardei na memória foram os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro dos monturos, urubus nos galhos da mangueira farejando ratos em decomposição no lixo. Tão morno, tão chato! Nesse ambiente empestado Marina continuava a oferecer-se negaceando. Conservava-me preso, fazendo gatimanhos, esticando a saia estreita que lhe mostrava bem as coxas e as nádegas.

– Marina, esse procedimento é incorreto. Porque não me larga? Dê o fora, desocupe o beco.

– Está roendo courana. Coitadinho dele.

Não tornamos a falar em casamento. Creio que ela procedeu assim por hábito. Ou talvez quisesse pa- gar os objetos que tinham esgotado a minha fortuna.

Mas ia-se distanciando, e eu não podia agarrá-la. As vezes ficava trombuda, aparentando gravidade. As dis- trações eram constantes, aquele modo de se descango- tar, abrir a boca e olhar por cima da cabeça da gente.

Isto me amarrava e atenazava. Presumo que a intenção dela era desembaraçar-se de mim lentamente, ou desem- baraçar-se ela própria do costume que havia adquirido.

A tarde eram aqueles maneios, mas pela manhã, quando eu saía para a repartição, plantava os coto- velos na janela e enxeria-sé com Julião Tavares. Uma vez por semana eu largava o serviço antes do meio-dia, s6 para pegá-los. Ao dobrar a Rua Augusta, avistava Juliã.o Tavares na prosa com ela, vermelho, soprando, derretendo-se, a roupa de brim com manchas de suor nos sovacos. Vendo-me, o cana,lha voltava as costas, porque estava intrigado comigo. Abri-me com d. Adé- lia, comentei aquele escândalo: – A senhora aprova o comportamento de sua filha? D. Adélia torceu as mãos, engoliu em seco e res pondeu numa atrapalhação: – a mocidade.

Perdi os estribos: – Que mocidade! E sem-vergonheza. Não lhe in- vejo a sorte, d. Adélia. Sua filha acaba mal.

8? – Quem tem família está sujefto a tudo, seu Lufs.

Ninguém deve dizer “Deste pão não comereí nem desta água beberei.” – Não deve não, d. Adélia. E uma tristeza. A se- nhora lavando, engomando, cozinhando, e seu Rama- lho na quentura da usina elétrica, matando-se para sustentar os luxos daquela tonta. Sua filha não tem , coração.

– Muito nova, dizia a mãe. Depois endirefta. Quan- do casar, endireíta.

– E a senhora pensa que há no mundo um trouxa que se engane com ela? Não casa não, d. Adélia. Aque- la dá com os burros na água.

D. Adélia tinha lágrimas na voz e gaguejava fra- ses truncadas: ‘ – Entâo.. . Eu não sabia. Uma coisa apalavra- da… Não há rnotivo, seu Luís, acredite que não há motivo. Porque foi? Eu sentia prazer em atormentar a pobre da velha: – D. Adélia, olhe para a minha cara. A senhora me acha com jeito de corno? – Deus me livre, seu Lufs, exclamava a mulher recuando e arregalando os olhos. Eu havia de achar semelhante barbaridade? – Então, se nâo me acha com jeito de corno, nâo me faça perguntas dessa natureza.

O meu desejo era desligar-me daquela gente, pas- sar calado, carrancudo, as mãos nos bolsos, o chapéu embicado. Esforçava-me por me dedicar às minhas ocupações cacetes: escrever elogios ao governo, ler ro- ;.’ mances e arranjar uma opnião sobre eles. Não há ma- çada pior. A princípio a gente lê por gosto. Mas quan- do aquilo se torna obrigação e é precíso o sujeito dizer se a coisa é boa ou nâo é e porque, não há livro que não seja um estrupfcio.

,.

O que eu devia fazer era mudar de casa,. Esta é inconveniente, cheia de barulhos, parece mal-assom- brada. Os ratos não me deixavam fixar a atenção no trabalho. Eu pegava o papel, e eles corneçavam a dar uns gritinhos que me aperreavam. Tinham aberto um buraco no guarda-comidas, viviam lá dentro, numa chiadeira infernal. As vezes havia um cheiro de po- 88 dridão. Vitória se enfrenesiava, andava para cima e para baixo, manejando um regador com água e creo- lina, molhando tudo. Mas o fedor resistia. Afinal íamos encontrar o armário dos livros transformado em cemi- tério de ratos. Os miseráveis escolhiam para sepultura as obras que mais me agradavam. Antes, porém, fa- ziam um sarapatel feio na papelada. Mijavam-me r literatura toda, comiam-me os sonetos inéditos. Eu não podia escrever.

Os grilos não me incomodavam, escrevo perfeita- mente ouvindo os grilos. Havia uma orquestra deles, mas eu nem os notava. Saltavam-me em cima do pa- pel, eu dava-lhes piparotes, e eles desapareciam.

Os ratos é que me roíam a paciência. Corrote, corrote – era como se roessem qualquer coisa dentro de mim. Lembrava-me do tempo em que andava pelas ruas sentindo o cheiro das mulheres. Miudinhos, de- viam ser catitas. Corriam pela sala de jantar, vinham mexer nos meus chinelos, sem medo, sem vergonha.

Levantava-me, abria as portas do guarda-comidas, sal- tavam três, quatro, que se escapuliam para os buracos das paredes. Voltavam, assustados, ganhavam confian- ça, aproximavam-se, bonitinhos, os olhos vivos e as orelhas arrebitadas. O meio de obrigá-los ao silêncio durante uns minutos era espalhar na sala pedaços de miolo de pão, que eles devõravam depressá. Casa in- fame. E dr. Gouveia cobrava-me cento e vinte mil-réis de aluguel! De quando em quando o madeiramento bichado estalava.

– Qualquer dia esta cumeeira vem abaixo, gemia Vitória. Porque é que o senhor não se muda? As noites eram medonhas. Os galos marcavam o tempo, importunavam mais que os relógios. E os ratos não descansavam. Enquanto alguns roíam a madeira do guarda-comidas, outros deviam estar lá dentro no armário, devastando os manuscritos, morrendo na lite- ratura. Fogo nos livros imundos. Mas a casa enchia-se de pulgas. O gato amava nos telhados, gato ordinário.

Uns miados estridentes, indiscretos: – “Rasga, diabo!” Marina, quando se excitava, enrolava-se como uma gata e miava. Miava baixinho, para não acordar a vizi- nhança.

89 Irritava-me um som de armadores de rede. Em á noites de calor Marina dormia em rede, balançava-se.

Os armadores rangiam. O que eu precisava era ler um romance fantástico, um romance besta, em que os homens e as mulheres fossem criações absurdas, nã,o andassem magoando-se, traindo-se. Histórias fáceis, sem almas complicadas. Infelizmente essas leituras já não me comovem.

Os armadores continuavam a ranger. Provavel- mente estava deitada de costas, as pernas cafdas, os pés no chão dando o impulso para o balanço. Talvez estivesse nua por causa do calor.

Seu Ramalho tossia. D. Adélia descansava na cama dura a armação fatigada.

Ou não descansava. Era possfvel que fizesse contas, aperreada – tanto para o aluguel da casa, tanto para o mercado, tanto para a luz, tanto para a roupa. Vitó- ria também calculava, resmungando. Os números mis- turavam-se ao canto dos galos e ao chiar dos ratos. No princípio do mês iria revolver as pratas enterradas no ,.i .

canteiro das alfaces, na raiz da mangueira, ao hé da cerca. Não havia agora ninguém lá. Bichos miúdos i apenas, grilos, formigas.

Em que estaria pensando Marina? Provavelmente no outro. Um sujeito gordo, vermelho, suado, bexn fa- lante, de olhos abotoados. Seria possível que ela gos- tasse daquilo? Seu Ramalho tossia. Assaltava-me o desejo de ver Juliâo Tavares sujo de azeite e carvão, recebendo na cara as faíscas da fornalha. Porque não? Derret,endo as banhas. Inútil preguiçoso, discursador. Canalha.

* * * Pouco a pouco nos fomos distanciando, um mês , depois éramos inimigos. A princípio houve brigas, re- conciliações desajeitadas, conversas azedas com d. Adé- lia. Tempo perdido. Marina estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares. Comecei a passar trombudo pela calçada, remoendo a decepçâo, que pro- curei recalcar.

– Mulheres não faltam.

90 Entrei a procurá-las, a observá-las. Porque só ha- ! veria de servir aquela safadinha? Uma datilógrafa que me aparecia em toda a parte era bem engraçada. Boni- j tinha, com olhos verdes e rosto de santa. Eu ia dobrar uma esquina – dava de cara com ela; tomava o bonde – ela era minha companheira de viagem. Depois de , ta.ntos acasos, a gente se cumprimentava, embora sem saber que rumo cada um ia tomar. As vezes eu estava distrafdo, pensando em coisas à-toa. Quando menos ¡ esperava, surgiam os olhos de gato da datilógrafa.

I Outras vezes chegava-me de supetão a idéia de que ! ia vê-la. E acontecia acertar. Sumiu-se umas semanas.

I Se não se tivesse sumido, é possível que a minha vida fosse hoje diferente. E talvez não fosse. Duas criatu- i ras juntam-se um minuto, mas entre elas há um I obstáculo. Provavelmente a datilógrafa dos olhos ver- des, enquanto sorria para mim no bonde ou na es- quina, pensava numa espécie de Julião Tavares que iria visitá-la horas depois. Morava numa casa de quin- tal sujo, lia romances tolos, admirava uma quenga semelhante a d. Mercedes. O pai era um pobre homem carregado de achaques e consumido pelo trabalho, a mãe lavava roupa e queixava-se da carestia.

Vitória é que tinha razão: – Cabritinha enxerida. Esfregando-se nos homens.

O sem-vergonha metera-se na casa, ficava lá horas, intimo da família, unha com carne. Empurrava a por ; ta, entrava como se aquilo fosse dele. Seu Ramalho I. nem se voltava: debruçado à janela, aperreado, fuman- do cachimbo, mordia os beiços, encolhia os ombros.

Vinha conversar comigo, desabafava: – Não se case, seu Lufs. É o conselho que Ihe dou.

Quando o intruso saía, começava a arenga: – Isto tem cabimento? Entra quenl quer.

Marina defendia-se, malcriada: – Entrou porque deixaram. Eu tenho culpa? Não mandei. Posso amarrar as pernas dos outros? – Falem baixo, pedia d. Adélia. Os vizinhos estão y° ouvindo.

– Que vizinhos! grita.va seu Ramalho. Faço um . ‘ escândalo. Isto é pensão? 91 Não fez o escándalo. E Julião Tavares continuou freqüentar a casa, levando presentes às mulheres. f vezes jantava lá. Nesses dias um carregador trazia i armazém de Tavares & Cia. um caixão de embrulho latas e garrafas. Da minha sala de jantar, eu ouv as conversas, as risadas, o barulho dos vidros e di talheres. No fim a coisa descambava em discurso.

Seu Ramalho não tomava parte nessas orgia embicava o chapéu, acendia o cachimbo e saía. D. R sália balançava a cabeça com um sorrisinho safado: – Feias coisas. Não dou um ano que isto chei a alfazema.

Antônia ia comentar a história com o guarda-civ da esquina Punha-me a passear pelo corredor, olhando as t queiras dos sapatos, os tijolos gastos, o rodapé verm lho da parede úmida. Por ali passava um cano. Alg mas porcas das juntas estavam mal apertadas e pc elas a água esguichava, formando poças no tijolo gast O cano estirava-se como uma corda grossa bem est ca,da, uma corda muito comprida. Eu andava pa cima e para baixo, o ouvido atento aos mais insignil cantes rumores da casa vizinha. Preocupava-me sobr tudo o silêncio. Enquanto estavam batendo nos copo tagarelando, nem por isso. Mas quando se calavar vinham-me suposições que me davam tremuras. Prov, velmente d. Adélia tinha ido à cozinha preparar o caf E os dois aproveitavam o tempo. Sem dúvida. Imag nava o que eles faziam. Era aquilo, sem dúvida.

– Que é que o senhor tem? perguntava-me Vitóri Sem dúvida. Imaginava perfeitamente. E não t ra.va os olhos da parede manchada, do rodapé verm lho, do cano.

– Um pedaço daquilo é arma terrivel. Arma ten vel, sim senhor, rebenta a cabeça de um homem. Já : tem visto.

Mas aquele, comprido demais, pregado ao châ não tinha jeito de arma: parecia uma corda estirad Quando vinha o silêncio, detinha-me na sala de jaa tar, contígua à outra sala onde a súcia se regalav punha a mão atrás da orelha, continha a respiraçã Furava com os olhos a cal que se descascava e dav 92% .

J ao muro a aparência de uma cara sardenta, furava ` o reboco, furava os tijolos. No outro lado a mesa num desarranjo, restos de comida, pontas de cigarros, nó- doas na toalha, garrafas abertas, os dois juntos, perna com perna. D. Adélia, encostada ao fogão, respirava fumaça, engelhava as pálpebras, gemia uma desculpa: – “E a mocidade.” Estava invisível e escaldava os dedos torcendo o pano de café. Os dois, grudados, cochicha- vam, esfregavam-se. Alguns botões tinham saído dos lugares. Afinal tudo era suposição. Talvez d. Adélia estivesse ali, um pouco afastada, os olhos atentos, observando o que se passava por baixo da mesa. His- tória! Escondia-se e justificava aquela sem-vergonha: – “É a mocidade.” Indecência. Atracados, os olhos ver- melhos, baba no canto da boca, uns bichos. Aproxi- mava-me da parede. Ali a poucos passos, tontos pela bebida, beijando-se. Conservavam-se em silêncio um instante, mas isto me parecia tempo excessivo, sufi- ciente para todas as patifarias. Risos, a continuação de uma conversa interrompida. A voz precipitada de Marina era ininteligível; a de Julião Tavares perce- bia-se distintamente e causava-me arrepios: fazia-me pensar em gordura, em brancura, em moleza, em qual- quer coisa semelhante a toicinho cru. Pescoço enor- me, sem ossos, tudo banha. Quando o homem andava na rua, olhando para cima, risonho, aprumado, com ° passinhos curtos, a papada tremia. Aquilo era bambo flác?do, devia ter a consistência de filhó. De repente d. Adélia começava a falar. As mesmas queixas de sem- pre, lamentações tranqüilas. Nunca ouvi ninguém se :: lamentar assim. Palavras arrastadas, monótonas, um pequeno assobio no fim de cada pausa. Aquele sossego me irritava quase tanto como os derramamentos de Julião Tavares. Afastava-me, sacudia a cabeça para não i .. escutar a conversa, passeava pelo corredor, tossindo, batendo os pés, encaminhando o pensamento para coi- sas diversas, que se embaralhavam. Muitos crimes de- pois da revolução de 30. Valeria a pena escrever isto? Impossível, porque eu trabalhava em jornal do go- verno. Moisés se tinha ausentado: a polícia incomo- 1 dava os rapazes que liam livros suspeitos e falavam baixo. Seu Ivo furtara-me uns pratos. A menina dos i” , 94 olhos agateados desaparecera. A mulher da Rua da Lama, a que eu encontrara uma noite no Helvética, andava caipora, no hospital, com doença do mundo.

A voz oleosa de Julião Tavares continuava a perso- guir-me. Era como se eu estivesse diante de um apa- relho de rádio, ouvindo língua estranha. Distancia- va-me. As palavras gordas iam comigo. Umas chega- vam completas, outras alteravam-se – ruídos confu- sos e vogais indistintas. Necessário dar cabo daquela voz. Se o homem se calasse, as minhas apoquentações diminuiriam. A criatura faminta da Rua da I.ama, seu Ivo, Moisés, a menina dos olhos agateados, tudo isto me passava pelo espirito sem se fixar. Um tropel, de- pois nada. O que ficava era aquela gordura que se derramava pelas paredes. As vezes eu estava certo de que Julião Tavares se tinha calado, mas a voz não deixava de perseguir-me. Mexia-me, tossia. E olhava com insisténcia o cano que se estirava ao pé da pa- rede, como uma corda.

* * * Aos domingos iam ao cinema, juntos, de braço dado, bancando marido e mulher – ele com ar bicudo e saciado, ela bem vestida como uma boneca e toda dengosa. Seda, veludo, peles caras, tanto ouro nas mãos e no pescoço que era uma vergonha. O pessoal da vizinhança povoava as janelas. D. Mercedes indigna- va-se, as filhas do Lobisomem mastravam as caras es- pantadas entre as rótulas. Antónia andava como lan- çadeira, ouvindo os comentários. As exclamações ia.m de um lado para outro. S6 queriam saber se ainda estava inteira. As opiniões variavam. Discutiam as mo- dificaçôes do tipo: a grossura da barriga, o modo de andar. Eu, com os ouvidos abertos, simulando indife- rença, escutava palavra aqui, palavra ali.

– Que é que temos, Antónia? Antônia, bamboleando-se, cosia pedaços daqueles fuxicos.

E os dois lá iam até o fim da rua, grudados, ela desconjuntando-se, enrolando-se, torcendo-se como uma cobra de cipó. Dobravam a esquina, a rua ficava de- serta. Reaparecfam. Com certeza tinham desistido dc cinema. Quando se aproximavam, é que eu notava o engano: era outro casal. Julião Tavares e Marina transformavam-se por momentos nas pessoas que vt nham da Praça Deodoro, mas eu continuava a vê-lo: longe, em diferentes lugares.

As três filhas de Lobisomem apareciam juntas num feixe, confusão de cabelos arrepiados e olhos es pantados. Antônia, colorida de vermelho e branco, safa à procura de machos. O vento gemia nos arames da Nordeste, e os arames balançavam como cordas.

Julfâo Tavares e Marina tinham entrado no Livra mento e lá iam juntinhos, esfregando-se. Cadeiras na calçada. Era necessário saltar no paralelepípedo. Urr passo em falso, topada ná sarjeta, e os dois corpos sE chocavam. Diante da igreja, nos bancos da praça miú da, gente esquisita: homens sujos, mulheres sem com panhia. E crianças abandonadas pelos cantos. Cochi chos, palavrões, descontentamento, frases incendiárias Na calçada estreita da igreja as crianças abandonada; aplnhavam-se. Automóveis parados, choferes adormeci dos, vagabundos, exposição de prostitutas á entrada d Rua da Lama.

D. Rosália conversava com d. Adélia. Picuinhas perffdias: – “Não se queixe não, minha negra. A se nhora até não é das mafs caiporas. Tem quem lhe dÉ tudo.” D. Adélia sorria vexada, mexia os befços e nã.c encontrava resposta.

Mass algumas pernadas, e os dois estavam defrontE do café. Julião Tavares passava como um pavão. E c pessoal se calava, arregalava os olhos para Marina que não ligava importância a ninguém, ia fofa, cor ‘` ‘ o vestido colado às nádegas, as unhas vermelhas, o; befços vermelhos, as sobrancelhas arrancadas a pinça Entravam no cinema, Julião Tavares comprava ur jornal. Na sala de espera toda a gente se voltava, corr uma pergunta nos olhos. Julião Tavares sentava-se fingia ler os telegramas, vafdoso. – “Quem é?” Infor mações em voz baixa, muita inveja. Sim senhor. QuE bicho de sorte! Marina fazia água na boca dos homens Agora estava escuro. Debruçado à janela, eu fuma va sem ver a rua. Via seu Ivo, Pimentel, a datilógrafa desaparecida. Onde estaria a datilógrafa? Bonitinha, com uns olhos de gato que acariciavam a gente.

E amável, sem fumaças. Quando eu tirava o chapéu, respondia com um sorrisinho modesto. O meu desejo era sair de casa, ir procurá-la. Talvez estlvesse num cI- nema de arrabalde, com o namorado. Coitadinha. Pro- vavelmente nem pensava nisso. O dia inteiro batendo no teclado com os dedos entorpecidos, e duzentos mil- réis por mês. Talvez tivesse irmãos pequenos. Inva- dia-me uma ternura, querla ligar-me àquela moça que vestia roupas ordinárias e andava à pressa, com uma pasta debaixo do braço. Seriamos felizes. Ela trabalha- ria menos. Ao chegar a casa, fatigada, distrair-sis papagueando com o Currupaco, meteria as mâos doídas no pêlo do gato. Eu escreveria um livro de contos, que ela datilografaria nas horas vagas, interessando-se.

Convidarfamos Pimentel e Moisés. Quando a corja esti- vesse na sala vizinha, bebendo, nós conversarfamos sobre literatura. Moisés atacaria os llvros feitos com frases bem arrumadas. A arte deveria estar ao alcance de todos, a serviço da polftica. – “Que diz, seu Pi- mentel?” Pimentel respõnderia estirando o belço. Es- crevendo, é capaz de demonstrar qualquer coisa. Dian- te da folha de papel, em mangas de camisa, trabalha como um carroceiro, os dedos grossos pegando a ca- neta com força. Depois fecha o cérebro e desenruga a testa. – “Que diz, seu Pimentel r” Não diria nada.

Para que um homem discutir, se não é obrigado a isto? Do outro lado da parede, risos, tinir de copos. Nós continuarfamos a conversa tranqüilamente.

Onde andaria a datilógrafa dos olhas agateados? 0 que é certo é que eu precisava mulher. Devia acabar aquela maluquelra e meter-me na farra. Se achasse uma criatura como Berta… O diabo da alemâ vol- tava-me sempre à lembrança, provavelmente por ter sido a primeira mulher bonita e limpa a que me en- costei – “Senhor não quer entrar?” Tipo admirável , ariano puro. – “Madame, um sujeito como eu pode agarrar-se a uma pessoa da sua marca?” A ariana pura tinha respondido numa lingua embrulhada.

As vezes seu Ramalho puxava uma cadeira, sen- tava-se à porta. Eu olhava distraido os arames, que balançavam como cordas bambas. Esta comparaçã.o dos arames a cordas vinham-me ao espírito com ínsistência.

Se pudesse trabalhar, escrever, lívrar-me daqueles ara- mes… Não podia: a literatura cambembe para os po- líticos da roça tinha parado. Além disso eu necessitava beber muito, sentia preguiça, passava horas no café, esbagaçando dinheiro. O ordenado voava, as dividas cresciam.

Naquele momento, porém, não pensava em nada disso. Pensava na miséria antiga e tinha a impressão de que estava amarrado de cordas, sem poder mexer-me.

No banco do jardim, com os sapatos gastos, as meias reduzidas a canos, esperava ansíosamente um auxíllo qualquer. Estudava as caras, numa agonia. A fome tri- turava-me a barriga, uma fome de muitos dias, enga- nada com pedaços de pão e cálices de aguardente. – “Cidadão, um nortista perseguido pela adversidade . . ” Não distinguia bem a cara do cidadão: a cabeça incli- nava-se, a vista escurecia e pregava-se nos dedos dos pés, que saíam pelos buracos dos sapatos. Se pudesse, se não estivesse policiado e exausto, mataria o cidadão para roubar-lhe um níquel. Andava sujo, as calças com os fundilhos rotos e as bainhas esfiapadas, a gravata feita uma corda. Apanhava os jornais esquecidos nos bancos e procurava os anúncios miúdos para ver se descobria trabalho, mas as letras dançavam, fugiam.

Imaginava fortunas absurdas: dinheiro achado na rua, um roubo que nunca tive coragem de praticar, o apare- cimento de um fazendeiro rico e atílado que me diria: – “Ninguém percebe o seu valor, rapaz. O que lhe falta é roupa. Roupa e trato. Vamos comer no restau- rante. E toca para S. Paulo, meter a cara na lavoura do café: ‘ Qualquer serviço que me dessem seria bom.

Oferecia-me para garçom de botequim, para revisor de jornal. Tinha uma inclinação maluca para os jornais.

– “Queria que o senhor experimentasse, que me dei- xasse trabalhar uns dias de graça.” Humilhações. De- , pois era a pensão de d. Aurora. A fome desaparecera mas a falta de mulher atormentava me. As que pas- savam na rua tinham cheiros violentos, e eu andava com as narinas muíto abertas, farejando-as, como um bode. No colchão duro da minha cama de ferro os percevejos passeavam sobre os ossos amarelos que Da- goberto jogava lá.

Tarde. Os meninos de d. Rosália corriam no cal- çamento e faziam algazarra doida. As rótulas da casa de Loblsomem estavam cerradas. Encostado à janela, fumando, eu olhava a rua comprida e estreita. De quando em quando vultos distantes assustavam-me.

E os arames balançavam como cordas.

O meu pensamento fugia dali, entrava no quarto escuro que ficava ao pé da escada. Dagoberto pegava uma vértebra, eu escancarava o compêndio. A caveira desdentada era horrívcl, toda queimada de cigarros, o frontal cheio de buracos que serviam de cinzeiros.

De que teria morrido o dono daquela caveira? Mas Dagoberto e os ossos desapareciam. Lá vinham d. Au- ‘ora e a neta marchando para o cinema. As minhas mãos úmidas apertavam no bolso as notas, eu sorria encolhido e silencioso, fazendo cálculos. D. Aurora, mole, tomava no bonde o lugar de dois passageiros, sacolejava-se com o movim.ento do carro, os caracóis brancos agitavam-se. Parecia-me que, se ela não esti- vesse entrouxada, as banhas se despegariam do corpo.

A neta emproava-se, a vaidade pingava do leque, do torgnon, dos olhos. Na sala de projeção a gente não via a tela. Iioras horrivelmente cacetes, em que peda- ços de duas pessoas se encontravam. Só uns pedaços, os outros estavam longe. As pernas da moça eram frias. Onde andariam o pensamento dela? Eu pensava nos bancos do passeio, nos sapatos sem sola, no galego do frege, no chefe da revisão. Com os dedos esmore- cidos no joelho da pequena, lembrava-me também da cesta de ossos de Dagoberto e dizia mentalmente ex pressões téc.nicas. D. Aurora dormia.

Com r.erteza àquela hora o Capitólio se esvaziava, uma expsição de roupas desfilavã nos corredores que limitam a sala de espera. Os ventiladores parados, grande calor. Marina, bamba, apertava os olhos, en- colhia-se no vestido machucado, bocejava; Juliáo Ta vares abanava-se com o jornal.

Que diabo fazia eu ali, debruçado à janela? Entrar va, ia para a sala de jantar, abria um livro, punha-me a ler marcando os períodos com o dedo. Quando ter.

minava um perfodo, baixa o dedo a um lugar onde era provável haver ponto final. Pa,recia-me que este exercf- cio me fixava a atençâo na leitura: às vezes conse- gnla compreender uma página inteira. Mas o dedo fati- gava-se, entorpecia, e os olhos desviavam-se das letras, pregavam-se na toalha, nas moscas adormecidas sobre as nódoas. Um relógio batia. Julião Tavares e Marina ausentes. Vitória falava alto na cozinha. Antônia em- balava o filho mais novo de d. Rosé,lia, e a criança manhosa berrava com de.sespero. Felizmente ainda era cedo para os ratos roerem a madeira do guarda-co- midas. A vitrola de d. Mercedes começava a tocar, o galo de d. Adélia batia as asas. Alguma cantiga dis- tante, de bêbedo. Que fim teria levado seu Ivo, coi- tado? Apito de trem, provavelmente dez horas. O re- lógio da sala de jantar quase sempre parado. Passos na calçada. Quem seria? Muito tarde. O rolar dos vef- culos esmorecia. O gato já andava miando nos telha- aos. Os papéis, livros com as folhas intactas, esquec- dos nas cadeiras, causavam-me enjôo. Rumor de ferro- lho na casa vizinha, pisadas no corredor. Com certeza tinham voltado. Engano. Era seu Ramalho que entrava, aperreado, ia arengar com a mulher por causa do pro- cedimento da filha. As vezes a discussã,o se arrastava durante horas, mastiga,da e rancorosa. E Marina au- sente.

– Isso tem jeito? D. Adélia chorava, assoava-se, gemfa desculpas sem pé nem cabeça.

* * * D. Rosália era casada, mas eu não conhecia o ma rido dela, caixeiro-viajante que andava sempre no in terior. Conhecia a voz. Quando ele chegava, depois de uma ausência de meses, a casa ficava em rebulfço. Um sujeito moreno e calvo rosnava um cumprimento e to cava o chapéu ao passar na minha calçada. Presumc que era o marfdo de d. Rosália, mas não tenho a certeza. Fala mansa e abafada, muito diferente da quE eu ouvia da minha sala de jantar. Nunca vi o homexr calvo e moreno entrar na casa à esquerda, mas comc o aparecimento dele coincidia, com a presença do maI rido de d. Rosália, suponho que os dois eram uma pessoa só.

Antônia chegava à minha janela e, piscando os olhos, segredava: – “O homem está af.” Mordia o beiço e safa bamboleando-se, com um risinho canalha, as pernas grossas muito abertas exibindo marcas de fe- ridas. Para não descontentar a rapariga, eu sorria agra- decendo a comunicação, aperreado em excesso, porque nesses dias não me era possível dormir sossegado.

D. Rosália, honesta, vivia excitada, e o marido vinha feito um bode. Aquilo durava uma semana, mais de uma semana, até que o casal se acalmava e surgia nova viagem.

Nessa lua-de-mel, sempre renovada, as crianças marchavam cedo para a cama. Antônia aprontava o café, ia correr a zõna. E o trabalho do amor começava, ruidoso, indiscreto. Antes da minha cabeçada com Ma- rina, eu não agüentava aquilo. Escrevia, lia, dormia, acordava, levantava-me, tornava a deitar-me. Não me continha: vestia-me, ia para a rua, meia-noite, de ma- drugada. Por fim nem esperava tanto: quando Antâ- nia servia o café, aos muxoxos, derrubando louça, e a porta da frente se fechava com um baque, eu agar- rava o chapéu e saía. Agora não podia arredar-me dali.

Parecia-me que, na minha ausência, Julião Tavares penetraria na casa e levaria o que me restava: livros, papéi.s, a garrafa de aguardente. Sentia-me preso como um cachorro acorrentado, como um urubu atraído pela carniça. Se pudesse dormir . . .

Durante o dia passava muitas vezes pela porta de Marina, desejando reconciliar-me com elã. Faltava-me coragem, a vergonha baixava-me o rosto, esquentava-me as orelhas.

Que me importava que Marina fosse de outro? As mulheres não são de ninguém, não têm dono. Sinha Germana fora de Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, só dele, mas há que tempo! Trajano possuíra escravos, prendera cabras no tronco. E os cangaceiros, vendo-o, varriam o chão com a aba do chapéu de couro.

Tudo agora diferente. Sinha Germana nunca havia tras- tejado: ali no duro, as costas calejando a esfregar-se no couro cru do leito de Trajano. – “Sinha Germana!” E sinha Germana, doente ou com saúde, quisesse ou não quisesse, lá estava pronta, livre de desejos, tran- qüila, para o rápido amor dos brutos. Malfcia nenhuma.

Como a cidade me afastara de meus avós! O amor para mim sempre fora uma coísa dolorosa, complicada e in- completa.

Se Marina voltasse . . . Porque não? Se voltasse es- quecida inteiramente de Julião Tavares, serfamos felizes.

Absurdo pretender que uma pessoa passe a vida com os olhos fechados e vá abri-los exatamente na hora em que aparecemos diante dela.

Nu, deitado de costas na cama de ferro, esfrega- va-me no colchão estreito e coçava-me, mordido pelas pulgas. No quarto, escuro para a conta da Nordeste não crescer, a luz que havia era a do cigarro, que me fazia desviar os olhos de um lado para outro. Não podia dèi- xar de olhá,-la. As vezes me entorpecia, e a luz ia diml- nuindo, cobria-se de cinza. De repente despertava sobres- saltado: parecia-me que, se o cigarro se apagasse, algu- ma desgraça me sucederia. E entrava a fumar desespe- radamente, e soprava a cinza. Impossivel dormir. O quar- to de d. Rosália ficava paredes-meias com o meu. An- tônla tinha-me dito, em confidência: – “O homem chegou.” Devia ser o sujeito calvo e moreno que tocava o chapu e rosnava um cumprimento. Agora se dis- tinguiam palavras claras: – “Bichinha, gordinha…” Não sef como aquelas criaturas se podiam amar assim em voz alta, sem ligar importância à curiosidade dos vizinhos. D. Rosália resfolegava e tinha uns espasmos longos terminados num ui! medonho que devfa ouvir-se na rua. Antes desse uivo prolongado o homem soltava paavrões obscenos. Parecia-me que o meu quarto se enchia de órgãos sexuais soltos, voando. A brasa do clgarro iluminava corpos atracados, gemendo: – “Bi- chinha, gordinha . . . ” – “Ui! ” Na escuridão a parede estreita desaparecia. Estávamos os três na mesma peça, eu rebolando-me no colchão estrelto, picado de pulgas, respirando o cheiro de pano sujo e espérma, eles agar- rados, torcendo-se, espumando, mordendo-se. Aquilo iria prolongar-se por muitas horas. Depois o silêncio, o cansaço, a luz da madrugada, o sono, a parede, nos afastaríam. Se nos encontrássemos, farfamos um ligei- Este livro foi digitalizado por Paulo Sérgio Resende de Almeida, com a intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma manifestação do pensamento humano..

ro movimento de cabeça, resmungarfamos uma sau- dação apressada. D. Rosália, pendurando-se à janela, comentaria os modos suspeitos de Lobisomem e o pro cedimento de Marina; o homem calvo e moreno pros- seguiria nas suas viagens pelo interior; eu redigiria informações. “Em conformidade com o artigo tal do regulamento . . . ” Não havia regulamento, nem janela, nem mostruá- rios. O que havia eram duas camas próximas. Uma delas rangia escandalosamente. – “Bichinha, taludi- nha…” Esses diminutivos contrastavam com a voz do homem, grossa, arrastada. Além disso d. Rosália tinha bem quarenta anos e não éra taluda: era magra, cheia de ângulos, o carão chupado com duas olheiras fundas que no dia seguinte estariam medonhas. Silêncio de alguns minutos. Iam deixar-me dormir. Nada. Acendia outro cigarro e continuava com a vista presa na brasa, que se aproximava e afastava, em movimentos bruscos, como uma coisa viva mordida pelas pulgas. Aquela es- pécie de fogo-corredor me fascinavã. Se Marina vol- tasse . . . Porque nâo? A água lava tudo, as feridas ci- catrizam. Não valia a pena pensar no outro. Julião Tavares era um caminho errãdo. Tantos caminhos er rados na vida! Quem sabe lá escolher com segurança os atalhos menos perigosos? A gente vai, vem, faz curvas e ziguezagues, e dá topadas de arrancar as unhas. A água lava tudo, as feridas mais graves cica- trizam. Lembrava-me de uma queda antiga que me tinha jogado à cama quinze dias. O cavalo se havia empinado, eu caíra nas pedras do Ipanema, rachara a cabeça, esfolara a coxa. Porque era que uma ferida devia ser vergonhosa e outra nâo? Depois desse tom- bo, andara uns tempos bambo, tossindo, e nunca me havia consolidado, nem com os exercfcios da caserna.

– Ora af estão ferimentos que me deviam enver- gonhar, porque .me tornaram fraco. E nâo me enver- gonham.

A brasa do cigarro chegava-me perto dos beiços, brilhava, faiscava, parecia mangar de mim na escuri- dão. Sinha Germana só tinha aberto os olhos diante do velho Trajano. Sem dúvida. Mas eu queria ver 8inha Germana agora, no cinema, ou correndo as ruas, com uma pasta debaixo do braço, e mais tarde n escritório, batendo no teclado da máquina, ouvindo a cantigas dos marmanjos. Hábitos diferentes, necessida des novas.

Afinal porque seria que d. Rosália afirmava qu Marina dera com os burros na água? Não havia cei teza. E para que certeza? – Que me importa o que se passa nas casa alheias? O que se passava na cama de d. Rosália era quas público, pelo menos estava no conhecimento dos viz nhos. Fazia minutos que os doi.s se conservavam en silêncio. Enjoados, provavelmente, separados, cada un com o seu lençol. Engano. O barulho recomeçava: cc chichos que iam crescendo e se transformavam en gritos, beijos compridos, chupões gorgolejados.

Quando se debruçava à janela, fiscalizando a rua d. Rosália usava linguagem decente para censurar a filhas de Lobisomem, engulhava, cheia de pudores.

Uma criança urinava na cama e chorava. Distin guia-se perfeitamente o som das gotas que batiam m chão.

– Cala a boca! ordenava d. Rosália.

O choro findava, mas as gotas continuavam a ca.n e a respiração do homem se arrastava, entrecortada encatarroada, fungada, interrompida por um pigarrc uma respiração de quem se está estrangulando. Aquil me irritava tanto que eu apertava as mãos nos ouvido e mordia as cobertas para não gritar. O resfolegar d cachorro cansado atravessava-me as palmas das mãos rasgava-me os ouvidos, e os pingos de urina, penetran do a palha podre do colchão, caíam-me dentro da ca beça como martela.das. A criança recomeçava a chorar – Cala a boca.

Soluços engolidos da criança e a respiraçâo arque jante do homem. Inútil apertar os ouvidos que si pegavam às palmas como ventosas. Estirava-me, espre guiçava-me. De costas, as mãos sobre o peito, experi mentava relaxar os músculos e não pensar. Através da; pálpebras meio cerradas via apenas a brasa do cigarro que se cobria de cinza. Tranqüilo, tranqüilo, nenhun pensamento. Sentia vontade de chorar, tinha um bolo na garganta.

– Tranqüilo, tranqüilo.

Esta repetiçâo me exasperava e endoidecia. O cor- po em completo sossego, o cfgarro apagado. Não sabia em que posição estavam as pernas. As mãos pesa- vam em cima do peito. Mas as pernas, onde estariam elas? Flutuava como um balão. O corpo quase adorme- cido e sem pernas. As idéias, porém, não me deixavam, idéias truncadas. Uma guerra na Europa. D. Mercedes comprara discos novos para a vitrola. Moisés se oculta- va, com medo da polícia. Um espúito puro, um espí- rito boiando, livre da matéria. As botinas de Lobiso- mem estavam cada vez mais cambadas. Onde andaria seu Ivo? Um espírito boiando. Como seria? O espírito de Deus era levado sobre as águas.

As pulgas mordiam-me. Sem mudar de posição, esforçava-me por não fixar o pensamento em coisa n nhuma. Quando vinha uma idéia, afastava-a, agarra- va-me a outra, que saía logo. Algumas voltavam com insistência. As botinas de Lobisomem estavam cam- badas. O espírito de Deus boiava sobre as águas.

