Machado de Assis
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1892
[98] [24 abril]NA SEGUNDA-FEIRA da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente era uma charada, mas o nome de problema dá dignidade, e excita para logo a atenção dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas festa artística. A cousa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em número, seja em preço; o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dous atos, uma poesia, várias ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato à beneficiada.
Tudo pede certa elevação. Conheci dous velhos estimáveis, vizinhos, que esses tinham todos os dias a sua festa artística. Um era Cavaleiro da Ordem da Rosa, por serviços em relação à guerra do Paraguai; o outro tinha o posto de tenente da guarda nacional da reserva, a que prestava bons serviços. Jogavam xadrez, e dormiam no intervalo das jogadas. Despertavam-se um ao outro desta maneira: “Caro major!” -“Pronto, comendador!” — Variavam às vezes: — “Caro comendador!” -“Aí vou, Major” . Tudo pede certa elevação.
Para não ir mais longe. Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tive-mos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração da glória. Merecem, decerto, a nossa estimação aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado. o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos.
Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfidência tem vencido, os cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes. Pois não é muito que, não tendo vencido, a história lhe dê a prin-cipa1 cadeira. A distribuição é justa. Os outros têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das cousas.
Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas: “Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes”. Foi o que nos fez Tiradentes.
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa a alcunha. Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião — dentista. Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.
Há muitos anos, um rapaz—por sinal que bonito—estava para casar com uma linda moça—a aprazimento de todos, pais e mães, irmãos, tios e primos. Mas o noivo demorava o consórcio; adiava de um sábado para outro, depois quinta-feira, logo terça, mais tarde sábado;—dou meses de espera. Ao fim desse tempo, o futuro sogro comunicou à mulher os seus receios. Talvez o rapaz não quisesse casar. A sogra, que antes de o ser já era, pegou o pau moral, e foi ter com o esquisito genro. Que histórias eram aquelas de adiamento?
—Perdão, minha senhora, é uma nobre e alta razão; espero apenas . . .
—Apenas…?
—Apenas o meu título de agrimensor.
—De agrimensor? Mas quem lhe diz que minha filha precisa do seu ofício para comer? Case, que não morrerá de fome; o título virá depois.
—Perdão, mas não é pelo título de agrimensor, propriamente dito, que estou demorando o casamento. Lá na roça dá-se ao agrimensor, por cortesia, o título de doutor, e eu quisera casar já doutor . . .
Sogra, sogro, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, e aprovaram o moco. Em boa hora o fizeram. Dali a três meses recebia o noivo os títulos de agrimensor, de doutor e de marido.
Daqui ao caso eleitoral é menos que um passo; mas, não entendendo eu de política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado na eleição do dia 20 quer dizer descrença, como afirmam uns, ou abstenção como outros juram. A descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor: a abstenção é propósito. Há quem não veja em tudo isto mais de ignorância do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus patrícios. O que sei, é que fui à minha seção para votar, mas achei a porta fechada e a urna na rua, com os livros e ofícios. Outra casa os acolheu compassiva, mas os mesários não tinham sido avisados e os eleitores eram cinco. Discutimos a questão de saber o que é que nasceu primeiro, se a galinha, se o ovo. Era o problema, a charada, a adivinhação de segunda-feira. Dividiram-se as opiniões; uns foram pelo ovo outros pela galinha; o próprio galo teve um voto. Os candidatos é que não tiveram nem um, porque os mesários não vieram e bateram dez horas. Podia acabar em prosa, mas prefiro o verso:
Sara, belle d’indolence,
Se balance
Dans un hamac…
O BANCO INICIADOR de Melhoramentos acaba de iniciar um melhoramento, que vem mudar essencialmente a composição das atas das assembléias gerais de acionistas.
Estes documentos (toda a gente o sabe) são o resumo das deliberações dos acionistas, quer dizer uma narração sumária, em estilo indireto e seco, do que se passou entre eles, relativamente ao objeto que os congregou. Não dão a menor sensação dos movimentos e da vida dos debates. As narrações literárias, quando se regem por esse processo, podem vencer o tédio, à força de talento, mas é evidentemente melhor que as cousas e pessoas se exponham por si mesmas, dando-se a palavra a todos, e a cada um a sua natural linguagem.
Tal é o melhoramento a que aludo. A ata que aquela associação publicou esta semana, é um modelo novo, de extraordinário efeito. Nada falta do que se disse, e pela boca de quem disse, à maneira dos debates congressionais.—”Peço a palavra pela ordem”—”Está encerrada a discussão e vai-se proceder à votação. Os senhores que aprovam queiram ficar sentados.” Tudo assim, qual se passou, se ouviu, se replicou e se acabou.
E basta um exemplo para mostrar a vantagem da reforma. Tratando-se de resolver sobre o balanço, consultou o presidente à assembléia se a votação seria por ações, ou não. Um só acionista adotou a afirmativa; e tanto bastava para que os votos se contassem por ações, como declarou o presidente, mas outro acionista pediu a palavra pela ordem. “Tem a palavra pela ordem.” E o acionista: “Peço a V. Ex.a Sr. Presidente, que consulte ao Sr. acionista que se levantou, se ele desiste, visto que a votação por ações, exigindo a chamada, tomará muito tempo”. Consultado o divergente, este desistiu, e a votação se fez per capita. Assim ficamos sabendo que o tempo é a causa da supressão de certas formalidades exteriores; e assim também vemos que cada um, desde que a matéria não seja essencial, sacrifica facilmente o seu parecer em benefício comum.
O pior é se corromperem este uso, e se começarem a fazer das sociedades pequenos parlamentos. Será um desastre. Nós pecamos pelo ruim gosto de esgotar todas as novidades. Uma frase, uma fórmula, qualquer cousa, não a deixamos antes de posta em molambo. Casos há em que a própria referência crítica ao abuso perde a graça que tinha, à força da repetição; e quando um homem quer passar por insípido (o interesse toma todas as formas), alude a uma dessas chatezas públicas. Assim morrem afinal os usos, os costumes, as instituições, as sociedades, o bom e o mau. Assim morrerá o universo, se se não renovar freqüentemente.
Quando, porém, acabará o nome que encima estas linhas? Não sei quem foi o primeiro que compôs esta frase, depois de escrever no alto do artigo o nome de um cidadão. Quem inventou a pólvora? Quem inventou a imprensa, descontando Gutenberg, porque os chins a conheciam? Quem inventou o bocejo, excluindo naturalmente o Criador, que, em verdade, não há de ter visto sem algum tédio as impaciências de Eva? Sim, pode ser que na alta mente divina estivesse já o primeiro consórcio e a conseqüente humanidade. Nada afirmo, porque me falta a devida autoridade teológica; uso da forma dubitativa. Entretanto, nada mais possível que a Criação trouxesse já em gérmen uma longa espécie superior, destinada a viver num eterno paraíso.
Eva é que atrapalhou tudo. E daí, razoavelmente, o primeiro bocejo.
—Como esta espécie corresponde já à sua índole! diria Deus consigo. Há de ser assim sempre, impaciente, incapaz de esperar a hora própria. Nunca os relógios, que há de inventar, andarão todos certos. Por um exato, contar-se-ão milhões divergentes, e a casa em que dous marearem o mesmo minuto. não apresentará igual fenômeno vinte e quatro horas depois. Espécie inquieta, que formará reinos para devorá-los, repúblicas para dissolvê-las, democracias, aristocracias, oligarquias, plutocracias, autocracias, para acabar com elas, à procura do ótimo, que não achará nunca.
E, bocejando outra vez, terá Deus acrescentado:
— O bocejo, que em mim é o sinal do fastio que me dá este espetáculo futuro, também a espécie humana o terá, mas por impaciência. O tempo lhe parecerá a eternidade. Tudo que lhe durar mais de algumas horas, dias, semanas, meses ou anos (porque ela dividirá o tempo e inventará almanaques, há de torná-la impaciente de ver outra cousa e desfazer o que acabou de fazer, às vezes antes de o ter acabado.
Compreenderá as vacas gordas, porque a gordura dá que comer, mas não entenderá as vacas magras; e não saberá (exceto no Egito, onde porei um mancebo chamado José) encher os celeiros dos anos graúdos, para acudir à penúria dos anos miúdos. Falará muitas línguas, beresith, ananké, habeas corpus, sem se fixar de vez em uma só, e quando chegar a entender que uma língua única é precisa, e inventar o volapuk, sucessor do parlamentarismo, terá começado a decadência e a transformação. Pode ser então que eu povoe o mundo de canários.
Mas se assim explicarmos o primeiro bocejo divino, como acharmos o primeiro bocejo humano? Trevas tudo. O mesmo se dá com o nome que encima estas linhas. Nem me lembra em que ano apareceu a fórmula. Bonita era, e o verbo encimar não era feio. Entrou a reproduzir-se de um modo infinito. Toda a gente tinha um nome que encimar algumas linhas. Não havia aniversário, nomeação, embarque, desembarque, esmola, inauguração, não havia nada que não inspirasse algumas linhas a alguém, — às vezes com o maior fim de encimá-las por um nome. Como era natural, a fórmula foi-se gastando—mas gastando pelo mesmo modo por que se gastam os sapatos econômicos, que envelhecem tarde. E todos os nomes do calendário foram encimando todas as linhas; depois, repetiram-se:
Si cette histoire vous embête
Nous allons la recommencer.
”O MINISTÉRIO grego pediu demissão. O Sr. Tricoupis foi encarregado de organizar novo ministério, que ficou assim composto: Tricoupis, presidente do conselho e Ministro da Fazenda…”
Basta! Não, não reproduzo este telegrama, que teve mais poder em mim que toda a mole de acontecimentos da semana. O ministério grego pediu demissão! Certo, os ministérios são organizados para se demitirem e os ministérios gregos não podem ser, neste ponto, menos ministérios que todos os outros ministérios. Mas, por Vênus! foi para isso que arrancaram a velha terra às mãos turcas? Foi para isso que os poetas a cantaram, em plena manhã do século, Byron, Hugo, o nosso José Bonifácio, autor da bela “Ode aos Gregos”? “Sois helenos! sois homens!” conclui uma de suas estrofes. Homens creio, porque é próprio de homens formar ministérios; mas helenos
Sombra de Aristóteles, espectro de Licurgo, de Draco, de Sólon, e tu, justo Aristides, apesar do ostracismo, e todos vós, legisladores, chefes de governo ou de exército, filósofos, políticos, acaso sonhastes jamais com esta imensa banalidade de um gabinete que pede demissão? Onde estão os homens de Plutarco? Onde vão os deuses de Homero? Que é dos tempos em que Aspásia ensinava retórica aos oradores?— Tudo, tudo passou. Agora há um parlamento, um rei, um gabinete e um presidente de conselho, o Sr. Tricoupis, que ficou com a pasta da Fazenda. Ouves bem, sombra de Péricles? Pasta da Fazenda. E notai mais que todos esses movimentos políticos se fazem, metidos os homens em casacas pretas, com sapatos de verniz ou cordovão, ao cabo de moções de desconfiança…
Oh! mil vezes a dominação turca! Horrível, decerto, mas pitoresca. Aqueles paxás, perseguidores do giaour, eram deliciosos de poesia e terror. Vede se a Turquia atual já aceitou ministérios. Um grão-vizir, nomeado pelo padixá, e alguns ajudantes, tudo sem câmara, nem votos. A Rússia também está livre da lepra ocidental. Tem o niilismo, é verdade; mas não tem o bimetalismo, que passou da América à Europa, onde começa a grassar com intensidade. O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois é misterioso, dramático, épico, lírico, todas as formas da poesia. Um homem esta jantando tranqüilo, entre uma senhora e uma pilhéria, deita a pilhéria à senhora, e, quando vai a erguer um brinde… estala uma bomba de dinamite. Adeus, homem tranqüilo: adeus, pilhéria; adeus, senhora. n violento; mas o bimetalismo é pior.
Do bimetalismo ao nosso velho amigo pluripapelismo não é curta a distancia, mas daqui ao cambio é um passo; pode parecer até que não falei do primeiro senão para dar a volta ao mundo. Engano manifesto. Hoje só trato de telegramas, que aí estão de sobra, norte e sul. Aqui vêm alguns de Pernambuco, dizendo que as intendências municipais também estão votando moções de confiança e desconfiança política. Haverá quem as censure; eu compreendo-as até certo ponto.
A moção de confiança, ou desconfiança no passado regímen, era uma ambrosia dos deuses centrais. Era aqui na Câmara dos Deputados, que um honrado membro, quando desconfiava do governo pedia a palavra ao presidente, e, obtida a palavra, erguia-se. Curto ou extenso, mas geralmente tétrico, proferia um discurso em que resumia todos os erros e crimes do ministério, e acabava sacando um papel do bolso. Esse papel era a moção. De confidências que recebi, sei que há poucas sensações na vida iguais à que tinha o orador, quando sacava o papel do bolso. A alguns tremiam os dedos. Os olhos percorriam a sala, depois baixavam ao papel e liam o conteúdo. Em seguida a moção era enviada ao presidente, e o orador descia da tribuna, isto é, das pernas que são a única tribuna que há no nosso parlamento, não contando uns dous púlpitos que lá puseram uma vez, e não serviram para nada.
Aí têm o que era a moção. Nunca as assembléias provinciais tiveram esse regalo; menos ainda as tristes câmaras municipais. Mudado o regímen, acabou a moção; mas, não se morre por decreto. A moção não só vive ainda, mas passou dos deuses centrais aos semideuses locais, e viverá algum tempo, até que acabe de todo, se acabar algum dia. O caso grego é sintomático; o caso japonês não menos. Há moções japonesas. Quando as houver chinesas, chegou o fim do mundo; não haverá mais que fechar as malas e ir para o diabo.
Outro telegrama conta-nos que alguns clavinoteiros de Canavieiras (Bahia) foram a uma vila próxima e arrebataram duas moças. A gente da vila ia armar-se e assaltar Canavieiras. Parece nada, e é Homero; é ainda mais que Homero, que só contou o rapto de uma Helena: aqui são duas. Essa luta obscura, escondida no interior da Bahia, foi singular contraste com a outra que se trava no Rio Grande do Sul, onde a causa não é uma, nem duas Helenas, mas um só governo político. Apuradas as contas, vem a dar nesta velha verdade que o amor e o poder são as duas forças principais da terra. Duas vilas disputam a posse de duas moças; Bagé luta com Porto Alegre pelo direito do mando. É a mesma Ilíada.
Dizem telegramas de S. Paulo que foi ali achado, em certa casa que se demolia, um esqueleto algemado. Não tenho amor a esqueletos; mas este esqueleto algemado diz-me alguma cousa, e é difícil que eu o mandasse embora, sem três ou quatro perguntas. Talvez ele me contasse uma história grave, longa e naturalmente triste, por-que as algemas não são alegres. Alegres eram umas máscaras de lata que vi em pequeno na cara de escravos dados à cachaça; alegres ou grotescas, não sei bem, porque lá vão muitos anos, e eu era tão criança, que não distinguia bem. A verdade é que as máscaras faziam rir, mais que as do recente carnaval. O ferro das algemas, sendo mais duro que a lata, a história devia ser mais sombria.
Há um telegrama… Diabo! acabou-se o espaço, e ainda aqui tenho uma dúzia. Cesta com eles! Vão para onde foi a questão do benzimento da bandeira, os guarda-livros que fogem levando a caixa (outro telegrama), e o resto dos restos, que não dura mais de uma semana, nem tanto. Vão para onde já foi esta crônica. Fale o leitor a sua verdade. e diga-me se lhe ficou alguma cousa do que acabou de ler. Talvez uma só, a palavra clavinoteiros, que parece exprimir um costume ou um ofício. Cá vai para o vocabulário.
[101] [3 julho]NA VÉSPERA de S. Pedro, ouvi tocar os sinos. Poucos minutos depois, passei pela igreja do Carmo, catedral provisória, ouvi o cantochão e orquestra; entrei. Quase ninguém. Ao fundo, os ilustríssimos prebendados, em suas cadeiras e bancos, vestidos daquele roxo dos cônegos e monsenhores, tão meu conhecido . Cantavam louvores a S. Pedro. Deixei-me estar ali alguns minutos escutando e dando graças ao príncipe dos apóstolos por não haver na igreja do Carmo um carrilhão.
Explico-me. Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas igrejas. Quando um dia li o capítulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me tanto as palavras daquele grande espírito. que me senti (desculpem a expressão) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado. Assim se diz na igreja espírita. Ter desencarnado quer dizer tirado (o espírito) da carne, e reencarnado quer dizer metido outra vez na carne. A lei é esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir scmprc.
Convém notar que a desencarnação não se opera como nas outras religiões, em que a alma sai toda de uma vez. No espiritismo, há ainda um esforço humano, uma cerimônia, para ajudar a sair o resto. Não se morre ali com esta facilidade ordinária, que nem merece o nome de morte. Ninguém ignora que há caso de inumações de pessoas meio vivas. A regra espírita, porém, de auxiliar por palavras, gestos e pensamentos a desencarnação impede que um supro de alma fique metido no invólucro mortal.
Posso afirmar o que aí fica, porque sei. Só o que eu não sei, é se os sacerdotes espíritas são como os brâmanes, seus avós. Os brâmanes… Não, o melhor é dizer isto por linguagem clássica. Aqui está como se exprime um velho autor: “Tanto que um dos pensamentos por que os brâmanes têm tamanho respeito às vacas, é por haverem que no corpo desta alimária fica uma alma melhor agasalhada que em nenhum outro, depois que sai do humano; e assim põem sua maior bem-aventurança em os tomar a morte com as mãos nas ancas de uma vaca, esperando se recolha logo a alma nela.”
Ah! se eu ainda vejo um amigo meu, sacerdote espírita, metido dentro de uma vaca, e um homem, não desencarnado, a vender-lhe o leite pelas ruas, seguidos de um bezerro magro… Não; lembra-me agora que não pode ser, porque o princípio espírita não é o mesmo da transmigração, em que as almas dos valentes vão para os corpos dos leões, a dos fracos para os das galinhas, a dos astutos para os das raposas, e assim por diante. O princípio espírita é fundado no progresso. Renascer, progredir sempre; tal é a lei. O renascimento é para melhor. Cada espírita, em se desencarnando, vai para os mundos superiores.
Entretanto, pergunto eu: não se dará o progresso, algumas vezes. na própria terra? Citarei um fato. Conheci há anos um velho, bastante alquebrado e assaz culto, que me afirmava estar na segunda encarnação. Antes disso, tinha existido no corpo de um soldado romano, e, como tal, havia assistido à morte de Cristo. Referia-me tudo, e até circunstâncias que não constam das escrituras. Esse bom velho não falava da terceira e próxima encarnação sem grande alegria, pela certeza que tinha de que lhe caberia um grande cargo. Pensava na coroa da Alemanha… E quem nos pode afirmar que o Guilherme II. que aí está, não seja ele? Há, repetimos, cousas na vida que é mais acertado crer que desmentir; e quem não puder — crer, que se cale.
Voltemos ao carrilhão. Já referi que entrara na igreja, não contei; mas entende-se, que na igreja não entram revoluções, por isso não falo da do Rio Grande do Sul. Pode entrar a anarquia, é verdade, como a daquele singular pároco da Bahia, que, mandado calar e declarado suspenso de ordens, segundo dizem telegramas, não obedece, não se cala, e continua a paroquiar. Os clavinoteiros também não entram; por isso ameaçam Porto Seguro, conforme outros telegramas. Não entram discursos parlamentares, nem lutas ítalo — santistas, nem auxílios às indústrias, nem nada. Há ali um refúgio contra os tumultos exteriores e contra os boatos, que recomeçam. Voltemos ao carrilhão.
Criado, como ia dizendo, com os pobres sinos das nossas igrejas, não provei até certa idade as aventuras de um carrilhão. Ouvia falar de carrilhão, como das ilhas Filipinas, uma cousa que eu nunca havia de ver nem ouvir.
Um dia, anuncia-se a chegada de um carrilhão. Tínhamos carrilhão na terra. Outro dia, indo a passar por uma rua, ouço uns sons alegres e animados. Conhecia a toada, mas não lembrava a letra.
Perguntei a um menino, que me indicou a igreja próxima e disse–me que era o carrilhão. E, não contente com a resposta, pôs a letra na música: era o Amor Tem Fogo. Geralmente, não dou fé a crianças. Fui a um homem que estava à porta de uma loja e o homem confirmou o caso, e cantou do mesmo modo; depois calou-se e disse convencidamente: parece incrível como se possa, sem o prestígio do teatro, as saias das mulheres, os requebrados, etc., dar uma impressão tão exata da opereta. Feche os olhos, ouça-me a mim e ao carrilhão, e diga-me se não ouve a opereta em carne e osso:
Amor tem fogo,
Tem fogo amor.
— Carne sem osso, meu rico senhor, carne sem osso.
[102] [10 julho]S. PEDRO, apóstolo da circuncisão, e S. Paulo, apóstolo de outra cousa, que a Igreja Católica traduziu por gentes, e que não é preciso dizer pelo seu nome, dominaram tudo esta semana. Eu, quando vejo um ou dous assuntos puxarem para si todo o cobertor da atenção pública, deixando os outros ao relento, dá-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo à cena tão-somente a arraia-miúda, as pobres ocorrências de nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada anônima, a estatística mortuária, as tentativas de suicídio. O cocheiro que foge, o noticiário, em suma.
É que eu sou justo, e não posso ver o fraco esmagado pelo forte. Além disso, nasci com certo orgulho, que já agora há de morrer comigo. Não gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu é que os hei de enfeitar com dous ou três adjetivos, uma reminiscência clássica, e os mais galões de estilo. Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários.
Daí o meu amor às chamadas chapas. Orador que me quiser ver aplaudi-lo, há de empregar dessas belas frases feitas, que, já estando em mim, ecoam de tal maneira, que me parece que eu é que sou o orador. Então, sim, senhor, todo eu sou mãos, todo eu sou boca, para bradar e palmear. Bem sei que não é chapisca quem quer. A educação faz bons chapiscas, mas não os faz sublimes. Aprendem-se as chapas, é verdade, como Rafael aprendeu as tintas e os pincéis; mas só a vocação faz a Madona e um grande discurso. Todos podem dizer que “a liberdade é como a fênix, que renasce das próprias cinzas”; mas só o chapisca sabe acomodar esta frase em fina moldura. Que dificuldade há em repetir que “a imprensa, como a lança de Télefo, cura as feridas que faz”? Nenhum; mas a questão não é de ter facilidade, é de ter graça. E depois, se há chapas anteriores, frases servidas, idéias enxovalhadas, há também (e nisto se conhece o gênio) muitas frases que nunca ninguém proferiu, e nascem já com cabelos brancos. Esta invenção de chapas originais distingue mais positivamente o chapisca nato do chapisca por educação.
Voltemos aos apóstolos. Que direito tinha S. Pedro de dominar os acontecimentos da semana? Estava escrito que ele negaria três vezes o divino Mestre, antes de cantar o galo. Cantou o galo, quando acabava de o negar pela terceira vez, e reconheceu a verdade da profecia. Quanto a S. Paulo, tendo ensinado a palavra divina às igrejas de Sicília, de Gênova e de Nápoles, viu que alguns a sublevaram para torná-las ao pecado (ou para outra cousa), e lançou uma daquelas suas epístolas exortativas; concluindo tudo por ser levado o conflito a Roma e a Jerusalém, onde os magistrados e doutores da lei estudavam a verdade das cousas.
São negócios graves, convenho; mas há outros que, por serem leves, não merecem menos. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, deu-se uma pequena divergência. de que apenas tive vaga notícia, por não poder ler, como não posso escrever; o que os senhores estão lendo, vai saindo a olhos fechados. Ah! meus caros amigos! Ando com uma vista (isto é grego; em português diz-se um olho) muito inflamada, a ponto de não poder ler nem escrever. Ouvi que na Câmara surdiu divergência entre a maioria e a minoria, por causa da anistia. A questão rimava nas palavras, mas não rimava nos espíritos. Daí confusão, difusão, abstenção. Dizem que um jornal chamou ao caso um beco sem saída; mas um amigo meu (pessoa dada a aventuras amorosas) diz-me que todo beco tem saída; em caso de fuga, salta-se por cima do muro, trepa-se ao morro próximo, ou cai-se do outro lado. Coragem e pernas. Não entendi nada.
A falta de olhos é tudo. Quando a gente lê por olhos estranhos entende mal as cousas. Assim é que, por telegrama, sabe-se aqui haver o governador de um Estado presidido à extração da loteria; depois, supus que o ato fora praticado para o fim de inspirar confiança aos compradores de bilhetes.
— A segunda hipótese é a verdadeira, acudiu o amigo que me lia os jornais. Não vê como as agências sérias são obrigadas a mandar anunciar que, se as loterias não correrem no dia marcado, pagarão os bilhetes pelo dobro?
— É verdade, tenho visto.
— Pois é isto. Ninguém confia em ninguém, e é o nosso mal. Se há quem desconfie de mim!
— Não me diga isso
— Não lhe digo outra cousa. Desconfiam que não ponho o seio integral aos meus papéis: é verdade ( e não sou único ); mas, além de que revalido sempre o selo quando é necessário levar os papéis a juízo, a quem prejudico eu, tirando ao Estado? A mim mesmo, porque o tesouro, nos governos modernos, é de todos nós. Verdadeiramente, tiro de um bolso para meter no outro. Luís XIV dizia: “O Estado sou eu! “Cada um de nós é um tronco miúdo de Luís XIV, com a diferença de que nós pagamos os impostos, e Luís XIV recebia-os… Pois desconfiam de mim! São capazes de desconfiar do diabo. Creio que começo a escrever no ar e …
[103] [31 de julho]Esta semana furtaram a um senhor que ia pela rua mil debêntures; ele providenciou de modo que pôde salvá-los. Confesso que não acreditei na notícia, a princípio; mas o respeito em que fui educado para com a letra redonda fez-me acabar de crer que se não fosse verdade não seria impresso. Não creio em verdades manuscritas. Os próprios versos, que só se fazem por medida, parecem errados, quando escritos à mão. A razão por que muitos moços enganam as moças e vice-versa é escreverem as suas cartas, e entregá-las de mão a mão, ou pela criada, ou pela prima ou por qualquer outro modo, que no meu tempo, era ainda inédito. Quem não engana é o namorado da folha pública; “Querida X, não foste hoje ao lugar do costume; esperei até às três horas. Responde ao teu Z.” E a namorada “Querido Z. Não fui ontem por motivos que te direi à vista. Sábado, com certeza, à hora costumada; não faltes. Tua X”. Isto é sério, claro, exato, cordial.
A razão que me fez duvidar a princípio foi a noção que me ficou dos negócios de debêntures. Quando este nome começou a andar de boca em boca, até fazer-se um coro universal, veio ter comigo um chaparreiro aqui da vizinhança e confessou que, não sabendo ler, queria que lhe dissesse se aqueles papéis valiam alguma coisa. Eu, verdadeiro eco da opinião nacional, respondi que não havia nada melhor, ele pegou nas economias e comprou uma centena de delas. Cresceu ainda o preço e ele quis vendê-las; mas eu acudi a tempo de suspender esse desastre. Vender o quê? Deixasse estar os papéis que o preço ia subir por aí além. O homem confiou e esperou. Daí a tempo ouvi um rumor; eram as debêntures que caíam, caíam, caíam… Ele veio procurar-me, debulhado em lágrimas; ainda o fortaleci com uma ou duas parábolas, até que os dias correram, e o desgraçado ficou com os papéis na mão. Consolou-se um pouco quando eu lhe disse que metade da população não tinha outra atitude.
Pouco tempo depois (vejam o que é o amor a estas cousas!) veio ter comigo e proferiu estas palavras:
— Eu já agora perdi quase tudo o que tinha com as tais debêntures, mas ficou-me sempre um cobrinho no fundo do baú, e como agora ouço falar muito em habeas corpus, vinha, sim, vinha perguntar-lhe se esses títulos são bons, e se estão caros ou baratos.
