A Morgadinha dos Canaviais: Crônicas da Aldeia

Júlio Dinis

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AO cair de uma tarde de Dezembro, de sincero e genuíno Dezembro,
chuvoso, frio, açoutado do Sul e sem contrafeitos sorrisos
de Primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte
por a estreita e sinuosa vereda, que pretensiosamente gozava das
honras de estrada, à falta de competidora, em que melhor coubessem.

Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima
província começa já a ressentir-se, senão ainda nos vales e planuras,
nos visos dos outeiros pelo menos, da vizinhança de sua irmã, a alpestre
e severa Trás-os-Montes.

O sítio, naquele ponto, tinha o aspecto solitário, melancólico, e,
nessa tarde, quase sinistro. Dali a qualquer povoação importante, e com
nome em carta corogràfica, estendiam-se milhas de pouco transitáveis
caminhos. Vestígios de existência humana raro se encontravam. Só
de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador,
mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a
absoluta solidão.

Nao se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes,
que dissemos,
Um, o mais moço e pela aparência o de mais grada posição social,
era transportado num pouco escultural, mas possante muar, de inquietas
orelhas, músculos de mármore e articulações fiéis ; o outro seguia
a pé, ao lado dele, competindo, nas grandes passadas que devoravam
o caminho, com a quadrupedante alimária, cujos brios, além disso,
excitava por estímulos menos brandos do que os da simples e nobre
emulação.

Contra o que seria plausível esperar deste desigual processo
de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras
e fadigas da jornada não se pode dizer que fosse o cavaleiro.

A postura de abatimento que lhe tomara o corpo, o olhar melancólico,
fito nas orelhas do macho, a indiferença, a taciturnidade ou o
manifesto mau humor, que nem as belezas e acidentes da paisagem
natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silêncio que apenas
de quando em quando interrompia com uma frase curta mas enérgica,
com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam
com a viveza de gestos e desempenado jogo de membros do pedestre,
com a sua torrencial verbosidade, a que não opunha diques, e com
as joviais cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por
meio das quais se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir
o seu sorumbático companheiro.

Explica-se bem esta diferença, dizendo que o cavaleiro era um
elegante rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o
outro um almocreve de profissão.

O leitor provavelmente há-de ter jornadeado alguma vez; sabe
portanto que o grato e quase voluptuoso alvoroço, com que se concebe
e planiza qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação
que dela guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito
maiores delícias, do que as impressões experimentadas no próprio
momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando
nas estalagens, e mormente nas clássicas estalagens das nossas províncias.

As pequenas impertinencias, em que se não pensa antes, que
se esquecem depois, ou que a saudade consegue dourar até e poetizar
a seu modo; esses microscópicos martírios, que de longe não avultam,
actuam-nos, na ocasião, a ponto de nos inabilitar para o gozo do
que é realmente belo. A dureza do colchão, em que se dorme, do
albardão ou selim sobre que se monta, o tempero ou destempero
do heteróclita cozinhado com que se enche o estômago, a lama que
nos incrusta até os cabelos, o pó que se nos insinua até os pulmões,
o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cérebro,
tudo então nos desafina o espírito, que trazíamos na tensão necessária
para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte.

Só pelo preço de muitas jornadas se compra o hábito de ficar
impassível no meio dos episódios destas pequenas odisséias, que atormentam
e exaurem o ânimo dos Ulisses novatos ; mas ai, quando se
adquire esse hábito, também nos achamos já com a sensibilidade mais
embotada para as comoções do belo.

Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos entusiasmo ;
analisa-se mais e melhor; porém a própria análise é a prova de que
se sente menos. Onde domina o sentimento e a imaginação, mal têm
cabida a paciência e fleuma, necessárias aos processos analíticos.

O homem positivo e frio recolhe de qualquer excursão à pátria com
a carteira cheia de apontamentos; o entusiasta e poeta nem uma data
regista. Viu menos, sentiu mais.

Mas Henrique de Souselas — que era este o nome do cavaleiro —
fora educado e passado da infância à plena juventude, em Lisboa, levan-
A MORGADINHA DOS CANAVIAIS
tando-se por avançada manhã, frequentando o teatro, o Grêmio, as
câmaras, parolando no Chiado ou no Rossio, e indo alguns dias no ano
a Sintra, ou qualquer praia de banhos, desenfadar-se da monotonia
da capital.

Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão, fora esta
ornada, em que o encontrámos, a primeira levada a efeito, e logo sob
ão maus ausoícios, que era para sufocar-lhe à nascença os instintos
de turista, se porventura quisessem despertar nele.

Havia dois dias que cavalgava aquele rocinante, único veículo
acomodado aos caminhos por que passara. E então que dois dias !
Daqueles, durante os quais o céu, uniformemente pardo, parece desfazer-
se em água, e a chuva cai sem interrupção e com uma teimosia
e constância impacientadoras ; daqueles em que a terra saciada rejeita
já a água que recebe, a qual escorre nos declives, trasborda dos algares,
e encharca-se nos terrenos baixos, transformando em brejos as
lezírias ; em que as lufadas do sui vergam e torcem os ramos, melancólicamente
despidos, dos álamos e sobreiros, e emprestam aos pinheirais
a voz dos mares ; em que os campos se mostram desertos, a noite
se antecipa, e tão densas nuvens cobrem o firmamento, que parece
tomar-nos a persuasão de que nunca mais o veremos com as suas formosas
vestes de azul.

Vejam se, nestas circunstâncias, o pobre rapaz podia deixar de
ir cabisbaixo, triste e dando ao Diabo a viagem que cometera.

E para quê e porquê a cometera ele assim?
Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interrogação,
que é de supor nos dirigissem os leitores, se pudessem fazê-lo.

Este Henrique de Souselas atingira a idade dos vinte e sete anos,
vivendo, como dissemos, aquela enlanguescedora vida da capital,
e dividindo as atenções do espírito pela política, pela literatura e pelos
destinos do teatro de São Carlos, do qual estava habilitado a fazer circunstanciada
crónica, que abrangesse os últimos dez anos.

Não concebia vida fora daquilo.

O mundo para ele era Lisboa. Não sentia desejos, nem imaginava
possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a província ; o que
seria maior façanha.

Não que lhe faltassem recursos para realizar qualquer projecto
desta natureza.

Henrique herdara dos pais rendimentos bastantes, dos quais vivia
folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia.

Mas a indolência lisbonense manietava-o ali. A poucos ia tão direita
a apostrofe de Garrett aos seus «queridos alfacinhas», a qual se pode
1er no livro sétimo das «Viagens».

De certo tempo em diante começou, porém, a incomodá-lo uma
espécie de vácuo interior, um mal-estar, doença infalível nos celibatários
sem família, quando chegam à idade a que chegou Henrique,
s passam a vida como ele.

Tudo lhe causava fastio. Bocejava em São Carlos, bocejava nas
câmaras, bocejava no Grêmio, bocejava no Suíço, no Chiado e nos
círculos dos seus amigos, os quais principiaram também a achá-lo
insuportável de insipidez; porque poucas coisas há que mais perturbem
o espírito, do que o espectáculo de um homem que boceja ou
dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se.

O demônio da hipocondría, esse demônio negro e lùgubre, implacável
verdugo dos ociosos e egoístas, o qual havia muito o espiava,
apoderou-se dele em corpo e alma.

Aí temos, desde esse instante, Henrique muito preocupado com
a sua pessoa, imaginando-se vítima de mil e uma moléstias, as mais
disparatadas e incompatíveis, suspeitando-se conjuntamente predestinado
para a apoplexia e para a tísica, para o cancro e para a alienação,
para a cegueira e para os aneurismas, tremendo à leitura do obituàrio
da semana, folheando livros de medicina, construindo teorias fisiológicas,
consultando todos os médicos da capital, experimentando todo
o arsenal farmacêutico e todos os anúncios, em parangona, da quarta
página dos periódicos, e elevando as crenças do seu espírito amedrontado
até às misteriosas e nevoentas alturas do credo homeopático !
Ao mesmo tempo manifestou-se nele uma progressiva degeneração
de gosto ; não podia 1er uma página dos livros que lhe eram predilectos
; desfazia-se sem desgosto de quadros, móveis, estátuas e objectos
curiosos que coleccionara com paixão ; detestava a música, o teatro,
numa palavra, tornara-se um dos maiores flagelos que podem pesar
sobre a humanidade e que muito em especial causam o suplício dos
médicos que os aturam.

Foram estes os que, em parte de boa fé, em parte com o desculpável
intuito de sacudirem de si tal pesadelo, lhe deram um dia de
conselho que fosse viajar.

Henrique de Souselas julgou ouvir uma heresia nesta palavra :
viajar.

Viajar? E os seus aneurismas? E as suas iminências apoplécticas?
E as suas disposições para tantas outras enfermidades ? Pois um homem
pode lá viajar com esta bagagem patológica?
E se lhe desse alguma coisa pelo caminho? Recusou com mau
humor a receita, e ficou na capital.

Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as consultas, e os
médicos, como se para isso apostados, a insistirem em que saísse de
Lisboa.

— O senhor não tem nada — diziam alguns.

Henrique perdia a cabeça, ao ouvir isto.

Prolongou-se este estado de coisas, até que um dia o hipocondríaco
rapaz persuadiu-se muito sèriamente de que estava chegada a sua
hora extrema..

Um médico velho e grave, que por essa ocasião o escutou, em vez
de se rir dele, disse-lhe, muito sisudo:
— Homem ! O senhor está realmente mal. Esse estado de imaginação
não pode prolongar-se mais tempo, sem romper por aí em alguma
doença que o sacrifique. Se quiser salvar-se, saia-me daqui, enquanto
é tempo. Quebre por todos os hábitos, e escolha entre as fortes impressões
de uma grande capital, como Paris ou Londres, ou as mornas sensações
de um completo viver de aldeia. Os revulsivos e os emolientes
curam por meios opostos às vezes as mesmas moléstias.

Ora sucedeu que nesse mesmo dia recebesse Henrique um presente
de fruta de uma sua tia, santa criatura que ele, desde criança, não
ornara a ver.

Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade
de cinco anos Henrique passara alguns meses na companhia de
sua mãe.

Aquela presente frugal recordara-lhe esse tempo, já meio apagado
na memória, e conseguira fazer-lhe saudades. Daí uns vagos
desejos de voltar a ver aqueles sítios.

Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique nomeou-lhe
a aldeia, em que esta sua parents vivia.

O velho facultativo aplaudiu a idéia e instou para que fosse
abraçada.

O sobrinho escreveu então à tia, e, passados dias, punha-se a
caminho.

Mil vezes se arrependeu, depois da resolução tomada ; mil vezes
mandou ao Diabo o conselho do médico e fantasiou horríveis exacerbases
em todos os seus males. Os inconvenientes de uma jornada, feita
ainda segundo os velhos processos, com malas, coldres e pistolas,
cotas de montar e almocreve, ampliava-lhos a proporções estupendas,
o prisma da hipocondría.

No momento em que nos associamos ao cavaleiro, caíra ele num
desalento profundo, num quase convencimento de próxima aniquilação,
do qual nem a loquacidade do almocreve, condimentada, como
era, de pragas eloqüentes e de cantigas pouco edificantes, o conseguiu
arrancar.

Havia mais de uma hora que estavam lutando com as dificuldades
da ascensão do íngreme e escabroso caminho, que torneava o monte
como as voltas de uma hélice.

Era este monte uma como irregular pirâmide, levantada no meio
da amplíssima bacia, onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava
; por isso o estafado rapaz não podia atinar a razão de conveniência
pela qual, tendo de procurar o vale, assim porfiavam em descrever
as fastidiosas curvas da quase interminável espiral, que os aproximava
do vértice.

Não se concebe uma estrada menos lógica do que aquela.

No nosso país são porém freqüentes estas faltas de lógica nas
estradas.

O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com
o fim de encurtar distâncias, seguindo por um atalho só franqueável
a gente de pé.

Henrique nem desviara os olhos ptra o fundo vale, que se abria
à esquerda, velado pela densa névoa daquela atmosfera saturada de
humidade, nem prestava atenção à agreste e selvática paisagem, do
lado direito, toda encrespada de pinheirais nascentes e de espinhosas
tojeiras.

Os olhos procuravam, em ansiosa interrogação, o mais alto da
flexuosa ladeira que subia, no sítio em que ela, formando um cotovelo,
furtava à vista o seguimento ulterior.

Nestas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante,
cansado e aborrecido, que pela primeira vez as trilha, uma prometedora
esperança.

— Dali verei talvez o termo do caminho — pensava ele.

Mas quantas vezes, ao aproximar-se, esta esperança lhe foge !
Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar à almejada inflexão
e quando esperava principiar enfim a descer para o vale e aproximar-
se da aldeia, viu que o macho, prático no caminho, e à disposição
de cujo instinto ele colocara a razão, dobrava ainda para a direita e
continuava a contornar e a subir o monte. A espiral não terminara
ainda. Henrique olhou em torno de si, profundou a vista nas sombras
do vale, nada pôde descobrir, que lhe prometesse a aldeia procurada.

Muita árvore, povoação nenhuma. Teve um paroxismo de impaciência.

— Isto não é estrada ! — exclamou ele, exasperado. — São os nove
círculos do Inferno de Dante virados para fora.

E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a aumentar, a calar
através do grosso gabão de jornada que Henrique vestia ! O desgraçado
vergava sob o peso da sua consternação.

Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando com fleuma
desesperadora.

— com um milhão de demônios ! — bradou-lhe Henrique, não
podendo conter-se. — Essa maldita terra foge diante de nós, homem !
— Estamos quase lá, meu patrão. É ali logo adiante — respondeu
o almocreve, sem se alterar. Vê aquela capelinha branca em cima
daquele monte? pois fica já para além da povoação. E a ermida da
Senhora da Saúde. É um instante.

— Desde as duas horas da tarde que me dizes que é um instante,
e eu estou acreditando que cada vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia
fica ali em baixo, para que diabo subimos nós? Ãs voltas que temos
dado, estou persuadido de que vamos tão adiantados como quando
principiamos a subir.

