A Pata da Gazela

José de Alencar

I

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Estava parada na Rua da Quitanda, próximo à da Assembléia, uma linda vitória, puxada por soberbos cavalos do Cabo.

Dentro do carro havia duas moças; uma delas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companheira.

Estavam ambas elegantemente vestidas, e conversavam a respeito das compras que já tinham realizado ou das que ainda pretendiam fazer.

— Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roxo claro.

— Ao escritório de papai: talvez ele queira vir conosco. Na volta passaremos pela Rua do Ouvidor, respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um roupão cinzento.

O vestido roxo debruçou-se de modo a olhar para fora, no sentido contrário àquele em que seguia o carro, enquanto o roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças, onde naturalmente escrevera a nota de suas encomendas.

— O lacaio ficou-se de uma vez! disse o vestido roxo com um movimento de impaciência.

— É verdade! respondeu distraidamente a companheira.

Estas palavras confirmavam o que aliás indicava o simples aspecto da carruagem: as senhoras estavam à espera do lacaio, mandado a algum ponto próximo. A impaciência da moça de vestido roxo era partilhada pelos fogosos cavalos, que dificilmente conseguia sofrear um cocheiro agaloado.

Depois de alguns momentos de espera, sobressaltou-se o roupão cinzento, e conchegando-se mais às almofadas, como para ocultar-se no fundo da carruagem, murmurou:

— Laura!… Laura!…

E como sua amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga.

— O que é, Amélia?

— Não vês? Aquele moço que está ali defronte nos olhando.

— Que. tem isto? disse Laura sorrindo.

— Não gosto! replicou Amélia com um movimento de contrariedade. Há quanto tempo está ali e sem tirar os olhos de mim?

— Volta-lhe as costas!

— Vamos para diante.

— Como quiseres.

Avisado o cocheiro, avançou alguns passos, de modo a tirar ao curioso a vista do interior do carro; mas o mancebo não desanimou por isso, e passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a moça com admiração franca e apaixonada.

Simples no traje, e pouco favorecido a respeito de beleza; os dotes naturais que excitavam nesse moço alguma atenção eram uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos pardos, cheios do brilho profundo e fosforescente que naquele momento derramavam pelo semblante de Amélia.

Havia minutos que, percorrendo a Rua da Quitanda em sentido oposto à direção do carro, avistara a moça recostada nas almofadas, e sentira a seu aspecto viva impressão. Sem disfarce ou acanhamento, recostando-se à ombreira de uma porta de escritório, esqueceu-se naquela ardente contemplação.

O coração é um solo. Vale onde brotam as paixões, como os outros vales da natureza inanimada, ele tem suas estações, suas quadras de aridez ou de seiva, de esterilidade ou de abundância.

Depois das grandes borrascas e chuvas, os calores do sol produzem na terra uma fermentação, que forma o húmus; a semente, caindo aí, brota com rapidez. Depois das grandes dores e das lágrimas torrenciais, forma-se também no coração do homem um húmus poderoso, uma exuberância de sentimento que precisa de expandir-se. Então um olhar, um sorriso, que aí penetre, é semente de paixão, e pulula com vigor extremo.

O moço parecia estar nessas condições: ele trajava luto pesado, não somente nas roupas negras, como na cor macilenta das faces nuas, e na mágoa que lhe escurecia a fronte.

Notando Amélia a insistência do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar profundo, que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um desassossego íntimo. Agitava-se impaciente, como uma criatura no meio de um sono inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadelo.

Até que abriu o chapeuzinho-de-sol, para interceptar a contemplação apaixonada de que era objeto. Nesta ocasião, Laura, que freqüentemente se debruçava para ver quando vinha o lacaio, retraiu o corpo com vivacidade:

— Enfim; aí vem!

— Felizmente! disse Amélia.

O lacaio aproximava-se a passos medidos; trazia na mão um embrulho de papel azul, que o atrito dos dedos e a oscilação dos objetos envoltos desfizera, obrigando o portador a apertá-lo de vez em quando.

Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio já tocava o estribo da carruagem, Amélia, tomando um tom imperativo, disse para o cocheiro:

— Vamos! vamos!

Ao aceno que lhe fez o cocheiro, o lacaio correu, chegando a tempo de apanhar o carro, que partia ao trote largo da fogosa parelha. Deitar o embrulho na caixa da vitória, rodear em dois saltos e galgar o estribo da almofada, foi para o criado, habituado a essa manobra, negócio de um instante. Não percebera ele, porém, que abrindo-se o papel com a corrida, um dos objetos nele contidos escorregara e, justamente na ocasião de deitar o embrulho na caixa do carro, caíra na calçada.

Laura, que se inclinara com vivo interesse para tomar o embrulho das mãos do lacaio, tivera um pressentimento do acidente, ao ver o papel desenrolado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o por baixo do assento da vitória, ela debruçou-se ainda uma vez para verificar se com efeito alguma coisa havia caído. Ao mesmo tempo acompanhava o movimento com estas palavras de contrariedade:

— Como ele manda isto! Por mais que se lhe recomende!

Laura nada viu, porque já a vitória rodava ligeiramente sobre os paralelepípedos.

Nesse momento, porém, dobrando a Rua da Assembléia, se aproximara um moço elegante não só no traje do melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem dúvida um dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar pelo seu parecer distinto que não tinha usurpado o título.

O mancebo viu casualmente o lacaio quando passara por ele correndo, e percebeu que um objeto caíra do embrulho. Naturalmente não se dignaria abaixar para apanhá-lo, nem mesmo deitar-lhe um olhar, se não visse aparecer ao lado da vitória o rosto de uma senhora, que o aspecto da carruagem indicava pertencer à melhor sociedade.

Então apressou-se, para ter ocasião de fazer uma fineza, e pretexto de conhecer a senhora, que lhe parecera bonita. Os leões são apaixonadíssimos de tais encontros; acham-lhes um sainete que destrói a monotonia das relações habituais.

Quando o moço ergueu-se com o objeto na mão, já o carro dobrava a Rua Sete de Setembro. Ficou ele um momento indeciso, olhando em torno, como se esperasse alguma informação a respeito da pessoa a quem pertencia o carro. Sem dúvida a senhora era conhecida em alguma loja de fazendas; talvez tivesse aí feito compras.

Não obtendo, porém, informações, nem colhendo resultado da pergunta que fizera a um caixeiro próximo, resolveu-se a meter o objeto no bolso e seguir seu caminho.

II

Horácio de Almeida, o nosso leão, voltou a casa à hora do costume, quatro da tarde.

Os sucessivos encontros da Rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensável ao alfaiate; as anedotas do Alcázar na noite antecedente; a crônica anacreôntica do Rio de Janeiro, chistosamente comentada; algumas rajadas de maledicência, que é a pimenta social; todas essas ocupações importantes, que absorvem a vida do leão, distraíram Horácio a ponto de se esquecer ele do objeto guardado no bolso do paletó.

Como admitir que um príncipe da moda não aproveitasse a aventura do carro, para sobre ela bordar um romance de rua, com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é admirável; e seria incompreensível se não fosse a circunstância de ter poucos passos adiante encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brasil, a quem o nosso leão arrastava… ia dizer a asa, mas isso seria anacronismo; dizia-se no tempo em que os leões se chamavam galos; hoje deve dizer-se arrastar a juba; é mais bonito e indica mais submissão. Arrastar a asa é enfunar-se; arrastar a juba é prostrar-se.

Foi só quando, encostado em sua otomana, descansava para o jantar, que Horácio, procurando a carteira de charutos no bolso do fraque, lembrou-se do objeto. Teve então curiosidade de examiná-lo: sabia o que era; na ocasião de apanhá-lo reconhecera o pé de uma botina de senhora; mas não fizera grande reparo.

Agora, porém, que de novo o tinha diante dos olhos, a sós em seu aposento, e despreocupado da idéia de o restituir, Horácio achou o objeto digno de séria atenção; e aproximando-se da janela, começou um exame consciencioso.

Era uma botina, já o sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a concha mimosa de uma pérola, a faceira irmã do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desabrochada em flor, sob a inspiração de algum artista ignoto, de algum poeta de ceiró e torquês.

Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.

Se fosse um calçado em folha, saído da loja, não teria grande valor aos olhos do nosso leão, habituado não só a ver, como a calçar, as obras primas de Milliès e Campàs. Talvez reparando muito naquela peça que tinha nas mãos, notasse maior elegância no corte, e um apuro escrupuloso na execução; porém mais natural seria escapar-lhe essa mínima circunstância.

Mas a botina achada já não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma beleza, o gentil companheiro de uma moça formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume. O rosto estufava mostrando o firme relevo do pezinho arqueado. Na sola se desenhava a curva graciosa da planta sutil, que só nas extremidades beijava o chão, como o silfo que frisa a superfície do lago com a ponta das asas.

Há um aroma, que só tem uma flor na terra, o aroma da mulher bonita: fragrância voluptuosa que se exala ao mesmo tempo do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no coração como o amor volatilizado. A botina estava impregnada desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corola de um lírio, derramava, como a flor, ondas suaves.

O mancebo colocara longe de si o charuto para não desvanecer com o fumo os bafejos daquele odor suave. Não havia aí o menor laivo de essência artificial preparada pela arte do perfumismo; era a pura exalação de uma cútis acetinada, esse hálito de saúde que perspira através da fina e macia tez, e como através das pétalas de uma rosa.

De repente uma idéia perpassou no espírito do moço, que o fez estremecer. Essa botina grácil, em que mal caberia sua mão aristocrática, essa botina mais mimosa do que sua luva de pelica, não podia ter um número maior do que o de seus anos, vinte e nove!

— Será de uma menina! murmurou ele um tanto desconsolado.

Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a orla da haste, sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois de alguns instantes deste exame profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horácio

— É de moça, é de mulher! murmurou ele. Aqui estão os sinais evidentes; não podem falhar. A fábula de Édipo é uma verdade eterna. no enigma da esfinge está realmente o mito da vida. O homem é o animal que de manhã anda sobre quatro pés; ao meio-dia sobre dois; à tarde sobre três. Na infância, a criatura, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula, mas conchega-se mais ao solo de que recebe toda a nutrição; as mãos servem-lhe de pés. Depois da juventude, na época da expansão, a criatura se lança para o espaço, exalta-se; é a árvore que hasteia e procura as nuvens; a planta pede ao céu os orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as flores, que nós chamamos paixões. Na velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o pó, que, depois de revoar no espaço, deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos torna-se pé e calça esse coturno da mais triste das tragédias humanas, a decrepitude.

Horácio observou de novo atentamente o objeto que tinha entre as mãos.

— A menina de quinze anos já não é a corça de quatro patas; não está mais na alvorada da vida, na puerícia; também ainda não chegou ao meio-dia do qual aproxima-se. Contudo, seu andar conserva ainda aquela atração para a terra; é pesado; calca o chão com força; tem o quer que seja de sacudido, que revela os impulsos da alma para desprender-se do pó e elevar-se; assemelha a singradura do batel, que ora se levanta, ora se submerge. Se esta botina fosse de uma menina, aqui estariam impressos esses caracteres de sua idade. A sola, em vez de levemente triturada nas extremidades, estaria estragada; o salto cambado. É uma observação que todo sapateiro confirmaria: o menino gasta o calçado pela sola, o homem pelo couro; a razão, o sapateiro a ignora, mas o filósofo a conhece: o menino é o inseto que rasteja, a larva; o homem é o inseto que voa, o besouro; aquele anda com o ventre, este com a asa.

Horácio sorriu.

— Esta botina é de moça; e moça em todo o viço da juventude: a sola apenas roçada junto à ponta, o salto quase intato, não estão descrevendo com a maior eloqüência a sutileza do passo ligeiro? Eu sinto, posso dizer eu vejo, esse andar gentil, que manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa, a Vênus deste olimpo em que vivemos, a mulher. Só quando toda seiva se precipita para o coração, quando germinam os botões que mais tarde abrirão em flor, só nesse momento de assunção é que a mulher tem este andar sublime e augusto. É o andar do passarinho que, roçando a relva, sente o impulso das asas; é o andar do astro nascente, caminhando para a ascensão; é o andar do anjo que, mesmo tocando a terra, parece prestes a fugir ao céu; e é, finalmente, a elação d’alma que aspira de Deus os eflúvios do amor, do amor, único ambiente do coração!

Nisto o moço descobriu na fivela do laço da botina alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-se à luz, viu as voltas de um fio, que prendeu entre as brancas unhas afiladas, verdadeiras garras de leão da moda. Com alguma paciência retirou um longo cabelo castanho e muito crespo.

— Outra prova de que aliás não carecia! Este cabelo é de mulher; não há menina que possa ter. Quatro palmos, além do que se partiu naturalmente! Bem se vê que é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o cabelo castanho e crespo, duas coisas lindas sem dúvida, embora minha paixão seja a trança basta e lisa, negra como uma asa de corvo. Esse negrume dá à mulher o quer que seja de satânico: lembra que ela também gerou se da terra; não é anjo somente; não é somente filha do céu. Eu não posso suportar a mulher-serafim, que parece desdenhar do mundo onde vive, e do pó de que é feita.

Horácio voltou a botina.

— Mas seja embora castanha, ou mesmo loura, que é uma cor insípida de cabelo! Que me importa isto? Tenho alguma coisa com seu cabelo? O que amo nela é o pé: este pé silfo, este pé anjo, que me fascina, que me arrebata, que me enlouquece!…

Horácio, que até então se contentava com olhar e apalpar a botina, inclinou-se e beijou-a no rosto; mas tímida e respeitosamente. Não era essa a imagem do pé sedutor, que ele adorava como um ídolo?

— Mas onde encontrá-lo? como reconhecê-lo? exclamou dolorosamente Horácio, sentindo a realidade da situação.

Nenhum indício que lhe revelasse o nome da mulher a quem pertencia essa gentil botina, ou lhe indicasse ao menos os traços de sua passagem A lembrança vaga de libré de um lacaio era o único vestígio que restava, mas com este dificilmente poderia descobrir o objeto de sua adoração Há tantos lacaios no Rio de Janeiro; e tantas librés que se confundem! Talvez nunca mais encontrasse aquele que procurava; e encontrando, nem o reconhecesse

— Desgraçado! dizia o leão. Quase nem o olhaste; mas podias tu adivinhar, Horácio, que tesouro deixara cair aquele bruto?

O mancebo inclinara ao peito a bela cabeça esmorecida; a ventura lhe tinha sorrido de longe, para escarnecer dele, o leão mais querido das belezas fluminenses, o Átila do Cassino, o Genserico da Rua do Ouvidor

De repente ergueu-se dum ímpeto:

— Hei de possuí-lo!… exclamou ele com o tom com que Alexandre se prometeu o império da Ásia.

III

Ninguém imagina que belos talentos sorve essa voragem do mundo que chamam a vida elegante.

São como as árvores luxuriantes que se vestem de linda folhagem, e consomem toda a seiva nessa gala estéril e efêmera. Nunca elas dão fruto, nem sequer flor.

Horácio de Almeida era uma de tantas inteligências desperdiçadas no incessante bulício da moda.

Muitos poetas, dos que têm seu nome estampado em rosto de livro não empregaram na fábrica de seus versos o aticismo, a inspiração e a graça com que o nosso leão torneava no baile um galanteio, ou aguçava um epigrama.

Pintores são festejados, que não sabem o segredo dos toques delicados, e do supremo gosto, que Horácio imprimia no laço de sua gravata, em suas maneiras distintas, nos mínimos acidentes de seu traje apurado.

E a fisiologia?

Poucos homens conheciam como Horácio o coração da mulher; porque bem raros o teriam estudado com tanta assiduidade. O mais sábio professor ficaria estupefato da lucidez admirável, com que o leão costumava ler nesse caos da paixão, que a anatomia chamou coração de mulher.