— Não são títulos.
— Mas o nome também é estrangeiro.
— Sim, mas nem por ser estrangeiro, é título; aquele doutor que ali mora defronte é estrangeiro e não é título.
—Isso é verdade. Então parece-lhe que os habeas corpus não são papéis?
— Papéis são; mas são outros papéis.
A idéia de debênture ficou sendo para mim a mesma cousa que nada, de modo que não compreendia que um senhor andasse com mil debêntures na algibeira, que outro as furtasse, e que ele corresse em busca do ladrão. Acreditei por estar impresso. Depois mostraram–me a lista das cotações. Vi que não se vendem tantas como outrora, nem pelo preço antigo, mas há algum negociozinho, pequeno, sobre alguns lotes. Quem sabe o que elas serão ainda algum dia? Tudo tem altos e baixos.
O certo é que mudei de opinião. No dia seguinte, depois do almoço, tirei da gaveta algumas centenas de mil-réis, e caminhei para a Bolsa, encomendando-me (é inútil dizê-lo ) ao Deus Abraão, Isaac e Jacó.Comprei um lote, a preço baixo, e particularmente prometi uma debênture de cera a S. Lucas, se me fizer ganhar um cobrinho grosso. Sei que é imitar aquele homem que, há dias, deu uma chave de cera a S. Pedro, por lhe haver deparado casa em que morasse; mas eu tenho outra razão. Na semana passada falei de uns casais de pombas, que vivem na igreja da Cruz dos Militares, aos pés de S. João e S. Lucas. Uma delas, vendo-me passar, quando voltava da Bolsa, desferiu o vôo, e veio pousar-me no ombro; mostrou-se meio agastada com a publicação, mas acabou dizendo que naquela rua, tão perto dos bancos e da praça, tinham elas uma grande vantagem sobre todos os mortais. Quaisquer que sejam os negócios, — arrulhou-me ao ouvido, — o câmbio para nós está sempre a 27.
Não peço outra cousa ao apóstolo; câmbio a 27 para mim como para elas, e terá a debênture de cera, com inscrições e alegorias. Veja que nem lhe peço a cura da tosse e do coriza que me afligem, desde algum tempo. O meu talentoso amigo Dr. Pedro Américo disse outro dia na Câmara dos Deputados, propondo a criação de um teatro normal, que, por um milagre de higiene, todas as moléstias desaparecessem, “não haveria faculdade, nem artifícios de retórica capazes de convencer a ninguém das belezas da patologia nem da utilidade da terapêutica”. Ah! meu caro amigo! Eu dou todas as belezas da patologia por um nariz livre e um peito desabafado. Creio na utilidade da terapêutica; mas que deliciosa cousa é não saber que ela existe, duvidar dela e até negá-la! Felizes os que podem respirar! bem-aventurados os que não tossem! Agora mesmo interrompi o que ia escrevendo para tossi; e, continuo a escrever de boca aberta para respirar. E falam-me em belezas da patologia… Francamente eu prefiro as belezas da Batalha de Avaí.
A rigor, devia acabar aqui; mas a notícia que acaba de chegar do Amazonas obriga-me a algumas linhas, três ou quatro. Promulgou-se a Constituição, e, por ela, o governador passa-se a chamar presidente do Estado. Com exceção do Pará e Rio Grande do Sul, creio que não falta nenhum. Sono tutti fatti marchesi. Eu, se fosse presidente da República, promovia a reforma da Constituição, para o único fim de chamar-me governador. Ficava assim um governador cercado de presidentes, ao contrário dos Estados Unidos da América, e fazendo lembrar o imperador Napoleão, vestido com a modesta farda lendária, no meio dos seus marechais em grande uniforme.
Outra notícia que me obriga a não acabar aqui, é a de estarem os rapazes do comércio de S. Paulo fazendo reuniões para se alistarem na guarda nacional, em desacordo com os daqui, que acabam de pedir dispensa de tal serviço. Questão de meio; o meio é tudo. Não há exaltação para uns nem depressão para outros. Duas cousas contrárias podem ser verdadeiras e até legítimas conforme a zona. Eu, por exemplo, execro o mate chimarrão, os nossos irmãos do Rio Grande do Sul acham que não há bebida mais saborosa neste mundo. Segue-se que o mate deve ser sempre uma ou outra cousa? Não; segue-se o meio; o meio é tudo.
[104] [14 agosto]SEMANA e finanças são hoje a mesma cousa. E tão graves são os negócios financeiros, que escrever isto só, pingar-lhe um ponto e mandar o papel para a imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever. Mas o leitor quer os seus poetas menores. Que os poetas magnos tratem os sucessos magnos; ele não dispensa aqui os assuntos mínimos, se os houve, e, se os não houve, a reflexões leves e curtas. Força é reproduzir o famoso Marche! Marche! de Bossuet… Perdão, leitor! Bossuet! eis-me aqui mais grave que nunca.
E por que não sei eu finanças? Por que, ao lado dos dotes nativos com que aprouve ao céu distinguir-me entre os homens, não possuo a ciência financeira? Por que ignoro eu a teoria do imposto, a lei do câmbio, e mal distingo dez mil-réis de dez tostões? Nos bonds é que me sinto vexado. Há sempre três e quatro pessoas (principalmente agora) que tratam das cousas financeiras e econômicas, e das causas das cousas, com tal ardor e autoridade, que me oprimem. É então que eu leio algum jornal, se o levo, ou rôo as unhas, — vício dispensável; mas antes vicioso que ignorante.
Quando não tenho jornal, nem unhas, atiro-me às tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o comércio e a indústria, a pintura e a ortografia. E não é novo este meu costume, em casos de aperto. Foi assim que um dia, há anos, não me lembra em que loja, nem em que rua, achei uma tabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este título era uma nova edição da esfinge.
Pensei nele, estudei-o, e não podia dar com o sentido, até que me lembrou virá-lo do avesso: Ao Destino do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso; porque, em suma, pode admitir-se um destino ao planeta em que pisamos… Talvez a ciência econômica e financeira seja isto mesmo, o avesso do que dizem os discutidores de bonds. Quantas verdades escondidas em frases trocadas! Quanto fiz esta reflexão, exultei. Grande consolação é persuadir-se um homem de que os outros são asnos.
E aí estão quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto não sei bem qual seja, tantos são eles e tão opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças, que me não lembre do Honório Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de uma cidade alemã. Iam com ele moças e homens a cavalo— viram uma flor muito bonita no alto de uma árvore, Bicalho ou outro quis colhê-la, apoiando os pés no dorso do cavalo, mas não alcançava a flor. Por fortuna, vinha da povoação um moleque, e o Bicalho foi ter com ele.
— Vem cá, trepa àquela árvore, e tira a flor que está em cima. . .
Estacou assombrado. O moleque respondeu-lhe em alemão, que não entendia português. Quando Bicalho entrou na cidade, e não ouviu nem leu outra língua senão a alemã, a rica e forte língua de Goethe e de Heine, teve uma impressão que ele resumia assim: “Achei-me estrangeiro no meu próprio país!” Lembram-se dele? Grande talento, todo ele vida e espírito.
Isto, porém, não tem nada com os chins, nem os judeus, nem particularmente com aquela moça que acaba de impedir a canonização de Colombo. Hão de ter lido o telegrama que dá notícia de haver sido posta de lado a idéia de canonização do grande homem, por motivo de uns amores que ele trouxera com uma judia. Todos os escrúpulos são respeitáveis, e seria impertinência querer dar lições ao Santo Padre em matéria de economia católica. Colombo perdeu a canonização sem perder a glória, e a própria Igreja o sublima por ela. Mas…
Mas, por mais que a gente fuja com o pensamento ao caso, o pensamento escapa-se, rompe os séculos e vai farejar essa judia que tamanha influência devia ter na posteridade. E compõe a figura pelas que conhece. Há-as de olhos negros e de olhos garços, umas que deslizam sem pisar no chão, outras que atam os braços ao descuidado com a simples corda das pestanas infinitas. Nem faltam as que embebedam e as que matam. O pensamento evoca a sombra da filha de Moisés, e pergunta como é que aquele grande e pio genovês, que abriu à fé cristã um novo mundo, e não se abalançou ao descobrimento sem encomendar-se a Deus, podia ter consigo esse pecado mofento, esse fedor judaico, — deleitoso, se querem, mas de entontecer a perder uma alma por todos os séculos dos séculos.
Eu ainda quero crer que ambos, sabendo que eram incompatíveis, fizeram um acordo para dissimular e pecar. Combinaram em ler o Cântico dos Cânticos; mas Colombo daria ao texto bíblico o sentido espiritual e teológico, e ela o sentido natural e molemente hebraico.
— O meu amado é para mim como um cacho de Chipre, que se acha nas vinhas de Engadi.
— Os teus olhos são como os das pombas, sem falar no que está escondido dentro. Os teus dous peitos são como dous filhinhos gêmeos da cabra montesa, que se apascentam entre as açucenas.
— Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas mãos destilavam mirra.
— Os teus lábios são como uma fita escarlate, e o teu falar é doce.
— O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso.
Quantas uniões danadas não se mantêm por acordos semelhantes, em consciência, às vezes! Há uma grande palavra que diz que todas as cousas são puras para quem é puro.
Tornemos à gente cristã, às eleições municipais, à senatorial, aos italianos de S. Paulo que deixam a terra, a D. Carlos de Bourbon que aderiu à República Francesa, em obediência ao Papa, aos bonds elétricos, à subida ao poder do old great man, a mil outras cousas que apenas indico, tão aborrecido estou. Pena da minha alma, vai afrouxando os bicos; diminui esse ardor, não busques adjetivos, nem imagens, não busques nada, a não ser o repouso, o descanso físico e mental, o esquecimento, a contemplação que prende com o cochilo que expira no sono…
[105] [2 outubro]TANNHÄUSER e bonds elétricos. Temos finalmente na terra essas grandes novidades. O empresário do Teatro Lírico fez-nos o favor de dar a famosa ópera de Wagner, enquanto a Companhia de Botafogo tomou a peito transportar-nos mais depressa. Cairão de uma vez o burro e Verdi? Tudo depende das circunstâncias.
Já a esta hora algumas das pessoas que me lêem, sabem o que é a grande ópera. Nem todas; há sempre um grande número de ouvintes que farão ao grande maestro a honra de não perceber tudo desde logo, e entendê-lo melhor à segunda, e de vez à terceira ou quarta execução. Mas não faltam ouvidos acostumados ao seu oficio, que distinguirão na mesma noite o belo do sublime, e o sublime do fraco.
Eu, se lá fosse, não ia em jejum. Pegava de algumas opiniões sólidas e francesas e metia-as na cabeça com facilidade; só não me valeria das muletas do bom Larousse, se ele não as tivesse em casa; mas havia de tê-las. Cai aqui, cai acolá, faria uma opinião prévia, e à noite iria ouvir a grande partitura do mestre. Um amigo:
— Afinal temos o Tannhäuser; eu conheço um trecho, que ouvi há tempos…
— Eu não conheço nada, e quer que lhe diga? É melhor assim. Faço de conta que assisto à primeira representação que se deu no mundo. Tudo novo.
— O que eu ouvi, é soberbo.
— Creio; mas não me diga nada, deixe-me virgem de opiniões, Quero julgar por mim, mal ou bem…
E iria sentar-me e esperar, um tanto nervoso, irrequieto, sem atinar com o binóculo para a revista dos camarotes. Talvez nem levasse binóculo; diria que as grandes solenidades artísticas devem ser estremes de quaisquer outras preocupações humanas. A arte é uma religião. O gênio é o sumo sacerdote. Em vão, Amália, posta no camarote, em frente à mãe, lançaria os olhos para mim, assustada com a minha indiferença e perguntando a si mesma que me teria feito. Eu, teso, espero que as portas do templo se abram, que as harmonias do céu me chamem aos pés do divino mestre; não sei de Amália não quero saber dos seus olhos de turquesa.
Era assim que eu ouviria o Tannhäuser. Nos intervalos, visita aos camarotes e crítica. Aquela entrada dos fagotes, lembra-se? Admirável! Os coros, o duo, os violinos, oh! o trabalho dos violinos que cousa adorável, com aquele motivo obrigado: lá, lá, lá tra, lá, lá, lá, tra, lá, lá. . . Há neste ato inspirações que são, com certeza, as maiores do século. De resto, os próprios franceses emendaram a mão dando a Wagner o preito que lhe cabe, como um criador genial…
As senhoras ouvem-me encantadas; a linda Amália sente-se honrada com a indiferença de há pouco, vendo que ela e a arte são o meu culto único.
Ao fundo, o pai e um homem de suíças falam da fusão do Banco do Brasil com o da República. O irmão, encostado à divisão do camarote, conversa com uma dama vizinha, casada de fresco, ombros magníficos. Que tenho eu com ombros, nem com bancos? Lá, lá, lá, tra, lá, lá, lá, tra, lá, lá . . .
Feitas as despedidas, passaria a outro camarote, para continuar a minha crítica. Dous homens, sempre ao fundo, conversam baixo, um recitando os versos de Garrett sobre a Guerra das Duas Rosas, o outro esperando a aplicação. A aplicação é a Câmara Municipal de S. Paulo, que acaba de tomar posse solene, com assistência do presidente e dos secretários do Estado… Interrupção do segundo: “Pode comparar-se o caso dos dous secretários à conciliação que o poeta fez das duas rosas?” Explicação do primeiro: “Não; refiro-me à inauguração que a Câmara fez dos retratos de Deodoro e Benjamim Constante. Uniu os dous rivais póstumos em uma só comemoração, e a história ou a lenda que faça o resto”.
Não espero pelo resto; falo às senhoras no duo e na entrada dos fagotes. Bela entrada de fagotes. Os coros admiráveis, e o trabalho dos violinos simplesmente esplêndido. Hão de ter notado que a música reproduz perfeitamente a lenda, como o espelho a figura; prendem-se ambas em uma só inspiração genial. Aquele motivo obrigado dos violinos é a mais bela inspiração que tenho ouvido: lá, lá, lá, tra, lá, lá, lá, tra…
Terceiro camarote, violinos, fagotes, coros e o duo. Pormenores técnicos. Ao fundo, dous homens, que falam de um congresso psicológico em Chicago, dizem que os nossos espíritas vão ter ocasião de aparecer, porque o convite estende-se a eles. Tratar-se-á não só dos fenômenos psicofísicos, como sejam as pancadas, as oscilações em mesas, a escrita, e outras manifestações espíritas, como ainda da questão da vida futura. Um dos interlocutores declara que os únicos espíritas que conhece, são dous, moram ao pé dele e já não pertencem a este mundo; estão nos intermúndios de Epicuro. Andam cá os corpos, por efeito do movimento que traziam quando habitados pelos espíritos, como aqueles astros cuja luz ainda vemos hoje, estando apagados há muitos séculos…
A orquestra chama a postos, sobe o pano, assisto ao ato, e faço a mesma peregrinação no intervalo; mudo só as citações, mas a crítica é sempre verdadeira. Ouço os mesmos homens, ao fundo, conversando sobre cousas alheias ao Wagner. Eu, entregue à crítica musical, não dou pelas rusgas da intendência, não atendo às candidaturas municipais agarradas aos eleitores, não dou por nada que não seja a grande ópera. E sento-me, recordo prontamente o que li sobre o ato, oh! um ato esplêndido!
Fim do espetáculo. Corro a encontrar-me com a família de Amália, para acompanhá-la à carruagem. Dou o braço à mãe e crítico o último ato, depois resumo a crítica dos outros atos. Elas e o pai entram na carruagem; despedidas à portinhola; aperto a bela mão da minha querida Amália… Pormenores técnicos.
[106] [9 outubro]Eis aí uma semana cheia. Projetos e projetos bancários, debates e debates financeiros, prisão de diretores de companhias, denúncia de outros, dous mil comerciantes marchando para o palácio Itamarati, a pé, debaixo d’água, processo Maria Antônia, fusão de bancos, alça rápida de câmbio, tudo isso grave, soturno, trágico ou simplesmente enfadonho. Uma só nota idílica entre tanta cousa grave, soturna, trágica ou simplesmente enfadonha; foi a morte de Renan. A de Tennyson, que também foi esta semana, não trouxe igual caráter, apesar do poeta que era, da idade que tinha. Uma gravura inglesa recente dá, em dous grupos, os anos de 1842 e 1892, meio século de separação. No primeiro era Southey que fazia o papel de Tennyson, e o poeta laureado de 1842, como o de 1892. acompanhava os demais personagens oficiais do ano respectivo, o chefe dos tories, o chefe dos whigs, o arcebispo de Cantuária. A rainha é que é a mesma. Tudo instituições. Tennyson era uma instituição, e há belas instituições, Os seus oitenta e três anos não lhe tinham arrancado as plumas das asas de poeta; ainda agora anunciava-me um novo escrito seu. Mas era uma glória britânica; não teve a influência nem a universalidade do grande francês.
Renan, como Tennyson, despegou-se da vida no espaço de dous telegramas, algumas horas apenas. Não penso em agonias de Renan. Afigura-se-me que ele voltou o corpo de um lado para outro e fechou os olhos. Mas agonia que fosse, e por mais longa que haja sido, ter-lhe-á custado pouco ou nada o último adeus daquele grande pensador, tão plácido para com as fatalidades, tão prestes a absolver as cousas irremissíveis.
Comparando este glorioso desfecho com aquele dia em que Renan subiu à cadeira de professor e soltou as famosas palavras: “Alors, un homme a paru… “, podemos crer que os homens, como os livros, têm os seus destinos. Recordo-me do efeito, que foi universal; a audácia produziu escândalo, e a punição foi pronta. O professor desceu da cadeira para o gabinete. Passaram-se muitos anos, as instituições políticas tombaram, outras vieram, e o professor morre professor, após uma obra vasta e luminosa, universalmente aclamado como sábio e como artista. Os seus próprios adversários não lhe negam admiração, e porventura lhe farão justiça. J’ai tout critiqué (diz ele em um dos seus prefácios) et quoi qu’on en dise, y j’ai tout maintenu. O século que está a chegar, criticará ainda uma vez a crítica, e dirá que o ilustre exegeta definiu bem a sua ação.
A morte não pode ter aparecido a esse magnífico espírito com aqueles dentes sem boca e aqueles furos sem olhos, com que os demais pecadores a vêem, mas com as feições da vida, coroada de flores simples e graves. Para Renan a vida nem tinha o defeito da morte. Sabe-se que era desejo seu, se houvesse de tornar à terra, ter a mesma existência anterior, sem alteração de trâmites nem de dias. Não se pode confessar mais vivamente a bem-aventurança terrestre. Um poeta daquele país, o velho Ronsard, para igual hipótese, preferia vir tornado em pássaro, a ser duas vezes homem. Eu (fale-mos um pouco de mim), se não fossem as armadilhas próprias do homem e o uso de matar o tempo matando pássaros, também quisera regressar pássaro.
Não voltou o pássaro Ronsard, como não voltará o homem Renan. Este irá para onde estão os grandes do século, que começou em França como o autor de René, e acaba com o da Vida de Jesus, páginas tão características de suas respectivas datas.
Não faço aqui análises que me não competem, nem cito obras, nem componho biografia. O jornalismo desta capital mostrou já o que valia o autor de tantos e tão adoráveis livros, falou daquele estilo incomparável, puro e sólido, feito de cristal e melodia. Nada disso me cabe. A rigor, nem me cabe cuidar da morte. Cuidei desta por ser a única nota idílica, entre tanta cousa grave, soturna, trágica ou simplesmente enfadonha.
Em verdade, que posso eu dizer das cousas pesadas e duras de uma semana, remendada de códigos e praxistas, a ponto de algarismo e citação? Prisões, que tenho eu com elas? Processos, que tenho eu com eles? Não dirijo companhia alguma, nem anônima, nem pseudônima; não fundei bancos, nem me disponho a fundá-los, e, de todas as cousas deste mundo e do outro, a que menos entendo, é o câmbio. Não é que lhe negue o direito de subir; mas tantas lástimas ouvi pela queda, quantas ouço agora pela ascensão, — não sei se às mesmas pessoas, mas com estes mesmos ouvidos.
Finanças das finanças, são tudo finanças. Para onde quer que me volte, dou com a incandescente questão do dia. Conheço já o vocabulário, mas não sei ainda todas as idéias a que as palavras correspondem, e, quanto aos fenômenos, basta dizer que cada um deles tem três explicações verdadeiras e uma falsa. Melhor é crer tudo. A dúvida não é aqui sabedoria, porque traz debate ríspido, debate traz balança de comércio, por um lado, e excesso de emissões por outro, e, afinal, um fastio que nunca mais acaba.
[107] [16 outubro]NÃO TENDO assistido a inauguração dos bonds elétricos, deixei de falar neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.
Para não mentir, direi o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. Posto não fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade. Não é meu ofício censurar essas meias glórias, ou glórias de empréstimo, como lhe queiram chamar espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se não valem tanto como as de plena propriedade, merecem sempre algumas mostras de simpatia. Para que arrancar um homem a essa agradável sensação? Que tenho para lhe dar em troca?
Em seguida, admirei a marcha serena do bond, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga. Mas, como íamos em sentido contrário, não tardou que nos perdêssemos de vista, dobrando ele para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua do Catete. Nem por isso o perdi de memória. A gente do meu bond ia saindo aqui e ali, outra gente entrava adiante e eu pensava no bond elétrico. Assim fomos seguindo; até que, perto do fim da linha e já noite, éramos só três pessoas, o condutor, o cocheiro e eu. Os dous cochilavam, eu pensava.
De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram os burros que conversavam, inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles mesmos. Como eu conheço um pouco a língua dos Houyhnhnms, pelo que dela conta o famoso Gulliver, não me foi difícil apanhar o diálogo. Bem sei que cavalo não é burro; mas reconheci que a língua era a mesma. O burro fala menos, decerto; é talvez o transita daquela grande divisão animal, mas fala. Fiquei inclinado e escutei:
— Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da esquerda.
O da esquerda:
— Desde que a tração elétrica se estenda a todos os bonds, estamos livres, parece claro.
— Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferença é grande. Tu não conheces a história da nossa espécie, colega; ignoras a vida dos burros desde o começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens nascido entre nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natal escapamos da pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.
— Que tem isso com a liberdade?
— Vejo, redargüiu melancolicamente o burro da direita, vejo que há muito de homem nessa cabeça.
— Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o passo.
O cocheiro, entre dous cochilas, juntou as rédeas e golpeou a parelha.
— Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando os bonds entraram nesta cidade, vieram com a regra de se não empregar chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu burro andar sem chicote? Todos os burros desse tempo entoaram cânticos de alegria e abençoaram a idéia os trilhos, sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. Não conheciam o homem.
—Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das rédeas. Sei também que, em certos casos, usa um galho de árvore ou uma vara de marmeleiro.
— Justamente. Aqui acho razão ao homem. Burro magro não tem força; mas, levando pancada, puxa. Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo gerente Shannon? Mandou isto: “Engorde os burros dê-lhes de comer, muito capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se afeiçoem ao serviço; oportunamente mudaremos de política, all right!”
— Disso não me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos trabalho, quando estou repleto. Mas que tem capim com a nossa liberdade, depois do bond elétrico?
— O bond elétrico apenas nos fará mudar de senhor.
— De que modo?
— Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos.
Passamos naturalmente às carroças.
— Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? nenhum prêmio? nenhum sinal de gratificação? Oh! mas onde está a justiça deste mundo?
— Passaremos às carroças — continuou o outro pacificamente —onde a nossa vida será um pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um só burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer cousa que nos torne incapaz restituir-nos-á a liberdade…
— Enfim!
— Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que aí deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que nem sempre é viçosa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á matando, até que, para usar esta metáfora humana, — esticaremos a canela. Então teremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de três, a vizinhança começa a notar que o burro cheira mal; conversação e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede uma reclamação. No quinto dia sai a reclamação impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica a exatidão da notícia; no sétimo, chega uma carroça, puxada por outro burro, e leva o cadáver.
Seguiu-se uma pausa.
— Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não conheces a língua da esperança.
— Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda sobre dous pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da astronomia. Nós nunca seremos astrônomos. Mas a filosofia é nossa. Todas as tentativas humanas a este respeito são perfeitas quimeras. Cada século…
O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as rédeas, e travou o carro. Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dous interlocutores. Não podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para levá-la ao outro lado do carro; aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dous burros:
— Houyhnhnnms!
Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as patas e perguntaram-me cheios de entusiasmo:
— Que homem és tu, que sabes a nossa língua?
Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe não espantasse os animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: — Onde está a justiça deste mundo?
[108] [23 outubro]TODAS AS COUSAS têm a sua filosofia. Se os dous anciãos que o bond elétrico atirou para a eternidade esta semana, houvessem já feito por si mesmos o que lhes fez o bond, não teriam entestado com o progresso que os eliminou. É duro dizer; duro e ingênuo, um pouco à La Palisse; mas é verdade. Quando um grande poeta deste século perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a criação era uma roda que não podia andar sem esmagar alguém. Por que negaremos a mesma fatalidade aos nossos pobres veículos?
Há terras, onde as companhias indenizam as vítimas dos desastres (ferimentos ou mortes) com avultadas quantias, tudo ordenado por lei. É justo; mas essas terras não têm, e deviam ter, outra lei que obrigasse os feridos e as famílias dos mortos a indenizarem as companhias pela perturbação que os desastres trazem ao horário do serviço. Seria um equilíbrio de direitos e de responsabilidades. Felizmente, como não temos a primeira lei, não precisamos da segunda, e vamos morrendo com a única despesa do enterro e o único lucro das orações.
Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas leis, jamais a minha viúva indenizará ou será indenizada por nenhuma companhia. Um precioso amigo meu, hoje morto, costumava dizer que não passava pela frente de um bond, sem calcular a hipótese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar ao outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina era uma boa farsa, antes das farsas do Pena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o cálculo adiante: calculo ainda o tempo de escovar-me no alfaiate próximo. Próximo pode ser longe, mas muito mais longe é a eternidade.
Em todo caso, não vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente, teríamos de condenar todas as máquinas, e, visto que há naufrágios, queimar todos os navios. Não, senhor. A necrologia dos bonds tirados a burros é assaz comprida e lúgubre para mostrar que o governo de tração não tem nada com os desastres. Os jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a pressa, dizendo que tinha de chegar ao ponto à hora certa, com prazo curto. Bem; poder-se-iam combinar as cousas, espaçando os prazos e aparelhando carros novos, elétricos ou muares, para acudir à necessidade pública. Digamos mais cem, mais duzentos carros. Nem só de pão vive o acionista, mas também da alegria e da integridade dos seus semelhantes.
Convenho que, durante uns quatro meses, os bonds elétricos andem muito mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos vadios e à toleima dos ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade é uma versão do processo culinário à la minute, e podem vir a enlamear o veículo com alcunhas feias. Lembra-me (era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no Rio de Janeiro, houve uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gás virou lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores expirantes, às belezas murchas, a todas as cousas decaídas.
Ah! se eu for a contar memórias da infância, deixo a semana no meio, remonto os tempos e faço um volume. Paro na primeira estação, 1864, famoso ano da suspensão de pagamentos (ministério Furtado); respiro, subo e paro em 1867, quando a febre das ações atacou a esta pobre cidade, que só arribou à força do quinino do desengano. Remonto ainda e vou a…
Aonde? Posso ir até antes do meu nascimento, até Law. Grande Law! Também tu tiveste um dia de celebridade, depois, viraste embromador e caíste na casinha da história, o lugar dos lava-pratos. E assim irei de século a século, até o paraíso terrestre, forma rudimentária do encilhamento, onde se vendeu a primeira ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e vendeu-a a Adão, também com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraíso terrestre, ao Fiat lux, que, bem, estudado ao gás do entendimento humano, foi o princípio da falência universal.
Não; cuidemos só da semana. A simples ameaça de contar as minhas memórias diminuiu-me o papel em tal maneira, que é preciso agora apertar as letras e as linhas.
