A Morte do Lidador

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– Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vós dai-me o meu lorigão de malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros, hole contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo entrada por terras da frontaria dos mouros. Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e por seu valor indomável, chamavam Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz, e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara fronteiro da cidade de Beja, de pouco tempo conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com êle, e outro muiots cavaleiros afamados, entre os quais D. Ligel de Flandres e Mem Moniz – que a festa de vossos anos, Senhor Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro que de capitão encanecido e prudente. Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper d’alva, que o famose Almoleimar correr por êstes arredores com dez vêzes mais lanças do que tôdas as que estão encostadas nos lanceiros desta sala de armas. – Voto a Cristo – atalhou o Lidador – que não cria em que o senhor rei me houvesse pôsto nesta tôrre de Beja para estar assentado à lareira da chaminé, como velha dona, a espreitar de quando em quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã, para lhes cerrar as portas e ladrar-lhes do cimo da tôrre da menagem, como usam os vilãos. Quem achar que são duros de mais os arneses dos infiéis pode ficar-se aqui. – Bem dito! Bem dito! – exclamarem, dando grandes risadas, os cavaleiros mancebos. – Por minha boa espada! – gritou Men Moniz, atirando o guante ferrado às lájeas do pavimento – que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez léguas em redor lide com mouros. Senhor Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso ginete, e veremos qual das nossas lanças bate primeior em adarga mourisca. – A cavalo! A cavalo! – gritou outra vez a chusma, com grande alarido.

Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros descendo os degraus de mármore da tôrre de Beja e, passados alguns instantes, soava só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das fortificações exteriores que davam para a banda da campanha por onde costumava aparecer a mourisma.

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Era um dia do mês de julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cêrca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e tôrres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que avizinhavam o têso sôbre que a povoação está assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham sido êsses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no mês de julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sôbre a mão do ceifeiro: chôro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz hateava-se outra vez sôbre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por Deus. Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d’África e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: – “é nossa a terra de Espanha”. – O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em alcantis de ontanhas, em campos de batalha, nos portais e tôrres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a mão da Providência – “assim para todo o sempre!” Nesta luta de vinte gera;’oes andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de lá esperava êle salvação ou, ao emnos, vengança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açôres bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas, embora as aves de rapina tivessem, também, abundante ceva de cadáveres de seus irmãos! E êste ameno dia de julho devia ser um dêsses dias por que suspirava o servo ismaelita. Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros das serras remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites de seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das fôlhas sêcas, e o tinir a espaços de alfange batendo em ferro de caneleira ou de coxote. Ao romper d’alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas calcadas davem rebate de que por aquêles sítios tinham vagueados almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de modôrra, as habitações dos pastôres além das encostas do Atlas. No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fôra pregada a mão em um grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana. Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea sôlta pelas campinas de Beja; trinta, não mais, eram êles; mas orçavam por trezentos os homens d’armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sôbre o peitoral da cota d’armas, e o terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervillheiras, as côres variegadas das cotas, e as ondas de pó que se alevantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se alevanta o bulcão de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de verão. Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horizonte não se vêem senão os topos pardoazulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe sôbre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros; aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas se ouvem o trote campassado dos ginetes e o grito monótono da cigarra, pousada nos raminhos da giesteira. A terra que pisam é já dos mouros; é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portuguêses soubessem olhar para trás, indo em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Beja. Bastos pinhais começavam já a cobrir mais crêspo território, cujos outirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as rêdes de ferro acaireladas d’ouro que so defendiam. A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário repousar, que o sol ia no zênite e abrasava a terra; descavalgaram todos à sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho. Tinha passado meia hora: por mandado do velho fronteiro de Beja um almogávar montou a cavalo e aproximou-se à rédea sôlta de uma selva extensa que corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma frecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e êle, erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu desenfreado através das veigas e desapareceu na selva. O almogávar dormia o último sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar eterno. – A cavalo! A cavalo! – bradou a uma voz tôda a lustrosa companhia do Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates. Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do pinhal da direita. – “Alá! Almoleimar!” – era o que dizia a grita. Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros árabes saíram à rédea sôlta de trás da escura selva que os encobria: o seu número excedia em conco vêzes o dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças dêstes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a fôrça da raça gótico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes.

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Como longa fita de muitas côres, recamada de fios d’ouro e refletindo mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo. Defronte dêles, os trinta cavaleiros portuguêses, com trezentos homens d’armas, pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças em riste, esperavam o brado de acometer. Quem visse aquêle punhado de cristãos, diante da cópia d’infiéis que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a desesperado transe. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças portuguêses e a rijeza dos braços que as meneavam. De um contra dez devia ser o iminente combte; mas, se havia aí algum coração que batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era entre os companheiros do Lidador, que tal coração batia ou que tais faces descoravam. Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embbido debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a fôlha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá soara em um só grito por tôda a fileira mourisca. Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouçadas por violento terremoto, desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra, do que êste recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio nos escudos, tiravam dêles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as armas e trapassou o peito com o ferro de sua grossa lança. Deixando-a depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto dêle estava: – Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto a seteira por onde eu, velha dona assentada à lareira, costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar, como alcatéia de vilãos, do cimo da tôrre de menagem. O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as últimas palavras, êle topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores haviam-se feito pedaços, e o alfanje do mouro cruzoulhe com a toledana do fronteiro de Beja. Como duas tôrres de sete séculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dois capitães inimigos estavam um defronte do outro, firmes em seus possantes cavalos: as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de os afrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colérico e impetuoso. Cerrando os dentes com fôrça, descarregou um golpe tremendo sôbre o seu adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo coxote do mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação dos dois cavaleiros inimigos. – Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o metal do meu arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios dêste alfanje. Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale penedo desconforme desprendido do píncaro da montanha. O fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes: a espada ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse prêsa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu um bom pedaço pela campanha, a todo o galope.