A razão é simples. O professor estudou no gabinete; consultou as obras dos mestres, coligiu observações alheias, e arranjou um sistema sobre o que não sofre regras: sobre a paixão cuja essência é o imprevisto, o anômalo, o indefinível.

Ao contrário, Horácio tinha estudado na realidade da vida; devassara os refolhos do pólipo, lhe sentira as pulsações, e fizera experiências in anima Vili. Não fatigou sua memória com a inútil bagagem dos termos técnicos e das noções científicas: lia os hieróglifos do amor com a linguagem garrida do homem da moda.

A perspicácia do olhar, a profundeza da investigação e a certeza de observação, com que o nosso leão sondava o abismo do coração e rastreava no semblante da mulher os vagos sintomas de uma inclinação nascente, ou de uma afeição expirante, só os grandes médicos possuem tão altos dotes.

Assim gastava Almeida a mocidade, desfolhando seu belo talento pelas salas e pontos de reunião. As riquezas de sua elevada inteligência, as ia ele esparzindo nas elegantes futilidades de um ócio tão laborioso, como é o far niente de um leão.

Consumir o tempo não se apercebendo de sua passagem; livrar-se do fardo pesado das horas sem ocupação; há nada mais difícil para o homem que ignora o trabalho?

Se o Almeida poupasse desse tempo tão esperdiçado alguns momentos no dia para dedicá-los a um fim sério e útil, à ciência, à literatura, à arte, que belos triunfos não obteria sua rica imaginação servida por um espírito cintilante?

Mas o nosso leão tinha a este respeito idéias excêntricas.

— A política, dizia ele, quando não dá em especulação, passa a mistificação. A ciência, se escapa de mania, torna-se uma gleba em que o sábio trabalha para o néscio. Literatura e arte são plágios; quem pode fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao trabalho de reproduzi-los; nem contempla estátuas, quem lhes admira os modelos animados e palpitantes.

Com tais paradoxos, Horácio não achava emprego mais digno para a inteligência, do que a difícil ciência de consumir gradualmente a vida e atravessar sem fadiga e sem reflexão por este vale de lágrimas, em que todos peregrinamos

A mulher era para ele a obra suprema, o verbo da criação. Toda a religião como toda a felicidade, toda a ciência como toda a poesia, Deus a tinha encarnado nesse misto incompreensível do sublime e do torpe, do celeste e do satânico: amálgama de luz e cinzas, de lodo e néctar.

— Amar é adorar a Deus na sua ara mais santa, a mulher. Amar é estudar a lei da criação em seu mais profundo mistério, a mulher. Amar é admirar o belo em sua mais esplêndida revelação; é fazer poemas e estátuas como nunca as realizou o gênio humano.

Mas o que sentia Horácio era apenas o culto da forma, o fanatismo do prazer.

O amor, o verdadeiro amor consiste na possessão mútua de duas almas; e essa, pode o homem iludir-se alguma vez, mas quando se realiza, é indissolúvel. Nada separa duas almas gêmeas que prende o vínculo de sua origem divina.

O mancebo admirava na mulher a formosura unicamente: apenas artista, ele procurava um tipo. Durante dez anos atravessara os salões, como uma galeria de estátuas animadas e vivos painéis, parando um instante em face dessas obras-primas da natureza.

Vieram uns após outros todos os tipos: a beleza ardente das regiões tépidas, ou a suave gentileza da rosa dos Alpes; o moreno voluptuoso ou a alvura do jaspe; a fronte soberana e altiva ou o gesto gracioso e meigo; o talhe opulento e garboso ou as formas esbeltas e flexíveis.

Seu gosto foi-se apurando; e ao cabo de algum tempo tornou-se difícil. A beleza comum já não o satisfazia; era preciso a obra-prima para excitar-lhe a atenção e comovê-lo.

Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da formosura caíram na monotonia. Já o leão não sentia pela mais bela mulher aqueles entusiasmos ardentes da primeira mocidade. Seu olhar era frio e severo como o de um crítico.

Então, começou o moço a amar, ou antes a admirar, a mulher em detalhe. Sua alma embotada carecia de um sainete. Foi a princípio uma boca bonita, cofre de pérolas, de sorrisos, de beijos e harmonias. Veio depois uma trança densa e negra, como a asa da procela que se inflama. Uma cintura de sílfide, um colo de cisne, um requebro sedutor, um sinal da face, uma graça especial, um não sei que: tudo recebeu culto do nosso leão.

Como um conviva, a quem as iguarias do banquete já não excitam, sua alma babujava na sala essas gulosinas. Mas afinal embotou-se; e o prazer não foi para ela mais do que a vulgar satisfação de um hábito.

O moço cortejava as senhoras como uma ocupação indispensável à sua vida, como o desempenho da tarefa diária; mas sem a menor comoção.

Amar era um entretenimento do espírito, como passear a cavalo, freqüentar o teatro, jogar uma partida de bilhar.

O amor já não tinha novidades nem segredos para ele, que o gozara em todas as formas; na comédia e no drama; no idílio e na ode. Como Richelieu, diziam até que ele já o havia calcado com o tacão da bota.

Nestas circunstâncias bem se compreende a impressão profunda que nele produzia a mimosa botina, achada naquela manhã.

Almeida tinha admirado a mulher em todos os tipos e em todos os seus encantos; mas nunca a tinha amado sob a forma sedutora de um pezinho faceiro. Era realmente para surpreender. Como lhe passara despercebido esse condão mágico da mulher, a ele que julgava ter esgotado todas as emoções do amor?

Sucedeu, como era natural, que uma vez percutidas as energias dessa alma enervada por longa apatia, a reação foi violenta. Inflamou-se a imaginação e especialmente com o toque do mistério que trazia a aventura. Se o dono da botina, o sonhado pezinho, se mostrasse desde logo, não produziria o mesmo efeito; não teria o sabor do desconhecido, que é irmão do proibido.

Imagine, quem conhecer o coração humano, a veemência dessa paixão, excitada pelo tédio do passado e alimentada por uma imaginação ociosa. De que loucuras não é capaz o homem que se torna ludíbrio de sua fantasia?

As extravagâncias de Horácio, contemplando a botina, verdadeiras infantilidades de homem feito, bem revelavam a agitação dessa existência, embotada para o verdadeiro amor e gasta pelo prazer.

Não se riam, homens sérios e graves, não zombem de semelhantes extravagâncias; são elas o delírio da febre do materialismo que ataca o século.

Essa paixão de Horácio, o que é senão aberração da alma, consagrada ao culto da matéria? A voracidade insaciável do desejo vai criando dessas monstruosidades incompreensíveis.

Sucede a esta embriaguez do amor o mesmo que à embriaguez do álcool. A princípio basta-lhe o vinho fino e aristocrático; depois carece da aguardente; e por fim já não a satisfaz a infusão do gengibre em rum, isto é, a larva de um vulcão preparada à guisa de grogue.

IV

Ao mesmo tempo que o nosso leão, entrava Leopoldo de Castro na modesta habitação que então ocupava na Glória.

Quando lhe fugira a celeste visão, o mancebo foi seguindo com o passo e com os olhos o carro que levava sua alma presa àquele rosto encantador. O passo era rápido e o olhar ardente; um ansiava por chegar; o outro quisera atrair pela força da paixão, pelo ímã das centelhas magnéticas que desferia a alma.

Fosse ilusão dos sentidos perturbados pela comoção interior, ou breve e confusa percepção da realidade, julgou o moço ver, no momento do dobrar o carro pela Rua Sete de Setembro, um talhe esbelto inclinar-se para a frente, e aparecer de relance um rosto alvo, donde escapou-se vivo e rápido olhar.

Leopoldo não tinha o intento de alcançar, nem mesmo seguir, o carro que fugia com velocidade; mas embalava-o a esperança de que um obstáculo qualquer, impedindo por instantes o livre transito, lhe permitisse outra vez contemplar a moça. Quando, porém, isso não sucedesse, consolava-o a idéia de conhecer a direção que tomaria a linda vitória.

— Se eu soubesse ao menos para que lado mora ela!… Esse ponto seria o meu horizonte, o meu céu. Me voltaria para ali quando adorasse a Deus e quando conversasse com ela. Amaria as estrelas, as nuvens e até as borrascas dessa banda do firmamento; amaria as ruas, as calçadas e até a poeira desse arrabalde da cidade.

O mancebo vagou assim durante duas horas, percorrendo as ruas sem destino. Não era tanto a esperança de ver a moça, ou somente o carro, como a necessidade de ocupar seu espírito, o que o impelia nessa perseguição de uma sombra.

— Eu tornarei a vê-la, pensava ele consigo; e ela me há de amar, tenho convicção. O amor é um magnetismo; eu acredito que o magnetismo se resume nele; que a lei da atração não é senão a lei da simpatia; os pólos são a cabeça e o coração, na terra como no homem. Se ela for a mesma que eu vi com os olhos de minha alma, a mesma que se revelou à minha paixão, aquela a que devo unir-me eternamente para formar um ser mais perfeito, eu caminharei para ela, como ela para mim, impelidos por uma força misteriosa, por mútua aspiração.

Com o animo repousado por essa convicção que nele se derramara, entrou Leopoldo em casa. Aí o esperava o isolamento em que se ia escoando sua vida, depois da perda de uma irmã a quem adorava.

Nessa irmã tinha ele resumido todas as afeições da família, prematuramente arrebatada à sua ternura; o amor filial, que não tivera tempo de expandir-se, a amizade de um irmão, seu companheiro de infância, todos esses sentimentos cortados em flor, ele os transportara para aquele ente querido, que era a imagem de sua mãe.

Essa perda deixara um vácuo imenso no coração de Leopoldo; a princípio enchera-o a dor, depois a saudade; agora essa mesma terna saudade sentia-se desamparada na profunda solidão daquele coração ermo. O mancebo carecia de uma afeição para povoar esse deserto de sua alma, de uma voz que repercutisse nesse lúgubre silêncio. É tão doce partilhar sua melancolia, ou seu prazer, com um outro eu, com um amigo ou uma esposa. São dois ombros para a cruz, e dois peitos para a alegria; alivia-se o peso, mas duplica-se o gozo.

Ao cair da tarde, quando o crepúsculo já desdobrava sobre a cidade o véu de gaza pardacenta, Leopoldo, sentado à janela de peitoril de sua casa, fumava um charuto, com os olhos engolfados no azul diáfano do céu, onde cintilava a primeira estrela. A seus pés desdobrava-se a baía plácida e serena como um lago, com a sua graciosa cintura de montanhas, caprichosamente recortadas.

O espírito do moço não se embebia decerto na perspectiva dessa encantadora natureza, sempre admirada e sempre nova. Ao contrário, abandonava-se todo às recordações de seu encontro pela manhã e aos enlevos que lhe deixara a contemplação da linda moça. Passava e repassava em sua memória, como em um cadinho, todas as circunstâncias mínimas deste grande e importante acontecimento, desde o momento em que assomou a visão até que desapareceu por último ao dobrar o canto da rua.

Achava nisso o mesmo prazer que um menino guloso experimenta em chupar novamente os favos já saboreados: lá ficou um raio de mel, que o lábio ávido colhe. Para Leopoldo esses raios de mel eram os olhares, os movimentos, os sorrisos da moça, avivados pela maior contensão do espírito.

Houve uma ocasião em que o mancebo quis representar em sua lembrança a imagem da moça; naturalmente começou interrogando sua memória a respeito dos traços principais. Como era ela? Alta ou baixa, torneada ou esbelta, loura ou morena? Que cor tinham seus olhos?

A nenhuma dessas interrogações satisfez a memória; porque não recebera a impressão particular de cada um dos traços da moça. Não obstante, a aparição encantadora ressurgia dentro de sua alma; ele a revia tal como se desenhara a seus olhos algumas horas antes. Era a imagem diáfana de um sonho que tomara vulto gracioso de mulher.

— Não me lembro de seus traços, não posso lembrar-me!… murmurava no íntimo. Eu a contemplei, como se contempla uma luz brilhante: vê-se a chama, o esplendor, e nem se repara no espectro que a flama envolve como uma roupagem. Ela é minha luz; não sei a cor e a forma que tem, mas sei que cintila, que me deslumbra; que inunda meu ser de uma aurora celeste. Não poderia descrevê-la, como um poeta… Mas que importa? Pois que eu a sinto em mim; pois que eu a possuo em meu coração?

As pálpebras do mancebo cerraram-se coando apenas uma réstia de olhar, que se embebia nas alvas espirais da fumaça do charuto. Percebia-se que naquela névoa se debuxava à sua imaginação a sedutora imagem, diante da qual ele caía em êxtases de uma doçura inefável.

— Quem sabe? Talvez não seja ela o que nos bailes se chama uma moça bonita; talvez não tenha as feições lindas e o talhe elegante. Mas eu a amo!… O amor é sol do coração; imprime-lhe o brilho e o matiz! Vênus, a deusa da formosura, surgindo da espuma das ondas, não é outra coisa senão o mito da mulher amada, surgindo dentre as puras ilusões do coração! O que eu admiro nela, o que me enleva, é sua beleza celeste; é o anjo que transparece através do invólucro terrestre; é a alma pura e imaculada que se derrama de seus lábios em sorrisos, e a envolve como a cintilação de uma estrela.

Leopoldo já não estava só na existência; tinha para acompanhá-lo na esperança essa doce aparição, como para partilhar a saudade tinha a memória querida de sua irmã. O coração aproximou as duas imagens; ligou-as por algum vínculo misterioso; e criou assim uma família ideal, em cujo seio viveu para o futuro, como para o passado.

Nas horas do trabalho, o moço absorvia-se completamente nas ocupações habituais e cerrava sua alma para não deixar que as misérias do mundo aí penetrando profanassem o templo de sua adoração, o templo da esperança e da saudade. Fora dessas longas horas, encerrava-se naquele asilo e aí vivia.

Alguns dias depois do encontro da Rua da Quitanda, o Castro percorrendo distraidamente os jornais da manhã, deu com os olhos sobre os anúncios de espetáculo, coisa que desde muito tempo não existia para ele. Representava-se no Teatro Lírico a Lúcia de Lamermoor, o mais sublime poema de melancolia, que já se escreveu na língua dos anjos.

O mancebo teve um desejo irresistível de ir aquela noite ao espetáculo, apesar de conservar ainda o luto pesado. Não compreendia esse capricho de seu coração; atribuiu-o ao encanto das reminiscências daquela música tão triste, e também daquele amor tão estremecido, que os homens quiseram romper, mas a fatalidade uniu para sempre no túmulo. Ele ia saturar-se de tristeza; não havia, portanto, profanação de uma dor santa.

Eram perto de dez horas; cantava-se o final do segundo ato da ópera, e Leopoldo, sentado em uma cadeira, do lado direito, estava completamente absorvido no canto magistral de Lagrange e Mirate. Um momento, porém, ergueu os olhos, e volvendo-os lentamente, fitou-os em um camarote de segunda ordem. Estremeceu; o olhar morno e baço que se escapava de sua pupila iluminou-se de fogos sombrios e ardentes.

Vira a mulher amada.

Amélia estava nessa noite em uma de suas horas de inspiração, a mulher bela tem, como o homem de inteligência, em certos momentos influições enérgicas de poesia; nessas ocasiões ambos irradiam- a mulher fica esplêndida, o homem sublime.

O talhe esbelto da moça desenhava-se através da nívea transparência de um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates. Coroava-lhe a fronte o diadema de suas belas tranças, donde resvalavam dois cachos soberbos, que brincavam sobre o colo. Os cabeleireiros chamam esses cachos de arrependimentos, repentirs. Por que motivo? A alma que se arrepende envolve-se daquela forma; o pesar a confrange. Já se vê que os cabeleireiros também são poetas.