Semana quer dizer finanças. Finanças implicam financeiros. Financeiros não vão sem projetos, e eu não sei formular projetos. Tenho idéias boas, e até bonitas, algumas grandiosas, outras complicadas, muito 2%, muito lastro, muito resgate, toda a técnica da ciência; mas falta-me o talento de compor, de dividir as idéias por artigos, de subdividir os artigos em parágrafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo confuso e atrapalhado. Mas por que não farei um projeto financeiro ou bancário, lançando-lhe no fim as palavras da velha praxe: salva a redação? Poderia baralhar tudo, é certo, mas não se joga sem baralhar as cartas; de outro modo é embaraçar os parceiros.
Adeus. O melhor é ficar calado. Sei que a semana não foi só de finanças, mas também de outras cousas, como a crise de transportes, a carne, discursos extraordinários ou explicativos, um projeto de estrada de ferro que nos põe às portas de Lisboa, e a mulher de César, que reapareceu no seio do parlamento. Vi entrar esta célebre senhora por aquela casa, e, depois de alguns minutos, via-se sair. Corri à porta e detive-a: — “Ilustre Pompéia, que vieste fazer a esta casa? “-“Obedecer ainda uma vez à citação da minha pessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se de fazer uma bonita frase, e entregou-me por todos os séculos a amigos, conhecidos e desconhecidos.”
[109] [30 outubro]TEMPOS DO PAPA! tempos dos cardeais! Não falo do papa católico, nem dos cardeais da santa Igreja Romana, mas do nosso papa e dos nossos cardeais. F. Otaviano, então jornalista, foi quem achou aquelas designações para o Senador Eusébio e o estado-maior do Partido Conservador. Era eu pouco mais que menino…
Fica entendido que, quando eu falar de fatos ou pessoas antigas, estava sempre na infância, se é que seria nascido. Não me façam mais idoso do que sou. E depois, o que é idade? Há dias, um distinto nonagenário apertava-me a mão com força e contava-me as vivas impressões que lhe deixara a obra de Bryce acerca dos Estados Unidos; acabava de lê-la, — dous grossos volumes, como sabem. E despediu-se de mim, e lá se foi a andar seguro e lépido. Realmente, os anos nada valem por si mesmos. A questão é saber agüentá-los, escová-los bem, todos os dias, para tirar a poeira da estrada, trazê-los lavados com água de higiene e sabão de filosofia.
Repito, era pouco mais que um menino, mas já admirava aquele escritor fino e sóbrio, destro no seu ofício. A atual mocidade não conheceu Otaviano; viu apenas um homem avelhantado e enfraquecido pela doença, com um resto pálido daquele riso que Voltaire lhe mandou do outro mundo. Nem resto, uma sombra de resto, talvez uma simples reminiscência deixada no cérebro das pessoas que o conheceram entre trinta e quarenta anos.
Um dia, um domingo, havia eleições, como hoje. Papa e cardeais tinham o poder nas mãos, e, sendo o regímen de dous graus, entraram eles próprios nas chapas de eleitores, que eram escolhidos pelos votantes. Os liberais resolveram lutar com os conservadores, apresentaram chapas suas e os desbarataram. O pontífice, com todos os membros do consistório, mal puderam sair suplentes. E Otaviano, fértil em metáforas, chamou-lhes esquifes. Mais um esquife, dizia ele no Correio Mercantil, durante a apuração dos votos. Luta de energias, luta de motejos. Rocha, jornalista conservador, ria causticamente do lencinho branco de Teófilo Otôni, o célebre lenço com que este conduzia a multidão, de paróquia em paróquia, aclamando e aclamado. A multidão seguia, alegre, tumultuosa, levada por sedução, por um instinto vago, por efeito da palavra, — um pouquinho por ofício. Não me lembra bem se houve alguma urna quebrada; é possível que sim. Hoje mesmo as urnas não são de bronze. Não vou ao ponto de afirmar que não as houve pejadas. Que é a política senão obra de homens? Crescei e multiplicai-vos.
Hoje, domingo não há a mesma multidão, o eleitorado é restrito; mas podia e devia haver mais calor. Trata-se não menos de que eleger o primeiro conselho municipal do Distrito Federal, que é ainda e será a capital verdadeira e histórica do Brasil. Não é eleição que apaixone, concordo; não há paixões puramente políticas. Nem paixões são cousas que se encomendem, como partidos não são cousas que se evoquem. Mas (permitam-me esta velha banalidade) há sempre a paixão do bem e do interesse público. Eia, animai-vos um pouco, se não é tarde; mas, se é tarde, guardai-vos para a primeira eleição que vier. Contanto que não quebreis urnas, nem as fecundeis — a conselho meu, — agitai-vos, meus caros eleitores, agitai-vos um tanto mais.
Por hoje, leitor amigo, vai tranqüilamente dar o teu voto. Vai anda, vai escolher os intendentes que devem representar-nos e defender os interesses comuns da nossa cidade. Eu, se não estiver meio adoentado, como estou, não deixarei de levar a minha cédula. Não leias mais ainda, porque é bem possível que eu nada mais escreva, ou pouco. Vai votar; o teu futuro está nos joelhos dos deuses, e assim também o da tua cidade; mas por que não os ajudarás com as mãos?
Outra cousa que está nos joelhos dos deuses é saber se a terceira prorrogação que o Congresso Nacional resolveu decretar, é a última e definitiva. Pode haver quarta e quinta. Daqui a censurar o Congresso é um passo, e passo curto; mas eu prefiro ir à Constituinte, que é o mesmo Congresso avant la lettre. Por que diabo fixou a Constituinte em quatro meses a sessão anual legislativa, isto é, o mesmo prazo da Constituição de 1824? Devia atender que outro é o tempo e outro o regímen.
Felizmente, li esta semana que vai haver uma revisão de Constituição no ano próximo. Boa ocasião para emendar esse ponto, e ainda outros, se os há, e creio que há. Nem faltará quem proponha o governo parlamentar. Dado que esta última idéia passe, é preciso ter já de encomenda uma casaca, um par de colarinhos, uma gravata branca, uma pequena mala com alocuções brilhantes e anódinas, para as grandes festas oficiais, — e um Carnot, mas um Carnot autêntico, que vista e profira todas aquelas cousas sem significação política. Salvo se arranjarmos um meio de combinar os presidentes e os ministros responsáveis, um Congresso que mande um ministério seu ao presidente, para cumprir e não cumprir as ordens opostas de ambos. Enfim, esperemos. O futuro está nos joelhos dos deuses.
Mas não me faças ir adiante, leitor amado. Adeus vai votar. Escolhe a tua intendência e ficarás com o direito de gritar contra ela. Adeus.
[110] [6 novembro]VOU CONTAR às pressas o que me acaba de acontecer.
Domingo passado, enquanto esperava a chamada dos eleitores, saí à Praça do Duque de Caxias (vulgarmente Largo do Machado) e comecei a passear defronte da igreja matriz da Glória. Quem não conhece esse templo grego, imitado da Madalena, com uma torre no meio, imitada de cousa nenhuma? A impressão que se tem diante daquele singular conúbio, não é cristã nem pagã; faz lembrar, como na comédia, “o casamento do Grão — Turco com a república [de] Veneza”. Quando ali passo, desvio sempre os olhos e o pensamento. Tenho medo de pecar duas vezes, contra a torre e contra o templo, mandando-os ambos ao diabo, com escândalo da minha consciência e dos ouvidos das outras pessoas.
Daquela vez, porém, não foi assim. Olhei, parei e fiquei a olhar. Entrei a cogitar se aquêle ajuntamento híbrido não será antes um símbolo. A irmandade que mandou fazer a torre, pode ter escrito, sem o saber, um comentário. Supôs batizar uma sinagoga (devia crer que era uma sinagoga), e fez mais, compôs uma obra representativa do meio e do século. Não há ali só um sino para repicar aos domingos e dias santos, com afronta dos pagãos de Atenas e dos cristãos de Paris, — há talvez uma página de piscologia social e política.
Sempre que entrevejo uma idéia, uma significação oculta em qualquer objeto, fico a tal ponto absorto, que sou capaz de passar uma semana sem comer. Aqui, há anos, estando sentado à porta de casa, a meditar no célebre axioma do Dr. Pangloss — que os narizes fizeram — se para os óculos, e que é por isso que usamos óculos, sucedeu cair — me a vista no chão, exatamente no lugar em que estava uma ferradura velha. Que haveria naquele sapato de cavalo, tão comido de dias e de ferrugem?
Pensei muito, — não posso dizer se uma ou duas horas, — até que um clarão súbito espancou as trevas do meu espírito. A figura é velha, mas não tenho tempo de procurar outra. Cresci diante de Pangloss. O grande filósofo, achando a razão dos narizes, não advertiu que, ainda sem eles, podíamos trazer óculos. Bastava um pequeno aparelho de barbantes, que fôsse por cima das orelhas até à nuca. Outro era o caso da ferradura. Só o duro casco do animal podia destinar-se à ferradura, uma vez que não há meio de fazê-la aderir sem pregos. Aqui a finalidade era evidente. De conclusão em conclusão, cheguei às ave-marias, tinham-me já chamado para jantar três vêzes; comi mal, digeri mal, e acordei doente. Mas tinha descoberto alguma cousa.
Fica assim explicada a minha longa meditação diante da torre e do templo, e o mais que me aconteceu. Cruzei os braços nas costas, com a bengala entre as mãos, apoiando-me nela. Algumas pessoas que iam passando, ao darem comigo, paravam também e buscavam descobrir por si o que é que chamava assim a atenção de um homem tão grave. Foram-se deixando estar; outras vieram também e foram ficando, até formarem um grupo numeroso, que observava tenazmente alguma cousa digníssima da atenção dos homens. É assim que eu admiro muita música; basta ver o Artur Napoleão parado.
Nem por isso interrompi as reflexões que ia fazendo. Sim, aquela junção da torre e do templo não era sòmente uma opinião da irmandade.
Não tenho aqui papel para notar todos os fenômenos históricos, políticos e sociais que me pareceram explicar o edifício do Largo do Machado; mas, ainda que o tivesse de sobra, calar-me-ia pela incerteza em que ainda estou acêrca das minhas conclusões. Dous exemplos estremes bastam para justificação da dúvida. A nossa independência política, que os poetas e oradores, até 1864, chamavam grito de Ipiranga, não se pode negar que era um belo templo grego. O tratado que veio depois, com algumas de suas cláusulas, e o seu imperador honorário, além do efetivo, poderá ser comparado à torre da matriz da Glória? Não ouso afirmá-lo. O mesmo digo do quiosque. O quiosque, apesar da origem chinesa, pode ser comparado a um; templo grego, copiado de Paris; mas o charuto, o bom café barato e o bilhete de loteria que ali se vendem, serão acaso equivalentes daquela torre? Não sei; nem também sei se os foguetes que ali estou-ram, quando anda a roda e eles tiram prêmios, representam os repi-ques de sinos em dias de festa. Há hesitações grandes e nobres, mi-nha pobre alma as conhece.
Pelo que respeita especialmente ao caso da matriz da Glória, con-cordo que ele exprima a reação do sentimento local contra uma inovação apenas elegante. Nós mamamos ao som dos sinos e somos desmamados com eles; uma igreja sem sino é, por assim dizer, uma bôca sem fala. Daí nasceu a torre da Glória. A questão não é achar esta explicação, é completá-la.
Não me tragam aqui o mestre Spencer com os seus aforismos so-ciológicos. Quando ele diz que “o estado social é o resultado de tôdas as ambições, de todos os interesses pessoais, de todos os mêdos, vene-rações, indignações, simpatias, etc. tanto dos antepassados, como dos cidadãos existentes” — não serei eu que o conteste. O mesmo farei se ele me disser, a propósito do templo grego:
Posto que as idéias adiantadas, uma vez estabelecidas, atuem sôbre a socie-dade e ajudem o seu progresso ulterior, ainda assim o estabelecimento de tais idéias depende da aptidão da sociedade para recebê-las. Na prática, é o caráter popular e o estado social que determinam as idéias que hão de ter curso- não são as Idéias correntes que determinam o estado social e o caráter…
Sim, concordo que o templo grego sejam as idéias novas, e o cará-ter e o estado social a torre, que há de sobrepor-se por muito tempo as belas colunas antigas, ainda que a gente se oponha com tôda a fôrça ao voto das irmandades
Neste ponto das minhas reflexões, o sino da torre bateu uma pan-cada, logo depois outra. . . Estremeço, acordo, eram ave-marias. Sem saber o que fazia. corro à igreja para votar
— Para quê? diz-me o sacristão.
— Para votar.
— Mas eleição foi domingo passado
— Que dia é hoje?
— Hoje é sábado.
— Deus de misericórdia
Senti-me fraco, fui comer alguma cousa. Sete dias para achar a explicação da torre da Glória, uma semana perdida. Escrevo este artigo a trouxe-mouxe, em cima dos joelhos, servindo-me de mesa um exemplar da Bíblia, outro de Camões, outro de Gonçalves Dias, outro da Constituição de 1824 e outro da Constituição de 1889, — dous templos gregos, com a torre do meu nariz em cima.
[111] [27 novembro]UM DOS MEUS velhos hábitos é ir, no tempo das câmaras, passar as horas nas galerias. Quando não há câmaras, vou à municipal ou intendência-, ao júri, onde quer que possa fartar o meu amor dos negócios públicos, e mais particularmente da eloqüência humana. Nos inter-valos, faço algumas cobranças,—ou qualquer serviço leve que possa ser interrompido sem dano, ou continuado por outro. Já se me têm oferecido boas empregos, largamente retribuídos, com a condição de não freqüentar a5 galerias das câmaras. Tenho-os recusado todos; nem por isso ando mais magro.
Nas galerias das câmaras ocupo sempre um lugar na primeira fila dos bancos, leva-se mais tempo a sair, mas como eu só saio no fim, e às vêzes depois do fim, importa-me pouco essa dificuldade. A van-tagem é enorme, tem-se um parapeito de pau, onde um homem pode encostar os braços e ficar a gosto. O chapéu atrapalhou-me muito no primeiro ano ( 1857), mas desde que me furtaram um, meio novo, resolvi a questão definitivamente. Entro ponho o chapéu no banco e sento-me em cima. Venham cá buscá-lo!
Não me perguntes a que vem esta página dos meus hábitos. É ler, se queres. Talvez haja uma conclusão. Tudo tem conclusão neste mundo. Eu vi concluir discursos, que ainda agora suponho estar ouvindo.
Cada cousa tem uma hora própria, leitor feito às pressas. Na gale-ria, é meu costume dividir o tempo entre ouvir e dormir. Até certo ponto, velo sempre. Daí em diante, salvo rumor grande, apartes, tumulto, cerro os olhos e passo pelo sono. Há dias em que o guarda vem bater-me no ombro.
— Que é?
— Saia daí, já acabou.
Olho, não vejo ninguém, recompondo o chapéu e saio. Mas estes casos não são comuns.
No Senado, nunca pude fazer a divisão exata, não porque lá falas-sem mal, ao contrário, falavam geralmente melhor que na outra Câmara. Mas não havia barulho. Tudo macio. O estilo era tão apurado, que ainda me lembro certo incidente que ali se deu, orando o finado Ferraz, um que fez a lei bancária a de 1860. Creio que era então Ministro da Guerra, e dizia, referindo-se a um senador: “Eu entendo, Sr. presidente, que o nobre senador não entendeu o que disse o nobre Ministro da Marinha, ou fingiu que não entendeu. O Visconde de Abaeté, que era o presidente, acudiu logo: “A palavra fingiu acho que não é própria.” E o Ferraz replicou: “Peço perdão a V. Ex.ª, retiro a palavra.”
Ora, dêem lá interesse às discussões com estes passos de minuete! Eu, mal chegava ao Senado, estava com os anjos. Tumulto, saraivada grossa, caluniador para cá, caluniador para lá, eis o que pode manter o interesse de um debate. E que é a vida senão uma troca de ca-chações?
A República trouxe-me quatro desgostos extraordinários; um foi logo remediado; os outros três não. O que ela mesma remediou, foi a desastrada idéia de meter as câmaras no palácio da Boa Vista. Muito político e muito bonito para quem anda com dinheiro no bolso; mas obrigar-me a pagar dous níqueis de passagem por dia, ou a ir a pé, era um despropósito. Felizmente, vingou a idéia de tornar a pôr as câmaras em contacto com o povo, e descemos da Boa Vista.
Não me falem nos outros três desgostos. Suprimir as interpelações aos ministros, com dia fixado e anunciado; acabar com a discussão da resposta à fala do trono; eliminar as apresentações de ministérios novos . . .
Oh! as minhas belas apresentações de ministérios! Era um regalo ver a Câmara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Moças nas tribunas, algum diplomata, meia dúzia de senadores. De repente, levantava-se um sussurro, todos os olhos voltavam-se para a porta central, aparecia o ministério com o chefe à frente, cumpri-mentos à direita e à esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos mem-bros do gabinete anterior e expunha as razões da retirada; o presidente do conselho erguia-se depois, narrava a história da subida, e definia o programa. Um deputado da oposição pedia a palavra, dizia mal dos dous ministérios, achava contradições e obscuridades nas explicações, e julgava o programa insuficiente. Réplica, tréplica, agitação, um dia cheio.
Justiça, justiça. Há usos daquele tempo que ficaram. Às vezes, quando os debates eram calorosos,—e principalmente nas interpelações, —eu da galeria entrava na dança, dava palmas. Não sei quando começou este uso de dar palmas nas galerias. Deve vir de muitos anos. O presidente da Câmara bradava sempre: “As galerias não podem fazer manifestações!” Mas era como se não dissesse nada. Na primeira ocasião, tornava a palmear com a mesma força. Vieram vindo depois os bravos, os apoiados, os não-apoiados, uma bonita agitação. Confesso que eu nem sempre sabia das razões do clamor, e não raro me aconteceu apoiar dous contrários. Não importa, liberdade, antes confusa, que nenhuma.
Esse costume prevaleceu, não acompanhou os que perdi, felizmente. Em verdade, seria lúgubre, se, além de me tirarem as interpelações e o resto, acabassem metendo-me uma rolha na boca. Era melhor assassinar-me logo, de uma vez. A liberdade não é surda-muda, nem paralítica. Ela vive, ela fala, ela bate as mãos, ela ri, ela assobia, ela clama, ela vive da vida. Se eu na galeria não posso dar um berro, onde é que o hei de dar? Na rua, feito maluco?
Assim continuei a intervir nos debates, e a fazer crescer o meu direito político; mas estava longe de esperar o reconhecimento imediato, pleno e absoluto que me deu a intendência nova. Tinha ganho muito na outra galeria; enriqueci na da intendência, onde o meu direito de gritar, apupar e aplaudir foi bravamente consagrado. Não peço que se ponha isto por lei, porque então, gritando, apupando ou aplaudindo, estarei cumprindo um preceito legal, que é justamente o que eu não quero. Não que eu tenha ódio à lei; mas não tolero opressões de espécie alguma, ainda em meu benefício.
O melhor que há no caso da intendência nova, é que ela mesma deu o exemplo, excitando-se de tal maneira, que fez esquecer os mais belos dias da Câmara. Em minha vida de galeria, que já não é curta, tenho assistido a grandes distúrbios parlamentares; raro se terá aproximado das estréias da nova representação do município. Não desmaie a nobre corporação. Berre, ainda que seja preciso trabalhar.
Pela minha parte, fiz o que pude, e estou pronto a fazer o que puder e o que não puder. Embora não tenha a superstição do respeito, quero que me respeitem no exercício de um jus adquirido pela von-tade e confirmado pelo tempo. J’y suis, j’y reste, como tenho ouvido dizer nas câmaras. Creio que é latim ou francês. Digo, por linguagem, que ainda posso ir adiante; e finalmente que, se há por aí alguma frase menos incorreta, é reminiscência da tribuna parlamentar ou judiciária. Não se arrasta uma vida inteira de galeria em galeria sem trazer algumas amostras de sintaxe.
[112] [18 dezembro}ONTEM, querendo ir pela Rua da Candelária, entre as da Alfândega e Sabão (velho estilo), não me foi possível passar, tal era a multidão de gente. Cuidei que havia briga, e eu gosto de ver brigas; mas não era. A massa de gente tomava a rua, de uma banda a outra, mas não se mexia; não tinha a ondulação natural dos cachações. Procissão não era; não havia tochas acessas nem sobrepelizes. Sujeito que mostrasse artes de macaco ou vendesse drogas, ao ar livre, com discursos, também não.
Estava neste ponto, quando vi subir a Rua da Alfândega um digno ancião, a quem expus as minhas dúvidas.
— Não é nada disso, respondeu-me cortesmente. Não há aqui procissão nem macaco. Briga, no sentido de murros trocados, tam-bém não há,—pelo menos, que me conste. Quanto à suposição de estar aí alguma pessoa apregoando medalhinhas e vidrinhos, como os bufarinheiros da Rua do Ouvidor, esquina da do Carmo ou da Primeiro de Março, menos ainda.
—Já sei, é uma seita religiosa que se reúne aqui para meditar sobre as vaidades do mundo,—um troço de budistas…
—Não, não.
—Advinhei: é um meeting.
—Onde está o orador?
—Esperam o orador.
—Que orador? que meeting? Ouça calado. O senhor parece ter o mau costume de vir apanhar as palavras dentro da boca dos outros. Sossegue e escute.
—Sou todo ouvidos.
—Este é o célebre encilhamento.
—Ah!
—Vê? Há mais tempo teria tido o gosto dessa admiração, se me ouvisse calado. Este é o encilhamento.
—Não sabia que era assim.
— Assim como?
—Na rua. Cuidei que era uma vasta sala ou um terreno fechado, particular ou público, não este pedaço de rua estreita e aborrecida. E olhe que nem há meio de passar; eu quis romper, pedi licença. . . Entretanto, creio que temos a liberdade de circulação.
— Não.
— Como não?
— Leia a Constituição, meu senhor, leia a Constituição. O art. 70 é o que compendia os direitos dos nacionais e estrangeiros; são trinta e um parágrafos: nenhum deles assegura o direito de circulação… O direito de reunião, porcm7 é positivo. Está no § 8.°: “A todos é lícito reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia, senão para manter a ordem pública”. Estes homens que aqui estão trazem armas?
— Não as vejo.
— Estão desarmados. não perturbam a ordem pública, exercem um direito, e, enquanto não infringirem as duas cláusulas constitucionais só a violência os poderá tirar daqui. Houve já uma tentativa disso. Eu, se fosse comigo, recorria aos tribunais, onde há justiça. Se eles ma negassem, pedia o júri, onde ela é indefectível, como na velha Inglaterra. Note que a violência da polícia já deu algum lucro. Como as moléculas do encilhamento, por uma lei natural, tendiam a unir-se logo depois de dispersados, a polícia, para impedir a recomposição fazia disparar de quando em quando duas praças de cavalaria. Mal sabiam elas que eram simples animais de corrida. As pessoas que as viam correr, apostavam sobre qual chegaria primeiro a certo ponto. — É da esquerda. — É a da direita. — Quinhentos mil-réis. — Aceito. — Pronto.
— Chegou a da esquerda: dê cá o dinheiro.
— De maneira que a própria autoridade…
— Exatamente. Ah! meu meu caro, dinheiro é mais forte que amor. Veja o negócio do chocolate. Chocolate parece que não convida a falsificação: tem menos uso que o café. Pois o chocolate é hoje tão duvidoso como O café. Entretanto, ninguém dirá que os falsificadores sejam homens desonestos nem inimigos públicos. O que os leva a Falsificar a bebida não é o ódio ao homem. Como odiar o homem, se no homem está o freguês? É o amor da pecúnia.
— Pecúnia? chocolate?
— Sim, senhor. um negócio que se descobriu há dias. O senhor, ao que parece, não sabe o que se passa em torno de nós. Aposto que não teve notícia da revolução de Niterói?
— Tive.
— Eu tive mais que notícia, tive saudades. Quando me falaram em revolução de Niterói, lembrei-me dos tempos da minha mocidade, quando Niterói era Praia Grande. Não se faziam ali revoluções, faziam-se patuscadas. Ia-se de falua, antes e ainda depois das primeiras barcas. Quem ligou nunca Niterói e S. Domingos a outra idéia que não fosse noite de luar, descantes, moças vestidas de branco, versos, uma ou outra charada? Havia presidente, como há hoje; mas morava do lado de cá. Ia ali às onze horas, almoçado, assinava o expediente, ouvia uma dúzia de sujeitos cujos negócios eram todos a salvação pública, metia-se na barca, e vinha ao Teatro Lírico ouvir a Zecchinni. Havia também uma assembléia legislativa; era uma espécie do antigo Colégio de Pedro II, onde os mocos tiravam carta de bacharel político, e marchavam para S. Paulo, que era a assembléia geral. Tempos! tempos!
— Tudo muda, meu caro senhor. Niterói não podia ficar eternamente Praia Grande.
— De acordo; mas a lágrima é livre.
— É talvez a cousa mais livre deste mundo senão a única. Que é á liberdade pessoal? O senhor vinha andando, rua acima. encontra-me, faço-lhe uma pergunta, e aqui está preso há vinte minutos.
— Pelo amor de Deus! Tomara eu destes grilhões! São grilhões de ouro.
— Agradeço-lhe o favor. Nunca o favor é tão honroso e grande como quando sai da boca ungida pelo saber e pela experiência; por-que a bondade e própria dos altos espíritos.
— Julga-me por si; é o modo certo de engrandecer os pequenos.
— O que engrandece os pequenos é o sentimento da modéstia, virtude extraordinária; o senhor a possui.
— Nunca me esquecerei deste feliz encontro.
— Na verdade, é bom que haja encilhamento; se o não houvesse, a rua era livre, como a lágrima, eu teria ido o meu caminho, e não receberia este favor do céu. de encontrar uma inteligência tão culta. Aqui está o meu cartão.
— Aqui está o meu. Sempre às suas ordens.
— Igualmente.
— (À parte ) Que homem distinto!
— (À parte ) Que estimável ancião!
[113] [25 dezembro]É DESENGANAR. Gente que mamou leite romântico, pode meter o dente no rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o melhor pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu doce de leite romântico! Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem novamente as figuras aéreas que outrora vi ante os meus olhos turvos.
Com efeito enquanto vós outros cuidáveis da reforma financeira e tantos fatos da semana, enquanto percorríeis as salas da nossa bela exposição preparatória da de Chicago, eu punha os olhos em um telegrama de Constantinopla; publicado por uma das nossas folhas. Mão são raros os telegramas de Constantinopla; temos sabido por eles como vai a questão dos Dardanelos; mas desta vez alguma cousa me dizia que não se tratava de política. Tirei os óculos, limpei — os, fitei o telegrama. Que dizia o telegrama?
“Cinco odaliscas. . .” Parei; lidas essas primeiras palavras, senti-me necessitado de tomar fôlego. Cinco odaliscas! Murmura esse nome, leitor faze escorrer da boca essas quatro sílabas de mel, e lambe depois os beiços, ladrão. Pela minha parte, achei-me, em espírito. diante de cinco lindas mulheres, como o véu transparente no rosto. as calças largas e os pés metidos nas chinelas de marroquim amarelo, — babuchas, que é o próprio nome. Todas as orientais de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e sândalo. Cinco odaliscas, Mas que fizeram essas cinco odaliscas? Não fizeram nada. Tinham sido mandadas de presente ao sultão. Pobres moças! Entraram no harém, lá estiveram não sei quanto tempo, até que foram agora assassinadas… Sim, leitor compassivo, assassinadas por mandado das outras mulheres que já lá estavam, e por ciúmes…
Não, aqui é força interromper o capítulo, por um instante. Não continuo sem advertir que o ano é bissexto, ano de espantos. Míseras odaliscas! Assassinadas por ciúmes, — não do sultão, que tem mais que fazer com o grande urso eslavo: — por ciúmes dos eunucos. Singulares eunucos! eunucos de ano bissexto! Todo o harém posto em ódio, em tumulto, em sangue, por causa de meia dúzia de guardas que o sultão tinha o direito de supor fiéis ao trono e à cirurgia.