— Pois olha que dúvida ! Se se fosse a direito lá por baixo, era
mais perto, mas…

— Mas foi então pelo prazer de trepar, que me trouxests
por aqui?
— Não é isso, patrão ; mas bem vê V. S." que o caminho lá por
baixo é todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar tais voltas,
que afinal fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá
idéia de como estão os riachos por lá! Só o esteiro do almargeal e
para uma pessoa se afogar. Mas tenha o patrão paciência, que pouco
;alta agora. Vê V. S.’ aquele tronco de sobreiro que parece, visto daqui,
um frade de "capuz?
— É ali?
— Não, senhor — disse o homem rindo ; — mas vêem-se daquele
sítio as primeiras casas da aldeia.

— As primeiras ! — murmurou Henrique em tom lastimoso ; e penderam-
lhe os braços com mais desalento e aumentou-se-lhe a flexão
da coluna vertebral.

O almocreve prosseguiu, para o distrair :
— Tenho passado por estes sítios muita vez com neve de se cortar
à faca e de noite. E olhe que nunca tive medo. Qual história ! Medo !
Isso sim ! E vamos lá ! o sítio não é dos mais seguros. Vê o senhor essa
cruz preta, aí à sua mão direita, pregada no tronco desse pinheiro?
Pois aí mesmo mataram um homem, que vinha com uns centos de mil-
-réis da Feira Franca de Viseu, fez pelo S. Miguel um ano. E ainda hoje
se está para saber quem foi. Num ermo destes só os santos podem valer
a uma criatura.

Henrique sentiu-se pouco à vontade com as elucidações do cicerone
; olhou para ele com desconfiança e quase julgou ver moverem-se
sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres
os cabos das pistolas, e aproximou as esporas dos ilhais da cavalgadura.

Dentro em pouco atingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto
do qual deviam avistar a aldeia.

Henrique olhou ; viu lá no fundo do vale muitas árvores, mas continuou
a não enxergar vestígios de casas.

— Onde está a aldeia que dizias, homem?
— Daí já se vê — disse o almocreve, correndo para alcançar o
cavaleiro.—Não vê V. S.*. além. além, aqueles pinheirais mansos?
— Vejo, sim.

— Pois já são da freguesia. Se fosse mais claro havia de avistar
a casa do guarda. É a tapada dos Bajuncos, que pertence à morgadinha
dos Canaviais.

Henrique não respondeu. A distância a que ficava ainda a tal
tapada fê-lo suspirar.

Enfim, passados minutos, principiaram a descer para o vale, costeando
sempre obliquamente o monte.

Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno
ponto branco, que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo,
mas já indistintamente, em virtude do adiantado da hora e da intensidade
da neblina.

— Lá está a capela da freguesia — dizia o homem.

— Ali ? E um século para lá chegar !
— Qual ! Estamos aqui, estamos lá. Eh, ruço !
E aplicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que acelerou
o passo.

O homem continuou :
— Até se fosse mais dia podia-se ver daqui a pedra, que está no
cemitério, e que é da família da morgadinha dos Canaviais. Foi a mãe
dela a primeira pessoa que lá se enterrou, e até hoje mais ninguém.

O povo, como o outro que diz, tem sua aquela em se enterrar fora da
igreja. Ele, a falar a verdade… Eu bem sei que tudo vai do costume…

mas enfim a gente foi criada nisto… Mas a pedra é coisa asseada.

É como as que estão na cidade.

Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, já nem atendia
ao que o homem ia dizendo.

Cerrara-se a noite de todo, quando atingiram enfim o vale. O terreno
mudava agora de aspecto. Apareciam já, aqui e ali, alguns indicios
de cultura, anunciando a proximidade de um povoado. Os caminhos
estreitavam, internando-se no vale, e seguiam tortuosamente por
entre muros toscos de pedra ensossa, silvados e sebes naturais. A chuva,
que não cessara de cair, transformara estes caminhos, onde o declive
não dava escoamento às águas, em charcos e tremedais.

Novos indícios da vizinhança da aldeia iam sucessivamente aparecendo.

Aqui era uma manada de bois soltos, em direcção do curral,
guiados por uma criança de palhoça e pernas nuas, os quais paravam
a olhar com aquela expressão de composta curiosidade, que lhes é
peculiar, para o recém-chegado visitante da aldeia. Não faltou receio a
Henrique, que supôs a estes bonacheirões quadrúpedes a índole travessa
e bravia dos touros, a cuja chegada tantas vêzes fora assistir em
Lisboa.

Mais adiante passava por eles uma fileira de carros a vergarem
sob o peso do mato e atroando os ares com o chiar incômodo das rodas
sob o eixo, incomodo para os ouvidos cidadãos de Henrique, cujos nervos
se irritavam com ele, mas aparentemente agradabilíssimo para os
condutores aldeãos, que ou dormiam ou cantavam com aquele acompanhamento.

Num e noutro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de tectos
de colmo, de cujas inúmeras fendas saía um fumo espesso, que a atmosfera
húmida mal deixava elevar nos ares. No olfacto desabituado de
Henrique de Souselas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas
secas dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensações muito
longe de serem agradáveis.

Aumentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe
tomara o ânimo.

— Tantas fadigas para este resultado ! — pensava ele. — Sair de
Lisboa para me enterrar nesta aldeia escura e suja! Enganou-se o
parvo do doutor. Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro por
certo aqui. Deus lhe perdoe o homicídio.

Os caminhos sucediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e
incómodo de trilhar ; as curvas complicavam-se como as ruas de um
labirinto. Aqui subiam ; desciam mais além, para subir outra vez. umas
vezes caminhavam em terreno descoberto, outras penetravam em tão
estreitas quelhas, apertadas entre paredes argilosas e húmidas e toldadas
de ramos entrelaçados, que só o instinto do animal podia evitar-lhes
cs perigos. Ora soavam as patas do macho como em chão lajeado, ora
amortecia-lhes o som um terreno, que a chuva encharcava, e a água
amacenta vinha salpicar o rosto do cavaleiro.

As casas eram já freqüentes, e algumas de menos humilde apaência.

Os cães, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam
raivosos por dentro dos portões ou de sobre os muros das quintas,
ao ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve,
que falava ou cantava sempre.

Outras vezes era um inarmónico grunhir suíno que acusava a
vizinhança das cortes ou, partindo de um casebre rústico, o chorar de
crianças, entremeado com os ralhos das mães e com as pragas dos
chefes de família.

O almocreve não desistira das suas funções de cicerone, que
somente interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta
passavam.

— Estes campos e lameiros — ia dizendo — são da morgadinha
dos Canaviais ; andam arrendados a um compadre meu.

E exclamava para dentro de uma casa térrea, escassamente alumiada
por uma candeia:
— Boas noites, tia Escolástica. como vai a pequenada?
— Ai, é vossemecê, Sr. José? Então não entra? — respondia-lhe
uma voz feminina.

— Agora, não, amanhã.

E prosseguiu para Henrique :
— É uma santa criatura. A moraadinha…

Henrique interrompeu-o :
— Onde fica, afinal, a quinta de Alvapenha? Onde mora minha
ia? Não me dirás?
— É logo aí adiante, meu patrão. Em nós passando umas casas
amarelas que há aí… é logo ao pé. Essas casas que digo são também
da morgadinha, mas há uma demanda pelos modos.

O almocreve falava pela décima ou undécima vez na morgadinha.

Até esta periódica referência a uma personagem que ele não conhecia,
impacientava Henrique de Souselas.

E continuavam a suceder-se em enredado dédalo as quelhas e
azinhagas, a ponto de fazer perder tôda a orientação. umas vezes
ouviam o ruído das levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado ;
adiante, transpunham uma ponte rústica, escutando das profundezas
do despenhadeiro, que ela atravessava, o fragor das cascatas nos açudes
ou o ranger das rodas dos moinhos.

Henrique a cada momento imaginava cair num abismo.

— São os açudes do Casal — dizia o almocreve, berrando para
se fazer ouvir através do estrondo da torrente. — Pertencem à morgadinha
dos Canaviais.

Henrique nem alento já tinha para falar.

Ao triste e quase sinistro aspecto daquela aldeia, tão cerrada lhe
envolveu o coração a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistência
ao crescente torpor gue o invadia, como o que desespera da vida e da
salvação.

Mais adiante, excitou-lhe ainda as atenções uma toada piangente,
melancólica, monótona, que exacerbou estes efeitos.

— É uma fiada em casa do Tapadas — disse o almocreve. —
E um dos maiores amigos do pai da morgadinha. Vê aquele muro
acolá ?
— Eu não vejo nada. Deixa-me !
— Pois pertence já à quinta dos Canaviais, que a morgadinha…

— Outra vez ! Cala-te para aí com essa morgadinha ! — exclamou
Henrique.

Era evidente enfim que estavam em pleno coração do povoado.

As casas apareciam mais juntas. De algumas saía um surdo rumor de
vozes que tinha o que quer que era de lugubre. Era a coroa rezada
em família a Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com
a voz quebrada e trémula do avô, com a voz sonora e fresca da mãe,
e a juvenil das raparigas e crianças naquele piedoso coro, produzindo
um efeito que acabou por levar ao auge a impaciência do nosso esplenético
viajante.

— Sumiu-se essa endiabrada cruinta de Alvapenha, que não a
acabamos de atingir?
O almocreve desta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada
sibilante junto às orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou
uma ladeira orlada de árvores, volveu à direita e, à voz do almocreve,
estacou em frente de um Dortão de ouinta resguardado por um telheiro
rústico.

— É aqui — disse o guia.

— Até que enfim ! — exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de
conforto e de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem cansado da
vida, quando antevê o repouso do túmulo. Em Henrique era íntima
a convicção de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de
cemitério.

II
almocreve assentou duas vigorosas pancadas no sólido portão
de castanho, diante do qual tinham parado.

As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois
cães, que acudiram de longe ao sinal e vieram ladrar à porta com
furia, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção
que o esperava. De facto as intenções dos quadrúpedes não pareciam
demasiado hospitaleiras. O almocreve divertia-se excitando-os de fora
com uma vara de vime, apesar de quantas recomendações de prudência
lhe fazia Henrique, não em demasia sossegado.

Afinal ouviu-se uma voz áspera e rouca, chamando os cães à
ordem, se é lícito, sem irreverência, empregar neste caso a frase consagrada
para outro género de algazarra.

Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a
aldraba, gemerem os gonzos, e enfim um homem de lavoura alto e
magro, trazendo em punho um lampião de frouxíssima luz, apareceu-
-lhes à porta e saudou-os com a fórmula do estilo :
— Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.

E, levantando a luz à altura do rosto de Henrique, pôs-se a mirá-lo
com a menos cerimoniosa curiosidade.

— É o sobrinho cá da senhora, não é verdade ?
— Sou eu mesmo.

— Está um tempo muito azedo. Eu já julgava que não vinham.

Entre.

Henrique não se resolvia a aceitar o convite, porque lhe continuavam
a impor respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois
façanhosos quadrúpedes, cuja má vontade era a custo refreada.

— Entre, entre — insistia o homem.

— Mas esses animalejos?…

— Ah ! isto não faz mal. Sai-te para lá, Lobo ; passa, Tirano !
Lobo ! Tirano ! Que nomes ! E dizia o homem que não faziam mal !
— Com os diabos! ti’Manel — disse o almocreve — em ocasião de
e esperarem hóspedes, nã~ se soltam assim os cães. Os diabos não
são nenhuns cordeiros. Olhe no outro dia o Sr. Joãozinho das Perdizes,
que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.

— Forte perca ! — resmoneou o outro. — Não trouxesse cá os
ele. Não tem dúvida; entre o senhor, que eles não lhe fazem mal.

— Não entro; assim é que não entro — teimou Henrique, aquém
as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.

O homem em vista disto encolheu os ombros e bradou :
— O Luis !
Uma criança de cinco anos, e quase nua, correu ao chamamento.

— Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem medo.

A criança, à palavra medo, fitou Henrique com uns olhos espan
tados, e tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapig,
dadamente nas feras, que, com todos os sinais de respeito, de orelha
baixa e cauda abatida, fugiram diante dela.

O orgulho de Henrique de Souselas ficou um tanto maltratado
com o desfecho da cena; mas a prudência consolava-o, dizendo-lhe que
andara ajuizadamente.

— Agora vossemecê — disse o camponês para o almocreve
arranje-se como puder e mais a besta aí pelas lojas, enquanto eu ensino
o caminho ao senhor.

— Vão, vão com Nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito
boas noites, Sr. Henriquinho.

— Adeus, José — disse Henrique, passando para a mão do guia
a espórtula da gorjeta, e após seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar,
o homem do lampião.

Nao era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espirito
de Henrique, o aspecto que lhe oferecia, àquela hora da noite, a
parte da quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha,
Primeiro, trilhou o pavimento mole de um quinteiro ou eido, estradado
de altas camadas de mato e embebido de chuva, de onde se exalava
um cheiro de curtumes, pouco de lisonjear a olfacto mal habituado
a estes aromas campesinos. A luz do lampião a custo conseguiu evitar
a Henrique o tropeçar num carro desaparelhado, numa dorna, numa pia
para galinhas, e em outros objectos que atrancavam o quinteiro. Transpondo
a cancela que terminava este, seguiram por uma rua de folhas ;
atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia ; ladearam
a eira e a casa do cabañal, e, efectuados mais alguns rodeios, acharam-
se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia para
uma espécie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de um
modesto pórtico à casa de Alvapenha.

A propriedade da tia de Henrique era um genuíno tipo de casa
rústica, à moda do Minho.

Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objectos
à escassa luz que os alumiava, recebeu Henrique a primeira impressão
agradável de tôda aquela mal estreada excursão.

Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram
nele memórias, quase apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter
brincado ali, a cavalo nesse mesmo parapeito, então, como agora, enfeitado
de uma formidável coorte de abóboras meninas, vítimas votadas
às festas do próximo Natai.