Não foi, porém, o suave perfil da moça, nem os contornos maciços de suas formas gentis, o que arrebatou o espírito do mancebo. Ele só viu a luz, o brilho d’alma, rorejando do sorriso. Contemplava a rosa, embebia-se nela, sem contar-lhe as pétalas.

Amélia, que apoiava o lindo braço sobre a almofada de veludo da balaustrada, prestava atenção à cena, recolhendo `as vezes a vista para discorrê-la vagamente pelos camarotes fronteiros. Depois que o pano caiu, conservou-se na mesma posição, conversando com sua mãe e Laura que ali estava de visita. Então voltou rapidamente o rosto, e deixou cair sobre a platéia um olhar súbito e vivo. Foi uma centelha elétrica, listrando no espaço, para logo apagar-se.

Revelou-se no semblante da moça alguma inquietação e visível incômodo. Quis disfarçar, mas afinal ergueu-se, para ocultar-se no interior do camarote, por detrás de Laura, a qual ocupava o outro lugar da frente.

O olhar que deitara à platéia encontrou o olhar profundo e ardente de Leopoldo; e batendo de encontro a esse raio brilhante, reagiu como estilete para feri-la no coração.

Leopoldo notou vagamente esse movimento; mas como entre a coluna e o busto de Laura ele via a sombra da mulher a quem amava, não se interrompeu seu enlevo. De vez em quando passava-lhe pelo rosto um lampejo sutil, no qual pressentia o olhar furtivo da moça.

V

Estava a subir o pano.

Amélia resolvera ficar onde estava, e não tomar o lugar da frente, apesar de Laura ter voltado a seu camarote. Mas essa resolução, tão solidamente calcada em seu coração, caiu de repente: bastou um olhar. Vira na platéia, encostado à balaustrada da orquestra, um elegante cavalheiro.

Era Horácio.

O sorriso brando que manava dos lábios da moça, como a onda pura e cristalina de um ribeiro, desapareceu então sob outro sorriso mais brilhante, que borbulhava como a frol da cascata. Era o sorriso da vaidade, como o outro era da inocência.

A moça colocou-se na frente, fazendo realçar com a graça de seus movimentos a suprema elegância do talhe. Demorou-se mais do que era preciso nesse ato; e sentando-se, houve em seu corpo um impulso quase imperceptível de misteriosa expansão. Dir-se-ia que ela se queria debuxar no quadro iluminado do camarote.

A causa desse elance não o adivinham? O leão tinha assestado seu binóculo de marfim; e a moça com um irresistível assomo de faceirice abandonava-se ao olhar do mancebo.

Durante o ato, Amélia distraiu mais a atenção do semblante pálido de Leopoldo. Enleava os olhos na figura elegante de Horácio; prendia-se ao fino buço negro que sombreava o lábio desdenhoso do leão; embebia-se toda na graça de sua atitude, tentando assim resistir à curiosidade incômoda que atraía sua atenção para o importuno desconhecido.

Não sei por que, Leopoldo, cuja adoração era infatigável como a emanação de uma chama perene, sentiu naquela ocasião a necessidade de dar um repouso à sua contemplação. Então como se a luz que o deslumbrava se fosse tornando mais doce, ele pôde ver destacar-se o perfil gracioso da moça.

— Tem o cabelo castanho! E pena! Acreditava que a mulher a quem amasse algum dia. havia de ser loura. É a cor do reflexo da luz, deve ser a cor desse véu casto que Deus fez para o pudor. A madeixa foi dada à mulher para recatar a face que enrubesce e o seio que palpita; essa gaza preciosa deve ser de ouro, ou antes de graça e esplendor.

O moço já não olhava para Amélia; com as pálpebras cerradas estava agora vendo-a na penumbra d’alma.

— Mas para mim é indiferente que tenha o cabelo castanho; podia tê-lo negro como a treva. Eu a amo, amo sua alma, sua essência pura e imaculada! Se Deus me enviou um anjo para consolar-me em minha aflição, para amparar-me em meu isolamento, para encher de inefáveis júbilos meu ser saturado de amarguras, posso eu queixar-me porque o Senhor o vestiu de uma simples túnica de la, e não de um suntuoso manto de ouro? Eu gostava dos cabelos louros: pois agora só gosto, só quero, só vejo uns cabelos castanhos, porque pertencem a ela, se impregnam de seu perfume e respiram seu hálito!

Terminara o ato. Leopoldo, contemplando a moça, pela primeira vez lembrou-se de saber quem era, na sociedade, aquela mulher que lhe pertencia pelo pensamento. Tinha-se habituado a considerá-la como uma coisa sua; parecia-lhe que ninguém mais existia senão eles dois.

Volveu os olhos em busca de algum conhecido, a quem dirigisse a pergunta. Não encontrou; mas ao cabo de alguns instantes descobriu o leão em seu posto.

— Ah! lá está Horácio que pode me informar, ele conhece todo o mundo! Justamente agora pôs o binoculo para o camarote.

Como desejava sair, dirigiu-se para aquele lado; mas o leão, inquieto e preocupado, saíra açodadamente, e subia de um pulo as escadas que o separavam da segunda ordem.

— Aquela mão é irmã do meu adorado pezinho! Não tem a graça dele, sem dúvida, nem se compara com aquele mimo de amor; mas há um certo ar de família, um quer que seja!…

Assim cogitando, Horácio chegara à porta de um camarote, e pela fresta fitara com disfarce o olhar em Laura, cuja mão, excessivamente pequena e calçada por uma luva muito justa, custava a segurar o binóculo de madrepérola.

O moço, apenas reconheceu o vestido de seda violeta e a mãozinha que lhe servira de fanal, abaixou o olhar para a fímbria do vestido a ver se descobria alguma coisa, o peito, a ponta, a sombra ao menos do pezinho mimoso, do ídolo de sua alma. Mas não foi possível: o vestido arrastava no chão; nenhum movimento fazia ondular a seda; e contudo o mancebo ali ficou imóvel, palpitante de emoção, como se esperasse dos lábios da mulher amada o monossílabo que devia decidir de seu destino.

A paixão que o mancebo concebera pela dona incógnita da botina
achada, longe de se desvanecer, adquirira uma veemência extrema. Horácio,
o feliz conquistador, o coração fogoso e inflamável,
nunca ardera por mulher alguma como agora ardia por aquele pezinho idolatrado.
Era um verdadeiro amor de leão, terrível e indômito; era
um delírio, uma raiva.

Seus amigos já não o reconheciam; ele aparecia nos bailes,
nos teatros, nos pontos de reunião, de relance, como um meteoro, seguindo
após uma idéia fixa, ou uma sombra que fugia diante de seus
passos. Conversou-se muito na Rua do Ouvidor a este respeito. Uns atribuíam
o fato inaudito à primeira derrota.

— Horácio, dizia um de seus amigos, como Napoleão, só
devia ser derrotado uma vez. Mas essa vez foi Waterloo!

— Que pensa então?

— Que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de Santa Helena. Ou casa
aí com alguma mulher feia e rica, ou engorda como um cevado.

Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna, ou de alguma veleidade
política, para explicar o mistério. Mas sabia-se que o moço
tinha bom e seguro rendimento; e quanto à política, ele a comparava
a uma embriaguez causada pela mais ordinária zurrapa de taberna.

Muitas vezes disse, gracejando, a seus amigos:

— Quando me quiser embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. É
mais fino, e também mais barato, porque não deixa uma irritação
de estômago, cujo preço é muito melhor ao de uma caixa
de superior clicquot.

A causa real da mudança do leão, ninguém pois a sabia
nem a suspeitava.

Depois do achado da botina, sua vida tomara um aspecto muito diferente. Naquela
mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar,
mandou aprontar o tílburi e voltou à cidade. Seu aparecimento
àquela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leão de
raça, como ele, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro
do comércio, onde só ficam os que trabalham. Seria misturar-se
com os leopardos que aproveitam a ausência dos reis da moda, para restolhar
alguma caça retardada.

Correu Horácio todas as lojas de calçado à procura de
informações. Para disfarçar sua paixão, inventara
uma aposta, como pretexto à sua curiosidade. A um freguês como
ele, não se recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava
o sainete de uma anedota de bom-tom. A todos eles o leão se dirigia
mais ou menos nestes termos:

— Fiz uma aposta com uma senhora: que em todo o Rio de Janeiro não
se encontram três moças de 18 anos que calcem n° 29. Tenho
todo o empenho em ganhar a aposta, não tanto pelos botões de
punho, como porque, se ela perder, há de ser obrigada a mostrar-me
seu pé, para eu verificar se é realmente desse tamanho. Peço-lhe,
pois, que me dê uma nota das freguesas a quem costuma vender calçado
deste número.

Nesta pesquisa gastou Horácio muitos dias, sem colher o menor resultado.
Os poucos pares de calçado n° 29, vendidos pelas diferentes lojas,
eram destinados a meninas de doze anos ou a pessoas desconhecidas, cuja idade
se ignorava. Apesar de tudo o leão não desanimava; todas as
manhãs, ao acordar, levantava um plano de campanha, que punha em prática
durante o dia.

Horácio sentira-se de repente tomado de indefinível ternura
por uma classe, de que antes só se lembrava para amaldiçoá-la:
a classe dos sapateiros. Quando via um sujeito de avental de couro e sovela,
o leão sentia-se atraído para aquele indivíduo, que talvez
encerrasse o segredo de sua felicidade, seu futuro, sua existência.
Outras vezes, porém, tinha de repente uns acessos de ciúme selvagem.
Lembrando-se que esse operário talvez já houvesse tomado medida
ao adorado pezinho; que essas mãos calosas teriam tocado a cútis
acetinada do anjo de seus pensamentos, o mancebo sentia em si o furor de Otelo
e procurava um punhal no seio; felizmente só achava a carteira, a adaga
de ouro com que neste século se assassina mais cruelmente.

Depois de consumir as horas em suas indagações, ia contemplar
a botina, prenda querida de seu amor, e prosseguia à noite sua porfia
incansável. Corria os espetáculos e bailes, com o olhar rastejando
para descobrir por baixo da orla do vestido, o ignoto deus de suas adorações.
Não dançava para observar melhor o arregaçado dos vestidos;
de ordinário andava pelas escadas e portas, a fim de aproveitar o ensejo
da subida e descida; muitas vezes ia fumar junto ao lugar onde se colocavam
os lacaios, na esperança de conhecer o portador da botina.

Quando as rainhas da moda, as deusas do salão, surpresas e atônitas,
o viam passar sem distingui-las com uma palavra ou uma fineza, ele, atirando-lhes
um olhar de compaixão, dizia consigo.

— Coitadas! não sabem que o leão viu A Pata da Gazela e fareja-lhe
o rastro. Que lhe importam as garras da pantera?…

Recolhendo, Horácio acendia duas velas transparentes e colocava-as
a um e outro lado da almofada de veludo escarlate, sobre uma mesinha de charão,
embutida de madrepérolas. Tirava de um elegante cofre de platina a
mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada, de
modo que se visse perfeitamente a graciosa forma do pé que habitara
aquele ninho de amor.

Então acendia o charuto, sentava-se numa cadeira de espreguiçar,
defronte, porém distante, para que o fumo não se impregnasse
na botina, e ficava em muda e arrebatada contemplação até
alta noite.

Sobre aquela botina via elevar-se como sobre um pedestal, um vulto de estátua,
mas vago, indistinto; e contudo esse esboço sem formas sedutoras, aquela
sombra sem alma e sem calor, lhe parecia de uma beleza deslumbrante. Não
era ela a mulher a que pertencia o mais formoso pé do mundo, o mimo,
a obra-prima da natureza?

Recordava-se das mulheres mais bonitas que tinha visto, das mais lindas senhoras
a quem amara com paixão, e sua memória as trazia todas, uma
após outra, para as colocar ao lado daquela figura vaga e desvanecida,
que planava sobre a almofada como sobre uma nuvem de ouro. Como elas fugiam
abatidas e humilhadas diante de seu impetuoso desdém!

— Não são dignas, murmurava ele, nem de beijarem o chão
pisado pela fada desta botina!

Eis qual tinha sido a vida de Horácio até o momento em que
o vamos encontrar no mesmo lugar defronte da porta entreaberta do camarote.
Laura percebeu-o afinal, e sorriu-lhe com ternura. A atenção
do rei da moda era uma fineza, um ar de seu real agrado; cumpria-lhe agradecer.

Fitando com mais força o olhar na pupila da moça como para
travar-lhe da vontade, Horácio abaixou lentamente esse olhar até
a fímbria do vestido de chamalote com uma insistência significativa.
Laura fez-se escarlate; e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtraiu
às vistas ardentes do leão.

— É ela! exclamou o coração do mancebo afogado em júbilo.
Não há dúvida. Para sentir esse pudor exagerado e incompreensível
é preciso ter ali oculto um pé como aquele que eu sonhei. Um
pé?… Não; um mimo,

uma maravilha, um tesouro, um céu!… É o pudor da violeta,
que se esconde na sombra; é o pudor da pérola, oculta na concha;
é o pudor do diamante, sumido no seio da terra; é o pudor da
estrela, imergindo-se no azul.

O leão desceu as escadas murmurando:

— Vê-lo e morrer.

Pouco depois terminou o espetáculo. Amélia com um ressaibo
de melancolia na fronte, embuçou-se na peliça e desceu. Ela
perdera de vista Horácio, e só o tornara a ver parado em frente
à porta do camarote de Laura. Desamparada pelo encanto do gentil mancebo,
sofrera todo o resto do espetáculo o desassossego que lhe incutia o
olhar de Leopoldo. Por mais que voltasse o rosto, sentia a fosforescência
estranha desse olhar repulsivo, que entretanto a prendia, mau grado seu.

Leopoldo esperava no corredor da entrada a passagem da moça, quando
avistou a seu lado Horácio. O leão sôfrego e impaciente
volvia o olhar em várias direções; naturalmente procurava
alguém, e receava que lhe escapasse.

— Adeus, Horácio.

— Boa noite, Leopoldo.

Amélia apareceu nesse momento.

— Conheces aquela moça, Horácio?

— Qual?… Espera!

Horácio tinha avistado Laura, que descia o lanço da escada
oposta, e correra pressuroso, com os olhos fitos na fímbria de seda.
Seu olhar tinha tal força que parecia um croque a levantar a orla do
vestido. Debalde; nem a sombra do pé: o encorpado estofo arrastava
pesadamente pelo chão.

Chegou a moça à porta, onde o carro a esperava. Horácio
teve um vislumbre de esperança, porém nova decepção
o esperava. Não viu mais do que uma nuvem de sedas ondular e sumir-se.

O leão fez um movimento de desespero.

— Senhor! por que em vez de homem não me fizeste estribo de um carro!
Teria a felicidade de ser pisado por aquele pezinho.

VI

Seriam duas horas da tarde.

Durante a manhã tinha caído sobre a cidade uma forte neblina,
que molhara as calçadas.

Leopoldo dirigia-se a casa pela Rua dos Ourives. Naturalmente vinha pensando
na desconhecida que não vira desde a noite do teatro. Sua paixão
era intensa e ardente; mas vivia de si mesma, nutria-se da própria
seiva. Esperava com plena confiança de seu amor.

A pequena distância do canto da Rua do Ouvidor viu ele de repente a
moça que passava na companhia de outras pessoas. Amélia voltara
o rosto. Seu olhar cruzou rapidamente com o olhar do mancebo. Ela estremeceu
com o costumado calafrio, e acelerou o passo.

Vendo-a sumir-se, encoberta pela esquina, o mancebo também se apressou
para acompanhá-la; mas chegou tarde. A moça e as pessoas, que
iam em sua companhia, acabavam de entrar em um carro: na elegante vitória
que já conhecemos. Leopoldo apenas vira um pé, que na precipitação
de subir, levantara demais a saia.

Sem consciência do que fazia, precipitou-se para a portinhola do carro.
O lacaio que a fechava nesse momento, embargou-lhe o passo. Quando o carro
partiu na direção de São Francisco de Paula, Amélia
inclinou-se e lançou de esguelha um olhar vivo para a esquina.