O mundo caduca — reflexionou tristemente um dia não sei que cardeal da Santa Igreja Romana; e fez bem em morrer pouco depois, para não ouvir da parte do oriente este desmentido de incréus: — O mundo reconstitui-se. O sultão tem ainda um recurso, dissolver n corpo dos seus guardas, como fizemos aqui com o corpo de polícia de Niterói, e recompô-lo com os companheiros de Maomé II. Eis acudirão à chamada do imperador; os velhos ossos cumprirão o seu dever, atarraxando-se uns nos outros, e, com as órbitas vazias, com o alfanje pendente dos dedos sem carne. correrão a vigiar e defender as odaliscas antigas e recentes.
Ossos embora, hão de ouvir as vozes femininas, e, pois que tiveram outra função social, estremecerão ao eco dos séculos extintos. A frase vai-me saindo com tal ou qual ritmo que parece verso. Talvez por causa do assunto. Falemos de um triste leitão, que ouvi grunhir agora mesmo no Largo da Carioca. Ia atado pelos pés, dorso para baixo. seguro pela mão de um criado. que o levava de presente a alguém: é véspera de Natal. Presente cristão. costume católico. parece que adotado para fazer figa ao judaísmo. Será comido amanhã, domingo: ira para a mesa com a antiga rodela de limão, à maneira velha. Pobre leitão! Berrava como se já o estivessem assando. Talvez o desgraçado houvesse notícia do seu destino, por algumas relações verbais que passem entre eles de pais a filhos. Pode ser que eles ainda aguardem uma desforra. Tudo se deve esperar na terra. Tout arrive, como dizem os franceses.
Não quero dizer dos franceses o que me está caindo da pena. Melhor é calá-lo. Como se não bastassem a essa briosa nação os delitos de Panamá, está a desmoralizar-se com o escândalo de tantos processos. Corrupção escondida vale tanto como pública; a diferença é que não fede. Que é que se ganha em processar? Fulano corrompeu Sicrano. Pedro e Paulo uniram-se para embaçar uma rua inteira, fizeram vinte discursos, trinta anúncios, e deixaram os ouvintes sem passo que o silêncio, além de ser outro, conforme o adágio árabe, tem a vantagem de fazer esquecer mais depressa. Toda a questão é que os empulhados não se deixem embair outra vez pelos empulhadores.
1893
[114] [22 janeiro]A QUESTÃO Capital está na ordem do dia. Tempo houve em que na República Argentina não se falou de outra cousa. Lá, porém, não se tratava de trocar a capital da província de Buenos Aires por outra, mas de tirar à cidade deste nome o duplo caráter de capital da província e da República. Um dia resolveram fazer uma cidade nova La Plata, que dizem ser magnífica, mas que custou naturalmente empréstimos grossos.
Entre nós, a questão é mais simples. Trata-se de mudar a capital do Rio de Janeiro para outra cidade que não fique sendo um prolongamento da Rua do Ouvidor. Convém que o Estado não viva sujeito ao botão de Diderot, que matava um homem na China. A questão é escolher entre tantas cidades. A idéia legislativa até agora é Teresópolis; assim se votou ontem na assembléia . Era a do finado capitalista Rodrigues, que escreveu artigos sobre isso. Grande viveur, o Rodrigues! Em verdade, Teresópolis está mais livre de um assalto. é fresca, tem terras de sobra, onde se edifique para oficiar, para legislar e para dormir.
Campos quer também a capitalização Reúne-se, discute, pede, insta. Vassouras não quer ficar atrás. Velha cidade de um município de café. julga-se com direito a herdar de Niterói, e oferecer dinheiros para auxiliar a administração. Petrópolis também quer ser capital, e parece invocar algumas razões de elegância e de beleza; mas tem contra si não estar muito mais longe da Rua do Ouvidor. e até mais perto, por dous caminhos. Também há quem indique Nova Friburgo: e, se eu me deixasse levar pelas boas recordações dos hotéis Leuenroth e Salusse, não aconselharia outra cidade. Mas, além de não pertencer ao Estado (sou puro carioca), jamais iria contra a opinião dos meus concidadãos unicamente para satisfazer reminiscências culinárias Nem só culinárias: também as tenho coreográficas… Oh! bons e saudosos bailes do salão Salusse! Convivas desse tempo, onde ides vós? Uns morreram, outros casaram, outros envelheceram; e, no meio de tanta fuga, é provável que alguns fugissem. Falo de quatorze anos atrás. Resta ao menos este miserável escriba. que, em vez de lá estar outra vez, no alto da serra, aqui fica a comer-lhes o tempo.
Niterói não pede nada, olha, escuta, aguarda. Vai para a barca, se tem cá o emprego; se o tem lá mesmo, vai ver chegar ou sair a barca. Vê sempre alguma cousa, — Outrora as lanchas, — depois as barcas. Pobre subúrbio da velha Corte, não tens forças para reagir contra a descapitalização; não representas, não requeres. Vais para a galeria da assembléia ouvir as razões com que te tiram o chapéu da cabeça; não indagues se são boas ou más. São razões.
Vale-lhe uma cousa não está só. O Estado de Minas Gerais, que desde o tempo do império já sonhava com outra capital, põe mãos à obra deveras’ mandando fazer uma capital nova. Já aí saiu uma comissão em busca de território e clima adequados. Ouro Preto tem de ceder. Dizem que lhe custa; mas o que é que não custa? Quanto à capital da república, é matéria constitucional, e a comissão encarregada de escolher e delimitar a área já concluiu os seus trabalhos, ou está prestes a fazê-lo, segundo li esta mesma semana. Telegrama de Uberaba diz que ali chegou o chefe, Luís Cruls.
Não há dúvida que uma capital é obra dos tempos, filha da história. A história e os tempos se encarregarão de consagrar as novas. A cidade que já estiver feita, como no Estado do Rio, é de esperar que se desenvolva com a capitalização. As novas devemos esperar que serão habitadas logo que sejam habitáveis. O resto virá com os anos.
Entretanto, os donativos e ofertas por parte de algumas cidades fluminenses mostram bem, que nem as cidades querem andar na turbamulta, por mais que a produção e a riqueza as distingam. Tudo vale muito, mas não vale tudo, antes da coroa administrativa. Datar as leis de Campos é dar o comando a Campos; datá-las de Vassouras e dá-lo a Vassouras; e nada vale o comando, nem a própria santidade.
A capital da República, uma vez estabelecida, receberá um nome deveras, em vez deste que ora temos, mero qualificativo. Não sei se viverei até à inauguração. A vida é tão curta. a morte tão incerta que a inauguração pode fazer-se sem mim, e tão certo é o esquecimento, que nem darão pela minha falta. Mas, se viver, lá irei passar algumas férias, como os de lá virão aqui passar outras. Os cariocas ficarão sempre com a baía, a esquadra, os arsenais, os teatros, os bailes, a Rua do Ouvidor, os jornais, os bancos, a praça do comércio, as corridas de cavalos. tanto nos circos, como nos balcões de algumas casas cá embaixo, os monumentos, a companhia lírica, os velhos templos, os rebequistas, os pianistas…
Ponhamos também os melhoramentos projetados na cidade. São muitos, e creio haver boa resolução de levar a obra ao cabo. Oxalá não desanimem os poderes do município. Também ficaremos com os processos de toda a sorte, as sociedades sem cabeça e as sociedades de duas cabeças. como a Colonização. imitação da água austríaca. Aqui ficará o grande banco. A mesma ponte truncada da baia. que o mar começou a comer, e as montanhas — russas inacabadas da Glória também ficarão aqui, tão inacabadas e tão truncadas como podemos pedi-los aos deuses.
Perderemos, é certo, o Supremo Tribunal de Justiça; mas, tendo a Câmara Municipal do Tubarão, em um assomo de cólera, qualificado um ato daquela instituição como ignobilmente anormal, e não nos convindo, nem cortar as relações com o Tubarão. nem sair da escola do respeito, melhor é que o tribunal se mude e nos deixe. Grande Tubarão! Tudo por causa de um homem. O que não dirá ele por um princípio?
[115] [29 janeiro]GOSTO deste homem pequeno e magro chamado Barata Ribeiro, prefeito municipal, todo vontade, todo ação, que não perde o tempo a ver correr as águas do Eufrates. Como Josué, acaba de pôr abaixo as muralhas de Jerico, vulgo Cabeça de Porco. Chamou as tropas segundo as ordens de Javé durante os seis dias da escritura, deu volta à cidade e depois mandou tocar as trombetas. Tudo ruiu, e, para mais justeza bíblica, até carneiros saíram de dentro da Cabeça de Porco tal qual da outra Jericó saíram bois e jumentos. A diferença é que estes foram passados a fio de espada. Os carneiros, não só conservaram a vida mas receberam ontem algumas ações de sociedades anônimas.
Outra diferença. Na velha Jericó houve, ao menos, uma casa de mulher que salvar, porque a dona tinha acolhido os mensageiros de Josué. Aqui nenhuma recebeu ninguém. Tudo pereceu portanto, e foi bom que perecesse. Lá estavam para fazer cumprir a lei a autoridade policial, a autoridade sanitária, a força pública, cidadãos de boa vontade, e cá fora é preciso que esteja aquele apoio moral, que dá a opinião pública aos varões provadamente fortes.
Não me condenem os reminiscências de Jericó. Foram os lindos olhos de uma judia que me meteram na cabeça os passos da Escritura. Eles é que me fizeram ler no livro do Êxodo a condenação das imagens, lei que eles entendem mal, por serem judeus, mas que os olhos cristãos entendem pelo único sentido verdadeiro. Tal foi a causa de não ir, desde anos, à procissão de S. Sebastião, em que a imagem do nosso padroeiro é transportada da catedral ao Castelo. Sexta-feira fui vê-la sair. Éramos dous, um amigo e eu; logo depois éramos quatro, nós e as nossas melancolias. Deus de bondade! Que diferença entre a procissão de sexta-feira e as de outrora. Ordem, número, pompa, tudo o que havia quando eu era menino, tudo desapareceu. Valha a piedade, posto não faltaram olhos cristãos, e femininos, — um par deles — para acompanhar com riso amigo e particular uma velha opa encarnada e inquieta. Foi o meu amigo que notou essa passagem do Cântico dos Cânticos. Todo eu era pouco para evocar a minha meninice. ..
E, tu, Belém Efrata… Vede ainda uma reminiscência bíblica; é do profeta Miquéias.. . Não tenho outra para significar a vitória de Teresópolis De Belém tinha de vir o salvador do mundo, como de Teresópolis há de vir a salvação do Estado fluminense. Está feito capital o lindo e fresco deserto das montanhas. Peso de Campos (agora é imitar o profeta Isaías), peso de Vassouras, peso de Niterói. Não valeram riquezas, nem súplicas. A ti, pobre e antiga Niterói não te valeu a eloqüência do teu Belisário Augusto, nem sequer a rivalidade das outras cidades pretendentes. Tinha de ser Teresópolis. “F tu, Belém Efrata, tu és pequenina entre as milhares de Judá.. .” Pequenina também é Teresópolis, mas pequenina em casas, terras há muitas, pedras não faltam, nem cal, nem trolhas, nem tempo. Falta o meu velho amigo Rodrigues — ora morto e enterrado, — que possuía uma boa parte daquelas terras desertas. Ai, Justiniano! Os teus dias passaram como as águas que não voltam mais. É ainda uma palavra da Escritura.
Fora com estes sapatos de Israel. Calcemo-nos à maneira da Rua do Ouvidor, que pisamos, onde a vida passa em burburinho de todos os dias e de cada hora. Chovem assuntos modernos. O banco, por exemplo, o novo banco, filho de dous pais, como aquela criança divina que era, dizia Camões, nascida de duas mães. As duas mães, como sabeis, eram a madre de sua madre, e a coxa de seu padre, porque no tempo em que Júpiter engendrou esse pequerrucho, ainda não estava descoberto o remédio que previne a concepção para sempre, e de que ouço falar na Rua do Ouvidor. Dizem até que se anuncia, mas eu não leio anúncios.
No tempo em que os lia, até os ia catar nos jornais estrangeiros. Um destes, creio que americano, trazia um de excelente remédio para não sei que perturbações gástricas; recomendava porém, às senhoras que o não tomassem, em estado de gravidez, poio risco que corriam de abortar… O remédio não tinha outro fin1 senão justamente este mas a policia ficava sem haver por onde pegar do invento e do inventor. Era assim, por meios astutos e grande dissimulação, que o remédio se oferecia às senhoras cansadas de aturar crianças.
A moeda falsa, que previne a miséria, não a previne para sempre visto que a polícia tem o poder iníquo de interromper os estudos de gravura e meter toda uma academia na Detenção. Já li que se trata de demolir caracteres, e também que a autoridade está atacando o capital. Eu, em se me falando esta linguagem, fico do lado do capital e dos caracteres. Que pode, sem eles, uma sociedade?
Um criado meu, que perdeu tudo o que possuía na compra de desventuras… perdoem-lhe; é um pobre homem que fala mal. Ensinei-lhe a correta pronúncia de debêntures, mas ele disse-me que desventuras é o que elas eram, desventuras e patifarias. Pois esse criado também defende o capital; a diferença é que não se acusa a si de atacar o dos outros. e sim aos outros de lhe terem levado o seu. Quanto aos caracteres, entendo que, se alguma cousa quer demolir não são os caracteres, mas as próprias caras, que são os caracteres externos, e não o faz por medo da polícia.
Lê tudo o que os jornais publicam, este homem. Foi ele que me deu notícia da nova denúncia contra a Geral; ele chama-lhe nova. não sei se houve outra. Contou-me também uma história de discursos, paraninfos e retratos, e mais um contrabando de objetos de prata dentro de um canapé velho.
— Não ganho dinheiro com isto, conclui ele, mas consolo-me das minhas desventuras.
— Debêntures, José Rodrigues.
[116] [5 fevereiro]CONTARAM algumas folhas esta semana, que um homem, não querendo pagar por um quilo de carne preço superior ao taxado pela prefeitura, ouvira do açougueiro que poderia pagar o dito preço, mas que o quilo seria mal pesado.
Pára, amigo leitor; não te importes com o resto das cousas, nem dos homens. Com um osso, queria o outro reconstruir um animal; com aquela só palavra, podemos recompor um animal, uma família, uma tribo, uma nação, um continente de animais. Não é que a palavra seja nova. E menos velha que o diabo, mas é velha. Creio que no tempo das libras, já havia libras mal pesadas, e até arrobas. O nosso erro é crer que inventamos, quando continuamos, ou simplesmente copiamos. Tanta gente pasma ou vocifera diante de pecados, sem querer ver que outros iguais pecados se pecaram, e ainda outros se estão pecando, por várias outras terras pecadoras.
Andamos em boa companhia. Não nos hão de lapidar por atos que são antes efeito de uma epidemia do tempo. Ou lapidem-nos, mas no sentido em que se lapida um diamante, para se lhe deixar o puro brilho da espécie. Neste ponto, força é confessar que ainda há por aqui impurezas e defeitos graves; mas o belo diamante Estrela do Sul, que hoje pertence a não sei que coroa européia, não foi achado na Bagagem prestes a ser engastado, mas naturalmente bruto. Há impurezas. Há inépcia, por exemplo, muita inépcia. Quando não é inépcia, são inadvertências. Apontam-se diamantes que tanto têm de finos como de pataus, e só o longo estudo da mineralogia poderá :lar a chave da contradição.
Mas, sursum corda, como se diz na missa. Subamos ao alto valor espiritual da resposta do açougueiro. Um quilo mal pesado. Pela lei, um aquilo mal pesado não é tudo, são novecentas e tantas gramas, ou só novecentas. Mas a persistência do nome é que dá a grande significação da palavra e a conseqüente teoria. Trata-se de uma idéia que o vendedor e o comprador entendem, posto que legalmente não exista. Eles crêem e juram que há duas espécies de quilo, — o de peso justo e o mal pesado. Perderão a carne ou o preço, primeiro que a convicção.
Ora bem, não será assim com o resto? Que são notas falsas, se acaso estão de acordo com as verdadeiras, e apenas se distinguem delas por uma tinta menos viva, ou por alguns pontos mais ou menos incorretos? Falsas seriam, se se parecessem tanto com as outras, como um rótulo de farmácia com um bilhete do Banco Emissor de Pernambuco, para não ir mais longe; mas se entre as notas do mesmo banco houver apenas diferenças miúdas de cor ou de desenho, as chamadas falsas estão para as verdadeiras, como o quilo mal pesado para o quilo de peso justo. Excluo naturalmente o caso de emissões clandestinas, porque as notas de tais emissões nunca se poderão dizer mal pesadas. O peso é o mesmo. A alteração única está no acréscimo do mantimento, determinado pelo acréscimo dos quilos. Quanto ao mais, falsas ou verdadeiras, valha-nos aquela benta francesia que diz que tout finit par des chansons.
Pañuelo a la cintura,
Pañuelo al cuello,
Tantos pañuelos!
Saiam donde for, basta que enfeitem a moça andaluza. Não lhe faltarão guitarras nem guitarreiros, que levantem até a lua os seus méritos, ainda que eles sejam mal pesados. Que valem cinqüenta ou cem gramas de menos a um merecimento, se lhe não tiram este nome? Tudo está no nome. Vi estadistas que tinham de ciência política um quilo muito mal pesado, e nunca os vi gritar contra o açougueiro; alguns acabaram crendo que o peso era justo, outros que até traziam um pedaço de quebra…
— Isto prova, interrompe-me aqui o açougueiro, que o senhor entende pouco do que escreve. Se realmente tivesse idéias claras saberia que não há só quilos mal pesados; também os há bem pesados. Mas quem os recebe da segunda classe, não corre às folhas públicas. Creia-me, isto de filosofia não se faz só com a pena no papel mas também com o facão na alcatra. Saiba que o mundo é uma balança, em que se pesam alternadamente aqueles dous quilos, entre brados de alegria e de indignação. Para mim, tenho que o quilo mal pesado foi inventado por Deus, e o bem pesado pelo Diabo, mas os meus fregueses pensam o contrário, e daí um povo de cismáticos. uma raça perversa e corrupta…
— Bem; faça o resto da crônica.
[117] [12 fevereiro]FALECI ONTEM, pelas sete horas da manhã. Já se entende que foi sonho; mas tão perfeita a sensação da morte, a despegar-me da vida tão ao vivo o caminho do céu, que posso dizer haver tido um antegosto da bem-aventurança.
Ia subindo, ouvia já os coros de anjos, quando a própria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde espremera algumas dúzias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar procissões que lhe pedissem chuva. A sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando a ânfora:
— Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a restauração. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão não por ser melhor, mas por ser a própria quadra antiga, a do costume. a do calendário, a da tradição, a de Roma, a de Veneza. a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de saúde, — algum aparecimento de febre, que os seus vizinhos chamem logo amarela, não lhe podendo chamar pior… Sim, chovamos sobre o Rio de Janeiro.
Alegrei-me com isto, posto já não pertencesse à terra. Os meus patrícios iam ter um bom carnaval, — velha festa, que está a fazer quarenta anos. se já os não fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado da colônia e vindo da metrópole. Não pensem os rapazes de vinte e dous anos que o entrudo era alguma cousa semelhante às tentativas de ressurreição, empreendidas com bisnagas. Eram tinas d’água, postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão todo, — chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa, entre a rua e as janelas, não contando as bacias d’água despejadas a traição. Mais de uma tuberculose caminhou em três dias o espaço de três meses.
Quando menos, nasciam as constipações e bronquites, ronquidões e tosses. e era a vez dos boticários, porque, naqueles tempos infantes e rudes, os farmacêuticos ainda eram boticários.
Cheguei a lembrar-me, apesar de ir caminho do céu, dos episódios de amor que vinham com o entrudo. O limão de cera, que de longe podia escalavrar um olho, tinha um ofício mais próximo e inteiramente secreto. Servia a molhar o peito das moças; era esmigalhado nele pela mão do próprio namorado, maciamente, amorosamente, interminavelmente . . .
Um dia veio, não Malesherbes, mas o carnaval, e deu à arte da loucura uma nova feição. A alta roda acudiu de pronto; organizaram-se sociedades, cujos nomes e gestos ainda esta semana foram lembrados por um colaborador da Gazeta. Toda a fina flor da capital entrou na dança. Os personagens históricos e os vestuários pitorescos, um doge, um mosqueteiro, Carlos V, tudo ressurgia às mãos dos alfaiates, diante de figurinos, à força de dinheiro. Pegou o custo das sociedades, as que morriam eram substituídas, com vária sorte, mas igual animação.
Naturalmente, o sufrágio universal, que penetra em todas as instituições deste século, alargou as proporções do carnaval, e as sociedades multiplicaram-se, com os homens. O gosto carnavalesco invadiu todos os espíritos, todos os bolsos, todas as ruas. Evohé! Bacchus est roi! dizia um coro de não sei que peça do Alcazar Lírico, -— outra instituição velha, mas velha e morta. Ficou o coro, com esta simples emenda: Evohé! Momus est roi!
Não obstante as festas da terra, ia eu subindo. subindo, até que cheguei à porta do céu, onde S. Pedro parecia, aguardar-me, cheio de riso.
— Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra? perguntou-me.
Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que escondê-los, confesso o meu pecado, porque acredito nos que estão no morro do Castelo, como nos cento e cinqüenta contos fortes do homem que está preso em Valhadolide. São fortes; segundo o meu criado José Rodrigues. quer dizer que são trezentos contos. Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mistério. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo ainda a tenho. Perdi saúde, ilusões. amigos e até dinheiro, mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem me os de levar as riquezas consigo; depressa, depressa, ao subterrâneo. venham os ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de moeda, cem, duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas, toca a esconder, a guardar, a fechar…
— Pára, interrompeu-me S. Paulo; falas como se estivesses a representar alguma cousa. A imaginação dos homens é perversa. Os homens sonham facilmente com dinheiro. Os tesouros que valem são os que se guardam no céu. onde a ferrugem os não come.
— Não era o dinheiro que me fascinava em vida, era o mistério. Eram os trinta ou quarenta milhões de cruzados escondidos, há mais de século, no Castelo; são os trezentos contos do preso de Valhadolide. O mistério, sempre o mistério.
— Sim, vejo que amas o mistério. Explicar-me-ás este de um grande número de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se poderem incorporar?
— Quando, divino apóstolo?
— Ainda agora.
— Há de ser obra de um médico italiano, um doutor … esperai… creio que Abel, um doutor Abel, sim Abel… É um facultativo ilustre. Descobriu um processo para esterilizar as mulheres. Correram muitas, dizem; afirma-se que nenhuma pode já conceber; estão prontas.
— As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas; não sabiam a que atribuir essa repulsa. Qual é o fim do processo esterilizador? — Político. Diminuir a população brasileira, à proporção que a italiana vai entrando; idéia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel …
— Crispi foi sempre tenebroso.
— Não digo que não; mas, em suma, há um fim político, e os fins políticos são sempre elevados … Panamá, que não tinha fim político …
— Adeus, tu és muito falador. O céu é dos grandes silêncios contemplativos.
[118] [19 fevereiro]É MEU VELHO costume levantar-me cedo e ir ver as belas rosas, frescas murtas, e as borboletas que de todas as partes correm a amar no meu jardim. Tenho particular amor às borboletas. Acho nelas algo das minhas idéias, que vão com igual presteza, senão com a mesma graça. Mas deixemo-nos de elogios próprios; vamos ao que me aconteceu ontem de manhã.
Quando eu mais perdido estava a mirar uma borboleta e uma idéia, parado no jardim da frente, ouvi uma voz na rua, ao pé da grade:— Faz favor?
Não é preciso mais para fazer fugir uma idéia. A minha escapouse-me, e tive pena. Vestia umas asas de azul-claro, com pintinhas amarelas, cor de ouro. Cor de ouro embora, não era a mesma (nem para lá caminhava) do banqueiro Oberndcerffer, que depôs agora no processo Panamá. Esse cavalheiro foi quem deu à companhia a idéia de emissão de bilhetes de loteria e o respectivo plano, para falar como no Beco das Cancelas. Pagaram-lhe só por esta idéia dous milhões de francos. O presidente do tribunal ficou assombrado. Mas um dos diretores, réu no processo, explicou o caso dizendo que o banqueiro tinha grande influência na praça, e que assim trabalharia a favor da companhia, em vez de trabalhar contra. Teve uma feliz idéia, disse o juiz ao depoente; mas, para os acionistas, era melhor que não a tivesse tido. O depoente provou o contrário e retirou-se.
Tivesse eu a mesma idéia, e não a venderia por menos. Olhem, não fui eu que ideei esta outra loteria, mais modesta, do Jardim Zoológico; mas, se o houvesse feito, não daria a minha idéia por menos de cem contos de réis; podia fazer algum abate, cinco porcento, digamos dez. Relativamente não se pode dizer que fosse caro. Há invenções mais caras.
Mas, vamos ao caso de ontem de manhã. Olhei para a porta do jardim, dei com um homem magro, desconhecido, que me repetiu cochilando:
— Faz favor?
Cheguei a supor que era uma relíquia do carnaval; erro crasso, porque as relíquias do carnaval vão para onde vão as luas velhas. As luas velhas, desde o princípio do mundo, recolhem-se a uma região que fica à esquerda do infinito, levando apenas algumas lembranças vagas deste mundo. O mundo é que não guarda nenhuma lembrança delas. Nem os namorados têm saudades das boas amigas, que, quando eram moças e cheias, tanta vez os cobriram com o seu longo manto transparente. E suspiravam por elas; cantavam à viola mil cantigas saudosas, dengosas ou simplesmente tristes; faziam-lhes versos, se eram poetas:
Era no outono, quando a imagem tua,
À luz da lua…
C’etait dans la nuit brume,
Sur le clocher jauni,
La lune…
Todos os metros, todas as línguas, enquanto elas eram moças; uma vez encanecidas, adeus. E lá vão elas para onde vão as relíquias do carnaval — não sei se mais esfarrapados, nem mais tristes; mas vão, todas de mistura, trôpegas, deixando pelo caminho as metáforas e os descanses de poetas e namorados.
Reparando bem, vi que o homem não era precisamente um trapo carnavalesco. Trazia na mão um papel, que me mostrava de longe, — a princípio, calado, — depois dizendo que era para mim. Que seria? Alguma carta, — talvez” um telegrama’ Que me dirá esse telegrama? Agora mesmo, houve em Blumenau a prisão do Sr. Lousada. Telegrafaram a 16 esta notícia, acrescentando que “o povo dá demonstração sensível de indignação”. Para quem conhece o técnica dos telegramas, o povo estava jogando o bilhar. Tanto é assim que o próprio telegrama, para suprir a dubiedade e o vago daquelas palavras, concluiu com estas: “esperam-se acontecimentos gravíssimos”. Sabe-se que o supelativo paga o mesmo que o positivo; naturalmente o telegrama não custou mais caro.
Vejam, entretanto, como me enganei. Realmente, houve acontecimentos gravíssimos; a 17 telegrafaram que vinte homens armados feriram gravemente o comissário da polícia: esperavam-se outras cenas de sangue. Vinte homens não são o algarismo ordinário de um povo; mas eram graves os sucessos. Outro telegrama, porém, não fala de tal ataque; diz apenas que uma comissão do povo foi exigir providências do juiz de direito, que este pedia a coadjuvação do povo para manter a ordem, e ficou solto Lousada. Tudo isto, se não é claro, traz-me recordações da infância, quando eu ia ao teatro ver uma velha comédia de Scribe, o Chapéu de Palha da Itália. Havia nela um personagem que atravessa os cinco atos, exclamando alternadamente, conforme os lances da situação: — “Meu genro, tudo está desfeito!” — “Meu genro, tudo está reconciliado!”
— Telegrama? perguntei.
— Não, senhor, disse o homem.