Suava irio, mas prolongava a tortura que produ- ziam as picadas das pulgas e a imobllidade. Afinal as picadas das pulgas e a imobilidade me distrairiam da- queles beijos e daqueles uivos. Outra vez o choro da criança, novamente a voz de d. Rosáaia, arreliada: – Cala a boca, diabo! O pranto continuava. Pisadas de pés descalços, palmadas, muxicões. A criança choramigava baixiriho e aquietava-se. Novos passos abafados e um baque na cama, que rangia. O espírito de Deus boiava sobre as águas. Como estariam as minhas pernas? Cruzadas ou afastadas? Seria mais fácil saber como estavam as per- nas de d. Rosália. O resfolegar prosseguia, resfolegar de porco fossando. Quantas horas aquilo duraria ainda? Seu Ivo, os dfscos da vitrola, Moisés, as botinas de Lobisomem, tudo inútiL Inúteis as picadas das pulgas.

O homem calvo e moreno, com os olhos abotoados, tungava e arquejava, a baba escorrendo no beiço e umedecendo a pele seca de d. Rosálla. Estava mesmo assim: os olhos arregalados, as ventas muito abertas, a boca pingando gosma, a cara barbuda arranhando e escovando o couro de d. Rosália. E aquela respiração estertorosa de bicho sufocado! Sentava-me e acendia um cigarro. Perdido o sacri- ffcio de permanecer imóvel, suportando as pulgas. Fe- chava as mãos com força. Estertor de bicho sufocado.

O que eu desejava era apertar o pescoço do homem calvo e moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e esfriasse. Lutaria e estrobucharia a princípio, depois seriam apenas convulsões, estremecimentos. Os meus dedos continuariam crispados, penetrando a carne que se imobilizaria, em silêncio. Este pensamento afugen- tava os outros. O espírito de Deus deixava de boiar sobre as águas. Uma criatura morrendo e esfriando, os meus dedos entrando na carne silenciosa. Não me lembrava de Julião Tavares. O que me aparecia na mente era o sujeito calvo e moreno que eu presumia ser o marido de d. Rosália e talvez nem fosse. Enfim desejava matar um homem que me roubava o sono.

* * * Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixa- ram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas açõés surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos aparecem inexpli- cáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma con- fusão, em que avultava a idéia de reaver Marina. Mais de um mês, quase dois meses em intimidade com o outro. Procurei por todos os meios uma nova aproxi- macão. O despeito, a raiva que senti naqueles dias com- pridos, uns restos de amor próprio, tudo se sumiu.

A tarde voltava a sentar-me na espreguiçadeira, abria um livro. Marina ausente. Deitava-me, fingia dormir, ficava uma hora espiando o quintal vizinho através das pestanas meio cerradas. As galinhas ciscavam, d. Adélia cantava no banheiro, a sombra da mangueira crescia, além do muro a mulher que lava garrafas tra- balhava sacolejando-se num ritmo de batuque e o ho- mem triste enchia dornas. As vezes passos apressados revelavam-me a presença de Marina. Eu tinha vergonha de abrir os olhos, e quando me decidia a acordar, já ela estava longe. Erguia-me irritado. Perdendo ali, como um rapazinho, momentos preciosos! Esforçava-me por acreditar que os meus momentos eram preciosos.

* * * A noite sentava-me à calçada e olhava a rua. Seu Ramalho fazia o mesmo. Palavra de cá, palavra de lá – como falávamos baixo, era necessário aproximarmos as cadeiras. Depois do namoro da filha com Julião Tavares, d. Adélia mostrava-me antipatia. A princípio era aquela subserviência, tremura, cumplicidade; mas agora nem me via; enrugava a testa e grunhia “Huml hum!” com um modo insuportável. Seu Ramalho, que meses atrás me olhava desconfiado, tornara-se um ex- celente amigo e dava-me conselhos.

– Não se case, seu Luís. Casamento é buraco.

O mundo está perdido.

– Isso é por causa do cinema, seu Ramalho. O se- nhor nunca vai lá. E feliz. Nem calcula as sem-vergo- nhezas que há na tela.

Seu Ramalho baixava a cabeça, pensativo: – Deve ser também por falta de religiã.o.

– E. Deve ser também por isso.

Realmente a minha vizinha desconhecia as igrejas, e isto não me preocupava.

– O cinema é o diabo, seu Ramalho. O senhor não imagina. São uns beijos safados, lingua com lín- gua, nem lhe conto. Provavelmente as moças saem de lá esquentadas.

– Devem sair, concordava seu Ramalho. Por isso há tanta gente de rédea no pescoço.

– Que rédea! Hoje não há rédea. Um sujeito corre atrás de uma saia, pega a mulher, larga, pega outra, e é aquela garapa.

– Safadeza.

– E. Tudo é safadeza. Antigamente essa história de honra era coisa séria. Mulher falada não tinha valia.

– Nenhuma, exclamava seu Ramalho, cansado, tossindo. E eram vinganças medonhas.

.- Vinganças horrorosas, bradava eu excitado.

Nesse ponto da conversa contávamos sempre ama série de casos que ilustravam as nossas afirmacwões.

Animado, o cachimbo apertado entre os dentes, seu Ramalho assobiava as mesmas anedotas, empregando o mesmo vocabulário. As vezes eu o interrompia: – O senhor já contou essa.

Mas seu Ramalho continuava sem se perturbar: falava para dar prazer a si mesmo, não me escutava.

Talvez quisesse enganar-se e convencer-se de que seria também capaz de praticar façanhas. As palavras saíam-lhe sem variações. Era amigo da verdade e tinha imaginaçã.o fraca. As minhas narrativas não se com- paravam às dele: sendo muito numerosas, eu esquecia freqüentemente certas passagens, ficavam brechas, so- luções de continuidade. Além di.sso eram transmitidas em linguagem artificial, que o vizinho achava falsa e retocava.

O conto sensacional de seu Ramalho era o seguinte.

Um moleque de bagaceira tinha arrancado os tarnpos da filha do senhor de engenho. Sabendo a patifaria, o senhor de engenho mandara amarrar o cabra e à boca da noite começara a furá-lo devagar, com ponta de faca. De madrugada o paciente ainda bulia, :mas todo picado. Aí cortaram-lhe os testículos e meteram- lhos pela garganta, a punhal. Em seguida tiraram-lhe os beiços. E afinal abriram-lhe a veia do pescoço, por- que vinha amanhecendo e era impossível continuar a, tortura.

– Medonho! Seu Ramalho. Que coisa extraordi- nária! Pedia-lhe explicações: – Porque foi que arrancaram os quibas antes dos beiços? – Quem sabe? No dia seguinte reproduziria o mesmo caso : o mo- leque morreria lentamente, sem beiços, a boca enchu- maçada, por causa dos gritos. Eu desejava que seu Ramalho acrescentasse alguma coisa à história. Mas seu Ramalho só sabia aquilo e era incapaz de inventar.

Por isso fazia pausas para recordar os fatos com segu- rança, batia na testa, interrogava-se a cada ins.tan°e e acusava-se quando avançava uma informação inveri- dica: – 1910. Minto, 1911. 1911, Manoel? As duas datas produziam-lhe verdadeira aflição.

Nunca pôde fixar-se em nenhuma. Detinha-se em cál- culos, sempre se reportando a acontecimentos notáveis na sua pequena vida: o dia do casamento, a mudança para a capital, o sarampo da filha. D. Adélia, com flo- res de laranjeira, sem aquele corpo mole e pesado, era bem bonita; na viagem, em estrada de ferro, o trem da Great Western descarnlara; Marina ficara coberta de calombos e vergões encarnados.

Naquela noite seu Ramalho voltou a referir-se a esses três casos importantes. Nunca tinha viajado em estrada de ferro. Um descarrilamento para começar.

– Não é esquisito? Todos os dias rodam trens, que chegam no horário. Pois justamente quando eu embar- co vem o desastre. Nâo parece que estava ali um diabo esperando por mim para botar as rodas fora dos trilhos? E descreveu a cena. Abandonados no campo, os passageiros metiam os olhos pela.s vidraças, e só enxer- gavam uma luzinha distante. Fazia frio. Ele tirava o paletó e enrolava a menina, que esperneava no banco do carro de segunda classe. Alguns trabalhadores, de malotes, dormiam. Uma velha gemia de quando em quando: – “Fechem essa janela.” Uma rapariga chei- rosa encostava-se so.s homens. Ele acalentava a meni- na, que se arreliava no banco imundo. E olhava des- confiado a rapariga, receando que ela se aproximasse de d. Adélia. Mulher da vida, cheirosa, roçando-se nos homens, ali no carro pequeno, cheio de gente e quase sem luz. Apenas um lampião fumacento, de vidros tis- nados.

D. Adélia, corada, risonha, de carnes enxutas, era um mulherâo. O casamento foram quatro anos antes da viagem. Bonita de verdade. Com o véu, a grinalda de flores de laranjeira, dançara uma noite sem descansar.

Olhava os moços cara a cara, e eles baixavam a cabeça.

– Ah! Os marmanjos desanimavam.

O sarampo de Marina tinha sido dez anos depois da viagem. Estivera vai não vai, batendo a caçoleta.

– Antes tivesse batido, que era inocente e não dava desgosto a ninguém.

A febre durara muitos dias. Mal respirava, magrf- nha como um palito, e por cima dos olhos vidrados as moscas passeavam. D. Adélia, bamba, arrastava os chinelos de trança que pareciam dois sapos. Estava mole, encolhida, machucada, e habituara-se a falar cochichando e a baixar a cabeça diante de toda a gente.

Seu Ramalho deu um suspiro e empurrou a his- tória do moleque da bagaceira, o que havia arrancado os tampos da filha do patrão.

– 1910 ou 1911? Nunca pude saber com precisão a data da morte do moleque. Isto não tinha importância: não guardo números, e a angustiada confusão de seu Ramalho irri- tava-me. Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma fzgura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, tor- cidos na agonia, estavam cobertos de buracos que es- guichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava den- tes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro ar- quejava. Corria sangue entre as frestas dos parallepf- pedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e ver- melho.

– Af, ai! suspirou seu Ramalho. Vou chegando ao serviço.

Ergueu-se como se levantasse da cadefra um peso enorme. E, descontente, arfando, um ombro alto, outro baixo, o cachimbo entre os dentes, lá se foi para a usf- na elétrica. Seguf-o com a vista até a esquina. Quando ele de.sceu da calçada, estremeci: pareceu-me que tinha sujado os sapatos no sangue.

A vitrola de d. Mercedes rodava marchas de car- naval; d. Adélia abriu os postigos: – “Hum, hum!”; a cabeça de d. Rosália tinha os cabelos vermelhos. An- tônia, pintada de vermelho, as pernas abertas, passou bamboleando-se. Das saias dela desprendeu-se um chei- ro forte de sangue. Provavelmente estava menstruada e não se lavava. Os arames da Nordeste balançavam como cordas. Eu receava que os transuntes tropeças- sem no moleque estendido no calçamento. Rangia os dentes e dizia baixinho: – Que estupidez! Que estupidez! Mas a figura continuava a escabujar no chão.

Agora não era preta nem estava nua. Pouco a pouco ia embranquecendo e engordando, o sangue estancava, as feridas saravam.

Aquela hora Marina devia descansar, escanchada na rede, deitada de costas. Uma perna dava o impulso para o balanço, e os armadores rangiam: ran, ran.

Provavelmente se estragava pensando num romance besta. O ar refrescava-lhe as coxas suadas. E os arma- dores faziam: ran, ran.

– Que estupidez! Que estupidez! A figura deitada no calçamento estava branca e vestida de linho pardo, com manchas de suor nos sova- cos. Felizmente o sangue tinha desaparecido, já não havia a umidade pgajosa na sarjeta, nos cabelos de d. Rosália, nas saias de Antônia. Em redor tudo calmo.

Gente indo e vindo, crianças brincando, roncos de au- tomóveis. O hmem tinha os olhos esbugalhados e estrebucha -~ rrn, nedaço de corda amarrado n – e duas mão parecia que’ o seguravam : gordura bal ‘ ” ó ; ‘ c o A vitrol ó o o o õ cor- entava os armador ente. Os tado balan rença. Eu o’ ‘ . Sentar 0 osene, encos- palmas, trc ó t O . ~ va-me a ca o ~ r a cachaça. Mas não tinham para os olhos a a língua ‘ o ,°, o, 0 4ualquer coisa, dar abundo, que tinha an- sa, ó nos bancos dos passeios, ° riam a sério. Viam um su- , pálido, tossindo por causa da Quar ° olhado a roupa. A luz do can- pletamen oscilava no balcã.o gorduroso. Iio- .’ 113 casa e os bilhetes errados e grosseiros de dr. Gouveia.

Aporrinhações. Por causa de uma porcaria, alguns meses de aluguel deste chiqueiro, coices. Pagar tudo, perfeitamente. Bastava reduzir um pouco as despesas e voltar ao jornal. Marina que fosse para o diabo.

Agarrava a papelada com entusiasmo de fogo de palha. Tempo perdido. Marina não ia para o diabo, E eu m° metia por estas ruas, passava horas no café, lesando, bebendo. Seria fácil regularizar a minha vida, liquidar as contas, botar tudo de novo nos trilhos. Un: pouco de boa vontade, método.

– Outro conhaque.

Método, perfeitamente, tudo se arranjaria. Sai dali, ia olhar as vitrinas e os cartazes. Bacharel idiota aperreando um bom inquilino. Porcaria.

– Quem andou por este mundo roendo chifre nãc se engancha em bobagens. Porcaria. Tenho comidc toicinho com mais cabelo.

Foi nesta disposição que li os cartazes da compa nhia lírica. Não dei importância a ela. Companhu vagabunda, com pessoal rouco, as cantoras canhões provavelmente. Encolhi os ombro.s: não sei músic: e tenho péssimo ouvido. As paredes dos cafés co briam-se de retratos de artistas. Visa no papel, havi uma soprano bem regular.

No dia da estréia notei rebuliço em casa de sei Ramalho. Pela manhã chegaram caixas e pacotes; mai tarde bateu palmas uma criatura de preto, certament a modista; o menino da sapataria apareceu muita vezes; depois seu Chico, o carteiro, que sabe corta cabelos de senhoras. Marina largava os sapatos e corri pelo corredor, aos gritos com a mâe, que se mexia con dificuldade. A noit2 um carro buzinou à porta, e M rina saiu de casa, bem vestida como as senhoras d Ate.~ro quando vão às festas da Associação Comercia: Atravessou a calçada, sem se virar, e entrou na Limoa sine, onde brilhava a cam.sa de Julião Tavares, so o foco elétrico. Os pneumáticos rodaram süenciosos er direçâo à Praça Deodoro, e na rua ficou um cheir esquisito de gasolina, po-de-arroz e perfumes.

Cinco dias seguidos a mesma cena se reproduziu Marina atravessou a calçada com o andar seguro da senhoras do Aterro, o peitilho engomado brilhou, o ar se encheu de uma estranha mistura de gasolina e per- fumes.

Não me continha: saía de casa e andava à toa por estas ruas, fatigando-me em caminhadas longas.

O inverno tinha começado, quase sempre caía uma chuvinha renitente. Ia sentar-me num ba,nco da Praça dos Martírios, e os pingos que tombavam da folhagem das árvores molhavam-me a cabeça descoberta e escal- dada. A sentinela cochilava no portâo do palácio. Ao pé do morro, pedaços da igreja fechada apareciam en- tre os ramos. Um barulho horrível de motores e rodas.

Automóveis a roncar. Todos queimavam gasolina mis- turada com perfume. Depois um rádio começava a tro- vejar óperas. O cheiro e o som tornavam-se insuportá veis. Esforçava-me por esquecer o nariz e o ouvido, abria os olhos. A sentinela cochilava encostada ao fuzil. Serviço pau. Um pobre homem dormindo em pé.

Acordava, escancarava a boca, via com tédio as grades do jardim, o hall deserto, a escada ao fundo, vermelha.

O tapete vermelho da escada me dava impressão desa- gradável. Podia ser de outra cor. As luzes do farol mn- davam de minuto a minuto, branca, vermelha, branca, vermelha. Porque nâo aparecia uma terceira cor? Aquilo era irritante, mas a farol me atraia. Pelo menos va- riava mais que a sentinela, tinha mais vida que a sen- tinela.

Levantava-me, subia a Ladeira Santa Cruz, percor- ria ruas cheias de lama, entrava numa bodega, tentava conversas com os vagabundos, bebia aguardente. Os vagabundos não tinham confiança em mim. Senta- vam-se, como eu, em caixões de querosene, encos- tavam-se ao balcão úmido e sujo, bebiam cachaça. Mas estavam longe. As minhas palavras não tinham para eles significação. Eu queria dizer qualquer coisa, dar a entender que também era vagabundo, que tinha an- dado sem descanso, dormido nos bancos dos passeios, curtido fome. Não me tomariam a sério. Viam um su- jeito de modos corretos, pálido, tossindo por causa da chuva que lhe havia molhado a roupa. A luz do can- deeiro de petróleo oscilava no balcão gorduroso. Homens de camisa de meia exibiam músculos enormes, que me envergonhavam.

Encolhia-me timidamente. Não simpatizavam co- migo. Eu estava ali como um repórter, colhendo im- pressões. Nenhuma simpatia.

A literatura nos afastou: o que sei deles foi visto nos livros. Comovo-me lendo os sofrimentos alh2ios, penso nas minhas misérias passadas, nas viagens pelas fazendas, no sono curto à beira das estradas ou nos bancos dos jardins. Mas a fome desapareceu, os to.~- mentos são apenas recordações. Onde andariam os ou- tros vagabundos daquele tempo? Naturalmente a fome antiga me enfraqueceu a memória. Lembro-me de vul- tos bisonhos que se arrastavam como bichos, remoendo pragas. Que fim teriam levado? Mortos nos hospitais, nas cadeias, debaixo dos bondes, nos rolos sangrentos das favelas. Alguns, raros, teriam conseguido, como eu, um emprego público, seriam parafusos insignificantes na máquina do Estado e estariam visitando outras fa- velas, desajeitados, ignorando tudo, olhando com assom- bro as pessoas e as coisas. Teriam as suas pequeninas almas de parafusos fazendo voltas num lugar só.

Ia sentar-me no canto mais escuro, longe do can- deeiro de petróleo, longe dos homens de camisas sem mangas e das mulheres que arrastavam tamancos.

Vagabundos? Nada. Estavam ali indivfduos de várias profissões. O moleque tisnado era engraxate. A mulher de chinelos, que trazia uma garrafa de querosene pen- durada no dedo por um cordel, tinha modos de p: ssoa séria, casada ou amigada. A rapariga pintada de branco e vermelho, com marcas de feridas nos braços, devia ser uma ratufna como Antônia. O homem gordo era pedreiro, via-se pelas manchas de cal na roupa. Pe- dreiro com aquele corpo, que perigo! Um cochilo no andaime, pisada em falso na ponta da tábua, e no dia seguinte a famflia estaria de luto. O rapaz de cabelos compridos que tocava violâo provavelmente não se ocupava. No carnaval devia ser uma das figuras mais importantes do cordão, e pela festa de Natal, na barca de terra e varas que ali estava armada em frente à bodega, seria um bicho na chegança, contramestre pelo menos, talvez almirante. Os meninos que brincavarn na rua quando estiava, às carreiras e aos gritos, horas de- pois estariam no grupo escolar, os cotovelos na car teira, escutando, ou não escutando, a voz da profes- sora. Vinte anos depois seriam balizas no clube carna- valesco, contramestres de chegança, donas-de-casa sos- segadas que levariam, pendurada no fura-bolo, uma garrafa de querosene amarrada pelo gargalo, mendigos como aquele que ali estava com a perna estirada co- berta de trapos. Felizmente as moscas dormiam, e o homem dos trapos não precisava mandar as almas cari- dosas para o reino do céu em voz alta, para a casa do diabo em voz baixa. Agora não havia esmolas e o homem da perna entrapada conversava com os outros quae naturalmente. O dóno da bodega era triste. Cer- tamente pensava no aluguel, na figura odiosa de um dr. Gouveia, no imposto e nas faturas dos gêneros.

Talvez dentro de seis meses a bodega estivesse fechada, e ele, com os cacarecos, a mulher, de garrafa pendu- rada no dedo, e os filhos, que agora dançavam na rua molhada, tivesse descido o morro pela banda do norte e vivesse à beira do Reginaldo, onde há febres, inun- dações e lixo. As crianças dançavam e cantavam na rua molhada. Dentro de vinte anos as que gostassem de torcer-se no mesmo canto seriam parafusos. Ignora- riam o que existisse longe delas, mas conheceriam per- feitamente as coisas por onde passassem as suas roscas.

Haveria dentro de vinte anos criaturas assim encaraco- ladas que, tendo corrido mundo, se resignam a viver num fundo de quintal, olhando canteiros murchos, res- pirando podridões, desejando um pedaço de carne vi- ciada? Tudo ali era tão simples! Os bordões do violão gemiam, as gargalhadas sonoras da mulher pintada enchiam a praça. A história que o homem acaboclado, de peito cabeludo e cicatrizes no rosto, contava ao engraxate devia ser interessante. Gestos expressivos, provavelmente façanhas de capueiras. Eu não compreen- dia a linguagem do narrador, as particularidades que provocavam admiração perdiam-se. As gargalhadas da mulher transformavam-se naquela viagem curta aos meus ouvidos, chegavam-me frias, geladas. E a marcha do carnaval entristecia nos bordões do pinho. Todas aquelas pessoas entendiam-se perfeitamente. Diferiam , muito umas das outras, mas havia qualquer coisa que as aproximava, com certeza os remendos, a roupa suja, a imprevidência, a alegria, qualquer coisa. Eu é que ` não podia entendê-las. – “Sim senhor. Não senhor.” ‘ Entre elas não havia esse senhor que nos separava. Eu era um sujeito de fala arrevesada e modos de parafuso.

Aquele tipo acaboclado, que dizia histórias de capueira e se balançava num pé só, tinha bíceps enormes, pro- vavelmente estrangularia um homem sem grande es- forço. A rapariga pintada cheirava a pó-de-arroz. A pó- de-arroz e a gasolina. O rapaz de cabelos compridos ‘ largava os sambas carnavalescos e punha-se a arrancar do pinho coisas absurdas que pareciam trechos de ópe- ras. Insuportável. Afinal que estava eu fazendo ali, sentado num caixão, diante de um copo vazio? Pro- curava fixar a atenção nas crianças que dançavam e corriam, como dançavam Q corriam, na areia do Ca- valo-Morto, os meus companheiros, alunos de mestre Antônio Justino. Lá estava novamente entrando no pas- sado, torcendo-me como parafuso. – “Rei meu senhor mandou dizer que fossem ao cemitério e trouxessem um osso de defunto.” Quem tinha coragem? Os mais atrevidos chegavam até o muro de seu Honório, no üm da rua. Adiante o lugar era mal-assombrado e nin- guém se aventurava por lá. Eu queria gritar e espo- jar-me na areia como os outros. Mas meu pal estava ‘ na esquina, conversando com Teotoninho Sabiá, e não consentia que me aproximasse das crianças, certamente receando que me corrompesse. Sempre brinquei só. Por isso cresci assim besta e mofino.

Lembrava-me da minha chegada à vila. As ruas me causavam grande espanto: nunca havia imaginado que as ruas fossem tão compridas e tão largas. Sai de casa e comecei a passear na calçada, olhando a janela de um sobra.dinho onde se debruçava um homem far- dado. Quis recolher-me e entrei pela primeira porta que encontrei. Na sala de jantar descobri uma mulher amamentando o filho, sentada numa esteira, com um gato de banda. Fiquei encabulado e perguntei: – “De quem é csse gato?” A mulher respondeu: – “E meu.” Saí e continuei a passear na calçada, mas sem prestar atençã,o ao homem de farda que se debruçava à janela ! do sobradinho. Arrisquei-me a entrar por outra porta.

Na sala de jantar a mulher amamentava o filho. E o gato de banda. Tornei a perguntar: – “De quem é esse gato?” A mulher respondeu : – “É meu.” Mais tarde cabo José da Luz me encontrou perdido e levou-me para casa. Um menino grande e besta, muito diferente dos que brincavam junto à barca de terra e varas. Na escola de mestre Antônio Justino sentava-me afastado dos ou- tros, naturalmente para não me corromper.

E ali estava encostado ao balcão, sem perceber o que diziam, meio bêbedo, susceptivel e vaidoso, des- conffado como um bicho. Tudo aquilo me envergo- nhava: as conversas simples, a alegria, especfalmente oa músculos do homem que falava ao engraxate. Mús- culos e mãos enormes, que esganarfam facilmente um inimigo. Levantava-me.

– Insuportável.

A mulher cheirava a gasolina. O violão tocava óperas.

– Insuportável.

Os bfceps e as mãos do homem acaboclado eram realmente enormes.

* * * O último dia foi medonho. Quando a limozcsine rolou no paralelepfpedo e o peftilho de Julião Tavares se sumfu, não me afastei da janela,. Fiquef mastigando o cigarro e respirando aquela mistura desagradável que enchia a rua. Nenhum desejo de ir aos Martirios, subir o morro do Farol e escutar os tipos que se encostavam ao bakão sujo e gorduroso da bodega. Apalpei a car- tefra vazia, meti os dedos noa bolsos miúdos, vazios.

Sentia-me incompleto e sem ãnimo de me aventurar sozimho por aquelas ruas esquisitas. sentia,-me iraco e desarmado.

Porque serfa que o peftilho de Julião Tavares bri- lhava tanto e não se amarrotava? Julião Tavares licava duro como um osso fraturado envolvido em gesso, tinha o espinhaço aprumado em demasia., olhava em lrente, oom segurança, a vinte passos. O peitilho da camisa absolutamente chato.

A minha camisa estufa no peito, é um desastre.

Quando caminho, a cabeça baixa, como a procurar df- nheiro perdido no châo, há sempre muito pano subin- do-me na barriga, machucando-se, e é necessário puxá-lo, ajeitá-lo, sujeitá-lo com o cinto, que se afrouxa. Estes movimentos contínuos dão-me a aparência de um bo- neco desengonçado, uma criatura mordida pelas pulgas.

A camisa sobe constantemente, não há meio de conser- vá-la estirada. Também não é possivel manter a es- pinha direita. O diabo tomba para a frente, e lá vou marchando como se fosse encostar as mãos no chão.

Levanto-me. Sou um bfpede, é preciso ter a dignidade dos bípedes. Um cachorro como Julião Tavares andar empertigado, e eu curvar-me para a terra, como um bicho! Desentorto o espinhaço. Que é que me pode acontecer? Se dr. Gouveia passar por mim, finjo não vê-lo. E impossfvel pagar o aluguel da casa. Não pago.

Hei de furtar? Dr. Gouveia que se lixe. Se o governador e o secretário me encontrarem, é como se não encon- trassem. Não os enxergo, na rua sou um homem. Pen- sam que vou encolher-me, sorrir, o chapéu na mão, os ombros derreados? Pensam? Estão enganados. Sou um bfpede. E isto, um bípede. Mas não é necessário que dr. Gouveia, o governador e o secretário apareçam na rua. Aliás é bom que eu não veja essas criaturas exi- gentes. Se elas desejarem qualquer coisa de mim, fala- rão de longe: escreverão um bilhete ou darão uma ordem para o jornal, ao Pimentel, pelo telefone. Man- darei um mês do aluguel da casa, se puder, ou escre- veref mais uma coluna que já escrevi centenas de vezeç e reproduzo sempre, substituindo palavras. Esses homens dominam-me sem mostrar o focinho: manifes- tam-se pelo arame, num pedaço de papel.

Pensam que vou ficar assim curvado, nesta posi- ção que adquiri na carteira suja de mestre Antônio Justino, no banco do jardim, no tamborete da revisâo, na mesa da redação? Pensam? Procuro ajeitar as vér- tebras, mas as vértebras parecem soltas, presas apenas por um fio, como as que Dagoberto vinha jogar em cima da minha cama. Resvalam pouco a pouco, e ao cabo de vinte minutos de exercício penoso o meu cor- no toma a configuração de um arco. A cabeça pende, como se procurasse dinheiro na calçada, e a camisa taz pafos no peito. Inútil tentar abaixá-la e prendê-la na cintura Sobe sempre e me arrelia. Enquanto me aperreio com ela, não vejo as pessoas. Que será de mim para o futuro? Está claro que não inspiro confi- ança aos trabalhadores. Na sessão mais agitada seu Ramalho gemerá, cansado e asmático, um ombro alto, outro baixo: – “Camarada Lufs da Silva, você escre- veu um artigo defendendo o imperialismo ” – “Não escrevi não. Sou lá homem para defender o imperia- lismo?” – “Está aqui o original, é a sua letra”, dirá o rapaz de cabelos compridos, que toca violão. Moisés não terá coragem de interceder por mim. Pimentel estará fuzilado. Lobisomem tomará uma nota lenta nos papéis. Fico pensando em coisas assim, cabisbai- xo, a testa enrugada. Se dr. Gouveia, o governador, o secretário, passarem por mim, não os verei: seguirei o meu caminho com dignidade curva, o espirito distan- te. Os conhecidos que me virem pensarão: – “Luís da Silva é um sujeito que não tem subserviéncia nenhu- ma.” E os que me cumprimentarem e não obtiverem resposta dirão: – “Lufs da Silva é uma besta, um imbecil, um cretino.” E bom não levantar a espinha.

& a levantasse, teria de baixá-la de novo a cada pas.

so, aflito e apressado, o chapéu na mão. Assim, não vejo ninguém, caminho batendo nos transeuntes, enmlando palavras de desculpa, entrando no fqturo como um parafuso. – “Camarada Luis da Silva, antes da revolução vocé elogiava os polfticoa safados do inte- rior, os prefeitoz ladrões. Onde está o dinheiro que esza gente lhe deu?” Sabia lá! Agora náo tinha dinheiro. De quando em quando metia a mão no bolzo. Desarmado e só, inteiramente dó, encoatado à janela, ouvindo o barulho dos autom veis. Nenhum desejo de lugir daa pessoaa que Iam ao teatro. &ntia era vontade de ir também, sentar-me auma cadeira junto do palco, bater palmas, olhar os camarotes. Faltavam-me cinco ou seis dias para rece- ber o ordenado. Agora não havia dinheiro, só resta- vam niqueis. Um empréstimo, sem dúvida, um emprés- timo. Mas quem me iria emprestar vinte mil-réis àqus- la hora? D. Mercedes entrou no carro. A personagem off- cfal não a acompanhava. Tipo de responsabilidades, pai de famflia, ia ao teatro em companhia da mulher e das filhas. D. Mercedes sentava-se num camarote fronteiro, não bem fronteiro, um pouco de esguelha, e não se exibia demais.

Se Pimentel aparecesse, talvez me arranjasse o ingresso do jornal. Ou um empréstimo. Dentro de cin- co dias, seis quando muito, o Tesouro pingaria o orde- nado da gente.

– Daqui a dez anos terei esse ordenado? E Julião Tavares? Julião Tavares estaria expatria- do, fuzilado ou enforcado. Enforcado, Julião Tavares enforcado. Marina deixaria de pintar as unhas e iria trabalhar no asilo das órfãs.

Vinte mil-réis, vinte mil-réis. Lembrava-me dos leilões em que se cavava dinheiro para um santo, dian- te da igreja da vila. – “Vinte mil-réis me dão por esta prenda…” O olho de vidro de padre Inácio, imóvel na órbita escura, tinha uma dureza sinistra.

Vinte mil-réis, vinte mil-réis. Não haveria leilões, não haveria santos, Marina trabalhando no asilo das órfãs, Julião Tavares enforcado, padre Inácio morto muitos anos antes.

Aquela hora a platéia, começava a encher-se, um garoto dizia pilhérias, as cantoras pintadas e empaca- viradas em mantos compridos entrãvam pela portinho- la da caixa. Mantos pretos. Pareceu-me que os man- tos deveriam ser pretos, mas não pude saber porque me vinha esta idéia.

Vinte mil-réis, vinte mil-réis. Padre Inácio cravava nos ofertantes o olho duro e imóvel, andava em torno da mesa com as mãos atrás das costas, todo preto.

Um empréstimo, era o que me valia. Pensei nas minhas entrevistas com Marina, ,lta noite, no quin tal. Certamente ela havia esquecido aquilo, mas eu me lembrava de tudo muito berr. As formigas rendilha- vam as folhas. Um grilo saltava no canteiro. A ilumi- nação da cidade chegava ali muito reduzida. Quase não tfnhamos necessidade de roupa. – “Vamos entrar meu coração.” As luzes se tinham apagado e eu con- seguira que Marina se despisse. Beijara-a da cabeça aos pés, sentira nos beiços os carocinhos que se forma- vam na pele macia. Ela curvava-se e cobria os peitos com as mãos. Olhava-a e apenas distinguia uma som- bra que se torcia junto ao tronco da mangueira. Pare- cia-me que Marina estava vestida de preto.

Ali, perto da raiz, ao pé da cerca, no canteiro das alfaces, escondia-se a fortuna de Vitória. Aqueles pon- tos me eram familiares, seria capaz de encontrá-los com os olhos fechados.

Tempo sem fim à janela, olhando os automóveis que passavam para o teatro. Ainda passavam alguns.

Bem. A representação ainda não tinha começado.

Vinte mil-réis. Cinco ou seis dias depois pagaria, com juro de cento por cento. Daria cento por cento ao velho Abraão. Uma semana de prazo. Pimentel não aparecia, Moisés não aparscia.

Com certeza a platéia estava quase cheia, serfa diffcil encontrar cadeiras perto da orquestra. – “Letra D, letra F” – “Acabaram-se. Só há de S para trás.” Marina passeava o Lorgnon pelos camarotes, indiferen- te, e os rapazes abotoavam para ela os olhos gulosos.

D. Mercedes mordia os beiços com despeito. Julião Tavares, apertado no smokzng, parecia menos gordo.

Dentro de alguns anos estaria enforcado, mas agora estava bem vivo. E na camisa branca, sem uma dobra, as pedras dos botões faiscavam, no dedo grosso o rubi faiscava, a gola do srcoking faiscava.

Entrei desanimado, fui debruçar-me à janela da sala de jantar. Vitória pôs a xfcara, o açucareiro e a garrafa térmica sobre a mesa, foi deitar-se. Ouvi o rumor da chave na fechadura, depois o resmungar de orações e o chocalhar das contas do rosário. Em segui- da houve silêncio. Os olhos de um gato passaram por cima do muro de d. Rosália. Currupaco mexeu-se na gaiola e bateu as asas.

Uma açã.o indigna. Perfeitamente, ação indigna, mas não ousei confessar a mim mesmo qual era a ação, qual era a indignidade. Horrivel fixar aquilo no pensamento. Não queria pensar.

A casa devia estar cheia, o homem da bilheteria cochilava. Um olho, no palco, observava a platéia por um buraco do pano de boca. Marina bocejava por detrás do leque, Julião Tavares amolava-se.

Afinal Vitória encontrava sempre moedas minhas no chão quando varria a casa. Depois elas apareciam em cima da mesa de jantar, nas cadeiras, debaixo dos travesseiros, mas antes tinham estado ocultas naqueles lugares que eu conhecia bem. Muito provável que a velha se enganasse nas contas e deixasse algumas lá enterradas. Natural estarem ali vinte mil-réis meus.

Indignei-me com a pobre e entrei a descompô-la men- talmente: – Ladra! Estar um homem em dificuldade por causa de vinte mil-réis, uma porcaria, e saber que essa miserável esconde as economias dele, economias suadas, em buracos no chão.

Decidi-me a ir pisar mais uma vez a terra que Marina havia pisado, encostar-me ao tronco da man- gueira, onde ela estivera nua, enrolada na escuridáo, torcendo-se e mordendo os braços para não gritar por causa dos beijos que eu Ihe dava na barriga e nas coxas. Deci os degraus. Na porta do banheiro meti o pé numa poça.

Julião Tavares serfa enforcado. Marina trabalhai. ria no asilo das órfãs.

Perfeitamente, era ali que ela havia tirado a cami- sa uma noite. Agora estava embrulhada em roupa com- prida, o largnon insultando as mulheres dos outros camarotes. O pano já se tinha levantado, Ffgaro e Almaviva se escondiam perto da janela de Rosina, o dr. Bartholo fechava a porta. Marina olhava a cena com fastio.

Meses atrás estava ali no escuro, nua, o corpo todo coberto de carocinhos miúdos como pontas de alfine- tes. Inteiriçava-me, rangia os dentes, pisava com raiva o chão que escondia o tesouro de Vitória. Debaixo das solas dos meus sapatos, a alguns centfmetros de pro- fundidade, estavam as moedas que eu precisava. Ras- par um pouco a terra, mergulhar a mâo, agarrar um punhado delas.

Os olhos do gato brilharam outra vez em cima do muro de d. Rosália e ficaram parados, redondos e fos- forescentes. Pensef na datilógrafa que tinha desaparecido. Talvez estivesse doente. Ou morta. Franzina, com aquele peitinho estreito, batendo na máquina.

Mexia-me, e não podia desviar os olhos das duas tochas que me espiavam por cima do muro. Sentia os torrões se esfareL3rem sob as solas dos sapatos, quase que ouvia o tilintar das moedas. Soaram pisadas perto.

Encolhi-me e acocorei-me, receando que alguém tre- passe o muro e viesse reforçar a espionagem do gato.

Estava cheio de atrapalhação e vergonha. Uma ação indígna. Procurava afastar esta idéia pensando em Marína, imaginando-a vestida de preto. Um manto impalpável que eu atravessava com as mãos e com os beiços.

D. Basílio comparava a calúnia a um incêndio.

Que fazia Marina, chateada, bocejando por detrás do leque? Só para se mostrar, só para mostrar a roupa e o orgnon. Amolada, sonolenta. Julião Tavares tam- bem estava amolado e sonolento. D. Basílio descrevia o incêndio, acompanhando com as mãos o movimento das labaredas. A princfpio eram chamas fracas, e d.

Basílio, para segui-las, baixava-se, estava quase encos- tando as mãos no soalho.

As minhas mãos encontraram-se esgaravatando a raiz da mangueira.

– Que miséria! Que miséria! Repetia as palavras como um idiota, olhando as duas brasas imóveis em cima do muro. Mas os dedos continuavam a remexer os torrões. Cavando a terra com as unhas, como um gato! – Que miséría! Que miséria! Umidade pegajosa corría-me pelos braços, molha- va a camisa. Cinco dias, seis dias depois, receberia o dinheiro no Tesouro. Recebería o dinheíro, trocaria uma cédula por pratas e deitaria ali as moedas, com acréscimo de c°nto por cento. Se Moisés tivesse apa- recido. . . Moisés e Pimentel só apareciam quando não eram necessários. Restituiria as moedas com aumento.

Considerei que Vitória não se assemelhava ao tio de Moisés. Vitória não tinha a paixão do lucro: apenas guardava enterrado o dinheiro ganho. E queria que, muito ou pouco, ele estivesse alí em segurança. A idéia de que ela ia surgir, resmungando, arrastando os pés I reumáticos, paralisou-me os dedos. Survreendi-me a dizer e a repetir em voz baixa: – O dinheiro foi feito para circular.