Mas o Lidador tornou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que seu senhor não morrera. À rédea sôlta, lá volta o fronteiro de Beja; escorrelhe o sangue, envolto em escuma, pelos cantos da bôca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar! Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por entre os cristãos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leão e o tigre, correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o dangue, saindo às golfadas, cortou a última maldição do agareno. Mas a espada dêste também não errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do lorigão, penetrara na carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue gôdo misturado com sangue árabe. – Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira. E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas voou a socorrê-lo; mas o último golpe d’Almoleimar fôra o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envôltas nas malhas descosidas do lorigão.

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Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia tinham praticado maravilhosas façanhas. Mas, entre todos, tornava-se notável o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto de pó, suor e sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de muitos tiros de frechas lançadas. De roda dêle não se viam senão cadáveres e membros destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes. Como um promontório de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e sabranceiro n meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham desfazer-se contra o terrível montante do filho de Egas Moniz. Quando o fronteiro caiu, o grosso dos mouros fugia já para além do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu moribendo. O Lidador êsse tinha sido pôsto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças de árvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo trouxera, o haviam transportado para a saga da cavalgada. O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga ensangüentada. Se os mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitória não saíra barata aos portuguêses. Viam perigosamente ferido o seu velho capitão, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens de armas, escudeiros e pajens. Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de pó, que voava rápida para o lugar da peleja. Mais perto, aquêle turbilhão rareou vomitando do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam deram volta e gritaram: A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta! Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que estava com seu exército sôbre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.

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Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em número e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem, que estava ao pé das andas, que nova revolta era aquela. – Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão – respondeu tristemente o pajem. – A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavaleiros parece recuarem já. O Lidador cerrou os dentes com fôrça e levou a mão à cinta. Buscava a sua boa toledana. – Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada? – Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado de fôrças!… – Silêncio! A espada, e um bom ginete. O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que andavam já sem dono. Quando voltou com êle, o Lidador, pálido e coberto de sangue, estava em pé e dizia, falando consigo: – Por Santiago que não morrerei como vilão da beetria onde entrou cavalgada de mouros! E o pajem ajudou-o a montar o cavalo. Ei-lo o velho fronteiro de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o braço e o ombro esquerdo levava a própria morte; nos fios da espada, que a mão direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos outros!

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Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador. Os cristãos afrouxavam diante daquela multidão de infiéis, entre os quais mal se enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portuguêses. Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos turvados de cólera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o pêso da batalha. Eram êstes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro assim os viu oferecidos a certa morte algumas lágrimas lhe caíram pelas faces e, esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mãos, faziam larga praça no meio dos inimigos. – Bem-vindo, Gonçalo Mendes! – disse Mem Moniz. – Quiseste assistir conosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feiot, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado lá na saga, enquanto eu, velha dona, espreito os mouros com meu sobrinho junto desta lareira… – Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de Riba-Douro, – respondeu o Lidador em voz sumida- que não perdoais uma palavra sem malícia. Lembrate, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do justo juiz. Velho sois; bem o mostrais! – acudiu o Espadeiro. – Não cureis de vãs porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam chegar-se a nós. Avante, e Santiago! – Avante, e Santiago! – responderam Gonçalo Mendes e Mam Moniz: e os três cavaleiros deram rijamente nos mouros.

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Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de julho de 1170 se deram na veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas; porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos por nossos ânimos e fôrças, a fôrça e o ânimo dos bons cavaleiros portuguêses do sécuo XII; e todavia, êsses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto cristãs como agarenas. Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara pela última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro árabe. O violento abalo que experimentou lhe fêz rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues de Baião, que com êles se ajuntara. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!

Já a êste tempo cristãos e mouros se haviam descido dos cavalos e pelejavam a pé. Traziam-se assim à vontade, e recrescia a crueza da batalha. Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão, e não houve ali olhos que ficasem enxutos. O despeito do próprio Mem Moniz deu lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços: – Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não tardará que te sigamos; mas ao menso, nem tu, nem nós ficaremos sem vingança! – Vingança! – bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha em céu proceloso. Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do morrião.

9

Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vêzes um vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo. Rápido, como um pensamento criminoso em alma honesta, êle chegou das nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu nome. Se encontrou na passagem ângulo de tôrre secular, o mármore converte-se em pó; se atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a fôlha mais virente e frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo, mão de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e, todavia, não é um ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa, como a maldição de Deus. Depois, debaixo dela, o chão achata-se e a terra espadana aos ares; e, como agitada, despedaçada por cem mil demônios, aquela máquina do inferno estoura, e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil mortes que se derramam ao longe.

Então faz-se um grande silêncio vêem-se corpos destroncados, poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos e o estertor dos moribundos. Tal desceu o montante do Espadeiro, rôto dos milhares de golpes que o cavaleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaços pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel, abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu. – Lidador! Lidador! – disse Lourenço Viegas, com voz comprimida. As lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais nada. Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os portuguêses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens d’armas: mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo, de envôlta com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida. Os portuguêses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e rôtas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja. Após aquêle tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fôra na cavalgada com a espada cheia de sangue metida na bainha, salmodeava em voz baixa aquelas palavras do livro da Sabedoria: “Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum mortis”.

FIM

Fonte: virtualbooks.terra.com.br

 

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