A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso
de louça, que ele, havia vinte e tantos anos, conhecera, e ao qual tinha
a idéia vaga de haver quebrado uma asa ; abaixou-se no intento de se
certificar, e viu que de facto ainda lhe faltava a asa, sendo este o único
estrago que após tanto tempo o velho utensílio sofrerá.

— É admirável ! — não pôde deixar de exclamar Henrique ao
fazer a descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma
nos seus aposentos em Lisboa, do que num quarto de século se realizava
em Alvapenha.

O hortelão bateu à porta e disse para dentro que era o sobrinho
ja senhora que chegava.

Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar
de passos ; moveu-se a chave na fechadura ; abriram-se as portas
e no limiar apareceu de braços abertos a tia Doroteia, e por trás dela,
elevando a luz acima do ombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que,
havia trinta anos, lhe era companheira e interessada em lágrimas e pesajes.

Já Henrique lhe andara ao colo no tempo em que estiverà criança
na quinta.

Diante da figura esbelta, do tipo varonil e do comprido bigode
de Henrique, a Sr.a Doroteia reprimiu as suas expansões e quase recuou.

Nunca mais vira Henrique desde que este, aos cinco anos, deixara
Alvapenha, e dir-se-ia que esperava ainda encontrar os mesmos cabelos
louros e anelados e o mesmo rosto menineiro da travessa criança
de outros tempos, em vez do homem feito, em que os vinte e tantos
anos volvidos o tinham transformado.

Há destas ilusões na gente.

A mais segura razão não está precavida contra elas ; a infundada
surpresa invade-nos de súbito, e os lábios não podem prender a exclamação
que a denuncia.

— Pois na verdade tu és o Henriquinho ? ! — disse espantada a
boa senhora.

— Eu julgo que sim, tia Doroteia.

— Tu ! Ai como estás um homem ! Ó Maria de Jesus, você não
quer ver isto ! ?
•— Parece mesmo um soldado ! — disse a criada, igualmente estupefacta.

— Credo, mulher ! Santíssima Trindade ! Você que está a dizer ?
Nossa Senhora nos livre de tal ! — exclamou a ama, em cujo conceito
o soldado estabelecia a transição do homem para o Diabo.

No entretanto Henrique de Souselas abraçava a tia, que havia
tanto tempo que não vira, e ela correspondia-lhe, beijando-o com todo
o carinho e chorando.

Chorando porquê ? Porquê ? Pela muita bondade que tinha naquela
alma. A bondade é um rico manancial, que brota lágrimas ao toque da
menor comoção !
Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados
amplexos e mais provas de afecto de sua tia, quando se sentiu
preso em novos laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava também
e lhe pespegava nas faces dois beijos muito chiados, como aqueles
que vêm a ferver do coração, e isto acompanhado de um — Ai o meu
rico filho ! — tão eloquente comò os beijos.

Henrique, habituado às etiquetas da civilização urbana, que esta.

belece entre amos e criados distâncias desconhecidas na aldeia, estra,
nhou um pouco a familiaridade, mas sujeitou-se a ela sem reflexões.

Maria de Jesus dizia, ainda admirada :
— Ó senhora ! Não que uma coisa assim ! Pois é este o menino
que vinha à cozinha limpar o tacho, em que se fazia a marmelada !
— É verdade ! E que boa marmelada cá se fazia !
— Lambareiro ! — disse a tia, sorrindo. — Se eu soubesse que
eras assim, não tinha mandado lavar o tacho do doce, que ainda hoje
serviu.

— Sim ? Então ainda se faz doce cá em casa, como dantes ? — perguntou
Henrique.

— Pois então? todos os anos. Mas valha-me Deus! E nao querem
ver nós aqui postas à palestra ! Entra, menino, entra cá para dentro,
que está frio e tu deves vir cansado.

— Um pouco, um pouco, tia Doroteia.

E Henrique entrou para a sala.

Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas
em cuja casa se vai alojar Henrique de Souselas.

Não se imagina a santa paz de espírito, a placidez de paraíso
que estas duas mulheres — D. Doroteia e Maria de Jesus, ama e criada
—• gozavam na quinta de Alvapenha, onde Henrique de Souselas i
procurar alívio aos seus muitos e variados males.

Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas aos seus hábitos
ambas muito tementes a Deus e amigas do próximo, as duas celibatárias
passavam ali uma vida, rescendente a um suave perfume de santi
dade, como o da alfazema e do rosmaninho, que lhes aromatizava as
gavetas e de que se repassava tôda a roupa branca, objecto muito
dos seus cuidados.

A inalterável harmonia, mantida havia tantos anos entre as duas
poderia ser exemplo à maior parte das famílias deste mundo. Entre
velhas, que nunca tiveram filhos, circunstância que em geral faz o humo
mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso.

Tinham elas porém a precisa tolerância para fazerem mútuas con
cessões ; cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra
e tudo corria bem. Nunca adentro daquelas paredes se ouviu uma so
palavra, que, por mais alto pronunciada ou por menos expressiva
de paciência, destoasse da invariável monotonia dos seus habituais
diálogos.

Eram um exemplo edificante para os vizinhos, que, pela maio
parte, devorados por demandas entre primos e irmãos, pais e filhos
marido e mulher, mostravam infelizmente ser esta abençoada sèment
caída em improdutivo terreno.

As discórdias intestinas nas famílias do seu conhecimento afligiam
as duas sexagenárias e aumentavam o número de padre-nossos com
que todas as noites se faziam lembrar dos santos, de quem eram vali
das pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua
própria
Ouvir rezar as duas santas velhas — e era essa a ocupação dos
seus curtos serões — eqüivalia a escutar uma resenha das diferentes
calamidades, que perseguem e apoquentam o género humano, e que
elas, desta maneira, pretendiam evitar.

— Um padre-nosso e uma ave-maria a S. Marcal, para que nos
ivre do fogo — dizia D. Doroteia, e seguia-se o Padre-Nosso. — Outro
a Santa Luzia milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma e no
corpo; outro a S. Brás, para que nos proteja da garganta: outro a
g, Vicente, por causa das bexigas, etc. Seguia-se um padre-nosso por
todos os que andam sobre as águas do mar; outro por os pobres sem
abrigo nem alimento ; outro por os órfãos ; outro pelos doentes ; um
pelos vivos ; outro pelos mortos ; um pelos justos ; outro pelas almas do
purgatório, não hesitando até a sua caridade em transpor as portas do
Inferno e pedir também a remissão dos condenados. E ainda depois
desta minuciosa e longa enumeração, um último padre-nosso fechava aprimeira série, compreendendo todos os não contemplados por esquedos,
ou por não terem lugar na classificação.

Compunha a segunda série a menção especial de cada uma das
pessoas falecidas das suas relações : parentes, amigos e conhecidos,
por cujo «eterno descanso entre os resplendores da luz perpétua»
oravam com verdadeira compunção. Nesta falange ia também D. João VI,
por quem, havia quarenta anos, se costumara a rezar D. Doroteia, e não
era ela mulher que rompesse com hábitos semi-seculares. Era esse
talvez o único padre-nosso que a alma do monarca recebia no Céu,
com procedência do seu antigo reino.

Quanto às qualidades físicas, a imaginação dos leitores pintar-lhas-á
melhor do que a minha descrição. Forçosamente conheceram uma destas
boas velhas, para quem nos sentimos atraídos ; a quem se estima e com
quem se brinca ao mesmo tempo ; que nos podem inspirar sacrifícios e
simultaneamente nos tentam a travessura ; a quem mistificamos agora e
logo beijamos respeitosamente a mão ; contra quem não reprimimos impaciencias,
escutando depois submissos os seus nunca terminados sermões.

Ora estas velhas assim têm quase sempre um tipo uniforme, que
é o reflexo exterior da bondade do coração; esse era o tipo da tia
Doroteia com o seu vestido roxo, o seu lenço castamente cruzado no
peito, a sua touca de folhos alvíssimos e de fitas escuras, o molho de
chaves à cinta, o livro de orações na algibeira e os óculos a marcarem
no livro a reza habitual.

Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular
da mesma alma. Sucedera de mais com elas o que é sempre de esperar
de uma longa e íntima convivência ; haviam reciprocamente adoptado
maneiras e modos de pensar e de ver e de dizer as coisas uma da outra,
a ponto de qualquer delas ser como que uma premissa de onde a modo
de conclusão, se deduzia a outra facilmente.

Tudo isto percebeu logo Henrique de Souselas ao primeiro
exame que fez das duas santas mulheres.

Entremos agora com ele para dentro da sala.

Quem, vinte anos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e ai
voltasse de novo com Henrique julgaria, à vista da uniforme disposição
de coisas mantida ali dentro em tão distantes épocas, que todo esse
tempo não fora mais do que um sonho de momentos.

Encontraria os mesmos móveis, na mesma colocação ; as mesmas
cobertas nos leitos, apenas mais desbotadas ; as mesmas ou iguais cortinas
nas janelas ; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosfera
dos quartos, os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas
cómodas.

A memória de Henrique, aquela inconstante e leviana memória
de rapaz estouvado, sentia-se acordar, à vista daquilo tudo.

A sala tinha uma fisionomia característica.

Suponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, tôda
pintada a oca, e alumiada por duas mal rasgadas janelas de peitoril,
com os seus competentes assentos de pedra, um defronte do outro,
com meias cortinas de cambraia sempre corridas — pleonasmo de
discrição que se não justificava, visto que as janelas, abrindo para a
quinta, não tinham vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-
se. O tecto era de almofadas de castanho, em tempos pintado de
azul, agora de uma cor duvidosa. Havia quinze anos que D. Doroteia
falava em o mandar retocar, mas o projecto, momentoso como era, ia
sendo adiado de Primavera para Primavera. Orlava a sala, no alto,
um friso ou cornija saliente, onde coroadas maçãs de Inverno aguardavam,
em vistosa fileira, a completa maturação, e derramavam no aposento
o mais agradável aroma. O pavimento, apesar de muito picado
de caruncho, andava limpo e escafunado — termo do vocabulário de
casa — que metia gosto vê-lo. Cada parede era um museu de estampas
de devoção. Poucos santos e santas da corte celestial não estavam
ali representados e com um colorido, que era o maior pecado, a que
estes bem-aventurados haviam dado lugar cá no mundo.

Cá se via Santa Quitéria e as suas sete companheiras ; Santa Ana
ensinando Nossa Senhora a 1er ; o Senhor dos Passos, venerado em
S. João Novo, no Porto ; o Bom Jesus de Bouças, representação da imagem,
que, segundo reza a respectiva crônica, é obra das mãos de José
de Nicodemo ; os Santos Mártires de Marrocos, da igreja de S. Francisco,
etc, etc. Sobre a comoda de pau-preto era devotamente venerado
o mais rubicundo, menineiro e bem disposto Santo Antônio, que ainda
modelaram as mãos de santeiro afamado. E seja dito de passagem
que não sei por que a tradição popular dá a este austero franciscano
o aspecto chorudo de um moderno reitor de farta abadia de aldeia.

No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido
o museu de raridades da tia Doroteia. Eram flores artificiais, conchazinhas
e caramujos, um rosário de caroços de azeitonas, uns poucos
de vinténs de prata, enfiados e pendentes do braço do menino Jesus,
que o santo sustentava ao colo, verónicas, escapulários, uma campainha
benta, uma medida do braço do Senhor de Matosinhos, um pão do saco
de Santa Isabel, que vai na procissão de Cinza, no Porto, e outros
objectos curiosos.

A mobília da sala consistia em cadeiras de palhinha, que gemiam
quando entravam em serviço, como militar, cujas articulações o reumatismo
invadiu ; mesas cobertas com colchas de chita ; baús cravados de
pregaria amarela, disposta em letras e arabescos ; uma papeleira de
pau-santo, e uma gaiola com um canário decrépito, objecto, havia muitos
anos, das tentações de um gato, mais decrépito do que ele e pertencente
as classes inactivas.

Henrique, adivinhando por todo aquele cheiro de beatitude e de
antigüidade que ali se respirava, os hábitos da casa, sentia já certo
desconforto, corno de quem é arrancado de súbito ao ambiente, em
que se educou e vive, e engolfado num ambiente estranho ; espécie de
asfixia moral, nao menos angustiosa do que a do peixe fora da água.

A saudade que ao princípio sentira, dissipara-se já. O perfume
da saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de
longe o recebemos. Se, iludidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.

Acontecera isto com Henrique.

Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a crença de que
não seria por muito tempo que se demoraria ali.

— Os emolientes do doutor — pensava ele, enquanto sua tia
falava — serão eficazes para quem os puder sofrer sem enjôo, mas
para mim…

No entretanto sentou-se.

— Ora o Henriquinho ! — dizia ainda D. Doroteia, pondo-se de
braços cruzados em contemplação defronte dele. — Ó menino, onde
foste tu arranjar esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?
Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.

— Quem quer usar, usa, tia. Não é obrigação — respondeu ele,
com leve mau humor.

— Em nome do Padre e do Filho ! — dizia Maria de Jesus, benzendo-
se e tomando lugar ao lado da ama. — Até nem sei que parece,
lembrar-se a gente que trouxe este marmanjão ao colo!
O termo «marmanjão» não soou bem a Henrique. Principiava
também a impacientá-lo o ver as duas embasbacadas diante dele; um
homem sujeito a uma exposição destas, por mais que faça, -não atina
com o modo de arrostar com ela, que não seja ridículo. Ora Henrique,
como todo o homem da sociedade, o que mais que tudo temia neste
mundo era o ridículo.

Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia Doroteia,
que fez perceber à criada a conveniência de ir preparando a ceia de
Henrique, que havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não
costumar cear, aceitou a idéia, porque o frio, as fadigas e a má alimentação
dos últimos dias, haviam-lhe desafiado o apetite. Demais, o espanto
de D. Doroteia, quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos
seus hábitos, foi tal que lhe tirou o ânimo de rejeitar.