Com certeza Vitória estava dormindo, sonhando com os navios e com o Currupaco. Os olhos do gato ¡ cresciam, cresciam extraordinariamente, iluminavam o I quintal todo.

– Sim ou não. Sim ou nã.o. É estúpido, absoluta- mente estúpido. Afinal o dinheiro foi feito para cir- cular.

Lembrei-me do jogo das crianças. Cara ou cunho? Se desse cara, sim; se desse cunho, não. Mergulharia a mão na terra úmida, tiraria uma moeda, acenderia um fósforo. Se saísse cunho, iria deitar-me, não torna- ria a ver Marina. Tantos tormentos por causa de uma fêmea! Dorrrir, dormir. Senti as pálpebras pesadas; I julgo que, fascinado pelos olhos do gato, deixei a cabe- ça inclinar-se num cochilo. Se saisse cara, acabaria depressa com aquilo e iria ao teatro. Tinha quase a certeza de que, indo ao teatro, tudo se arranjaria: Marina voltaria para mim, Julião Tavares se achata- ria, se desagregaria, como um pouco de azeite em água corrente. Meter a mâo na terra, agarrar um dobrão do império, riscar um fósforo. Afastei a idéia.

Que lembrança! Bastavam as luzes medonhas dos olhos do gato. Acabar depressa, acabar depressa. Não era nenhum selvagerr para adotar recursos infantis. Sim ou não. Um homem livre. Perfeitamente, um homem livre de superstições. Comecei a cavar a terra com desespero, ralando os dedos. Estava decidido. Pronto! Seis dias depois colocaria no buraco o duplo da quan- tia retirada.

– Nenhuma ação indigna. Nenhuma açâo indigna.

Continuei a aprofundar a cova com as unhas, ‘ como um gato. Restituiria o dnheiro com acréscimo ‘ de cento por cento. Um roubo. Roubaria de mim mes- mo para aumentar o tesouro da ladra. Sobressaltei-me.

Se as moedas nâo estivessem ali? Se a velha as tivesse transportado para outro lugar? Revolvi apressado a terra mole. Chegaria a tempo de alcancar o segundo ato? Agora não sentia vergonha: indignava-me por ¡ causa da hesitação que tinha consumido uma eternidade. Um homem livre, sem dúvida. O que me incomo- dava era o gato. Se não fosse o receio de fazer baru- lho, atiraria um punhado de torrões no animal. As tochas desapareceriam, eu me tranqüillzaria.

Até que enfim! Lá estavam elas debaixo dos dedos: dobrões enormes da colônia, peças menores e mais fornidas, da monarquia, rodelas atuais, de dez tostões e de dois mil-réis. Apanhei vinte destas últi- mas. Vinte mil-réis, ou mais, que Vitória não ia enter- rar níqueis. Fechei a cova, fui ao banheiro lavar as mãos e as moedas. Esfreguei-as, enxuguei-as com o lenço. E fugi, atravessei a casa, abri a porta da rua.

Alcançaria o fim do segundo ato ou o princípio do ter- ceiro. Lembrei-me de contar o dinheiro. Desdobrei o lenço, examinei as moedas ainda úmidas. Vinte e seis mil-réis em prata e duas libras esterlinas. Tomei o chapéu, desci a calçada. Como diabo teria Vitória con- seguido agadanhar aquele ouro? Pus-me a andar lentamente, a pressa havia desa- parecido. Atônito, o lenço com as pratas na mão esquerda, as duas libras na direita, avizinhei-me da praça. Tfnha repugnância de meter as moedas no bol- so. Olhei os dedos com atenção, cheirei-os. Fedor de azinhavre, terra nas unhas. Porcaria. Esfreguei as mâos no lenço molhado.

Era necessário livrar-me do dinheiro. Pensei em voltar, afrontar de novo os olhos do gato. Um engra- xate ambulante olhou-me os pós e bateu na caixa.

Onde guardaria aquilo? Já perto do teatro parei, meio aliviado. Baixei-me e escondi num sapato as duas libras esterlinas. As pratas ficaram envolvidas no lenço.

* * * Introduzi perturbaçôes muito sérias numa vida Quando recebi o ordenado, obtive no café cinqüen ta e dois mil-réis em prata. Vitória fazia inconsci entemente ótimo negócio. Juro de cento por cento. f noite juntei a isso as duas libras esterlinas e tarde, quando houve silêncio, pus tudo sob a raiz dF mangueira. Infelizmente coloquei as moedas empilha das, como num cartucho, posição diferente da que tinham as que lá estavam. Suponho que isso provocou a desconfiança de Vitória.

No dia segulnte paguel o salário dela. E via-a, como todos os meses, andar numa agltação, trocando as cédulas, sumlndo-se à noite em viagens ao quintal.

Mas a confusão, que ordinariamente dura três, quatro dias, desapareceu logo e foi substituída por um abati- mento que me causou grande mal-estar. Ouvia-a uma noite intelrinha contar dinheiro. Como já disse, ela pensa em voz alta. O metal tilintava em cima da cama da velha, e os números se acumulavam numa soma infindável, sempre emendada. As vezes a chave ran- gia na fechadura, a porta abria-se, tornava a fechar- se, abrla-se a da sala de jantar, os passos pesados des- ciam os degraus. Meia hora depoiz a mulher voltava, as moedas tiniam novamente em clma da cama. Outro sumiço. Eu adormecia, mas o ferrolho da sala de jan- tar e a fechadura do quarto próxlmo acordavam-me.

O solilóquio e os tinidos tiravam-me o sono.

Levantei-me cedo e encontrei Vltória muito velha e muito bamba. Delxava-se cair a um canto da cozinha, e era difícil arrancar-se dali. Interrompeu as idas ao quintal e abandonou as liões ao Currupaco. Notei que as covas estavam revolvidas e mal cobertas.

– Vitória! Tinha vergonha de chamá-la, temia que ela me pregasse os olhos brancos e cansados, cheios de aflição.

– Vitória! Estava sentada, encolhlda, movendo em siléncio os belços moles. E quando levantava a cabeça, mostra- va no rosto uma suspeita agoniada. Se ela andava com as suas contas em ordem, certamente se espantava de haver achado em um dos buracos vinte e seis mil-réis a mais; se as contas não estavam em regra, talvez se julgasse roubada. E Vitória engolia em seco, olhava o Currupaco ansiosa, numa interrogação desalentada que fazia pena.

– Vã descansar, Vitória. Vocã está doente.

Não podia descansar, e a minha piedade era ind- til. Level o desespero a uma alma que vivia sossegada.

Toda a segurança daquela vlda perdeu-se. A linha tra.

çada do quarto à ralz da mangueira, uma linha curta que os passos trôpegos e vagarosos percorriam na escuridão, fora de repente cortada.

– Vá descansar, Vitória.

Conselho inútil. O céu de Vitória, miudinho, onde grilos e formigas moravam, tinha sido violado.

* * * As visitas de Julião Tavares foram escasseando e a alegria ruidosa de Marina pouco a pouco desapare- ceu. Havia grande silëncio na casa vizinha. Seu Rama- lho estava contente.

– Parece que a tonta criou juízo.

– Acha? perguntei incrédulo.

– É cá uma idéia. Essa gente moça desembesta e faz tolice. É o sangue. Mas um dia acerta a pisada.

D. Adélia andava com a cara comprida e o nariz vermelho, assoando-se e soltando longos suspiros. Uma tarde encontrei Marina engulhando junto ao mamoei- ro. Eram arrancos que a sacudiam toda, a faziam tor- cer-se agarrada ao tronco, o rosto contraído, muito descorado. Não me viu e entrou em casa cuspindo.

– Que terá ela? diss comigo sem atinar com o motivo dos engulhos, da palidez e das cusparadas.

– An! Estava feia. Bem. Estava feia demais, amarela, torcendo-se, enxugando na manga a cara molhada de suor, tentando vomitar, cuspindo à toa na roupa.

– ótimo! Onde andavam os vestdos caros, as tintas, os tre- meliques e os modos insolentes que escandalizavam d. Rosália? Estava ali com os músculos da cara repuxa- dos, fechando os olhos, agitando a cabeça como uma lagartixa.

– Que diabo tem ela? Desgovernada, cuspindo-se.

– ótimo! Está muito bem assim. Que se lixe.

* * r Uma criatura dissipou as fumaças mesquinhas de vingança, uma figura que apareceu numa esquina e logo se sumiu, mas que me ficou profundamente gra- vada na cabeça.

Como certos acontecimentos insignificantes to- mam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o nlesmo.

Comigo é assim. Caminho como um cego, não pode ria dizer porque me desvio para aqui e para ali. F`re- qüentemente não me desvio – e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge- me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; o automóvel pára bruscamente a alguns centimetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violen- to de borracha na p_ edra e um berro do chofer. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me.

– “Perdão! Perdão!” digo às nessoas que me abal roam porque não me afastei dõ caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me con- sidero um sujeito mal-educado. Tenho a imbressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho deva- gar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanharès. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Que- ro recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaço, ler, escrever. A mul- tidão é hostil e terrivel. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. As vezes isso me perturba, tira-me o sono. Se o marido de d. Rosália está presente, é o que já se sábe; se não está, penso nos namorados que se atracam junto a uma vitrina, em posição inc8moda, no operário que tem fome e ameaça o patrão, na crl- anca pue chora perdida, chamando a mamãezinha.

Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só – e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me lnvadiram por assim dizer violentamente. Não fiz nenhum esforço para observar o que se passava na mul- tidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto e a direito nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra amarga, um suspiro – e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama.

A pessoa a que me referi surgiu de supetão entre a Rua lo de Março e a Rua do Comércio. Eu ia dobrar a esquina, ela vinha em sentido contrário – e foi uma colisão feia. A aba do meu chapéu de palha bateu-lhe na testa, provavelmente feriu-a.

– Perdão! Perdão! Dei um passo para trás e distingui uma criatura enorme que também havia recuado com o choque e estava diante de mim, a mã,o cobrindo um dos olhos, onde tinha batido a aba do chapéu. O olho descober- to, os beiços contraídos, as rugãs da cara exprimiam espanto, raiva e dor. Encostei-me ã parede, deixei-a passar. Foi um tempo insignificante, mas deu para vé-la da cabeça aos pés. Um minuto depois tinha desa- parecido, a banda do rosto crispada, o olho disponi- vel voltado para mim com um brilho de ódio. O espa- ço que ocupara na calçada era atravessado por outros corpos que iam e vinham, sem me despertar intersse.

Mas a imagem do primeiro corpo vivia em mim. Era uma mulher gorda, amarela, mal vestida, com uma barriga monstruosa. Não sei como podia andar na rua conduzindo aquela gravidez que estava por dias. A saia, esticada na irente, levantava-se exibindo pernas sujas e inchadas. Os pés, sujos e inchados, cresciam demais nos sapatos cheios de buracos. Com uma das mãos segurava o braço de uma criança magra e páli- da, com a outra escondia o olho e um pedaço de cara.

Eu encostava-me à parede, resmungando atrapalhado: – Perdão! Perdão! Findo o primeiro momento, aquela figura me pro- vocara cócegas na garganta e um desejo idiota de rir.

A barriga disforme resistia ao pano desbotado que tentava contê-la e empinava-se, tinha uma forma agressiva. Estava ali um cidadão que, antes de nascer, ameaçava a gente. A mãe, que só tinha uma banda de rosto, torcia-se por causa da pancada recebida e cravava-me um olhar duro, a metade de um olhar irrita- do e cheio de sofrimento.

¡ – Perdão! Perdão! Subitamente as cócegas desapareceram, a vontade de rir morreu, atentei vexado naquela barriga enorme que me provocava. A roupa esgarçava-se, desbotada, fuxicada e remendada; os pés, metidos à força nos sapatos furados, pareciam bolos. Dera, recuando, um puxão na criança, que se pusera a chorar. Nenhuma palavra, apenas uma interjeição de dor e raiva, grito rouco, perfeitamente selvagem. Com certeza já vinha ; recebendo encontrões, e aquele, demasiado rude, Ihe esgotara a paciência. Andar no meio da multidão, aos emboléus, com semelhante barriga! Só muita neces- sidade.

Era o tipo da mulher de subúrbio mesquinho, que varre a casa lava as panelas e prega os botões com as dores do parto. pare sozinha e se levanta três dias depois, vai tratar da vida. Vida infeliz, vida porca. O I homem para um lado, ela para outro, arrastando a ! filha pequena, a barriga deformada, estazando-se, i agüentando pancadas nos olhos. Ta,lvez estivesse na véspera de ter menino, talvez estivesse no dia, talvez já sentisse as entranhas se contraírem. Rebolar-se-Ia dentro de algumas horas na cama dura, a carne can- sada se rasgaria, os dentes morderiam as cobertas remendadaz. E o macho ausente, ninguém para ir cha- mar a parteira dos pobres. Uma vizinha tomaria con- ‘ ta da casa, faria o fogo, prepararia tisanas, aos repe- ‘ lões, rosnando: – Porcaria. Que gentel ‘ Depois ofereceria consolaçóes: – Tenha paciência. Isso vai logo. Faça força.

A mulher tinha desaparecido, a banda do rosto ; passara cravando-me o olho carregado de ódio. Eu não sentia desejo de rir. Na calçada um ventre extraordi- nário ia inchando, ventre que tomava proporções ian- tásticas. Os transeuntes atravessavam aquela barri- ! ga transparente, às vezes paravam dentro dela, e isto era absurdo, dava-me a idéia de gestações extrava- , gantes.

Agora havfa duas imagens distintas: uma barriga que se alargava pela cidade e a mulher que mostrava apenas um pedaço de cara. Nessa parte vfsfvel, endu- recida pelo sofrimento, pouco a pouco se esboçavam as feições de Marfna. Os cabelos, que a mulher tinha grisalhos, tornavam-se louros. A bochecha era pfnta- da, a metade da boca excessivamente vermelha, o olho único muito azul.

Eu fervfa de raiva. Se tivesse encontrado Julião Tavares naquele dia, um de nós terfa ficado estirado na rua.

* * * Alguns dias depois achava-me no banheiro, nu, fumando, fantasiando maluqueira, o que sempre me acontece. Fico assim duas horas, sentado no cimento.

Tomo uma xfcara de café às seis horas e entro no banheiro. Sajo às oito, depofs das oito. Visto-me à pressa e corro para a repartição. Enquanto estou fumando, nu, as pernas estiradas, dão-se grandes revo- luções na minha vida. Faço um livro, livro notável, um romance. Os jornais gritam, uns me atacam, outros me defendem. O diretor olha-me com raiva, mas sei perfeitamente que aquilo é ciúme e não me incomodo. Vou crescer muito. Quando o homem me repreender por causa da informação errada, compre- enderei que se zanga porque o meu livro é comentado nas cidades grandes. E ouvirei as censuras resignado.

Um sujeito me dirá: – Meus parabéns, seu Silva. O senhor escreveu uma obra excelente. Está aqui a opinião dos crfticos.

– Muito obrigado, doutor.

Abro a torneira, molho os pés. As vezes passo uma semana compondo esse livro que vai ter grande êxfto e acaba traduzfdo em lfnguas distantes. Mas isto me enerva. Ando no mundo da lua. Quando saio de casa.

não vejo os conhecidos. Chego atrasado à repartição.

Escrevo omitindo palavras, e se alguém me fala, acon- tece-me responder verdadeiros contra-sensos. Para limi- tar-me às práticas ordinárias, necessito esforço enor- me, e is.to é doloroso. Nâo consfgo voltar a ser o Lufs da 8üva de todos os dias. Olham-me surpreendidos: naturalinente digo tolices, sinto que tenho um ar apa- lermado. Tento reprimir essas crises de megalomania, luto desesperadamente para afastá-las. Nã,o me dão prazer: excitam-me e abatem-me. Felizmente passam meses sem que isto me apareça.

De ordinário fico no banheiro, sentado, sem pen- sar, ou pensando em muftas coisas diversas uma das outras, com os pés na água, fumando, perfeftamente Lufs da Silva. Uma formiga que surge traz-me quanti- dade enorme de recordações, tudo quanto li em alma- naques sobre os insetos. Agora não há nenhum livro traduzido, nenhuma vafdade. Olho a formiga. Quando ela vai entrar no formiguefro, trago-a para perto de mim, faço no chão um circulo com o dedo molhado, deixo-a numa ilha, sem poder escapulir-se. Observo-a e penso nos costumes dela, que vi nos alinanaques.

O banhefro da casa de seu Ramalho é junto, sepa.

rado do meu por uma parede estreita. Sentado no cimento, brincando com a formfga ou pensando no livro, distingo as pessoas que se banham lá. Seu Ramalho chega tossindo, escarra e bate a porta c;om força. Molha-se com três baldes de água e nunca se esfrega. Bate a porta de novo, pronto. Aquilo dura um minuto. D. Adélia. vem docerente, lava-se docemente e canta baixinho: – “Bendito, louvado seja…” Ma- rina entra com um estouvamento ruidoso. Entrava.

Agora está reservada e silenciosa, mas o ano passado surgia como um pé-de-vento e despia-se às arranca- das, falando alto. Se os botões não safam logo das casas, dava um repelão na roupa e largava uma prar ga: – “Com os diabosl” Lá se iam os botões, lá se rasgava o pano. Notavam-se todas as minudêncfas do banho comprido. (astava dez minutcs escovando os dentes. Pancadas de água no citnento e o chiar da escova, interrompido por palavras soltas, que não tinham sentido. Em seguida mijava. Eu continha a respiração e aguçava o ouvido para aquela mijada lon- ga que me tornava Marina precfosa. Mesmo depois que ela brigou comigo, nunca deixei de esperar aquele momento e dedicar a ele uma atenção concentrada.

Quando Marina se desnudou junto de mim, não experimentei prazer muito grande. Aquilo vefo de supetão, atordoou-me. E a minha amiga opôs uma resistêncfa desarrazoada: cerrava as coxas, curvava-se, cobria os peitos com as mãos, e não havia meio de estar quieta.

Agora arrancava os botões, praguejava, escovava os dentes, mijava. Abria-se a torneira: rumor de água, uns gritinhos, resfolegar de animal novo. A torneira se fechava – e era uma esfregação interminável.

– Para casa, Marina, bradava d. Adélia. Acabe com isso. Você gasta o sabão todo.

Marina dava um muxoxo, e o movfmento das mãos frfccionando a pele macia continuava.

– Baixe o fogo, Marina. Venha para casa.

A espuma entrando nos sovacos e nas virilhas fazia um gluglu que me excitava extraordinariamente. Pare- cia que Marina queria esfolar-se. Imaginava-a em car- ne viva, toda vermelha. Imaginava-a branquinha, co- berta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabe- los alvos, como uma velha Essas duas imagens me davam muito prazer. Queria que aparecesse a Julião Tavares assim encarnada e pingando sangue, ou encarquilhada e decrépita, os pêlos do ventre como um capulho de algodão. A torneira se abria. Lá esta- va Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes, resfolegando, sape- cando frases desconexas.

Nunca tive o desejo de vê-la nesse estado. No alto da parede há um tijolo deslocado que se pode retirar facilmente. Pondo um caixão na beira do tanque, ser- me-ia possível afastar o tfjolo e distinguir o corpo de Marina. A experiência não me tentou. O esforço neces- sário para manter-me em equilíbrio reduzir-me-ia a atenção. E eu não queria vê-la despida sem o consen- timento dela. Contentava-me com aqueles rumores, e percebia-a como se a visse Poderfa daqui palestrar com ela no tempo em que éramos amigos. Terfamos a impressão de que nos banhávamos juntos. Mas a minha amiga ficaria limitada pelas conveniências, armando frases, procurando ser amável. O que me encantava eam aqueles modos de garota estabanada, as palavras soltas à toa, pedaços de cantigas, o gluglu da espuma e a mijada sonora.

Pois tudo isso desapareceu. Fazia algum tempo que os rumores familiares se vinham atenuando, mas ¡ naquele dia tudo se tornou claro, a suspeita que tive j na rua se confirmou. Marina entrou no banheiro e esteve uns minutos em silêncio, despindo-se com lenti- dão. Os movimentos dela eram tão vagarosos que eu os percebia a custo. Era preciso adivinhá-los. Assoou- se e lavou as mãos na torneira.

– Virgem Nossa Senhora! E punha-se a cusp:r. Aquela queixa, mostrava um desengano enorme. Pareceu-me que o mundo se tinha despovoado e Marina estava completamente só. Senti o desejo de bater na parede e chamá-la: – Marina, que foi que aconteceu? Queria que ela me iludisse, jurasse que não havia acontecido nada. Mordi as mãos para nâo gritar.

Afastei-me, como um bêbedo. Mas o ventre disfor- me continuava a perseguir-me. Era-me necessá.rio falar, ir ao café, libertar-me da obsessão, do ódio que me enchia.

Com certeza não precisava de mim. Precisava de Julião Tavares, que tinha levado sumiço. As cuspara- das sucediam-se. Marina assoava-se e lavava os ddos.

Os soluços subiam e desciam. Aquele muco que a água levava, as lágrimas, a saliva abundante, aquela misé- ria, aquele abandono, tudo me atraía.

– Valha-me Nossa Senhora.

Isto me cortava o coração e aumentava o meu ódio a Julião Tavares. Vi-o claramente como o vi na tarde em que o surpreendi à minha janela, derreten- do-se para Marina. Atrapalhado, procurara tapear-me com adulações. Eu resmungava pragas obscenas e anda- va de uma parede a outra, sentia desejo imenso de ¡ fugir, pensava na fazenda, em Camilo Pereira da Sil- va, em Amaro vaqueiro e nas cobras, especialmente i numa que se enrolara no pescoço do welho Trajano.

j – Que vai ser de mim, santo Deus? O escorrego de Marina era evidente. Lembrei-me do meu despeito, de palavras duras jogadas a d. Adé- lia meses antes: – “A senhora pensa que ela endirei- ta? Perca as esperanças. Aquela dá com os burros na Í água.” Estava agora ali, enojada, cuspindo, apalpando a barriga e os peitos intumescidos. E o pranto subia e descia, era às vezes um lamento de criança fatigada, outras vezes os soluços rebentavam, numa rajada de gritos histéricos e bestiais. Olharia realmen- te a barriga e os peitos que se avolumavam? Impos- sfvel imaginar qualquer coisa sobre os movimentos dela. Ciemidos e choro. Nenhum outro som. Desespero estúpido, revolta de bicho logrado. Nem palavras sol- tas, nem cantigas, nem passos no cimento molhado, nem água correndo da torneira. Dias antes esses rumo- res combinados me davam uma imagem quase perfei- ta de Marina. Sabia quando ela se baixava, quando se levantava, quando enxugava os cabelos, quando aca- riciava com espuma o umbigo, os bicos dos peitos, as virilhas. Ciritinhos, respiração diferente da respiração ordinária. Agora estava provavelmente imóvel. Esses gestos não lhe dariam nenhum pra,zer. As cantigas truncadas não lhe dariam nenhum prazer. Talvez nem olhasse a barriga e os peitos, que dofam e se deforma- vam. Todo o corpo era um instrumento de desgosto.

O pé da barriga endurecido, uma coisa apertando-lhe a cabeça como esses aparelhos de suplício que usam no sertão, feitos de pau e corda. Os pauzinhos tor- ciam-se, a corda penetrava na carne, os ossos estala- vam, os miolos queimavam. Eu sentia raiva, aborreci- mento, piedade e nojo. E cuspia, como Marina. Aque- la imobilidade e aquele choro me afligiam. Porque não se molhava, não passava uma hora debaixo da tornei- ra, esfregando-se, ensaboando-se? F’ungava; provavel- mente as lágrimas se misturavam com restos de po-de- arroz e poeira; o suor lustrava-lhe a pele e produzia coceiras nos sovacos; a moleza do sono amorrinhava- Ihe o corpo. Estava suja e feia, precisando banho.

Houve umas pancadas na porta, o choro desapa- receu. O meu banheiro tornou-se vazio. Agucei o ouvi- do, arregacei as narinas: apenas o cheiro desagradá- vel da água que escapava da sarjeta e se estagnava numa poça, a parolagem do Currupaco, que arengava com outros Currupacos invisíveis. Novas pancadas na porta e a voz de d. Adélia: – Marina! Marina abriu a torneira e entrou a lavar-se, can- tando uma cantiga rouca, estrangulada, medonha.

Mas as pancadas e a voz cresciam.

– Marina, abra a porta. Abra a porta, minha filha.

Uma súplica zangada e arquejante que sxigia gran- de esforço. Marina devia estar quase limpa. O suor, O catarro, a poeira, as lágrimas e as tintas rolavam no enxurro, e Marina era outra, vermelha, o espinhaço levantado, como um ano antes, quando havia surgido entre os canteiros, empinando-se, os cabelos pegando fogo. As visões do sono tinham-se dissipado.

– Marina! Marina continuava a cantar, a gritar, em gra,nde espalhafato. Para que serviam as queixas e as expro- brações de d. Adélia? A água corria e se desperdiçava, abafando a voz aguda e trêmula. E Marina enxugava- se cantando com raiva.

– Abra, meu coração.

O ferrolho correu, a porta se abriu de chofre e tornou a fechar-se. Estavam as duas cara a cara, num silêncio de atrapalhação. Sentei-me à beira do tanque, olhei o tijolo deslocado.

– Que latomia é essa? perguntou d. Adélia com autnridade mole. Creio em Deus Padre. Parece que morreu gente.

Provavelmente d. Adélia conhecia mais ou menos o que tinha sucedido. Mas queria acreditar que não houvera infelicidade sem remédio, ou então, caso isto não fosse possível, botar os quartos de banda, lamen- tar-se e atirar a responsabilidade para o destino.

– Estou desconhecendo você. Que foi que houve? Af o pranto de Marina rebentou novamente, enro- lado com palavras ásperas que não entendi. D. Adélia baixou a pancada: – Que horror, filns, da minha alma! Santo Deusl valha-me Nossa Senhora do Amparo.

– Que Deus, que Nossa Senhora, que nada! gri- tou Marina reduzindo a cacos as lamúrias e a religião da mãe. De quem é a culpa? A senhora não sabia? Para que fingir que não sabia? A senhora sabia.

Calaram-se, fungando.

13? – Criar uma filha tantos anos, gemeu d. Adélia, passar a vida sonhando com a felicidade dela, e ue repente uma desgraça desta! – Pois sim, disse Marina com um risinho. Boni- ta criação. Está vendo? Tlnha-se acalmado um pouco e podia falar, já não estava sozinha no mundo, urrando lamentações. Arro metia contra a mãe, arfando, grunhindo, como um bicho mal domesticado que quer morder: – Coitadinha! Não via, não sabia. Tão inoceate! Agora já sabe. Pois é. Escangalhada, com um filho na barriga. Não faça essa carinha de santa não. É o que lhe digo. Estou mentindo? Arrombada, com um mole que no bucho. Não quer ouvir não? Tape os ouvidos.

– Cale a boca, Marina, gaguejou d. Adélia tre mendo. Me respeite, Marina.

Esta ordem bamba pareceu-me ridicula e despro- positada, mas produziu um efeito que me espantou: Marina deitou água na fervura. Virei d. Adélia po todos os lados e não achei que ela fosse digna de res peito. Nem de respeito nem de ódio. Lembrei-me da: referências do marido: – “Com as flores de laran jeira na cabeça, dançava como carrapeta, olhava o; homens sem baixar as pestanas. An! E eles se atra palhavam.” Agora, aquela moleza, aquela confusãc angustiada, o desejo de minguar, achatarse, a pisadt macia do chinelo de corda, os modos lentos e sutis dE quem pega nas coisa,s às escondidas e tem medo dE quebrá-las, de levar carão. Nada disso podia inspira: respeito. Toda ela era uma desgraça arrastada e obli qua, destinada a suportar grosserias e rejelões. Quan do o homem da casa vinha receber o aluguel atrasa do, gritava: – “Boto-lhe os troços na rua.” Seu Rama lho brigava por causa das cuecas sem botões. Coita da! Ela era uma só para tanto trabalho! D. Rosálif escarnecia dela: – “A senhora não se anerta. Ten quem lhe dê tudo.” D. Adélia torcia as mãos, engolit em seco. Julião Tavares dirigia-Ihe graçolas pesada,s aquele cachorro. D. Adélia baixava a cabeça. Apena um gmnhido de reprovação, quase imperceptivel: – “Hum! hum!” – Me respeite, Marina.

Aquela ordem gaguejada nem era ordem: era um pedido assustado em voz de choro. Marina calou-se e entrou a soluçar. Tive o desejo de gritar através da j parede estreita: – A senhora não tem culpa de viver nesse esta- do, d. Adélia. A senhora não nasceu assim. Era cora- da, risonha, dançava como carrapeta, olhava os ho- mens cara a cara, e os homens se desaprumavam. Seu marido impava de orgulho e fazia: – “An!” Depois transformaram a senhora nisso, d. Adélia. Um trapo, uma velha sem-vergonha. Qualquer caixeiro de bodega chega-lhe à porta e berra para dentro: – “Mande pagar a conta, madama. O patrão está às cascas.” E a senhorn sofre com isso, porque tem uns restos de dignidade e quer que a respeitem. Nunca se acaba a dignidade da gente, d. Adélia. A gente é molambo sujo de pus e rola nos monturos com outras porca- rias, mas recorda-se do tempo em que estava na peça, antes de servir. D. Adélia se lembra das flores de laranjeira que lhe enfeitavam a cabeça bonita. Tantas esperanças! Hoje é essa miséria que se vé. Fizeram da senhora uma bola de bilhar, uma coisa que vai para onde a empurram. Entretanto a senhora dançava como carrapeta, e seu Ramalho estava contente.

Marina continuava a chorar. D. Adélia queixava- se baixinho. Eu tinha vontade de chorar também, con- doia-me da sorte das duas mulheres e da minha pró j pria sorte.

* * * E estranho que elas não houvessem aludido uma única vez a Julião Tavares. Nenhuma referéncia àque- le patife. Era o que me espantava quando sai do bar nheiro, já muito tarde. Nesse dia faltei ao ponto.

Marina acabara numa resignação estúpida, entre- gara-se a Deus; d. Adélia não responsabilizara ninguém.

Julião Tavares era como viga que tomba do andaime e racha a cabeça do transeunte. Ou um castigo, um decreto da Providéncia, qualquer coisa deste género.

Ninguém falava nele. Tinha aparecido cheio de lam- banças, usando falsidade em tudo. Entrara-me em casa sem ser chamado e deixara-se ficar, interrompen- l39 do o meu trabalho, afugentando os amigos. Aprovei- tando a minha ausência, seduzira Marina. E azulara.

Mostrava-se rarament°, em visitas rápidas, com certeza receando que a moça cometesse um desatino c lhe atrapalhasse a vida.

Não haveria desatino: as duas mulheres eram fa- talistas e queixavam-se da sort°. Malucas. Revoltava- me o recurso infantil de se xingarem, arrancare:n os cabelos. Era evidente que Julião Tavares devia mor- rer. Não procurei investigar as razões d°sta necessida- de. Ela se impunha, entrava-me na cabeça comu um prego. Um prego me atravessava os miolos. É estúpido, mas eu tinha realmente a impressão de que um objeto agudo me penetrava a cabeça. Dor terrível, uma idéia que inutilizava as outras idéias. Julião Tavares devia morrer.

D. Adélia estava justificada: – “A senhora não nasceu assim. Era forte e bonita. Passou de carrapeta a bola de bilhar. A senhora é um pedaço de pano sujo.” Marina tinha sido julgada e absolvida. Prova- velmente me deixei influenciar por leituras românti- cas. Esqueci que ela um ano antes invejava as mQia de seda e os vestidos de d. Mercedes. Agora tinha tudo: meias, vestidos, um filho no bucho, um filhc que sairia gordo, bochechudo e safado, como o pal como o avô, o Tavares dos Tavares & Cia., uns ratos Marina era instrumento e merecia compaixão D. Adélia era instrumento e merecia compaixão. Ju lião Tavares era também instrumento, mas não tivE pena dele. Senti foi o ódio que sempre me inspirou aóora aumentado.

Necessário que ele morresse. Julião Tavares cor tado em pedaços, como o moleque da hlstória que set Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura com prida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavare: morreria violentamente e sem derramar sangue. En sonhos ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhados a língua fora da boca. Pensei muitas vezes nos bícep do homem acaboclado que ensinava capueira ao ra paz, no alto do Farol. Por uma aberração, ima;inav que aqueles músculos eram meus

Os músculos de mestre Domingos eram do velho Trajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também.

Sinha Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Qui- téria engendrava filhos no chão, debaixo das catin- gueiras, atrás do curral, e despejava-os na esteira da Isidora, em partos difíceis. Crias de cores e idades di- ferentes espalhavam-se por aquela ribeira, várias de Trajano, cabras alatoados que apareciarn de longe em longe e pediam a bênção do velho às escondidas. Os partos de sinha Germana perderam-se: escapou ape- nas Camilo Pereira da Silva, que parafusou no roman- ce e me transmitiu esta inclinação para os impressos.

Quitéria e outras semelhantes povoaram a catinga de mulatos fortes e brabos que pertenciam a Trajano Pe- reira de Aquino Cavalcante e Silva.

São do meu tempo os dois últimos partos de Quitéria. Sinha Terta, parteira da fazenda, batia a taramela do quarto pegado à cozinha. Trajano ronda- va a porta, preocupado com a cria, que não era déle.

Depois da abolição, já sem forças, ainda conservava os modos de patriarca. Estava arrasado, aos sábados subia à vila, entrava na carrasparZa, encostava-se ao ombro de mestre Domingos, babando-se: – “Negro! Tu não respeitas teu senhor não, negro?” Não o al- cancei gerando filhos nas pretas, mas alcancei os ca- bras que lhe pediam a bênção cochichando e vi-o nas pontas dos pés rondando o quarto de Quitéria, interes- sando-se pelos moleques, como se fossem dele.

Quitéria esperneava, espojava-se e soprava na es- teira, as varas da isidora estalavam. Havia silêncio, ru- mores esquisitos, roncos, voz de sinha Terta, que a de Quitéria acompanh2va, arrastada e nasal: Minha santa Margarid.a, Não estou prenha nem paa ida.

Tircv-me ese corpo morto Que ec tenho na barriga.

Depois uma coisa se derramava e sinha Terta dizia: – Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

Meu avô serenava.

As outras pretas da fazenda tinham deixado a co zinha depois de 88, e Trajano era senhor de uma es crava só, que se deitara com ele sob as catingueiras não queria ser livre. Conheci Trajano decadente, exce dendo-se na pinga e já sem prestígio para armar ca broeira e ameaçar a cadeia da vila. Mas os cangacei ros ainda se descobriam quando o avistavam, tipo sararás de olho vermelho, cabolos de músculos de fec ro. Se o velho quisesse extinguir um proprietário vizi nho, chamaria José Baía, o camarada risonho que m vinha contar histórias de onças no copiar, ajustari a empreitada por meias-palavras, dar-lhe-ia uma cédu la. E ficaria tranqüilo, de alpercatas, camisa e cerou las de algodâo cru, tomando tabaco, escanchado n rede de varandas coloridas que arrastavam.

Lembrava-me disso e apalpava com desgosto 0 meus muques reduzidos. Que miséria! Escrevendo con: tantemente, o espinhaço doído, as ventas em cima d papel, lá se foram toda a força e todo o ânimo. D que me servi;a aquela verbiagem? – “Escreva assin seu Luís.” Seu Luís obedecia. – “Escreva assado, se Luís.” Seu Luís arrumava no papel as idéias e os ir teresses dos outros. Que miséria! Pensava no homem acaboclado que encontrei n alto do Farol, membrudo como os sujeitos que, n presença de Trajano, varriam o pátio da fazenda cor chapéus de couro.

As cascavéis torciam-se por ali. Uma delas enro; cou-se no pescoço de Trajano, que dormia no banc do alpendre. Trajano acordou, mas não acordou u teiramente, porque estava caduco. Levantou-se, tropi çando, gritando, e sapateou desengonçado como m doente de coréia. Uma alpercata saltou-lhe do pé.

ele, arrepiado, metia os dedos entre os anéis do coh vivo : – Tira, tira, tira.

Quem ia tirar a cascavel que chocalhava no pe coço do velho? Eu era miúdo e olhava aquilo com e panto. Parecia-me que a cobra era um enfeite, um coisa que Trajano enrolara no pescoço para ficar dif rente dos outros velhos. Quem ia tocar nela? – Tira, tira, tira.

Quitéria puxava o rosário de contas brancas e azuis: – “Misericórdia!” Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva dançava no chão de terra batida.

Afinal a cobra se soltou, Camilo Pereira da Silva ma- tou-a com o macete de capar boi e Quitéria levou-a pendurada num pau, a cabeça encostada ao rabo, ba- lançando como uma corda, e foi jogá-la para lá dos juazeiros.

Agora Quitéria estava morta. E os filhos dela e os das outras pretas que, depois de 88, foram viver em ranchos de palha, nas ribanceiras do Ipanema, começavam a desacatar os descendentes dos antigos senhores. Muitos andavam nos grupos de salteadores que assolam o nordeste, queimando propriedades, vio- lando moças brancas, enforcando os homens ricos nos ramos das árvores.

* * * Seu Ivo apareceu aqui em casa faminto, meio nu e meio’ bêbedo, como sempre. Enquanto Vitória lhe preparava a comida, fez-mé um presente: – Está aqui, seu Luisinho, que eu lhe trouxe.

E pôs em cima da mesa uma peça de corda.

– Para que me serve isso, seu Ivo? Onde fol que você furtou isso? – Não furtei não, seu Luisinho, achei na rua.

Guarde para o senhor. É bonitinha.

E entregou-se ao prato que Vitória lhe ofereceu.

– Muito obrigadó, seu Ivo.

Aproximei-me da mesa, desenrolei a peça de corda.

Mas, com um estremecimento, larguei-a e meti as mãos nos bolsos, indignado com o caboclo: – Retire isso daí, seu Ivo. Que diabo de lem- brança idiota foi essa? O homem espantou-se: – Porquê? Guarde, seu Luisinho. E dada de bom coração. Serve para armar rede.

Pensei na rede onde Marina descansava à noite e que me roubava o sono, ringindo nos armadores.

– Não quero. Tire isso depressa,.

Evítava dizer o nome da coisa que ali estava em cima da mesa, junto ao prato de seu Ivo. Parecia-me que, se pronunciasse o nome, uma parte das minhas preocupações se revelaria. Enquanto estivera dobrada, não tinha semelhança com o objeto que me perseguia, Era um rolo pequeno, inofensivo. Logo que se desen roscara, dera-me um choque violento, fizera-me re cuar tremendo. Antes de refletir, tive a impressão df que aquilo me ia amarrar ou morder.