Leopoldo ficara na calçada imóvel e extático de surpresa.

O pé que seus olhos descobriram, era uma enormidade, um monstro, um
aleijão. Ao tamanho descomunal para uma senhora, juntava a disformidade.
Pesado, chato, sem arqueação e perfil, parecia mais uma base,
uma prancha, um tronco, do que um pé humano e sobretudo o pé
de uma moça.

Os traços especiais da beleza de Amélia não tinham deixado
na memória de Leopoldo a mínima impressão, da primeira
vez que a vira, apesar de contemplá-la demoradamente. Entretanto o
defeito não lhe escapou, embora passasse de relance diante de seus
olhos.

Parece uma singularidade; mas não é. Ninguém conta as
pétalas da flor que admira; ninguém repara na forma especial
de cada uma das partes de que se compõe um todo gracioso; porém
a menor mácula se destaca imediatamente.

É por isso que certos homens, não podendo distinguir-se entre
a gente sisuda e honesta, fazem-se nódoas da sociedade; tornam-se vícios
e torpezas. Assim adquirem a celebridade, que não obteriam com sua
virtude ambígua e seu mesquinho talento.

O Castro, que não admirara o matiz da rosa, notou a mácula
e desgostou-se dela. Ele sentia-se com forças para amar o feio e o
desgracioso, mas não o disforme, o horrível. Essa aberração
da figura humana, embora em um ponto só, lhe parecia o sintoma, senão
o efeito, de uma monstruosidade moral.

Triste, acabrunhado por pensamentos acerbos, o moço continuou seu
caminho pela Rua dos Ouvires em direção a casa. Mal havia andado
alguns passos, arrependeu-se; não queria levar à sua habitação
esse primeiro transbordamento de um dissabor tão profundo; era melhor
deixá-lo escoar-se antes de recolher à solidão habitual.
Se tivesse alguma coisa a fazer! Qualquer ocupação bem aborrecida
e maçante, que lhe servisse de antídoto ao desgosto íntimo!

Excogitou. Havia ali perto, na Rua Sete de Setembro, uma pequena loja de
sapateiro, ou antes uma tenda, porque além do balcão via-se
apenas uma tosca vidraça, contendo a obra de três oficiais que
aí trabalhavam.

A loja pertencia a um mestre fluminense, que trabalhara por algum tempo na
casa do Guilherme e do Campàs, e se iniciara portanto em todos os segredos
da arte. Ninguém a exercia com mais habilidade, esmero e entusiasmo
do que ele; sua obra, quando queria, não tinha que invejar ao produto
das melhores fábricas de Paris, se não o excedia na elegância
e delicadeza.

A razão cardeal de toda a superioridade humana é sem dúvida
a vontade. O poder nasce do querer. Sempre que o homem aplique a veemência
e perseverante energia de sua alma a um fim, ele vencerá os obstáculos,
e se não atingir o alvo, fará pelo menos coisas admiráveis.
Mas para que o homem se entregue assim a uma idéia e se cative a um
pensamento, é necessário ser atraído irresistivelmente,
ser impelido pelo entusiasmo.

É o entusiasmo que faz o poeta e o artista, o sábio e o guerreiro;
é o entusiasmo que faz o homem-idéia diferente do homem-máquina.
A fábula de Prometeu’ não exprime senão a alegoria desse
fogo celeste d’alma, que anima as estátuas de Galatéia, embora
depois dilacere o coração como a águia do rochedo. Uma
faísca dessa eletricidade moral opera maravilhas iguais à centelha
do raio. O que é o telégrafo a par com a eloqüência?

O Matos tinha o entusiasmo de sua arte; descobrira nela segredos e encantos
desconhecidos aos mercenários. Para ele o calçado era uma escultura;
copiava em seda e couro, assim como o cinzel copia em gesso e mármore.
Os outros artistas da forma reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o
busto; ele só tinha um assunto, o pé. Mas que importância
não tomava a seus olhos esta parte do corpo! Era preciso ouvi-lo, em
algum momento de arroubo, para fazer idéia de sua admiração
por esse membro da criatura racional.

Depois de trabalhar muitos anos em casas francesas, o mestre fluminense resolveu
estabelecer-se por sua conta. Alugou uma pequena loja de duas portas, onde
trabalhava com dois oficiais. A necessidade de ganhar o pão o obrigava
a tornar-se mercenário, fazendo obra de carregação para
vender barato. Mas no meio dessa tarefa ingrata tinha ele suas delícias
de artista. Meia dúzia de fregueses, conhecedores da habilidade do
sapateiro, preferiam seu calçado ao melhor de Paris, e o pagavam generosamente.
Essas raras encomendas, o Matos as executava com enlevo; revia-se em sua obra,
verdadeiro primor.

Leopoldo não era um freguês da última classe; ele não
conhecia a voluptuosidade de um calçado macio, antes luva do que sapato;
seu pé não era um enfant gaté, um benjamim acostumado
a essas delícias; desde a infância o habituara a uma vida rude
e austera entre a sola rija e o bezerro. Além de que seus haveres não
chegavam para tais prodigalidades.

O moço pertencia à classe dos fregueses da obra de carregação,
e preferia a loja do Matos pela modicidade do preço, e boa qualidade
do cabedal, como do trabalho.

Que misteriosa associação de idéias trouxera à
lembrança de Leopoldo, naquele momento, a tenda do sapateiro? E por
que motivo se dirigiu ele para ali onde estivera na véspera, e não
para qualquer outro lugar, em que poderia melhor espancar seu dissabor?

O motivo, nem ele mesmo o sabia naquele instante.

— Bom dia! As botinas estão prontas? disse entrando.

O Matos, que atendia a alguns fregueses perto da vidraça, olhou-o
surpreso:

— Não disse ontem a V. Sa que só para o fim da semana?

— É verdade!

— Tinha entre mãos esta encomenda. Mas já acabei; agora posso
ajudar os companheiros.

O Matos indicara alguns pares de calçado que estavam no mostrador
sobre folhas de papel e prontos a serem embrulhados.

Leopoldo, chegando-se para o balcão, principiou a examinar a obra
acabada, com a distraída curiosidade de quem deseja esperdiçar
alguns momentos, para escapar a um aborrecimento ou para apressar um prazer.
Era trabalho fino do mestre, e contudo não excitaria grande atenção
da parte do moço, se não fosse um par de botinas de senhora
já usadas e meio encobertas pelo papel com outra obra. A medida era
enorme no comprimento e na altura; por isso, como pelo feitio, devia excitar-lhe
reparo.

Na véspera quando viera à loja, casualmente observara a obra
que o Matos estava acabando. Vendo há pouco na Rua do Ouvidor o pé
monstruoso da moça, tivera uma confusa e tênue reminiscência
das botinas da loja. Fora esse o fio misterioso que o conduzira insensivelmente
àquela casa. Agora compreendia a encadeação: a botina
monstro pertencia sem dúvida ao pé aleijão.

Leopoldo depois que entrevira sob a orla do vestido o pé da moça,
ainda alimentava uma dúvida, que pretendia cevar com todas as sutilezas
e argúcias de seu espírito. Talvez ele visse mal; talvez a sombra,
o estribo do carro, qualquer outro objeto o tivesse iludido. O aleijão
só existia em

sua imaginação; fora um desvario dos sentidos. Com efeito,
como supor que uma senhora pudesse andar graciosamente com semelhante pata
de elefante?

Mas as botinas aí estavam sobre o balcão que não lhe
deixavam a menor dúvida. O pé disforme existia; era aquele o
seu molde, o seu corpo de delito, e por ele se podia ver quanto devia ser
horrível a realidade. Agora Leopoldo podia apreciar os traços
parciais que lhe tinham escapado pela manhã; esse pé era cheio
de bossas como um tubérculo; não arremedava nem de longe o contorno
dessa parte do corpo humano: era uma posta de carne, um cepo!

Junto dessa deformidade morta, inventada para cobrir a deformidade viva,
havia outra obra que chamara a atenção do mancebo por sua singularidade.
À primeira vista era um volume semelhante ao das botinas monstruosas
embora de linhas regulares: parecia uma ligeira almofada preta sobre a qual
se elevasse uma botina de senhora, muito elegante apesar de comprida. O tubo
cinzento ficava oculto sob frocos de cetim escarlate. Do rosto ao bico descia
um galho de rosas, cujas hastes cingiam graciosamente, como uma grinalda,
toda a volta do pé até o calcanhar.

Uma das botinas ainda tinha dentro a fôrma; enquanto a outra já
estava sem ela. Naturalmente o Matos procedia àquela operação
quando foi distraído pelos fregueses e compradores; deixara-a pois
em meio, deitando em cima da obra, para encobri-la, uma folha de papel.

A fôrma não podia passar despercebida ao observador. Vendo pouco
antes a botina disforme, Leopoldo a tinha considerado o modelo exato do pé
monstruoso, que ele avistara. Enganara-se: a botina era já o disfarce,
a máscara do aleijão. Sua cópia ali estava em horrível
nudez, no grosseiro toco de pau, cheio de buracos e protuberâncias.

Mas se essa observação acabou de esmagar o coração
do mancebo, levou insensivelmente seu espírito a apreciar pela primeira
vez a superioridade do Matos em sua arte. Ali estava a imagem do aleijão,
o calçado que outros sapateiros lhe fariam para cobrir a monstruosidade,
sem a dissimular. Entretanto, o mestre fluminense conseguira, por um esforço
feliz, desvanecer a deformidade sob a aparência de uma botina elegante.

A almofada sobre que parecia descansar a botina, era um solado alto porém
oco, onde as carnes moles do pé monstruoso, comprimidas pela botina
superior, podiam abrigar-se.

Os frocos de cetim e as grinaldas de rosas enchiam as covas e desvaneciam
as protuberâncias ósseas, com muita delicadeza, sem avolumar
o tamanho do coturno. Na sola negra se debuxava, em proporção
à botina superior, a alva palmilha com seus contornos harmoniosos;
de modo que olhando-se andar a pessoa, não se perceberia facilmente
o tamanho do calçado.

Acabara o Matos de aviar os fregueses, e chegando-se para o balcão,
incomodou-se com ver o moço a observar a obra; ia talvez interrompê-lo
rispidamente, quando percebeu em seu rosto uma expressão viva de ardente
admiração. O artista ficou lisonjeado com esse elogio tão
eloqüente em sua mudez; e à contrariedade sucedeu a satisfação
do amor-próprio.

Foi Leopoldo, que, percebendo junto de si o sapateiro parado, afastou-se
do balcão, receando ter sido indiscreto. Ia sair, quando entrou na
loja um lacaio de libré azul com vivos de escarlate e branco. O mancebo
o reconheceu pelas feições; era o mesmo que o impedira de chegar
à portinhola do carro, na Rua do Ouvidor.

— Ah! exclamou o Matos, avistando o criado. Está quase pronto.

— Não posso esperar! replicou o lacaio com a insolência do
rafeiro de casa rica.

— É só embrulhar.

Leopoldo disfarçava; fingindo olhar o calçado exposto na vidraça,
viu de esguelha o sapateiro tirar a fôrma da outra botina, bater o ponto
e dar o último polimento à sua obra; feito o que arranjou o
embrulho.

— Está bem amarrado? perguntou o lacaio. Olhe que da outra vez já
se perdeu uma botina por sua causa, e eu é que levei a culpa.

— Não tenha susto; desta vez está bem seguro, respondeu o
Matos.

Foi-se o lacaio; e Leopoldo com o semblante carregado de tristeza, despediu-se,
arrependido de ter ido à loja. Que saudades tinha da sua dúvida!

— A dúvida, pensava ele, é ainda um raio de esperança!

VII

A esse tempo Horácio, sentado em uma poltrona na casa de Bernardo,
fumava o seu conchita, com o olhar, ora na calçada, ora no espelho
fronteiro, à espreita do menor vulto de mulher.

O leão pensava:

— Choveu; as ruas ainda estão molhadas. Qual é a senhora que
tendo um pé mimoso e uma perna bonita, não aproveita um destes
dias para atravessar a Rua do Ouvidor? Se deixarem escapar estes pretextos
de mostrar semelhantes maravilhas, morrerão elas desconhecidas, apenas
vistas por um dono avaro, mas nunca admiradas, porque a admiração
é sentimento que precisa da luz plena, da grande expansão. Se
a Vênus de Praxíteles existisse, mas só para mim, palavra
de honra que sua beleza não excitaria em minha alma o menor entusiasmo.

Nessa ocasião Amélia passava diante da loja, e voltando-se
recebeu a cortesia do leão, a quem respondeu com um sorriso amável.
Parando na vidraça, achou ela pretexto para entrar, e comprou uma galanteria
Durante esse tempo Horácio recebeu por diversas vezes o olhar e o sorriso
da moça.

Acompanhando com a vista o passo airoso e sutil de Amélia, Horácio
exclamou, dirigindo-se ao caixeiro do Bernardo:

— Que passo gracioso! É o andar da garça!

Estas palavras foram ditas em voz bastante alta, para que a moça ouvisse;
um ligeiro estremecimento que se notou na suave ondulação do
talhe revelou que o leão lograra seu desejo. A moça ouvira com
efeito a fineza.

Recostado de novo na poltrona o leão continuou a pensar:

— Realmente, que elegância no andar! Eu seria capaz de apostar que
esse andar era do pezinho, do meu adorado pezinho, se já não
tivesse descoberto a dona do primor. Mas Laura não vem!… O criado
me disse que ao meio-dia, e é quase uma hora! Terá mudado de
resolução?… Não duvido, com aquele zelo feroz que tem
por sua jóia, talvez não quisesse vir para não ser obrigada
a mostrá-la. Um avaro não fecha com mais cuidado a burra, do
que ela esconde seu tesouro. Que pecado! Subtrair ao mundo essa maravilha
que Deus fez para ser admirada! Ah! eu desejava ser uma nação;
assim como há demônios-legiões, por que não pode
haver homens-povos? Se o fosse, daria um trono a essa mulher, somente para
que ela instituísse o beija-pé. Como eu seria cortesão!
Como eu a beijaria por minhas cem bocas de súdito!

O mancebo sobressaltou-se; vira uma sombra que assomava no espelho fronteiro.
Era Laura. Que devia fazer? Correr à porta para ser visto pela moça
ou deixar-se ficar na poltrona para melhor descobrir o pé adorado?

A atitude do leão revelava a hesitação de seu espírito;
com o corpo lançado à frente parecia fazer um esforço
para se conservar sentado. Laura, que de seu lado já o tinha avistado
no espelho, ficara em um estado de perturbação indizível.

— Que tem, prima? perguntou-lhe um senhor que a acompanhava.

— Nada! balbuciou a moça.

A princípio Laura fizera um movimento para recuar, mas arrependendo-se
avançou com afoiteza, e passou rapidamente pela frente da loja, sem
volver um olhar para dentro. Por mais que o leão se derreasse na poltrona,
não logrou ver coisa alguma; a senhora arrastava a fímbria do
vestido pela calçada coberta de lama, com o mesmo descuido que teria
se caminhasse sobre rico tapete.

— Está zangada comigo; está furiosa! Desde a noite do teatro
que não me pode ver; e parece que preparou-se para o assalto, porque
achei as avenidas da praça já tomadas e vigorosamente defendidas.
A mucama é uma Górgona, o porteiro um Cérbero; apenas
consegui abrandar o moleque, porque é um idiota!… Nunca vi uma ferocidade
igual; creio que a leoa da floresta não defende seu cachorrinho com
sanha igual à desta leoa de sala. Parece incrível; mas eu conheço
de quanto é capaz a vaidade da mulher. Todo este furor não é
mais do que um assomo de faceirice; percebeu que estou apaixonado pelo pezinho
mimoso, e quer-me trazer atado como um cativo ao seu carro de triunfo. Realmente
uma moça bonita não pode ter maior satisfação:
ver-me a mim, Horácio de Almeida, o primeiro conquistador do Rio de
Janeiro, curvar-se humilde, não a seu olhar, a seu sorriso, à
beleza de seu rosto, ou à graça de seu talhe, mas à planta
de seus pés divinos! Fazer-me tapete de seus passos!… Que pode mais
desejar a rainha dos salões fluminenses?