— Carta?
— Também não. Um papel.
Caminhei até a porta. O desconhecido, cheio de afabilidade que lhe agradeço nestas linhas, entregou-me um pedacinho de papel impresso, com alguns dizeres manuscritos. Pedi-lhe que esperasse; respondeu-me que não havia resposta, tirou o chapéu, e foi andando. Lancei os olhos ao papel, e vi logo que não era para mim, mas para o meu vizinho. Não importa; estava aberto e pude lê-lo. Era uma intimação da intendência municipal.
Esta intimação começava dizendo que ele tinha de ir pagar a certa casa, na Rua Nova do Ouvidor, a quantia de mil e quinhentos réis, preço da placa do número da casa em que mora. Concluí que também eu teria de pagar mil e quinhentos quando recebesse igual papel, porque a minha casa também recebera placa nova. O papel era assinado pelo fiscal. Achei tudo correto, salvo o ponto de ir pagar a um particular, e não à própria intendência; mas a explicação estava no fim.
Se a pessoa intimada não pagasse no prazo de três dias, incorreria na multa de trinta mil-réis. Estaquei por um instante; três dias, trinta mil-réis, por uma placa, era um pouco mais do que pedia o serviço, — um serviço que, a rigor, a intendência é quê devia pagar. Mas estava longe dos meus espantos. Continuei a leitura, e vi que, no caso de reincidência, pagaria o dobro (sessenta mil-réis) e teria oito dias de cadeia. Tudo isto em virtude de um contrato.
O papel e a alma caíram-me aos pés. Oito dias de cadeia e sessenta mil-réis se não pagar uma placa de mil e quinhentos! Tudo por contrato. Afinal apanhei o papel, e ainda uma vez o li; meditei e vi que o contrato podia ser pior, — podia estatuir a perda do nariz, em vez da simples prisão. A liberdade volta; nariz cortado não volta. Além disso, se Xavier de Maistre, em quarenta e dous dias de prisão, escreveu uma obra-prima, por que razão, se eu for encarcerado por causa de placa, não escreverei outra? Quem sabe se a falta da cadeia não é que me impede esta consolação intelectual? Não, não há pena; esta cláusula do contrato é antes um benefício.
Verdade é que um legista, amigo meu, afirma que não há carcereiro que receba um devedor remisso de placas. Outro, que não é legista, mas é devedor, há três meses, assevera que ainda ninguém o convidou a ir para a Detenção. A pena é um espantalho. Que desastre! Justamente quando eu começava a achá-la útil. Pois se não há cadeia de verdade, é caso de vistoria e demolição.
[119] [26 fevereiro]O QUE MAIS Me encanta na humanidade, é a perfeição. Há um imenso conflito de lealdades debaixo do sol. O concerto de louvores entre os homens pode dizer-se que é já música clássica. A maledicência, que foi antigamente uma das pestes da terra, serve hoje de assunto a comédias fósseis, a romances arcaicos. A dedicação, a generosidade, a justiça, a fidelidade, a bondade, andam a rodo, como aquelas moedas de ouro com que o herói de Voltaire viu os meninos brincarem nas ruas de El-Dorado.
A organização social podia ser dispensada. Entretanto, é prudente conservá-la por algum tempo, como um recreio útil. A invenção de crimes, para serem publicados à maneira de romances, vale bem o dinheiro que se gasta com a segurança e a justiça públicas. Algumas dessas narrativas são demasiado longas e enfadonhas, como a Maria de Macedo, cujo sétimo volume vai adiantado; mas isso mesmo é um benefício. Mostrando aos homens os efeitos de um grande enfado, prova-se-lhes que o tipo de maçante, — ou cacete, como se dizia outrora — é dos piores deste mundo, e impede-se a volta de semelhante flagelo. Uma das boas instituições do século é a falange das cousas perdidas, composta dos antigos gatunos e incumbida de apanhar os relógios e carteiras que os descuidados deixam cair, e restituí-los a seus donos. Tudo efeito de discursos morais.
Posto que inútil, pela ausência de crimes, o júri é ainda uma excelente instituição. Em primeiro lugar, o sacrifício que fazem todos os meses alguns cidadãos em deixarem os seus ofícios e negócios para fingirem de réus, é já um grande exemplo de civismo. O mesmo direi dos jurados. Em segundo lugar, o torneio de palavras a que dá lugar entre advogados, constitui uma boa escola de eloqüência. Os jurados aprendem a responder aos quesitos, para o caso de aparecer algum crime. Às vezes, como sucedeu há dias, enganam-se nas respostas, e mandam um réu para as galés, em vez de o devolverem à família; mas, como são simples ensaios, esse mesmo erro é benefício, para tirar aos homens alguma pontinha de orgulho de sapiência que porventura lhes haja ficado.
Mas a perfeição maior, a perfeição máxima, é a de que nos deu notícia esta semana o cabo submarino. O grão-turco, por ocasião do jubileu do papa, escreveu-lhe uma carta autografada de felicitações acompanhada de presentes de alta valia. Não se pode dizer que sejam cortesias temporais. O papa já não governa, como o sultão da Turquia. A fineza é o chefe espiritual, tão espiritual como o jubileu. Já cismáticos e heréticos tinham feito a mesma cousa; faltava o grão turco, e já não falta. Alá cumprimentou o Senhor, M2omé a Cristo. Tudo o que era contraste, fez-se harmonia, o oposto ajustou-se a oposto. Ondas e ondas de sangue custou o conflito de dous livros A cruz e o crescente levaram atrás de si milhares e milhares de homens. Houve cóleras grandes. Houve também grandes e pequeno poetas que cantaram os feitos e os sentimentos evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa. Um deles dedilhou no alaúde romântico a história daquele sultão que requestava uma cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:
Je donneirais sans retour
Mon royaume pour Alédine,
Médine pour ton amour.
— Rei sublime, faze-te primeiramente cristão, respondeu a bela Juana; danado é o prazer que uma mulher pode achar nos braços de um incrédulo.
Tempos de Granada! já não é preciso que os sultões se cristianizem. Agora é a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares diplomáticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou morre para celebrar a festa de um grande incrédulo do Corão. Onde vão as guerras de outrora? Onde param os alfanjes tintos de sangue cristão? Naturalmente estão com as espadas tintas de sangue muçulmano. Vivam os vivos!
Eu, se pudesse dar um conselho em tais casos, propunha a emenda do breviário. Glória a Deus nas alturas, deve ficar; mas para que acrescentar: e na terra paz aos homens? A paz aí está, completa, universal, perene. Vede Ubá. Vede que magnífico espetáculo deu ela a todos os municípios do Estado mineiro, fazendo uma eleição tranqüila, sem as ruins paixões que corrompem os melhores sentimentos deste mundo. O governador de S. Paulo achou-se em casa com cerca de oitenta bombons de dinamite, -excelente produto da indústria local, que conseguiu reduzir um explosivo tão violento a simples doce de confeitaria.
Não falo de Pernambuco, nem do Rio Grande do Sul, nem das amazonas de Daomé, nem das danças de Madri, a que chamaram tumultos, por ignorância do espanhol, nem da Guaratiba, nem de tantas outras partes e artes, que são consolações da nossa humanidade triunfante.
Mas a paz não basta. Falta dizer da alegria. Oh! doce alegria dos corações! Um só exemplo, e dou fim a isto. Aqui está o parecer dos síndicos da Geral, publicado sexta-feira. Diz que entre os nomes da proposta da concordata há alguns jocosos e outros obscenos. O parecer censura esse gênero de literatura concordatária. Escrito com a melancolia que a natureza, para realçar a alegria do século, pôs na alma de todos os síndicos, o parecer não compreende a vida e as suas belas flores. Isto quanto aos nomes jocosos. Pelo que toca aos obscenos, é preciso admitir que, assim como há bocas recatadas, também as há lúbricas. A alegria tem todas as formas, não se há de excluir uma, por não ser igual às outras. A monotonia é a morte. A vida está na variedade.
Demais, que se há de fazer com acionistas que ainda devem de entradas oitenta e cinco mil oitocentos e quarenta e seis contos, cento e sessenta mil e duzentos réis (85.846:160 200)? Rir um pouco, e bater-lhes na barriga. Ora, cada um ri com a boca que tem. Mas a prova de que a obscenidade, como a jocosidade, formas de alegria, são de origem legítima e autêntica, é que todas as firmas foram legalmente reconhecidas. Quando a alegria entra nos cartórios, é que a tristeza fugiu inteiramente deste mundo.
[120] [5 março]QUANDO OS JORNAIS anunciaram para o dia 1.0 deste mês uma parede de, açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.
Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.
Vede o nobre cavalo! o paciente burro! o incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente, pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, comesse o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.
Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo principio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue” todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.
Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.
Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.
Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.
Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 1.1) de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa
Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capeli. Não contava com o orador, (que aparou o golpe galhardamente: “Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimens do tipo americano.”
Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, ante ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvi as óperas sem libreto na mão, é um progresso.
[121] [12 de março]QUE CUIDAM que me ficou dos últimos acontecimentos Amazonas? Um verbo: desaclamar-se. Está em um dos telegrama do Pará e refere-se ao cidadão que, por algumas horas, estivera com o poder nas mãos. “Tendo em ofício participado a sua aclamação marcado o prazo de 12 horas para a retirada do governador, de clamou-se em seguida por outro ofício. . .”
Pode ser (tudo é possível) que o intuito da palavra fosse ante gracejar com a ação; mas as palavras, com os livros, têm os seus fados, e os desta serão prósperos. É uma porta aberta para as restituições políticas. Resignar, como abdicar, exprime a entrega de um poder legítimo, que o uso tornou pesado, ou os acontecimentos fizeram caduco. Mas, como se há de exprimir a restituição do poder que a aclamação de alguns entregou por horas a alguém? Desaclamar-se. Não vejo outro modo.
Mérimée confessou um dia que da história só dava apreço às anedotas. Eu nem às anedotas. Contento-me com palavras. Palavra brotada no calor do debate, ou composta por estudo, filha da necessidade, oriunda do amor ao requinte, obra do acaso, qualquer que seja a sua certidão de bastimo, eis o que me interessa na história dos homens. Desta maneira fico abaixo do outro, que só curava de anedotas. Sim, meus amigos, nunca me vereis vencido por ninguém. Alta ou baixa que seja uma idéia, acreditei que tenho outra mais alta ou mais baixa. Assim o autor da Crônica de Carlos IX dava Tucídides por umas memórias autênticas de Aspásia ou de um escravo de Péricles. Eu dou as memórias deste escravo pela notícia da palavra que Péricles aplicava, em particular, aos cacetes e amoladores de seu tempo.
Que valem, por exemplo, todas as lutas do nosso velho parlamentarismo, em comparação com esta palavra: inverdade? Inverdade é o mesmo que mentira, mas mentira de luva de pelica. Vede bem a diferença. Mentira só, nua e crua, dada na bochecha, dói. Inverdade, embora dita com energia, não obriga a ir aos queixos da pessoa que a profere. — “Perdoe-me V. Ex.a, mas o que acaba de dizer é uma inverdade; nunca o presidente da Paraíba afirmou tal cousa.” — “Inverdade é a sua; desculpe-me que lhe diga em boa amizade; V. Ex.a neste negócio tem espalhado as maiores inverdades possíveis! para não ir mais longe, o crime atribuído ao redator do Imparcial. . . ” — “São pontos de vista; peço a palavra.”
Parece que inexatidão bastava ao caso; mas é preciso atender ao uso das palavras. Não cansam só as línguas que as dizem; elas próprias gastam-se. Quando menos, adoecem. A anemia é um dos seus males freqüentes; o esfalfamento é outro. Só um longo repouso as pode restituir ao que eram, e torná-las prestáveis.
Não achei a certidão de bastimo da inverdade; pode ser até que nem se batizasse. Não nasceu do povo, isso creio. Entretanto, esta moça, pode ainda casar, conceber e aumentar a família do léxicon. Ouso até afirmar que há nela alguns sinais de pessoa que está de esperanças. E o filho é macho; e há de chamar-se inverdadeiro. Não se achará melhor eufemismo de mentiroso; é ainda mais doce que sua mãe, posto que seja feio de cara; mas quem vê cara, não vê corações.
Vi muitos outros viventes de igual condição, que mereceriam algumas linhas; mas o tempo urge, e fica para outra vez. Nem há só viventes separados; tenho visto irmãos, fileira de irmãos, saídos da mesma coxa ou do mesmo útero, com o nome de uma só família apenas diferençado pelo Sufixo, cuja significação não alcanço. Um exemplo, e despeço-me.
A chefia, e particularmente a chefia de polícia, é uma dona robusta, de grandes predicados e alto poder. Supus por muitos anos que era filha única do velho chefe; mas os tempos me foram mostrando que não. Tem irmãs, tem irmãos, tem chefação, pessoa de igual ou maior força, porque a desinência é mais enérgica. Tem chefança. Vi muitas vezes esta outra senhora, à frente da polícia ou de um partido, disputar às irmãs o domínio exclusivo, sem alcançar mais que comparti-lo com elas. Vi ainda a nobre chefatitra, tão válida e tão ambiciosa como as outras. Dos irmãos só conheço o esbelto chefiado, que, alegando o sexo, pretendeu sempre a chefança, a chefatura, a chefação ou a chefia da família.
Parece que, à semelhança dos filhos de Jacó, invejosos de José, que era particularmente amado do pai, os filhos e filhas do velho chefe, verido a predileção deste pela linda chefia, cuidaram de a matar. Estavam prestes a fazê-lo, quando surgiu a idéia de a meter na cisterna, e dizê-la morta por uma fera, como na Escritura; mas a vinda dos mesmos israelitas, com os seus camelos, carregados de mirra e aromas …
Velha imaginação, onde vais tu, pelos caminhos do sonho? Deixa os camelos e a sua carga, deixa o Egito, fecha as asas, abre os olhos, desce; esta é a Rua do Ouvidor, onde não se mata José nem chefia; mas unicamente o tempo, esse bom e mau amigo, que não tem pai, nem mãe, nem irmãos, e domina todo este mundo, desde antes de Jacó até Deus sabe quando.
Para crônica, é pouco; mas para matar o tempo, sobra.
[122] [26 março]ENTROU o outono. Despontam as esperanças de ouvir Sarah Bemhardt e Falstaff. A arte virá assim, com as suas notas de ouro, cantada e faladas, trazer à nossa alma aquela paz que alguns homens de boa vontade tentaram restituir à alma Tio-grandense, reunindo-se quinta feira na Rua da Quitanda.
Creio que a arte há de ser mais feliz que os homens. Da reunião destes resultou saber-se que não havia solução prática de acordo com os seus intuitos. Talvez os convidados que lá não foram e mandara os seus votos em favor do que passasse, já adivinhassem isso mesmo Viram de longe o texto da moção final, e a assinaram de véspera Há desses espíritos que, ou por sagacidade pronta, ou por esforço grande, lêem antes da meia-noite as palavras que a aurora tem d trazer escritas na capa vermelha e branca, saúdam as estrelas, fecha as janelas e vão dormir descansados. Alguns sonham, e creio que sonhos generosos; mas a imaginação e o coração não mudam a cor rente das cousas, e os homens acordam frescos e leves, sem haver debatido nem incandescido nada.
Comecemos por pacificar-nos. Paz na terra aos homens de boa vontade — é a prece cristã; mas nem sempre o céu a escuta, e, apesar da boa vontade, a paz não alcança os homens e as paixões os dilaceram. Para este efeito, a arte vale mais que o céu. A própria guerra, cantada por ela, dá-nos a serenidade que não achamos na vida. Venha a arte, a grande arte, entre o fim do outono e o princípio do inverno.
Confiemos em Sarah Bernhardt com todos os seus ossos e caprichos, mas com o seu gênio também. Vamos ouvir-lhe a prosa e o verso, a paixão moderna ou antiga. Confiemos no grande Falstafl. Não é poético, decerto, aquele gordo Sir John; afoga-se em amores lúbricos e vinho das Canárias. Mas tanto se tem dito dele, depois que o Verdi o pôs em música, que mui naturalmente é obra-prima.
O pior será o libreto, que, por via de regra, não há de prestar; mas leve o diabo libretos. Antes do dilúvio, — ou mais especificadamente, pelo tempo do Trovador, dizia-se que o autor do texto dessa ópera era o único libretista capaz. Não sei; nunca o li. O que me ficou é pouco para provar alguma cousa. Quando a cigana cantava: Ai nostri monti ritorneremo, a gente só ouvia o vozeirão da Casaloni, uma mulher que valia, corpo e alma, por uma companhia inteira. Quando Manrico rompia o famoso: Di quella pira 1’orrendo fuoco, rasgaram-se as luvas com palmas ao Tamberlick ou ao Mirate. Ninguém queria saber do Camarano, que era o autor dos versos.
Resignemos ao que algum mau alfaiate houver cortado na capa magnífica de Shakespeare. Têm-se aqui publicado notícias da obra nova, e creio haver lido que um trecho vai ser cantado em concerto; mas eu prefiro esperar. Demais, pouco é o tempo para ir seguindo esta outra guerra civil, a propósito do facultativo italiano, que mostra ser patrício de Machiavelli. Fez o seu anúncio, e entregou a causa aos adversários. Estes fazem, sem querer, o negócio dele: e se algum vai ficando conhecido, a culpa é das cousas, não da intenção; não se pode falar sem palavras, e as palavras fizeram-se para ser ouvidas. Não digo entendidas, posto que as haja de fina casta, tais como a isquioebetomia, a isquiopubiotomia, a sinfisiotomia, a cofarectomia, a histerectomin, a histerosalpingectomia, e outras que andam pelos jornais, todas de raça grega e talvez do próprio sangue dos Atridas.
Tudo isto a propósito de um processo ignoto e célebre. Descobriu-se agora (segundo li) que uma senhora já o conhece e emprega. Seja o que for, é uma questão reduzida aos médicos; não passará aos magistrados. Vamos esquecendo; é o nosso ofício.
Bem faz o Dr. Castro Lopes, que trabalha no silêncio, e de quando em quando aparece com uma descoberta, seja por livro, ou por artigo. Anuncia-se agora um volume de questões econômicas, em que ele trata, além de outras cousas, de uma moeda universal. Um só rebanho e um só pastor, é o ideal da Igreja Católica. Uma só moeda deve ser o ideal da igreja do diabo, porque há uma igreja do diabo, no sentir de um grande padre. Venha, venha depressa esse volapuque das riquezas. Não lhe conheço o tamanho; pode ser do tamanho universal o mesmo que aconteceu com o volapuque. Acabo de ler que um dos mais influentes propugnadores daquela língua reconhece a inutilidade do esforço. O comércio do mundo inteiro não pega, e prefere os seus dizeres antigos às combinações dos que gramaticaram aquele invento curioso. É que o artificial morre sempre, mais cedo ou mais tarde.
[123] [23 abril]Eu, SE TIVESSE de dar Hamlet em língua puramente carioca, traduziria a célebre resposta do príncipe da Dinamarca: Words, words, words, por esta: Boatos, boatos, boatos. Com efeito, não há outra que melhor diga o sentido do grande melancólico. Palavras, boatos, poeira, nada, cousa nenhuma.
Toda a semana finda viveu disso, salvo a parte que não veio por’ boatos, mas por fatos, como o caso do coreto da Praça Tirandentes. Ninguém boquejou nada sobre aquela construção; por isso mesmo deu de si uma porção de conseqüências graves. Os boatos, porém, andavam a rodo, os rumores iam de ouvido em ouvido, nas lojas, corredores, em casa, entre a pera e o queijo, entre o basto e a espadilha. Conspirações, dissensões, explosões. Uns davam à distribuição dos boatos a forma interrogativa, que é ainda a melhor de todas. Homem, será certo que X furtou um lenço? O ouvinte, que nada sabe, nada afirma; mas aqui está como ele transmite a notícia: — Parece que X furtou um lenço. Um lenço de seda? Provavelmente; não valeria a pena furtar um lenço de algodão. A notícia chega à Tijuca com esta forma definitiva: X furtou dous lenços, um de seda, e, o que é mais nojento, outro de algodão, na Rua dos Ourives.
Não me digam que imito assim a fábula do marido e do ovo. Na fábula, quando o marido chega a ter posto uma dúzia de ovos, há ao menos o único ovo de galinha com que ele experimentou de manhã a discrição da esposa’ Aqui não há sequer as casacas. E, se não, vejam o que me aconteceu quarta-feira.
Estava à porta de uma farmácia, conversando com dous amigos sobre os efeitos prodigiosos do quinino, quando apareceu outro velho amigo nosso, o qual nos revelou muito à puridade que na quinta-feira teríamos graves acontecimentos, e que nos acautelássemos. Quisemos saber o que era, instamos, rogamos, não alcançamos nada. Graves acontecimentos. Ele falava de boa fé. Tinha a expressão ingênua da pessoa que crê, e a expressão piedosa da pessoa que avisa. Retirou-se; ficamos a conjeturar e chegamos a esta conclusão, que os sucessos anunciados eram o desenlance fatal dos boatos que andavam na rua. Todas essas cegonhas bateriam as asas à mesma hora, convertidas em abutres, que nos comeriam em poucos instantes.
Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa de um armeiro, onde comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além disso, com o pretexto de saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas peças de artilharia. Assim armado, recolhi-me a casa, jantei, digeri, e meti-me na cama. Naturalmente não dormi; mas também não vi a aurora. nem o sol de quinta-feira. Portas e janelas fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias para não fazer fogo, que denunciasse pelo fumo a presença de refugiados. Ensinei à família a senha monástica; andávamos calados, interrompendo a silêncio de quando em quando para dizermos uns aos outros que era preciso morrer. Assim se passou a quinta-feira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou é a salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução espanhola, inteiramente. A constituição foi dada na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e retirada no dia seguinte, depois de alguns lances próprios de tais crises, não por ser constituição, visto que, dous anos depois, tínhamos outra, — mas naturalmente por ser espanhola. De Espanha só mulheres, guitarras e pintores.
Tudo são aniversários. Que é hoje senão o dia aniversário natalício de Shakespeare? Respiremos, amigos; a poesia é um ar eternamente respirável. Miremos este grande homem; miremos as suas belas figuras, terríveis, heróicas, ternas, cômicas, melancólicas, apaixonadas, varões e matronas, donzéis e donzelas, robustos, frágeis, pálidos, e a multidão, a eterna multidão forte e movediça, que execra e brada contra César, ouvindo a Bruto, e chora e aclama César, ouvindo a Antônio, toda essa humanidade real e verdadeira. E acabemos aqui; acabemos com ele mesmo, que acabaremos bem. Allis well that ends well.
[124] [14 maio]ONTEM DE MANHÃ, descendo ao jardim, achei a grama, as flores e as folhagens transidas de frio e pingando. Chovera a noute inteira; o chão estava molhado, o céu feio e triste, e o Corcovado de carapuça. Eram seis horas; as fortalezas e os navios começaram a salvar pelo quinto aniversário do Treze de Maio. Não havia esperanças de sol; e eu perguntei a mim mesmo se o não teríamos nesse grande aniversário. É tão bom poder exclamar: “Soldados, é o sol de Austerlitz!” O sol é, na verdade, o sócio natural das alegrias públicas; e ainda as domésticas, sem ele, parecem minguadas.
Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto. Essas memórias atravessaram-me o espírito, enquanto os pássaros treinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que receberam ontem nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorificação. No meio de tudo, porém, uma tristeza indefinível. A ausência do sol coincidia com a do povo? O espírito público tornaria à sanidade habitual?
Chegaram-me os jornais. Deles vi que uma comissão da sociedade que tem o nome de Rio Branco, iria levar à sepultura deste homem de Estado uma coroa de louros e amores-perfeitos. Compreendi a filosofia do ato; era relembrar o primeiro tiro vibrado na escravidão. Não me dissipou a melancolia. Imaginei ver a comissão entrar modestamente pelo cemitério, desviar-se de um enterro obscuro, quase anônimo, e ir depor piedosamente a coroa na sepultura do vencedor de 1871. Uma comissão, uma grinalda. Então lembraram-me outras flores. Quando o Senado acabou de votar a lei de 28 de setembro, caíram punhados de flores das galerias e das tribunas sobre a cabeça do vencedor e dos seus pares. E ainda me lembraram outras flores…
Estas eram de climas alheias. Primrose day!
Oh! se pudéssemos tem um primrose day! Esse dia de primavera é consagrado à memória de Disracli pela idealista e poética Inglaterra. É o da sua morte, há treze anos. Nesse dia, o pedestal da estátua do homem de Estado e romancista é forrado de seda e coberto de infinitas grinaldas e ramalhetes. Dizem que a primavera era a flor da sua predileção. Daí o nome do dia. Aqui estão jornais que contam a festa de 19 do mês passado. Primrose day! Oh! quem nos dera um primrose day! Começaríamos, é certo, por ter os pedestais.
Um velho autor da nossa língua, — creio que João de Barros; não posso ir verificá-lo agora; ponhamos João de Barros. Este velho autor fala de um provérbio que dizia: “os italianos governam-se pelo passado, os espanhóis pelo presente e os franceses pelo que há de vir.” E em seguida dava “uma repreensão de pena à nossa Espanha”, considerando que Espanha é toda a península, e só Castela é Castela. A nossa gente, que dali veio, tem de receber a mesma repreensão de pena; governa-se pelo presente, tem o porvir em pouco, o passado em nada ou quase nada. Eu creio que os ingleses resumem as outras três nações.
Temo que o nosso regozijo vá morrendo, e a lembrança do passado com ele, e tudo se acabe naquela frase estereotipada da imprensa nos dias da minha primeira juventude. Que eram afinal as festas da independência? Uma parada, um cortejo, um espetáculo de gala. Tudo isso ocupava duas linhas, e mais estas duas: as fortalezas e os navios de guerra nacionais e estrangeiros surtos no porto deram as salvas de estilo. Com este pouco, e certo, estava comemorado o grande ato da nossa separação da metrópole.
Em menino, conheci de vista o Major Valadares; morava na Rua Sete de Setembro, que ainda não tinha este título, mas o vulgar nome de Rua do Cano. Todos os anos, no dia 7 de setembro, armava a porta da rua com cetim verde e amarelo, espalhava na calcada e no corredor da casa folhas da Independência, reunia amigos, não sei se também música. e comemorava assim o dia nacional. Foi o último abencerragem. Depois ficaram as salvas do estilo.
Todas essas minhas idéias melancólicas bateram as asas à entrada do sol, que afinal rompeu as nuvens, e às três horas governava o céu, salvo alguns trechos onde as nuvens teimavam em ficar. O Corcovado desbarretou-se, mas com tal fastio, que se via bem ser obrigação de vassalo, não amor da cortesia, menos ainda amizade pessoal ou admiração. Quando tornei ao jardim, achei as flores enxutas e lépidas. Vivam as flores! Gladstone não fala na Câmara dos Comuns sem levar alguma na sobrecasaca; o seu grande rival morto tinha o mesmo vício. Imaginai o efeito que nos faria Rio Branco ou Itaboraí com uma rosa ao peito, discutindo o orçamento, e dizei-me se não somos um povo triste.
Não, não. O triste sou eu. Provavelmente má digestão. Comi favas, e as favas não se dão comigo. Comerei rosas ou primaveras, e pedirvos-ei uma estátua e uma festa que dure, pelo menos, deus aniversários. Já é demais para um homem modesto.
[125] [29 outubro]—. . . MAS POR QUE é que não adoece outra vez? No domingo passado, esteve aqui um senhor alto, cheio, bem-nascido, que me deu no cias suas, disse-me que havia adoecido, — adoecido ou nadado?— Adoecido; mas doenças, minha senhora, não se compram na botica, posto se agravem nela, alguma vez. A minha achou felizmente um boticário consciencioso, que, depois de me haver dado um vidro de remédio e o troco do dinheiro, disse-me com um gesto mais doutoral que farmacêutico: “Não desanime; a sua moléstia tem um prazo certo; são três períodos.” Quis pedir o dinheiro, restituir o vidro e esperar o fim do prazo certo, mas o homem já ouvia outro freguês, igualmente enfermo dos olhos, e naturalmente ia preparar-lhe o mesmo remédio, pelo mesmo preço, com o mesmo prazo e igual animação.