Lembrei-me de Chico Cobra, um curandeiro quf na vila andava, sempre com um cabaço cheio de jara racas. Quando Chico Cobra matou um homem na fei ra, entrou na mata, fez um rancho de palha e cercou se de surucucus e outros viventes semelhantes. Toda; as diligências da polícia para prendê-lo falharam Nunca ninguém chegou ao rancho do criminoso: distância de quinhentas braças o que se via eram bar rocas com enormes rodilhas de serpentes.

Desejei insultar seu Ivo. Pareceu-me que ele tinhs vindo aqui mangar de mim. Não era justo. Empurrav a porta, entrava sem vergonha, nunca lhe faltou a bóia Zombar de mim! Nã.o me contive: – Caboclo safado, mal-agradecido.

Seu Ivo olhou-me com assombro: – Oh! xente! Acanhei-me. Dizendo tolices.

– Está bem. Não discutamos.

Entrei a caminhar de uma parede a outra, ma: como numa das viagens batia com a biqueira do sapa to no cano de água, desisti do exercfcio e pus-me F andar em torno da mesa, descrevendo círculos qm pouco a pouco se reduziam. Afinal ia quase tocandc as cadeiras, e isto me dava a impressão de que set Ivo e a mesa estavam sendo amarrados. Sentei-me. C horror que a corda me inspirava foi diminuindo, ma o desconchavo nos meus modos e nas minhas idéia continuou. Pareceu-me que uma das idéias estava al em cima da mesa, simulando laçadas e espirais. Istc era tão burlesco, tão extravagante, que me veio di repente um acesso besta de hilaridade que espantoi seu Ivo. O conjunto daquelas voltas emaranhada; formava um molho no centro da mesa, e tinha feição vagamente arredondada. Com um pouco de esforço pa dia admitir-se que fosse redondo, mafs ou menos redon do, comparável a uma cabeça chata feita de curva, caprichosas que se torciam como tripas. Pensei em cir cunvoluções cerebra.is, levantei-me e fui beber un gole de aguardente. Voltei a sentar-me. Continuava a rir, mas sem vontade de rir. Seu Ivo arregalou o: olhos, e isto me paralisou o riso idiota. Sentindo-mE fiscalizado, reprimi aquela manifestação ruidosa. Acal mei-me, aparentemente. Nem riso nervoso nem raiva despropositada. Toda a minha atenção se concentrava no molho confuso de anéis que ali estava em cims da mesa.

– Coma descansado.

Seu Ivo comeu tudo, Vitórfa retirou o prato. Beb: mais um pouco de aguardente e fiquei arriado na ca. deira, as mâos esquecidas na toalha coberta de man chas, olhando a corda.

Recordei-me da morte de Fabricio, amigo e com padre de meu paf. Nunca tinha vfsto um homem as sassinado. Assoando-se e gemendo, sentada na prens de farinha que apodrecfa no quintal, Quitéria falavz de Fabrício como de uma criatura extraordinária, nar rava façanhas maravilhosas dele. Rosenda escutava-F corn interjeições, eu pensava em José Baía. Mais tardE fugi de casa e cheguei-me à cadeia pública, onde o cor po de Fabrício estava exposto, o tronco nu, os olho; vidrados. Esse cangaceiro tornou-se para mim excessf vamente grande, e nenhum dos defuntos que encontre: depois, na vida e em livros, foi como ele. Comparei s Fabrfcio mortos ilustres, e Fabrfcio resistfu à compa ração, porque foi o primeiro homem assassinado quE vi, tevé os elogios de Quitéria e era compadre de meu pai. No jornal, consertando a sintaxe na revisão ou escrevendo notas de polfcia, quantos cadáveres passa ram diante de mim! Nenhum deixou mossa. Fabrícic estava nu da cintura para cima, cosido de facadas, ers horrfvel. Passei várfas noites sem dormïr direito, acor dando agoniado e aos gritos. O segundo homem assas sinado que vf impressionou-me, mas não me tirou c sono. Depois me habituei.

i.

Seu Ivo pediu uma pnga. Enchi um cálice para ele, outro para mim – A sua saúde, seu Luisinho.

Foi acocorar-se e cochilar encostado à parede, junto ao cano de água. Sentei-me outra vez à mesa, o braço sobre a toalha, a mão perto da corda. Estava meio entorpecido, as pálpebras pesadas. Os armadores na casa vizinha rangiam. Seu Ivo tinha dito: – “Giuar- de, seu Luisinho. Dá para armar rede.” Avancei os de- dos em direção aos anéis, mas quando ia tocá-los, um se desfez e bateu-me na mão como coisa viva.

Marina, enjoada e abatida, embalava-se para es- quecer a desgraça. O barulho dos armadores lembrou- me o tempo em que ela me endoidecfa com risadas e cantigas. A compaixão que eu havia sentido alguns dias antes esmoreceu. Encolerizei-me e disse-lhe men- talmente toda a sorte de nomes feios. Levantei-me, bati na mesa, e as voltas da corda tremeram. Olhei com desgosto os olhos sem brilho de seu Ivo.

Defuntos não me comovem. Na vila apareciam muitas pessoas acabadas a tiro e a faca. Habituei-me a vê-las de perto. Por fim não me produziam nenhum abalo. Quando a rede apontava na extremidade da rua, os punhos amarrados num pau que dois caboclos agüentavam nos ombros, eu saltava para a calçada, curioso de ver a cor do pano que vinha em cima. Se era branco, o cortejo passava perto de mim, entrava no beco, dobrava o Cavalo-Morto e seguia para o cemi- tério. Isto não me despertava interesse. As redes que transportavam individuos mortos em desgraça eram cobertas de vermelho e iam pelo outro lado da praça, dirigiam-se à cadeia. Escapulia-me. Nenhum constran- gimento. Tornei-me insensfvel. Cinqüenta estocadas no peito e na barriga! Muito bem.

Agora estava ali com medo de pegar numa corda.

– Você já matou gente, seu Ivo? O caboclo abriu os olhos, espantado: – Eu? Deus me livre. Dou pra isso não, seu Lui- s;nho. Nunca matei um pinto.

– Mas tem tido vontade, nã,o? – Deixe de histórias, seu Luisinho. Isso é con- versa? 14? Pus-me a rir de novo, esfregando as mãos. De re- pente o riso se imobilizou, e fiquei em pé diante de seu Ivo, com as mãos postas, engasgado.

As vezes, horas depois de entrar na vila a rede co- berta de vermelho, uma tropa de cachimbos invadia a praça, conduzindo o criminoso amarrado. Os cachim- bos falavam alto e mostravam, cheios de suficiência, facões e lazarinas; o matador tinha os braços presos, da barriga para cima estava todo embirado de cordas A gente se alvoroçava. Os tabuleiros de gamão ficavam abandonados nos tamboretes. Seu Acrisio, quase cego batia com o cajado no chão e pedia explicações à.

paredes. O doutor juiz de direito, que mentia demais contava casos do Amazonas. Como o Amazonas ers longe e ninguém ia apurar a veracidade das narrações o doutor juiz de direito mentia à vontade. Seu Batista safa de casa vestido em robde-chambre, André Laerte com os bigodes tesos como um gato, andava à pressa sem rumor, como um gato. Padre Inácio sacudia c guarda-chuva e gritava: – “Canalhat Raça de cachor ro com porco!” Cabo José da Luz, banzeiro, arrastavf a importância, marchava para a cadeia, bambo, os pas sos lerdos, o cinturão frouxo, cantando baixinho: – “Assentei praça. Na policia eu vivo . . . ” E o criminoso pisando com força, atravessava o quadro, a cabeça er guida, a testa cortada de rugas, o olhar feroz, trom budo, impando de orgulho. Algumas horas depois esta ria acocorado a um canto da prisão, sem vontade como seu Ivo. Mas ali, diante dos curiosos que se em purravam, representava o papel de bicho: franzia a ventas, mordia os beiços, dava puxões na corda e gru nhia. Olhavam para ele com admiração, e os cachim bos se envaideciam por havê-lo pegado vivo. Rosenda pasmava.

– Estamos costumados a amansar brabo, minh negra.

O carcereiro balançava as chaves, e o delegad dava encontrões no povo, carrancudo, quase tão impor tante como o preso. As três mulheres velhas que pa reciam formigas chegavam à janela, em seguida e: condiam-se precipitadamente. Seu Filipe Benigno al; sava a barba e gastava palavras diffceis e comprida: O povaréu se apertava na calçada da cadeia. Os ca- chimbos iam matar o bicho no balcão de Teotoninho Sabiá. E o criminoso, entregue à polfcfa, furava a mul- tidão, entrava no corpo da guarda, preto de poeira e azeitado de suor. Na escur:dão do cárcere, depois que a chave tilintava na fechadura da grade, o juiz da ca- deia recebia os duzentos réis do torno e desfazia os laços que deslocavam os ossos, entravam na carne do homem. Um ladrão de cavalos seria maltratado, agüen- taria facâo, de joelhos, nu da barriga para cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-lhe no peito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os presos se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto.

Mas isto era com os ladrões, os vagabundos, os auto- res de delitos miúdos. Um criminoso de morte era dife- rente, merecia consideração. Quando ele chegava à cal- çada, toda a gente se espremia, abrindo caminho, e os olhos se arregalavam num pasmo quase religioso, mis- tura de aprovação e medo. Na presença da personagem havia silêncio. Depois vinham as conversas cochicha- das em que se exagerava o feito. As ações de outros criminosos empalideciam. Aquele, sixn, era turuna. Con- tavam-se as facadas ou os tiros. Nas tarimbas sujas os soldados bocejavam, fartos de sangue. O sujeito repre- sentava o seu papel de brabo, a cara enferrujada, es- curo de poeira e molhado de suor. Eu procurava des- cobrir nele semelhança com meu amigo José Bafa.

Vitória retirou o prato e limpou a toalha. Com uma sacudidela que deu, a corda se espalhou e ficou ocupando quase metade da mesa. Vitória foi sentar-se à porta da cozinha, desdobrou o jornal. Uma das vol- tas da corda parecia um desses laços que as crianças fazem com um cordão nas calçadas. A gente põe o dedo no meio e aposta, o parceiro puxa as extremida- des do cordâo. Quando o dedo fica preso, a gente ga- nha. Se eu pusesse o dedo naquele cfrculo que ali esta- va junto a uma nódoa de café, o dedo ficaria preso? Caso ficasse, que iria acontecer? Pensei em Amaro vaqueiro e em seu Evaristc Trepado no mourão do curral, Amaro passava um hora abolando.

– Vou laçar a novilha careta.

E a corda de couro girava. Na extremidade o laç ia acima e vinha abaixo. Na escola de seu Antôni Justino, decorando a geografia, eu comparava Amar vaqueiro ao sol. Amaro vaqueiro era uma espécie d sol trepado num mourão. O laço que girava em redo dele era a terra. De repente essa terra esquisita caí sobre a novilha careta e prendia-lhe os chifres. Quan do havia poucas reses, o exercício era brincadeira. Ma em tempo de pega o curral se enchia, os cornos s chocavam, e mal se distinguia a cabeça do animal vi sado. O laço rodava no ar uma eternidade, descia, pas sava perto do alvo, tornava a subir. Amaro aboiava, os animais agitavam-se, batendo as pontas. Sentad no último pau da porteira, eu tinha o coração ao baques e torcia desesperadamente. As minhas mão umedeciam-se de suor. Porque era que Amaro não aca bava logo aquilo? Subitamente o aboio estacava, o laç caía, o zunido da corda continuava um instante m ouvido da gente. O animal estava preso.

Seu Evaristo sofria necessidades. Tinha vivido en boas condições, fora eleitor, jurado, dera dinheiro par, festas de igreja. E as pessoas que o encontravam na ruas da vila tocavam no chapéu.

Homem de poucas palavras, trabalhador, o sujeit mais sério do mundo. Dedicava-se a vários ofícios, en agricultor, redigia procurações e petiçôes. Beirando 0 setenta, começou a vender macacos. Os olhos cansa ram, a memória emperrou, os braços descarnados nâ tiveram força para ma.nejar a enxada, a garlopa, i martelo de ferreiro e a tesoura de cortar metais. Sei Evaristo fabricava muitas coisas, mas não se ajeitav em nenhuma profissão. E quando a velhice chegou sentiu-se fraco, uma tremura nos dedos, que segura vam mal o cajado. Andando, formava dois arcos: un por detrás, nas pernas, outro adiante, no peito; sen tado, firmava as mãos na extremidade do cacete, sobre as mãos, duras e peludas, de veias enormes, as sentava o queixo, donde pendiam pelancas escuras qm balançavam como teias de pucumã. Foi baixando, bai- xando, e na casinha que se escondia no üm da Rua C da Cruz o fogo se apagou. Nos meses compridos daque- les invernos de serra seu Evaristo e a mulher tremiam e começavam a tresvariar, porque a fome era grande.

A noite andavam tropeçando nos cacarecos, pois na casa não havia candeia, olhavam a rua triste sob a F : chuvinha impertinente que embaçava os vidros dos ` lampiões esmorecidos. Apertavam-se para enganar o frio, e os moleques que passavam na calçada metiam os olhos pelos buracos das janelas e gritavam: – Velhos imoraisl Abraçados, fazendo safadeza.

A caridade chegou: seu Filipe Benigno, André Laerte, o velho Acrfsio, as três mulheres que pareciam formigas, fizeram uma subscrição – e seu Evaristo co- meçou a receber dez mil-réis por semana. Passou-se o inverno. Plantou uma roça no quintal. E quando o feijão verde apareceu e o milho deu bonecas, masti- gou uns agradecimentos e dispensou a caridade.

– Pobre orgulhoso, disse uma das mulheres que pareciam formigas.

Rosenda e cabo José da Luz concordaram.

A safra ácabou, o velho sentiu fome, olhou os qua- tro cantos e não encontrou amparo. Procurou traba- lho, mas tinha setenta anos, e ninguém confiava nele.

Um dia, com a mão na barriga, entrou na padaria de seu José Inácio.

– Uma esmola pelo amor de Deus, cochichou.

8eu José Inácio estava aporrinhado.

– Uma esmola pelo amor de D2us, gemeu seu Evaristo quase sem voz.

– Ora…

Seu José Inácio gritou uma praga que ofendeu os ouvidos de seu Evaristo.

– Estou pedindo uma esmola pelo amor de Deus, rosnou o velho espantado, sem sa.ber que aquele des- propósito era com el.e.

Tlnha auxiliado muito mendigo, nunca fora gros- reiro. Chegava num momento em que o dono da pada- ria estava zangado.

– Estou pedindo uma esmola pelo amor de Deus, repetiu baixinho.

Seu José Inácio apontou um cesto de pães dormi- dos e gritou brutalmente: – Tira ali.

Mais tarde arrependeu-se, como disse a Teotoni- nho Sabiá, lembrou-se de que o velho nunca havia im- portunado ninguém. Ainda chegou à porta para cha- má-lo e pedir desculpa, mas a rua estava deserta.

Nesse dia seu Evaristo entrou em casa arrastan- do-se como um aleijado e deu um pão seco ã, compa- nheira. Ficou uns minutos vendo-a meter as gengivas na crosta dura, em seguida avizinhou-se da parede, onde havia uma corda pendurada a um torno.

– Hum! hum! exclamou a mulher. Pior que mas- tigar chifre.

– Com certeza, murmurou seu Evaristo.

A mulher comeu o pão e foi deitar-se na esteira.

Viu o marido passar a mão pela parede, mas como estava com a vista curta, não percebeu o que ele fazia.

– Só vi que passava a mão pela parede, confessou no dia seguinte a André Laerte. Virei-me na esteira e peguei no sono.

Horas depois encontraram seu Evaristo enforcado num galho de carrapateira. Fui vê-lo, mas não tive cora- gem de me aproximar: fiquei de longe, olhando o corpo que balançava, os pés tocando o chão, como se estives- sem preparando um salto. Eu estranhava que uma pes- soa pudesse agüentar-se numa coisa tão frágil como um galho de carrapateira. Rosenda me diss que no momento em que um cristão bota o laço no pescoço o diabo monta nos ombros dele. Seu Evaristo balançava.

As vezes apareciam as costas curvadas. Outras vezes surgiam a barba branca, a língua fora da boca, os olhos abotoados, a careca, e era como se ele fosse dar um salto. Esta idéia absurda de um homem saltar de- pois de morto bulia comigo. Aquele defunto levantado, com os pés no châo, ameaçando-me com um salto que poderia trazé-lo para junto de mim, apavorava-me.

A corda que o sustinha, apenas visivel de lvnge, fininha como aquela que ali estava em cima da mesa, torcia-se e destorcia-se. A mulher de seu Evaristo, caduca, olha- va-o. sem lágrimas.

Vitória, na cozinha, lia o jornal. Os armadores se tinham calado. Seu Ivo dormia encostado à parede, com a boca aberta. Agarrei a corda, fiz dela um bolo, meti-a no bolso. O coraça’.o batia-me desesperadamente.

– Vá para o diabo, seu Ivo, berrei.

Seu Ivo roncava. Sacudi-o. Levantou-se e ficou in- clinado, como se estivesse armando um salto.

– Vá para o diabo. Aqui amolando! Eu tenho nada com você? Suma-se.

Seu Ivo baixou a cabeça: – Está direito. Até logo, seu Luisinho. Deus lhe acrescente.

* * * Julião Tavares entrava no café. Ia sentar-me longe dele, voltava-lhe as costas, mas examinava o espelho coberto de letras brancas. Afetava desprezo, aparente- mente ignorava a existência do homem. Via, porém, a roupa molhada nos sovacos, os olhos que saltavam das órbitas, o cabelo escorrido, a papada balofa, as bochechas enormes, tudo riscado de traços brancos que anunciavam bebidas. Se me falavam, eu respondia com uma interjeição qualquer, voz selvagem, gutural, ouvida antigamente aos almocreves e aos tangerinos e que não perdi, apesar dos anos de cidade. Enquanto lançava dis- traido esses gritos estranhos e ásperos, lia os anúncios que havia no espelho. Juntava letras das palavras mais compridas e formava nomes novos.

Esse exercicio tornou-se em mim um hábito de que não me posso libertar. Conto pelos dedos as combina- ções que vão surgindo, em séries de vinte, correspon- dentes às duas mãos fechadas e abertas. Quando há muitas vogais, consigo arranjar sessenta, oitenta, às vezes cem palavras ou mais. Faço assim com os letrei- ros das casas de comércio, com os cartazes de cinema, com os títulos dos jornais e dos livros. Esse passatempo idiota dá-me uma espécie de anestesia: esqueço as hu- milhações e as dívidas, deixo de pensar. Pelo menos não penso numa coisa só. Mas vejo perfeitamente o que se passa em roda. Pouco a pouco chegam sinais de impa ciência: os dedos apertam-se, as unhas ferem a palma e zango-me por estar perdendo tempo com semelhant estupidez, mas ordinariamente não interrompo a con tagem.

Ali sentado a um canto, voltado para a parede, sen tia-me distante do mundo. Só via as letras brancas qm se estampavam na cara vermelha de Julião Tavares Lembrava-me dos desenhos medonhos que os selvagen, fazem no rosto e do costume que os cangaceiros tên de marcar os inimigos com ferro quente. Dos letreiro; brancos safam às vezes nomes que se aplicavam ben a Julião Tavares. Se eu fosse um cangaceiro sertanejo i encontrasse Julião Tavares numa estrada, meter-me-u com ele na capueira e imprimir-lhe-ia no focinho, con ferro, algumas das letras brancas que lhe apareciam n: pele e na roupa. Segurava a xícara desatento, derrama va açúcar no pires e no mármore, bebia o café maqui nalmente. Os traços de alvaiade zebravam as pessoa que transitavam na rua. Certamente Marina ia surgi; entre elas.

Depois que Julião Tavares tinha deixado de freqü°n tar a casa vizinha, qualquer ausência de Marina me tra zia a suspeita de que os dois iam encontrar-se. Tomav o chapéu e acompanhava-a, escondendo-me, encostan do-me às paredes, receando que a espionagem fosse des coberta. Evidentemente as relações dos dois estavan reatadas. O homem gordo ia virar uma esquina e da o braço à amante, levá-la a uma ca,sa de recurso. A evi dência esmorecia. Marina andava como as outras mu lheres, olhava as vitrinas, entrava nas lojas. Ia esperá-l; no primeiro poste cintado de branco. Minutos depoi; a perseguição recorpeçava, até que ela se recolhia. Sen tia-me a um tempo aliviado e logrado. Era claro qm eles iam juntar-se em qualquer parte. Acusava-me d não ter prestado bastante atenção à rua. Com certeza tinha-me escapado uma porta meio aberta, uma escada sombria onde aquele sem-vergonha atocaiava. O mei desejo era voltar, examinar os arredores, as esquinas as árvores da Rua Augusta. Estava certo de que, en quanto eu vigiava Marina, Julião Tavares me vigiav de longe, parando, escondendo-se.

Ali no café, com o jornal enrolado sobre o már more, a mão gorda e curta distribuindo acenos, o sor riso nos beiços grossos, derretia-se para as moças que passavam na calçada. Por detrás das linhas brancas do espelho, a cara redonda se afogueava, as bochechas moles inchavam, o olho azulado queria escapulir-se da órbita. e meter-se no seio das mulheres.

Eu procurava um cigarro, sentia a aspereza da corda. Ficara no bolso desde aquela tarde, misturan- do-se aos cigarros soltos e machucados.

As letras dos anúncios desapareciam, e toda a mf- nha atenção se concentrava em Julião Tavares. Lem- brava-me do primeiro encontro que tivemos, no Insti- tuto. Ele catalogava frases monstruosas a respeito da bandeira nacional. A safda dava-me um empurrão, segu- rava-me um braço e escorregava na intimidade. Meia hora depois expunha-me projetos de reforma.

– O pafs precisa isto, precisa aquilo.

– Ah! Eu conheci logo que o senhor era patriota.

Lá estava amolando outro, com o cotovelo no már- more, a voz oleosa, o olho derramado sobre as mulheres.

Agitava-me, rangia os dentes, grunhia uma obscenidade.

Não ligava importância àquelas bestas, fossem para a casa do diabo. Tinha dormido juntos, ela estava pejada.

Muito bem. Era encher-se, parir, enjeitar o filho, mar- char para a Rua da Lama, acabar-se no esquentamento.

Um filho na barriga, um filho daquele sem-vergonha.

Tão bom era um como 0 outro.

E apertava a corda com força. Quando retirava a mão do bolso, via nos dedos os sinais que ela dei- xava, marcas roxas na pele suada. O meu desejo era dar um salto, passar uma daquelas voltas no pescoço do homem.

O doutor chefe de policia estava ali tomando café, de cabeça baixa, preocupado com alguma encrenca.

Que é que me podia acontecer? Ir para a cadeia, ser processado e condenado, perder o emprego, cumprir sentença. A vida na prisão não seria pior que a que eu tinha. Realmente as portas ali são pretas e sujas, as grades de ferro são pretas e sujas, os móveis sâo pretos e sujos. É o que me amedronta. Aquele bolor, aquele cheiro e aquela cor horrfveis, aquela sombra que transforma as pessoas em sombras, os movimentos vagaro- sos de almas do outro mundo, apavoravam-me. Não posso encostar-me às grades pretas e nojentas. Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as cane- tas antes de escrever, tenho horror às apresentações, aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mão que não sei por onde andou, a mão que meteu os dedos no nariz ou mexeu nas coxas de qualquer Marina. Pre- ciso muita água e muito sabão. Viver por detrás da- quelas grades, pisar no chão úmido, coberto de escarros, sangue, pus e lama, é terrível. Mas a vida que levo talvez seja pior. Não tinha medo da cadeia. Se me dessem água para lavar as mãos, acomodar-me-ia lá.

Podia o resto do corpo ficar sujo, podiam os piolhos tomar conta da cabeça e as roupas esfrangalhadas cobrir mal a carne friorenta. Se me dessem água para lavar as mãos, estaria tudo muito bem. Dar-me-iam água para lavar as mãos? A cara do doutor chefe de polícia era triste. Provavelmente ele vivia cheio de abor- recimentos, tinha uma necessidade qualquer e compreen- deria a minha necessidade de lavar as mãos. Decidida- mente a polícia não me inspirava receio.

Medo de Julião Tavares? Não havia motivo. Julião Tavares procuraria levantar-se do tamborete, faria um barulho inútil, bateria com os braços na mesa e que- braria a xfcara. As bochechas vermelhas se tornariam roxas, os olhos se rodeariam de olheiras roxas, os bel- ços roxos e intumescidos se descerrariam mostrando os dentes de rato e a lingua escura e grossa, os movimen- tos das mãos se espaçariam, afinal seriam apenas sacudidelas, contrações. A imobilidade dos dedos sobre o mármore, os pés das unhas roxos. Um rebuliço, me- sas cafdas, o guarda-civil do relógio oficial apitar.do, gente correndo, aos gritos.

Medo da opinião pública? Não existe opinião pú- blica. O leitor de jornais admite uma chusma de opi- nões desencontradas, assevera isto, assevera aquilo atrapalha-se e nâo sabe para que banda vai. Ouvindo-o, penso no tempo em que os homens não liam jornais.

Penso em Filipe Benigno, que tinha um certo número de idéias bastante seguras, no velho Trajano, que tinha idéias muito reduzidas, em mestre Domingos, que era privado de idéias e vivia feliz. E lamento esta balbúr- dia, esta torre de Babel em que se atarantam os freqüen- tadores do café. Quero bradar: – Eles escrevem assim porque receberam ordem para escrever assim. Depois escreverão de outra forma.

É tapeação, é 5afadeza.

Aborreço a lida enfadonha, que sd serve para gerar confusão no espfrito de seu Ramalho. Pimentel é um malandro. Porque será que Pimentel não escreve sem- pre as mesmas coisas? Repetindo-as, ele próprio, que não acredita em nada, acabaria acreditando nos seus artigos.

Não há opinião pública: há pedaços de opinião, contraditórios. Uns deles estariam do meu lado se eu matasse Julião Tavares, outros estariam contra mim.

No júri metade dos juízes de fato lançaria na urna a bola branca, metade lançaria a bola preta. Qualquer ato que eu praticasse agitaria esses retalhos de opi- nião. Inútil esperar unanimidade. Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos.

Eu não podia temer a opinião pública. E talvez temesse. Com certeza temia tudo isso. Era um medo antigo, medo que estava no sangue e me esfriava os dedos trêmulos e suados. A corda áspera ia-se amacian- do por causa do suor das minhas mãos. E as mãos tremiam. O chicote do feitor num avô negro, há du- zentos anos, a emboscada dos brancos a outro av8, caboclo, em tempo mais remoto . . . Estudava-me ao es- pelho, via, por entre as linhas dos anúncios, os beiços franzidos, os dentes acavalados, os olhos sem brilho, a testa enrugada. Procurava os vestígios das duas raças infelizes. Foram elas que me tornaram a vida amarga e me fizeram rolar por este mundo, faminto, esmolam- bado e cheio de sonhos. Nã,o preciso de automóveis nem de rádios, viveria bem numa casa de palha, dormiria bem numa cama de varas, num couro de boi ou numa rede de cordas, como Quitéria, como o velho Trajano e Camilo Pereira da Silva. Para que me habituei a ler papel impresso, a ouvir o rumor de linotipos? Deseja- ria calçar alpercatas, descansar numa rede armada no copiar, não ler nada ou ler inocentemente a história dos doze pares de França.

Onde estariam os descendentes de Amaro vatlueiro? Talvez o guarda-civil do relógio oficial fosse um deles.

Se eu mata-sse Julião Tavares, o guarda-civil não levan- taria o cassetete: apitaria. Chegariam outros, que me ameaçariam de longe. O guarda-civil não tem coragem.

Se tivesse, não olharia os automóveis horas e horas, junto ao relógio oficial: ocupar-se-ia devastando fazen- das, incendiando casas, deflorando moças brancas, en- torcando proprietários nos galhos dos juazeiros. Os ser tanejos fortes revoltaram-se e andam matando, rouban- do, violando, quase selvagens, sujos, os cabelos compri- dos, enfeitados de penduricalhos, os chapéus de couro cobertos de medalhas, as cartucheiras pesadas, enormes.

Nenhum respeito à autoridade. Se um oficial de polícia viajar pela estrada, morre na tocaia. E se não morrer logo, é pior: levam-no para a capueira e torturam-no.

Os campos estão desertos, o gado enegreceu com o carrapato, os homens valentes pegaram o rifle, amar- raram a cartucheira na cintura. O guarda-civil do re- lógio oficial veio para a cidade e arranjou emprego.

E um sujeito magro como eu, civilizado como eu. Se houver barulho na rua, ele apita. Se houver greve nas fábricas e lhe mandarem atirar contra os grevistas, atira tremendo. As greves acabam. E ele voltará para a chateação do ponto, magro, triste. E pouco mais ou menos como eu.

– Escreva um artigo a respeito de salários, seu Luís.

Bocejo e sapeco uma literatura ordinária, cons- trangido. Sei que estou praticando safadeza. Penso no que acontecerá depois. Quando houver uma reviravol- ta, utilizarão as minhas habilidades de escrevedor? E o guarda-civil? Continuará junto ao relógio, olhando os automóveis, apitando em caso de necessidade? E Ju- lião Tavares, patriota e versejador? Para que serviria Julião Tavares? Agora era uma figura importante de- mais. Tavares & Cia., negociantes de secos e molhados na Rua do Comércio, eram uns ratos. A personagem oficial que visitava d. Mercedes, alta noite, devia muito a Tavares & Cia. E Julião Tavares era importante. Fazfa receio matar um sujeito importante como Julião Ta- vares.

* * * Nas horas de serviço conseguia distrair-me. Os livros enormes de lombos de couro e folhas rotas, os offcios, a ca,mpainha do telefone e o tique-taque das máquinas de escrever me arrastam para longe da terra.

O que lá fora é bom, útil, verdadeiro ou belo nâo tem aqui nenhuma significação Tudo é diferente. Respira- mos um ar onde voam particulas de papel e de tinta e trabalhamos quase às escuras. A voz do diretor é doce, ranzinza e regulamentar. Se um funcionário co- mete falta, o diretor mostra o parágrafo e o artigo ade- quados ao caso. Sucede que o funcionárfo se defendE apontando outro artigo. Aí o diretor perturba-se e des- contenta-se: compreende que o serviço não vai bem, mas encolhe-se diante do regulamento e admira e re- ceia o empregado que soube encapar-se nele. Move mo-nos como peças de um relógio cansa,do. As nossas rodas velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outras rodas velhas, de dentes gastos. O que tem valor cá den- tro são as coisas vagarosas, sonolentas. Se o maqui- nismo parasse, não darfamos por isto: continuarfámos com o bico da pena sobre a folha machucada e rota, o cigarro apagado entre os dedos amarelos. Deixarfa- mos de pestanejar, mas ignorarfamos a extinçâo dos movimentos escassos. Os rumores externos chegam-nos amortecidos. Que barulho, que revolução será capaz de perturbar esta serenidade? Era, pois, na repartição que eu obtinha algum sos- sego. As imagens que me atormentavam na rua sur- giam desbotadas, espaçadas e incompletas. O ambiente era impróprio à vida intensa que elas tinham lá fora.

Quando se iam fixando, um tique-taque de máquina de escrever, o chiar de uma folha que roçava sobre outra como lixa, um toque distante de campainha, uma voz descontente e adocicada, todas as complicações miúdas que me sustentam, cortavam as figuras esboçadas. Ju- lião Tavares era uma sombra que se arredondava, toma- va a forma de um balãozinho de borracha. Este objeto colorido flutuava, seguro por um cordel. O vento arras- tava-o para um lado e para outro, mas o cordão curto não o deixava arredar-se muito do café. Marina era outra sombra que se balançava devagar na rede. O ru- mor dos armadores era interrompido pelo tilintar do telefone. A rede ia e vinha, Marina se deslocava um metro para a direita, um metro para a esquerda, e não podia ir mais longe. Desaparecia o risco de se aproxi- marem os dois, era como se estivessem amarrados.

Logo que me afastava da repartição, tudo mudava.

Tropeçando no paralelepípedo, via, meio sncandeado pelo sol, os transeuntes juntarem-se e apartarem-se, e isto me parecia cheio de malícia. Havia intenções reser- vadas nos homens que se acercavam das mulheres, havia promessas nos olhos das mulheres que se desviavam doa homens. Automóveis abertos exibiam casais, automóveis fechados passavam rápidos, e eu adivinhava neles saias machucadas, gemidos, cheiros excitantes. Todos os vef- culos transportavam pecados. A cidade estava em cio, era como o chiqueiro do velho Trajano. Que perigo! Três horas escondido – e cá fora esta gente desen- freada, bodejando, com estilo, com demoras e requintes, mas bodejando como os bodes do velho Trajano.

Os relógios batiam. Com certeza os machos olhavam os mostradores, pensando em entrevistas. Apressava-me.

Três horas metido entre as paredes de uma catacumba oficial. Imaginava o que teria podido acontecer nessas três horas e aterrorizava-me. Corria para casa desem- bestado A sala de jantar, a barra vermelha com man- chas de umidade, o cano de ferro. Vitória punha os pratos na mesa. Esforçava-me por conversar, lembra- va-me das moedas e sentia remorso, falava nos vapores.

Vitória dizia a lista dos passageiros. Tentara fazer Currupaco decorar uma das listas, mas Currupaco não dera conta do recado e ficara nos versos da mulher do macaco, que fia e cose e toma tabaco há muitos anos.

– O senhor está magro como um cassaco. Nã,o come! Arreliava-se e dava-me conselhos. Como eu não lhe prestava atenção, afastava-se e ia explicar-se junto à gaiola do Currupaco: – Papagaio não comeu, morreu.

Eu mastigava uns bocados, enganava o est8mago, olhava o quintal, enfadado com a tagarelice da velha.

Zangava-me e tinha vontade de lhe pedir silêncio. Con- tinuando a falar tão alto, nâo me deixaria ouvir mais nada.

– Vá comprar um maço de cigarros, Vitória.

Quando ela voltava, dava-lhe outra incumbência e conseguia ficar só algum tempo. Aproximava-me da pa.

rede manchada, aumentava a orelha com a mão e espe- rava, esperava, até que percebia aquela voz sacudida que ia ficando quebrada. Afastava-me, atravessava o corredor, chegava à porta da rua.

Dez minutos depois entrava no café. Lá estava Julião Tavares na prosa. Ia sentar-me no meu lugar.

Se Moisés e Pimentel apareciam, conversávamos, dis- cutíamos os fuxicos do jornal, metíamos o pau nos literatos da terra. Sentia-me em segurança. Na anima- ção da palestra procurava cigarros, mas retirava a mão do bolso como se tivesse sido mordido. Aquela coisa punha termo aos momentos de tranqüilidade.

– Um maço de cigarros.

Abria o maço de cigarros e deixava-o sobre a mesa.

No dia seguinte jogaria a corda por cima do muro de d. Rosália.

– Fume um cigarro, Pimentel.

Não. As crianças pegariam aquilo, brincariam com aquilo, e aquilo era sujo e perigoso. Atiraria a corda por cima do muro do fundo, no monte de lixo e cacos de vidro, onde lançavam ratos mortos. Seu Ivo, aquele cachorro, achava poucas as minhas aporrinhações e ainda me trazia encrencas. Seu Ivo que fosse para o diabo.

– A arte deve ser assim e assado, explicava Moisés.

A tecla de sempre, arte como instrumento de pro- paganda política. Eu queria contrariar o judeu, mas esmorecia, sem coragem para a discussão.

– Estou em segurança, em perfeita segurança.

Cada vez mais me convencia, porém, de que não estava numa segurança assim tão perfeita. Parecia-me que na calçada inimigos embiocados me espiavam.

isi – Um homem de repartiçã,o habitua-se a não ver nada fora dos processos. Vive lesando, como um cego, não é verdade, Pimentel? – Sem dúvida.

Pimentel concordava distrafdo. Não desgosta nin- gaém. Escrevendo, agarra uma opinião e, sinta quem sentir, sapeca tudo no papel. Saem artigos furiosos, agressivos como uma peste. Mas em conversa aprova o que a gente diz.

– Continue, Moisés. Como é lá isso? Tranqüilo, perfeitamente tranqüilo. Seu Ivo era um grande patife. Onde andaria seu Ivo? Vagabundeando pelos municfpios. Uma tristeza pensar em seu Ivo, que só servia para incomodar os outros.

– Vai tudo muito mal, minha gente. Vai tudo escangalhado. Não há segurança nenhuma.

Não havia. A tranqüilidade era pouco a pouco substitufda por uma inquietaçâo que me tornava bru- tal com os companheiros. Instabilidade, ruina, o mun- do perdido. Nâo argumentava, não me explicava: que- ria descontentar Moisés.

– Não há remédio nã,o. 8istória. Tudo perdido.

Repisava no mesmo terreno, desajeitado. Uma tei- mosia estúpida. Procurava andar para diante, sentia- me burro, e isto me irritava mais. Ridiculo, absoluta- mente ridfculo. E zangava-me com Moisés, que falava sem se alterar. De quando em quando tudo escurecla – ficavam-me diante dos olhos listras coloridas.

Receava-me de ofender gravemente Moisés. As minhas mãos dirigiam-se para ele, apertavam-se, como se o fossem estrangular. Eu procurava qualquer coisa, apal pava o bolso que tinha a corda e fazia um chumaço no paletó velho. Baixava a cabeça, prendia as mãos entre as pernas, envergonhado, perguntava a mim mesmo se Moisés teria percebido a tentação e os movi- mentos. Parecia-me ter cometido uma falta. Selvagem.

– Ora, sim senhor. Em conversinhas como esta é que se armam fuzuês medonhos.

Dizia isto em voz baixa, mas os dois amigo, ouviam algumas palavras e espantavam-se. Fuzuê.

medonhos, brigas, sopapos, tiros Lá vinha o titulc enorme da notfcia, em quatro colunas: “Comunists 162 Í Í Í I assassinado num café.” Ruim tftulo. Pimentel arran- jaria outro melhor. E escreveria durante uma semana coisas interessantes. Enquanto matutava nestes absur dos, olhava-me ao espelho: uma cara besta. Evidente mente o pessoal mangava de mim; Julião Tavares, no outro lado da sala, m,angava de mim, via-se muito bem entre as linhas brancas do espelho. Esforçava-me por endireitar o rosto descomposto, procurava entender o discurso de Moisés. Com os olhos arregalados e os queixos contrafdos, o que me dava à boca uma apa- rência de focinho, era como um rato, um rato bem- educado, as patas remexendo o maço de cigarros.

– Perfeitamente, perfeitamente.

Agora concordava com tudo. Eu tinha lá convic- çâo! Baixava a mão lentamente, tocava no bolso volu moso. Pensava em Chico Cobra e no cabaço cheio de jararacas. Faltava-me qualquer coisa.

– Perfeitamente.

Levantava-me: – Está bem. Já volto.

Corria à Rua do Macena, entrava em casa, ia à sala de jantar, ao quintal, ao banhefro, demorava-me até perceber sinais da presença de Marina. Então vol- tava à conversa interrompida com os amigos.