O moço mordeu a ponta do bigode negro e ficou alguns instantes muito
pensativo.

— É preciso mudar o plano de ataque! Comecei à maneira de
César, atacando com impetuosidade. Vou contemporizar conforme a escola
de Fábio; simulo uma retirada; o inimigo avança, eu o envolvo;
corto-lhe a retirada, e ele rende-se. Arraso o Humaitá daquele vestido
que defende o meu pezinho adorado como uma casamata. A indiferença
é a serpente tentadora da mulher.

Em conseqüência destas reflexões, Horácio deixou-se
ficar onde estava, e não seguiu a moça. Quando supôs que
ela já ia distante, foi procurar algures, em um bilhar, o preservativo
contra a tentação de cortejá-la, ou antes o seu pezinho.

— Ela há de reparar no meu eclipse! murmurou com certa confiança.

Entretanto Laura, descendo a Rua do Ouvidor, encontrara pouco adiante, na
casa do Masset, Amélia em companhia da mãe. As duas amigas não
podendo vir juntas, tinham ajustado seu encontro para aquele ponto. O primo
despediu-se, e as senhoras continuaram seu itinerário pelas diferentes
lojas e casas de modas.

Ao cabo de duas ou três horas, tomaram o carro que estava parado próximo
à Rua dos Ouvires e partiram na direção do Catete. A
poucos passos dali, Amélia perguntou ao lacaio sentado na almofada:

— Trouxe?

— Sim, senhora; está aí dentro.

— Bem!

O carro aproximava-se do Largo da Lapa, quando Amélia disse:

— Podíamos ir agora ao Passeio Público?

— Tão tarde! replicou Laura.

— Deixa-te disso! observou a mãe da moça.

— Por quê, mamãe? Há tanto tempo que lá não
vamos.

— Não há nada de novo.

— Ora, eu queria ver a garça. Ainda não a vi.

— Viste, sim!

— Mas não reparei numa coisa!…

— Em quê?

— Uma coisa. Depois direi.

Tanto insistiu que a mãe cedeu a seu capricho, e deu ordem ao cocheiro
que chegasse até o portão do Passeio Público. As senhoras
desapareceram na curva de uma das alamedas do parque, em direção
ao lago. Amélia queria ver o andar da garça, que Horácio
tinha comparado ao seu.

Nessa ocasião passava o tílburi do nosso leão, que vinha
do lado da Ajuda. Um atropelo, produzido por uma gôndola mal conduzida,
ia atirando o tílburi sobre o carro parado no portão do Passeio
Público. Este incidente chamou a atenção do moço
para o cocheiro, que derreado sobre a almofada não se movera.

A memória apresenta às vezes um fenômeno curioso; conserva
por muito tempo oculta e sopitada uma impressão de que não temos
a menor consciência. De repente, porém, uma circunstância
qualquer evoca essa reminiscência apagada; e ela ressurge com vigor
e fidelidade.

Foi o que sucedeu a Horácio. Minutos antes, por maiores esforços
que fizesse para recordar-se da libré do lacaio, portador da botina
perdida, não o conseguiria decerto. Entretanto bastou-lhe ver a roupa
do cocheiro, para acudir-lhe imediatamente ao espírito a imagem desvanecida.
Era esse o carro, que vira quinze dias antes na Rua da Quitanda; não
havia dúvida.

O leão mandou parar o tílburi e entrou no Passeio Público;
depois de percorrer inutilmente várias alamedas, afinal descobriu entre
as árvores, além do lago, as ondulações dos vestidos
de algumas senhoras acompanhadas por um lacaio, e tomou apressadamente aquela
direção.

O terreno estava úmido da chuva da manhã; e por isso o pé
dos passeadores deixava o rasto impresso na branca e fina areia das alamedas.
Notando esta circunstância, Horácio procurou o vestígio
de alguma botina irmã da que achara, e guardava como uma relíquia;
ficou ébrio de contentamento reconhecendo entre muitas pegadas o leve
debuxo que deixara no chão o mimoso pezinho.

Se não fosse o anelo de alcançar as senhoras e reconhecer a
dona incógnita do tesouro, Horácio se houvera ajoelhado a beijar
o rasto da fada de seus amores; mas as senhoras caminhavam rapidamente para
o portão.

Por mais que se apressasse o leão, chegando à saída,
apenas viu o carro que partia. Felizmente adiantando-se pôde reconhecer
Amélia, que lhe sorriu e inclinou-se para acompanhá-lo com os
olhos.

— E ela! Que pateta sou eu! Devia ter adivinhado. Há pouco, vendo-a
passar pela Rua do Ouvidor, tive um pressentimento! Aquele andar cheio de
graça não podia enganar.

No dia. seguinte o leão fez-se apresentar ao pai de Amélia,
abastado consignatário de café, estabelecido à Rua Direita.
O encontro deu-se na Praça do Comércio. Horácio aí
foi a pretexto de comprar apólices; e um amigo, corretor de fundos,
prestou-lhe aquele serviço. O negociante ofereceu a casa ao moço
que aceitou a fineza com efusão de contentamento.

O Sr. Pereira Sales habitava nas Laranjeiras uma bela chácara. Amélia
era filha única, e seu dote, convertido em cem apólices, só
esperava o noivo. Quanto à mulher, tinha uma boa pensão instituída
no montepio geral. Seguro assim o futuro, vivia o negociante com certa largueza,
economizando pouco ou nada de seus lucros anuais.

Quando Horácio teve conhecimento destas particularidades domésticas,
sorriu.

— Bem! O meu pezinho tem um dote para seu calçado. Pode andar com
luxo!

A primeira vez que Horácio visitou a família de Pereira Sales,
encontrou Laura na sala; a moça fora passar a noite com a amiga, e
conversava jovialmente. Apenas viu o leão, demudou-se; e instantes
depois, inventou um pretexto para retirar-se, apesar das instâncias
de Amélia.

Horácio pouca ou nenhuma atenção deu à mudança
que se tinha operado em Laura, em sua retirada repentina. Desde que a moça
não era a dona feliz do mais lindo pé do mundo, tornava-se para
ele uma criatura indiferente; tanto mais quanto sua alma estava ali de rojo
beijando a fímbria de seda, que lhe ocultava o tão ansiado tesouro.

Em Amélia, várias impressões produziu a apresentação
do moço. No primeiro momento acreditou que o leão viera atraído
por ela; mais tarde, lembrando-se do teatro, suspeitou que fosse apenas um
meio de aproximar-se de Laura; finalmente ocorreu-lhe que podia não
passar de um encontro casual de seu pai, e de uma delicadeza da parte de Horácio.

Suas dúvidas porém se dissiparam poucos dias depois.

Uma noite a moça, impelida por um movimento de faceirice, soltou estas
palavras, no meio de uma conversa com o leão:

— Laura está uma ingrata! Há tanto tempo que não vem
passar uma noite comigo.

Ao mesmo tempo fitava os olhos no moço para ver a expressão
de sua fisionomia.

— É uma fineza de sua amiga, que eu agradeço de coração,
respondeu Horácio.

— Uma fineza?… perguntou Amélia pressentindo laivos de ironia.

— Quando sua amiga está aqui, a senhora sem dúvida não
a deixa!

— É muito natural.

— Já vê pois que eu tenho razão. Se ela viesse…

— Eu teria ciúmes, D. Amélia,

A moça corou.

— Pois amanhã Laura há de passar a noite comigo.

Estas palavras foram ditas com o estouvamento da menina, que procura disfarçar
um prazer sob a máscara da contrariedade. Mas a máscara é
tão risonha, que não ilude.

— Quer-me tanto mal assim? perguntou Horácio. Não admira;
uma paixão ardente e impetuosa, como eu sinto pela senhora, não
devia ter outra sorte. O verdadeiro amor foi e será sempre infeliz;
não há mulher que o compreenda.

Amélia com as faces a arder não sabia que fizesse; sua mão
trêmula brincava com as flores de um vaso, que vacilou sobre o consolo
e caiu no chão. O fracasso da porcelana, despedaçando-se, chamou
a atenção das pessoas que estavam na sala; assim rompeu-se o
enleio de Amélia

A moça retirou-se confusa para o interior da casa. Momentos depois
entrou de novo na sala, já serena e prazenteira. Seus olhos procuraram
Horácio, para oferecer-lhe o meigo sorriso que trazia nos lábios.

Esse sorriso dizia em sua eloqüência muda o seguinte:

— Se nunca a mulher soube compreender a verdadeira paixão, serei
eu a primeira.

Foi esta pelo menos a tradução de Horácio, perfeito
filólogo do amor, e habituado a decifrar esses hieróglifos dos
lábios de mulher.

VIII

Não abandonemos o pobre Leopoldo à sua amarga decepção.

O moço chegara a casa mergulhado na tristeza profunda, que sobre ele
derramaram os acontecimentos da manhã. Talvez a morte de Amélia
não lhe causasse tamanho pesar, como o daquela cruel decepção
que estava presentemente curtindo.

O aleijão excita geralmente uma invencível repugnância,
repassada de terror. A aberração da forma humana abate o orgulho
do bípede implume, fazendo-o descer abaixo do orangotango. Ao mesmo
tempo, é ameaça viva a uma das mais caras aspirações
do homem: a esperança de renascer em outra criatura, gerada de seu
ser. Se a fatalidade pesar sobre a prole querida?

Imagine-se que dor era a do mancebo, quando via a deformidade surgir de repente
para esmagar em seu coração a imagem da mulher amada, da virgem
de seus castos sonhos?

O contraste sobretudo era terrível. Se Amélia fosse feia, o
senão do pé não passara de um defeito; não quebraria
a harmonia do todo. Mas Amélia era linda, e não somente linda;
tinha a beleza regular, suave e pura que se pode chamar a melodia da forma.
A desproporção grosseira de um membro tornava-se pois, nessa
estátua perfeita, uma verdadeira monstruosidade. Era um berro no meio
de uma sinfonia; era um disparate da natureza, uma superfetação
do horrível no belo. Fazia lembrar os ídolos e fetiches do Oriente,
onde a imaginação doentia do povo reúne em uma só
imagem o símbolo dos maiores contrastes.

Nessa angústia passou Leopoldo o resto daquele dia e os que se lhe
seguiram.

— Não amo a sua beleza material, oh, não! pensava o mancebo.
O que eu adoro nela é a beleza moral, a alma nobre e pura, a criatura
celeste, a luz, o anjo. Qualquer que fosse o invólucro de seu espírito
imaculado, creio que havia de adorá-la tanto, como a adorei desde o
momento em que primeiro a vi.

“Fosse ela feia para os outros, que chamam formosura o que lhes encanta
os sentidos, para mim seria sempre bela, porque meus olhos haviam de vê-la
através de seu esplêndido sorriso. O que é o corpo humano
no fim de contas? O que é o contorno suave de um talhe elegante, e
a cútis acetinada de um rosto ou de um colo mimoso? Um pouco de matéria
a que a luz transmite a cor, o espírito e a vida. Tirem-lhe esses dois
alentos, e verão que lodo impuro e nauseante ficam sendo aquelas formas
sedutoras.”

“Pois luz e espírito não eram a essência da alma
de Amélia? Quando essa alma a vestia com uma túnica resplandecente,
que mulher se lhe podia comparar em lindeza? Então não era somente
formosa, flutuava em um éter de beleza deslumbrante.”

“Mas ela não é feia, é aleijada!…”

Um soluço afogou as tristes lucubrações do mancebo.
Ele repassou outra vez na mente as circunstâncias de sua triste descoberta;
quis duvidar, combateu pertinazmente sua própria razão que lhe
apresentava a realidade, e afinal sucumbiu, curvando-se à implacável
certeza. Tinha visto uma vez, e como essa não bastasse, o acaso lhe
oferecera ocasião de apalpar a verdade e saciar-se dela.

— Não se admira a Vênus de Milo, uma estátua mutilada?
dizia o mancebo relutando contra sua viva repugnância. Não se
admira o primor da arte grega, apesar de não restar dela mais do que
uma cabeça e um torso de mulher? Essa beleza truncada não vale
a beleza aleijada? A mutilação não repugna tanto ou mais
do que a deformidade?

A razão de Leopoldo não o deixava embalar-se muito tempo nesse
pensamento consolador Replicava logo, refutando vigorosamente as argúcias
do coração:

— A estátua mutilada, que excita a admiração do mundo,
não é a cópia integral da beleza que lhe servia de tipo,
mas um fragmento apenas dessa cópia. A alma, que se extasia na contemplação
desse fragmento, recompõe o ideal do artista. Admira-se a Vênus
de Milo, como se admira um esboço não acabado de Rafael; como
se admira a pétala de uma rosa, arrancada da corola. Mas, fosse embora
aquele primor de estatuária a reprodução exata de uma
mulher, a mutilação respeita a beleza; o aleijão a deturpa.
Se a mulher que se ama perdesse um pé, seria desgraçada; com
um pé monstruoso, é mais do que desgraçada, é
repulsiva.

Leopoldo deixava-se convencer por estas sugestões:

— Infelizmente assim é. Mas por que há de ser assim? A mutilação
é um fato humano; o aleijão é um fato natural. Essa aberração
do princípio criador, esse desvio da forma primitiva, indicam sem dúvida
um vício na essência do organismo. Não se tem verificado
que nos corpos mal conformados de nascença habita sempre uma alma enferma?
Nos corcundas sobretudo, porque a espinha dorsal é o tronco da inteligência.
A deformidade de um membro, de um ramo apenas, não denota eiva tão
profunda do espírito, é certo, mas revela que a alma não
é nobre e superior. Não se concebe o anjo dentro de um aleijão.

O resultado destas cogitações era a gota de fel espremido,
que ia filtrando a pouco e pouco no coração e acabaria por saturar
todas as doces reminiscências dos últimos dias. Leopoldo convenceu-se
que não devia amar a desconhecida; mas, ao contrário, arrancar
de sua alma os germes da paixão nascente.

Tomando esta.resolução, o moço, que vivia muito retirado
depois de suas desgraças de família, esteve a lembrar-se de
algumas antigas relações. Veio-lhe o desejo de cultivá-las
de novo. Um instinto lhe dizia que para gastar as primícias de um coração
virgem, não há como o atrito do mundo.

Entre as casas que outrora freqüentava, escolheu para a primeira noite
a de D. Clementina, amiga íntima de sua irmã. Era uma senhora
já no declínio da idade e da formosura; gostava muito de dançar,
e por isso reunia constantemente em sua sala as moças de sua amizade.
Logo que se achavam presentes quatro pares, a dona da casa dava o sinal, o
marido arredava a mesa do centro, o filho, menino de quinze anos, sentava-se
ao piano e…

— Chassé-croisé! gritava D. Clementina.

Nesta casa Leopoldo tinha certeza, não só de ser bem recebido,
como de encontrar bastante arruído para aturdir-se e abafar uns gemidos
que sentia às vezes repercutirem no coração. Tinham decorrido
cinco dias depois da decepção; às oito horas da noite
entrou o moço na sala de D. Clementina, que o recebeu com surpresa
cheia de amabilidades.

Além de estimado, acontecia que ele era justamente o quarto par. Tirado
o dono da casa, o Sr. Campos, o filho Alfredo, e três velhas, inválidas
da dança, havia na sala cinco senhoras para dois cavalheiros; servindo
uma senhora de cavalheiro, ainda faltava metade de um par.