— Não ceias! O menino, que me dizes? então vais-te deitar sem
ceia? Ora essa! Por isso vocês são uns pelens. Vejam lá que arranjo
este ! ficar tôda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estômago,
que aconchegue. Nada, nada ; a ceiinha em todo o caso. E tu
hás-de também querer mudar de fato?
— Eu venho bastante molhado.

— Ai, então depressa, menino, que nao há nada pior do que a
roupa molhada no corpo. Maria… ou deixe estar, eu vou… Anda, Henriquinho,
anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares.

Meia hora depois, Henrique banhado, enxugado e comodamente
vestido, saboreava uma gorda galinha de canja, sobre uma mesa coberta
de toalha lavada, e na melhor louça da copeira.

Ele que tinha sempre severidades de crítica contra os mais afamados
cozinheiros de Lisboa, estava achando deliciosa aquela comida
primitiva, com que o regalava a tia.

Esta sentou-se a vê-lo comer, e com a mema familiaridade, que
Henrique já anteriormente estranhara, Maria de Jesus sentou-se ao
lado da ama.

Ambas tinham ceado já; pois que o faziam ao cerrar da
noite.

Enquanto Henrique comia, elas, sem deixarem de o observar
com a natural curiosidade de quem havia tanto tempo não tivera um
hóspede, faziam-lhe perguntas, às quais ele ia respondendo conforme
lhe era possível.

— Tu dizias-me na tua carta que estavas doente ; pois olha que na
cara não o parece.

— Não — concordou a criada — tem boas cores, e, vamos, a
magreza ainda não é lá essas coisas.

Era este o ponto fraco de Henrique ; respondeu logo ao reclamo.

— Não me digam isso ! Então não vêem como estou ? Pois isto é
lá cor de saúde? de febre, será. Gordo? pois acham-me gordo?!
— Gordo, não digo, mas assim, assim… E depois como Vieste de
jornada… Mas afinal que moléstia é a tua, menino?
— Eu sei lá, tia Doroteia? Nem os médicos a conhecem bem.

É, entre outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa,
que me persegue por tôda a parte. Às vezes parece-me que sinto
apertar-se-me dolorosamente o coração ; outras, são palpitações, ânsias…

Tenho quase vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero
que me falem, nada quero ver, nada quero ouvir ; não leio, não durmo,
não como. Finalmente todo eu sou doença e tristeza.

A boa tia Doroteia olhava com sisudez e atenção para o sobrinho,
enquanto ele falava, e na fisionomia iam-se-lhe desenhando, ao
ouvi-lo, os mais expressivos sinais de espanto e consternação.

Assim que Henrique terminou a exposição, ela disse-lhe com uma
adorável candura:
— Então é assim uma espécie de mania !
À palavra «mania» Henrique sobressaltou-se. Seria a consciência
que se sentiu ferida?
— Mania ? Ó tia Doroteia ! Mania ! Veja bem, olhe que o termo
é forte ! Mania ?
— Sim, menino — insistiu ingènuamente a boa senhora — pois olha
que não é outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê… sim…

porque não te morrendo ninguém, nem te doendo nada…

Ó poetas devaneadores, ó almas melancólicas, que percebeis no
sussurrar das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios,
queixas ocultas de dríades e de náiades, sentidas vibrações das harpas
de fadas aéreas, que vivem em palácios de nuvens ; ó corações inoculados
de poesia, quo vos confrangeis e gotejais lágrimas sinceras ao
desmaiar do dia, ao desfolhar das árvores no Outono; ooetas, que escutais,
com Vítor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepúsculo,
e com ele adivinhais os mistérios dos raios e das sombras, perdoai
a involuntária blasfêmia da tia Doroteia, que não contém o menor fermento
de malícia ; perdoai-lhe a dura expressão de que ela se serviu
para caracterizar os vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas,
os vossos devaneios, e crede que, apesar da frase, teríeis nela uma
alma mais afinada para simpatizar convosco, do que tantas que por aí
fazem gala de vos compreender melhor.

Henrique não podia porém digerir a expressão, de que se servira
a tia, para diagnosticar o seu mal.

— Mania ! — repetia ele — essa agora ! Sempre é forte de mais.

Mania, não, tia Doroteia, lá isso não. Mania!
— Eu lhe digo — acudiu a criada. — Nao vá sem resposta ; que
está quase como o cunhado da Rosa do Bacelo. A senhora nao se lembra?
Andou aquela alminha por aí sempre triste, sempre a falar só,
até que afinal lá foi parar…

— Aonde ? — perguntou Henrique, erguendo os olhos mterregadoramente
para a criada.

— Lá foi parar a Rilhafoles — concluiu esta, espevitando a vela
o mais naturalmente deste mundo.

Henrique de Souselas pulou com a sinceridade.

Nem acabou de sorver a última colher de caldo de arroz, que
lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera.

— Então não comes mais ? — perguntou a tia.

— Muito gradecido ; eu o mais que tenho é sono.

— Pois sim, mas é preciso fazer por comer — insistiu ela.

— Ora va mais este coxão — disse a criada.

— Não é possível — teimou Henrique, e insistiu para e recolher
ao quarto.

— Tens razão, tens — concordou a tia Doroteia — deves estar fatigado.

Vai com Nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar
triste, que isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bebe, passeia,
que é o que dá saúde. Nada de malucar.

— Sim — acrescentou a criada — e não queira estar doente, que
não tem graça nenhuma.

— E olha, Henriquinho, tu tens por aí com quem te podes distrair.

O brasileiro Seabra, que tem uma casa como um palácio ; o Augustito
do doutor, que é um bom mocinho. E depois vai dar um passeio por
aí, um dia até aos moinhos, outro dia até à ermida da Senhora da Saúde,
Agora me lembra: a Lenita já mandou aí outra vez saber se tinha chegado
o hóspede — disse D. Doroteia.

— Não foi só a morgadinha…

— Aí está você a chamar-lhe também a morgadinha.

— Então, senhora? isto é o costume. Mas todas as outras senhoras
mandaram também o Torcato saber do Sr. Henrique. A Sr.* D. Vitória
e a Cristininha.

— Ai, pois cuidadosas são elas ! Tu hás-de-te entender com aquela
gente. É uma gente muito dada e sem cerimônia. É preciso lá ir. Olha,
amanhã podes ir visitá-las. É um passeio bonito.

Henrique, que tinha estado distraído durante a conversa das duas,
nem se dava ao trabalho de intervir no diálogo em que elas dispunham
já do seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.

— Mas vai descansar, menino, vai e faz por dormir. Olha lá, tu
costumas dormir com luz?
— Não, tia, não costumo.

— É porque nesse caso… Maria, onde está aquela lamparina, que
me serviu quando eu estive doente, há seis anos?
— Está lá dentro, senhora; se a senhora quer eu…

— Vê lá, menino…

— Não, tia, não quero.

— Há pessoas que não podem dormir às escuras — dizia a criada.

— Eu, graças a Deus, durmo bem de qualquer forma.

— Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho,
hás-de ver se queres o travesseiro mais alto ou…

— Muito agradecido, tia Doroteia, tudo deve estar bom— disse
Henrique, procurando fugir às muitas reflexões, perguntas e conselhos,
com que as duas o iam perseguindo até ao quarto.

— Olha, ó menino, tu bebes água de noite ?
— Às vezes.

— Você pôs-lhe água no quarto, Maria?
— Pus, sim, minha senhora; pois então? Já minha mãezinha dizia,
que antes sem luz do que sem água.

— Bem, então está bom. Então muito boa noite, menino.

— Boa noite, tia.

— Ai, é verdade. Hás-de ver se queres mais roupa na cama.

— Não hei-de querer, não, tia.

— Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou,
ó Maria?
— Cinco, senhora.

— Cinco ! — exclamou Henrique, quase horrorizado. — Cinco
cobertores.

— É pouco ?
— Pouco ? É de morrer esmagado debaixo deles.

— Ai, quer não ! Olha que está muito frio.

— Bem, bem ; eu cá me arranjarei.

— Então, muito boa noite.

— Muito boa noite, tia.

E Henrique ia a fechar a porta.

— Olha… — disse ainda a tia.

Henrique parou.

— Não sei o que é que me esquece…

— Não há-de ser nada, tia ; boa noite.

— Não esquecerá ?… Eu sei ?… Enfim… boa noite. Ai, é verdade…

Sempre é bom ficar com lumes prontos
— Ai, sim; lá isso sempre é bom.

— Vês ? não que bem me parecia.

— Já lá estão, senhora — disse a criada de longe.

— Melhor ; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor,
menino.

— Muito boa noite, tia.

E Henrique conseguiu fechar a porta.

Estava finalmente só.

— Que desastrada lembrança a minha ! — disse o pobre rapaz,
ao fechar a porta sobre si. — como posso eu viver com esta santa e
virtuosa gente, que chama manias aos meus padecimentos? Que futuro
de impertinências me espera ! Ai, Lisboa, Lisboa, e pensar eu que só
posso voltar para ti à custa de outra jornada !
O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto
leito de almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não
dispensava o auxílio de cadeira para trepar acima dele, uma cômoda
com um pequeno espelho, um baú, um lavatorio e duas cadeiras mais,
constituíam a mobília tôda.

Henrique de Souselas sentiu a falta de mil pequenos objectos de
toucador, a que estava habituado. Aquele estritamente necessário não
lhe prometia grandes confortos.

Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvíssimo e respirava
um asseio e frescura convidativos : os travesseiros, de largos folhos
engomados, possuíam uma moleza agradável às faces ; o colchão de
penas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado.

Henrique conchegou a roupa a si; à falta de velador, pousou o
castiçal no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa,
pôs-se a 1er, para obedecer a um hábito adquirido.

Não teria ainda lido um quarto de página, quando ouviu a voz da
tia Doroteia, que lhe dizia de fora da porta:
— Ó menino, tu já te deitaste?
— Já, sim, tia Doroteia.

— Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um medo de
fogos !
— Esteja descansada, tia. Eu apago já.

— Então será melhor. S. Marcai nos acuda.

E afastou-se, rezando ao santo.

Henrique continuou a 1er.

Daí a pouco a mesma voz:
— Tu já dormes, Henriquinho?
— Não, tia, ainda não durmo.

— Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um
medo de fogos ! Não descanso, enquanto não vejo tudo apagado
em casa.

Henrique perdeu a paciência.

— Pois pode sossegar, olhe.

E apagou a vela, meio zangado.

— Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por
dormir. Então, muito boas noites.

— Muito boas noites — respondeu Henrique quase amuado ; e
ajeitando-se na cama, dizia consigo:—E esta! Já vejo que nem 1er
me é permitido aqui. Olhem que vida me espera ! É isto o que me
devia curar ? Que fatalidade !
Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de papa, únicos que
conservava dos cinco primitivos, começaram a fazer o seu efeito, insinuando
nos membros cansados da jornada um agradável calor. Convidavam
ao sono o som da água num tanque que ficava por debaixo das
janelas do quarto e as gotas da chuva, que dos beirais do telhado caíam
compassadas na tábua do peitoril.

A noite sossegara. De quando em quando apenas algumas lufadas
de vento, já menos impetuosas, faziam bater as vidraças.

Eram como estes estados, que sucedem a um choro aberto. Correm
ainda algumas lágrimas nas faces, mas já não brotam novas dos
olhos : saem ainda do peito os soluços, porém mais espaçados ; dentro
em pouco será completa a serenidade.

Henrique começou a experimentar uma languidez, um delicioso bem-estar
naquele confortável leito e no meio daquele sossego ; fecharam- se-lhe
enfraquecidos os olhos, e deslizou suave, insensivelmente, no mais profundo,
tranquilo e restaurador sono, que, havia muito tempo, tinha dormido.

III

Ao romper da manhã, quando a consciência principia, pouco a
pouco, a acudir aos sentidos, até então tomados pelo torpor
de um sono profundo, Henrique de Souselas sonhava-se comodamente sentado em
uma cadeira de São Carlos, disposto a assistir ao desempenho de uma
ópera favorita.

Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos, violoncelos e contrabaixos ;
sopravam, a plena boca, os tocadores dos instrumentos de vento ; agitavam
descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros ; dedos amestrados
faziam vibrar as cordas da harpa; a batuta do mestre fendia airosamente os
ares, e contudo não chegava aos ouvidos de Henrique, de tôda
esta riqueza de instrumentação, mais do que uma nota única,
arrastada, contínua, piangente, baixando e subindo na escala dos tons,
e sem formar uma só frase musical.

Era de desesperar um diletante como ele; torcia-se na cadeira, inclinava
convenientemente a cabeça, fazia das mãos cometas acústicas,
e sempre o mesmo resultado ! Este violento estado de atenção,
este esforço do sensório, principiou nele a obra de despertar
; principiou pois pelos ouvidos, mas cedo se transmitiu a todos os outros
órgãos.

Antes de dar a si próprio conta do que era aquele som, e quase esquecido
ainda do lugar em que estava, Henrique abriu os olhos.

A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas das janelas e
espalhava no aposento uma ténue claridade.

Veio então a Henrique a consciência do lugar em que estava,
e uma alegria profunda lhe dilatou o coração.

O leitor se ainda não padeceu de insónias, de pesadelos, ou
de sonos febris, não avalia por certo o contentamento íntimo,
que se apossa das desgraçadas vítimas desses demonios nocturnos,
quando por excepção eles as deixam em paz, e lhes respeitam
o sono de uma noite completa. Acordar só aos raios da aurora é
um dos mais inefáveis prazeres, a que eles aspiram na vida.

Penetra-lhes então nos membros um insólito vigor ; a arca
do peito expande-se-lhes mais livre e as sombras do espírito dissipam-
-se-lhes com aquele clarão matinal.

Foi o que sucedeu a Henrique. Pela primeira vez depois de muitos meses,
dormira de um sono a noite inteira.

Sentia-se com isto tão bom, tão vigoroso, tão contente
que teve vontade de cantar.