– Tranqüilo, tranqüilo.

Quando não encontrava Julião Tavares, detinha- me um instante à porta, depois safa pelas ruas, a pro- curá-lo.

i i Marina caminhava depressa, virava esquina,s, vol tava-se, como se tivesse medo de ser perseguida.

Entrou em várfas lojas, escondeu-se num cinema. Dis tanciei-me dela e estive quase a perdê-la de vista. Apra ximei-me de novo. Marina andava de um lado para outro, como formiga desnorteada. Parecia ter o diabo no couro. Meteu-se por uma rua onde os sapatos mer- gulhavam na areia. Segufa com dificuldade, curva, passando o lenço na cara. Escondi-me numa esquina, porque de quando em quando ela se aprumava e exa- minava “á rua. Duas vezes parou, descalçou-se e esvar 163 ziou os sapatos cheios de areia. Em seguida começot a observar os núxneros das casas. Como se afastassi muito de mim, saí, atravessei rapidamente um quar teirã.o e fui ocultar-me noutra esquina. Arrisquei-mi depois a nova escapada e avizinhei-me bastante dela O bairro era uma desgraça: mato nas calçadas, lixo cães soltos, um ou outro maloqueiro vadiando à port de quitandas miseráveis. As casas suj as, muito risca das com letras a carvâo profundamente revolucioná rias. Pensei em Tavares & Cia. e no dr. Gouveia.

– Com certeza Moisés anda por aqui, distribuin do boletins a esta gente.

Mas nâo se via a gente. Apenas maloqueiros cochi lando, alguns mendigos, crianças barrigudas e amare las. O resto devia estar no trabalho: os homens na oficinas, nos estribos dos bondes da Nordeste, nos quai téis, em todos os infernos que há por aí; as mulhere la,vando roupa, amando por dinheiro, preparando comida ruim e insuficiente. Os filhos, roídos pelos ver mes, seriam vagabundos mais tarde, dormiriam a meio-dia nas portas das bodegas. Dormiriam? Quand eles crescessem, haveria pessoas dormindo ao meio-di nas portas das bodegas? Muitos agora tiritavam, baten do os dentes como porcos caititus, na maleita que lama da lagoa oferece aos pobres.

“Proletários, uni-vos.” Isto era escrito sem vfrgL la e sem traço, a piche. Que importavam a vírgula o traço? O conselho estava dado sem eles, claro, num letra que aumentava e diminufa. Talvez a datilógraf dos olhos agateados morasse por ali, num dos beco que iam ter à rua suja. Escondida num quarto escurc a datilógrafa dos olhos agateados ocupava-se em bate na máquina um boletim subversivo. Um irmão decc raria dele a frase mais incendiária, que seria copiad a carvão no muro de uma igreja de arrabalde.

Aquela maneira de escrever comendo os sinai indignou-me. Não dispenso as vfrgulas e os traços. Qm reriam fazer uma revolução sem vfrgulas e sem traços Numa revolução de tal ordem não haveria lugar par mim. Mas então? – Um homem sapeca as pestanas, conhece liter tura, colabora nos jornais, e isto não vale na,da? Po: 164 sim. E só pegar um carvão, sujar a parede. Pois sim.

Moisés que se arranje.

Senti despeito. Afastar-me-iam da repartição e do jornal, outros me substituiriam. Eu seria um anacro- nismo, uma inutilidade, e me queixaria dos tempos novos, bradaria contra os bárbaros que escrevem sem vfrgulas e sem traços.

Marina parou diante de uma casinha baixa, hesf- tou, bateu à porta. Toda a minha atençã.o se concen- trou num olho, porque na esquina em que me achava apenas apresentava à rua uma banda da cara. Quan- do ela entrou, desentoquei-me, aproximei-me da casi- nha e vi uma placa azul com letras brancas: “Alber- tina de tal, parteira diplomada.” Fui até o fim da rua.

Aparentemente observava os letreiros das bodegas e as legendas revolucionárias. As bodegas tinham nomes difíceis. Julguei que os vagabundos me achavam dife- rente dos habitantes do bairro. E isto me fez apressar o passo e virar o rosto. Desejei retirar-me dali, ingres- sa.~ de novo na sociedade dos funcionários e dos lite- ratos.

Crianças de azul e branco, naturalmente de volta da escola,. tinham a pele enxofrada, o rosto magro cheio de fome. Sentia-me intruso. A minha roupa era velha, a gravata enrolada como uma corda. Com cer- teza os rapazes do bairro tinham melhor aparência.

Em dias de descanso usavam roupa nova, lenço de seda, sapatos lustrosos. Mas havia em mim qualquer coisa que denuncfava um estranho. As crianças olha- vam-me como olham os homens que aparecem nas escolas pelos exames. Eu era uma das criaturas que elas estavam acostumadas a aborrecer, uma das cria- turas que dizem palavras compridas em discursos. Vol- tei, parei novamente diante da casa de d. Albertina de tal, parteira diplomada. Atravessei a rua, entref numa bodega.

– Faz o obséquio de me dar um pouco de aguar- dente? , O homem da venda trouxe a garrafa, pôs-se a des- pej,á-la num copo sujo. Como eu não o interrompes- se, derramou a bebida com sovinice.

– Quer que encha? 165 – Vá botando.

– An! bom. É o que se leva deste mundo, opi nou entregando-me o copo cheio.

Sentei-me e comecei a beber, olhando a casa fron teira, o pensamento espalhado.

– Seu Ivo deve andar por aqui, não? O homem não respondeu logo: franziu a testa E agitou vagamente o braço peludo. Não conhecia set; Ivo. Naturalmente. Mas senti uma espécie de decep çâo, as casas em redor pareceram mais fechadas, c dono da bodega mais cabeludo e mais silencioso.

– D. Albertina estará em casa? O bodegueiro interrogou-me com a cabeça. Apon tei a casa: – D. Albertina. ..

– Talvez esteja, respondeu o sujeito depois di algum tempo. Sua mulher precisa dela? – Nâo E outra coisa.

– Está bem.

Esta aprovação desgostou-me, tive o desejo de con trariá-lo, mas limitei-me a beber metade da aguarden te e bater com o copo no balcão. Não havia nada qu estivesse bem.

Vista dali, a placa azul de d. Albertina era ilegl vel. Mesmo de perto, dificilmente se decifrava. En vários pontos, especialmente nos cantos, o esmaltt desaparecia e era substituído por manchas de ferru gem. Com certeza aquele traste havia sido mudadi muitas vezes, pregado e despregado, amassado, desa massado a martelo. De alto a baixo uma linha escur: indicava que o tinham dobrado e novamente estendi do. Ali faltavam as letras.

As rótulas verdes de d. Albertina estavam cerra das, a porta fechada. E Marina lá dentro. Lembrei-m de anúncios revistos há muitos anos: “Fulana de tal parteira diplomada, com longa prática, etc., faz volta rem as regras, etc.” Trancada num quarto, deitada m cama, Marina se deixava apalpar demorada,mente. água fervia na caixinha de lata, a chama do álcoo empalidecia as figuras.

– Quantos meses? perguntava d. Albertina.

166 Na casa vizinha um dfstico horrível tomava a parede toda. Letras grandes, letras pequenas, maiús culas no meio das palavras. E linhas verticais, verdes, produzidas pela água da chuva, cortando a ameaça aos ricos.

– Andam muit os agitadores por aqui, não? – An? – Pessoas descontentes que pretendem arrasar isto, construir de novo. Que acha? Apontei a inscrição violenta. O sujeito cabeludo espiou-me com o rabo do olho e amoitou-se: – Aquela sempre esteve ali.

– Sempre? Meninos abandonados batiam nas portas, pediam esmolas.

– Sempre? Como é lá isso? – É um modo de dizer, respondeu o tipo. Af uns três anos. Quando abri o estabelecimento, ela já esta- va acolá, assim mesmo, com uns pedaços verdes. A gente se acostuma.

– Acha? perguntei enjoado. Ora essa! Qual é a sua opinião? Bebi um gole de aguardente, acenài um cigarro, pus-me a bater com os dedos na tábua preta e gor- durosa.

– Essa d. Albertina faz negócio? Qual é a sua opinião? – Sobre quê? Abarquei com um gesto as garrafas das pratelei- ras, as casas arruinadas, a rua coberta de capim e as crianças que pediam esmolas: – Tudo. Quando a encrenca vier, o senhor perde pouco.

– Sef lá! Não leio, não vou aos meetings. Só cui- do da minhá vida.

Puxei a cadeira, afastei-me daquele homem indi- ferente. Estupidez. Imaginar que as letras sempre tinham estado na parede. Inútil conversar com ele.

Tenho lido muitos livros em lfnguas estrangeiras.

Habituei-me a entender algumas. Nunca me serviram para falar, mas sei o que há nos livros. Certas perso nagens de romances familiarizaram-se comigo. Apesar 16? de serem de outras raças, viverem noutros continen- tes, estão perto de mim, mais perto que aquele homem da minha raça, talvez meu parente, inquilino de um dr. Gouveia, policiado pelos mesmos indivíduos que me policiam. Bebi o resto da aguardente, pensando em coisas sagradas, Deus, pátria, família, coisas distantes.

Por cima da armação da bodega havia a litografia de uma santinha bonita. Lembrei-me do Deus antigo que incendiava cidades : – A humanidade está ficando pulha.

– Hum? – cá uma história. Faz o favor de trazer mais aguardente? O homem cabeludo trouxe a garrafa: – o que se aproveita neste mundo.

– Mais ou menos.

Uma pátria dominada por dr. Gouveia, Julião Tavares, o diretor da minha repartição, o amante de d. Mercedes, outros desta marca, era chinfrim. Tudo odioso e estúpido, mais odioso e estúpido que o sujei- to cabeludo que despejava aguardente no copo sujo.

Que demora de Marina! D. Adélia chegava à jane a. Seu Ramalho, cansado, um ombro alto e outro bai xo, entrava sucumbido, assobiando por causa da asma.

ia sentar-se à mesa de toalha rasgada, onde a comida esfriava. D. Adélia inventava desculpas: Marina tinha ido ali, tinha ido acolá, não tardava. Seu Ramalho fun gava, enjoado: tudo mentira. Alguns dias depois Mari- na apareceria com vestidos caros, peles caras que nãc seriam compradas por ele. Abandonava o prato, detes tava a mulher, detestava a filha, descia ao quintal passeava entre os montes de lixo. Que família! Que miséria! D. Rosália largava os meninos a Antônia, dei xava a panela esturrar, ia para a janela ganhar calo; nos cotovelos, esponar os vizinhos. D. Merc°des man dava dinheiro ao marido e tinha filha no colégio.

Que demora! D. Albertina não acabaria aquela operação para restabelecer as regras? D. Albertina ers terrivelmente criminosa. Rumor de tambores, longe toques de corneta. O filho de Julião Tavares era neces sário ao patriotismo. A água fervendo na caixinha df lata, um frasco cheio de líquido vermelho, a chama dc 168 álcool tremendo, Marina com o rosto escondido entre as mãos, deixando-se apalpar pelos dedos hábeis de d.

Albertina. Se não fosse isso, dentro de vinte anos a criatura mofina estaria volvendo à direita, volvendo à esquerda, decorando os nomes das peças de um fuzil e passagens gloriosas do Paraguai. Filho de casal direi- to, com pai rico, faria discursos no Instituto e decla- maria versos; mas assim, coitado, nasceria às escondi- das e não passaria daquilo – direita, esquerda, ordi- nário. D. Albertina era criminosa, mas não senti ódio a ela. Sinha Terta não faria semelhante coisa. Sinha Terta não tinha diploma, nem placa, nem anúncio nas folhas, acreditava em pecado e vivia num tempo em que os filhos traziam vantagens aos pais. As mu- lheres pariam na esteira, e quando surgia dificuldade, sinha Terta empurrava a reza: – “Minha Santa Mar- garida, não estou prenha nem parida…” Os filhos de Quitéria e os das outras negras da fazenda pertenciam à famflia do velho Trajano. Onde andaria essa famí- lia? Morta, espalhada, esfarelada.

Os toques de corneta e os rufos de tambor cres- ciam. A minha pátria era a vila perdida no alto da serra, onde a chuva caía numa neblina que escondia tudo. Se eu tivesse ficado ali, ignoraria o resto do mundo. Seu Evaristo, que se enforcou, mestre AntBnio Justino, padre Inácio, cabo José da Luz, seriam pessoa.a notáveis. Tão longe! Pensei no jornal francês lido na véspera e aqui chegado vinte e quatro horas depois de publicado. As notfcias dos municípios sertanejos do meu Estado chegam mais atrasadas que um número de jornal europeu.

Como seria a cara de d. Albertina? Imagfnei-a magra, pálida, séria, correta. Não havia otivo para Marina esconder os olhos.

– Faça o favor de descobrir o rosto. Não se aca- nhe. Tão natural! Depois voltariam as regras.

– Dois meses? Perfeitamente. Agora a senhora toma precauções, usa fsto, usa aquilo.

Exatamente como se Marina estfvesse no consul- tório de um médico, sarjando um tumor. Nenhum sinal de crfme ou de ação proibida. A seringa na águ8 169 que borbulhava, um frasco sobre a mesa da cabeceira , quadros de anatomia nas paredes, a chama do álcool tremendo, a voz calma de d. Albertina a prescrever medidas de segurança. Uma senhora pálida e franzi- na, de rosto sereno e boas intenções.

– Não se acanhe. Fique à vontade.

Nenhuma alusão a qualquer espécie de falta. Direi ta, fria, falando baixinho, empregando termos esco- lhidos.

Mas porque era que d. Albertina, parteira dipla mada, com longa prática, deveria ser assim e não de outra forma? Talvez fosse diferente. Os anúncios não valem nada, papel agüenta tudo, como dizem os ma- tutos. D. Albertina era uma velha gorda e mole, sem diploma nem prática, de óculos ordinários e hálito desagradável, mal-educada, resmungona. Marina esta- va deitada numa cama nojenta; nas paredes nojentas não havia gravuras de anatomia: hãvia quadros de santos, retratos coloridos, páginas de revistas. Sem la- var as mãos duras, de unhas compridas e negras, d.

Albertina examinava brutalmente o corpo de Marina, arranhando-a, machucando-a, rosnando: – Era melhor deixar-se de vergonhas e descobrir a cara. Quando andam na pândega, não têm esses luxos. E depois parem bem na bananeira. Feias coisas.

Mostrava os dentes amarelos de selvagem. Seria assim d. Albertina? A cliente mordia as cobertas sujas, continha a respiração, fechava os olhos, apertava as coxas e engolia o choro.

– Abra as pernas, criatura. Donde vêm esses den- gues? Assim ninguém pode trabalhar.

O dinheiro do trabalho fora recebido adiantada- mente. Marina dera nome falso e endereço errado, temendo a exploração de d. Albertina.

– Nâo vale a pena a senhora se incomodar. Eu apareço, compreende? Se houver necessidade, eu apa- reço.

– Quanto devo? O homem cabeludo deu a conta. doguei uns níqueis no balcão, disse frases sem sentido, olhando a legenda medonha no muro cortado de listras verdes.

Que vida teria d. Albertina? D. Albertina sa.bia umas I70 coisas, como eu, e como eu usava linguagem dfferente da linguagem das outras pessoas. Ordinariamente não é preciso que me digam: – “Faça isto. Escreva assim:’ Basta que me mostrem ser conveniente fazer isto e escrever assim. Depois os amigos me felicitam, juram que um artigo que ninguém leu foi muito apre- cia,do. Marina provavelmente não dissera o que dese- java: falara por meias-palavras, aludira a dificuldades de ordem econômica, desavenças de famflia, etc. D.

Albertina riscara um fósforo para desinfetar a seringa na caixinha de lata. A segunda d. Albertina, desleixa- da, suja, de unhas compridas e pretas que arranha- vam o corpo das clientes, sumiu-se. Voltou a outra, delicada e limpa: – Como não? Perfeitamente. Pode confiar. Sem dúvida.

As mãos finas de unhas polidas, a voz baixa e grave.

– Perfeitamente.

O filho de Julião Tavares rebentaria como um tumor. D. Albertina lavaria as mãos, sorrindo: – A senhora tem uns lindos cabelos.

E ajeitaria os cabelos desconsertados de Marina.

Receberia o envelope indiferente, como se aquilo não tivesse importância: – Ora essa! A mulher suja e balofa desaparecera, o quarto sujo desaparecera. Uma senhora decente, parteira diplomada, com longa prática, as mãos brancas e macias, linguagem correta, sorrisos: – Quando quiser. Perfeitamente.

O filho de Julião Tavares não viria ao mundo penar, cantar na escola o hino do Ipiranga, mover-se no exercfcio militar, curtir fome nos bancos dos jar- dins, amolar-se nas repartições, adular nos jornais o governo. E a família de seu Ramalho nada sofreria.

Pensando bem, d. Albertina atentara apenas con- tra Deus e contra a pátria. Se aquilo fosse julgado pelo júri, o promotor gritaria um discurso patético, e os jurados se arrepiariam com indignação. Se o cura da sé ouvisse um pecado tâo grande no confessionário, daria às duas mulheres penitência dura. Mas não 171 haveria discurso, não haveria penitência, que elaa nãc se julgavam culpadas e despediam-se de coração leve Marina ainda confusa, d. Albertina fingindo acreditai que ela era casada: – Para que ter filhos, minha senhora? A gente sofre, mas se eles vivessem, podia ser pior, não é ver dade? Criar infelizes.. Uma responsabilidade, minha senhora, responsabilidade enorme.

A justiça e a religião não tomariam conhecimentc do caso. E a famflia de seu Ramalho continuaria comc estava, sem um escândalo para alimentar d. Rosália sem peso novo no orçamento, uma criatura que seriF necessário vestir, calçar, nutrir e mandar à escola. D Adélia censuraria aquele passo arriscado e teria ux suspiro de alívfo: – Que loucura! Pisou na beira da cova.

Seu Ramalho, hostil e distante, perceberia vaga mente que a maluca estava criando juízo. Tudo certo Marina de cabeça erguida, criticando a vida suspeit de Lobisomem; d. Rosália e d. Mercedes falando con ela naturalinente; Julião Tavares, no café, exigind um governo forte; d. Adélia apertando as mãos, gemen do conselhos: – Tenha cuidado, minha filha Não se exponh não sacrifique a sua vida por causa desses safado; Conserve-se, pode ser que arranje casamento.

Levantei-me: – Adeus.

DIas não sai: fiquei junto ao balcão, atrapalhadc olhando, à porta da casa fronteira, o rosto de Marinf Por detrás dela os cabelos brancos de d. Albertina ag tavam-se. Só se percebiam os cabelos. Vistas de long as duas figuras confundiam-se, e tive a impressão d que Marina envelhecera e se purificara depois do tra balho da outra. Inutilizara nas entranhas uma cois ruim que se atormentaria se vivesse, agüentaria co ces por onde andasse: em casa, no quarto de pensâ na rua, no jornal, no quartel, na repartição. Tudo co tinuaria como anteriormente.

A neta de d. Aurora iria ao cinema com os hó pedes que a convidassem. D. Aurora balançaria c 172 caracóis e as banhas excessivas. Dagoberto se agarrer ria ao compêndio e ao esqueleto.

Impacientei-me e falei ao bodegueiro, tentando explicar-lhe as letras pretas manchadas de verde. A neta de d. Aurora não era Marina e devia estar madu- ra, talvez senhora honesta, dona de pensão, ca,sada, gorda. E Dagoberto já não era estudante: era médico no Pará, ou no Amazonas, um destes lugares. Aquela hora estaria examinando a Marina de uma ruela do Pará.: – (ual foi a parteira que lhe fez isso? Onde andava a senhora com a cabeça? Gritos, indignação. E a Marina do Pará, compr endendo que havia feito doidice, temeria as doenças de nomes complicados. Mas nâo denunciaria nenhu- ma d. Albertina. Dagoberto que lhe desse um remédio, se quisesse. Como estaria Dagoberto, depois de dez anos de separação? Devia estar gordo, encanecido, rico, cheio de filhos, com óculos.

Marina ia sair. Viu que se abria uma janela na vizinha e retraiu-se. Os cabelos brancos continuavam a agitar-se. Não pude saber a qual dos dois tipos ima- ginados d. Albertina se assemelhava. Seria talvez uma d. Albertina diferente das minhas.

Fazia minutos que me havia despedido do bode- gueiro, mas prosseguia na conversa, decifrando a legenda revolucionária.

Subitamente os cabelos brancos desapareceram e Marina saiu. Findei a exposição capenga: – Até logo.

Atravessei a rua e cheguei-me a Marina, que se afastava com dificuldade, mergulhando na areia os sapatos vermelhos. Sentia-me perturbado e intimamen- te armava diálogos que ela, não entenderia. Os sapa- tos velhos, rachados e cambados. A roupa desfiando- se nas costuras. Tão miúda, tão reles! Estava quase a pisar-lhe os calcanhares. Tossi: – Faz favor? Continuou a marcha penosa, mais lenta e mais cansada depois que dobrou uma esquina. O suor cor- ria-lhe pela nuca, entre os cabelinhos arrepiados. De quando em quando a mão que enxugava a cara sur 173 gia por cima de um ombro e esfregava com o lençc a penugem amarela.

– Faz favor? Af ela parou. Em seguida apressou o passo, meteL com vontade os pés na areia frouxa, e a penugem ama rela empastou-se, grudou-se à pele e escureceu.

– Deixa disso. Nâo há motivo para esse orgulhc todo. Baixa a pancada. Donde vem uma soberbia tãc grande? Os músculos do pescoço tremeram, os sapatos ver melhos plantaram-se na areia, mexeram-se como si quisesserr arrancar-se, ficaram imóveis. Avancei doi; metros, fiz meia-volta e achei-me em frente de Marina – Boa-tarde. Como vai a saúde? Há que tempol Vista de costas, o que nela, avultava era a nuc: molhada. Agora percebia-se a testa, molhada tambén e coberta de rugas. Parecia que o resto do corpo se ocul tava sob as pálpebras ca.ídas e roxas. O peito cavava se. a barriga sumia-se. Examinei-Ihe brutalmente barriga, barriga comum, nem grande nem pequena Uma pessoa modesta andando na rua, encolhendo-s para não dar nas vistas.

– Sim senhora, muito digna. Levanta a cabeça.

Marina estremeceu e olhou de esguelha para o lados, como se procurasse auxílio.

– Levanta a cabeça. Deixa de inocência.

Aqueles modos pudicos, aqueles movimentos qua se imperceptfveis das pálpebras roxas que velavan olhos inúteis, irritaram-me. Lembrei-me dos armadc res que rangiam, das cantigas, dos banhos ruidoso.

E atirei-lhe à cara, com raiva: – Puta! Marina ouviu isto sem se revoltar. Apenas ffcoi mais branca, estirou o beiço quase chorando.

– Me largue, balbuciou.

– Está bem. Ninguém tem nada com isso, não é Vamos andando. Puta! Dizia-lhe o insulto, mas estava cheio de piedadE Não sentia cólera, o que sentia era desgosto.

Marina estava como uma defunta em pé. PensE em Cirilo de Engrácia, visto dias antes em fotografi – um ca,ngaceiro morto, amarrado a uma árvore. Parecia vivo e era medonho. O que tinha de morta eram os pés, suspensos, com os dedos quase tocandc o chão. Os pés de Camilo Pereira da Silva, ossudos, magros, eram assim desgovernados. Os de Marina esta vam metidos na areia. E Marina parecia morta.

– Puta! Teria dito e repetido outra palavra que insistissE em vir-me à boca, dessas coisas que a gente diz à toa e conserva porque vieram espontaneamente e sãc insubstituíveis e absurdas. Quanto mais olhava Mari na menos me inclinava a admitir que ela fosse uma puta. As pálpebras roxas ocultando olhos aguados, c beiço trêmulo, a barriga encolhida, a cara mal pinta da, a testa amarela coberta de rugas.

– Vamos caminhando: Marina pôs-se a andar como um ma.mulengo.

O homem cabeludo só cuidava da sua vida; datilógrafa dos olhos de gato copiava um boletim m máquina estragada; d. Albertina guardava os cem mil réis na gaveta; as crianças que voltavam do grupc escolar soletravam as legendas estiradas nas paredes O filho de Marina morria, talvez já tivesse morrido Pensei nos ratos, em d. Mercedes, no quintal cheio di lixo, na mulher que lava garrafas e no homem qu enche dornas. Estas lembranças me produziram uu aperto no coraçâo. Quase todas me pareceram regula res, mas a idéia dos ratos era extravagante, e isto mi enfureceu. Que vinham fazer os ratos ali, àquela hora’ – Puta! exclamei metendo com raiva os pés n areia.

Talvez não me referisse a Marina: referia-me ao; ratos, a coisas vagas. A palavra infamante tinha extensão enorme, Nada se fixava no meu espírito. Aber rações, monstruosidades, os uivos compridos de d losália, a respiração ofegante do marido de d. Rosália Antônia, Berta, a mulher da Rua da Lama, a neta d d. Aurora, a banca da redação, o cinema, o teatro. 1 aparecia-me na rua uma criatura pálida, silenciosa Mais forte que aquelas idéias indecisas e misturadas, lembrança dos ratos continuava a atormentar-me.

– Puta! I76 Os beiços de Marina estavam como os de uma defunta, os olhos procuravam socorro, e eu cravava as unhas nas palmas das mãos, mordia a língua por haver deixado escapar mais uma vez a injúria que nada significava. Deu-me uma tontura, cambaleei.

Meses antes Marina ficara nua, a carne arrepiada se cobrira de carocinhos. Quando o marido voltava do interior, d. Rosália soltava uns gritos que não me dei- xavam dormir. A mulher da Rua da Lama ia para o hospital, vinha do hospital, continuava o trabalho enfadonho no quarto sujo, nua e triste. Os dedos cru- zavam-se nos joelhos agudos como dedos mortos. – “A água lava tudo, as feridas cicatrizam.” Repeti men- talmente esta frase, mas não pude saber de quem era ela.

– Enfim tudo se acabou, não é? perguntei, O filho morreu, boa solução.

Marina estremeceu violentamente e parou, olhan- do-me pe)a primeira vez. O rosto contraído esmoreceu num desmaio, o corpo diminuiu. Pareceu-me que ia enterrar-se todo na areia. A voz morria-lhe na gargan- ta, sons roucos e incompreensíveis, mas os olhos apa- vorados negavam, a cabeça agitava-se desordenada- mente, negando.

– Merecia estar na cadeia, resmunguei sentindo uma necessidade urgente de justiça.

Palavras antigas, esquecidas, voltavam-me. – “Os que têm fome de justiça”, cantavam os alunos de mes- tre Antônio Justino. Sede ou fome de justiça? Não me lembrava. Também já não sabia as vantagens que o catecismo reserva aos que têm fome ou sede de justiça.

– Na cadeia, percebe? Comendo bacalhau e dor- mindo na esteira. Sem-vergonha.

A frase antiga me perseguia, mas, por mais que tentasse reconstruí-la, não havia meio de tê-la com- pleta. – “Bem-aventurados os que têm sede de justi- ça…” E o resto? Que aconteceria a esses bem-aven- turados? O esforço para recordar-me exasperava-me.

Insultava Marina. Puta. A justiça havia de agarrá,- la, jogá-la para lá das grades pretas que a gente não pode tocar. Vinham-me tiradas incoerentes, que embranqueciam e enegreciam Marina.

177 – Fez muito bem Prejuízo pequeno, insignificân cia. E o que lhe digo. Sem falar nas responsabilidadea nas encrencas.

E logo : – D. Albertina guarda segredo? Se nã.o guarda a reputação de Marina dá em ossos de minhoca.

– D. Albertina? perguntou Marina, pálida com flor de algodão.

– Sim, d. Albertina, minha sem-vergonha. Vamc para diante. Marcha! Continuamos a caminhada, segurei o braço mol de Marina.

– Eu vi a placa na porta. Estava defronte, co: versando com o homem da venda.

– Me deixe, pelo amor de Deus, gritou Marin desesperada. Não lhe fiz mal, vou quieta pelo me caminho. Me deixe. Que é que você quer comigo? Olhou os quatro cantos. Um soldado de polícia um soldado do exército passaram, os quepes de band – Atraca-te com um deles. Tu só dá.s para isso.

Atirei-lhe assim o pior ultraje. Como os pequenc militares são desprezados, julguei demolir Marin apontando-lhe os dois rapazes. Bem-aventurados c que têm sede de justiça. Esta coisa, repetida, dava-n fúrias de cachorro doido. Para que agarrar-me a son bras? Um juiz de direito bocejando, fatigado; o pri motor decÍamando a acusação e afastando-se dc autos, que não tinha lido; o advogado, que poderia si Julião Tavares, soluçando a defesa e apelando para sent’mentos religiosos dos jurados; oito sujeitos cocr lando, chateados e comprometidos a absolver ou co denar a ré. Marina escondia a cara e inspirava con paixão. Todos os jurados tinham a,s feições-de dr. Gov veia. Sacudi os ombros: – Ande. Que diabo tem você nas pernas que nF caminha? A marcha na areia solta era penosa em extrem – Vá-se embora. Me largue, pelo amor de Deu arquejou Marina. Não lhe fiz mal. Porque não me df xa em paz? Em paz. Cfrunhi de novo o desaforo imundo. E paz. Nenhum caso importante. Não havia, juiz amol 178 do tocando o timpano, nem advogado pernóstico, nem promotor botando sabedoria em cima de dr. Gfouveia multiplicado nas cadeiras. Marina dormiria tranqüila, os armadores guardariam silêncio.

– Sem dúvida. Os tempos estão duros. Em fren te, ordinário, marche! Tudo isto é uma peste.

Entramos na cidade e separamo-nos. Mas logo me veio a idéia de que ela se ia juntar com o amante.

* * * Descobri por acaso que Juliâo Tavares tinha feito nova conquista. Foram duas ou três palavras soltas na rua que me deram a revelação. Pensei numa das filhas de Lobisomem e na datilógrafa dos olhos verdes.

Tudo isto é infantil, mas a verdade é que duran- te dias me atormentou a idéia de que Julião Tavares havia seduzido a menina dos olhos verdes. Para que lado morava ela? Nunca havia percebido a voz dessa criatura, não conhecia nenhum dos seus gostos, mas tinha certezas esquisitas e andava como um pa-ente cheio de ciúmes ou como um cachorro que perdeu o faro, e não sossega.

Porque se tinha escondido a datilógrafa dos olhos verdes? Fugiria da policia? Ou estaria de cama com a hemorragia produzida pela intervenção de uma d.

Albertina? Agora Julião Tavares tomava um caminho, depois tomava outro – e eu imaginava que ela resi- dia em Bebedouro, na Levada, em Jaraguá, no Farol, enfim admitia que nos quatro pontos cardeais exis- tiam datilógrafas doentes. Todas elas estavam grávi- das e procuravam os serviços de d. Albertina.

O bodegueiro cabeludo, com os cotovelos pregados no balcâo, não via nada, só cuidava da sua vida. E Julião Tavares farejava as datilógrafas como um bode.

Porque andava com tanta pressa quando deixava o café? Entrava num bonde, espalhava-se no banco, feliz, o olho aceso, o charuto aceso. Ia encolher-me num dos últimos lugares, firmava as mãos no encosto do banco fronteiro, apoiava o queixo nas mãos e obser- vava as costas de Julião Tavares. O cachaço gordo e mole como toicinho balançava com o movimento do 179 carro. A mão curta de unhas cor-de-rosa fazia acen para baixo. Transeuntes sorriam ao dono da mão cL ta de unhas brunidas. Eu notava com raiva aquel sorrisos. Porque tanta subserviência nas caras aberta Juliâo Tavares, patriota e orador, não prestava pa: nada. Nenhum favor esperavam dele. Mas sorriam p hábito. Eu também havia sorrido, amolado. Os cab los de Julião Tavares começavam a escassear no al da cabeça. Parecia que ele ia adquirindo uma espéc de tonsura. Falava alto, atirava cumprimentos a conhecidos e era amável em excesso, mas a amabi: dade traduzia-se em palavras vãs. O que me aborrec era saber que essa.s palavras eram aceitas: tinham tic significação antigamente e continuavam a circular. F engulhava, metia a mâo no bolso e apertava a corda.

Que fim teria levado seu Ivo? A toa, procuranc nas fazendas e nas povoações muitas vezes percon das alguma coisa ignorada. Bêbedo sempre, cochila: do, babando, seu Ivo não encontra sossego. Uns fora para o Amazonas e acabaram-se no beribéri; outr andam pelo sul, em concorrência com o estrangeir Seu Ivo, incapaz de fixar-se, índio e cigano, cor fazendas e povoações, pedindo, furtando. Não sal tomar os objetos que necessita: pede, furta, é um inc vfduo inferior. Por isso digo a Vitória quando ele n entra em casa: – Vitória, preste atenção a seu Ivo. Cuidado pa que ele não me abafe um livro.

Inútil. O livro é abafado e oferecido adiante, corr a corda que ele me deu.

Apalpava a corda. Mexia-me lentamente, pensav nos cabras que meu av8 livrava peitando os jurados c ameaando a cadeia da vila. Apareciam no páti desarmados, varrendo o chão com chagéus de cour mas quando tinham empreitada, dormiam na pont ria, passavam semanas por detrás de um pau, o clav note escorado numa forquilha, algumas rapaduras farinha de mandioca no bisaco.

Pouco a pouco tudo se transformava, a catini da minha terra rodava aos solavancos nos trilhos c Nordeste. Escondia-me entre aquela vegetação de pa sageiros, sobre o encosto do banco apoiava-se um rif 180 imaginário dirigido às costas de Julião Tavares. Tudo nele me aparecia aumentado e deformado. Lembrava- me das conversas que me estragavam as noites, de palavras ouvidas através da parede da sala de jantar, de frases truncadas percebidas no café. O homem sal- tava, eu ia saltar um poste adiante e continuava à espreita. Notava as casas onde ele entrava, as caras das pessoas a que se dirigia.

Como conseqüência da investigação, descobri afi- nal a nova amante de Julião Tavares. Era uma criatu- rinha sardenta e engraçada que trabalhava numa loja de miudezas. Dentro de alguns meses estaria de barri ga, visita,ndo clandestinamente d. Albertina. Venderia as jóias baratas, furtarfa dinheiro na caixa para d.

Albertina. Ou então haveria um espalhafato. Julião Tavares daria à mocinha sardenta quinhentos mil-réis para ela calar-se e passaria uns tempos aborrecido, ouvindo os sermões de Tavares pai.

* * * A casa era em Bebedouro, pequena, isolada. Julião Tavares chegava alta noite, entrava, demorava-se duas horas. Afastava-me, para não despertar suspeitas, mas ‘à safda andava por ali e distinguia um vulto que tinha a gola do paletó erguida e evitava os pontos ilu- minados. Havia raros transeuntes, e a ligaçâo durou pouco, não chegou a dar nas vistas.

Julião Tavares seguia pela rodagem, rente aos jar- dins dos palacetes adormecidos. Ou acompanhava a es- trada de ferro, que atravessa a rua, ganha os fundos das casas. Ali era o silncio, uma sombra que algumas lâmpadas muito distanciadas e os becog por onde es- pirra um pouco de luz interrompiam. A água do man- gue apresentava manchas brancas entre as árvores.

Aproximando-me, ouvia perfeitamente os passos do ho- mem nas folhas secas. Porque era que aquele sem-ver- gonha caminhava como se estivesse em casa, pisando no chão pago? Em toda a parte era assim. Derramava-se no bon- de. e se alguém lhe tocava as pernas, desenroscava-se com lentidão e lançava ao importuno um olhar duro.

181 Eu encolhia-me, reduzia-me e, em caso de necessidade sentava-me com uma das nádegas. As viagens se torna vam horrivelmente inc8modas, mas havia-me habituadc a elas, e ainda que o carro estivesse deserto, não pode ria espalhar-me como Julião Tavares: receava que m viessem empurrar e tomar, sem pedir licença, algumaa polegadas da tábua estreita.

Aqueles modos davam-me a impressão de que tudc em roda era dele. Os passeios públicos eram dele. Certa mente ninguém me proibia andar nos jardins, sen tar-me, ver as mulheres. Mas as mulheres não repara vam em mim, pessoas conhecidas olhavam-me distraida mente. Demais, enquanto me achava ali, perseguia-mE a recordação da vida ordinária, e isto me estragava a hora mesquinha de folga. Os canteiros, o coreto, os glo- bos opalinos, não me serviam para nada. Estimaria que os fios da Nordeste encrencassem e a cidade ficasse à escuras. Mover-me-ia como um cego, esqueceria as mu lheres pintadas que imitam d. Mercedes, esqueceria Julião Tavares, que estava em todos os bancos. A treva apagaria aquela exposição desagradável. Mas dar-me-ia a recordação de coisas mais desagradáveis ainda.

A gravata enrolava-se como uma corda sobre a ca m;sa raseada e suja, das bainhas das calças e dos coto- velos puídos saíam fiapos, manchas de poeira alastra vam-se na roupa, a sola dos sapatos estava gasta, os meus olhos se enevoavam por causa da fome e desco- briam entre as árvores cenas irreais.

Agora Julião Tavares marchava no escuro, depois de ter abraçado a mocinha sardenta. Ia deitar-se, arru- mar talvez uns versos indecentes a respeito de segredos de alcova. Aquela hora não tinha com quem desabafar.

O café estava fechado, na praça deserta as luzes cochi- lavam. Derramaria a vaidade no papel, imprimi-la-ia no dia seguinte, os amigos lhe dariam parabéns e ele andar ria como um pavão. Julião Tavares julgava-se superior aos outros homens porque tinha deflorado várias meni- nas pobres. Pelos modos, imaginava-se dono delas. Con- tra-senso. Então Marina era dele? Tolice. Era a mesma que eu tinha conhecido um ano antes, vermelha, com os cabelos pegando fogo, entre as roseiras maltratadas.

Evidentemente.

I82 Lembrava-me de sinha Germana, de Quitéria, das negras da fazenda. Sinha Germana só tinha conhecido um homem. As pretas não se envergonhavam de conhe cer muitos homens. Que diferença! Descendo de sinha Germana, que dormiu meio século numa cama dura e nunca teve desejos. Adquiro idéias novas, mas estas idéias brigam com sentimentos que não me deixam.

Sinha Germana dormia no couro de boi com o velho Trajano, e se dormisse de outra forma, não dava certo.