Quando a campainha anunciou mais uma visita, D. Clementina de olhos fitos
na porta da sala, dispôs-se a receber o recém-chegado com o seu
mais afável sorriso. Vendo Leopoldo, correu a ele, e desfolhando-lhe
um ramalhete de amabilidades, trançou-lhe o braço; antes que
o moço tomasse pé na sala, era arrebatado pela quadrilha, a
compasso de galope.

Realmente ele não podia escolher melhor. A agitação
daquela dança rápida, sem pausa; a confusão que os pares
criavam de propósito para aumentar a animação; os risos
e gracejos que provocavam os menores incidentes da quadrilha; todo esse rumor
e atropelo tinham por tal forma sacudido o espírito de Leopoldo, que
as idéias e recordações tristes lhe caíram, como
as folhas secas de uma árvore, abalada pelo vento rijo do outono.

Sentiu o coração vazio, porém tranqüilo; o prazer
vivo e cintilante daquela reunião, apenas roçava-lhe pela superfície;
não penetrava, mas também já não transudavam-lhe
do íntimo as amarguras de que nos últimos dias se tinha saturado.

De repente operou-se na perspectiva da sala uma transformação
inesperada. Amélia entrara; e sua graça difundiu-se com um influxo
celeste, no meneio de seu talhe elegante, na suavidade de sua voz, na irradiação
de seus olhares.

Leopoldo embebeu-se naquela suave aparição, como da primeira
vez que a vira, mas para percorrer em um ápice, as fases de seu amor,
e cair de novo na esmagadora decepção.

De repente aquela estátua luminosa escureceu a seus olhos deixando
apenas um resíduo negro: esqueleto calcinado que arrastava uma deformidade.
Debalde Amélia se ostentava no fulgor de sua beleza, toucada pelos
primeiros arrebóis do amor; debalde as ondulações de
seu corpo debuxavam formas encantadoras, e o sorriso de seus lábios
destilava uma fragrância mística de beijos puros; os olhos de
Leopoldo não viam nenhum desses encantos. Através dos folhos
do vestido roçagante, sua vista fitava-se implacável no pé
monstruoso que lhe esmagava o coração como a pata grosseira
de um animal.

Todos os encantos dessa criatura, ele os despia de seu manto sedutor e dissecava-os
com frio rancor. A inflexão voluptuosa do talhe provinha da resistência
que opunha ao andar o enorme pé; o passo ligeiro era um esforço
supremo para disfarçar o aleijão, o sorriso gracioso um enleio
para prender os olhos estranhos, não permitindo que eles se abaixassem
até à fímbria do vestido.

E por isso mesmo o olhar de Leopoldo, olhar frio, cruel, inexorável,
se tinha cravado na orla da saia elegante, donde não havia forças
para arrancá-lo.

Amélia sentiu esse olhar cruciante e estremeceu, tomada de um vago
terror. Imediatamente sentou-se, e arranjando as dobras do vestido, procurou
disfarçar; mas em vão: o olhar do moço continuava fito
no mesmo ponto e produzia nela uma sensação incômoda.

— É D. Amélia, filha de um negociante, chamado Sales. Não
conhece?

Estas palavras foram dirigidas a Leopoldo por D. Clementina, que sentando-se
a seu lado, acompanhou-lhe o olhar fito.

— Não, minha senhora.

— Então vou apresentá-lo.

— Obrigado, D. Clementina; depois.

— Não acha muito galante?

Leopoldo hesitou:

— Oh! Muito !

 

 

XVI

Fazia uma semana que Horácio não aparecia em casa de Sales.

Amélia tinha por duas vezes mandado saber do noivo. Da primeira contentou-se
com um recado; da segunda enviou-lhe uma saudade.

O negociante de sua parte havia passado por casa do moço, que pretextou
um defluxo para justificar sua ausência; e prometeu aparecer no dia
seguinte.

Horácio compreendia a necessidade de sair da posição
difícil em que se achava, mas debalde procurava um meio. Cansado de
cogitar, entendeu que o melhor era confiar-se à inspiração
do momento.

No dia seguinte à noite, dirigiu-se à casa do negociante.

As duas senhoras estavam sentadas junto à mesa; a mãe lia,
a filha pensava. Amélia estava triste, sua mãe supunha que eram
saudades.

Quando Horácio entrou, D. Leonor o festejou com verdadeiro prazer.
Amélia sentiu um vislumbre de esperança, que iluminou o sorriso
de seus lábios.

— Felizmente! exclamou D. Leonor. Esta casa era uma fonte dos suspiros!

A conversação começou friamente, e foi se arrastando
por algum tempo. — Não tem saído? perguntou Horácio
depois de uma pausa.

— Não; Amélia não tem querido.

— Por quê? perguntou o moço voltando-se para a noiva.

— Então não sabe? acudiu D. Leonor.

— Porque não se ofereceu ocasião, disse Amélia.

— Mas tem recebido visitas?

— Algumas.

— O Leopoldo não apareceu?

— Não freqüenta nossa casa, respondeu a moça.

— Ah!… cuidei.

— Se ele nos visitasse, o senhor o teria encontrado aqui muitas vezes. —
Podíamos nos desencontrar, disse Horácio com um sorriso motejador.
Amélia percebeu que o moço estava procurando um pretexto para
despeitar-se. D. Leonor tendo continuado a leitura interrompida, estava alheia
à conversação.

— Foi em casa do Azevedo que o apresentaram à senhora?

— Não; conheço-o de muito tempo; há perto de dois meses.

— De onde, se não é segredo?

— Segredo, por quê? Ele freqüenta a casa de D. Clementina que
recebe às quintas-feiras. Constantemente nos encontramos aí.
É uma reunião muito agradável; estamos quase em família,
sem a menor cerimônia.

— Ah! nunca me convidou para essas reuniões; eu teria muito prazer
em acompanhá-la, mas talvez fosse importuno, como já vou sendo
aqui.

— O senhor está habituado a viver na alta sociedade; havia de aborrecer-se.

— Mas a senhora não se aborrecia; ao contrário divertia-se
bastante.

— Alguma coisa.

— E Leopoldo era seu par?

— Era.

— Par constante?

— Não sei se era constante ou não; quase sempre ele dançava
comigo, porque lá não há muito onde escolher; os pares
são poucos.

— Ótimo sistema! Assim não se repara.

— Em quê?

— Em certa assiduidade! Ainda mesmo que uma moça já tenha
noivo arranjado, há gente que exige da parte dessa moça certa
reserva, porque enfim o outro pode não querer aceitar a responsabilidade
de tudo! É uma impertinência, concordo, mas o mundo tem destes
caprichos.

— Isso se entende naturalmente com as moças que têm noivo arranjado,
retorquiu Amélia frisando a palavra, e não com aquelas, cuja
mão se pediu talvez para satisfazer uma simples fantasia.

A moça levantou-se da mesa lançando ao leão um olhar
desdenhoso, e foi sentar-se ao piano. Enquanto ela tocava uma variação
de Thalberg, Horácio para fazer alguma coisa, se entreteve em arranjar
as figuras chinesas de um jogo de paciência. Nunca ele precisara tanto
de prover-se dessa virtude evangélica.

Decorridos alguns instantes o leão ergueu-se da mesa, deu algumas
voltas pela sala, e aproximou-se do piano, como para ver a elegância
com que a moça dedilhava.

— A senhora acha muito natural, D. Amélia, que uma noiva freqüente
assiduamente uma casa onde não tem entrada o homem com quem vai casar-se;
acha natural que essa moça tenha em tais reuniões um par efetivo
que provavelmente cultiva uma dessas amizades cândidas dos romances
de Balzac, verdadeiros lírios do vale, que vivem de orvalhos e de sombras.
Eu, porém, sou um espírito prosaico e material; tenho a infelicidade
de não acreditar na atração misteriosa dos espíritos,
no consórcio ideal ias almas irmãs, nos sonhos etéreos,
nos eflúvios celestes, em toda essa gíria

sentimental. Para mim, inteligência grosseira, tudo isso não
passa de uma hipocrisia do primeiro tartufo deste mundo, o amor. É
um tiranete que toma todas as figuras e posições; faz-se menino
ou velho, anjo ou demônio, poeta ou banqueiro… Estou incomodando-a
talvez?

— Não; acabe.

A moça fazia com uma ligeira surdina o acompanhamento das palavras
do leão; mas à última frase, ela retirou as mãos
do teclado. Foi esse o motivo da pergunta de Horácio.

— A senhora deve sentir muito, e Leopoldo com maior razão, de serem
privados de uma distração que tanto lhes agrada!

— Compreendo, replicou Amélia. O senhor me proíbe que eu vá
à casa de D. Clementina?

— Que idéia! Não tenho direito de proibir; ainda não
sou seu marido; a senhora é completamente livre de suas ações,
pode ir à casa de D. Clementina, ou onde lhe aprouver; assim como eu
posso, querendo, passar as noites no Clube ou no Alcázar.

Amélia soltou uma risada.

— Pensava que os leões estavam isentos dessa fragilidade do ciúme.

— Perdão; não se trata de ciúme, nem sei o que isso
é. A questão reduz-se a uma antipatia de caracteres, a uma contradição
de gênios, que deve ter para o futuro graves conseqüências.
A senhora é idealista, eu sou materialista. Um quisera viver no mundo
dos sonhos, outro neste vale das lágrimas e das realidades. A senhora
procurando-me no céu entre as estrelas e os anjos, e não me
achando aí, sofreria uma cruel decepção; entretanto que
eu na terra, ficarei reduzido à sombra da mulher que amei.

— Não é tão pouco, para quem se contentava com um pé
de criança, disse Amélia com ironia.

— Mas esse pé era a realidade, a expressão a mais sublime
dela!

— Custa-lhe pouco a possuir essa realidade. Mande fabricá-la em cera:
sairá ainda mais perfeita.

— Ainda não perdi a esperança de encontrá-la.

O chá interrompeu o diálogo. Os dois noivos aproximaram da
mesa oval, onde o criado acabava de colocar a bandeja.

A fisionomia de Amélia perdera a expressão de tristeza e desânimo
que tinha a princípio; a conversa lhe deixara no semblante alguns tons
vivos.

Ocupada em dispor as xícaras para enchê-las, os gestos sempre
macios da moça revelavam certa crispação nervosa.

Horácio ficara contrariado, porque não tivera tempo de precipitar
o casus belli. Receava que se demorasse ainda o rompimento que ele tanto desejava.

— Mamãe, disse Amélia com intenção, amanhã
é quinta-feira. Vamos passar a noite em casa de D. Clementina?

— Se quiseres.

— Não devemos faltar; deixamos de ir a semana passada.

— Foi logo depois do baile do Azevedo.

— Não o convido, disse Amélia voltando-se para Horácio,
porque o senhor não freqüenta essas reuniões de gente pobre.

— Sem dúvida; tenho medo de evaporar-me em devaneios e suspiros,
respondeu Horácio, cruzando com a moça um olhar de desafio.

Ele sentiu que Amélia o provocava, e exultou. A moça estava
disposta a resistir; o rompimento era infalível e pronto.

— Eu gosto bem dessas partidas; a noite passa tão agradável.

Aproveitando-se de um momento em que D. Leonor se afastou, Horácio
atirou à moça rapidamente estas palavras:

— Pois se a senhora voltar à casa de D. Clementina, eu não
voltarei mais aqui.

Amélia estremeceu.

Um quarto de hora depois, Horácio retirou-se. Quando se despedia das
senhoras, disse o leão à moça apertando-lhe a mão:

— Desejo que se divirta muito amanhã.

— Aonde? perguntou D. Leonor.

— Em casa de D. Clementina. Não vai, D. Amélia?

A moça hesitou um instante. O ofego de seu colo traiu uma luta violenta,
mas rápida.

Sua resolução, antes que ela a exprimisse, manifestou-se na
altivez do porte, que uma vibração íntima erigira.

— Vou sem falta!

Horácio, soltando a mão da moça, que foi bater inerte
nos folhos do vestido, cortejou profundamente:

— Seja muito feliz.

Apenas o leão desapareceu na porta, Amélia abraçando
e beijando a mãe, subiu precipitadamente a sua alcova; atirou-se a
uma conversadeira, e desafogou em pranto e soluços a dor que tinha
recalcado desde muitos dias.

A maior parte da noite foi para ela de vigília. Viu correrem as horas;
cada momento que se escoava era uma esperança, uma ilusão que
se desfolhava da flor viçosa de sua alma.

Aqueles que se separam das pessoas ou dos sítios queridos, conhecem
bem esse travo de coração que chamamos saudade; e sabem quanto
é cruel o momento da separação.

Mas não há despedida cruciante como seja a da alma pelo amor
que nutriu durante muito tempo. Há aí mais do que uma separação:
é quase a mutilação moral.

Amélia compreendera que tudo acabara entre Horácio e ela. Desde
o dia do jantar receara esse resultado; mas ainda alimentava uma esperança.
Naquela noite a esperança murchara, se não foi ela própria,
Amélia, quem a desfolhara.

Agora na calada da noite, em sua alcova que lhe parecia um ermo, ela tinha
medo do isolamento em que se achava. Algumas vezes sua alma sentia-se como
que asfixiada pelo silêncio e pela treva que a submergiam.

XVII

Como dissera a Amélia, na sua última visita, Horácio
não tinha perdido a esperança de encontrar o que ele chamava
a realidade de seu amor: o pezinho gentil e mimoso do qual ele possuía
a botina.

Iludira-se nas suas investigações; era preciso recomeçar.

Tal era o pensamento que preocupava o leão, recostado naquela mesma
poltrona, onde o vimos no primeiro dia. Seu olhar embebido nos frocos de fumaça
do puro havana, rasteava nas espirais diáfanas a imagem confusa de
seus pensamentos.

Tinham decorrido três dias depois do seu rompimento com Amélia.
Logo na seguinte manhã, o leão para não dar tempo ao
arrependimento da moça, escreveu uma carta ao Sales, manifestando seu
receio de que a antipatia de gênios tornasse infeliz uma união
que todos ardentemente desejavam.

O negociante mostrou a carta à filha, que lhe disse com um sorriso
forçado:

— Ele tem razão!

A carta de Horácio teve resposta no mesmo dia. O Sales encontrando-o
na Rua do Ouvidor recusou-lhe o cumprimento.

O leão, satisfeito com esse pronto desenlace que evitava longas explicações,
achou-se a poucos passos de distância em frente de Leopoldo.

— Oh! Tu me trazes felicidade! exclamou o leão, apertando-lhe a mão.
Sempre que nos encontramos, ou está para acontecer ou já tem
acontecido alguma coisa de bom para mim.

— Não sabes quanto estimo!… Assim eu sou uma espécie de
astro propício, sob cuja influência nasceste.

— Queres ver? Havia muito tempo que não te via, quando nos encontramos
no baile do Azevedo. Pois nessa noite decidiu-se meu destino.

— Ah! e sob o meu influxo benéfico?

— Está visto. Lembras-te que eu te disse que estava disposto a todos
os sacrifícios até o do casamento para possuir aquele pezinho!…

— Lembro-me.

— O único obstáculo era uma espécie de promessa ou
arranjo de família. Felizmente a menina, a tal Amélia, compreendeu
que perdia seu tempo, e arrufou-se na noite do baile por uma ninharia. Eu
aproveitei o pretexto; escrevi ao pai retirando minha palavra, e agora mesmo
ele me acaba de responder. Estou livre como o ar, e contente como um rapaz
que sai do colégio.

— Neste caso dou-te meus parabéns.

— E tu como vais com o sorriso?

— Sem novidade.

— Dize-me uma coisa, no dia em que a viste pela primeira vez, ela estava
só ou com outra moça? Faço-te esta pergunta porque foi
na Rua da Quitanda e quase pelo mesmo tempo que eu achei a botina.

— Eram duas, respondeu Leopoldo sorrindo.

— Em uma vitória?

— Sim.