Mas o som, que o acordara, aquela nota única, em que se confundiam
todas as notas da sonhada orquestra, ainda lhe soava aos ouvidos.

Prestando-lhe a atenção de acordado, conheceu que era o chiar
9 dos carros — o mesmo som, que na véspera o irritara, agora
assim a distância, estava-lhe agradando, como nota extraída por
mão hábil das cordas de um violino.

Não resistiu mais tempo ão impulso que naquela manhã
o incitava ao exercício, rara disposição no indolente
filho da capital, que tinha por hábito ouvir o meio-dia na cama.

Ergueu-se e abriu as janelas.

Não é lícita a comparação entre a mais
surpreendente transmuta ção de uma dessas aparatosas mágicas,
que tanto extasiam as multidões embasbacadas nas platéias e
camarotes de um teatro, e as que de instante para instante, realiza a natureza.
Descerrando o véu de nuvens que encobre o fulgor do Sol, elevando,
acima do horizonte, esse majestoso lampadàrio do mundo, ou o brilhante
reflectídor que ilumina as noites desanuviadas, a natureza opera, a
cada momento, as mais admiráveis e completas metamorfoses.

Durante o sonho de Henrique realizara-se um desses efeitos mágicos.

Abrandara gradualmente a violência do sul ; o vento, mudando, voltou
em sentido oposto a grimpa do campanário ; dispersaram-se as nuvens
; luziram trémulas por momentos as estrelas, empalideceram perante
o alvor do dia, e quando o Sol assomou por sobre a crista das serras, estendia-se-lhe
diante um vasto manto azul, tapetando a estrada, que tinha a percorrer. Só,
muito para o ocidente, ainda algumas nuvens amontoadas formavam uma como franja,
que o astro nascente em breve tingiu de carmim e de ouro.

Foi pois a luz de um dia esplêndido e a brisa, cheia de aromas, que
vem dos campos nas alvoradas serenas que penetraram no quarto de Henrique,
quando ele abriu as janelas.

A inesperada surpresa quase lhe soltava do peito uma exclamação
de prazer! A aldeia, aquela mesma aldeia, escura e triste que, com o coração
apertado, atravessara na véspera, parecia outra.

O sol da manhã baixara sobre ela, dissipara-lhe as sombras, colorira-
lhe as verduras, reflectira-se-lhe nas presas, dispersara-se em íris
cambiantes na espuma das torrentes e cascatas naturais, perfumara-a de aromas,
animara-a de cantos, transformara-a enfim na mais risonha paisagem, em que
os olhos de Henrique, pouco habituados às esplêndidas galas do
Minho, tinham nunca repousado.

O Inverno despojara parte dessas galas ; embora ! Até da própria
nudez de algumas árvores resultavam encantos. As folhas crestadas,
os ramos despidos, as moitas sem flores infundem tristeza; mas não
tem a tristeza poesia também? Pode haver completa paisagem onde não
haja uns tons escuros de melancolia? Henrique de Souselas, debruçado
na varanda de pedra do quarto, não se cansava de admirar aquela cena.

Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas, que, num momento, elevam,
nos ermos, jardins e paços, como os de Armida e Alcina.

Pois era esta a mesma aldeia, através da qual ele cavalgara de noite?
Os acidentes do terreno, aqueles acidentes, que tão do fundo da alma
amaldiçoara na véspera, produziam, vistos então dali,
os mais pitorescos efeitos. Abatia-se-lhe aos pés um não muito
profundo vale, opulento em vegetação, e que a certa distância
se continuava insensível e gradualmente com uma ameníssima colina.

Além, um belo bosque de carvalhos seculares, que o Inverno, privando-os
de folhas, tingira quase da cor da violeta, contrastava com a fronde sempre
verde das laranjeiras nos pomares vizinhos, fronde por entre a qual se divisavam
abundantes os dourados frutos, poupados pela mão do lavrador. As copas,
como umbeladas dos pinheiros mansos, desenhavam nas encostas e eminências
fronteiras as mais suaves ondulações. Dispersos aqui e ali,
e entremeados com a verdura, grupos de casas campestres, alvejantes à
luz do Sol, moinhos e azenhas, noras toldadas de ramadas cónicas, eiras,
pontes rústicas, as mesmas talvez que com mau humor trilhara na véspera,
tão sinistras então, como graciosas agora; extensas e virentes
campinas e larneiros, onde pastavam numerosas manadas de gado. Mais longe
a igreja com a sua alameda à entrada e o cemitério, onde um
só mausoléu avultava ainda ; uma ou outra casa apalaçada,
enegrecida pelo tempo ; algumas ruínas, consolidadas pelas heras, revestidas
de musgos, douradas de liqúenes ; finalmente, tudo o que tenta os paisagistas,
tudo o que exalça os poetas, tudo quanto suspende os passos ao viajante;
e, encobrindo todo o quadro, um tenuissimo sendal de vapores azulados, dando-lhe
a aparência de uma das mimosas composições a pastel da
mão de Pillement.

A mudança de aspecto da cena operou não menor mudança
nos sentimentos e disposição do enlevado espectador que das
varandas de Alvapenha a estava observando.

— É preciso sair ! é preciso sair ! — disse Henrique
consigo. — Quero ver isto de perto ; quero entranhar-me nestes bosques,
quero trepar por aqueles montes, debruçar-me daquelas ribanceiras.

E vestindo-se à pressa, e sem sentir a necessidade de uma escrupulosa
toilette, saiu do quarto.

Encontrou nos corredores a tia Doroteia, que o saudou amavelmente.

— Muito bons dias, menino, então como passaste tu a noite ?
— Deliciosamente, minha querida tia — respondeu ele, abraçando-
a com maior afecto e bom humor do que na véspera.

O que é sentir-se a gente bem ! — Então não estranhaste?
— Estranhei imenso ! — Sim?! — disse a tia, mortificada.

— Dormi a noite de um sono, e acordei bem disposto ; o que para mim
é a mais estranha das ocorrências.

A tia sorriu satisfeita.

— Pois antes assim. E agora…

— E agora quero sair, quero ver esta terra, que me está parecendo
um paraíso terreal.

— Espera, menino. Não vás sem almoçar.

— Almoçar ! Pois que horas são ? — Não
é cedo ; são iá sete horas ! — Já sete horas.

E Henrique insensivelmente desviou os olhos para a janela, para ver como
era a natureza, a uma hora a que raras vezes a examinava.

— E então acha que se pode almoçar às sete horas
? — Porque não? Se está já pronto.

— Bom; almocemos. O doutor disse-me que tomasse os hábitos
da aldeia. Principiemos por este.

Entrando para a sala de jantar, Henrique viu diante de si uma taça
de leite espumante, tepido, odorifero, extraído de pouco tempo.

Foi por ele que principiou o almoço.

Pela primeira vez na sua vida disse ele ter bebido o leite verdadeiro, o
leite que não faz mentir a análise dos químicos, de que
os fisiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das geórgicas
cantam as delícias e virtudes ; só agora os compreendeu ele,
que bem diferente daquilo era o aguado e quantas vezes derrancado soro, a
que estava habituado na cidade.

D. Doroteia, almoçando, e Maria de Jesus, servindo, falaram, segundo
o costume, continuadamente.

Henrique, desta vez, falou tanto como elas.

Ouvia-as já com mais atenção e respondia-lhes com mais
vontade e paciência.

Falaram em muitas coisas.

A tia deu parte ao sobrinho de que várias pessoas da vizinhança,
sabendo-o chegado, lhe tinham mandado presentes de galinhas, oferecendo- se,
ao mesmo tempo, para lhe mostrarem as raridades da terra; disse mais que as
senhoras da quinta do Mosteiro também tinham já mandado saber
dele, Henrique, e lembrou que seria delicado ir visitá- las aquela
manhã.

Henrique concordou em tudo, quase sem reparar em quê, e terminando
o almoço apressou-se a sair para o campo.

— E se te perdes, menino ? —• lembrou a tia.

— Se me perder, farei por achar-me.

Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-no ir.

Dentro em pouco, Henrique atravessava a quinta, que também então
lhe parecia graciosa, de uma graça bucólica, a que não
estava habituado. O aspecto melancólico da véspera desvanecera-se.
Até para ser completa a mudança, estavam encadeados nas casotas
o Lobo e o Tirano, cujas boas graças contudo procurou conquistar, atirando-lhes
biscoitos.

Foi um passeio delicioso o que ele deu. Tudo quanto via lhe era novidade,
tudo lhe cativava a atenção e o distraía dos seus lúgubres
pensamentos.

Depois de muito andar, de subir colinas, de descer vales e costear ribeiros,
foi sair a um pequeno largo, ao fim do qual havia uma casa térrea,
caiada de branco, com portas verdes e janelas envidraçadas, sendo os
vidros em alguns dos caixilhos substituídos por papel. À porta
desta casa estava muita gente parada ; mulheres, velhos, moços, crianças,
uns sentados, outros deitados, outros de pé e encostados à ombreira,
e todos aparentemente aguardando alguma coisa ou alguém do lado de
uma das ruas, que vinha terminar no largo, e para a qual se dirigiam todos
os olhares.

Henrique aproximou-se desta casa com alguma curiosidade, que cede satisfez,
vendo em uma tabuleta, suspensa no alto da janela, a seguinte pomposa inscrição:
«Repartição do correio», e, como a confirmar o dístico,
um corte feito na porta para a recepção das cartas.

Lembrando-se da conveniência de avisar o empregado do correio para
lhe serem remetidas a Alvapenha as cartas que lhe viessem de Lisboa, Henrique
entrou na repartição.

Consistia esta numa loja apenas, mobilada com um banco de pinho e dividida
por um mostrador, para dentro do qual se alojava todo o pessoal do serviço,
isto é, um homem por junto ; e era este o Sr. Bento Pertunhas, personagem
importante na terra, e a cuja inteligência e solicitude estavam confiadas
mais do que uma função. Além de servir, em interinidade
permanente, como muitas vezes são as interinidades do nosso país,
este cargo, dito por ele, de «director do correio», estava de
posse S. S." de uma das cadeiras de latim e de latinidade, com que se
procura em Portugal fomentar nos concelhos rurais o gosto pelas letras antigas
; era ainda regente e director da filarmònica da terra, armador de
igreja em dias festivos, ensaiador de autos e entremezes populares, e, quando
Deus queria, autor de alguns também.

Vendo entrar Henrique nos seus domínios, o ilustre funcionário
tirou cortêsmente o seu boné de pele de lontra e ergueu-se da
banca para cumprimentar tão honrosa visita. Nos cumprimentos que formulou
disse o nome de Henrique.

Admirado por ser conhecido já, Henrique interrogou o latinista e,
achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito, convenceu- se
de que estava na presença dum esmerilhador de vidas alheias do mais
fino quilate e de um falador de assustar.

com o ifim de cortar a divagação, em que o homem entrara a
respeito de certa viagem que fizera a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o
correio não chegara ainda.

— Saiba V. S.’ que ainda não-—respondeu o Sr. Bento Pertunhas
— mas não deve tardar ; o homem que daqui vai buscar as malas
à vila, se bem andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro
de gente que V. S.ª aí vê à porta, está à
espera dele, Hoje então, que chegam as cartas do Brasil, ninguém
pára com este povo. Dão-me cabo da paciência.

Isto é um Inferno ! Eu sirvo este lugar interinamente, enquanto o
empregado está paralítico ; porque eu tenho outro cargo público
; sou professor de latinidade.

— Ah! — É verdade, mas a minha vocação
era para as artes. Meu pai queria que eu fosse padre e mandou-me ensinar latim
; mas já então a minha paixão era a música. Eu
ainda queria que V. S.* me ouvisse tocar trompa, que é o instrumento
que mais tenho estudado… Se V. S.a se demorar há-de fazer-me o favor…

— com muito gosto.

— Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação
! — Ainda assim não se pode queixar muito. O cultivo das letras
latinas deve-lhe proporcionar gozos ; porque enfim para quem possui instintos
de arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras
da vida.

O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos.

— Os poetas ? Os poetas latinos ! Ora essa ! Então parece-lhe
que pode achar-se gosto em lê-los ? Ai, meu caro senhor, eu por mim
tenho- -lhe uma vontade!… O latim!… a mais destemperada e desesperadora
língua que se tem falado no mundo ! Se é que se falou —
acrescentou em voz baixa.

— Então duvida que se falasse latim? — perguntou Henrique,
sorrindo.

— Eu duvido. Não sei como os homens se pudessem entender com
aquela endiabrada contradança de palavras, com aquela desafinação
que faz dar volta ao juízo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é
uma casa desarranjada, onde ninguém se lembra onde tem as suas coisas
quando precisa delas e passa o tempo todo a procurá-las? Pois é
o que é o latim. Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e
vai dizendo : «As armas, o homem e eu, canto, de Tróia, e primeiro,
das praias».

Quem percebe isto ! Ora agora peguem nestas palavras e em outras, que eles
punham às vezes em casa do Diabo, e façam uma coisa que se entenda
! É quase uma adivinha. Ora adeus ! E depois — continuou ele,
entusiasmado com o riso de Henrique, supondo-o de aprovação
— e depois as diferentes maneiras de chamar a um objecto? Isso também
tem graça. Nós cá dizemos por exemplo : « reino
e reinos » e está acabado; lá não senhor; diz-se
«regnum» e «regna» e «regni» e «regno»
e «regnis» e até «regnorum». Ora venham-me
cá elogiar a tal lingua! Henrique estava achando delicioso o ódio
entranhado de mestre Benlo Pertunhas à latinidade que ensinava com
a proficiência, que o leitor pode imaginar, depois do que ouviu.

— Ai, meu caro senhor — continuou o atribulado magister —
eu se me vejo um dia livre deste amaldiçoado latim, faço uma
fogueira, na qual me hei-de regalar de ver arder o Tito Livio e os Virgilios
todos très.

É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-
se a Virgílio.

Quer-me parecer que para este intérprete da literatura latina tinham
de facto existido três Virgilios, provavelmente irmãos, e cada
um autor de cada um dos três volumes da edição, que lhe
servia de texto. Dizia Virgílio 1.°, 2.° e 3.°, como quem
se refere aos monarcas homónimos, que sucederam num mesmo reino.