— Então, não foi nadando que …
— Não, bela criatura, eu não sei nadar. Outrora, quando tomava banhos de mar… Sim, houve tempo em que penetrei no seio de Anfitrite, com estes pés que a senhora está vendo, e com estes braços; ficávamos peito a peito; eu chegava a meter a cabeça na bela cama verde da deusa, mas não saía da beira da praia. Se o seio lhe intumescia um pouco mais, por efeito de algum suspiro, eu, cheio de respeito, desandava. Quando Vênus a flagelava muito, eu não penetrava; deixava-me ficar do lado de fora, olhando com vontade e com pena.
— (À parte) Singular banhista!
— A senhora diz?
— Que tinha bem vontade de ver outra vez o senhor que aqui esteve, domingo passado. Ele que faz?
— Minha senhora, ele presentemente cessa de engordar. Anda lépido, come bem, dorme bem, escreve bem, nada bem. Quer-me até parecer que o nadador de que lhe falou, é ele mesmo; disse aquilo para desviar as atenções, mas não é outro.
— Ah! também penetra no seio de Anfitrite?
— Penetra, e sempre com estes dous versos de Camões, na boca:
Todas as deusas desprezei do céu,
Só por amar das águas a princesa.
— Gracioso!
— Gracioso, mas falso; é um modo de cativar a deusa. A senhora sabe que não há cousa que mais enterneça uma deusa, que falar de sentimentos exclusivos. Êle é fino; não há de ir dizer a Anfitrite que a todas as deusas prefere a majestosa Juno ou a guerreira Palas; mas creia que é também guerreiro e majestoso. Naquele dia, enquanto bracejava através da onda marinha, fazia de Mercúrio, com a diferença que levava os recados na barriga.
— Então, deveras, foi ele?
— Positivamente, não sei: mas vou dizendo que foi, já por vingança, já porque não conheço nada mais recreativo que espalhar um boato. O vício é muita vez um boato falso, e há virtudes que nunca foram outra cousa. Digo-lhe mais: este mundo em que a senhora supõe viver, não passa talvez de um simples boato. Os anjos, para matar o imortal tempo, fizeram correr pelo infinito o boato da criação, e nós, que imaginamos existir, não passamos das próprias palavras do boato, que rolam por todos os séculos dos séculos.
— Palavras apenas?
— Palavras, frases. A senhora é uma linda frase de artista. Tem nas formas um magnífico substantivo: os adjetivos são da casa de Madame Guimarães. A boca é um verbo. Et verbum caro factuin est.
— Aí vem o senhor com as suas graças sem graça. Não me há de fazer crer que a explosão da ilha Mocanguê foi uma vírgula …
— Não foi outra cousa. O bombardeio é uma reticência, a moléstia um solecismo, a morte um hiato, o casamento um ditongo, as lutas parlamentares, eleitorais e outras uma cacofonia.
— Ainda uma vez, por que não adoeceu esta semana? Está soporífero. Quisera saber de uma porção de cousas, mas não lhe pergunto nada. Adeus.
— Não, não me mande embora, deixe-me ficar ainda um instante. É tão bom vê-la, mirá-la … E depois, advirto que estou apenas na tira oitava, e tenho de dar, termo médio, doze.
— Vamos; fale por tiras.
— Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. Não esgotaria o assunto; tudo seria pouco para dizer os seus feitiços e o gosto que sinto em estar a seu lado. Compreendo Tartufo ao O de Elmira: Je tâte votre habit; 1’étofle en est moelleiíse … Vá; responda que a senhora é fort chatouilleuse, para conservar a rima do texto, mas emendemos Molière. Eu, para mim, tenho que Tartufo é um caluniado. A verdade é que, sem acomodações com o céu, este mundo seria insuportável. E o céu é o mais acomodatício dos credores. Judas ainda pode ser perdoado. Pilatos também; lembre-se que ele começou por lavar as mãos; lave a alma, e está a caminho. Sendo assim, que mal há na bonomia que Tartufo atribui ao céu? “Oh! fazenda macia que é a deste seu vestido!” Que estremeções são esses, meu Deus?
— Ouço o bombardeio.
— Não é bombardeio. É o meu coração que bate. A artilharia do meu amor é extraordinária; não digo única, porque há a de Otelo. Pouco abaixo de Otelo, estamos Fedra e eu. Já notou que não me comparo nunca a gente miúda?
— Já; assim como tenho notado que o senhor é muito derretido. — Querida amiga, isso não depende da cera, mas do fogo. Que há de fazer uma vela acesa, senão derreter-se? É a única razão de haver fábrica de velas; se elas durassem sempre, acabavam as fábricas, os fabricantes, e conseqüentemente as próprias velas. Creio que há aqui alguma contradição; mas a contradição é deste mundo. Para longe os raciocínios perfeitos e os homens imutáveis! Cada erro de lógica pode ser um tento que a imaginação ganhe, e a imaginação é o sal da vida. Quanto aos homens imutáveis, são de duas ordens, os que se limitam a sê-lo sem confessá-lo, — e os que o são, e o proclamam a todos os ventos. A perfeição é dizê-lo sem o ser. Um homem que passe por várias opiniões, e demonstre que só teve uma opinião na vida, esse é a perfeição buscada. e alcançada. A modo que a senhora está bocejando? A culpa é sua, se me meto em assuntos áridos; podíamos ter continuado Tartufo.
— Quantas tiras?
— Começo a décima segunda. A senhora faz-me lembrar uma borboleta que encontrei ontem na Rua da Assembléia. A Rua da Assembléia não é passeio ordinário de borboletas; não há ali flores nem árvores. Esta de que lhe falo, agitava as asas de um lado para outro, abaixo e acima, de porta em porta. Suspendendo as minhas reflexões aborrecidas, parei alguns instantes para observar. Evidentemente, estava perdida; descera de algum morro ou fugira de algum jardim, se os há por ali perto. De repente, sumiu-se; eu meti a cabeça no chão e segui com as minhas cogitações tétricas. Mas a borboleta apareceu de novo, para tomar a sumir-se e reaparecer, segundo eu estacava o passo ou ia andando. Finalmente, encontrei um amigo que me convidou a tornar uma xícara de café e quatro boatos. A borboleta sumiu-se de todo. Conclua.
— As asas eram azuis?
— Azuis.
— Rajadas de ouro?
— De ouro.
— Não era eu; era um fiozinho de poeira, que forcejava por arrancá-lo aos pensamentos lúgubres. Há desses fenômenos. Agora mesmo, parece-me ver, ao longe, um pontozinho luminoso.
— Não, senhora; está perto, e é escuro; é o ponto final.
— Que não seja boato, como tantos!
[126] [5 novembro]HÁ NA COMÉDIA Verso e Reverso, de José de Alencar, um personagem que não vê ninguém entrar em cena, que não lhe pergunte: Que há de novo. Esse personagem cresceu com os trinta e tantos anos que lá vão, engrossou,, bracejou por todos os cantos da cidade, onde ora ressoa a cada instante: — Que há de novo? Ninguém sai de casa que não ouça a infalível pergunta, primeiro ao vizinho, depois aos companheiros de bond. Se ainda não a ouvimos ao próprio condutor do bond, não é por falta de familiaridade, mas porque os cuidados políticos ainda o não distraíram da cobrança da passagens e da troca de idéias com o cocheiro, porém, chega a seu tempo e compensa o perdido.
Confesso que esta semana entrei a aborrecer semelhante interrogação. Não digo o número de vezes que a ouvi, na segunda-feira, para não parecer inverossímil. Na terça-feira, cuidei lê-Ia impressa nas paredes, nas caras, no chão, no céu e no mar. Todos a repetiam em torno de mim. Em casa, à tarde, foi a primeira cousa que me perguntaram. Jantei mal; tive um pesadelo; trezentas mil vozes bradaram do seio do infinito: — Que há de novo? Os ventos, as marés, a burra de Balaão, as locomotivas, as bocas de fogo, os profetas, todas as vozes celestes e terrestres formavam este grito uníssono: Que há de novo?
Quis vingar-me; mas onde há tal ação que nos vingue de uma cidade inteira? Não podendo queimá-la, adotei um processo delicado e amigo. Na quarta-feira, mal saí à rua, dei com um conhecido que me disse, depois dos bons dias costumados:
— Que há de novo?
— O terremoto.
— Que terremoto? Verdade é que esta noite ouvi grandes estrondos, tanto que supus serem as fortalezas todas juntas. Mas há de ser isso, um terremoto; as paredes da minha casa estremeceram; eu saltei da cama; estou ainda surdo … Houve algum desastre?
— Ruínas, senhor, e grandes ruínas.
— Não me diga isso! A Rua do Ouvidor, ao menos …
— A Rua do Ouvidor está intacta, e corri ela a Gazeta de Notícias.
— Mas onde foi?
— Foi em Lisboa.
— Em Lisboa?
— No dia de hoje, 1 de novembro, há século e meio. Uma calamidade, senhor! A cidade inteira em ruínas. Imagine por um instante, que não havia o Marquês de Pombal, — ainda o não era, Sebastião José de Carvalho, um grande homem, que pôs ordem a tudo, enterrando os mortos, salvando os vivos, enforcando os ladrões, e restaurando a cidade. Fala-se da reconstrução de Chicago; eu creio que não lhe fica abaixo o caso de Lisboa, visto a diferença dos tempos, e a distância que vai de um povo a um homem. Grande homem, senhor! Uma calamidade! uma terrível calamidade!
Meio embaçado, o meu interlocutor seguiu caminho, a buscar notícias mais frescas. Peguei em mim e fui por aí fora distribuindo o terremoto a todas as curiosidades insaciáveis. Tornei satisfeito a casa; tinha o dia ganho.
Na quinta-feira, dous de novembro, era minha intenção ir tão somente ao cemitério; mas não há cemitério que valha contra o personagem do Verso e Reverso. Pouco depois de transpor o portão da lúgubre morada, veio a mim um amigo vestido de preto, que me apertou a mão. Tinha ido visitar os restos da esposa (uma santa!), suspirou e concluiu:
— Que há de novo?
— Foram executados.
— Quem?
— A coragem, porém, com que morreram, compensou os desvarios da ação, se ela os teve; mas eu creio que não. Realmente, era um escândalo. Depois, a traição do pupilo e afilhado foi indigna; pagou-se-lhe o prêmio, mas a indignação pública vingou a morte do traído.
— De acordo: um pupilo … Mas quem é o pupilo?
— Um miserável. Lázaro de Melo.
— Não conheço. Então, foram executados todos?
— Todos; isto é, dous. Um dos cabeças foi degredado por dez anos.
— Quais foram os executados?
— Sampaio. .
— Não conheço.
— Nem eu; mas tanto ele, como o Manuel Beckman, executados neste triste dia de mortos … Lá vão dous séculos! Em ver e, passaram mais de duzentos anos, e a memória deles ainda vive. Nobre Maranhão!
O viúvo mordeu os beiços; depois, com um toque de ironia triste, murmurou:
— Quando lhe perguntei o que havia de novo, esperava alguma cousa mais recente.
— Mais recente só a morte de Rocha Pita, neste mesmo dia, em 1738. Note como a história se entrelaça com os historiadores; morreram no i-nesmo dia, talvez à mesma hora, os que a fazem e os que a escrevem.
O viúvo sumiu-se; eu deixei-me ir costeando aquelas casas derradeiras, cujos moradores não perguntaram nada, naturalmente porque já tiveram resposta a tudo. Necrópole da minha alma, aí é que eu quisera residir e não nesta cidade inquieta e curiosa, que não se farta de perscrutar, nem de saber. Se aí estivesse de uma vez, não ouviria como no dia seguinte, sexta-feira, a mesma eterna pergunta. Era já cerca de 11 horas quando saí de casa, armado de um naufrágio, um terrível naufrágio, meu amigo.
— Onde? Que naufrágio?
— O cadáver da principal vítima não se achou; o mar serviu-lhe de sepultura. Natural sepultura; ele cantou o mar, o mar pagou-lhe o canto arrebatando-o à terra e guardando-o para si. Mas vá que se perdesse o homem; o poema, porém, esse poema, cujos quatro primeiros cantos aí ficaram para mostrar o que valiam os outros … Pobre Brasil! pobre Gonçalves Dias! Três de novembro, dia terrível; 1864, ano detestável! Lembro-me como se fosse hoje. A notícia chegou muitos dias depois do desastre. O poeta voltava ao Maranhão …
Raros ouviam o resto. Os que ouviam, mandavam-me interiormente a todos os diabos. Eu, sereno, ia contando, contando, e recitava versos, e dizia a impressão que tive a primeira vez que vi o poeta. Estava na sala de redação do Diário do Rio, quando ali entrou um homem pequenino, magro, ligeiro. Não foi preciso que me dissessem o nome; adivinhei quem era. Gonçalves Dias! Fiquei a olhar, pasmado, com todas as minhas sensações e entusiasmos da adolescência. Ouvia cantar em mim a famosa “Canção do Exílio”. E toca a repetir a canção, e a recitar versos sobre versos. Os intrépidos, se me agüentavam até o fim, marcavam-me; eu só os deixava moribundos.
No sábado, notei que os perguntadores fugiam de mim, com receio, talvez, de ouvir a queda do império romano ou a conquista do Peru. Eu, por não fiar dos tempos, saí com a morte de Torres Homem no bolso; era recentíssima, podia enganar o estômago. Creio, porém, que a explosão da véspera bastou às curiosidades vadias. Não me argúam de impiedade. Se é certo, como já se disse, que os mortos governam os vivos, não é muito que os vivos se defendam com os mortos. Dá-se assim uma confederação tácita para a boa marcha das cousas humanas.
Hoje não saio de casa; ninguém me perguntará nada. Não me perguntes tu também, leitor indiscreto, para que eu te não responda como na comédia, após o desenlace: — Que há de novo? inquire o curioso, entrando. E um dos rapazes: — Que vamos almoçar.
[127] [12 novembro]DURANTE a semana houve algumas pausas, mais ou menos raras, mais ou menos prolongadas; mas os tiros comeram a maior parte do tempo. Basta dizer que foram mais numerosos que os boatos. Aquela quadra pré-histórica, em que um tiro de peça, ouvido à noite, era o sinal para consultar e acertar os relógios, não se pode já comparar a estes dias terríveis, em que os tiros parecem pancadas de um relógio enorme, de um relógio que pára às vezes, mas a que se dá corda com pouco:
Never forever,
Forever never,
tal qual na balada de Longfellow. A poesia, meus amigos, está e tudo, na guerra como no amor.
Relevem-me aqui uma ilustre banalidade. Que é o amor mais que uma guerra, em que se vai por escaramuças e batalhas, em que há mortos e feridos, heróis e multidões ignoradas? Como os outros bombardeios, o amor atrai curiosos. A vida, neste particular, é uma interminável Praia da Glória ou do Flamengo. Quando Dáfnis e Cloe travam as suas lutas, são poucos os óculos e binóculos da gente vadia para contar as balas, ou que se perdem, ou que se aproveitam, não falando dos naturais holofotes que todos trazemos na cara.
De mim digo, porém, que aborreço a galeria. Uma vez desci do bond, na Praia da Glória, para ceder ao convite de um amigo que queria ver o bombardeio. Desci ainda outra vez para escapar a um sujeito que me contava a guerra da Criméia, onde não esteve, não havendo nunca saído daqui, mas que se ligava à sua adolescência, por serem contemporâneos. Ninguém ignora que os sucessos deste mundo, domésticos ou estranhos, uma vez que se liguem de algum modo aos nossos primeiros anos, ficam-nos perpetuados na memória. Por que é que, entre tantas cousas infantis e locais, nunca me esqueceu a notícia do golpe de Estado de Luís Napoleão? Pelo espanto com que a ouvi ler. As famosas palavras: Saí da legalidade para entrar no direito ficaram-me na lembrança, posto não soubesse o que era direito nem legalidade. Mais tarde, tendo reconhecido que este mundo era uma infância perpétua, concluí que a proclamação de Napoleão III acabava como as histórias de minha meninice: “Entrou por uma porta, saiu por outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra”. Por exemplo, o dia de hoje, 12 de novembro, é o aniversário do golpe de Estado de Pedro I, que também saiu da legalidade para entrar no direito.
Mas não quero ir adiante sem lhes dizer o que me sucedeu, quando pela segunda vez desci na Praia da Glória, a pretexto de ver o bombardeio. Estive ali uns dez minutos, os precisos para ouvir a um homem, e depois a outro homem, cousas que achei dignas do prelo. O primeiro defendia a tese de que os tiros eram necessários, mormente os de canhão-revólver, e também as explosões de paióis de pólvora. Dizia isto com tal placidez, que cuidei ouvir um simples amador; mas o segundo homem retificou esta minha impressão, dizendo-me, logo que o outro se retirou: — “É um vidraceiro; não quer a morte de ninguém, quer os vidros quebrados.” E o segundo homem, ar grave, declarou que abominava as lutas civis, concluindo que ninguém tinha a vida segura nesta troca de bombardas; ele, pela sua parte, já fizera testamento, não sabendo se voltaria para casa, visto que a existência dependia agora de uma bala fortuita. Gostei de ouvi-lo. Era o contraste judicioso e melancólico do primeiro. Quando ele se despediu, perguntei a um terceiro: “Quem é este senhor?” — “É um tabelião”, respondeu-me.
Assim vai o mundo. Nem sempre o cidadão mata o homem. E Bruto, o cidadão, também é homem, diz um verso de Garret. Deixem-me acrescentar, em prosa, que o homem é muitas vezes mulher, por esse vício de curiosidade que herdou da nossa mãe Eva, — outra ilustre banalidade. É a segunda que digo hoje. Rigorosamente, devia parar aqui; mas então não falaria das emissões particulares que estão aparecendo em Joinville, Catuguases e Campos. A Gazeta anteontem, transcreveu três notas campistas, e indignou-se. Prova que é mais moça que eu. Há muitos anos, 1868 ou 1869, lembro-me bem ter visto em Petrópolis bilhetes de emissões particulares, não impressos, mas ingenuamente manuscritos. Não traziam filetes nem emblemas; não se davam ao escrúpulo dos números de série. Vale tanto, ou vale isto, mais nada. Não posso afirmar com segurança se ainda se conhecia a origem de alguns; mas creio que sim.
Esta questão prende com uma teoria, que reputo verdadeira, a saber, que o direito de emitir é individual. Cada homem pode pôr em circulação o número de bilhetes que lhe parecer. Serão aceitos até onde for a confiança. O crédito responderá pelo valor. Nesta hipótese, melhor é o manuscrito que o impresso; porque o impresso é de todos, e o manuscrito é meu. Entendam-me bem. Não admiro a cláusula forçada da troca do bilhete por outro, prata ou papel do Estado; seria rebaixar a uma permuta de cousas tangíveis uma operação que deve repousar pura e simplesmente no crédito, “essa alavanca do progresso e da civilização”, para falar como o meu criado. Isto posto, a sociedade terá achado o eixo que perdeu desde a morte do feudalismo. A fome morrerá de fome. Ninguém pedirá, todos darão.
Não me acordeis, se é sonho. Mas não é sonho. Vejo mais que todos vós que vos supondes acordados. Se descreis disto, chegareis a descrer do espiritismo, perdereis a própria razão. Que radioso paraíso! Nesse dia, o tempo será aquele mesmo relógio que o poeta americano pôs na escada dos seus versos; mas a pêndula não baterá mais que amor, paz e abundância, com esta pequena alteração do estribilho:
Ever — forever!
Forever — ever!
UM DIA DESTES, lendo nos diários alguns atestados sobre as excelência s do xarope Cambará, fiz lima observação tão justa que não quero furtá-la aos contemporâneos, e porventura aos pósteros. Verdadeiramente, a minha observação é um problema, e, como o de Hamlet, trata da vida e da morte. Quando a gente não pode imitar os grandes homens, imite no menos as grandes ficções.
E por que não hei de eu imitar os grandes homens? Conta-se que Xerxes, contemplando um dia o seu imenso exército, chorou com a idéia de que, ao cabo de um século, toda aquela gente estaria morta. Também eu contemplo, e choro, por efeito de igual idéia; o exército é que é outro. Não são os homens que me levam à melancolia persa, mas os remédios que os curam. Mirando os remédios vivos e eficazes, faço esta pergunta a mim mesmo: Por que é que os remédios morrem?
Com efeito, eu assisti ao nascimento do xarope … Perdão; vamos atrás. Eu ainda mamava, quando apareceu um médico que “restituía a vista a quem a houvesse perdido”. Chamava-se o autor Antônio Gomes, que o vendia em sua própria casa, Rua dos Barbonos n.º 26. A Rua dos Barbonos era a que hoje se chama do Evaristo da Veiga. Muitas pessoas colheram o benefício inestimável que o remédio prometia. Saíram da noite para a luz, para os espetáculos da natureza, dispensaram a muleta de terceiro, puderam ler, escrever, contar. Um dia, Antônio Gomes morreu. Era natural; morreu como os soldados de Xerxes. O inventor da pólvora, quem quer que ele fosse, também morreu. Mas por que não sobreviveu o colírio de Antônio Gomes, como a pólvora? Que razão houve para acabar com o autor uma invenção tão útil à humanidade?
Não se diga que o colírio foi vencido pelo rapé Grimstone, “vulgarmente denominado de alfazema”, seu contemporâneo. Esse, conquanto fosse um bom específico para moléstias de olhos, não restituía a vista a quem a houvesse perdido; ao menos, não o fazia contar. Quando, porém, tivesse esse mesmo efeito, também ele morreu, e morreu duas vezes, como remédio e como rapé.
As inflamações de olhos tinham, aliás, outro inimigo terrível nas “pílulas universais americanas”; mas, como estas eram universais, não se limitavam aos olhos, curavam também sarnas, úlceras antigas erupções cutâneas, erisipela e a própria hidropisia. Vendiam-se ri farmácia de Lourenço Pinto Moreira; mas o único depósito era ri Rua do Hospício n.????? 40. Eram pílulas provadas; não curavam todos, visto que há diferença nos humores e outras partes; mas curavam muita vez e aliviavam, sempre. Onde estão elas? Sabemos número da casa em que moravam; não conhecemos o da cova e que repousam. Não se sabe sequer de que morreram; talvez u duelo com as “pílulas catárticas do farmacêutico Carvalho Júnior” que também curavam as inflamações de olhos e moléstias da pele com esta particularidade que dissipavam a melancolia. Eram úteis no reumatismo, eficazes nos males de estômago, e faziam vigorar cor do rosto. Mas também estas descansam no Senhor, como o velhos hebreus.
Para que falar do “elixir antiflegmático”, do “bálsamo homogêneo e tantos outros preparados contemporâneos da Maioridade? O xarope a cujo nascimento assisti, foi o “Xarope do Bosque”, um remédio composto de vegetais, como se vê do nome, e deveras miraculos Era bem pequeno, quando este preparado entrou no mercado; chego à maturidade, já não o vejo entre os vivos. É certo que a vida não é a mesma em todos; uns a tiveram mais longa, outros mais breve. Há casos particulares, como o das sanguessugas; essas acabaram por causa do gasto infinito. Imagine-se que há meio séculovendiam-se “aos milheiros” na Rua da Alfândega n.????? 15. Não há produção que resista a tamanha procura. Depois, o barbeiro sangrador é ofício extinto.
Por que é que morreram tantos remédios? Por que é que os remédios morrem? Tal é o problema. Não basta expô-lo; força é achar-lhe solução. Há de haver uma razão que explique tamanha ruína. Não se pode compreender que drogas eficazes no princípio de um século, sejam inúteis ou insuficientes no fim dele. Tendo meditado sobre este ponto algumas horas longas, creio haver achado a solução necessária.
Esta solução é de ordem metafísica. A natureza, interessada na conservação da espécie humana, inspira a composição dos remédios, conforme a graduação patológica dos tempos. Já alguém disse, com grande sagacidade, que não há doenças, mas doentes. Isto que se diz dos indivíduos, cabe igualmente aos tempos, e a moléstia de um vi não é exatamente a de outro. Há modificações lentas, sucessivas, por modo que, ao cabo de um século, já a droga que a curou não cura; é preciso outra. Não me digam que, se isto é assim, a observação basta para dar a sucessão dos remédios. Em primeiro lugar, não é a observação que produz todas as modificações terapêuticas; muitas destas são de pura sugestão. Em segundo lugar, a observação, em substância, não é mais que uma sugestão refletida da natureza.
Prova desta solução é o fato curiosíssimo de que grande parte dos remédios citados e não citados, existentes há quarenta e cinqüenta anos, curavam particularmente a crisipela. Variavam as outras moléstias, mas a crisipela estava inclusa na lista de cada um deles. Naturalmente, era moléstia vulgar; daí a florescência dos medicamentos apropriados à cura. O povo, graças à ilusão da Providência, costuma dizer que Deus dá o frio conforme a roupa; o caso da crisipela mostra que a roupa vem conforme o frio.
Não importa que daqui a algumas dezenas de anos, um século ou ainda mais, certos medicamentos de hoje estejam mortos. Verificar-se-á que a modificação do mal trouxe a modificação da cura. Tanto melhor para os homens. O mal irá recuando. Essa marcha gradativa terá um termo, remotíssimo, é verdade, mas certo. Assim, chegará o dia em que, por falta de doenças, acabarão os remédios, e o homem, com a saúde moral, terá alcançado a saúde física, perene e indestrutível, como aquela.
Indestrutível? Tudo se pode esperar da indústria humana, a braços com o eterno aborrecimento. A monotonia da saúde pode inspirar a busca de uma ou outra macacoa leve. O homem receitará tonturas ao homem. Haverá fábrica de resfriados. Vender-se-ão calos artificiais, quase tão dolorosos como os verdadeiros. Alguns dirão que mais.
1894
[129] [1 fevereiro]SOMBRE QUATRE-VINGT-TREIZE! É o caso de dizer, com o poeta, agora que ele se despede de nós, este ano em que perfaz um século o a terrível da Revolução. Mas a crônica não gosta de lembranças tristes por mais heróicas que também sejam; não vai para epopéias, nem tragédias. Cousas doces, leves, sem sangue nem lágrimas.
No banquete da vida, para falar como outro poeta … Já agora falo por poetas; está provado que, apesar de fantásticos e sonhador são ainda os mais hábeis contadores de história e inventores de imagens. A vida, por exemplo, comparada a um banquete é idéia felicíssima. Cada um de nós tem ali o seu lugar; uns retiram-se logo depois da sopa, outros do coup du milieu, não raros vão até à sobremesa. Tem havido casos em que o conviva se deixa estar comi bebido, e sentado. É o que os noticiários chamam macróbio, quando a pessoa é mulher, por uma dessas liberdades que toda gente usa com a língua, macróbia.
Felizes esses! Não que o banquete seja sempre uma delícia. sopas execráveis, peixes podres e não poucas vezes esturro. Mas, u vez que a gente se deixou vir para a mesa, melhor é ir farto dela para não levar saudades. Não se sente a marcha; vai-se pelos pés dos outros. Houve desses retardatários, Moltke esteve prestes a sê-lo, Gladstone creio que acaba por aí, como os nossos Saldanha Ma nho e Tamandaré. Deus os fade a todos!