— A outra era mais baixa?

— Não afirmo.

— Adeus.

O leão separou-se do amigo, e repassando as particularidades de sua
conversa com Amélia perto do bastidor e no dia do jantar, começou
a combiná-las com as informações de Leopoldo e com as
circunstâncias do encontro no Passeio Público, onde vira o sinal
impresso na areia pelo mimoso pezinho.

Agora, fumando seu charuto depois do jantar, o leão resumia todas
as suas reflexões, e chegava a este resultado:

— Decididamente o pezinho é de uma moça que ia com Amélia,
no dia em que se perdeu a botina e no dia em que eu a vi de longe no Passeio
Público. Essa moça, cuja inicial é um L, não é
outra senão Laura. Aquele pudor feroz era um indício infalível.
Amélia procurava imitá-lo por motivo bem diverso: mas não
o conseguiu.

O moço chegou-se à banquinha onde estava o cofre de pau-rosa
e contemplou a botina.

À noite, o leão foi a uma partida. Sua estrela o favorecia.
Laura lá estava. Dirigiu-lhe algumas banalidades graciosas, que ela
a princípio recebeu com manifesta esquivança, mas depois com
timidez.

Horácio compreendia a razão do procedimento da moça.
Para tranqüilizá-la, teve o cuidado de nunca abaixar a vista à
fímbria do vestido, e mostrar-se enlevado pelo colo gracioso da gentil
senhora. A lição que recebera anteriormente, o tornou de uma
prudência consumada.

No fim da noite o leão conseguira restabelecer a confiança
no espírito de Laura, desvanecendo-lhe a suspeita deixada pela cena
do teatro. Era o essencial; com os meios de sedução de que dispunha,
e a inclinação que a moça revelava por ele, contava certa
a conquista. A questão era de tempo.

Antes de quinze dias freqüentava a casa da moça e estava na intimidade
da família.

Laura perdera o marido aos 17 anos, pouco tempo depois de casada. Era rica;
não lhe faltavam pretendentes atraídos pelo dote e pela beleza;
mas ela não parecia disposta a tentar segunda vez a felicidade conjugal,
embora não tivesse passado da lua-de-mel. É natural que o desejo
lhe chegasse com o primeiro fio de neve; quando fossem rareando os apaixonados
que a cercavam.

Uma manhã, Horácio passando a pé, como costumava, pela
casa da moça, viu-a, por entre as grades, sentada no jardim ocupada
em fazer um ramo de flores. Entrou e foi ter com ela, à sombra de uma
latada de madressilvas.

Laura deu-lhe lugar perto de si; e começaram a conversar sobre flores,
modas e mil futilidades.

Eram dez horas do dia. O sol brilhava em céu límpido; uma aragem
fresca sussurrava entre as folhas; os coleiros trinavam nas ramas das laranjeiras.
Esse concerto de perfumes e harmonias convidava o coração a
abrir-se e cantar o seu hino de amor.

Laura reclinou a fonte e emudeceu, com os olhos embebidos no seio de uma
rosa, que tinha no regaço. Horácio tomou-lhe a mão, que
ela cedeu com tênue resistência.

— Sabe desde quando eu a amo, Laura? Desde o dia em que a vi pela primeira
vez passar em um carro. Foi, se não me engano, na Rua da Quitanda;
ia com a filha do Sales. Lembra-se?

A moça fez um gesto afirmativo.

— Depois encontrei-a no teatro. A princípio seus olhos me deixaram
conceber alguma esperança; mas o desengano foi cruel. Nem imagina como
sofri! Cuidei que não houvesse mulher capaz de obrigar-me a voltar
às ingenuidades dos 18 anos. Um dia ainda me lembro, via-a de longe
entrar no Passeio Público; apressei-me para ter o prazer de cortejá-la,
receber um olhar. Debalde corri todas as ruas; quando voltei à porta
fiquei desesperado. A senhora tinha saído, sempre com a filha do Sales.
Recorda-se?

— Recordo-me, respondeu a moça. Mas era por mim que fazia tudo

isso?

– Duvida, Laura?

— Nega que esteve apaixonado por Amélia? Até diziam que já
a tinha pedido.

— Que ingratidão! Não sabe então por que me fiz apresentar
em casa do Sales? Para vê-la; era preciso procurar um meio; a senhora
já não se lembra da dureza com que me tratava.

— E por isso consolava-se com Amélia?

— Se amasse, Laura, havia de saber o que é o ciúme, e as loucuras
que ele nos obriga a fazer! Mas a senhora não ama!

— Quem lhe disse?

— Essa frieza.

— E o que eu sofri?… balbuciou a moca pondo os olhos languidos no semblante
do mancebo.

— Perdão, Laura, exclamou Horácio ajoelhando. Eu era um louco,
indigno de teu amor; e não mereço tanta felicidade. Mas deixa-me
implorar o meu perdão; deixa-me beijar teus pés, que…

— Ah! .. .

Horácio proferiu aquelas palavras apaixonadas, de joelhos diante da
moca que sorria inclinada para ele; de repente abaixou-se para beijar-lhe
os pés, esse objeto de sua adoração. Foi então
que ela soltando um grito de espanto, o repeliu para longe de si com horror.

Contudo, o moço, que preparara toda aquela cena para chegar à
realização do desejo por tanto tempo afagado, conseguira ver…
mas não o que esperava: um pezinho mimoso e gentil; e sim dois pés
ingleses de sofrível tamanho, que lhe pareciam descansar sobre uma
almofada preta.

O semblante de Laura se tinha demudado de uma maneira espantosa; em suas
faces intumescidas respirava uma expressão feroz de ódio e vingança.

Horácio compreendeu que naquele momento qualquer explicação
era impossível. O que tinha de melhor a fazer era eclipsar-se. No fim
de contas esse desenlace lhe convinha, pois cortava todas as dificuldades
da retirada.

Cortejou e saiu.

A alguns passos da casa, o leão não pôde conter uma gargalhada,
que lhe estava a sufocar, e desabafou-a. Realmente havia de que rir; duas
vezes mistificado em sua paixão, ele, o rei da moda, o conquistador
sempre feliz.

Insensivelmente começou a refletir sobre o ocorrido. Por mais que
se desse tratos à imaginação, não podia decifrar
o enigma. A botina que achara fora perdida por uma das duas moças;
mas não pertencia a nenhuma. Seria encomenda de outra amiga, e talvez
para alguma menina de dez anos?

De repente surgiu no espírito de Horácio uma idéia tão
original, como a situação em que se achava.

— Eu vi os dois pés de Laura; mas de Amélia, só vi
um; é verdade que esse valia por três. Mas… Não resta
dúvida. A natureza tem destes caprichos. A maravilha a par do monstro,
o mimo em face da deformidade! É o princípio do contraste, que
rege o mundo. Eu vi o direito, o aleijão. O esquerdo ficou oculto como
a pérola e o diamante.

Compenetrado dessa idéia, de que o pezinho adorado pertencia a Amélia,
a quem a natureza em compensação aleijara o outro, Horácio
admitiu a possibilidade de que sua paixão pela moça revivesse,
embora menos ardente, ou mais positiva.

Ter aquele pezinho em suas mãos, senti-lo estremecer e palpitar de
emoção, cobri-lo de beijos, acariciar a rósea cútis
diáfana tecida de veias azuis, brincar-lhe com as unhas crespas, como
conchinhas de nácar, cingir ao seio esse gnomo gentil, titilante de
amor e volúpia!…

Não podia haver para o leão maior delícia neste mundo.
Ele daria por ela todo o quinhão de prazer que porventura lhe estava
reservado para o resto da existência.

Foi engolfado nestes devaneios que Horácio apeou-se à Rua Direita
de um tílburi, que tomara no Largo do Machado.

Seguindo para a Rua do Ouvidor, a passo lento e descuidado, o leão
aspirava o ar da cidade, como o ocioso que não sabe em que há
de consumir o dia e fareja uma aventura qualquer.

De repente avistou coisa que o pôs alerta. Um carro que subia a Rua
do Ouvidor passou por ele; era o cupê do Sales. O rosto encantador de
Amélia apareceu-lhe a princípio de relance na penumbra que azulava
o acolchoado de damasco, e depois em plena luz moldurado pelo quadro do postigo.

Acompanhando com o olhar a carruagem, Horácio a viu rodar por algum
tempo vagarosamente por causa de embaraço no transito e parar próximo
à esquina da Rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba,
esperava naturalmente ordem para abrir.

Horácio apressou o passo. Por duas vezes avistara a fronte de Amélia
coroada com um chapeuzinho de palha da Itália, assomando no postigo,
a fim de percorrer a rua com o olhar. A idéia de que a moça
lhe desejava falar passou pela mente do leão, que a repeliu, sem contudo
considerá-la impossível.

Em todo caso ele acreditou que mais ou menos tinha parte naquela parada do
carro, e não se enganava.

— Para que mandaste parar? perguntou D. Leonor.

— Quero comprar luvas no Masset, respondeu a filha.

— Ficou atrás.

— Podemos ir a pé.

Quando o leão chegou a dez braças do carro, a portinhola abriu-se,
e Amélia, em companhia de sua mãe, saltou na calçada.
A moça tinha um roupão cor de café, de extrema simplicidade,
porém muito elegante; as luvas eram da mesma cor de cinza das fitas
do chapéu de palha.

As duas senhoras dirigiram-se para a casa do Masset. Horácio procurou
cortejá-las na passagem, mas elas não lhe deram ocasião.
Contudo o leão reparou que a moça disfarçadamente voltou
o rosto para olhá-lo.

Enquanto as senhoras compravam luvas, Horácio as esperava em frente
da casa do Valais, a alguns passos do carro. Pouco tardaram. Amélia
vinha só na frente. Felizmente o transito pela calçada diminuiu
naquele instante, de modo que o conquistador pôde ver a gosto a moça
aproximar-se dele. Levados por impulso irresistível os olhares do mancebo
abaixavam-se para os volantes do vestido, e rastejaram no chão que
a moça pisava.

Amélia percebeu a insistência do olhar, e um ligeiro sorriso
fugiu-lhe dos lábios. Imaginando que na calçada havia lama,
colheu com ambas as mãos a frente da saia, e com tanto estouvamento
que descobriu os pés até o colo da perna.

Horácio ficou fulminado.

Vira pousados na calçada dois pezinhos mimosos que palpitavam dentro
de botinas de merinó cor de cinza. Pareciam um par de rolinhas, arrulhando
na praia e beijando-se com o biquinho rosado. Durante o rápido instante,
que seus olhos puderam admirar esses primores de graça e gentileza,
não escaparam a Horácio as ondulações voluptuosas
e os contornos suaves dos dois silfos. Nunca ele observara no talhe elegante
da mais formosa mulher requebros tão aveludados, como tinha aquele
dorso arqueado e aquela palmilha sutil.

Tamanho foi o pasmo de Horácio, que sr deu por si quando a moça,
passando por ele, entrou na carruagem. Voltou-se então precipitadamente,
sem consciência do que ia fazer; mas a parelha já tinha partido
a trote largo.

Momentos depois o leão descia a Rua do Ouvidor completamente absorto.
Seu lábio distraído ia debulhando, sem o sentir, alguns trechos
dos lindos versos do conselheiro José Bonifácio:

“Padres, não me negueis, se estais em calma, “Um coração
no pé, na perna um’alma!”

XVIII

Laura e Amélia eram primas e amigas de infância; havia entre
elas apenas a diferença de dezoito meses.

Desde a idade de três ou quatro anos, isto é, desde que deixou
as faixas, Laura usou sempre de roupas compridas. Isso causava reparo a todos
que viam a menina trajada como uma senhora. Muitos achavam extravagante e
ridículo o capricho e censuravam a mãe.

Esta ouvia as censuras de suas amigas, assim como os motejos estranhos, e
calava-se; mas não alterava o vestuário da menina. A ternura
e piedade materna lhe davam a paciência necessária para arrostar
com as zombarias do mundo.

Laura tinha um aleijão; nascera com os pés disformes. Para
mais agravar o desgosto dos pais, essa monstruosidade vinha ligada a uma beleza
angélica. A senhora avaliou do infortúnio de sua filha, e preparou-se
para todos os sacrifícios. Consultas foram dirigidas aos melhores médicos
da Europa; chegou a empreender uma viagem para tentar os recursos da ciência;
foram todos ineficazes.

Desenganada afinal, dedicou-se a esconder a desgraça de sua filha,
a fim de que ela não fosse obrigada a envergonhar-se na sociedade.
Durante muito tempo Laura não teve outra criada, além de sua
mãe. À custa de esforços constantes, de uma vigilância
incessante de cada dia e cada hora, conseguiu a senhora manter esse segredo
de família, do qual dependia a felicidade da filha.

Atingindo a idade de oito anos, a menina com o instinto da mulher, compreendera
seu infortúnio; e desde então descansou a mãe daquele
cuidado incessante. Ficando moça casou-se, e seu marido que a amava
estremecidamente, morreu ignorando o segredo.

Com bastante mágoa sua, Amélia surpreendeu o segredo da prima
e amiga.

A filha de Sales tinha dois pezinhos de fada, breves, arqueados, com uns
dedos que pareciam botões de rosa. O desgosto e vexame que isso causava
à moça, ninguém o imagina. Ela supunha-se aleijada; apesar
de seus 18 anos, seus pés eram de menina.

Assim o mesmo cuidado com que Laura escondia a sua monstruosidade, punha
ela em ocultar essa graça e prenda da natureza. Naquele tempo não
se tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos; bem ao contrário,
o tom era arrastar desdenhosamente pelo chão a longa fímbria
do vestido.

Um dia que Laura passou em sua casa, Amélia teve curiosidade de comparar
seu pezinho com o da prima, para saber se a diferença era excessiva.
Enquanto a outra endireitava o penteado no toucador, realizou ela seu intento.

Avalie-se da vergonha e aflição de Laura; o desespero de Amélia
foi maior ainda. Não perdoava a si mesma o ter causado tão grande
pesar à prima, a quem ela queria muito bem. Para mitigar essa dor profunda,
Laura esqueceu a sua.

Desde então as duas amigas se consolavam mutuamente. Laura admirava
o pezinho de Amélia; esta, ou sinceramente, ou para atenuar a mágoa
da prima, chegava a invejar o seu infortúnio.

Aborrecida de não encontrar nas lojas calçado que lhe servisse,
Amélia tinha descoberto por acaso o sapateiro da Rua Sete de Setembro.
Conhecendo a habilidade do Matos, pensou que ele pudesse disfarçar
o defeito da prima. Não se enganou; o artista realizara a obra-prima
de paciência, que Leopoldo tivera ocasião de apreciar por um
acaso.

Amélia fez a Laura o sacrifício de expor-se para não
comprometer o segredo da amiga. O sapateiro não a conhecia, nunca a
tinha visto, recebia as encomendas por intermédio de um criado que
pagava à vista. Fácil foi portanto iludi-lo.

Na ocasião em que as duas primas esperavam de carro na Rua da Quitanda,
o lacaio vinha da casa do sapateiro, o qual vexado com a pressa, esquecera
as recomendações de fechar bem o embrulho.

As pretensões de Horácio vieram pouco depois arrefecer a amizade
das duas primas: já não se viam tão amiúde; mas
não obstante Amélia continuou a prestar a Laura o mesmo serviço,
e essa, coagida pela necessidade, foi obrigada a aceitá-lo.

Iam as coisas por esse teor, quando teve lugar o baile do Azevedo.

Depois da primeira quadrilha, Amélia foi ao toucador. Era este em
uma sala que dava para o jardim. Aproximando-se de uma janela entreaberta,
obscurecida pela sombra do cortinado da cama, viu a moça os dois amigos
no momento em que eles vieram sentar-se no banco, justamente colocado por
baixo da janela.

A casa era abarracada. Amélia encostada no portal da janela, descobria
os dois cavalheiros por entre a folhagem, e ouvia distintamente suas palavras.