Os costumes de sinha Germana eram superiores aos de Quitéria. Porquê? Não havia porquê, e isto me enrai- vecia. Um sujeito capaz de escrever sobre muitos assun tos entendendo-os mal, ou sem entendê-los, aceitar as opiniões de Camilo Pereira da Silva, de padre Inácio, de d. Rosália! Essas opiniões não tinham pé nem ca- beça. Marina valia o que tinha valido antes de engros- sar a barriga e procurar d. Albertina. As mesmas per nas bem feitas, os mesmos braços que mexiam as ro- seiras do quintal pobre, os mesmos cabelos que pare- ciam oxigenados, os mesmos olhos traquinas. Mas as pernas não se curvavam para mostrar as nádegas aper- tadas na saia estreita, os braços moviam-se vagarosa- mente, pesados, os cabelos amarelos caíam sobre a tes- ta enrugada, os olhos baixavam-se, cheios de culpa, des- viando-se dos outros olhos. Esta consciência de inferio- ridade era contagiosa. Marina tinha descido. Logo me revoltava. Absurdo.

– Como as outras, como as outras. Mais bonita que a maioria das outras.

Repetições inúteis. Não podia evitar a idéia de uma queda. De qualquer forma ela havia diminufdo e habi- tuava-se a esgueirar-se, a pedir desculpa a toda a gente.

Seria para o futuro um trapo como d. Adélia: – A senhora tem razão, d. Rosália. isso mesmo.

d. Rosália.

Os sapatos vermelhos com o verniz rachado e os saltos gastos, roupas ordinárias, as unhas estragadas, a voz esmorecendo numa cantilena de aprovação.

– Como as outras. Estúpido, absolutamente estú- pido.

183 Furores perdidos. Marina permaneceria de vists baixa, esconder-se-ia como um rato e falaria gemendo concordando com d. Rosália.

* * * Fuí até o fim da linha de bonde e parei, como se me tivesse faltado a corda de repente. Aquelas dua, extremidades de trilhos roubaram-me os movimentos e deram-me impressão desagradável. Esfreguei os olhos senti-me eansado. Até ali não havia experimentadc nenhum cansaço. Teria andado léguas se os trilho; avançassem para o interior, mover-me-ia regularmente como um bonde. Apenas não rre deteria diante do; postes cintados de branco. Nessas marchas comprida; a que me habituei – um, dois, um, dois – a fadiga adormece e quase não penso. Exatamente como se uma vontade estranha me dirigisse, um sargento invisíve: que se descuidasse do exercício e fosse pelo campo, em brutecido pela cadência – um, dois, um, dois – esque cido da voz de comando, pensando nos versos de ur Julião Tavares ou nos bilhetes de outra Marina. Andc meio adormecido. Se alguém me gritasse: – “A direita à esquerda”, volveria à direita, volveria à esquerda, sen procurar saber donde partia a ordem. Porque à direita’ Porque à esquerda? Poderia ser meia-volta. Mas nin guém fala, e vou para a frente, sem perceber que possc voltar, libertar-me da autoridade de um sargento invi sível e caminhar naturalmente, parando, observandc as casas e as pessoas. De repente os trilhos desapare cem e relaxa-se a corda do boneco. Está bem. Em quE ia pensando? A verdade é que estava com as pernas bambas Caminhada tão extensa! Mais de uma hora. O mesmc tempo para voltar – um, dois, um, dois – exatamentE o mesmo número de minutos gastos na vinda.

– Está bem.

Deviam ser duas horas da madrugada.

– Sem dúvida.

Julião Tavares não tardaria em deixar a casinh que se trepa no morro, junto a uma barreira vermelha 184 Seguiria pela rodagem? Pela estrada de ferro? Só vendo.

Esta necessidade de ver encolerizou-me: – Bestal Farejando imundícies como um cachorro.

Procurei um cigarro para acalmar-me. Não encon- trei ciga,rras. O .que achei foi a corda que seu Ivo me havia oferecidó. Desleixado. Conservar no bolso aquele traste e esquecer os cigarros! Olhei os quatro cantos.

Nenhuma bodega. Esperei a passagem de alguém que me desse um cigarro. Ninguém. Idiota! Que estava fa- zendo ali, pisando a ponta do trilho? Farejando imun- dícies como um cachorro, como um urubu. Que horas seriam? Duas, aproximadamente. Aguardei as pancadas de um relógfo. Com certeza Julia`.o Tavares tinha dei- xado a cama da mocinha sa,rdenta e recolhia-se, leve como um balão, saciado, fumando, a brasa do cigarro esmorecendo e avivando-se. O certo era que eu não podia ficar ali subordinado a um relógio duvidoso ou a um transeunte que talvez nã,o tivesse cigarros. Julião Ta- vares deixara a mocinha sardenta. Seria a mocinha sar denta a amante dele? Na casa havia outras mulheres.

Porque imaginei que havia de ser a mocinha sardenta? Uma garoa que se adensava ia toldando as luzes ca- piongas. Um, dois – impossfvel contar os postes de iluminaçãó, que a neblina ocultava. Senti frio. Enquan- to marchava, não tinha frio, nem cansaço, nem desejo de fumar. Agora a falta de cigarros me afligia. Levantei a gola, apertou-me a necessidade urgente de voltar.

Tinha certeza de que na, volta me apareceriam ciga.rros.

Virei-me, pus-me a caminhar desordenadamente. De quando em quando parava, as pernas bamba,s. Não ha- veria uma bodega, um transeunte? A marcha regular era impossível. Estava irritado como um bicho e levava a mão ao bolso, num gesto maquinal. Encontrava os anéis da corda. Provavelmente Julião Tavares ia de vol- ta, fumando. Que me importava Julião Tavares? A f?gu- ra de Cirilo de Engrácia passou-me diante dos olhos, mas desapareceu logo. Porque me achava àquela hora da noite em Bebedouro, andando à toa como uma bara- ta, parando, correndo? Soprava, enxugava o rosto com a manga. Cansado.

Quando me aproximava da casinha encostada ao monte, u vulto pulou na estra,da a alguns passos de 185 mim e ganhou os trilhos da reat Western. Adiantei-me para não perdê-lo de vista. A escuridão esbranquiçada feita pela neblina aumentava, escuridã.o pegajosa em que os postes espaçados abriam clareiras de luz escassa.

Passei o lenço no rosto molhado. Um suor frio, as ore lhas frias e insensíveis. Nem sabia se aquilo era suor ou orvalho caído dos ramos das árvores.

Uma hora antes caminhava com animação, mo- via-me executando ordens, tinha os membros amarra- dos a cordões. Agora podia desviar-me para um lado e para outro, avançar, recuar. Alargaria os passos, en- contraria Julião Tavares, pa,ssaria por ele, o chapéu em- bicado. Não me reconheceria na poeira de água. Um su- jeito que vinha de uma aventura noturna e tinha pres- sa de recolher-se. A mocinha ficara num fundo de quin- tal, em camisa, ao pé do morro. Julião Tavares estre- meceria. Um concorrente. Não presumiria que o con- corrente era um inimigo aperreado e cheio de veneno.

A necessida.de de fumar atrapalhava-me os movimentos.

Julião Tavares flutuava para a cidade, no ar denso e leitoso. Estaria longe ou perto? Aparecia vagamente nos pontos iluminados, em seguida o nevoeiro engolia-o, e eu tinha a impressão de que ele ia voar, sumir-se.

Um balão colorido em noite de Sâo João, boiando n céu escuro.

As meninas de Teotoninho Sabiá cantavam, à porta da nossa casa estalava uma grande fogueira que meu pai alimentava com tábuas de ca.ixões e aduelas, Ro- senda fazia adivinhações consultando uma bacia de água, na sala de seu Batista as moças brincavam de sortes, busca-pés estouravam na Rua da Cruz e no Ca valo-Morto. Debaixo de um mamoeiro de folhas tor- radas, Carcará assava milho verde na fogueira e largava risa.das enormes. Meu pai dizia: – “Hi! parece um papa-lagartas.” Eu não sabia que espécie de bicho era o papa-lagartas nem porque meu pai se lembrava dele ouvindo as gargalhadas de Carcará. Tudo tão simplest As moças desdobrando os papelinhos das sortes, Rosen- da estudando a bacia de água, Teresa e d. Maria can- tando para o balão cair. Apenas o estouro dos busca- pés e as risadas de Carcará me incomodavam. Teresa 186 era boa, chupava o dedo mindinho e chorava quando chegavam as redes e os homens amarrados de cordas.

Julião Tavares ia afastar-se, dissipar-se, wirar ne- blina. Apresséi-me, pus-me quase a correr. Bem. Conti- nuava invisível, mas as pisadas ouviam-se distinta- mente.

– Bem.

Dizia isto, e sentia que tudo ia mal, aporrinhava-me por estar perdendo tempo a acompa,nhar Julião Ta- vares. Afligia-me pensar que dentro em pouco ele en- traria na cidade e dormiria tranqüilo. Cirilo de Engrá- cia, morto, em pé, amarrado a uma árvore, coberto de cartucheiras e punhais, tinha os cabelos compridos e era medonho. Eu não poderia dormir. O caminho en- curtava-se. Mas então? Para que seguir o homem odio so que tinha tudo, mulheres, cigarros? Agora estáva- mos perto um do outro, mas a cidade se aproximava, e em breve estaríamos afastados, ele chupando um ci- garro, eu agüentando os roncos do marido de d. Ro- sália, que tinha chegado na véspera. Pelo resto da noite ouviria os gemidos e os roncos dos vizinhos. O cansaço deaaparecera. Desejaria caminhar léguas, até fatigar-me novamente e adormecer. Quantos metros faltariam para desembocarmos na Levada? Quantas horas faltariam para se abrirem os cafés e as bodegas? A idéia de que nos íamos separar me desesperava. Ali era como se ele dependesse de mim. Distinguiam-se perfeitamente os pasos; nas luzes que espirravam das travessas a figura surgia, escura e bojuda, com o chapéu desabado e a gola do paletó erguida. De repente senti uma piedade inexplicável, e qualquer coisa me esfriou mais as mãos.

Julião Tavares era fraco e andava desprevenido, como uma criança, naquele ermo, sob ramos de árvores dos quintais mudos. Uma hora, meia hora depois, passaria pelo guarda adormecido junto a um poste, seria forte, mas ali, debaixo das árvores, era um ser mesquinho e abandonado. Contraí as mãos frias e molhadas de suor, meti-as nos bolsos para aquecê-las. Para aquecê-las ou levado pelo hábito. A aspereza da corda aumen- tou-me a frieza das mãos e fez-me parar na estrada, mas a necessidade de fumar deu-me raiva e atirou-me para a frente. Entrei a caminhar depressa, receando 18? que Julião Tavares escapasse. Novamente os passos leves no chão coberto de folhas secas. Distinguia-se agora muito bem a sombra escura na garoa peganhenta.

A garoa me entrava no bolso e gelava os dedos, que esfregavam a corda. Porque andava com segurança o homem gordo? Olhos atentos procuravam enxergá-lo, dedos crispados moviam-se em direção a ele. – “Matos têm olhos, paredes têm ouvidos”, dizia Quitéria sentada na prensa do quintal. Pareceu-me que as árvores em redor estavam vivas e espiavam Julião Tavares, que os galhos iam enlaçar-lhe o pescoço. E ele andava sosse- gado como se ali houvesse guardas-civis.

Muitos anos antes os cabras de Cabo Preto ha- viam-se escondido na capueira para não assustar sinha Germana. Sinha Germana passara escanchada na sela de campo, e os cabras se amoitavam por detrás dos mandacarus e dos alastrados que vestiam mal a cam- pina. Os cangaceiros eram amigos de Trajano, sinha Germana esquipava no caminho iluminado pelo sol cru.

Nenhum ódio. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tinha umas reses que definhavam e entendia-se perfeitamente com os emissários de Cabo Preto.

O desejo de fumar levava-me ao desespero. O acesso de piedade sumiu-se, o ódio voltou. Se me acha,sse diante de Julião Tavares, à luz do dia, talvez o ódiu nâo fosse tão grande. Sentir-me-ia miúdo e perturbado, os músculos se relaxariam, a coluna, vertebral se incli- naria para a frente, ocupar-me-ia em meter nas calças a camisa entufada na barriga. Afastar-me-ia precipita- damente, como um bicho inferior. Agora tudo mudava.

Julião Tavares era uma sombra, sem olhos, sem boca, sem roupa, sombra que se dissipava na poeira de água.

A minha raiva crescia, raiva de cangaceiro emboscado.

Porque esta comparação? Será que os cangaceiros expe- rimentam a cólera que eu experimentava? José Bafa vinha contar-me histórias no copiar, can- tava mostrando os dentes tortos muito brancos. Era bom e ria sempre. Dava-me explicações a respeito de visagens, mencionava as orações mais fortes. Não me ensinou as orações, para não quebrar a virtude delas, mas ofereceu-me conselhos, que esqueci. Tão bom José Bafa! O clavinote dele tinha vários riscos na coronha.

188 Ninguém ialava alto a José Baía, ninguém lhe mos- trava cara feia. E ele ria, exibindo os dentes acavalar dos, e quando avistava o vfgário ou outro hóspede im- portante, a aba do chapéu de couro varria o pátio da fazenda. Não me seria possivel imaginar José Baía ata- cado de uma crise de ódio como a que me fazia pregar as unhas nas ‘palinas. Provavelmente ele ficava sosse- gado na capueira, tirando um trago do cigarro de palha, que apagava logo com saliva e guardava atrás da orelha, para a fumaça não denunciar a emboscada. O ouvido atento a qualquer rumor que viesse do caminho estreito, o joelho no ch.o, em cima do chapéu de couro, o olho na mira, a arma escorada a uma forquilha, com cer- teza não pensava, não sentia. Estava ali forçado pela necessidade. No dia seguinte faria com a faca de ponta novo risco na coronha do clavfnote e contaria no al- pendre histórias de onças.

– Que fim levou, José Baía? – Por aí, caminhando.

Nenhum remorso. Fora a necessidade. Nenhum pen- samento. O patrâo, que dera a ordem, devia ter lá as suas razões. As histórias do alpendre eram simples: as onças que armavam ciladas aos bodes não tinham ferocidade. José Baía, bom tipo. Quando passasse pela cruzinha de pau que ia apodrecer numa volta do cami- nho, rezaria um padre-nosso e uma ave-maria pelo de- funto. A fraqueza estirou-me os dedos e retardou-me a caminhada. Tive saudade de José Baia e das conver- sas infantis do copiar.

– José Bafa, meu irmão, onde estarás a esta hora? Terás morrido em tocaia ou mofarás numa cadeia no- jenta de grades pretas e gordurosas? Entraste um dia na vila, amarrado de cordas, negro de suor e poeira, cercado por uma tropa de cachimbos. Os teus olhos claros se arregalavam num espanto verdadeiro. Enve- lheceste e és outro, uma inutilidade feita pela justiça.

Os teus ouvidos e a tua vista se estragaram, as tuas mãos tremem, estás sério e esqueceste a criança a quem dizias as virtudes da oração da cabra preta.

Quanto tempo duraram as recordações e o enfra- quecunento? Um minuto, ou menos. Novamente as mãos se contrafram e as pernas se estiraram no caminho 189 extenso. Desejei que Julião Tavares fugisse e me livras- se daquele tormento. Se ele corresse pela estrada de- serta, estaria tudo acabado. Eu tentaria alcançá-lo.

Inutilmente. Pensei em gritar, avisá-lo de que havia perigo, mas o grito morreu-me na garganta. Não grito: habituei-me a falar baixinho na presença dos chefes.

Era preciso que alguma coisa prevenisse Julião Tavares e o afastasse dali. Ao mesmo tempo encolerizei-me por ele estar pejando o caminho, a desafiar-me. Então eu não era nada? Não bastavam as humilhações recebidas em público? No relógio oficial, nas ruas, nos cafés, vira- va-me as costas. Eu era um cachorro, um ninguém.

– “E-me conveniente escrever um artigo, seu Luís.” Eu escrevia. E pronto, nem muito obrigado. Um Julião Tavares me voltava as costas e me ignorava. Nas reda- ções, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infehz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela grandeza? Porque aquela segurança? Eu era um homem. Ali era um homem.

– Um homem, percebe? Um homem.

Julião Tavares não ouviu e continuou a andar tzan- qüilamente.

– Corre, peste.

Porque era que o miserável não corria, não se livrava dos meus instintos ruins? Estaria recordando as carícias da mocinha sardenta? – Isso não vale nada, Julfão Tavares. Marina, a mocinha sardenta, a datilógrafa dos olhos de gato, não valem nada. O que vale é a tua vida. Foge.

Julião Tavares parou e acendeu um cigarro. Porque parou naquele momento? Eu queria que ele se afastasse de mim. Pelo menos que seguisse o seu caminho sem ofender-me. Mas assim . . . Faltavam-me os cigarros, e aquela parada repentina, a luz do fósforo, a brasa esmo- recendo e avivando-se na escuridão, endoidecia-me. Fiz um esforço desesperado para readquirir sentimentos hu- manos : – José Bafa, meu irmão . . .

José Bafa não era meu irmã.o: era um estranho de cabelos brancos que apodrecia numa cadeia imunda, cumprindo sentença por homicfdio. – “Recebeu cópfa 190 do libelo?” José Bafa nâo soubera responder. Tinha re- cebido e não tinha. Que resposta devfa dar àquela per- gunta incompreensível? O presidente se contentaria se ele dissesse que sim? Ou seria melhor dizer que não? E José Baía balançava a cabeça, indeciso: tinha rece- bido e não tinha. Afinal que me importava José Bafa, estirado numa esteira por detrás das grades negras e pegajosas? Que me importavam as grades negras e pe- gajosas? Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silen- ciosos como os das onças de José Bafa, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto b absurdo, é incrfvel, mas realizou-se natúralmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Hou- ve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se.

Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pes- soas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificar- tes, todos os moradores da cidade eram figurinhas in- significantes. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço dá Pedra, a palmatória de mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava. Tanta em- páfia, tanta lorota, tanto adjetivo besta em discurso – e estava ali, amunhecando, vencido pelo próprio peso, esmorecendo, escorregando para o chão coberto de fo- Ihas secas, amortalhado na neblina. Ao ser alcançado pela corda, tivera um arranco de bicho brabo. Aquieta va-se, inclinava-se para a frente, os joelhos dobra vam-se, o corpo amolecia. Eu tinha os braços doídos e as mãos cortadas. Enquanto Julião Tavares estivesse com a cabeça erguida, a minha responsabilidade não seria tão grande como depois da queda. Quando bebia demais, seu Ivo tinha aquele jeito de arriar, não havfa 191 conversa que o levantasse. A lembrança de seu Ivo en- fureceu-me.

— Com os diabos! E larguei o corpo, que foi bater numa cerca, por baixo de uns galhos de árvore que aumentavam a escuridão.

– Com os diabos! Sentei-me ao pé da cerca, enxuguei o suor que me corria pela testa. Cansado. A mão direita doía-me horri- velmente, mas continuei a apertar com ela a corda que a circulava. A mão esquerda estava livre. Levei-a ao bolso à procura de cigarros, mas retirei-a logo. A figura de seu Ivo, bêbedo, encostado à parede, voltou. Que horas seriam? As estacas da cerca magoavam-me as costas. Páreceu-me inconveniente permanecer ali, mas não me veio a idéia de que houvesse perigo. Necessário continuar a marcha. Continuar a marcha, evidente- mente: Fiquei sentado e mudei de posição, porque as estacas da cerca me feriam os ombros. Como conduzir Julião Tavares, tão pesado? Não compreendi que devia deixá-lo apodrecendo nas folhas, debaixo da árvore. Pre- cisava transportá-lo, isto não me saía da cabeça. Trans- portá-lo, sem dúvida. Apesar de não. sentir medo, perce- bia que era urgente retirar-me. Agucei o ouvido. Apenas o zunzum dos mosquitos. A lagoa próxima fervilhava de carapanãs. Como estaria Julião Tavares? Procurei dis- tingui-lo, avancei a cabeça para o lugar onde supünha ter ele ficado. Um vulto quase imperceptível na escuri- dáo leitosa. O rosto encostado à terra, naturalmente.

Como estariam os olhos dele? Os de seu Evaristo, que vi de longe, esbugalhavam-se. E a boca se escancarava, mostrando a lingua escura e grossa. Provavelmente Ju- lião Tavares tinha também os olhos muito abertos e o queixo desgovernado.

– Mas que diabo estou fazendo aqui? Necessitava levantar-me, afastar-me depressa, entrar em casa, dormir. Aquela hora o marido de d. Rosália resfolegava, arranhava com a barba o couro a.marelo de d. Rosália. O marido de d. Rosália resfolegava como um bicho. E Julião Tavares parado. Minutos antes an- dava na maciota, o cigarro aceso, o pensamento na cama da mocinha sardenta. Agora ali junto da cerca, 192 estirado. Inconveniente ficar ao lado dele. Inconve- niente. As carapanãs zumbiam, voavam perto da minha cara, picavam-me as orelhas e as mãos escalavradas.

Inconveniente.

Matos têm olhos, paredes têm ouvidos.

Quitéria, Rosenda e a prensa velha vieram-me à memória. Olhei os arredores, tentei varar a escuridão.

Tudo invisível. A lagoa, povoada de carapanãs, inW – sível. Uma grande fraqueza abateu-me, suor abundante ensopou-me a camisa. Passei a mão na cara molhada, senti na pele a dureza da corda. Se viesse alguém? – Recebeu cópia do libelo? Os amigos de Julião Tavares iriam julgar-me. Pi- mentel e Moisés não eram jurados. Que diriam os jor- nais? De seu Evaristo não tinham dito nada, dos ho- mens que apareciam mortos nos caminhos não diziam nada. Mas agora falariam muito. Quem foi? Porque foi? Pimentel escreveria artigos horrfveis. Pus-me a discutir com Pimentel, gesticulei, uma das mãos bateu no corpo de Julião Tavares. Encolhi-me, o suor aumentou na fria- gem da noite.

José Baía, velho e manso, dormia na esteira de pipiri, por baixo das cortinas de pucumã. Seu Evaristo balançava, pendurado num galho de carrapateira. Seu Evaristo era tão magro, tão cheio de fome, que um galho de carrapateira podia sustentá-lo. Cirilo de En- grácia, morto, em pé, amarrado a uma árvore, parecla vivo. Os cabelos compridos, caídos para a frente, es- cureciam-lhe o rosto feroz. Só os nés estavam bem mortos, suspensos, os dedos para baixo. O frio aumen- tava, comecei a bater os queixos como um caititu. Se alóuém surgisse na estrada, eu não teria coragem de fugir. Haveria pessoas ali perto? Julguei perceber mn ruído esquisito, mas provavelmente era apenas o eco das pancadas dos meus dentes, que não descansavam. Tive a impressão de que os meus dentes estavam longe, fa- zendo um barulho que se misturava ao zumbido irri- tante das carapanãs. Apertei os queixos, mas as casta- nholas permaneceram, e veio-me a certeza de que ms havia tornado velho e impotente.

– Inútil, tudo inútil.

193 Mordi a manga do paletb. Os dentes continuavam a entrechocar-se, mas produziam um som abafado. Mas- tiguei o pano, desejei recolher-me. Beberia um copo de cachaça, os dentes se calariam. Os relógfos da vizinhan- ça não me deixariam dormir. Certamente Julião Tava- res devia ficar ali deitado. Pensei em ocultá-lo, en- terrá-lo debaixo de uma camada de folhas. A idéia absurda de levá-lo comigo para a cidade tinha desapa- recido. Bem. Pus-me a afastar as folhas e a cavar a terra com as unhas. A tentativa de fazer com os dedos uma cova para enterrar um homem era tão dispara- tada que me levantei, receoso de tornar-me idiota. Como estaria a cara de Julião Tavares? A figura que me veio ao espírito foi a de Cirilo de Engrácia, terrível, amar- rado a um tronco, os cabelos compridos ensombrando o rosto, os pés suspensos, mortos. Pensei também em seu Evaristo, curvado sob a carrapateira, como se pre- parasse um salto. Recuei precipitadamente e bati com os ombros na cerca. Julião Tavares podia ficar assim, pendurado a um galho, como um suicida. Acreditariam que ele fosse um suicida? Acreditariam. Não acredita- riam. Os jornais fariam escândalo, publicariam o retra- to da mocinha sardenta. Um rapaz desvairado, perfeita- mente, rapaz desvairado. Desembaracef a mão direita e numa das extremidads da corda fiz um laço. Vi- nha-me afinal uma resolução. Entrei a mexer-me, com medo de perdê-la. Se os pensamentos se sumissem? Se voltasse aquele marasmo? – Tudo inútil.

Os dentes já não batiam. Curvei-me, procurando a cabeça de Julião Tavares. Encontrei o chapéu caído, um braço, que soltei arrepiado porque nunca havfa tocado em cadáveres. A idéia de que Julião Tavares era um cadáver estarreceu-me. Não tinha pensado nisto.

Horrfvel o corpo imóvel, esfriando. Lá estava a cabeça anda morna. Enjoado, cuspindo muitas vezes, erguia-a, passei o laço no pescoço. Prendi nos dentes a outra ponta da corda, subi à cerca, trepei-me num galho da árvore. E comecei o trabalho de guindar o morto. A mão direita puxava a corda, que se movia lenta por cima do ramo; do outro lado a mão esquerda agüentava o peso do corpo. Moço desvairado. Duas tarjas grossas, 194 uma no princfpio, outra no fim da página. Qualidades, Julião Tavares tinha muitas qualidades. A literatura delA reproduzida nas folhas, em tipo graúdo. Comen- tários. Porque foi? Como foi? Enterro complicado, au- tomóveis, todos os automóveis da praça, bondes espe- ciais. O discurso no cemitério, discurso empolado. E o túmulo com uma coluna partida. Muitos túmulos com colunas partidas. Colunas de mármore, colunas de cimento. Moço desvairado. Todos os mortos importa,n- tes eram colunas partidas. Julião Tavares era uma co- luna de mármore, partida. O capitel no chão, esverdi- nhando-se.

O corpo subia. No princípio o esforço não era gran- de demais. A cada movimento passavam no galho algu- mas polegadas da corda. Mas quando a massa obesa se elevou, as dificuldades foram enormes para correrem uns centímetros.

– Mais um pouco, mais um pouco.

Estas palavras não me deixavam. O corpo devia estar todo erguido, e os meus ossos estalavam. O galho curvava-se. Ia quebrar-se, atirar-nos ao chão. Tudo per dido. A polícia, a cadeia. Denunciar-me-ia no primeiro interrogatório. Segurei-me à corda, com o intuito de amarrá-la. Desceria. Livre do meu peso, o galho se ele- varia, os pés de Julião ficariam suspensos como os de Cirilo de Engrácia.

– Bem.

Apareceram vozes na estrada. Vozes? Ou seria que eu estava tresvariando? Alucinação. Não queria acredi- tar que pessoas normais se avizinhassem de mim sosse- gadamente. Agarrava-me com desesnero à corda.

– Trinta anos de prisão, trinta anos de prisão.

As grades que a gente não pode tocar, tão nojentas são elas, as esteiras, as cortinas de pucumã, os muros grossos, fome, sede, caldo de bacalhau, e nesta miséria José Baía fabricando piteiras, pentes de tartaruga, objetos miúdos de casca de coco.

– Vão-se embora. Vâo-se embora. Não venham, que se desgraçam. Um homem perdido não respeita nada.

O homem perdido ofegava apavorado. As vozes cada vez mais distintas, grossas, finas. Machos e fêmeas. Cer- tamente iam para a farra. Mentira. tudo mentira. Eu 195 não tinha trinta e cinco anos: tinha dez e estudava a lição dificil na sala de nossa. casa na vila. A sala enchia se de ruxnores estranhos que vinham de fora e saíam das paredes. Provavelmente eram os sapos do açude da Penha. Não eram sapos: eram homens e mu- lheres que se aproximavam. As palavras tornaram-se claras. Alguém dizia: – Deixa de luxo, minha filha. Será o que Deus quiser.

Não me lembro de outra frase. Risos, falas trun- cadas. O grupo foi-se chegando, passou por baixo da árvore. Uma pessoa bateu em Julião Tavares e res- mungou : – “Desculpe.” A corda resvalou, recuou uns dez centímetros, com certeza Julião Tavares curvou-se um pouco na escuridão. Eú repetia baixinho: – Será o que Deus quiser.

Os meus dedos se imobilizavam, feridos, a corda molhada de suor ameaçava correr sobre o galho, em- borcar no chão úmido o corpo de Julião Tavares. Não o poderia levantar outra vez, a policia encontrá-lo-ia deitado nas folhas e iria farejar-me.

– Trinta anos de prisão. Trinta anos de prisão.

O riso de uma das mulheres que tinham passado sob a árvore estalou a alguns metros de distância. Es- taria mangando de mim? llãangando dos esforços que eu fazia para recuperar os dez centimetros de corda? Sentia que ia fraquejar, que a corda continuaria a es- corregar na madeira. Julião Tavares, inclinado para a irente, balançava. Seu Ivo andava assim, zambeta, ba- lançando, os olhos vidrados, sem ver ninguém. Outras gargalhadas, longe. Seria a mulher que tinha rido? Ou viriam outras pessoas falar debaixo da árvore, bater no ombro de Julião Tavares, pedir-lhe desculpa? Não havia perigo, não havia perigo, entrei a repetir baixinho que não havia perigo. Estava em segurança, escondido na folhagem, enrolado no nevoeiro. Podiam passar, parar, tocar em Julião Tavares, que se afastaria duro como uma marionete pesada demais.

– Não há perigo, nenhum perlgo.

Não havia outra coisa. E pareceu-me falta de senso comum alguém rir naquele lugar amaldiçoado. Porque amaldiçoado? Tanta import9ncia! Eu e Julião Tavares 196 Í éramos umas excrescências miseráveis. As risadas zom- beteiras extinguiam-se, distantes.

; – Lufs da Silva, Julião Tavares, isso não vale nada.

8ujeitos úteis morrem de morte violenta ou acabam-se nas prisões. Não faz mal que vocês desapareçam. Pro- priamente, vocês nunca viveram.

Ia adormecer entre as folhas, com os braços esti- rados, afastando-me da árvore para fazer contrapeso ao ; corpo de Julião Tavares. Apoia,va-me à curva da perna direita, presa ao galho. De quando em quando soltava a corda e ia pegá-la mais abaixo. A mão esquerda agüentava o peso, os dedos estavam a ponto de que- brar-se. Julião Tavares teria subido, ou a corda mergu- lhara no pescoço balofo? Qualquer movimento à-toa me faria perder o equilibrio. Abria os olhos desmedidar mente, mas tinha medo de virar a cabeça para ver o ‘ o corpo que se alongava e emagrecia.

– Sobe, Julfão Tavares. Para que serve essa resis- tência atrasada? Uma lentidão de lesma. Subitamente notei que o corpo subia e balançava. Passei rápido a corda pelo galho. Outra volta, outras voltas, um nó que me levou o resto da energia, e fiquei ali arquejando, desmanchan- do-me em suor. Desejaria achatar-me, confundir-me com as coisas moles e úmidas que os meus dedos tinham esmagado sobre a casca da árvore. Agora os dedos se- guravam mal aquele suporte incômodo e oscilante. Enor me preguiça e enorme sono prendiam-me ao galho. Creio que dormi uns munutos. Seria bom cair: talvez a queda sa,cudisse o torpor e me restituísse a vontade necessá- ria para entrar em casa e embriagar-me. Embriagar-me, naturalmente. Teria dormido? Meus parentes sertanejos dormiam montados, viajavam assim. Equilibrava-me não sei como. – “Currupaco, papaco. A mulher do ma- caco . . . ” Vitória sonhava com as moedas escondidas em qualquer parte, depois que os canteiros tinham sido descobertos. Como me seria possfvel alcançar outm ramo? Pa,ssando a outro ramo, estaria em segurança.

8e pudesse retirar-me dali . . . Tive a idéia extravagan- te de chegar à cidade andando sobre as árvores.

– Em segurança, em segurança.

197 Evidentemente era preciso descer, mas isto me apa- vorava. Iá embaixo numerosos inimigos iam perse- guir-me. Necessário descer. Soltar-me-ia, tombaria como um macaco ferido. Os dedos inteiriçavam-se. Escanca- rei os olhos. O que vi foi o corpo de Julião Tavares deformado pela escuridão. Balancei a cabeça, enco- lhi-me com um arrepio, o receio de na queda tocar o corpo de Julião Tavares. Não caí. Escorreguei na ma- deira molhada, abracei-me a ela. Uma pancada no joe- lho, as pernas estrepando-se na cercã de pau-a-pique, um rasgão nas calças. Dei um salto para trás e caí sentado nas folhas secas. A idéia do perigo assaltou-me com tanta intensidade que me pus a soluçar. Tentei levantar-me, as pernas vergaram. Arrastei-me chorando, apalpando o chão, a procurar qualquer coisa. Procura- va o chapéu, caido na luta, mas não sabia o que pro curava. As carapanãs esvoaçavam-me em torno da ca- beça e picavam-me a carne moida. Encontrei um cha- péu, que não dava para mim, era pequeno demais. Atirei para longe, cheio de repugnã.ncia, o chapéu de Julião Tavares. Continuei a engatinhar, já agora sabendo per- feitamente que procurava o meu chapéu. Achei-o, ma,s ftcou-me a dúvida de que fosse o mesmo experimentado minutos antes. Não se acomodava bem na minha ca- beça. Rastejei ao longo da cerca. Alguns metros que me afastasse representavam uma conquista. Estava aborrecido com Moisés. Que me havia feito Moisés? Não me lembrava de nada, mas era certo que o judeu me pregara uma peça. Pareceu-me que ele rondava por ali, mangando de mim. Rastejando como as cobras! Nova tentativa e consegui levantar-me, lá fui caminhan- do lentamente, amparado à cerca. Faltou-me de repen- te o amparo, andei como uma criança que ensaia os primeiros passos. Se pudesse correr… Evidentemente o perigo crescia. Quantos metros teria percorrido? Es- tava certo de que homens e mulheres me acompanha- vam. Tinham passado por baixo da árvore, visto o ho- mem enforcado, iam encontrar-me e denunciar-me.

A gargalhada e a frase da mulher ufnazavam-me.

– Será o que Deus quiser, sem dúvida.

Um, dois, um, dois. Inútil. Não podia marchar. Um aleijado, um velho. Mais cem metros, e talvez fosse ir até a salvação. Horrivel atravessar os espaços iluminados.

Se alguém desembocasse de uma travessa e me reco- nhecesse? Desejava olhar para trás. Impossfvel. Conse- gui reunir uns restos de força e correr. Uma carreira bamba e trôpega, a boca aberta, contrações na carne enregelada. Corria e chorava, certo de que o esforço era perdido, porque o meu chapéu tinha ficado à beira do caminho, sobre as moitas. No dia seguinte passa- ria de mão em mâo e chegaria à minha cabeça.

– Trinta anos de cadeia.

Que utilidade tinha aquela carreira desengonçada e trêmula? Se me vissem correndo e chorando ali nos fundos dos quintais? Precisava pa,rar, mas as pernas, levadas pelo medo, não quiserarrt obedecer. Insuportá- veis os zumbidos e as ferroadas das carapanãs. Um chapéu muito pequeno. Dei um tropeção e estaquei.

Para que lado me dirigia? Ia para a cidade ou voltava para Beredouro? Inteiramente desorientado. Teria de passar outra vez pela árvore onde Julião Tavares se balançava? Vagar a noite inteira, como um judeu er- rante! Continuei a andar. Bem. Se me encaminhasse a Bebedouro, voltaria pela rodagem, entraria em casa antes do amanhecer. Apareceram luzes, as carolinas que enfeitam o canal, os eucaliptos da Levada. Avancei len- tamente até o bueiro, sentei-me. Estava ali um vagabun- do, que acordou com a minha chegada. Eu ia perse- guido por criaturas inexistentes, mas a presença da- quele vagabundo não me produziu medo.

– Boa noite.

A voz saiu-me abafada e incerta. Julião Tavares estava longe. Sacudi a cabeça para esquecê-lo e para afugentar as carapanãs. Exausto. Descansaria, entraria em casa dentro de alguns minutos, beberia aguardente, dormiria. A garrafa tinha ficado quase cheia. Embria- gar-me, dormir. Tentei cruzar as mãos sobre os joelhos mas os dedos feridos endureciam e qualquer contato era extremamente doloroso. Sem nenhum receio, dava as costas ao maloqueiro, escondia a cara instintiva- mente. As mãos grossas esquecidas nos joelhos pesavam em demasia. Levei-as aos bolsos, senti a ausência dos cigarros e a ausência da corda.

– Faz favor de me dar um cigarro? 200 O homem remexeu-se : – Hum! – Há muitas horas que não fumo. Para quem tem vicio . . . Desculpe. E a peste do cigarro que me faz falta. O senhor terá um por acaso? Olhei-o com um olho por cima do ombro, vi-o levantar a cabeça e bulir nos molambos.

– Realmente. .. E isso mesmo. Eu estava dor- mindo.

Depois de uma busca. derrorada, grunhiu: – Ah! Tome lá.

Estirei a mão ensangüentada e recebi o cigarro de fumo picado que se desmanchaoa: – Muito obrigado.

Encontrei a caixa dA fósforos, comecei a fumar.

A cabeça pesada parecia ter creseido. Tlrei o chapéu, examinei-o. Tive um susptro de alfvio: era o meu, todo machucado e sujo de lama. Pus-me a esfregá-lo com a aba do paletó.

– Muito obrigado. Sinto muito dar-lhe incômodo.

– Hem? Esta exclamação mostrou-me que o homem havia percebido em mim um animal diferente dele. As luzes da Nordeste cochilavam. Olhei a minha mupa. Estava imunda, com um rasgão no joelho, desarranjado. Mas usava palavras de gente bem vestida. – “8into muito dar-lhe incômodo.” Para que tapeação? Queria fuma,r.

Bem. Voltariam as forças.

– Dorme aqui sempre? O homem virou-se e enrolou-se mais nos molambos.

Arrependi-me de ter feito a pergunta. Horriveis aqueles modos. Devia muito ao vagabundo. Chegaria a casa fa- cilmente, beberia, dormiria,, esqueceria, Julião Tavares.

– Não tive intenção de ofendê-lo. Foi uma pala- vra à-toa. O senhor me desculpa. Fazia horas que não iumava. Um grande favor, entende? Muito obrigado.

As minhas frases eram convencionais e não valiam o cigarro que se apagava a cada instante.

– estava dormindo, respondeu o maloqueiro.

Não tem de quê. Foi incômodo não. Boa noite.

801 Remoeu umas coisas guturais e começou a roncar.

Impossível qualquer aproxim.ação. O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a so- lidão completa. Parecia-me que aquele homem estava morto. Esta idéia afligiu-me tanto que desejei sacudi-lo, conversar com ele, explicar-me, convencê-lo de que es- tava agradecido.

– Diabo! murmurei. Eu também fui vagabundo, dormi nos bancos dos jardins e curti fome, mas nunca fui assim grosseiro.