Imaginemos um homem que haja nascido com o século e mor com ele. Vítor Hugo já o achou com dous anos (ce siècle avait de ans) e pode ser que contasse viver até o fim; não passou da casa d oitenta. Mas Heine, que veio ao mundo no próprio dia 1 de janeiro de 1800, bem podia ter vivido até 1899, e contar tudo o que passou no século, com a sua pena mestra de humour… Oh! página imortaI! Assistir à Santa Aliança e à dinamite! Vir do legitimismo ao anarquismo, parando aqui e ali na liberdade, eis aí uma viagem interessante de dizer e de ouvir. Revoluções, guerras, conquistas, uma infinidade de constituições, grande variedade de calças, casacas chapéus, escolas novas, novas descobertas, idéias, palavras, dança livros, armas, carruagens, e até línguas… Viver tudo isso, e referi-lo século XX, grande obra, em verdade.Deus ou a paralisia não o quis. Heine notaria, melhor que ninguém o advento do anarquismo, se é certo que este governo inédito te de sair à luz com o fim do século. Ninguém melhor que ele faria o paralelo do legitimismo do princípio com o anarquismo do fim, Carlos X e Nada. Que excelentes conclusões! Nem todas seria cabais, mas seriam todas belas. Aos homens da ciência ficam razões sólidas com que afirmam a marcha ascendente para a perfeição. Os poetas variam; ora crêem no paraíso, ora no inferno, com ,esta particularidade que adotam o pior para expô-lo em versos bonitos. Heine tinha a vantagem de o saber expor em bonita prosa.
Mas, como ia dizendo, no banquete da vida… Leve-me o diabo se sei a que é que vinha este banquete. Talvez para notar que a distribuição dos lugares põe a gente, às vezes, ao pé de maus vizinhos, em cujo caso não há mais poderoso remédio que descansar do paradoxo da esquerda na banalidade da direita, e vice-versa. Se a idéia não foi essa, então foi dizer que a crônica é prato de pouca ou nenhuma resistência, simples molho branco. Idéia velha, mas antes velha que nada. Uns fazem a história pela ação pessoal e coletiva, outros a contam ou cantam pela tuba canora e belicosa… Tuba canora e belicosa é expressão de poeta — de Camões, creio. A crônica é frauta rude ou agreste avena do mesmo poeta. Vivam os poetas! Não me acode outra gente para coroar este ano que nasce.
Quanto ao que morre, 1893, não vai sem pragas nem saudades, como os demais anos seus irmãos, desde que há astronomia e almanaques. Tal é a condição dos tempos, que são todos duros e amenos, segundo a condição e o lugar. Se esta banalidade da direita lhe parece cansativa, volte-se o leitor para a esquerda, e ouvirá algum paradoxo que o descanse dela — este, por exemplo, que o melhor dos anos é o pior de todos. Toda a questão (lhe dirá a esquerda) está em definir o que seja bom ou mau.
Por exemplo, a guerra é má, em si mesma; mas a guerra pode ser boa, comparada com o anarquismo. Se este vier, 1893, tu haverás sido uma das suas datas históricas, pelos golpes que deste, pelo princípio de sistematização do mal. Que será o mundo contigo? Não consultemos Xenofonte, que, ao ver as trocas de governo nas repúblicas, monarquias e oligarquias, concluía que o homem era o animal mais difícil de reger, mas, ao mesmo tempo, mirando o seu herói e a numerosa gente que lhe obedecia, concluía que o animal de mais fácil governo era o homem. Se já por essa noite dos tempos fosse conhecido o anarquismo, é provável que a opinião do historiador fosse esta: que, embora péssimo, era um governo ótimo. A variedade dos pareceres, a sua própria contradição, tem a vantagem de chamar leitores, visto que a maior parte deles só lê os livros da sua opinião. É assim que eu explico a universalidade de Xenofonte.
Não me atribuam desrespeito ao escritor; isto é rir, para não fazer outra cousa que deixe de aliviar o baço. Em todo caso, antes gracejar de um homem finado há tantos séculos, que estrear já o carnaval com este imenso calor, como fez ontem lima associação. Agora tu, Terpsícore, me ensina …
[130] [7 janeiro]QUEM SERÁ esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo — quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro que me matasse tanto? Um amigo meu conta-me cousas terríveis do verão de Cuiabá, onde, a certa hora do dia, chega a parar a administração pública. Tudo vai para as redes. Aqui não há rede, não há descanso, não há nada. Este tempo serve, quando muito, para reanimar conversações moribundas, ou para dar que dizer a pessoas que conhecem pouco e são obrigadas a vinte ou trinta minutos de bond Começa-se por uma exclamação e um gesto, depois uma ou duas anedotas, quatro reminiscências, e a declaração inevitável de que pessoa passa bem de saúde, a despeito da temperatura.
Custa-me a suportar o calor, mas de saúde passo maravilhes mente bem.
Não sei se é isso que me diz todas as manhãs a tal cigarra. Seja que for, é sempre a mesma cousa, e é notícia d’alma, porque é dita com um grau de sonoridade e tenacidade que excede os maior exemplos de gargantas musicais, serviçais e rijas. A minha memória que nunca perde essas ocasiões, recita logo a fábula de Lã Fontai e reproduz a famosa gravura de Gustavo Doré, a bela moça da rã ca, que o inverno veio achar com a rabeca na mão, repelida p uma mulher trabalhadeira, como faz a formiga à outra. E o quadro e os versos misturam-se, prendem-se de tal maneira, que acabo recitando as figuras e contemplando os versos.
Nisto entra um galo. O galo é um maometano vadio, relógio certo cantor medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra u concerto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a preguiça colijo os trechos de sonho que me ficaram, se algum tive, e fito dossel da cama ou as tábuas do teto. Às vezes fito um quintal Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu não serei o me míssimo Virgílio. É o período de loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo então pela Via Appia, dobro a Rua do Ouvidor, e barro com Mecenas, que me convida a cear com Augusto e um manescente da Companhia Geral. Segue-se a vez de um passarinho que me canta no jardim, depois outro, mais outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da cama e abro a janela
Bom dia, belo sol! Já vejo as guias torcidas dos teus magníficos bigodes de ouro. Morro verde e crestado, palmeiras que reco tais o céu azul, e tu, locomotiva do Corcovado, que trazes o sibilo da indústria humana ao concerto da natureza, bom dia! Pregão d indústria, tu, “duzentos contos, Paraná, último de resto!”, recebo também a minha saudação. Que és tu, senão a locomotiva da Fortuna? Tempo houve em que a gente ia dos arrabaldes à casa do João Pedro da Veiga, Rua da Quitanda, comprar o número da esperança Agora és tu mesmo, número solícito, que vens cá ter aos arrabalde como os simples mascates de fazendas e os compradores de garrafa vazias. Progresso quer dizer concorrência e comodidade. Melhor que eu compre a riqueza a duas pessoas, à porta de minha casa, d que vá comprar à casa de uma só, a dous tostões de distância.
Eis aí começam a deitar fumo as chaminés vizinhas; tratam do café ou do almoço. Na rua passa assobiando um moleque, que fa lembrar aquele chefe do ministério austríaco, a que se referiu quinta feira, na Gazeta de Notícias, Max Nordau. Ouço também uma cantiga, um choro de criança, um bond, os prelúdios de alguma cousa ao piano, e outra vez e sempre a cigarra cantando todos os seus erres sem effes, enquanto o sol espalha as barbas louras pelo ar transparente.
Ir-me-á cantar, todo o verão, esta cigarra estrídula? Canta, e que eu te ouça, amiga minha; é sinal de que não haverei entrado no obituário do mesmo verão, que já sobe a cinqüenta pessoas diárias. Disseram-mo, eu não me dou ao trabalho de contar os mortos. Percebo que morre mais gente, pela freqüência dos carros de defuntos que encontro, quando volto para casa e eles voltam do cemitério, com o seu aspecto fúnebre e os seus cocheiros menos fúnebres. Não digo que os cocheiros voltem alegres; posso até admitir. para facilidade da discussão, que tornem tristes; mas há grande diferença entre a tristeza do veículo e a do automedonte. Este traz no rosto uma expressão de dever cumprido e consciência repousada, que inteiramente escapa às frias tábuas de um carro.
De mim peço ao cocheiro que me levar, que já na ida para o cemitério vá francamente satisfeito, com uma pontinha de riso e outra de cigarro ao canto da boca. Pisque o olho às amas-secas e frescas, e criaturas análogas que for encontrando na rua; creia que os meus manes não sofrerão no outro mundo; ao contrário, alegrarse-ão de saber a cara ajustada ao coração, e a indiferença interior não desmentida pelo gesto. Imite as suas mulas, que levam com igual passo César e João Fernandes.
Ah! enquanto eu ia escrevendo essas melancolias aborrecidas, o sol foi enchendo tudo; entra-me pela janela, já tudo é mar; ao mar já faltam praias, dizia Ovídio por boca de Bocage. Aqui o dilúvio é de claridade; mas uma claridade cantante, porque a cigarra não cessa, continua a cigarrear no arvoredo, fundindo o som no espetáculo. Como há pouco, na cama, miro a cantiga e ouço o clarão. Se todos estes dias não fossem isto mesmo, eu diria que era a comemoração da chegada dos três Reis.
Essa festa popular, não sei se perdurará no interior; aqui morreu há muitos anos. Cantar os Reis era uma dessas usanças locais, como o presepe, que o tempo demoliu e em cuias ruínas brotou a árvore do Natal, produção do norte da Europa, que parece pedir os gelos do inverno. O nosso presepe era mais devoto, mas menos alegre. Durava, em alguns lugares, até o dia de Reis. A cantiga da festa de ontem era a mesma em toda a parte.
Ó de casa, nobre gente,
Acordai, e ouvireis,
E o resto, que pode parecer simplório e velho, mas o velho foi moço e o simplório também é sinal de ingênuo.
[131] [4 fevereiro]QUANDO EU Li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Morno for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de 1’homme, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.
Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as ri roupas de veludo e cetim. A única veste que poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça, que dispensa agora os cole e dá mais graça ao corpo. Esta moda quer-me parecer que pega; p ora, não há muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas? Mas toda religião começa por um pequeno número de fiéis. O primeiro homem que vestiu um simples colar de miçangas, não viu logo todos os homens com o mesmo traje; mas pouco a pouco a moda pegando, até que vieram atrás das miçangas, conchas, pedras ver e outras. Daí até o capote, e as atuais mangas de presunto, em q as senhoras metem os braços, que caminho! O chapéu baixo, feltro ou palha, era há 25 anos uma minoria ínfima. Há uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chapéus altos em toda a par nas portas, vidraças, balcões, cabides, dentro das caixas, tudo chapéus altos. Anos depois, passando por ela, não vi mais um só daquela espécie; eram muitos e baixos, de vária matéria e formas variadíssimas.
Não admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe não é uma reminiscência da tanga do homem primitivo? Quem sabe se não vamos remontar os tempos até ao colar de miçangas? Talvez a perfeição esteja aí. Montaigne é de parecer que não fazemos m que repisar as mesmas cousas e andar no mesmo círculo; e o Eci siastes diz claramente que o que é, foi, e o que foi, é o que há vir. Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabarão algum dia alfaiates e costureiras. Um colar apenas, matéria simples, na mais; quando muito, nos bailes, um simulacro de gibus para ped com graça uma quadrilha ou uma pólca. Oh! a polca das miçanga. Há de haver uma com esse título, porque a polca é eterna, e quando não houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar às trevas, últimos deus ecos da catástrofe derradeira usarão ainda, no fundo do infinito, esta polca, oferecida ao Criador: Derruba, meu De derruba!
Como se disfarçarão os homens pelo carnaval quando voltar idade da miçanga? Naturalmente com os trajes de hoje. A Gazeta de Notícias escreverá por esse tempo um artigo, em que dirá:
Pelas figuras que têm aparecido nas ruas, terão visto os nossos leitores a Onde foi, séculos atrás, já não diremos o mau gosto, que é evidente, mas violação da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando possuíam as melhores casacas e calças, que são a própria epiderme, tão justa ao corpo, tão sincera, inventaram umas vestiduras perversas falsas. Tudo é obra do orgulho humano, que pensa aperfeiçoar a natureza, quando infringe as suas leis mais elementares. Vede o lenço; o homem de outrora achou que ele tinha uma ponta de mais, e fez um tecido de quatro pontas, sem músculos, sem nervos, sem sangue, absolutamente imprestável, desde que não esteja a da pessoa. Há no nosso museu nacional um exemplar dessa ridicularia. Hoje, vara dar uma idéia viva da diferença das duas civilizações, publicam um desenho comparativo, dous homens, um moderno, outro dos fins do século XIX; é obra de um jovem por um dos redatores desta folha, o nosso excelente companheiro João, amigo de todos os tempos.
Que não possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compará-las, e repetir os ditos do Eciesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse tempo que a civilização mudará outra vez de camisa! Irei antes, muito antes, para aquela outra Petrópolis, capital da vida eterna. Lá ao menos há fresco, não se morre de insolação, nome que já entrou no nosso obituário, segundo me disseram esta semana. Não se pode imaginar a minha desilusão. Eu cria que, apesar de termos um sol de rachar, não morreríamos nunca de semelhante cousa. Há anos deram-se aqui alguns casos de não sei que moléstia fulminante, que disseram ser isso; mas vão lá provar que sim ou que não. Para se não provai nada, é que o mal fulmina. Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha; também se morre de insolação. Morreu um, morrerão ainda outros. A chuva destes dias não fez mais que açular a canícula.
De resto, a morte escreveu esta semana em suas tabelas, algumas das melhores datas, levando consigo um Dantas, um José Silva, um Coelho Bastos. Não se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do que aos que se afundam; a sua democracia não distingue. Mas há certo gosto particular em dizer aos primeiros, que nas suas águas tudo se funde e confunde, e que não há serviços à pátria ou à humanidade, que impeçam de ir para onde vão os inúteis ou ainda os maus. Vingue-se a vida guardando a memória dos que o merecem, e na proporção de cada um, distintos com distintos, ilustres com ilustres.
Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma … Mas isto é lúgubre, e a primeira das condições do meu ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o princípio e o fim da crônica. A razão de o não termos este ano, é justa; seria até melhor que a proibição não fosse precisa, e viesse do próprio ânimo dos foliões. Mas não se pode pensar em tudo.
[132] [11 março]ESCREVO com o pé no estribo. É um modo de dizer que talvez esteja prestes a mudar de clima. Para onde, não sei. Se consultasse o meu desejo, iria para a ilha da Trindade. Pelo que leio, foi um cidadão norte-americano, casado com uma linda moça de New York, que entrou pela ilha dentro, não achou viva alma, tomou conta do território e trata de colonizá-lo. Dizem as notícias que a ilha será um principado, e já tem o seu brasão; um triângulo de ouro com uma coroa ducal. Dizem mais que o posseiro já embarcou para a Europa, a fim de ser reconhecido pelas potência. Justamente o contrário do que eu faria; mas se os gostos fossem iguais, já não haveria mundo neste mundo.
Eu, entrando que fosse na ilha, começava por não sair mais dela; far-me-ia rei sem súbditos. Ficaríamos três pessoas, eu, a rainha um cozinheiro. Mais tarde, poetas e historiadores concordariam e dizer que as três pessoas da ilha é que deram ocasião ao título desta diferença é que os poetas diriam a cousa em verso, sem documentos, e os historiadores di-la-iam em prosa com documentos. Entre tanto, não só o título é anterior, como não haveria em mim a menor intenção simbólica.
Rei sem súbditos! Oh! sonho sublime! imaginação única! Rei se ter a quem governar, nem a quem ouvir, nem petições, nem aborrecimentos. Não haveria partido que me atacasse, que me espiasse, que me caluniasse, nem partido que me bajulasse, que me beijasse os pé que me chamasse sol radiante, leão indómito, cofre de virtudes, o a e a vida do universo. Quando me nascesse uma espinha na cara, nã haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma aç cena, que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite; nenhum, mais engenhoso que os outros, acrescentaria: “Senhor, natureza também tem as suas modas”. Se eu perdesse um pé, na teria o desprazer de ver coxear os meus vassalos.
Entretanto, para que a mentira não se pudesse supor exilada do meu reino, eu ensinaria à rainha e ao cozinheiro uma geografia nova; dir-lhes-ia que a terra era um pão de açúcar, ou uma pirâmide, par ser mais egípcio, e que a minha ilha era o cume da pirâmide. Tudo mais estava abaixo. O sol não era propriamente um sol, mas um mensageiro que me traria todos os dias as saudações da parte inferi da terra. As estrelas, suas filhas, incumbidas de velar-me à noite eram as aias destinadas unicamente ao rei da Trindade.
— Mas também em New York há estrelas e na Virgínia, e n Califórnia, diria a rainha da Trindade durante as primeiras lições.— Jasmim-do-cabo (este é o nome que eu lhe daria), jasmim-do-cabo e do meu coração, as estrelas de New York, da Califórnia e Virgínia não são filhas do sol, mas enteadas. Hás de saber que o s é casado em segundas núpcias com a lua, que lhe trouxe todas e filhas que operam lá embaixo. As daqui são filhas dele mesmo; são as de raça pura e divina.
E eu acabaria crendo nos meus próprios sonhos, que é a vantagem deles, e a mais positiva do mundo. Prova disso é a notícia da moratória dada esta semana a um comerciante, por credores de cerca sete mil contos. Foi tal o efeito que isto produziu em mim, que entrei a supor-me devedor de sete, de dez, de vinte mil contos. Comecei por uma pontinha de inveja; não pela moratória, que para mim seria indiferente; com ela ou sem ela, o principal é dever tantos mil contos de réis. As pequenas dívidas são aborrecidas como moscas. As grandes, logicamente. deviam ser terríveis como leões, e são mansíssima.
Cri-me devedor dos sete mil contos, tanto mais feliz quanto q não lidara com dinheiros tão altos. Este sonho, que afligiria a espíritos menos sublimes, para mim foi tal que se converteu em realidade e não pude acabar de crer que não devia nada, quando o meu cria me quis provar hoje de manhã que todas as minhas pequenas contas estavam pagas. As pequenas, creio; mas as grandes? Sim, eu de ainda, pelo menos uns cinco mil contos. Que não possa dever vinte mil! Quem não prefere ser devedor de vinte mil contos, a ser credor de quatro patacas?
Demais, tenho veneração aos grandes números. Acho que a marcha da civilização explica-se pelo crescimento numeroso dos séculos. Que podia ser o século IV em comparação com o século XIX? Que poderá ser o século XIX, em comparação com o século MDCCCXXXVIII? O maior número implica maior perfeição.
Vede o obituário. À medida que vai crescendo, deixa de ser a lista vulgar dos outros dias: impõe, aterra. Já é alguma cousa morrerem ara mais de cento e setenta pessoas. Podemos chegar a duzentas e a trezentas. Certamente não é alegre; há espetáculos mais joviais, leituras mais leves; mas o interesse não está na leveza nem na alegria. A tragédia é terrível, é pavorosa, mas é interessante. Depois, se é verdade que os mortos governam os vivos, também o é que os vivos vem dos mortos. Esta outra idéia é banal, mas não podemos deixar reconhecer que os alugadores de carros, os cocheiros, os farmacêuticos, os físicos (para falar à antiga), os marmoristas, os escrivães, os juízes, alfaiates, sem contar a Empresa Funerária, ganham com o que os outros perdem. Ex fumo dare lucem.
Mas deixemos números tristes, e venhamos aos alegres. O dos concorrentes literários da Gazeta é respeitável. Por maior que seja a lista os escritos fracos, certo é que ainda ficou boa soma de outros, e dos vencidos ainda os haverá que pugnem mais tarde e vençam. Bom é e, no meio das preocupações de outra ordem, as musas não tenham perdido os seus devotos e ganhem novos. Magalhães de Ázeredo, que ficou à frente de todos, pode servir de exemplo aos que, tendo talento ele, quiserem perseverar do mesmo modo. Vivam as musas! belas moças antigas não envelhecem nem desfeiam. Afinal é o à mais firme debaixo do sol.
[133] [18 março]QUE se anunciou a batalha do dia 13, recolhi-me à casa, disposto a não aparecer antes de tudo acabado. Convidaram-me a subir a os morros, onde o perigo era muito menor que o sol; mas o sol grande. Nem a vista dos homens que passavam, desde manhã, com óculos e Binóculos, me animou a ir também ver a batalha. A preguiça ajudou o temor, e ambos me ataram as pernas.
Em casa, ocorreu-me que podia ter a visão da batalha, sem sol nem diga. Era bastante que me ajudasse o gênio humano com o seu poder divino. A história, por mais animada que fosse, não sei se me daria a própria sensação da cousa. A poesia era melhor; Homero, por exemplo, com a Ilíada. Nada mais apropriado que este poema. Troia, um campo entre a cidade e os navios, e no campo e nos avios as tropas gregas. Aqui as fortalezas e as balas formariam o campo.
Ouço uma objeção. A pólvora não estava inventada no tempo de mero. É certo; mas também é certo que outras cousas havia no tempo de Homero, que totalmente se perderam. Nem eu pedia mais que a vista da realidade por sugestão da poesia.
Ao meio-dia, troando os primeiros tiros, abri o poeta. Pouco a pouco fui mergulhando na ação cantada. As pancadas que os cocheiros de bonds davam com os pés, para instigar as multas, cansadas de puxar tanta gente, )a me pareciam o tumulto dos carros dos guerreiros. Percebi o efeito da leitura. Quando o meu criado me levou ao gabinete uma cajuada, cuidei que era a deusa Hebe que me servia uma taça de néctar, e disse:
— Hebe divina, graças à tua excelsa bondade, vou apreciar esta delícia, desconhecida aos homens.
José Rodrigues, com espanto de si mesmo, retorquia-me:
— Tu és já um deus, tu estás no próprio Olimpo, ao lado de Júpiter.
Vi que era assim mesmo. Mas, em vez de entrar na luta dos homens,— como os outros deuses, meus colegas, deixei-me estar mirando o furor dos combates, o retinir das lanças nos broquéis, o estrondo das armaduras quebradas, o sangue que corria dos peitos, das pernas e dos ombros, os homens que morriam e as vozes grandes de todos. Era belo ver os deuses intervindo na pugna, disfarçados em pessoas da terra, desviando os golpes de uns, guiando a mão de outros, cobrindo a estes com uma nuvem opaca, fazê-los sair do campo, falando, animando, descompondo, se era preciso. Os seus próprios ardis eram admiráveis.
De quando em quando, a memória e o ouvido juntavam-se à leitura, e a realidade ia de par com a ficção. Assim no momento em que Marte, lanceado por Diomedes, volta ao céu, onde Paeon lhe deita um bálsamo suavíssimo, na ferida, que o faz sarar logo, veio-me à lembrança a notícia lida naquela manhã de estarem fechadas todas as farmácias da cidade, menos a do Sr. Honório Prado. Depois, quando o capacete de Agamenon recolhe os sinais dos guerreiros, o arauto os agita, e, tira-se à sorte qual será o valente que terá de lutar com Heitor, ouvi, lembro-me bem que ouvi uma voz conhecida na rua: “Um resto! vinte contos!” Tudo, porém, se confundia na minha imaginação; e a realidade presente ou passada era prontamente desfeita na contemplação da poesia.
Todos os guerreiros me apareciam, com as armas homéricas, rutilantes e fortes, com os seus escudos de sete e oito couros de boi, cobertos de bronze, os arcos e setas, as lanças e capacetes. Agamenon, rei dos reis, o divino Aquiles, Diomedes, os dous Ájax, e tu, artificioso Ulisses, enfrentando com Heitor, com Enéias, com Páris, com todos os bravos defensores da santa Ílion. Via o campo coalhado de mortos, de armas, de carros. As cerimônias do culto, as libações e os sacrifícios vinham temperar o espetáculo da cólera humana; e, posto que a cozinha de Homero seja mais substancial que delicada, gostava de ver matar um boi, passá-lo pelo fogo e comê-lo com essa mistura de mel, cebola, vinho e farinha, que devia ser muito grata ao paladar antigo.
A ação ia seguindo, com a alternativa própria das batalhas. Ora perdia um, ora outro. Este avançava até à praia, depois recuava, terra dentro. O clamor era enorme, as mortes infinitas. Heróis de ambos os lados caíam, ensopados em sangue. O terror desfazia as linhas, a coragem as recompunha, e os combates sucediam aos combates. Eu, do Olimpo, mirava tudo, tudo tranqüilo como agora que escrevo isto. Minto; não podia esquivar-me à comoção dos outros deuses. Assim, quando Pátroclo, vendo os seus quase perdidos, saiu a combater co-rn as armas de Aquiles, senti a grandeza do espetáculo; mas nem esse nem outro gosto algum pode ser comparado ao que me deu o próprio Aquiles, quando soube que o amigo morrera às mãos de Heitor.
Vi, ninguém me contou, vi as lágrimas e a fúria do herói. Vi-o sair com as novas armas que o próprio Vulcano fabricou para ele; vi, depois, ainda novos e terríveis combates. No mais renhido deles, desceram todos os deuses e dividiram-se entre os exércitos, conforme as suas simpatias. Só ficamos Júpiter e eu. E disse-me o rei dos deuses:
— Anônimo (chamo-te assim, porque ainda não tens nome no céu), contempla comigo este quadro não menos deleitoso que acerbo. Até os rios buscaram combater Aquiles; mas o filho de Peleu vencerá a todos.
Não direi o que vi, nem o que ouvi; teria de repetir aqui uma interminável história. Foi medonho e belo. Os deuses, mais que nunca, ajudavam os homens. Momento houve em que eles próprios combateram uns com outros, entre grandes palavradas, cão, cadela, e muito murro, muita pedrada, uma luta de raivas e despeitos. Enfim, Aquiles matou Heitor. Jamais esquecerei as lamentações das mulheres troianas. Assisti depois às festas da vitória, corridas a cavalo e a pé, o disco e o pugilato.
Eram seis horas da tarde, quando me chamaram para jantar. Pessoas vindas dos morros próximos contaram que não houvera batalha nenhuma; desmenti esse princípio de balela, referindo tudo o que vira, que foi muito, longo e áspero. Não me deram crédito. Um insinuou que eu tinha o juízo virado. Outro quis fazer-me crer que a fogueira em que ardiam os restos de Heitor, era um simples incêndio na ilha das Cobras. Os jornais estão de acordo com os meus contraditores; mas eu prefiro crer em Homero, que é mais velho.
[134] [25 março]A SEMANA foi santa — mas não foi a semana santa que eu conheci, quando tinha a idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai. Deus meu! Há pessoas que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes que fazem a barba, que namoram, que se casam, que têm filhos, e, não obstante, nasceram depois da batalha de Aquidabã! Mas então que é o tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade? Não há dúvida que os relógios, depois da morte de López, andam muito mais depressa. Antigamente tinham o andar próprio de uma quadra em que as notícias de Ouro Preto gastavam cinco dias para chegar ao Rio de Janeiro. Ia-se a São Paulo por Santos. Ainda assim, na semana, os estudantes de Direito desciam a serra de Cubatão e vinham tomar o vapor de Santos para o Rio. Que digo? Ca houve em que vieram unicamente assistir à primeira representação um apeça de teatro. Lembras-te, Ferreira de Meneses? Lembras-te Sisenando Nabuco? Não respondem; creio que estão mortos.
Aí vou escorrendo para o passado, cousa que não interessa no presente. O passado que o jovem leitor há de saborear é o presente lá para 1920, quando os relógios e os almanaques criarem asas. Ei tão, se ele escrever nesta coluna, aos domingos, será igualmente insípido com as suas recordações.
Tempo houve (dirá ele) em que o primeiro Frontão da Rua do Ouvidor descendo, à esquerda, perto da Rua de Gonçalves Dias, era uma confeitaria, Confeitaria Pascoal. Este nome, que nenhuma comoção produz na alma do rapaz nascido com o século, acorda em mim saudades vivíssimas. A casa mesma rua, esquina da dos Ourives, onde ainda ontem (perdoem ao guloso) comprei um excelente paio, era uma casa de jóia, pertencente a um italiano, um Faràni, Cesar Farâni, creio, na qual passei horas excelentes. Fora, for memórias importunas!
Assim poderá escrever o leitor, em 1920, nesta ou noutra coluna para os jovens desse ano não será menos aborrecido.
Mas, por isso mesmo que os há de enfadar, deixe-me enfadá-lo um pouco, repetindo que a semana santa que acabou ontem ou acaba hoje não é a semana santa anterior à passagem do Passo da Pátria ou ao último ministério Olinda.