Aí, imóvel, mas agitada por comoções diversas,
escutou ela a história do pé e a história do sorriso.
Já os dois amigos se tinham afastado, e a moça permanecia no
mesmo lugar como estática.

A narração de Horácio, e as observações
que fizera Leopoldo a esse respeito, revelaram à moça uma coisa
que já anteriormente se havia apresentado, embora indistinta, vaga
e confusa a seu espírito.

O que Horácio amava nela, não era mais do que uma forma, um
capricho, um sonho de sua imaginação enferma. Ela compreendeu
essa aberração dos sentidos em um homem gasto para o amor e
saciado de prazeres. A mulher era para o leão uma coisa comum e vulgar,
incapaz de produzir-lhe emoções fortes. Tinha-as admirado de
todos os tipos e de todos os caracteres. Seu coração exausto
precisava de alguma coisa nova, original e extravagante.

Amélia compreendeu isto, não por uma análise, que seu
espírito casto não poderia fazer, mas por uma intuição
d,alma.

Quando de novo encontrou Horácio no baile, suas maneiras não
podiam que se não ressentissem do estado de seu coração.
Tratou o leão secamente; mas logo tornou-se amável; ocorreu-lhe
uma idéia; quis pôr à prova o amor do noivo, antes de
confiar-lhe seu destino.

Foi na sua alcova, durante a insônia, que ela recordou-se da história
de Leopoldo, e comparou seu amor ao de Horácio. Repassando na mente
as palavras comovidas do primeiro, pensando naquele afeto tão desprendido
das misérias humanas, tão d,alma, Amélia sentia-se como
purificada dos desejos do sedutor.

Esse amor puro e imaterial era um batismo para seu coração
virgem.

A moça conheceu que o engano de Leopoldo provinha de uma ilusão
da vista, no momento de entrar no carro com Laura; ilusão confirmada
pela presença do lacaio na loja do sapateiro. Chegou a estimar esse
incidente que pôs em relevo a alma nobre e generosa do mancebo.

Acudiu-lhe à lembrança sua primeira conversa em casa de D.
Clementina. As palavras que então lhe pareceram ininteligíveis,
tinham agora um sentido. Compreendia toda a sublimidade do coração
que dizia com uma profunda convicção:

— Sinto-me capaz de amar o horrível, sinto-me capaz de nutrir uma
dessas paixões mártires, de amar o anjo ainda mesmo encarnado
no aleijão.

— Esse me ama realmente, a mim, e não à sua fantasia! murmurou
a moça com tristeza.

No dia seguinte, depois de uma noite de insônia, preparou-se para receber
Horácio e submetê-lo à prova. O Matos conservava um par
das antigas botinas de Laura, o qual lhe fora para modelo. Mandou Amélia
buscá-lo; e encheu-o de algodão para acomodar nessa enormidade
o seu mimoso pezinho.

O bordado do bastidor foi expressamente inventado. Procurando uma letra para
indicar a pessoa a quem destinava o pretendido presente, insensivelmente traçou
um L. Era a inicial de Laura, que lhe acudira à mente; ou era a lembrança
de Leopoldo, que lhe esvoaçava ainda na imaginação? Foi
uma e outra coisa. Serviu-se do pretexto da amiga para evocar o nome do homem,
que tão profundamente a amava.

Depois da cena que teve lugar na tarde do jantar, Amélia arrependeu-se.
Receava ter-se excedido; bastava-lhe matar a ilusão do mancebo, não
devia ter excitado o horror. Mas o afeto de Leopoldo a tornara exigente; ela
queria ser amada por Horácio da mesma forma, com aquela sublime abnegação.

Durante alguns dias, alimentou a esperança de conservar a afeição
do noivo, e regozijava-se com a idéia da surpresa que lhe guardava.

A ausência do leão a foi desenganando de dia em dia. Travou-se
então uma luta em seu espírito. Devia esquecer o homem que não
amava nela senão uma fantasia?

O tom de Horácio na última noite a irritou. Seu amor-próprio
indignou-se com o menoscabo do moço, e súbita revelação
de sua alma lhe advertiu que esse casamento causaria sua desgraça.

No dia seguinte ao do rompimento, Amélia foi, como havia dito na véspera,
à casa de D. Clementina. Era a primeira vez que tornava a ver Leopoldo
depois do baile.

Estiveram juntos alguns momentos. Como de costume Leopoldo falou, e a moça
embebeu-se daquelas palavras apaixonadas como de um eflúvio suave.

Em um momento de pausa, disse Amélia:

— O senhor passou por nossa casa na terça-feira?

— É verdade. Por que pergunta?

— Eu estava no jardim. Vi-o quando passava; cuidei que ia entrar.

— Não me animava.

— Por quê?… Mamãe já lhe ofereceu nossa casa.

— Tenho receio de ser importuno.

— Pouco saímos agora; à exceção das noites que
passamos aqui, estamos sempre sós; mamãe lendo e eu tocando
ou fazendo algum trabalho de lã.

— E ninguém mais? perguntou Leopoldo, fitando na moça um olhar
interrogador.

— Ninguém! respondeu Amélia em tom grave.

Leopoldo ficou suspenso, buscando compreender o pensamento da moça.
Era mágoa do bem perdido, ou temor do mal frustrado, que assim lhe
anuviara a fisionomia?

Mas o sorriso prazenteiro iluminou o semblante da moça:

— Sabe? Naquela noite do baile, me contaram uma história muito interessante,
disse ela.

— Não se pode saber?

— O senhor pode. Foi a história de um sorriso, disse Amélia
sublinhando a palavra com um gesto faceiro.

— Quem lhe contou? Foi ele?

— Foi o senhor.

— Eu?

— O senhor mesmo. Já não se lembra?

— Quer gracejar?

— O senhor estava no jardim conversando com seu amigo, e eu na janela do
toucador.

Leopoldo adivinhou.

— Então ouviu tudo?

— Tudo!…

— E… perdoou-me?

— Não; não tinha de quê, mas…

E seus belos olhos límpidos repousaram no semblante do moço.

— Mas compreendi!

Nesse momento D. Leonor chamou Amélia.

XIX

Quando recobrou-se da surpresa em que tinha ficado, Horácio não
achou em si mais do que o desejo veemente e irresistível de possuir
o ídolo por tanto tempo sonhado.

— Serão meus! murmurou consigo. Serão meus a todo preço.
Se for necessário um escândalo, não hesitarei. Mas Amélia
não deve ter-se esquecido de mim já tão depressa; ela
me tinha afeição. Vou pedir-lhe perdão de meu engano.
Sujeitar-me-ei a todas as condições. Que sacrifícios
são bastantes para pagar a felicidade de beijar aqueles dois mimos
da natureza!

Instintivamente Horácio seguiu na direção da casa do
Sales, com intenção de restabelecer as relações
interrompidas. Não sabia ele de que modo se houvesse em tal empenho;
fiava da inspiração do momento.

Já não estava o negociante no escritório; nesse dia
se retirara mais cedo.

Malograda sua esperança, o leão foi caminhando pela Rua Direita
sem direção, como quem não sabe o que fazer. O instinto
que no deserto guia o rei dos animais à sebe odorífera onde
retouçam as gazelas, o conduzia naturalmente para a Rua do Ouvidor.

Tinha chegado à esquina, quando passou defronte um moço, que
seguiu pela calçada Carceler. Horácio acompanhou-o com a vista,
querendo nele reconhecer seu amigo Leopoldo que havia cerca de um mês
não vira.

Se com efeito o moço era Leopoldo, tinha ele sofrido grande transformação.
Em vez do rapaz descuidado no seu traje, brusco em suas maneiras, sempre de
cabelos arrepiados e barba revolta, aparecia um cavalheiro de boa presença,
com a sóbria elegância que tão bem assenta nos homens
sisudos. Essa espécie de elegância é apenas um ligeiro
perfume, e não uma incrustação como a que usam os moços
à moda.

Com seu fino tato e longa experiência, Horácio, reconhecendo
o amigo, adivinhou o segredo daquela súbita metamorfose. Ele sabia
que só há um condão capaz de produzir tais encantos:
é o olhar da mulher amada e amante.

Ame alguém e não saiba se é retribuído. Toda
sua existência se projeta nesse impulso d’alma, que se arroja para outro
ser e anseia por nele infundir-se. Vive-se fora de si mesmo, alheio a seu
próprio eu; como o peregrino perdido longe da pátria, o homem
exilado de sua pessoa erra no espaço, em demanda de um abrigo.

Desde, porém, que o homem tem certeza de ser amado, em vez de expandir-se,
recolhe-se e concentra-se para saturar-se de felicidade. Já não
se alheia e esquece de si; ao contrário, sente-se elevado acima do
que era; respeita em sua pessoa o homem amado.

Nessa ocasião é natural a cada um observar-se constantemente
e julgar de si com extrema severidade. Surgem aspirações estranhas;
o fraco lembra-se de ser um herói; o filósofo inveja a beleza
do casquilho; o espírito positivo habituado a voar terra a terra bate
o coto das asas para remontar-se ao ideal da poesia.

Não é só no homem que se opera essa metamorfose: mas
em toda a natureza. Quando se arreiam os pássaros de sua mais bela
plumagem, quando gorjeiam as melodias mais brilhantes, se não é
na quadra dos amores?

Vendo Leopoldo parado na calçada Carceler, Horácio dirigiu-se
com disfarce para aquela parte, com intenção de travar conversa
e esclarecer de todo em todo o mistério. Foi trabalho perdido; o moço
acabava de saltar em um tílburi, que rodava já pela Praça
de Pedro II.

Desapontado, voltou Horácio sobre os passos.

— Amélia o ama!… Ou pelo menos ele o acredita!

Sorriu-se o leão.

— Que fenômeno curioso produz o despeito na mulher! É uma semelhança
da luz reflexa. Irritado pela decepção, humilhado em sua vaidade,
o amor da mulher desdenhada refrange como o raio do sol repelido por corpo
brilhante e vai impregnar-se em outro homem. Ela cuida sentir por esse plastão
uma paixão ardente, que nada mais é do que o ímpeto de
seu despeito. Seria capaz de conceder a esse comparsa o que recusaria à
afeição mais terna e extremosa. O assomo do ciúme, supõe
ela ser veemência da afeição, e confunde com os extremos
de amor o delírio da vingança. Amélia está passando
por esta crise naturalmente. Leopoldo foi o plastão; ela o ama com
todo o furor do ódio que me tem.

Outro sorriso frisou o lábio do leão.

— Ela me odeia! Ora!… O ódio o que é senão a efervescência
do amor? O afeto suave e terno é como o moscatel de Setúbal
ou o vinho de Constança. O amor fero e irado é como o champanhe
que ferve e espuma.

Chegando à casa, Horácio escreveu a Amélia uma carta,
que apenas continha estas palavras:

“Deve estar satisfeita, pois me tem de novo a seus pés, e desta
vez humilde e suplicante. A melhor coroa do triunfo é o perdão.”

Saindo o leão a espairecer, dirigiu os passos para a casa do Sales;
esperava encontrar algum criado que se incumbisse de entregar a carta.

Quem sabe? Talvez nessa mesma ocasião se decidisse de sua sorte. A
moça lhe permitiria falar-lhe.

Era noite fechada; o céu, carregado de nuvens, anunciava próxima
borrasca. A frente da casa do negociante estava às escuras; contudo
quem observasse bem, perceberia a coar-se pelos interstícios das janelas
um tênue reflexo de luz interior. No portão da chácara
a meio cerrado, ninguém aparecia.

O leão penetrou no jardim. Nesse momento um carro parou à porta
da casa: três pessoas saíram dele. Em um Horácio viu,
estremecendo, roupas de sacerdote. Só então refletiu o moço
no aspecto soturno do edifício. Inquieto, sobressaltado, adiantou-se
pelo jardim na esperança de encontrar pessoa a quem interrogasse.

As janelas laterais estavam esclarecidas; e pelo jogo das sombras no quadro
iluminado, conheceu o moço que reinava no interior alguma agitação.

Que fazer? Apresentar-se na casa, depois do que passara, e antes de qualquer
explicação. não era razoável.

A dois passos ficava uma frondosa mangueira, em cujos galhos tinham fabricado
uma espécie de belveder ou caramanchão. Conduzia ao alto uma
escadinha de caracol cingindo o tronco da árvore.

Por acaso avistou o leão a mangueira, e subindo sem hesitar, achou-se
justamente fronteiro às janelas iluminadas. Em princípio a claridade
súbita ofuscou-lhe a vista, e não pôde ele distinguir
o que se passava no interior.

Mas afinal o deslumbramento dos olhos cedeu ao deslumbramento d’alma.

Ele via, e duvidava.

Um altar erguido, círios acesos, o sacerdote oficiando, Amélia
e Leopoldo de joelhos, ao lado Sales, D. Leonor, e dois amigos que serviam
de testemunhas: eis o quadro que se ofereceu aos olhos de Horácio.
Tinha visto na comédia da vida muitos lances dramáticos, mas
nenhum tão imprevisto e curioso.

A surpresa do leão provinha de um engano seu. Ele acreditava que Amélia
o tinha amado, quando a moça não sentira por ele mais do que
o desvanecimento de ver cativo de seus encantos o rei da moda, o feliz conquistador
dos salões.

Quem Amélia amou desde o princípio, foi Leopoldo. A vaidade,
o galanteio que se nutre de brilhantes futilidades, a seduziam por momentos,
e rendiam ao capricho de Horácio. Mas passado esse enlevo, sua alma
sentia a atração irresistível que a impelia para o seu
pólo.

Disso que durante dois meses passava na vida íntima da moça,
ela própria não se apercebia; foi depois da cena do baile, que
ela entrou em si, e compreendeu as sublevações recônditas
de sua alma, e o drama que aí se agitava desde muito.

Leopoldo começara a freqüentar a casa de Sales poucos dias depois
da partida de D. Clementina. As duas almas, por tanto tempo separadas, só
esperavam o momento de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra.
Às tardes, no jardim, entre cortinas de flores, elas celebravam esse
místico himeneu do amor, único eterno e indissolúvel,
porque se faz no seio do Criador.

Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que os noivos exigiram
se fizesse inteiramente à capucha, e sem prévia participação.
A razão desse empenho, só Amélia a sabia e nunca a disse.
Eram escrúpulo de seu pudor: depois do que tinha acontecido, não
queria que lhe dessem outra vez o título de noiva.

Terminada a cerimônia, e feitas as felicitações do costume,
correram os minutos em agradável conversação.

Eram onze horas, quando Leopoldo entrou no toucador em que sua noiva o esperava.
Sentada em uma conversadeira, Amélia sorriu para seu marido; porém
através das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se
o tremor involuntário que agitava seu lindo talhe.

— É meu presente! disse ela com timidez.

E apresentou ao noivo um objeto envolto em papel de seda, atado com fita
azul.

Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de cetim branco, os mesmos
que Amélia começara a bordar no dia seguinte ao baile.

O moço enleado, n&aatilde;o compreendia. Insensivelmente seu olhar
desceu à fímbria do roupão. Sobre a almofada de veludo
e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas rosadas de dois pezinhos
divinos.

Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos lábios
balbuciaram uma palavra.

— Calce!

Leopoldo ajoelhou aos pés da noiva.

O temporal, desabando nesse momento, bateu com violência nos vidros
da janela, que fechou-se.

Horácio desceu do seu observatório, e escalando a grade de
ferro do jardim, ganhou a casa, onde chegou todo alagado. Enquanto filosoficamente
esperava que seu criado lhe preparasse uma xícara de café, abriu
um livro, que acertou ser La Fontaine.

Leu ao acaso: era a fábula do leão amoroso.

— É verdade! murmurou soltando uma fumaça de charuto. O leão
deixou que lhe cerceassem as garras; foi esmagado pelA Pata da Gazela.

 

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