— Não me salvo se morro mestre de latim — prosseguia
ele. •— afunda-me no Inferno o trambolho da sintaxe.

Ia continuar, quando tôda a gente, que Henrique viu fora da porta,
principiou em desordenada azáfama a entrar para a loja, que em breve
não comportava mais ninguém.

— Aí vem o homem, Sr. Pertunhas ; aí vem. Graças
a Deus, que aí vem ! — diziam todos à uma.

O funcionário principiou a impacientar-se.

— Então ! então ! Por onde há-de ele entrar,
fazem favor de me dizer? Saiam, saiam. Não ouvem? Então não
fazem caso das minhas ordens ? Dêem lugar. Não vêem que
estão molestando este senhor ? Cada um dos repreendidos nestes termos
indignava-se, ao ver que os outros não obedeciam às ordens,
mas, pela sua parte, não cedia um passo, como se lhe valesse algum
especial privilégio.

— Saia você, mulher — dizia um.

— E você porque não sai ? Olha agora ! — A todos
há-de chegar a vez. Descanse. Se tiver carta lha darão.

Lá por estar aqui não é que…

— Pois então saia também. Ora essa! — Ó
santinha, não empurre.

— Ó filho, quem é que lhe faz mal? — Por onde
é que se quer meter, homem de Deus ? — Eu não sou menos
que os outros.

— Que queréis vós daqui, canalhada? — Não
bata, que ninguém lhe tocou, seu velhote.

— Espera que eu te falo.

Estas e análogas vozes abafavam num rumor tumultuoso as agudas declamações
do «director do correio», o qual obrigou Henrique a passar para
dentro da teia, para se salvar das ondas populares.

Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do
homem e a alvoroçada ansiedade do povo.

Há de facto poucas cenas tão animadas, como a da chegada do
correio e da distribuição das cartas em uma terra pequena. Durante
a leitura dos sobrescritos, feita em voz alta pelo empregado respectivo, um
observador, que estude atento as impressões que essa leitura opera
nos semblantes dos que ávidos a escutam, como que vê levantar-se
uma ponta de cortina, corrida a ocultar-nos as cenas da comédia ou
da tragédia da vida de cada um.

Que hora de comoções aquela, em que se abrem as malas, onda
vêm encerrados porventura os destinos de tantas famílias ! Quantas
vezes verdadeira boceta de Pandora, de onde se espalham as desgraças
e os pesares ! Nas grandes cidades dispersam-se estas comoções
; passam-se no recato dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das
vêzes, em que têm segurado com mão trémula na correspondência,
que o correio lhes traz; no ansiar do coração com que lhe rasgam
o selo; nas lágrimas ou sorrisos com que lhe interrompem a leitura;
no irresistível movimento de desespero com que a amarrotam depois,
ou nas expansões apaixonadas com que beijaram c nome que a subscreve;
lembrem-se disso, multipliquem depois esses afectos todos, despojem- -nos
das reservas que a etiqueta impõe às classes mais civilizadas,
façam-nos manifestarem-se num mesmo momento e num mesmo lugar, e digam
se concebem muitas outras cenas, em que mais sentimentos e paixões
se agitem em luta travada.

Chegou enfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao
mostrador, onde pousou a maia. O «director», depois de tossir,
de assoar-se, de suspirar e de limpar os óculos com umas delongas,
que formavam com a ansiedade do povo um contraste desesperador, abriu neumáticamente
o saco, extraiu um não muito volumoso maço de cartas, que despejou
num cesto de vime, e tomou apontamentos.

Era digno do pincel de um artista aquele grupo de fisionomias, que seguiam
ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bocas abertas,
mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada
para receber o menor som, tudo caracterizava profundamente a ansiedade que
lhes dominava os ânimos.

Mestre Bento Pertunhas achou a ocasião apropriada para dizer a Henrique
: — Pois, senhor, eu nasci para artista, quase sem mestre aprendi a
tocar trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com
certo mimo e expressão.

Henrique volveu o olhar para o auditório ; apiedou-o a consternação
daquelas fisionomias. Resolveu valer-lhe.

— Tem a bondade de ver se há alguma carta para mim ? —
Ah ! pois já as espera hoje ? — Não é provável;
porém…

Mestre Bento Pertunhas, em vista disto, começou em voz lenta e fanhosa
a leitura dos sobrescritos.

Seguiu-se novo e não menos interessante espectáculo.

A cada nome proferido, erguia-se quase sempre uma voz, às vezes um
grito ; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos
acrescentar, ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.

Outros, os não nomeados ainda, olhavam com ansiedade para o maço.
que diminuía, e cada vêz mais se lhes assombrava o semblante.

— Luisa Escolástica, do lugar dos Cojos — lia o mestre
Pertunhas.

— Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem! — exclamou uma
mulher jovem, apoderando-se avidamente da carta.

— Joana Pedrosa, de Serzedo — continuava — Aqui estou
; será do meu Antônio, senhor ? — disse uma velha, pobremente
vestida.

— Será do seu Antônio, será — respondeu
o insensível funcionário ; — o que lhe posso dizer é
que traz obreia preta.

A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo
aquelas sinistras palavras. Apanharam-lha; e ela, tomando-a, saiu da loja,
a chorar lastimosamente.

— Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que há-de
ser dela — dis;e um dos circunstantes.

— Coisas do mundo ! — respondeu outro.

Estes comentários foram interrompidos pela continuação
da leitura.

— João Carrasqueiro.

— Pronto, senhor — bradou um velho.

— A mesada, hem ? — disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima
dos óculos. — O rapaz não se esquece.

— Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem saído.

— D. Madalena Adelaide de…

— É a morgadinha, é a morgadinha — disseram a
um tempo muitas vozes.

— Agradecido pela novidade ; era cá muito precisa a explicação
— disse o Pertunhas : e passando a carta para uma mulher, que era a
encarregada de fazer a distribuição a quem a podia gratificar,
acrescentou : — Leve-lha a casa.

E prosseguiu: — Augusto Gabriel…

— É o mestre-escola…

— Ora fazem o favor de estar calados ! Esta .. como ele vem por aqui…
pode ficar… ainda que… será melhor levar-lha a casa, leve, leve
também…

— João Cancela.

— É o João Herodes.

— Esse foi a Lisboa.

— Então, quando vier, que apareça.

— O tio Zé-Pereira ficou de receber as cartas. É compadre
dele.

Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé-Pereira que se
ocupe com o seu zabumba e deixe lá os outros.

A leitura mais ou menos acompanhada destes diálogos prosseguiu, redobrando
de momento para momento a ansiedade dos que iam ficando.

Um fundo suspiro, uníssono, melancólico, expressivo de desalento,
seguiu-se à leitura do último nome e às poucas palavras,
com que o funcionário fechou a tarefa.

— E acabou-se.

Os que ainda estavam na loja saíram cabisbaixos, morosos e com tão
má vontade, como se ainda tivessem esperança de comover a inexorável
sorte.

Henrique, ficando só com Bento Pertunhas, teve de lhe escutar ainda,
por muito tempo, a narração dos seus passados triunfos artísticos,
das suas amarguras presentes no magistério, e das suas esperanças
em melhoramentos futuros. Entre as ambições mais inquietas do
mestre, a de obter o lugar de recebedor de comarca, próximo a vagar
por a morte iminente do respectivo empregado, figurava em primeira linha.

Depois de várias tentativas, Henrique conseguiu deixar o seu interlocutor,
e continuou o passeio, que este episódio interrompera, tão satisfeito
e distraído, que nem apreensões lhe causava a idéia de
trazer as botas humedecidas pelas ervas do caminho, idéia que, em outra
ocasião, bastaria para o fazer doente.

Ladeava ele um campo, cingido de altas silvas, a procurar saída para
a devesa, da qual um fundo vaiado o separava, quando lhe pareceu ouvir um
rumor de vozes, como de alguém, que conversasse perto dali.

Parou a certificar-se.

Não se enganara. Era do outro lado da sebe, e na devesa, para onde
tentava passar, que se estava falando.

Espreitou por entre as folhas do silvado que o encobria, e viu uma cena,
que lhe moveu a curiosidade.

Um grupo de crianças e de mulheres do povo escutavam em pleno ar
e com religiosa atenção, a leitura que uma senhora jovem e elegante
lhes fazia das cartas, que elas para esse fim lhe davam. A senhora estava
montada, não como romântica amazona, em hacaneia fogosa, mas
modesta e simplesmente num digno exemplar daqueles pacíficos animais,
a que Sterne não duvidou dedicar algumas palavras de simpatia nas suas
páginas mais humorísticas, e que Pelletan incluiu entre os colaboradores
da humanidade na grande obra do progresso, ou, deixando a perífrase,
em uma possante e bem aparelhada jumenta.

À roda as ouvintes encostavam-se com familiaridade às ancas
e ao pescoço do imóvel quadrúpede.

A leitora segurava no colo a mais pequena e a mais nua das crianças
do rancho.

Lia com voz agradável e sonora ; e, graças à serenidade
da manhã e ao sossego do lugar, ouviam-se distintas, à distância
que ficava Henrique, as palavras que ela pronunciava lentamente, como para
as deixar penetrar bem na inteligência do auditório.

Henrique reconheceu muita desta pobre gente, por a mesma que, momentos antes,
vira na casa do correio.

Mas as suas atenções voltaram-se com especialidade para a
leitora.

Era uma mulher muito nova ainda. uma graciosa figura de mulher, suave, elegante,
distinta, um desses tipos que insensivelmente desenha uma mão de artista,
quando movida ao grado da livre fantasia ; a cor, essa cor inimitável,
onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o desmaiado das
pálidas, encarnação surpreendente, a que ainda não
ouvi dar nome apropriado.

Os cabelos em fartas trancas, em ondas naturais, não de todo pretos,
porém, mais distintos ainda dos louros ; a estatura esbelta, sem ser
alta ; o corpo flexível, sem ser lànguido ; um vulto de fada,
enfim, com a majestade, com a graça que deviam ter estas criações
da poesia popular, se fosse certo tomarem a forma de virgens, para matar de
amores.

Não se concebe atenção tão distraída,
que esta mulher não fixasse ; olhos, que se não voltassem para
segui-la, depois de a ver passar ; coração, que não se
perturbasse na sua presença.

Trajava um singelo vestido de xadrez branco e preto, adornado no colo e
punhos apenas por colarinhos lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente
dos ombros um xale de casimira escura, sem lhe ocultar as belezas da airosa
conformação ; o chapéu de palha de largas abas, cobrindo-lhe
a cabeça, espalhava pelo rosto as meias-tintas, tão favoráveis
às belezas delicadas.

Henrique compreendeu logo a significação da cena, a que, tão
inesperadamente, viera assistir. Aquela mulher parara ali, para 1er a essa
gente, pobre e ignorante, as cartas que haviam recebido do correio.

Também era caridade a acção, muito mais cumprida com
o bom modo e com o carinho com que ela o fazia.

Henrique aplicou a atenção.

— …«E por isso, minha mãe» — lia ela —
«se Deus me ajudar, espero dentro em pouco ir a essa terra e darei remédio
a tudo. E não me fale vossemecê mais em vender o cordão
e as arrecadas. Diga ao senhorio que tenha paciência, que eu satisfarei
a tudo».

Aqui a leitora parou para perguntar: — Então que história
é esta das arrecadas, Ana? — É, senhora, que o aluguer
estava vencido…

— E não podia falar-me antes de se lembrar do seu filho ? —
Ora, senhora, bem basta o que…

— Fez mal. Estar a afligi-lo com estas coisas ! Ele que precisa de
toda a coragem! E continuou a 1er a carta, no meio das lágrimas e das
expansões de alegria da ouvinte, mais interessada nela.

Acabando, deu um beijo na criança, que tinha ao colo, e estendeu
a mão a receber a carta, que outra mulher do grupo lhe passou. Esta
era menos de consolar. Não se falava ali senão de contratempos,
de reveses e desesperanças. Mais do que uma vez teve de suspender a
leitura, para mitigar a dor e enxugar as lágrimas, que ela estava produzindo
na pobre mulher, a quem era dirigida.

Após esta, ainda outra e outra ; uma do marido para mulher ; outra
de filho para mãe ; outra de noivo para noiva.

Foi com o riso nos lábios e inofensiva malícia nas inflexões
da voz e no olhar, que ela decifrou os mal legiveis caracteres, com que em
papel bordado, pintado e recortado, vinham expressos os mais arrebicados conceitos
amorosos, que ainda ditou uma paixão.

A noiva corava, sorria ; mas, no meio da sua modesta turbação,
era evidente que estava exultando de júbilo.

com esta terminou a leitura.

Henrique não resistiu a esboçar rapidamente o gracioso grupo
na carteira, que trazia consigo. Não pôde, porém, deixar
de dar-lhe urti sabor de Idade Média, substituindo a jumenta por um
palafrém de pura raça e dando à donzela, pelos trajes
com que a desenhou, os ares de uma castelã rodeada dos seus vassalos.

Não lhe bastou o natural do quadro, quis revesti-lo de um figurino
de convenção. Perdoe-lhe a arte, que julgou servir.

Depois de distribuir mais alguns beijos pelas crianças, a gentil
rapariga passou a que tinha no colo para os braços da mãe e
partiu rodeada de agradecimentos e bênçãos, perdendo-a
Henrique de vista, por entre as árvores do caminho.

Aquele tipo delicado de mulher, aquela singeleza do apurado gosto, em que
não podiam enganar-se olhos conhecedores, como os dele, aquela preciosa
pérola ali na aldeia ! em uma terra para chegar à qual era necessário
fazer uma comprida e laboriosa jornada ! De onde viera ela e como? que nuvem
a trouxera? que viração a transportara ? Em tudo isto ficou
a pensar Henrique, e quando se lembrou de que podia, para esclarecer-se, interrogar
alguém do grupo, já não ia a tempo ; tinham dispersado.