As semanas santas de outro tempo eram, antes de tudo, muito mais compridas. O Domingo de Ramos valia por três. As palmas que traziam das igrejas eram muito mais verdes que as de hoje, mais melhor. Verdadeiramente já não há verde. O verde de hoje é um amarelo escuro. A segunda-feira e a terça-feira eram lentas, não longas; não sei se percebem a diferença. Quero dizer que eram tediosas, por serem vazias. Raiava, porém, a quarta-feira de trevas; era princípio de uma série de cerimônias, e de ofícios, de procissões, sermões de lágrimas, até o sábado de aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era a chave de ouro.
Tenho mais critério que meu sucessor de 1920; não quero matá-lo com algumas notícias que ele não há de entender. Como entender, depois da passagem de Humaitá, que as procissões do enterro, uma de São Francisco de Paula, outra do Carmo, eram tão compridas que não acabavam mais? Como pintar-lhe os andores, as filas tochas inumeráveis, as Marias Behús, segundo a forma popular, centurião, e tantas outras partes da cerimônia, não contando as janelas das casas iluminadas, acolchoadas e atapetadas de moças bonitas — moças e velhas — porque já naquele tempo havia algumas pessoas velhas, mas poucas. Tudo era da idade e da cor das palmas verde. A velhice é uma idéia recente. Data do berço de um menino que vi nascer com o ministério Sinimbu. Antes deste — ou mais exatamente, antes do ministério Rio Branco — tudo era juvenil no mundo, não juvenil de passagem, mas perpetuamente juvenil. As exceções que eram raras, vinham confirmar a regra.
Não entenderíeis nada. Nem sei se chegareis a entender o que sucedeu agora, indo ver o ofício da Paixão em uma igreja. Outrora, quando de todo o sermão da montanha eu só conhecia o padre-nosso, a impressão que recebia era mui particular, uma mistura de fé e de curiosidade, um gosto de ver as luzes, de ouvir os cantos, de mirar as alvas e as casulas, o hissope e o turíbulo. Entrei na igreja. A gente não era muita; sabe-se que parte da população está fora daqui. Metade dos fiéis ali presentes eram senhoras, e senhoras de chapéu. Nunca. me esqueceu o escândalo produzido pelos primeiros chapéus que ousaram entrar na igreja em tais dias; escândalo sem tumulto, nada mais que murmuração. Mas o costume venceu a repugnância e os chapéus vão à missa e ao sermão. Algumas senhoras rezavam por livros, outras desfiavam rosários, as restantes olhavam só ou rezariam mentalmente. Não quero esquecer um velho cantor de igreja, que ali achei, e que, em criança, ouvira cantar nas festas religiosas; creio que nunca fez outra cousa, salvo o curto período em que o vi no coro da defunta ópera Nacional. Que idade teria? Sessenta, setenta, oitenta…
Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.
— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. — Vede a injustiça do mundo. “Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.”
— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males…
— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque deles é o reino do céu.
E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E o sermão continuava. Bem aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos…
[135] [1 abril]ENFIM! Vai entrar em discussão no Conselho Municipal o projeto que ali apresentou o Sr. Dr. Capelli, sobre higiene. Ainda assim, foi preciso que o autor o pedisse, anteontem. Já tenho lido que o Conselho trabalha pouco, mas não aceito em absoluto esta afirmação. Conselho Municipal ou Câmara Municipal, a instituição que dirige os serviços da nossa velha e boa cidade, foi sempre objeto de censuras, às vezes com razão, outras sem ela, como aliás acontece todas as instituições humanas.
Trabalhe pouco ou muito, é de estimar que traga para a discussão o projeto do Sr. Dr. Capelli. Se ele não resolve totalmente a questão higiênica, nem a isso se propõe, pode muito bem resolvê-la em parte. Não entro no exame dos seus diversos artigos; basta-me o primeiro. 0 primeiro artigo estabelece concurso para a nomeação dos comissários de higiene, que se chamarão de ora avante inspetores sanitários. É discutível a idéia do concurso. Não me parece claro que melhore o serviço, e pode não passar de simples ilusão. O artigo, porém, dispõe, como ficou dito, que os comissários de higiene se chamem de ora avante inspetores sanitários, e essa troca de um nome para outro é meio caminho andado para a solução. Os nomes velhos ou gastos tornam caducas as instituições. Não se melhora verdadeiramente um serviço deixando o mesmo nome aos seus oficiais. É do Evangelho, que não se põe remendo novo em pano velho. O pano aqui é a denominação. O próprio Conselho Municipal tem em si um exemplo do que levo dito. Câmara Municipal não era mau nome, tinha até um ar democrático; mas estava puído. O nome criou a personagem da cousa, e a má fama levou consigo a obra e o título. Conselho Municipal, sendo nome diverso, exprime a mesma idéia democrática, é bom e é novo.
Outro exemplo, e de fora. Sabe-se que a Câmara dos Lords está arriscada a descambar no ocaso, ou a ver-se muito diminuída. Não duvido que os seus últimos atos tenham dado lugar à guerra que lhe movem, com o próprio chefe do governo à frente, se é certo o que nos disse há pouco um telegrama. Mas quem sabe se, trocando oportunamente o título, não teria ela desviado o golpe iminente, embora ficasse a mesma cousa, ou quase?
Conta-se de um homem (creio que já referi esta anedota) que não podia achar bons copeiros. De dous em dous meses, mandava embora o que tinha, e contratava outro. Ao cabo de alguns anos chegou ao desespero; descobriu, porém, um meio com que resolveu a dificuldade. O copeiro que o servia então, chamava-se José. Chegado o momento de substituí-lo, pagou-lhe o aluguel e disse:
— José, tu agora chamas-te Joaquim. Vai pôr o almoço, que são horas.
Dous meses depois, reconheceu que o copeiro voltava a ser insuportável. Fez-lhe as contas, e concluiu:
— Joaquim, tu passas agora a chamar-te André. Vai lá para dentro.
Fê-lo João, Manuel, fê-lo Marcos, fê-lo Rodrigo, percorreu toda a onomástica latina, grega, judaica, anglo-saxônia, conseguindo ter sempre o mesmo ruim criado, sem andar a buscá-lo por essas ruas. Entendamo-nos; eu creio que a ruindade desaparecia com a investidura do nome, e voltava quando este principiava a envelhecer. Pode ser também que não fosse assim, e que a simples novidade do nome trouxe ao amo a ilusão da melhoria. De um ou de outro modo, a influência dos nomes é certa.
Por exemplo, quem ignora a vida nova que trouxe ao ensino da infância a troca daquela velha tabuleta “Colégio de Meninos” por esta outra “Externato de Instrução Primária”? Concordo que o aspecto científico da segunda forma tenha parte no resultado; antes dele, porém, há o efeito misterioso da simples mudança. Mas eu vou mais longe.
Vou tão longe, que ouso crer nas reabilitações históricas, unicamente ou quase unicamente pelo alteração do nome das pessoas. O atual processo para esses trabalhos é rever os documentos, avaliar as opiniões, e contar os fatos, comparar, retificar, excluir, incluir, concluir. Todo esse trabalho é inútil, se não trocar o nome por outro. Messalina, por exemplo. Esta imperatriz chegou à celebridade do substantivo, que é a maior a que pode aspirar uma criatura real ou fingida: uma messalina, um tartufo. Se quiserdes tirá-la da lama histórica, em que ela caiu, não vos bastará esgravatar o que disseram dela os autores; arranca-lhe violentamente o nome. Chama-lhe Anastácia. Quereis fazer uma experiência? Pegai em Suetônio e lede com o nome de Anastácia tudo o que ele se refere de Messalina; é outra cousa. O asco diminui, o horror afrouxa, o escândalo desaparece; e a figura emerge, não digo para o céu, mas para uma colina. Em história, o ocupar uma colina é alguma cousa. Gregorovius, como outros autores deste século, quis reabilitar Lucrécia Bórgia; acho que o fez, mas esqueceu-se de lhe mudar o nome, e toda gente continua a descompô-lo em prosa com Vítor Hugo, ou em verso e por música com Donizetti.
Voltando aos comissários de higiene, futuros inspetores sanitários, repito que o serviço melhorará muito com essa alteração do título, e não é pouco. Mas é preciso que, sem dizê-lo na lei, nem no parecer, nem nos debates, fiquem todos combinados em alterar periodicamente o título, desde que o serviço precise reforma. Não me compete lembrar outros, nem me ocorre nenhum. Digo só que, passados mais quatro ou cinco títulos, não será má política voltar ao primeiro. Os nomes têm, às vezes, a propriedade de criar pele nova, só com o desuso ou descanso. Comissário de higiene, que vai ser descalçado agora, desde que repouse alguns anos, ficará com sola nova e tacão direito. Assim acontecesse aos meus sapatos!
[136] [8 abril]QUINTA-FEIRA à tarde, pouco mais de três horas, vi uma cousa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve-me a impertinência; os gostos não são iguais.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bonds, estava uni burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os nossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mas tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que é que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta. receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinham parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez — ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na terra, valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvida que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, más idéias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três couces, foi o mais, isso mesmo antes de haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quanto ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com idéia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bond, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando a autoridade.
“Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de Estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os abrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses dá minha espécie. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima, que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia freio, dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês o tílburi ou o apito do bond, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa tílburi e o namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia no bond podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longede um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio dele, deixando que me desse tapas e punhadas na cara. Enfim. . . ”
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam, não seriam menos exemplares que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dous meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos desse mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma cousa neste final de século. Requiescat in pace.
[137] [10 junho]ONTEM DE MANHÃ, indo ao jardim, como de costume, achei lá um burro. Não leram mal, não, meus senhores, era um burro de carne e osso, de mais osso que carne. Ora, eu tenho rosas no jardim, rosas que cultivo com amor, que me querem bem, que me saúdam todas as manhãs com os seus melhores cheiros, e dizem sem pudor cousas mui galantes sobre as delícias da vida, porque eu não consinto que as cortem do pé. Hão de morrer onde nasceram.
Vendo o burro naquele lugar, lembrei-me de Lucius, ou Lucius da Tessália, que, só com mastigar algumas rosas, passou outra vez de burro a gente. Estremeci, e confesso a minha ingratidão — foi menos pela perda das rosas, que pelo terror do prodígio. Hipócrita, como me cumpria ser, saudei o burro com grandes reverências, e chamei-lhe Lucius. Ele abanou as orelhas, e retorquiu:
— Não me chamo Lucius.
Fiquei sem pinga de sangue; mas para não agravá-lo com demonstrações de espanto, que lhe seriam
duras, disse:
— Não? Então o nome de Vossa Senhoria.. .?— Também não tenho senhoria. Nomes só se dão a cavalos, e quase exclusivamente a cavalos de corrida. Não leu hoje telegramas de Londres, noticiando que nas corridas de Oaks venceram os cavalos Fulano e Sicrano? Não leu a mesma cousa quinta-feira, a respeito das corridas de Epsom? Burro de cidade, burro que puxa bond ou carroça não tem nome; na roça pode ser. Cavalo é tão adulado que, vencendo uma corrida na Inglaterra, manda-se-lhe o nome a todos os cantos da terra. Não pense que fiz verso: às vezes saem-me rimas da boca, e podia achar editor para cias, se quisesse; irias não tendo ambições literárias. Falo rimado, porque e falo poucas vezes, e atrapalho-me. Pois, sim senhor. E sabe de quem é o primeiro dos cavalos vencedores de Epsom, o que se chama Ladas? É do próprio chefe do governo, lord Roseberry, que ainda não há muito ganhou com ele deus mil guinéus.
— Quem é que lhe conta todas essas cousas inglesas?— Quem? Ali! meu amigo, é justamente o que me traz a seus pós, disse o burro ajoelhando-se, mas levantando-se, a meu pedido. E continuou: Sei que o senhor se dá com gente de imprensa, e vim aqui para lhe pedir que interceda por mim e por uma classe inteira, que devia merecer alguma compaixão …
— Justiça, justiça, emendei eu com hipocrisia e servilismo.
—Vejo que me compreende. Ouça-me; serei breve. Em regra, só se devia ensinar aos burros a língua do país; mas o finado Greenough o primeiro gerente que teve a companhia do Jardim Botânico, achou que devia mandar ensinar inglês aos burros dos bonds. Compreende-se o motivo do ato. Recém-chegado ao Rio de Janeiro, trazia mais vivo que nunca o amor da língua natal. Era natural crer que nenhuma outra cabia a todas as criaturas da terra. Eu aprendi com facilidade…— Como? Pois o senhor é contemporâneo da primeira gerência?— Sim, senhor; eu e alguns mais. Somos já poucos, mas vamos trabalhando. Admira-me que se admire. Devia conhecer os animais de 1869 pela valente decrepitude com que, embora deitando a alma pela boca, puxamos os carros e os ossos. Há nisto um resto da disciplina, que nos deu a primeira educação. Apanhamos, é verdade, apanhamos de chicote, de ponta de pé, de ponta de rédea, de ponta de ferro, mas é só quando as poucas forças não acodem ao desejo; os burros modernos, esses são teimosos, resistem mais à pancadaria. Afinal, são moços.
Suspirou e continuou:
— No meio da tanta aflição, vale-nos a leitura, principalmente de folhas inglesas e americanas, quando algum passageiro as esquece no bond. Um deles esqueceu anteontem um número do Pruth. Conhece o Pruth?
— Conheço.
— É um periódico radical de Londres, continuou o burro, dando à força, a notícia, como um simples homem. Radical e semanal. É escrito por um cidadão, que dizem ser deputado. O número era o último, chegadinho de fresco. Mal me levaram à manjedoura, ou cousa que o valha, folheei o periódico de Labouchère… Chamava-se Labouchère o redator. O periódico publica sempre em duas colunas notícia comparativa das sentenças dadas pelos tribunais londrinos, com o fim de mostrar que os pobres e desamparados têm mais duras penas que os que o não são, e por atos de menor monta. Ora, que hei de ler no número chegado? Cousas destas. Um tal John Fearon Bell, convencido de maltratar quatro potros, não lhes dando suficiente comida e bebida, do que resultou morrer um e ficarem três em mísero estado, foi condenado a cinco libras de multa; ao lado desse vinha o caso de Fuão Thompson, que foi encontrado a dormir em um celeiro e condenado a um mês de cadeia. Outra comparação. Eliott, acusado de maltratar dezesseis bezerros, cinco libras de multa e custas. Mary Ellen Connor, acusada de vagabundagem, um mês de prisão. William Poppe, por não dar comida bastante a oito cavalos, cinco libras e custas. William Dudd, aprendiz de pescador, réu de desobediência, vinte e dous dias de prisão. Tudo mais assim. Um rapaz tirou um ovo de faisão de um ninho: quatorze dias de cadeia. Um senhor maltratou quatro vacas: cinco libras e custas.
— Realmente, disse eu sem grande convicção, a diferença é enorme…
— Ah! meu nobre amigo! Eu e os meus pedimos essa diferença, por maior que seja. Condenem a um mês ou a um ano os que tirarem ovos ou dormirem na rua; mas condenem a cinqüenta ou cem mil réis aqueles que nos maltratam por qualquer modo, ou não nos dando comida suficiente, ou, ao contrário, dando-nos excessiva pancada. Estamos prontos a apanhar, é o nosso destino, e eu já estou velho para aprender outro costume; mas seja com moderação, sem esse furor de cocheiros e carroceiros. O que o tal inglês acha pouco para punir os que são cruéis conosco, eu acho que é bastante. Quem é pobre não tem vícios. Não exijo cadeia para-os nossos opressores, mas uma pequena multa e custas, creio que serão eficazes. O burro ama só a pele; o homem ama a pele e a bolsa. Dê-se-lhe na bolsa; talvez a nossa pele padeça menos.
— Farei o que puder; mas …
— Mas quê? O senhor afinal é da espécie humana, há de defender os seus. Ela, fale aos amigos da imprensa; ponha-se à frente de um grande movimento popular. O conselho municipal vai levantar um empréstimo, não? Diga-lhe que, se lançar uma pena pecuniária sobre os sue maltratam burros, cobrirá cinco ou seis vezes o empréstimo, sem pagar juros, e ainda lhe, sobrará dinheiro para o Teatro Municipal, e para teatros paroquiais, se quiser. Ainda uma vez, respeitável senhor, cuide um pouco de nós. Forarm os homens que descobriram que nós éramos seus tios, senão diretos, por afinidade. Pois, meu caro sobrinho, é tempo de reconstituir a família. Não nos abandone, como no tempo em que os burros eram parceiros dos escravos. Faça o nosso treze de Maio. Lincoln dos teus maiores, segundo o evangelho de Darwin, expede a proclamação da nossa liberdade!
Não se imagina a eloqüência destas últimas palavras. Cheio de entusiasmo, prometi, pelo céu e pela terra, que faria tudo. Perguntei-lhe se lia o português com facilidade; e, respondendo-me que sim, disse-lhe que procurasse a Gazeta de hoje. Agradeceu-me com voz lacrimosa, fez um gesto de orelhas, e saiu do jardim vagarosamente, cai aqui, cai acolá.
[138] [1 julho]QUINTA-FEIRA de manhã fiz como Noé, abri a janela da arca e soltei um corvo. Mas o corvo não tornou, de onde inferi que as cataratas do céu e as fontes do abismo continuavam escancaradas. Então disse comigo: As águas hão de acabar algum dia. Tempo virá em que este dilúvio termine de uma vez para sempre, e a gente possa descer e palmear a Rua do Ouvidor e outros becos. Sim, nem sempre há de chover. Veremos ainda o céu azul como a alma da gente nova. O sol, deitando fora a carapuça, espalhará outra vez os grandes cabelos louros. Brotarão as ervas. As flores deitarão aromas capitosos.
Enquanto pensava, ia fechando a janela da arca e tornei depois aos animais que trouxera comigo, à imitação de Noé. Todos eles aguardavam notícias do fim. Quando souberam que não havia notícia nem fim, ficaram desconsolados.
— Mas que diabo vos importa um dia mais ou menos de chuva? perguntei-lhes, Vocês aqui estão comigo, dou-lhes tudo; além da minha conversação, viveis em paz, ainda os que sois inimigos, lobos e cordeiros, gatos e ratos. Que vos importa que chova ou não chova?— Senhor meu, disse-me um espadarte, eu sou grato, e todos os nossos o são, ao cuidado que tivestes em trazer para aqui uma piscina, onde podemos nadar e viver — mas piscina não vale o mar; falta-nos a onda grossa e as corridas de peixes grandes e pequenos, em que nos comemos uns aos outros, com grande alma. Isto que nos destes, prova que tendes bom coração, mas nós não vivemos do bom coração dos homens. Vamos comendo, é verdade, mas comendo sem apetite, porque o melhor apetite …
Foi interrompido pelo galo, que bateu as asas, e, depois de cantar três vezes, como nos dias de Pedro, proferiu esta alocução:
— Pela minha parte, não é a chuva que me aborrece. O que me aborreceu desde o princípio do dilúvio, foi a vossa idéia de trazer sete casais de cada vivente, de modo que somos aqui sete galos e sete galinhas, proporção absolutamente contrária às mais simples regras da aritmética, ao menos as que eu conheço. Não brigo com os outros galos, nem eles comigo, porque estamos em tréguas, não por falta de casus belli. Há aqui seis galos de mais. Se os madássemos procurar o corvo?
Não lhe dei ouvidos. Fui dali ver o elefante enroscando a tromba no surucucu, e o surucucu enroscando-se na tromba do elefante. O camelo esticava o pescoço, procurando algumas léguas de deserto, ou quando menos, uma rua do Cairo. Perto dele, o gato e o rato ensinavam histórias um ao outro. O gato dizia que a história do rato era apenas uma longa série de violências contra o gato, e o rato explicava que, se perseguia o gato, é porque o queijo o perseguia a ele. Talvez nenhum deles estivesse convencido. O sabiá suspirava. A um canto, a lagartixa, o lagarto e o crocodilo palestravam em família. Cousa digna da atenção do filósofo é quea lagartixa via no crocodilo uma formidável lagartixa, e o crocodilo achava a lagartixa um crocodilo mimoso; ambos estavam de acordo em considerar o lagarto um ambicioso sem gênio (versão lagartixa) e um presumido do sem graça (versão crocodilo).
— Quando lhe perguntaram pelos avós, observou o crocodilo, costuma responder que eles foram os mais belos crocodilos do mundo, o que pode provar com papiros antiquíssimos e autênticos …
Tendo nascido, concluiu a lagartixa, tendo nascido na mais humilde fenda de parede, como eu… Crocodilo de bobagem!
— Notai que ele fala muito do loto e do nenúfar, refere casos do hipopótamo, para enganar os outros, confunde Cleópatra com o Khediva, e as antigas dinastias com o governo inglês …
Tudo isso era dito sem que o lagarto fizesse caso. Ao contrário, parecia rir, e costeava a parede da arca, a ver se achava algum calor de sol. Era então sexta-feira, à tardinha. Pareceu-me verpor uma fresta uma linha azul. Chamei uma pomba e soltei-a pela janela da arca. Nisto chegou o burro, com uma águia pousada na cabeça, ente as orelhas. Vinha pedir-me, em nome das outras alimarias, que as soltasse. Falou-me teso e quieto, não tanto pela circunspeção da raça, como pelo medo, que me confessou, de ver fugir-lhe aáguia, se mexesse muito a cabeça. E dizendo-lhe euque acabava de soltar a pomba, agradeceu-me e foi andando. Pelas dez horas da noite, voltou a pomba com lima flor no bico. Era o primeiro sinal de que as águas iam descendo.
As águas são ainda grandes, disse-me a pomba, mas parece que foram maiores. Esta flor não foi colhida de erva, mas atirada pela janela fora de tinia arca, cheia de homens, porque há muitas arcas boiando. Esta de que falo, deitou fora uma porção de flores, colhi esta que não é das menos lindas.
Examinei a flor; era de retórica. Nenhum dos animais conhecia til planta. Expliquei-lhes que era uma flor de estufa, produto da arte humana, que ficava entre a flor de pano e a da campina. Há de haver alguma academia aí perto, concluí, academia ou parlamento.
Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra vez a pomba, dizendo aos outros que, se ela não tornasse, era sinal de que as águas estavam inteiramente acabadas. Não voltando até o meio-dia, abri tudo, portas e janelas, e despejei toda aquela criação neste mundo. Desisto de descrever a alegria geral. As borboletas e as aranhas iam dançando a tarantela, a víbora adornava o pescoço do cão, a gazela e o urubu, de asa e braço dados, voavam e saltavam ao mesmo tempo … Viva o dilúvio! e viva o sol!
[139] [5 agosto]O PUNHAL DE MARTINHA
QUEREIS VER o que são destinos? Escutai. Ultrajada por Sexto Tarqüínio, uma noite, Lucrécia resolve não sobreviver a desonra, mas primeiro denuncia ao marido e ao pai a aleivosia daquele hóspede, e pede-lhes que a vinguem. Eles juram vingá-la, e procuram tirá-la da aflição dizendo-lhe que só a alma é culpada, não o corpo, e que não há crime onde não houve aquiescência. A honesta moça fecha os ouvidos à consolação e ao raciocínio, e, sacando o punhal que trazia escondido, embebe-o no peito e morre. Esse punhal podia ter ficado no peito da heroina, sem que ninguém mais soubesse dele; mas, arrancado por Bruto, serviu de lábaro à revolução que fez baquear a realeza e passou o governo à aristocracia romana. Tanto bastou para que Tito Lívio lhe desse um lugar de honra na história, entre enérgicos discursos de vingança. O punhal ficou sendo clássico. Pelo duplo caráter de arma doméstica e pública, serve tanto a exaltar a virtude conjugal, como a dar força e luz à eloqüência política.
Bem sei que Roma não é a Cachoeira, nem as gazetas dessa cidade balaria podem competir com historiadores de gênio. Mas é isso mesmo que deploro. Essa parcialidade dos tempos, que só recolhem, conservam e transmitem as ‘ações encomendadas nos bons livros, é que me entristece, para não dizer que me indigna. Cachoeira não é Roma, mas o punhal de Lucrécia, por mais digno que seja dos encômios do mundo, não ocupa tanto lugar na história, que não fique um canto para o punhal de Martinha. Entretanto, vereis que esta pobre arma vai ser consumida pela ferrugem da obscuridade.
Martinha não é certamente Lucrécia. Parece-me até, se bem entendo uma expressão do jornal A Ordem, que é exatamente o contrário. “Martinha (diz ele) é uma rapariga franzina, moderna ainda, e muito conhecida nesta cidade, de onde é natural”. Se é moça, se é natural da Cachoeira, onde é muito conhecida, que quer dizer moderna? Naturalmente quer dizer que faz parte da última leva de Citera. Esta condição, em vez de prejudicar o paralelo dos punhais, dá-lhe maior realce, como ides ver. Por outro, lado, convém notar que, se há contrastes das pessoas, há uma coincidência de lugar: Martinhá mora na Rua do Pagão, nome que faz lembrar a religião da esposa de Colatino. As circunstâncias dos dous atos são diversas. Martinha não deu hospedagem a nenhum moço de sangue régio ou de outra qualidade. Andava a passeio, à noite, um domingo do mês passado. O Sexto Tarqüínio da localidade, cristãmente chamado João, corri o sobrenome de Limeira, agrediu e insultou a moça, irritado naturalmente com os seus desdéns. Martinha recolheu-se a casa. Nova agressão, à porta. Martinha, indignada, mas ainda prudente, disse ao importuno: “Não se aproxime, que eu lhe furo”. João Limeira aproximou-se, ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente.
Talvez esperásseis que ela se matasse a si própria. Esperaríeis o impossível, e mostraríeis que me não entendesses. A diferença das duas ações é justamente a que vai do suicídio ao homicídio. A romana confia a vingança ao marido e ao pai. A cachoeirense vinga-se por si própria, e, notai bem, vinga-se de uma simples intenção. As pessoas são desiguais, mas força é dizer que a ação da primeira não é mais corajosa que a da segunda, sendo que esta cede a tal ou qual subtileza de motivos, natural deste século complicado.
Isto posto, em que é que o punhal de Martinha é inferior ao de Lucrécia? Nem é inferior, mas até certo ponto é superior. Martinha não profere uma frase de Tito Lívío, não vai a João de Barros, alcunhado o Tito Lívio português, nem ao nosso João Francisco Lisboa, grande escritor de igual valia. Não quer sanefas literárias, não ensaia atitudes de tragédia, não faz daqueles gestos oratórias que a história antiga põe nos seus personagens. Não; ela diz simplesmente e incorretamente: “Não se aproxime que eu lhe firo”. A palmatória dos gramáticas pode punir essa expressão; não importa, o eu lhe furo traz um valor natal e popular, que vale por todas as belas frases de Lucrécia. E depois, que tocante eufemismo! Furar por matar; não sei se Martinha inventou esta aplicação; mas, fosse ela ou outra a autora, é um achado do povo, que não manuseia tratados de retórica, e sabe às vezes mais que os retóricas de ofício.
Com tudo isso, arrojo de ação, defesa própria, simplicidade de palavra, Martinha não verá o seu punhal no mesmo feixe de armas que os tempos resguardam da ferrugem. O punhal de Carlota Corday, o de Ravaillac, o de Booth, todos esses e ainda outros farão cortejo ao punhal de Lucrécia, luzidos e prontos para a tribuna, para a dissertação, para a palestra. O de Martinha irá rio abaixo do esquecimento, Tais são as cousas deste mundo! Tal é a desigualdade dos destinos!
Se, ao menos, o punhal de Lucrécia tivesse existido, vá; mas tal alma, nem tal ação, nem tal injúria, existiram jamais, é tudo uma pura lenda, que a história meteu nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa da verdade, e o punhal de Martinha, que existiu e existe, não logrará ocupar um lugarzinho ao pé do de Lucrécia, pura ficção. Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas … Mas não falemos mais em Martinha.
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