Esqueci o benefício recebido, e novamente me sur- giu a idéia de que o homem estava morto. Levantei-me, entr ei na Rua do Apolo. O rasgão mostrava-me a ca- beça do joelho, o colarinho tinha-se desprendido da camisa, a roupa estava preta de limo e terra, as mãos estavam pretas de limo, terra e sangue. Se alguém me visse em semelhante desordem… O cigarro de fumo picado findava, a ponta colava-se aos beiços e quef- mava-os. Precisava entrar em casa. Aproximava-me, e não tinha certeza disto. As distâncias desapareciam.

O galho que sustentava Julião Tavares balançava por cima do bueiro, e Julião Tavares confundfa-se com o homem qu me havia oferecido o cfgarro. Um, dois, um, dois. Agora podia marchar. Com algumas pernadas es- taria em casa, mas a casa se afastava sempre. Veio-me um desânimo extraordinário. Quase a chegar, depois de esforços imensos, ia ser descoberto e agarrado. Um transeunte notaria o desarranjo da roupa, a gravata fora do lugar, o rasgão no joelho.

– Onde passou a noite de tal dia? – Em casa, na redação.

Perceberfam logo a mentira. Em seguida viriam perguntas insignificantes em tom mfsterioso, e eu me cansaria fnutilmente para desviar-me delas. Quando estivesse distrafdo, jogariam de novo a cofsa perversa: – Mas onde foi que o senhor passou a noite de tal dia? A testemunha, que me havfa encontrado com um tasgão no joelho e o colarinho desabotoado, arruma- ria o seu depoimento de cabeça bafxa, em poucas pala- vras para não cafr em contradição. Quem seria o advo- 202 gado? o dr. Fulano, o dr. Sicrano… Esses falavam de papo e tinham recursos para inutilizar o depoimento: – Que horas eram quando o senhor viu o acusado?

– Três horas.

Quinze minutos depois a mesma pergunta.

– Quatro horas.

O escrivão registraria as duas respostas, a teste- munha atordoada não se lembraria de dizer que era impossfvel saber a hora exata em que via passar uma pessoa na rua, o dr. Ftxlano ou o dr. Sicrano exploraria a atrapalhação do homem – e a defesa levantaria a cabeça. Apenas eu não podia contratar os serviços de um dos advogados hábeis, contentar-me-ia com um ba- charel novo, gratuito e desastrado. A acusação ficaria de pé, o interrogatório rolaria uma eternidade na má- quina de escrever. Coisas simples, malfcia nenhuma.

Quando eu menos esperasse, surgiria a intenção ruim – e dai em diante todas as perguntas s°riam como cobras enrodilhadas que se preparavam para armar o bote. Um, dois, um, dois. Não apareceria aquela casa amaldiçoada? As luzes da Nordeste subfam e desciam.

Olhei os quatro cantos numa ansiedade, certo de que a testemunha ia de repente dobrar a esquina e avari- çar na rua. Viria com passo firme, de cabeça baixa.

Quando passasse por mim, levantaria os olhos – e estaria tudo perdido. Para que entâ.o aquele desespero, aquela agonia? – Será o que Deus quiser. O que tem de ser tem muita força.

Era melhor voltar. Tive a idéia absurda de voltar, sentar-me outra vez no bueiro, conversar com o va- gabundo, pedir-lhe outro cigarro. E depois seguir em frente, sempre em frente, parar debaixo da árvore que sustentava Julião Tavares. Quando a polícia chegasse, eu contaria tudo: – Não me matem de fome nem me dêem água de bacalhau. Eu me explico. Foi assim.

Ninuém teria interesse em descobrir incongruên- cias nas minhas palavras. Voltar, esperar tranqüila- mente as grades úmidas e pegajosas. Embrutecer-me-ia por detrás delas, tornar-me-ia criança, ouviria as his- tórias ingênuas de algum José Bafa, que me diria as 203 virtudes da oração da cabra preta. Teriam encontrado Juliáo Tavares esticado no caminho escuro? Estariam metendo uma colher na boca de Julião Tavares? No sertão introduzem uma colher de prata na. boca do homem assassinado – e o criminoso que não sabe ora- ções fica preso: desorienta-se e acaba voltando para junto da vftima. Outros homens e outras mulheres ti- nham passado por baixo do galho, cortado a corda, levado Juhão Tavares para uma casa da travessa mais próxima. Estava lá o cadáver emborcado, com uma co- iher de prata na boca. E eu regressaria, com medo da testemunha, que ia aparecer na esquina. Tudo se sumiu de chofre. A chave rangendo na fechadura, como todos os dias, devagar para não acordar Vitória, o ferrolho corrido por dentro, passos abafados no corredor. Che- guei à sala de jantar às apalpadelas, abri o comutador e fiquei ao pé da mesa, piscando os olhos à luz. Tive um arrepio, os cabelos se levantaram, sentf uma dor agüda no couro cabeludo. Tirei o chapéu e pus-me a escová-lo com a manga. Era o meu, sem dúvida. Voltei à sala e fui pendurá-lo ao cabide. Puxei a corrente da lâmpada, olhei-me ao espelho. Diferente, magro, velho, as pálpebras empapuçadas, rugas, terra seca na barba crescida.

– Peste! Andef rolando pelo chão como um porco.

Os olhos, ordinariamente embaciados, tinham um pequeno brilho duro. Apaguei a luz e dirigi-me nora mente à sala de jantar. Lembrei-me da garrafa de aguardente, mas quando fa pegá-la, senti a necessidads de lavar as mãos. Estava imundo e receava contaminar os objetos. Tomei um pedaço de papel, segurei com ele o ferrolho e abri a porta do quintal. Fui ao ba- nheiro, meti as mãos no balde de água e lavei-as, muito lentamente porque as feridas começavam a doer em demasia. Deitei fora a água, mergulhei o balde no tanque e recomecei a lavagem. Enxuguei as mãos nos cabelos, voltei para a sala de jantar, bebi um pouco de aguardente. A garrafa estava quase cheia. Bebi outro gole, mas o meu desejo era tornar ao banheiro. Os cabelos estavam sujos e tinham sujado as mãos. Lem- brei-me de ter posto na cabeça o chapéu de Julião Tavares. Lembrança intolerável. Fui ao quarto, descal- 204 Este livro foi digitalizado por Paulo Sérgio Resende de Almeida, com a intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma manifestação do pensamento humano..

cei-me, despi-me às escuras, deixei a roupa e os sapa- tos numa trouxa a um canto, aga.rrei a toalha e voltei, nu, meio atordoado pelo álcool. Achei na borda do tan- que um pedaço de sabão ordinário e esfreguei cuida- dosamente as mãos e os cabelos. O corpo todo estava sujo, mas o que mais me preocupava eram os cabelos e as mãos. O banho durou uma eternidade. Que hora,s seriam? Não me viera a idéia de olhar a parede da sala de jantar. A cabeça começou a pesar-me. Bem.

Ia dormir como um porco. Certamente . . . Dormir como um porco. Banhava-me devagar, para não fazer ba- rulho. Se os vizinhos ouvissem as pa.ncadas de água no cimento? Uma culpa grave. Se fosse descoberto, infelicidades me chegãriam. Todos os gestos eram culpas graves. Pisava como um gato. Talvez no ba- nheiro próximo estivessem pessoas esconddas. Que hora3 seriam? A cabeça pesava. Certamente… Sim, certamen- te era preciso dormir, ajudar a noite que não queria acabar. Tinha topado num buraco enorme, ia caindo nele, mas conseguira escapar agarrando-me às estaca.i de uma cerca e metendo as mãos na terra fofa. Esfre- gava os dedos. Para lá daquele buraco escuro havia um nevoeiro. Marina, d. Adélia, seu Ramalho, Julião Tavares, tudo era nevoeiro. Enrolei-m° na toalha e vol- tei à sala de jantar. Em cima do guarda-comidas en- contrei cigarros e fósforos. Bem. Agora estava limpo.

Acendi um cigarro e bebi mais aguardente. Queria em- bebedar-me e dormir, mas tive a idéia de que só pode- ria dormir sentado, encostado à parede. A cama estava suja, tinham-se espojado nela criaturas que se agatar nhavam com raiva, babando, uivando. Três pancadas.

Olhei a parede, mas não consegui distinguir as letraa e os ponteiros. Aproximei-me, estirei o pescoço para o mostrador, fiquei nas pontas dos pés. Pensei em Cirilo de Engrácia e recuei até a mesa sem ver as horas. Com os diabos! Tinha ouvido distintamente três pancadas.

Enchi o copo e continuei a beber. Aproximei-me nova- mente da parede: uma neblina diante do mostrador.

Felizmente agora estava fumando, quase tranqüilo.

Teria ouvido as três pancadas? Então aquilo tinha acontecido de meia-noite a três horasl A marcha ao longo da linha de bonde, a volta, a necessidade de 205 tumar, a escurídão cheia de zunzum das carapanãs, aquela coisa terrível – tudo de meia-noíte a três horas.

Sentei-me, deitei fora o cigarro apagado, acendi outro e pus-me a esgaravatar as unhas com o fósforo. As unhas dofdas iam-se entorpecendo. Olhei-as, mas entre os olhos e as mãos havia um nevoeiro que engrossava.

As paredes tornaram-se inconsistentes. Fechei os olhos, encostei a cabeça à mesa, remexi os dedos com o fós- foro queimado. Um rumor enchia-me os ouvidos, burbu- rinho que ia crescendo e me dava a impressão de que a casa, a cidade, tudo, caía lentamente. As paredes se desmoronavam como pastas de algodão. E no ruído con- fuso surgiam sons que me arrastavam à realidade: o tique-taque do relógio, o apito do guarda-civil, o can- to de um galo, um miar de gato no telhado. Essas notas familiares me exasperavam. Queria deixar-me em- balar pelo rumor abafado e dormir. Impossível. Os dedos agitavam-se despedaçando o fósforo. Levantei a cabeça, arregalei os olhos e novamente cheguei a eles os dedos, que desapareciam no nevoeiro. Ergui-me, dei uns passos cambaleantes. O burburinho morreu: o que se oüvia era a respiração de Vitória. Fechei os olhos com força, tornei a abrí-los. O nevoeiro adelgaçou-se: as mâos esfoladas e grossas, terra nas unhas. Tomei outro fósforo e recomeci a limpá-las. Em seguida fui ao banheiro lavá-las, livrá-las daquela porcaria. Voltei desanmado, enxuguei as pontas dos dedos tempo sem fim. Provavelmente não conseguiria dormir. Um, dois, um, dois. Eram as pancadas do nêndulo, mas eu pen- sava em marchas. Olhei a porta aberta. Vi apenas um buraco escuro, mas era como se visse a luz do farol espalhando-se sobre a folhagem da mangueira. Estre- meci. Os galhos iluminados de vermelho, de branco. Que loucura ter deixado aquela porta aberta! Se alguém, oculto entre as folhas, me espiasse? Fechei a porta. Es tava em segurança. Tentei encaminhar o pensamento para coisas simples e ordinárias, mas estas coisas fu- giam, truncavam-se. Em segurança. Quantos dias falta- vam para receber o ordenado? Precisava dar uns dI- nheiros a Moisés. Pimentel tinha-me pedido um artigo sobre . . . Sobre quê? Lobisomem agora trazia sapatos novos. D. Rosália e o marido estariam dormindo? Tão 206 tarde… O marido de d. Rosália chegara do interior.

Dar uns cobres a Moisés sem dúvida, quando recebesse 0 ordenado. Um artigo para Pimentel. Os sapatos de Lobisomem. O marido de d. Rosália com certeza estava cansado e dormia. Eu também estava cansado, mas não podia dormir. Enxugava as mãos entorpecidas, lenta- mente, e quase não sentia as escoriações. Dei uns passos, estaquei. Que ia fazer? Avancei até o corredor. Uma fe- licidade não pensar, andar assim trôpego como um papagaio. Fui fechar a porta da cozinha, devagar para não acordar Currupaco, que dormia com a cabeça de- baixo da asa. De repente estranhei achar-me ali em pé, nu, com a toalha no ombro, enxugando os dedos.

Dormir, acabar aquela noite imensa. Bebi o resto da aguardente. O estômago contraiu-se, embrulhado, o pes- coço entortou-se, a boca encheu-se de saliva. Senti que ia vomitar, encostei-me à mesa para não cair. Fechei os olhos – e o burburinho recomeçou. Pancadas na porta da frente. Abri os olhos numa agonia. O suor corria-me pela cara, ensopava a toalha, não havia jeito de es- tancá-lo. Teriam realmente batido na porta? Ia arras- tar-me, bambeando, pé aqui, pé acolá, até o quarto, vestiria o pijama aos tombos, engulhando, arrotando.

Quem seria? – Estava lendo, fumando, bebendo. Falta de sono.

É costume velho, entende? Não sei nada. Estou aqui há muitas horas assim.

Poderia falar? Quem teria batido? Só se ouviam os roncos de Vitória, o tique-taque do relógio e o chiar dos ratos. O estômago embrulhava-se, o suor corria, a boca era pequena para conter a saliva. Quem estaria lá fora, na calçada? O relógio bateu meia hora e depois quatro. Não me lembro de ter feito nenhum movimento na derradeira meia hora, mas quando veio a primeira pancada eu estava de pé, quando soaram as quatro estava sentado, o queixo encosta.do à mesa. Levantei-me, dirigi-me ao quarto, firmando-me às paredes, tombei na cama, pesado, como um morto.

* * * 207 – Ó Vitória, faça o favor de ir aZf à esquina, ouviu? Telefone à repartição, diga que não vou ao serviço hoje.

Estou doente.

Quando ela saiu, deitef no saco a roupa branca que tinha vestido na véspera. Em seguida escondi o paletó e a calça rasgada debaixo do colchão.

Se dessem busca na casa? Fi remexer o saco, ver se na roupa branca havia sinais que me pudessem comprometer. O paletó e a calça não estavam bem escondidos. Pensei em queimá-los, enterrá-los. Levan tef o colchão, tirei-os. Sujos de lama. Não podiam ficar ali. Se fossem descobertos? Atirei-os para trás da mala, apanhei do chão a gravata e iui para a sala de jantar.

– Telefonou, Vitória,? – Telefonei.

– Muito obrigado. E que estou com febre, morrf nhento. Que há de novo? – Um senador que chegou do Rio.

– Está bem.

Bebi uma xicara de café, procurei uma tesouri- nha e pus-me a cortar as unhas, que ainda tinham terra. Estava com febre e aturdido pela cachaça.

– Ó Vitória, se não estiver muito ocupada, leve a roupa à lavadeira, ouviu? Preciso camisas.

Vitória afastou-se e daf a pouco saiu com uma trouxa de roupa suja. A porta da frente abriu-se e fechou-se. Acabei de cortar as unhas arroxeadas. As mãos engrossavam e deformavam-se, a direita com uma esfoladura na palma, a esquerda cheia de fibras de madefra, que extraí com a ponta da tesoura. A gravata estava enrolada, como uma corda, exatamen- te igual a todas as gravatas que tenho tido, mas sen- tf a necessidade de destruf-la. Cortei-a em pedacf- nhos, que desfiei, juntando os fios em cima da coxa.

Vitória, arrastando os pés, ficaria muito tempo na rua. Dediquei-me nervosamente a desfiar os pedaços da gravata. Tossia e limpava os olhos, que lacrime javam. Uma felicidade estar com febre. Os rumores externos eram os mesmos de todos os dias. D. Rosá lia despropositava com Antônia, d. Adélia cantava no banheiro, o trem passava apitando, automóveis e 208 bondes rolavam longe. Desejei ver seu Ivo, pensei em oferecer qualquer coisa a seu Ivo. Isto me aliviaria.

As alfaces no canteiro amarelavam. O homem triste enchia dornas. A mulher magra agitava garrafas e sacolejava-se como se tocasse ganzá. Nenhuma nov.’- dade. Moisés e Pimentel me seriam desagradáveis na- quele momento, mas a companhia de seu Ivo me daria prazer. Subitamente imaginei que o homem tris- te e a mulher magra me espionavam. Afastei a cadei- ra para não ver o homem que enche dornas e a mu- lher que lava garrafas, continuei a tarefa. Quando a terminasse, ficaria tranqüilo. Cortaria depois a calça e o paletó em pedacinhos que seriam desfiados. Fica- ria inteiramente tranqüilo. Nenhuma novidade. Ape- nas a viagem de um senador desconhecido. Tranqüi- lo. Deitar-me-ia, descansasia. De minuto a minuto suspendia o trabalho para enxugar os olhos, e a umi dade que havia no lenço era quente demais. Respira- va com dificuldade, o corpo se derreava na cadeira, bocejos enormes. Compreendia que o exercício a que me entregava era inútil, perigoso talvez. Se alguém entrasse de repente e me visse desfiando pedaços de pano? Mas continuava a desfiá-los à pressa, e escon- dia o molho de fios entre as pernas. Vitória não che- gava. Com certeza a comida ia esturrar. Que estur- rase. Podre de rica, Vitória: prata, libras esterlinas.

Tentei pensar nas moedas. Impossível. Não acabaria a destruição da gravata? Sentia um medo horrível e ao mesmõ tempo desejava que um grito me anuncias- se qualquer acontecimento extraordinário. Aquele si- lêncio, aqueles rumores comuns, espantavam-me. Se- ria tudo ilusão? Findei a tarefa, ergui-me, desci os degraus e fui espalhar no quintal os fios da gravata.

Seria tudo ilusão? Voltei, atravessei o corredor, cha- guei à sala, olhei a rua pelas tabuinhas da rótula. Urr.a das filhas de Lobisomem mostrou a cabeça arrepiada.

Antônia passou com o filho mais novo de d. Rosália pela mão, uma bicicleta rodou no paralelepípedo. Enxu- guei os olhos. A cabeça doía-me. Encostei os cotovelos à janela. Entre duas tabuinhas afastadas distinguia a cara amarela, os olhos abotoados e os cabelos ruivos da filha de Lobisomem. Pelas outras tabuinhas só per- 209 cebia os pés dos transeuntes. Iam e vinham, ocupados.

Todos os dias acontecem desgraças. Estava doente, ia piorar, e isto me alegrava. Deitar-me, dormir, o pensa- mento embaralhar-se longe daquelas porcarias. Senti uma sede horrivel. Os beiços secos, queimados, ra- chavam-se. Evidentemente a sede tinha horas, mas só então me apareceu clara a necessidade de beber água.

Quis ver-me ao espelho. Tive preguiça, fiquei pregado à janela, olhando as pernas dos transeuntes. Esfregaei s cara com a mão estragada. Os pêlos duros feriram-me a palma em carne viva.

– Todos os dias nasce gente, morre gente. Isso não tem importância.

Repetia frases assim e soprava a palma ferida, mas não prestava atenção ao que dizia, pensava em coisas diferentes, em muitas coisas que se misturavam. ïa haver uma escuridão, uma desordem. Parecia-me que os acontecimentos subiam e desciam numa panela, fer- vendo.

– Em segurança.

Com os cotovelos presos à janela, olhava a rua e tremia. Morto de sede, não me aventurava a tirar-me dali. As pernas fraquejavam, bambas. As que andavam na rua atravessavam o minguado espaço que a minha vista alcançava, eram bem vestidas, rotas, nuas – e isto me bastava para adivinhar as caras. Iam lentas ou apressadas, ignoravam a existência de outras que gira- vam, encostando as pontas dos pés no chão coberto de folhas secas. Duas pernas pararam no meio da rua, voltaram as biqueiras dos sapatos para o meu lado.

Olhos atentos, sob a mão em pala na testa, deviam estar observando o número da casa. Isso durou um minuto. As biqueiras avançaram em direção a mim.

Descobriram-se os joelhos das calças ord.nárias e sur- radas. Provavelmente era um investigador, um desses homens que freqüentam os cafés, escutam conversas e fogem como sombras, olhando por baixo da aba do chapéu embicado. Ia aproximar-se macio, bater pal- mas discretamente para não atrair a atenção dos vi- zinhos : – ó de casa! 210 Eu me afastaria da janela, arrastando as pernas que pesavam arrobas, iria abrir a porta. Perguntas sem pé nem cabeça, uma busca na casa; a roupa machu- cada e rasgada atrás da mala, as minhas mãos feridas, as unhas roxas, provocando suspeitas que s acumula- vam e viravam certeza. Eu me atrapalharia logo e diria o que o sujeito quisesse. Não seria preciso me darem água de bacalhau. A garganta ardia-me, passei a língua seca nos beiços gretados. Agua de bacalhau, dias de fome, noites em claro, um tipo martelando horas a fio: – bom o senhor contar. Para que esconder? Tudo se descobre. Confesse.

Eu arriaria a trouxa com facilidade. Tudo se des- cobre, sem dúvida. Que papéis haveria nos bolsos da roupa que estava atrás da mala? Bilhetes de dr. Gou- veia, correspondência do interior, a carteira vazia, artf- gos manuscritos, recortes de jornais. Se algum desses papis tivesse caído na estrada? Perdido, trinta anos de cadeia, a imundície, os trabalhos dos encarcerados: fabricaão de pentes, esteiras, objetos miúdos de tarta- ruga. Faria um livro na prião. Amarelo, papudo, faria um grande livro, qu? seria traduzido e circularia em mnitos países. Escrevê-lo-ia a lápis, em papel de embru- Iho, nas margens de jornais velhos. O carcereiro me pe- diria umas explicações. Eu responderia: – “Isto é assim e assado.” Teria consideração, deixar-me-iam escrever o livro. Dormiria numa rede e viveria afastado dos outros presos. A garganta doía-me, os beiços colavam-se. Pre- cisava beber água e pensava no caldo de bacalhau. Con- fessaria tudo, mostraria á roupa rasgada, os bilhetes.

as ca.rtas, os artigos. Os olhos pestanejavam, e chora- vam lágrimas quentes que eu enxugava na manga. Não podia ver bem a rua. As pernas teriam marchado para mim ou estacionariam no paralelenípedo, indecisas? Tanto tempo a ameaçar-me com as biqueiras dos sapa- tos cambados e as joelheiras das calças ordiná,rias! As biqueiras volveram à esquerda e sumiramjse. Não era gente da polfcia: seria talvez um servente de casa co- mercial, carregado de embrulhos, distribuindo xnercado- rias Provavelmente conduzia troços para d. Mercedes e estava em pé na calçada, batendo palmas. D. Mercedes 211 vinha devagar, cheirosa, o peignoir exibindo o peito ma- duro. Recebia os pacotes, dava uns niqueis ao carrega- dor, entrava, ia desatar os cordões e examinar as com- pras. Entre as duas tabuinhas mais afastadas da rótula vi de novo o rosto espantado da filha de Lobisomem.

Porque se espantava? Não havia motivo. Zizdo em ordem na rua. A barriga e as pernas de um homem passaram na calçada e pararam à porta de d. Rosália. Alguns rapazes dirigiam-se ao Colégio Diocesano. Um moleque de tabuleiro deu um grito estridente que me assustou.

Evidentemente… A rua sossegada, como nos outro5 dias. O grito do moleque continuava a furar-me os ou- vidos. Evidentemente . . . Que é que ia dizer? O pensa- mento partia-se. Ia cair de cama, delirar, morrer. A car- ne estremecia, os pés dos cabelos doíam-me. De quando em quando levava.-a mão ao rosto, e o contato da palma com a barba crscida arrancava-me palavrões obscenos grunhidos em voz baixa. Um porco, pareca um porco.

Esta comparação não me entristecia. Desejava sr comn as bichos e afastar-me dos outros homens.

As mãos dofam-me, as pernas doíam-me, os pés dos cabelos doíam-me. Não queria imaginar o que aconte- ceria lá fora, o que tinha acontecido. Fatos possíveis misturavam-se a coisas absurdas. Evidentemente. . . Esta palavra solta, repetida, enfurecia-me. Pouco a pouco serenava. Seu Ramalho, no meio das conversas, dizia: – “Eu lhe conto.” E não contava nada. D. Adélia cen- surava a filha com um gemido: – “Hum! hum!” AntB- nia dava uma ri.sadinha ruim e piscava um olho: – “Safada moda.” Agora a rua estava em silêncio. Noutra rua havia lágrimas, desespero e cablos arrancados. Um médico vestia o avental, chegava-se ao mármore do ne- crotério. O homem dos caixões d defuntos preparava coroas de flores roxas, muitas coroas de flores roxas com fitas roxas. Onde andaria Vitória? Surda, a cabeça cheia de moedas e navios, arrastando-se petas bodegas.

UIna senhora gorda e mole, com os sovacos molhados, chorava noutra rua. Fuf ao quarto, levantef a roupa caída atrás da mala, estendi-a em cima da cama, exa- minei o joelho rasgado, as bainhas puídas, a gola em- branquecida. Machucada, suja de poeira, lama seca e teias de aranha. Cortá-la ia em pedacinhos, que seriam 212 i desfiados e atirados ao monturo. Procurei uma escova ! e pus-me a limpar os trapos. De momento a momento supendia o trabalho e soprava a mão ferida. Estu- pidez deixar aquilo no chão, entre a mala e a parede.

I Bem. Agora os panos estavam quase decentes. Algu- mas pancadas na porta gelaram-me o sangue. Cai sen- tado na cama. Tudo perdido. Lá estava o sujeito da policia com o chapéu embicado. Olhei o rasgão do joelho, as mãos grossas. Dificil dobrar os dedos. E nas costas da mão direita, a mais estragada, corria um traço largo que escurecia. Ao amanhecer estava ver- melho, mas agora ia ficando azulado. Enfim tudo per- dido. Era sair, entregar-me, contar a história botando i os pontos nos ü. Faria um livro na pri.ão, estudaria, arranjaria camaradagem com dois ou três presos man- sos. Habituar-me-ia. A gente se habitua em toda a ! parte. Dorme à beira das estradas, nos bancos dos jardins. Depois de meia-noite as. letras miúdas dan- çavam na prova molhada, a saleta da revisão enchia- se de fantasmas, a gente lia cochilando, emendava cochilando. Um galego dava ordens aos berros. Nas xnesinhas estreitas, forradas com papel de impressão, as vozes esmoreciam, as canetas sujas, nojentas, ca- lavam-se. Vida porca, safada. Agora estava menos por- ca e maí,s safada. Adulações, medo de perder o empre- go, de voltar às estradas, à caserna, aos bancos dos jardins, à mesa da revisão. O suor molhava-me o pes- coço, a vista escurecia, a memória dava saltos, a res- piração encurtava-se. Uma lembrança vaga de cavalos perseuia-me. Onde teria eu visto aqueles cavalos? Nun- ca fui cavaleiro, nunca montei direito. Uma queda na pedras do Ipanema ia-me desmantelando. Era estranho que aqueles animaís viessem perturbar-me. Fazia um minuto que o homem da polícia tinha batido. Sentado na cama, suando, tossindo, as mãos esfoladas, nco lhia-me. Os animais aperreavam-me. A princfpio não conseguira distingui-los. Era um tropel distante, rumor que se confundia com a cantiga dos sapos do açude da Penha e o zumbido das carapanãs. Ãgora percebia que eram cavalos correndo. Novas pancadas. Levan- tei-me, cheguei à porta do quarto, estirei a cabeça. Um 213 maloqueiro, um vagabundo que pedia esmola. Enfure- ci-me e gritei: – Puta que o pariu.

Estar um homem em casa, sossegado, escovando a roupa, e de repente pancadas, amolações, peditórios.

– Isso tem cabimento? Dá o fora, vai para o diabo.

Pus o paletó no encosto de uma cadeira, dobrei a calça, ocultando a parte rasgada, e coloquei-a em cima da mala.

– Onde vamos parar com tantos mendigos? Isso tem jeito? O quarto estava como nos outros dias. O meu desejo era deitar-me, mas fui à sala de jantar, ainda bastante zangado: – Canalhas, preguiçosos.

Derreei-me na cadeira, um peso enorme nos braços: – Safados.

Não me referia apena.s aas maloqueiros. De quando em quando passava a manga do pijama nos olhos mo- lhados. E soprava a palma ferida, mas o ar saía quente e a dor não diminuia. Esse movimento de soprar a mão quase encostando-a à boca fez-me pensar nos gatos.

Ia adormecer, perder a consciência. As coisas afasta- vam-se ou aproximavam-se d° maneira absurda, as pa- redes moviam-se. Não ter consciência. Soprava a mão.

Ser como um gato que lambe os pés.

Que direito tinha aquele bandido de me vir inco- modar quando eu estava ocupado, escovando a roupa? Então não pode um homem pôr em ordem os seus troços sem ser perturbado.

– Isto é casa de puta para qualquer um bater e entrar? Porque era que o vagabundo me havia enganado fazendo-se passar por gente da polfcia? Dentro em pou- co outras pancadas me esfriariam o sangue, num se- gundo rolariam multidões de pavores. Ttxdo se repetiria – as mesmas caras, as mesmas perguntas, as mesmas ameaças, o julgamento, discursos, a escuridão entre qua- tro paredes, portas de ferro, fechaduras enormes, ferro- lhos enormes. Levantar-me-ia, atravessaria o corredor como se me arrastassem. Outro vagabundo, um vende- 214 dor ambulante, qualquer pessoa levada por endereço errado: – Não é aqui não. Desculpe.

Voltarfa para junto da mesa, aguardaria novas pancadas, novas torturas. Porque não se acabava logo aquilo? Bati com a mão na mesa e isto me arrancou um grito que abafei e se transformou em praga imunda.

Porque não me vinham buscar os miseráveis da polícia? Porque faziam comigo aquela brincadeira de gato com rato? Eu os acompanharia, mostraria a roupa rasgada, os fios da gravata no monturo, falaria no cigarro ofere- cido pelo vagabundo. Porque não vinham logo? Muitos anos nas redes sujas, nas esteiras de pipiri. Escreveria um livro. A idéia do livro aparecia com regularidade.

Tentei afastá-la, porque realmente era absurdo escrever um livro numa rede, numa esteira, nas pedras cobertas de lama, pus, escarro e sangue. Olhava as telhas, move- diças, a garrafa de aguardente, movediça. O livro só poderia ser escrsto na prisão, em cima das pedras, na esteira, na rede, sob as cortinas de pucumã. Um livro escrito a lápis, nas margens de jornais velhos. Os obje- tos deformavam-s. A janela e a porta do quintal, a porta da cozinha e a do corredor estavam cheias de gente. Estirei o pescoço, observei o homem que enche dornas e a mulher que lava garrafas. Retraí-me. Em vez de se entregarem ao trabalho, eles me espionavam.

O movimento de estirar o pescoço para vê-los era hor- rível. O que mais me doía eram os braços, principal- mente as mãos. Encolhi o pescoço, tentei metê-lo no corpo. Um, dois, um, dois. Eram as pancadas do pên- dulo. Não prestava atenção a elas durante o dia. A noite percebiam-se bem, mas de dia, com o barulho que vinha de fora, não havia relógio. Como Vitória se demoraval O galope dos cavalos não me saía dos ouvidos, crescia , como se avançasse no paralelepípedo. Donde vinham aqueles cavalos? A cabeça tombou num cochilo. Apru- mei-me, bocejei, estirei os braços doloridos. Recostei-me na cadeira e cerrei os olhos. Passei a língua seca como lfngua de papagaio pelos beiços gretados e cobertos de películas. Arrastei-me até a moringa, bebi alguns copos de água. Tantas horas com a garganta pegando fogo, suportando aquilo inutilmente. Com certeza a febre ia 215 crescer. O corpo morrinhento pedia cama. O rumor das carapanãs misturava-se ao tropel dos cavalos. Achei-me sentado, murmurando pala,vras desconexas. O suor cor- ria entre os pêlos da barba. Passei o lenço na cara e no pescoço, mas retirei logo a mão.

– Sou uma pessoa muito hábil.

Os cavalos tinham agora um trote macio que não se distinguia da música das carapanãs. Aborrecia-me saber que os cavalos nâo existiam, as carapanãs não existiam, os indivfduos que atravancavam as portas não existiam.

– Uma pessoa muito hábil.

A roupa molhada colava-se ao corpo. A sede voltou, bebi outro copo de água. Pensei em fumar e isto me produziu um estremecimento. Mas então? Um sujeito hábil, sem dúvida. Tudo muito direito. Na casa de d. Rosália as crianças gritavam e Antônia lavava a louça. Na casa de seu Ramalho d. Adélia varria a sala de jantar. Ouvia-se o chiar da vassoura. Pancadas de pratos, gritos de crianças, risos, pragas.

– Um sujeito hábil.

Que burrice repetir isso! Estirei a cabeça cautelosa- mente. A mulher magra e o homem triste dedicavam-se às suas ocupações e não me viam. Uma criatura ordi- nária, um funcionário que faltava à repartição. Vitória voltou, mas isto não teve importância. As carapanãs e os cavalos preocupavam-me demais para prestar aten- çâo a Vitória. Um funcionário. Pus-me a rir como um idiota. Continuaria a escrever informações, a bater no teclado da máquina, a redigir artigos bestas. – “Per- feitamente.” O sorriso sem-vergonha concordando com tudo. – “Perfeitanente.” Não tinha praticado nenhu- ma façanha, não tinha conversado com o vagabundo, na véspera. Eu? No quarto pequeno junto à escada, o cheiro do gás era insuportável. Andavam percevejos no papel da parede, manchado e descolado. Aborre- cia-me o estudo cacete de Dagoberto. Mas quando ele empurrava a porta, jogava na cama a cesta e o com- pêndio, acovardava-me, sorria, abria o livro ou pegava 0 osso e começava a amolação. – “Perfeitamente, Da goberto.” Para que diabo me servia conhecer as vérte- bras e o frontal? Não fa ser médico. Mas lia, para não 216 desgostar o rapaz. Olhei a garrafa de aguardente, vazia, pensei em seu Ivo, em seu Earisto e em Cirilo de Engrácia. Com os braços esmorecidos sobre a mesa, via as paredes afastarem-se, as telhas subirem e des- cerem. Ia dormir, descansar, tresvariar. Levantei-me de chofre. Um rebuliço na casa de seu Ramalho. Fui encos- tar-me à parede. Critos, o cabo da vassoura batendo no chã.o, risos nervosos e a fala morna de d. Adélia: – Quem faz neste mundo paga é aqui mesmo.

Quando Deus tarda, vem em carninho.

Olhei os quatro cantos. Não tinha nada com aquilo. Ia trancar-me, enrola.r-me nos lençóis, tremer, ranger os dentes como um caititu. Não tinha nada com aquilo. A garrafa de aguardente estava vazia. As cara- panãs zumbiam. O vagabundo me dera um cigarro.

A mulher tinha dito : – “Deixa de luxo, minha filha.

Será o que Deus quiser.” Eu ficava afastado de tudo.

Afastei-me da parede e arregalei os olhos para a mu- lher que lava garrafas e o homem que enche dornas.

Não tinha nada com aquilo. – “Um artigo, seu Luís.” Seu Luís escrevia. – “Perfeitamente, Dagoberto.” Eu? As telhas dançavam, era extraordinário que se pudes- sem equilibrar, não viessem espatifar-se no chão, ba- ter-me na cabeça.

– Não fui eu, gritei recuando e tropeçando na ca- deira.

Os cabelos arrepiavaxr-.se, um frio agudo entrou-me na carne, os dentes tocaram castanholas. Nada havia acontecido comigo. Senti-me vítima de uma grande in- justiça e tive desejo de chorar. Vieram-me lágrimas, que esmaguei. Eu estava de parte, ouvindo o zunzum das carapanãs.

– Nâo fui eu. Escrevo, invento mentiras sem difi- culdade. Mas as minhas mãos são fracas, e nunca rea- lizo o que imagino.

Olhei as mãos. Pareceram mais curtas e mais largas que as mãos ordinárias que escreviam artigos elogiando o governo. Os dedos inchados eram mais curtos e mais grossos. Necessário fechar as tortas. Outro agabundo riria bater e confundire cõm o homem da policia.

21? Os braços dofam-me, as mãos penduradas dofam-me.

Cruzei os braços, fui ã cozinha. Vitória cortava carne em cima da mesa preta.

– Vitória, estou sem fome, ouviu? A mesa preta do necrotério. O médico, de avental.

Numa rua afastada, uma mulher chorando. As minhas mãos em carne viva.

– Estou muito doente, Vitória. Não quero almo- çar. Dê a bóia a algum maloqueiro que aparecer por aí.

E feche as portas depois. Vou deitar-me, não me agüen- to nas pernas.

i A réstia descia a parede, viajava em cima da cama, saltava no tijolo – e era por ai que se via que o tempo passava. Mas no tempo não havia horas. O relógio da sala de jantar tinha parado. Certamente fazia semanas que eu me estirava no colchão duro, longe de tudo. Nos rumores que vinham de fora as pancadas dos relógios da vizinhança morriam durante o dia. E o da estava dividido em quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns metros de tijolo, outra parede.

Depois, a escuridâo cheia de p_ ancadas, que às vezes não se podiam contar porque batiam vários relógios simultaneamente, gritos de crianças, a voz arreliada de d. Rosália, o barulho dos ratos no armário dos livros, ranger de armadores, silêncios compridos. Eu escorre- gava nesses silêncios, boiava nesses silêncios como numa água pesada. Mergulhava neles, subia, descia ao fundo, voltava à superfície, tentava segurar-me a um galho.

Estava um galho por cima de mim, e era-me impossivel alcançá-lo. Ia mergulhar outra vez, mergulhar para empre, fugir das bocas da treva que me queriam mor- der, dos braços da treva que me queriam agarrar.

O som de uma vitrola coava-se nos meus ouvidos, aca- riciava-me, e eu diminuía, embalado nos lençóis, que se transformavam numa rede. Minha mãe me embalava cantando aquela cantiga sem palavras. A cantiga mor- ria e se avivava. Uma criancinha dorm?ndo um sono curto, cheio de estremecimentos. Em alguns minutos a criancinha crescia, ganhava cabelos brancos e rugas.

Nâo era minha mâe a cantar: era uma vitrola distante, 218 tão distante que eu tinha a ilusão de que sobre o disco passeavam pernas de aranha. Um disco a rodar sem interrupção a noite inteira. Não. Estávamos na segun- da parede, e eu subia a parede, acompanhava a réstia como uma lagartixa. Marasmo de muitas horas, solu- ção de continuidade que se ia repetir. Cairia da pa- rede, como uma lagartixa desprecatada, ficaria no chão, mofdo da queda. Quem teria entrado no quarto durante.

a inconsciência prolongada? Moisés e Pimentel teriam vindo? Seu Ivo teria vindo? Lembrava-me de figuras curvadas sobre a cama. Não eram os meus amigos.