Conseguiu finalmente passar para a devesa, e foi sentar-se no lugar, em
que lhe aparecera a visão, e aí se demorou algum tempo; mas
lembrando-se de que eram quase onze horas, levantou-se para não faltar
às promessas feitas à tia Doroteia, e que eram: a de visitar
as senhoras do Mosteiro e a de estar em casa pouco depois do meio-dia, para
não transtornar a regularidade dos hábitos domésticos
em Alvapenha.

Pediu pois a uma criancinha que passava, que o guiasse à quinta do
Mosteiro, e ai chegou depois de um quarto de hora de caminho.

IV casa do Mosteiro, com a quinta anexa à casa, como o dava a entender
o nome, pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem
monástica.

Era um destes conventos campestres, que hoje ou se encontram em ruínas
ou transformados em solar de alguma «notabilidade» provinciana.

Ao de que falamos coubera o último destino.

Incluído, depois do acto ditatorial de 1834, na lista dos bens nacionais,
fora, por insignificante preço, vendido a um modesto proprietário
das imediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais convencido
da estabilidade da nova ordem de coisas politicas, que se inaugurava no País.

E em tão auspiciosa hora lhe acudirá aquela inspiração,
que, em pouco tempo, lho restituía a quinta o capital empregado, regalando-o
todos os anos com não calculados juros, e ele, sem intermitencias,
cresceu daí por diante em prosperidade a ponto de deixar, ao morrer,
a família no número das mais abastadas daquela terra.

A propriedade do Mosteiro, apesar de vários melhoramentos e reformas
efectuadas nela, oferecia, ainda claros, muitos vestígios de seus primitivos
usos. Não era raro encontrar-se, aqui e ali, em pé uma cruz
de pedra marcando antigos lugares de devoção ; no alto de algumas
portas conservava-se visível o emblema e divisa da ordem, ou restos
de inscrições latinas ; nas paredes de arcaria, em que se apoiava
a face posterior do edifício, mantinha-se ainda um azulejo contemporâneo
dos frades ; finalmente resistira a sucessivas reformações certo
colorido monástico, que só após muitos anos se dissiparia
de todo.

Entrava-se para a propriedade por uma larga, comprida e majestosa álea
de sobreiros seculares, alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados, por
pouco trilhada, crescia espessa e verdejante. Abria-se, ao fim desta rua,
o alto portão do pátio.

Henrique, deixado só pelo guia ao chegar ali, foi caminhando vagarosamente
por esta avenida, dominado por a íntima comoção e sentimento
quase de temor, que se apodera de nós, em todos os lugares a que se
ligam memórias do passado.

A fantasia estava-o transportando a tempos, a que não chegavam já
as suas recordações, às épocas, em que, por entre
estas árvores gigantes, se via passar, como um fantasma, o hábito
escuro do monge, cuja sombra o Sol, ao declinar no horizonte, tantas vezes
projectou, esguia e estirada, ao longo daquela mesma avenida.

Impressionado por esta ordem de pensamentos, chegou Henrique ao portão,
transpondo o qual se introduziu no pátio. Era um largo terreiro de
perfeita forma rectangular, limitado ao fundo pela fachada da casa, e lateralmente
por elevadas paredes, armadas à maneira de panos de Arras, com tapeçarias
de vigorosas heras. A cada uma das paredes encostavam-se dois tanques de vasta
capacidade.

No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as feias e enormes carrancas
de todos estes quatro tanques grossos jorros de fresca e puríssima
água ; porém as medidas económicas do último proprietário
e as exigências dos seus projectos agrícolas haviam derivado
para outros fins, parte desta abundante veia, de maneira que três daquelas
bacias estavam agora completamente a seco.

Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietárias, os funchos
odoríferos, havia muito que tinham invadido a boca dos encanamentos
inúteis onde encontravam asilo lagartos, aranhas e miriápodes,
e se estabeleciam pacíficas colônias de caracóis.

A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notável pelo lado arquitectónico.

A arte não tivera fadigas ao concebê-la ; o cinzel pouco se
embotara a executá-la; nem uma coluna singela, nem um florão,
nem um tímpano lhe davam a menos pretensiosa aparência monumental.

Imagine-se uma vasta casaria de um andar além do térreo, com
muitas janelas do peitoril e uma só varanda de pedra sobranceira à
porta principal ; acima do telhado uma espécie de água-furtada
de construção evidentemente posterior e aconselhada aos proprietários
modernos por conveniências de acomodação doméstica;
e ter-se-á concebido o edifício.

Enquanto Henrique se ocupava a examinar estas particularidades, um velhito
que sentado em um banco de pedra, que havia à porta de casa, se estava
aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro do recém-chegado, tossindo
e arrastando os passos.

Junto de Henrique, o velho, de aparência meia rústica, meia
urbana, depois de o saudar com grave cortesia, que deixou a descoberto o «solidéu»
fradesco com que resguardava a fronte calva, perguntou se havia alguma coisa
em que o pudesse servir.

Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique, que disse procurar
as senhoras, com nova cortesia lhe fez sinal para que o acompanhasse, e ambos
atravessaram o pátio em direcção da casa.

No portal o velho afastou-se de lado com toda a deferência para deixar
passar Henrique ; em seguida abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e, voltando-se,
pediu-lhe para que lhe dissesse quem havia de anunciar. Henrique deu-lhe para
esse fim um bilhete de visita, cuja significação teve de explicar,
porque o velho não a compreendia bem.

Afinal, porém, retirou-se por outra porta, levando o bilhete.

A sala, em que Henrique ficou esperando, era tôda mobilada com pesadas
cadeiras de couro lavrado e alto espaldar, mesas de pés em espiral,
e pelas paredes alguns enegrecidos retratos de frades, pertencentes provavelmente
aos antigos proprietários do mosteiro.

No momento em que o velho servo, que era uma espécie de feitor honorário
da casa, abriu outra porta da sala, para ir anunciar à família
a visita de Henrique, chegaram aos ouvidos deste, de mistura com um tinir
de louças e de cristais, as vozes e risos de crianças, que falavam
ao mesmo tempo. com a entrada do velho produziu-se um certo silêncio,
e após uma voz de mulher, de timbre fresco e agradável, disse
audivelmente e como em resposta às palavras do criado: — Ora
as etiquetas com que esteve, Torcato! Mande entrar para aqui.

O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a que ainda a
mesma voz redarguiu: — O que não é bonito é fazê-lo
esperar. Ande, vá.

Torcato — chamemos-lhe assim, visto que assim lhe chamaram —
apareceu outra vez e fez sinal a Henrique, de que o esperavam na sala imediata.

Henrique que pressentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova
e porventura bonita, correu, com instinto de perfeito homem de corte, os dedos
pelos cabelos, afagou o bigode, ajeitou ràpidamente o laço da
gravata e entrou.

Era completo o contraste deste aposento com o primeiro ; transpondo aquela
porta dissipava-se todo o perfume antigo, todo o carácter de vetustez,
que até ali reinava em tudo. Era moderno o estuque do tecto, modernissimo
o papel que forrava as paredes, e a mobília tôda de um cunho
de actualidade, visível aos olhos menos pesquisadores.

como para tornar mais frisante o contraste, a presença do velho feitor
estava aqui substituída por a de duas crianças, a mais velha
das quais mal passaria dos seis anos.

O reposteiro, que caiu atrás de Henrique, foi como que uma cortina
corrida sobre o passado. A porta, que ele transpusera, a barreira que separava
dois séculos.

Sentadas no topo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina
inglesa, estavam as duas crianças qué dissemos, com os seus
babeiros brancos e tendo cada qual defronte de si um prato de odorifera sopa.
Em pé, à cabeceira, presidia ao lunch infantil uma mulher, de
quem Henrique só pôde notar vagamente os contornos gerais do
corpo e não as particularidades das feições, porque,
ficando voltada de costas à luz das janelas, velavam-lhe o rosto umas
meias sombras que não favoreciam o exame.

Ao ver entrar Henrique, ela disse-lhe jovialmente : — Na aldeia a
sala de recepções é aquela em que a gente se acha, quando
lhe anunciam uma visita. É assim pelo menos que eu compreendo o viver
do campo.

— E é assim que eu o aprecio, minha senhora — respondeu
Henrique, aproximando-se da mesa.

As crianças, interrompendo a refeição, fitavam o recém-chegado
com aqueles olhos espantados e penetrantes, com que elas, prontamente, e quase
sempre com a certeza de um verdadeiro instinto, decidem para si das simpatias
ou antipatias de que lhes é merecedor um estranho, a quem vêem
pela primeira vez.

A mulher, que presidia ao banquete não suspendeu com a entrada de
Henrique, a ocupação doméstica, na. qual estava empenhada.
Mostrava receber-lhe a visita com um perfeito «à-vontade»,
que nada tinha porém de afectado.

— Não sei se V. Ex.ª sabe… —ia dizendo Henrique,
quando, ao chegar perto dela, parou sùbitamente em meio da frase.

Na mulher, que estava diante de si, reconheceu a leitora da devesa, a interessante
rapariga que tanto o preocupara.

Era ela, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora
melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um primoroso
modelo, e os cabelos penteados com tanta graça como singeleza. Em vez
do longo xale de casimira, trazia agora uma espécie de jaqueta, curta
e larga, apertada por alamares, de forma pouco mais ou menos semelhante à
que, na nomenclatuia das modistas, nomenclatura quase sempre absurda, e de
mau gosto, teve depois a imprópria e desastrada denominação
de zuavo! A surpresa de Henrique não passou despercebida a quem era
causa dela e que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.

— Perdão, minha senhora — disse Henrique, compreendendo
aquele gesto — mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que
já me não era estranha.

— E sou eu essa pessoa ? — É V. Ex.» efectivamente.

— Pois já nos vimos? — Já… quero dizer, eu já
vi V. Ex.ª.

— Pode ser ; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra
de o ter visto nunca. Apesar disso sei que é o Sr. Henrique de Souselas,
sobrinho daquela boa senhora de Alvapenha, a tia Doroteia; não é
verdade ? — Eu próprio. O conhecimento que tenho de V. Ex.’ não
é antigo também ; data de algumas horas apenas.

A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contraiu levemente as sobrancelhas
bem desenhadas, fez um movimento de lábios e deu à cabeça
uma ligeira inclinação sobre o ombro, de onde resultou para
aquela gentil fisionomia a mais adorável expressão de estranheza,
que pode animar um semblante de mulher.

— Esta manhã — prosseguiu Henrique, a quem os encantos
daquele gesto não tinham passado despercebidos — assisti a uma
cena comovente.

O lugar era uma devesa ; uma jovem senhora… jovem e… e com outras qualidades,
além desta, para excitar atenções, lia, em voz alta,
as cartas que algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio…

Ela não o deixou continuar.

— Ah ! entendo agora. Viu-me ?já andava por fora? Não
o supunha assim madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que
é indiscreto.– Não admira, hábitos da cidade. É
verdade, é. Aquela gente encontrou-me no caminho quando eu voltava
de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe
abrandasse a ânsia de coração que a afligia. Coitados
! Que havia eu de fazer ? Diga-me, já pensou no suplício que
deve ser olhar a gente para uma folha de papel escrita, na qual sabemos que
se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquele
enigma ? Que martírio ! Eu por mim, confesso que me falta o ânimo
para recusar pedidos daqueles, como me faltaria para negar uma gota de água
ao desgraçado que visse a morrer de sede. A crueldade seria quase igual.
Não lhe parece? Henrique formulou um galanteio, que ela porém
não ouviu, entreuda já a escutar o que uma das crianças
lhe dizia.

— Lena, olha a Anica, que está a deitar a sopa dela no meu
prato.

— Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ela que primeiro a deitou no
meu. Não tem vergonha de mentir ! — Então ! — disse
Madalena, que a este nome correspondia a contracção familiar,
de que se serviam as crianças. — Olhem agora se têm juízo.
Vejam se querem que eu vá dizer à mama que venha para aqui.

— Não é ela a mãe, visto isso — pensou
Henrique, como quem modificava uma opinião que concebera antes e folgava
com a modificação.

— Será irmã? Talvez… Ou mestra… É mais provável
que seja mestra. Esta mulher foi decerto educada na cidade. Tem uns ares distintos…

E elevando a voz : — V. Ex.ª está-me recordando uma cena
de um precioso livro, que nunca me canso de 1er.

— Qual é ? — Werther.

— Ah! — Conhece ? — Conheço… quero dizer, li-o,
por acaso, há pouco tempo. Compara- me a Carlota? É por estar
a distribuir as rações destas crianças? Que mulher há
que não seja Carlota, nessa parte? Em todas as casas se passa uma cena
assim. Bem se vê que não tem família.

— Porquê ? — Por lhe fazer tanta sensação
o espectáculo desta.

— É certo — respondeu Henrique com melancolia. —
Deve ser essa uma das causas ; mas nao a única — acrescentou
galanteadoramente.

E, de si para si, estava encantado de saber que a sua interlocutora tinha
lido Werther.

Madalena, para mudar de conversa, perguntou-lhe : — Então que
lhe parece esta nossa aldeia ? — Um jardim. Ontem, ao chegar, confesso
que me foi desagradável a impressão recebida. Nem admira; a
noite, o frio, a chuva, o cansaço. Esta manhã, porém,
a transformação foi completa. Estou encantado, fascinado ! Numa
palavra, minha senhora, eu, cidadão em corpo e alma, reconciliei-me
em poucas horas com a vida do campo.

— Desconfie da mudança rápida. Hábitos radicados,
qualidades ou defeitos de educação não se perdem assim
depressa. Alguns dias aqui, e suspirará por Lisboa outra vez.

— Talvez não. Hoje estou até em acreditar que tinha
razão o doutor, que me prometeu a cura das minhas doenças, se
me costumasse deveras a estes hábitos campestres.

— Ai, prometeram-lhe isso? E espera costumar-se? — Porque não?
Hoje já almocei às sete horas, já andei mais do que uma
semana inteira ando em Lisboa. E ainda tenho por ver as raridades da terra.