Eram tipos de caras esquisitas, todos iguais, de bocas negras, línguas enormes, grossas e escuras. Quantos dias ali no colchão áspero, como um defunto? Um ho- mem sem rosto, sentado na cadeira onde tinha ficado o paletó, falava muito. Que dizia ele? Esforçava-me por entendê-lo, mas tinha a impressão que o visitante usava língua estrangeira. Era como se me achasse num ci- nema. Apenas compreendia de longe em longe algumas palavras. Cansava-me e desejava que o homem se fosse embora. Não percebia que me importunava, que me obrigava a esforços enormes para entender uma lfngua estranha? O desconhecido continuava a falar. Eu subia a parede novamente e corria atrás da réstia. Cairia no tijolo outra vez, achatar-me-ia ouvindo o monólogo in- compreensível. Receava que o homem sem rosto me jul- gasse estúpido. Queria dormir, arregalava os olhos e abria os ouvidos. Certamente dizia coisas sem nexo, e o desconhecido me chamava imbecil, com palavras in- gl.esas. Um buraco ao pé de uma cerca. Eu tombava no buraco, ia descendo lentamente. E, enquanto descia, encontrava no caminho muitas flores que desciam tam- bém, sem peso, como flocos de algodão. Subia, era como se o meu corpo se transformasse em nevoeiro.

Tornava a descer, tornava a subir, as flores caíam sem- pre numa chuva silenciasa. As flores não me davam nenhum prazer. Desejava livrar-me delas, interromper aquelas viagens para cima e para baixo, andar na terra.

Escancarava os olhos. O homem sem rosto havia desa- parecido, e eu tinha agora um livro aberto sobre o col- chão. Não sabia quem me trouxera o livro, se ele sur gira antes ou depois da visita. As letras saíam dos luga.

219 res, deixavam espaços em branco, espalhavam-se numa chuva silenciosa. Apertando as pálpebras, esfregando-as, aproximando e afastando o papel, conseguia conter a dispersão. Impossível adivinhar o sentido de uma pala- vra. Língua estrangeira, tão estrangeira como o soli- lóquio monótono. Sem memória, um idiota. Chorava.

batia com a cabeça no ferro da cama, puxava os ca- belos. Olhava as mãos. As unhas crescidas e sujas, a escoriação da palma secando e cicatrizando, os dedos ‘ compridos, escuros, com uns nós muito grossos. Sem ° memória. Que teria acontecido antes? A confusão se dissipava, a réstia avançava no tfjolo, trepava na ca- deira onde o homem se tinha sentado, ganhava o pa- letó estendido no encosto. O paletó me espiava com um olho amarelo que mudava de lugar. A calça continuava dobrada sobre a mala coberta de poeira. A sentinela cochilava no portão do palácio, encostada ao fuziÏ; An- dré Laerte andava como um gato; Amaro vaqueiro, aboiando, laçava a novilha careta; cabo José da Luz ‘ caminhava para a cadeia pública, todo pachola; Da- goberto punha na minha cama a cesta de ossos e o compêndio de anatomia. Eu negava o livro que estava aberto em cima do colchão. Tinham deixado ali aquele volume inútil. Lia-o pensando em ossos. Provavelmente fora Moisés que o trouxera para me distrair. As pala- vras iam-se tornando claras, mas não se reuniam. Bom camarada, Moisés. Dera-me um livro para me distrair.

A réstia descia a cadeira, atravessava os tijolos e ga- nhava w parede. O cego dos bilhetes de loteria apregoava o número, batendo com o cajado no chão do café; a mulher da Rua da Lama cruzava os dedos magros nos joelhos; Lobisomem parecia um velho decrépito. Essas figuras vinham sem nitidez, confundiam-se. Antônia arrastava os chinelos, mostrava as pernas cobertas de marcas de feridas e cantava uma cantiga vagabunda.

Mas a cantiga se transformava: “Assentei praça. Na polfcia eu vivo…” E Antônia era o cabo José da Luz.

Em pé, defronte da prensa de farinha, oferecia-me uma xfcara de café. Antônia, cabo José da Luz, Rosenda – uma pessoa só. As vezes apareciam três corpos juntos com rostos iguais, outras vezes era um corpo com três cabeças. Afinal surgia um vfvente que tinha três nomes.

Agarrava-me ao livro, compreendia vagamente o que , estava escrito, mas ficava-me a certeza de que havia ali vários trabalhos, feitos por muitos indivíduos. Chineses.

Uns chineses brigões, revoltados. Lembrava-me dos chi- neses que lavam roupa, fabricam ventarolas, vendem ‘ bagatelas, juntam-se às caboclas. Muitos livros arruma- dos, formando um livro incompreensivel. Fernando In- guitaf andava pela Rua do Comércio, o braço carregado de voltas de contas, o cigarro babado no beiço que se arregaçava, descobrindo os dentes enormes num sorriso parado. O som da vitrola ia quase desaparecendo, a la- gartixa subia a parede. Amaro vaqueiro, agitando o laço, mastigava o cigarro de palha e mostrava os dentes pretos num sorriso parado. A cadeira suja de poeira, a mala suja de poeira. A roupa havia desaparecido.

Seria bom levantar-me, procurar qualquer coisa para ¡ me vestir. Pouco tempo antes a roupa estava ali, no ! encosto da cadeira e em cima da mala. De repente um sumiço. Quem me tinha dito aquele nome estranho? ; Fernando Inguitai, a lagartixa, a réstia, Amaro va- queiro. A vitrola cantava baixinho: – “Fernando In- guitai.” Tentava sentar-me. Se isto me fosse poss.ível, procuraria roupa. Virava-me com dificuldade. Porque nâo entrava logo a pessoa que estava na sala? – “Obri- gado, Vitória. Não quero comer. Traga um copo de água.” Vitória afastava-se arrastando os pés, levando a bandeja com a comida que me dava engulhos. Minutos depois, lá vinha, chap, chap, resmungando, a cara fe- chada, e entreava-me o copo. Eu bebia, molhando as cobertas. – “Obrigado, Rosenda.” Ficava suando e ar- quejando, a vista escurecia, estirava-me na prensa de farinha, junto ao muro. O barulho do descaroçador de algodâo nâo me deixava dormir, os passos de Vitória morriam no corredor. Meu pai estava deitado, muito comprido, envolto num pano que se dobrava entre as pernas e tinha no lugar da cara uma nódoa vermelha cheia de moscas. As moscas não se mexiam, mas faziam um zumbido horrivel de carapanã.s. O olho de vidro de padre Iná.cio estava parado, suspenso no ar, fora do corpo. A batina de padre Inácio, o capote do velho ‘ Acrfsio, a farda de cabo José da Luz e o vestido ver- f ¡ melho de Rosenda estavam parados, suspensos no ar, 221 sem corpos. As carapanâs zumbiam. Os pés de Camilo Pereira da Silva, escuros, ossudos, safam por uma das pontas do marquesão, medonhos Eu atravessava o cor- redor, ia à sala, voltava a deitar-me na prensa, abria o livro que tinha chineses revolta,rlns. Mas as pálpebras a cerravam-se, as carapanãs e o descaroçador enchiam-me a cabeça. Que motivo tinha Fernando Inguitai para rir-se? Empurrava os travesseiros e tentava abrir os olhos. Se pudesse levantar-me, tudo aquilo desapare- ceria. Iria conversar com o homem que me esperava na sala. – “Não há chinês chamado Fernando.” Onde ‘ tinha ouvido aquele nome de Inguftaf? Se Vitória me trouxesse um copo de água. .. Ali com sede, morrendo, sem um diabo que me desse uma xicara de café, um copo de água! Embalava-me com isto: – “Sozinho, sozinho, morrendo à mingua, com sede.” Era bom que todos estivessem longe. O continuo da repartição, tão magro, tão velho, tão triste, movia-se trôpego. D. Ad- lia dançara como carrapeta, e agora era aquilo que se vfa, mole, acabada, uma lástima. Albertina de tal, par- teira diplomada. Quando eu entrava na repartição, apressado e fora da hora, o contínuo velho tinha um sorriso doce e alguma informação útil. Os meus olhos abriam-se, fechavam-se, tornavam a abrir-se. Os caibros engrossavam, torciam-se, alvacentos e repugnantes como cobras descascadas. “Greve no caso de reação.” Alguns letreiros estavam raspados, outros desapareciam sob as manchas que as águas da chuva tinham produzido. Mas havia letreiros novos. As crianças das escolas olhavam ara eles. O homem cabeludo que vendia aguardente pó cuidava da sua vida. Albertina de tal, parteira diplo- mada. Onde estava a minha roupa? Queria vestir-me, sair pela rua, ler os jornais. Que diziam os jornais? Subir o morro do Farol, entrar nas bodegas, beber ca- chaça. Seu Ivo me visitara, acocorara-se junto à parede.

– “Leve a roupa, seu Ivo.” Seu Ivo tinha vestido a calça rasgada e o paletó sujo. Talvez nâo tivesse ves- tido aquela imundfcie, talvez fosse tudo um sonho. Um homem na sala esperava com paciência que me restabe- lecesse. Sair, entrar no café, viajar nos bondes. Onde estava a minha roupa? A cadeira perto da cama, o livro fechado sobre a palha. – “Leve isso daf, seu Ivo.

222 i I A calça está rasgada. Cosa o rasgão com uma corda.” Albertina de tal, parteira diplomada. Escuridão. Um estremecimento, uma queda. Ia cair da cama, o chão se abriria, eu rolaria pelos séculos dos séculos fora disto. O espfrito de Deus boiava sobre as águas. Livra- va-me do susto, pouco a pouco ia resvalando no entor- pecimento. Os caibros faziam voltas, as telhas se equf- libravam por milagre. Algumas dobras daquelas coisas brancas e moles desciam, aproximavam-se da minha boca, davarrx-me náuseas. A vitrola dizia: – “Fernando Inguitai.” Os reisados cantavam defronte da casa de seu Batista. Os mateus gritavam: – “Abra a porta, ioiô.” E as figuras todas: “Aqui estou na vossa porta como um feixinho de lenha.” Seu Batista não abria: espe- rava a cantiga que fazia as janelas se escancararem.

E as figuras, o embaixador, o rei, a burrinha, os ma- teus, ficavam na calçada como um feixinho de lenha, fedendo a suor, gemendo os versos, até que seu Batista, importante, abria a sala, surgia vistoso, baixinho, ves- tido em rcbe-de-chambre. O feixinho de lenha entrava e cantava, seu Batista recolhia os capacetes dos ma- teus, a coroa do rei, a espada do errbaixador, os lenços das figuras, punha uns níqueis em tudo isso. O zumbido das carapanãs era insuportável. – “Um copo de âgua, Vitória.” Vitória não ouvia, e a leseira recomeçava. Não havia escuridão, a réstia subia a parede. – “Leve a roupa, seu Ivo.” Seu Ivo se acocorara a um canto, silencioso, babando-se. Pimentel não aparecia. Devia ter aparecido, mas nâo me lembrava dele. Com certeza vie- ra num momento em que a febre era muito forte. Que doidices teria eu dito na presença de Pimentel? Um, dois, um, dois. Marchava – e não podia levantar-me da cama. Quatro paredes. As quatro paredes da re- partiçâo esmagavam-me. Algumas horas depois da fun- ção, o feixinho de lenha, composto de mateus, figuras, burrinha, rei, embaixador, suaria arrastando a enxada no eito. – “Parem essa vitrola.” Fernando Inguitai, o braço carregado de voltas de contas, andava pela Rua do Comércio, fumando, sorrindo. Haveria alguém neste mundo que se chamasse Inguitai? As cascavéis e as jararacas tomavam banho com a gente no poço da Pedra. Uma delas se enroscara no pescoço de meu avô.

223 Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva sapar teava no chão de terra batida, uma alpercata salta- va-lhe do pé. Instituto Iistórico e C+eográfico do Espí- rito Santo, Instituto I4istórico e Cleográfico do Rio Gfrande do Sul. Ria-me como um idiota. Provavelmente havia institutos históricos e geográficos por esses lu- gares. Certas pessoas empurravam outras nas escadas e diziam: – “Desculpe:’ O cego dos bilhetes de loteria cantava o número, batendo cam o cajado no cimento do café. Virava-me para o espelho. Por detrás das letras brancas, rostos medonhos arreganhavam os dentes e piscavam os olhos. As letra,s torciam-se, os caibros tor- ciam-se, baixavam, brancos, moles, como cobras descas- cadas, 1e.384. O cajado batendo no cimento, avançando , para mim, ameaçando-me com uma tira de papel, que ? engrossava e queria morder-me. Moisés aproximava-se, ‘ comprava a tira de papel, que se enrolava nos dedoa dele, e lia em voz alta uma infinidade de vezes: – “16.384.” Eu ia fugir, mas Fernando Inguitai estava na calçada, esperando-me para vender uma volta de contas.

– “Vai-te embora, Moisés.” Não queria voltas de con- tas nem queria ouvir a leitura daquele número. Não era número: eram palavras incompreensiveis, histórias da China. Moisés virava a página, que ficava mexen- do-se. A cadeira mexia-se. Afastava-me, com medo da cadeira. No dia seguinte, quando viesse varrer o quarto, , Vitória a poria no lugar do costume, junto à mala, mas durante uma noite inteira o móvel caprichoso não me deixaria descansar. Eu tremia e receava que Moisés se losse embora. Voltaria o silêncio, a cadeira se chegara mais à cama. – “Continue, Moisés. E isso mesmo.” Não o entendia, mas aprovava-o com a cabeça e com pala- vras assim. A voz rolava, lenta e monótona, o dedo comprido virava a página e gesticulava diante da mi nha cara. Passavam chineses armados. E o dedo enro, la,va-se, dava um nó. A leitura era um zumbido, un enxae de carapanãs lia o livro dificil. Estava a ba lançar-se numa rede, ia acima e vinha abaixo. E quan- do subia, abria os olhos, via o dedo perto das minhas ventas; quando descia, ouvia o arranhar da vitrola. Os ratos do armário dos livros roiam o disco da vitrola, e a vitrola dizia baixinho: – “Fernando Inguitai.” 224 i A réstia sumia-se, Moisés levantava-se, puxa.va a cor rentinha da lâmpada, tornava a sentar-se. – “Obrigar do, Moisés.” Ali perdendo tempo, lendo para me distrair.

Excelente camarada. – ‘E preciso que dr. Ciouveia man de limpar estas paredes.” Cafa em mim, arrepen- dia-me de ter falado. Certamente as paredes necessita vam limpeza, zangar-me-fa se alguém me dissesse que não, mas a necessidade exigia explicação, e não me poderia fazer compreender. Ao mesmo tempo temia que o judeu mangasse de mim por eu haver interrompido a leitura com uma frase besta tamos discutir. fteceava encolerizar-me e ser grosseiro com um visitante. Se ele concordasse comigo, seria por eu estar doente. Não me conformava com isto. Preciso da condescendência dos outros? Sou alguma criança? Porque tinha ele suspen- dido a leitura e esbugalhava para mim aqueles olhos de mal-assombrado? Seria melhor destampar logo e de clarar francamente que as paredes não necessitavam limpeza. De qualquer modo seria fácil um rompimento entre nós. Cada qual para o seu lado, cada qual com as suas idéias. Moisés levantava-se, despedia-se. Eu es- condia as mãos nas cobertas, enrolava o pano debaixo do queixo e tremia, pedia-lhe com os olhos que não me deixasse só entre aquelas paredes horrfveis. Agora Moisés me havia abandonado, e eu batia os dentes como um caititu. As paredes cobriam-se de letreiros incendiá- rios, de lágrimas pretas de piche. As letras moviam-se deixavam espaços que eram preenchidos. Estava ali um tipógrafo emendando composição. E o piche corria, der- ramava-se no tijolo. Ameaças de greves, pedaços da Internacional. Um, dois… Impossivel contar a,s legen- das subversivas. Havia umas enormes, que iam de um ao outro lado do quarto; uma,z pequeninas, que se tor- ciam como cobras, arregadavam os olhinhos de cobras mostravam a lingua e chocalhavam a cauda. As letras tinham cara de gente e arregaçavam os beiços com fero- cidade. A mulher que lava garrafas e o homem que enche dornas agitavam-se na parede como borboletas espetadas e formavam letreiros com outras pessoas que lavavam garrafas, enchiam dornas e faziam coisas dife- rentes. A datilógrafa dos olhos agateados tossia, as filhas de Lobisomem encolhiam-se por detrás das ou- 225 tras letras, AntBnia arrastava as pernas grossas cober tas de marcas de feridas, a mulher da Rua da Lama ”’ cruzava as mãos sobre o joelho magro e curvava-se para esconder as pelancas da barriga escura. Um choro longo subia e descia: – “Que será de mim? Valha-me Nossa Senhora.” Um moleque morria devagar, mutila.

do, porque havia arrancado os tampos da filha do patrão. Fazia um gorgolejo medonho e vertia piche das chagas. 16.384. O cego dos bilhetes batia com o cajado , na parede. – “Afastem esta cadeira.” Seu Ivo estava de cócoras, misturado às outras letras. A calça rasgada ‘ e o paletó sujo eram cor de piche. Cirilo de Engrácia, carregado de cartucheiras e punhais, encostava-se a uma árvore, amarrado, os cabelos cobrindo o rosto, os pés com os dedos para baixo. A sentinela cochilava no por- tão do palácio. Um ventre enorme crescia na parede , uma criatura mal vestida passava arrastando a filha ,; pequena, um brilho de ódio no olho único. Sinha Terta gemia: – “Minha santa Margarida.. ” O dono da bo- dega, triste, fincava os cotovelos no. balcão engordu- rado. As crianças faziam voltas em redor da barca de terra e varas. A rapariga pintada de vermelho espalhava um cheiro esquisito. O engraxate escutava histórias de capueiras. O homem acaboclado cruzava os braços, moa- trando bfceps enormes. O mendigo estirava a perna entrapada e ensangüentada. As mosc:.s dormiam, e o mendigo, com a muleta esquecida, bebia cachaça e ria.

Passos na calçada. Quem ia entrar? Quem tinha negó- cio comigo àquela hora? Necessário Vitória fechar as portas e despedir o hóspede incômodo que não se arre- dava da sala. Mas Vitória contava moedas, na parede, resmungava a entrada e a saída dos navios. A placa azul de d. Albertina escondia-se a um canto, suja de piche.

Todo aquele pessoal entendia-se perfeitamente. O ho- mem cabeludo que só cuidava da sua vida, a mulher que trazia uma garrafa pendurada ao dedo por um cordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro vaqueiro, as figuras do reisado, um vagabundo que dormia nos bancos dos jardins, outro vagabundo que dormia de- baixo das árvores, tudo estava na parede, fazendo um zumbido de carapanãs, um burburinho que ia crescendo e se transformava em grande clamor. José Baía acenar 226 varme de longe, sorrindo, mostrando as gengivas ba guelas e agitando os cabelos brancos. – “José Bafa, meu irmão, estás também aí?” José Baía, tr8pego, rom pia a archa. Um, dois, um, dois. . A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Baía e vinha deitar se na minha cama. Quitéria, sfnha Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os vagabundos, vinham deitar-se na minha c,ama.

Cfrilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o châo, vinha deitar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar se na minha cama. As riscas de piche cruzavam-se, forma- vam grades. – “José Baia, meu irmão, há que tempo!” As crianças corriam em torno da barca. – “José Baía,, meu irmão, estamos tão velhos! ” Acomodavam-se todos.

16.384. Um colchâo de paina. Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado gara não molestar as outras.

16.384. famos descansar. Um colchão de pain& . s 22? T Visão de Graciliano Ramos oTTo cBux A mestrio singular do romancista Graciliano Ramo,t reside no seu estilo. Para salvar esta frase da apreciação como “lugar-comum” í preciso definir o que é estilo: escolha de palavras, escolha de construções sintáticas, escolha de rit- mos dos fatos, escolha dos próprios fatos, para conseguir uma composição perfeitamente pessoal: pessoal, no caso, “d ma neira de Graciliano Ramos”. Estilo í escolha entre o que deve f icar na página escrita e o que deve ser omitido; entre o que deve perecer e o que deve sobrevlver. Vamos ver o que Graciliano Ramos escolhe.

B muito meticuloso. Quer eliminar tudo o que não á essencial, as descrições pitorescas, o lugar-comum das frases- feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de eliminar ain- da páginas lnteiras, capttulos inteiros, eliminar os seus roman- ce inteiros, eliminar o próprio mundo: para guardar apenaJ aquilo que é essencial, isto í, conforme o conceito de Bene- detto Croce, o elemento “lfrico”. O lirismo de Graciliano Ramos, porém, í bem estranho. Não tem nada de musical, nada do desejo de dissolver em canto o mundo das coisas; acredito-o incapaz de escrever o última página de Moleque Ricardo, de losí Lins do Rógo, talvez a mais comovente página de prosa da literatura brasileira. O lirismo de Graci liano Ramos é amusical, adinâmico; í estático, sóbrio, clbssi- co, classicista, traindo d,i vezes, num oculto passado parna- siano do escritor. Não quer dissolver o mundo agitado, quer fixá-lo, estabilizá-lo. Elimina implacavelmente tudo o qus não se presta a tal obra de escultor, dissolve.o em ridicula- rias, para dar lugar aos seus monumentos de baixeur.

Com efeito, o material desse classicista á bem estranho: é o mundo in f erior; às maiJ das vezes, o mundo inf ernal. Lá, 231 as almas são caçadas por um turbilhão demoníaco de angüs- tias, como as almas no átrio do Inferno de Dante: “Quivi sospiri, pianti ed altl guai Risonavan per !’aer senza stelle…

Diverse lingue, orribili /avelle Parole di dolore, accenli d’iro…

uma fortuna sem fim; o próprio Dante apiedou-se dos que . nor hanno speranzn di morte, E ta lor creca vita é tanto bo.ssa, Che invidiosi son d’agni altra sorle.” São aqueles dos quais o romancista Graciliano RamoJ também se apieda: pois esse homem aparentemente tão duro está cheio de misericórdia. Procura-Ihes a “altra sorte”, esta- bilizando, classicamente, o turbilhão, eliminarulo tudo o que não é essencial; erigindo-os em monumentos dt baixeza, como criaturas petrijicodas dum maligno Demiurgo, restos fósJeiJ duma criação malograda, redimidos, enfim, pela criação mor- tífera da arte. Graciliano Ramos é o clássico deste mundo da mortc.

E’ um clássico. Mas – contradição enigmática – é urn clbssico experimentedor. A estréia excepcionalmente tardia, com mais de quarenta anos de idade, deve ter sido precedida de vagarosos preparativos dum experimentador; e mesmo depois continuou sempre experimentado. O nosso amigo co- mum Aurélio Buarque de Holanda chamou-me a atenção para a circunstância de representar cada uma das obras de Graciliano Ramos um tipo dijerente de romance. Com ejeito: Caetés é dum Eça brasileiro; São Bernardo tem algo de um Balzac rural; Angústia antecipa o “nouveau roman” e Vidas Secas lembra certos contistas russos, Babel por exemplo. Gra- ciliano Ramos faz experimentos com a sua arte; mas como esse mestre singular não precisa disso, temos af um indício certo de que está buscando a solução dum problema vital.

Eu não disse nada para comparar. Comparações são fáceis e inúteis, produzem apenas apreciações de clichã. Não chegam a penetrar no coração da criação pessoal; e justamen- te isto é a minha mui modesta ambição. Para tentá-lo, vou 232 escolher um processo estranho, estranho como o meu assun- to. Vou construir uma teoria para apanhar a minha víüma, vou construí-la de pedaços de outras criações, alheias, com as quai:: Graciliano Ramos não tem nada que ver, vou colher esses pedaços, entregando-me ao jogo livre das associações.

“Gastei meses construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é di f erente da outra, mas que se con f unde com ela.” Vou construir o meu Graciliano Ramos.

“Meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palhas de milho para cigarros, lendo o Car- los Magno, sonhando… ‘ Logo me lembro do pintor incom- parável da vida estática, imóvel, inconsciente, nos “engenhos” escravocratas da Rússia tzarista, daquele Gontcharov de quem me Iembrei quando já Ii comparações do Brasil escravocrata com a Rússia servil. Os romances de Gontcharov pintam classicamente um mundo primitivo, amoral, “a-trabalhador”, preguiçoso demais para trabalhar, amar, viver. Parecem idí- lios de pura “art pour 1’art”; são acusações terríveis contra o regime, contra o Estado russo, que quis rnovimentar esse mundo imóvel por pretensas reformas econ6micas e sociais.

O primeiro romance de Gontcharov chama-se: Uma História Simples; o último: A Queda.

O satírico malicioso dagueles movimentos é outro russo que me ocorre, Saltykov-Chtchedrin, também partidário da imoóifidade conservadora, contra os experimentos liberais dos tzares de então, e gue a todos pareceu um revolucionário, menos à censura, d qual e1e sabia enganar pela sua mestria singular de estilista. Saltykov escreveu uma maravilhosa His- tória da Rússia, romanceada, começando com a chamada, pelo povo russo, dos três irmãos Ruriks, fundadores da dincts- tia, para “sistematizar e codificar a desordem e a violência”.

À boa maneira das epopéias, os irmãos sonham, na noite ante- rior d coroação, a futura história russa, e o sonho é tão ter- rfvel que dois dos irmãos logo se suicidam. Ao terceiro, po- rém, diz o povo: “Que te Importam as mentiras que os nossos descendentes vão aprender na escola?” E ele funda o império russo, “o maior império da história, maior do que Roma; pois em Roma brilhava o paganismo, e entre nós brilha do mesmo mvdo o cristianismo; em Roma raivava a plebe, e entre ru5s raiavam do mesmo modo as autoridades”. Assim, tudo ficava bem. Até que, um dia, um tzar teve a idéia desgraçadca de 233 reformar o Bstado e a civilização. Fundou uma Academia de Letras e promulgou uma legislação social, em virtude da qual “foi proibido cozer pão de cimento ou argamassa”. O povo, agradecido, povoou a cidade de monumentos dos seus prfncipes, na esperança de fazer petrificar, parar, assim, as atividades deles. Mas, pelos beneffcios do governo, os homens transformaram-se em lobos famintos, como numa fábula de Saltykov, O Pobre Lobo, o monstro que não é maligno, mas que não pode viver sem carne e que, por isso, deve matar, e invoca a morte salvadora para as vftimas e para si mesmo.

O monstro lembrcme, por sua vez, o terrfvel Leviatã, de lulien Green, que vive no coração de inofensivos mestres- escolas, filhas de famflia, rendeiros abastados, para revol- tar-se de súbito, um dia, arremessar-se insaciavelmente, o monstro, por quartos de assassínios, escadas funestas, becos escuros, até descansar, esgotado, à margem do rio noturno, que corre lento, sujo, pela cidade, único resto da paisagem primitiva que existia antes desse mundo artificial e miserável de instituições públicas, jornais públicos, mulheres públicas, e que ainda existirá quando tudo isto houver acabado. E o monstro desgraçado curva-se nostalgicamente sobre a água escura, suja, que Ihe oferece a última possibilidade de salva- ção: o próprio rosto, refletido lá no fundo, é o da moste.

Todos os personagens de Graciliano Ramos são tais monstros, revoltedos, caçados, nostálgicos da morte, com os quais o Demiurgo. o “presidente dos imorta.’s”, brinca. A ex- pressão “the president of the immortats” é de Thomas Har- dy, intelectual pequeno-burguês, perdido no “sertão” inglês de Wessex, a paisagem mais agrária, mais atrasada, mais pri- mitiva da Inglaterra, onde se passam todos os seus romances, t para onde o velho Hardy enfim se retirou, a viver a vida arcaica e imóvel dos rochedos e pdntanos, abandonando, enfim, o romance para fazer só os seus pequenos poemas endurecidos como monumentos pré-históricos, e cujas rimas jielmente tradicionais anunciam a reconciliação resignada do poeta com o mundo morto: ‘Btaek lJ ntght’s eope; But death xrill not appat One who, past dgubtingJ all.

Waita !n tmhopr.’ O crftico espanhol losé Bergamin gostaria dessas assv- ciações. Confirmam a sua teoria do romance: o leitor perde- se no romance para esquecer o seu mundo, mas reeneontra-se Iá, reconhecendo que o seu próprio mundo está chamado a desaparecer: “Perderse para encontrarse, para perderse.” O romance seria um processo de economia mental para apressar o fim do mundo: “Cada novela es la manifestación de um mundo llamado a desaparecer, y que antes de desaparecer quiere aparecer, comparecer: y aparece, comparece em efecto, solicitando, esperando ser juzgado.” B a teoria dum espanhol, dum cristão, dum pessimista.

A teoria dum espanhol, isto é, dum homem que toma radi- calmente a sério o cristianismo. A teoria dum cristão, isto é, dum homem que sabe que esta vida não presta. ,É uma teoria de estética pessimista.

Toda literaturcr pessimista eneontra uma resistência faná- tica; Ieitores e críticos não gostam disso. Sentem vagamente que arte e pessimismo se contradizem. Mas em vez de estu- darem esteticamente a possível contradição, entrincheiram-s em regires fora da arte, nn filosofia, na ética, para bombar- dear o romancista com as censuras de “pouca generosidade” ou de nülismo ïnsaudável. Não admito preconceitos. O pes- simismo não é uma moral nem uma filosofia. um estado de crlma. B preciso esboçar uma psicologia do pessimismo.

Penso em Schopenhauer. Não é um sistema filosófico.

L um caso psicológico. Pretendeu ser filósofo, ensinar uma filosofia da salvaão do mundo do sofrimento universal. Mas a sua personalidade o desmentiu. Ao desprezo filosófico do mundo uniu um instinto ardente de propriedade e de prazer.

Dinheiro e mulheres signi ficavam-!he al,quma coisa. Quis uti- lizar os homens profundamente desdenhados como meros ins- trumentos dos seus desejos, e quanto mais eles se recusaram, tanto mais os desdenhou. Sofria de hipocondria, de graves ata- ques de pavor noturno, de angústia. Teve uma misericórdia ilimitada para consi,go mesmo. Como psicólogo, reconheceu que toda misericórdia para com outros é secreta miscricórdia para consigo mesmo: e salvou-se moralmente pela ide.ntifica- ão pantefsta do seu eu angustiado com o mundo sof redor, pela fórmula budista: “Tat twam asi”, “Isto, és tu”. O seu supremo egocentrismo chegou até a negar a realidade do mun- do exterior; considerou a vida um sonho, sonho horrfvel do qual existe apencu uma possibilidade de acordar: em outro 235 conho, na arte. Na arte, o turóilhão angustiado encontra a calma; a estabilidade do estado primitivo antes da criação é restabelecida. (Como as palavras rimarn, enjim.) A arte é uma astúcia do espírito humano, para f raudar o mau Demiur- go das suas vítimas, para ironizar a criação malograda.

A ironia é uma arma suprema. “C’est 1’ironie” – diz Max lacob – “qui 1ui fournit chaque jour une c1é pour sor- tir de sa prison”. É um método para anular a obra do De- miurgo. ‘”Revogam-se as disposições em contrário”. E tor- nam-se inúteiJ todas as revoluções. Em comparação corn aguela ironia supra-realista, todas as revoluções, intimamente ligadas a este mundo de maldição por meio dum otimismo crédulo nas transformações exteriores, parecem ridiculamente ineptas, impotentes contra “the ingenious machinery contrived by the Gods for reducing human possibilities of amelioralion to a minimum”. Acredito que Graciliann Ramos pode con- formar-se com esta frase de Thomas Hardy. Suas convicções são as de um revolucionário. Graciliano tem o direito e o dever de manter suas convicções revolucionárias. Mas es.ar não seriam transformáveis em arte, o não ser passando pela fase transicional da eloqüência, que Graciliano detesta. Real- mente, para Graciliano não são transformáveis em arte; e isto é significativo. Luís Padilha e o judeu Moisés não são heróis revolucionárioJ. Cada vez que o romancista cede d tentação de formular programas de reformas sociais – c profe.ssora Madalena fala assim – cai logo na armadilha do seu inimigo mais detestado: 0 lugc,.r-comum; no caso o lugar-comum hu- manitário, da “generosidade”, que o seu crítico mais incom- preensivo lhe aconselhou. Certamente, a alma deste roman- cista seco não é seca; é cheia de misericórdia e de simpatia para com todas as criaturas, é muito mais vasta do que um mestre-eseola filantrópico pode imaginar: abrange até o mudo assassino Casimiro Lopes, até a cachorrinha Baleia, cuja mor te me comoveu intensamente: “Tat twan asi”. A misericórdia do pessimista para consigo mesrno é tão compreensiva que medita todos oJ meios de salvação, para deter-se apena.s na última: a destruição deste rnundo, para libertar todas as crio- turas. “Un mundo, llamado a desaparecer.” R preciso destruir o mundo exterior para salvar a alma.

A realidade, nos romances de Graciliano Ramos, não é deJte mundo. É uma realidade diferente. Apó,r ter lido Angústia até o fim, é preciso reler as primeiras páginas, para Z36 compreendã”las. B um mundo jechado em si mesmo. Que mundo éT “Ná ncu minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram- se coisas insigni f icantes. Depois um esquecimento quase com- pleto” – confessa Luú da Silva em Angústia. E depois: “Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente. Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento.” E confessa: “Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo í assim.” É assim com todos nós outros, quando entramos no mundo empastado e nevoen- to, noturno, onde os romances de Graciliano Ramos se pas- sam: no sonho. Os hiatos rias recordações, a carga de .acon- tecimentos insignificantes com fortes aJetos inexplicáveis, eis a própria “tícnica do sonho”, no dizer de Freud. Ilvaro Lins, no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos, observa agudamente a abstração do tempo – “Mas no tempo, não havia horas”, cita o crítico – e acrescenta: “As outr,r personagens são projeões da personagern principal. 7ulião Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se ator mente e rometa o seu crime. Tudo vem ao encontro da per sonagem principal – inclusive o instrumento do crime.” Esta,t palavras do crítico constituem a chave da obra do roman- cista: descrevem perfeitamente a nossa situação no sonho, em qut tudo é criação do nosso próprio tspFrito. Explica-se aJ- sim o extremo egofsmo dos heróis de Graciliano Ramos: é o egotsmo daquele que sonha e para o qual, prisioneiro durn mundo irreal, só ele mesmo existe realmente. A mentalidade inteiramente amoral do sonho exclui, decerto, toda “generosi- dade”; mas a substitui por um sentimento mais vasto de iden- tificação quase mfstica com as criaturas da própria imagina- Ção, até a cachorrinha Baleia: “Tat twan asl.” O extremo egotsmo do sonho engendra o motivo prln- cipal do romancista: cobiça de propriedade. Propriedade de ttrra, de mulher, em São &rnardo; oqui e em Angústia, a forma extrema de.rta cobiça, o ciúme. Por isso, nos romances de Graciliano Ramos, esses aftto,r ultrapassam toda rrfedida; sugerem, ao lado doJ afetos análogos na vida real, a impres- são de sentimentos patológicos. E quando o autor coruidera os monstros da sua angústia de sonho, lança o seu grito mais elementar: “Dinheiro e propriedade dão,me Jempre de- sejos violentos de mortandade e outraJ destrulçõe.t.” São palo.

vras que exprimern, de maneira perfeita, o duplo stntido do 837 pensamento de Graciliano Ramos: de um lado, seu socialis- mo revolucionário, Iigeiramente tingido de veleidades de anar- quista, das suas convicções sócio-polfticas; por outro lado, esse mesmo anarquismo, sublimado até a capacidade de cons- truir, em cima da terra arrasada, um mundo novo, o da cria- ção artística.

Todos os romances de Graciliano Ramos – e este é o sentido do seu experimentar – são tentativas de destrui- ção: tentativas de “acabar com a minha memória”, tentativas de dissolver as recordações pelos “estranhos hiatos” dum sonho angustiado Trata-se de saber que mundo de recordações se dissolve assim. A resposta é bastante dif fcil. Surge o clichê de que Graciliano teria sido, na mocidade, um f rustrado sertanejo culto”: e sugere aos críticos a idéia de que o romancista está furioso contra o ambiente selvagem do seu passado. Mas não é assim. Nâo é o sertão o culpado; Vidas Secas é o seu ro- mance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista.

O culpado í – superficialmente visto numa primeira aproxi maçâo – a cidade. O herói de Graciliano Ramos é o serta nejo desarraigado, levado do mundo primitivo, imóvel, parc o mundo do movimento. E o vagabundo (“um pobre nordesti no. . . “); e explica-se o seu ódio balzaquiano ao mundo bur guês, que conseguiu a estabilidade relativa do comércio d secos e molhartos. Esta vagabundagem é o aspecto sociológi co do egofsmo do sonho quando se choca com a realidade. i o desejo violento do vagabundo de restaóelecer-se na terra “Como a cidade me afastara de meus avós.” Mas é apena uma explicação em primeira aproximação: pois Paulo Honóri consegue o seu fim, e, contudo, é uma vida malograda. Po quê? Porque o seu criador quer mais do que terra, casa, di nheiro, mulher. Quer realmente voltar aos avós. Voltar imobilidade, à estabilidade do mundo primitivo. E para ctin gir este jim, deve antes destruir o mundo da agitação angu .tiada, na qual está pres.

Os romances de Graciliano Ramos são experimentos par acabar com o sonho de angústia que é esta vida. Uma lend budista conta dum homem que correu, ao sol do meio-du para fugir à sua sombra, que o angustiava; correu, corre sempre perseguido pelo companheiro sinistro, até que encor trou o grande Sábio, que Ihe disse: “Não continues a f ugi Assenta-te sob esta árvore.” E como ele parou, a somb 238 desapareceu. A sombra sobre o mundo de Graciliano Ra- mos não é a sombra da árvore da salvação, mas do ediffcio da nossa civilização artificial – cultura e analfabetismo le- trados, sociedade, cidade, Estado, todas as autoridades tem- porais e espirituais, que ele convida ironicamente – no come- ço de São Bernardo – a colaborar na sua obra de destruição.

Mas eles mostram-se incapazes de cometer o suicídio propos- to. Entrincheiram-se na “dura realidade”, imposta a todas as criaturas do Demiurgo, e que se arroga todos os atributos da eternidade. O romancista, porém, não se conforma. Trans- forma esta vida real em sonho – pois ao sonho, enfim se acorda. Então, as disposições junestas do Demiurgo seriam revogadas, e o destruidor poderia dizer, com o Gide das Nouvelles Nourritures: “Table rase. I’ai tout balayé. C’en est jait. le me dresse nu sur la terre vièrge, derrière le ciel d repeupler.” O fim é o estado primitivo do mundo – o céu repovoa- do. Então, a angústia já não assusta.

“Black is night’s cope; But death will not appal One who. past doubtings atl, WaitJ in unhape.” Foi a última sabedoria poética do romancista Thomas tlardy, versos duros populares e clássicos ao mesmo tempo, rimados em sinal da concordância resi,qnada com o mundo – teria sido possível gue o romc..ncista Graciliano Ràmos escrevesse também, um dia, tais versos. duros, populares e clássicos ao mesmo tempo, versos tradicionais, como os do velho Hardy. Mas não seriam rimados, seriam versos bran- cos. Pois a primeira rima de Graciliano Ramos já anuncica- ria o Fim do Mundo e – quem sabe – a salvação deste mundo.

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