!— As raridades ? ! E que raridades sao essas que ainda tem para ver?
A nossa pobre aldeia não lhe merece essa ironia.

— Então acha tão pouco curiosa esta terra ? Do quase
nada que dela observei esta manhã, parece-me até…

— Ai, se fala da natureza, e outra coisa. A cada passo se encontra
um ponto de vista que nos obriga a uma exclamação. Mas há
por aí certos cicerones, que insistem em mostrar aos hóspedes
as belezas da arte. Peça a Deus que o livre desse flagelo.

— V. Ex.* assusta-me. Embora ; se lhes cair nas mãos, farei
por achar curioso o que eles acharem. Vai ser esse o meu sistema de cura.

Interessar-me por tudo o que a um homem da aldeia interessa. Foi o regimen
que me prescreveu o médico, quando me receitou o campo, a título
de emoliente ; se o seguir, salvo-me.

— E nao o diga a rir. Se quiser prender-se à aldeia, abjurar
os atractivos da cidade, deve rustificar-se em tudo ; principiar por cultivar
o interesse por as questõezinhas da terra; deve, por exemplo, declarar-se
pelo abade contra a junta de paróquia ou pela junta de paróquia
contra o abade ; ralhar do regedor na questão com os taberneiros ou
defendê-lo. Enquanto não chegar a isto, desconfie da sua aclimação.

— Farei por consegui-lo o mais depressa possível. Outra coisa
necessária é deixar-me convencer ingènuamente dos inexcedíveis
dotes de espirito das notabilidades da terra, o que é de rigor; estar
em perpétua admiração diante de uns certos nomes famosos
que há sempre em todas as terras pequenas, e que nos atiram à
cabeça a cada momento.

Por exemplo, aqui já sei de um, com que encherei a boca a propósito
de tudo ; é o de uma célebre morgadinha dos Canaviais, pessoa
em quem oiço falar, desde que pus os pés, ou por mim a alimária
que me trouxe, neste produtivo torrão.

Madalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo isto.

— Então com que, tem ouvido falar muito nessa morgadinha? —
Oh ! mas não faz idéia ; de uma maneira desesperadora. Não
há pinhal, quinta, azenha, choça ou lameiro que não pertença
a essa entidade, para mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos,
como um estribilho de cantiga popular; na estrada, nos campos, em casa de
minha tia, na loja do correio, em tôda a parte o oiço pronunciar.

Parece que voga nos ares.

— Isso deve ter-lhe excitado a curiosidade de conhecer a pessoa.

— Qual ! tem-me impacientado a ponto de nem perguntar por ela.

E demais parece-me que a estou a ver.

— Ora diga. Então como a imagina ? Anica, não tens aí
um guardanapo ? — como a imagino? Imagino-a uma morgada, e está
dito tudo; uma senhora nutrida, a rever saúde por todos os poros, encarnada
como uma romã, sobre quem os vestidos à moda assentam como pendurados
de um cabide, as mãos cheias de anéis, meias luvas de retrós,
um chapéu com uma cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça…
V. Ex.a ri-se? Acertei? — Parece-me. que sim ; mas julgue-o por si já
que tem à vista o oriqinal.

— como ? ! — A morgadinha dos Canaviais, sou eu.

— Vossa excelência !…

Henrique de Souselas, apesar do seu uso do mundo, esteve por muito tempo
sem saber como sair da situação em que se pusera.

Madalena ria com tôda a vontade ; os pequenos riam, por contágio,
sem saberem de quê. Tudo aumentava pois a confusão de Henrique.

— Ora confesse — insistia cruelmente Madalena — confesse
que o está lisonjeando a exactidão das suas conjecturas.

Henrique teve enfim uma lembrança. Tirou do bolso a carteira, em
que, horas antes, esboçara rapidamente a figura ei beltà da
morgadinha, rodeada das mulheres do povo, e mostrando-lha, disse : —
Veja V. Ex.a se esse esboço, apesar da sua imperfeição,
está de acordo com a estúpida concepção que eu
formara.

Madalena lançou a vista para a carteira e sorriu.

— Ah ! desenha ? — Quando os modelos tentam, tenho dessas ousadias.
Os resultados são lastimosos, como estes. Perdoe-me o original, que
julguei possível copiar, o desacato, mas…

Madalena fitou em Henrique um olhar penetrante.

— Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo adverti-lo de uma coisa,
Sr. Henrique de Souselas. Não há nada tão mal empregado
como uma fineza no campo. Tudo quer o seu lugar. Em Lisboa talvez o achasse
pouco delicado.,, ou pelo menos pouco amável, se me não dirigisse
dessas frases conceituosas e bonitas. Vive-se disso lá. Aqui acho-as
afectadas e inúteis… Que quer? Influências da cena. Há
tanta sem-cerimónia no campo ! Aqui todos nos tratamos como parentes
: há-de ver.

Não repara como eu o recebo numa sala de jantar, sem nem sequer tirar
os babeiros a estas crianças? Olhe lá que fizesse o mesmo em
Lisboa…

— Então V. Ex.’ já lá esteve ? — Eu nasci
lá e lá me eduquei.

— Ah ! bem se vê.

— Ah? Aí está um ah, que eu desejaria muito que me explicasse.

— Não me será dificil fazê-lo. É que antes
já de ouvir falar V. Ex.’, só ao ver certa distinção,
certa elegância de maneiras, conjecturei…

— Basta. É um ah, portanto, que tem umas poucas de más
qualidades.

— Deveras ? uma interjeição tão inocente ! —
Pelo contrário, é a voz mais pérfida e inconstante da
nossa língua; tudo exprime, a hipócrita. O seu ah é vaidoso,
adulador e iníquo pelo menos. Pela vaidade castigue-o algum resto de
modéstia que ainda se abrigue no seu coração lisbonense
; a adulação competia- me castigá-la, mas perdoo-lha
porque quero ainda supor que é um sintoma da doença das cidades,
a meu ver, a principal doença, que o obrigou a procurar a aldeia ;
da iniqüidade, da injustiça, que faz à educação
que se pode dar na província, há-de convencer-se dentro em pouco,
quando eu lhe apresentar minha prima Cristina, uma rapariga, que tem vivido
aqui sempre e que protesta contra essa sua opinião; possui tudo quanto
pode dar de bom a educação das cidades, e, o que mais vale,
aquilo que lá é tão fácil perder-se depressa,
uma candura adorável. É a irmã mais velha destas crianças
— acrescentou, pousando a mão na cabeça dos pequenos,
que comiam e conversavam um com o outro.

— Mas V. Ex.’…

— Perdão. Outra coisa. Já agora que entrei no caminho
dasadmoestações, permita-me mais uma, antes de perder o ar grave,
que hei-de por força ter. Não me soa bem o impertinente tratamento
de excelência que me dá. Essa excelência está a
pedir-me uma senhoria, pelo menos, e confesso-lhe ingènuamente que
me custaria a voltar na língua uma palavra tão comprida.

— como quer então que a trate ? — Eu sei?… Olhe, uma
idéia! Há pouco não me comparou à Carlota de Goethe
? Deixe-me pois adoptar urna lembrança dela. Está certo de que
tratou o Werther por primo, a primeira vez que lhe falou? É um tratamento
como outro qualquer; e entre nós mais justificado, porque sendo o Sr.
Henrique sobrinho direito de D. Doroteia, e teimando minha tia Vitória,
a mãe destes pequenos e de Cristina, que D. Doroteia é ainda
uma espécie de nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós
afinal de contas vimos a ser uma espécie de primos também.

Pelo menos assim o sustentou e decidiu ontem minha tia Vitória; e
há-de ver como por primo o tratará! É um tratamento menos
incómodo ; eu chamar-lhe-ei primo Henrique ; chamar-me-á, se
quiser, prima Madalena, e desterraremos para sempre a antipática senhoria
e excelência ; concorda ? — Aceito e acho deliciosa a proposta.
Adoptamos o principio falso, admitido pela fidalguia em Portugal, de que «
os primos dos nossos primos, nossos primos são».

— Fica pois ajustado.

— Fica ajustado.

— Bem. Mas que ia dizer há pouco ? — Nem eu já
sei… Ah!… Perguntava se tinha estado muito tempo em Lisboa e o que a obrigou
a vir viver para aqui.

— Isso é nem mais nem menos do que pedir-me a história
da minha vida. Seja ; é um sacrifício inevitável a quem
se vê pela primeira vez. Deixe-me primeiro atender a estes pequenos,
que eu principio.

E, depois de partir a cada criança uma fatia de queijo, a morgadinha
principiou : — A história é curta e sem peripécias,
tranquilize-se. Eu sou filha de Manuel Bernardo de Mesquita e…

Este nome era o de um dos principais vultos políticos da época,
e que então militava no campo oposicionista, sendo indigitado para
ministro na primeira reforma ministerial, homem influente, de grande capacidade
política, tendo sempre advogado no parlamento as idéias mais
liberais, e militado no partido progressista.

Henrique de Souselas, que conhecia todas as personagens de importância
no País, fitou Madalena com olhar estupefacto : tão longe estava
de encontrar ali a filha de um futuro ministro.

— Filha do conselheiro Manuel Bernardo’ V. Ex."? — Excelência
! Esquece-se da nossa convenção ? Repare ! E verdade.

Não sabia que meu pai era daqui? Eu e meu irmão Angelo, que
estuda actualmente num colégio em Lisboa, somos os únicos filhos
de meu pai. Nasci, como disse, em Lisboa, mas as contínuas enfermidades
de minha mãe fizeram-nos vir para aqui viver na companhia dela ; aqui
mesmo morreu, e aqui está sepultada. O Ângelo nasceu já
nesta casa.

A morte de minha mãe deixou-me órfã aos doze anos,
e incompleta a educação que ela principiara a dar-me e para
a qual, se vivesse, ela só bastaria. Fui pois obrigada a voltar a Lisboa,
onde continuei com mestra a minha educação. Mas, ao chegar à
idade dos quinze anos, receando meu pai que os ares da cidade desenvolvessem
em mim gérmenes de moléstia, que porventura tivesse herdado,
mandou-me outra vez para aqui, onde sempre passava alguns meses no ano, e
para onde me chamavam também hábitos adquiridos em criança.
Eu sou muito aldeã. Para aqui vim pois. A morte de meu tio, passado
pouco tempo, impressionou profundamente a minha tia Vitória, que ficou
desde então um pouco… um pouco… com pouca paciência para
olhar por as coisas domésticas. Isto criou-me novos deveres ; havia
aqui muitas crianças, estas duas, outras que estão lá
dentro, e Cristina, que era então criança também ; ocupei-me
a ajudar minha tia.

— E tão admiràvelmente, que a mais carinhosa mãe
o não faria melhor.

— Dou-me bem com as crianças, dou. E a meu pai devo, em parte,
o ter aprendido cedo esta ciência. Porque é uma ciência
também.

— Então como procedeu o conselheiro para a ensinar? —
Eu lhe digo. Meu pai tem em certas coisas umas idéias muito singulares.
Excelentes as acho eu. Oh! não imagina que boa e excelente alma é
a de meu pai! Era eu uma criança, tinha onze anos, talvez, quando ele,
um dia, vindo de Lisboa passar aqui algum tempo connosco, me trouxe uma boneca,
realmente bonita; uma maravilha de Nuremberga.

Nos primeiros dias não me fartava de a ver, de a beijar, até
comigo a deitava. Oito dias depois sucedia o que era de esperar, já
nem dela sabia. Meu pai notou-o. — Então, Lena — aqui todos
me chamam assim — já não gostas da tua boneca? —
Disse-lhe eu: Gosto, mas… — Bem sei, já fizeste tudo o que
tinhas a fazer por ela, e como, pela sua parte ela nada faz por ti, enfastias-te,
cansas-te de conceber, a cada momento, brinquedos novos. Tens razão
; onze anos já não é idade em que o interesse se sustente
com tão pouco, é necessário mais.

Ora diz-me, Lena — continuou ele — se eu te mandasse vir uma
boneca que movesse os braços e os olhos, que te sorrisse, que chorasse
também, que te beijasse até… —Pois há bonecas
assim?—-perguntei eu, admirada.— E desejáva-la? —
Oh! se a houvesse!…—Trago-ta amanhã.

Não dormi aquela noite a pensar na boneca. No dia seguinte apresentou-
me meu pai uma criança de um ano, órfã de uma pobre família,
que uma epidemia extinguira, e disse-me : — Aí tens a boneca
que te prometi, Lena; vou confiá-la aos teus onze anos. Veremos se
tens juízo para brincares com ela. É assim que eu quero que
aprendas os deveres de mãe, que é a verdadeira ciência
apropriada a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o
desgosto dos primeiros momentos, porque o tive, confesso, costumei-me a querer
àquela pobre criança, fui avara nas suas caricias, troquei por
ela todos os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a morte,
quando, um ano depois, ela me expirou nos braços.

Quando fui para Lisboa, já ia educada para amar crianças,
Madalena contara tudo isto naturalmente, sem a menor afectação,
sem deixar até de atender aos primos, o que aumentava o interessa com
que a escutava Henrique.

— E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos Canaviais —
concluiu ela, desnatando o babeiro das crianças, que tinham terminado
o lynch.

— É verdade, mas de onde lhe vem este título singular,
prima Madalena? —perguntou Henrique, tomando ao colo uma das crianças,
que a morgadinha pousou no chão.

— É que eu sou realmente a morgadinha dos Canaviais. Quero
dizer, minha madrinha vivia na quinta dos Canaviais, uma quinta que fica daqui
perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa ; chamavam-lhe
todos a morgada dos Canaviais. Tomou-me ela afeição, e, sempre
que passeasse, me havia de levar consigo ; daí começaram a chamar-me
de pequena a morgadinha. Quando ela morreu deixou-me tudo quanto possuía
; nesse legado entrava a quinta dos Canaviais, de que sou proprietária
ainda. Foi uma como confirmação do título, que já
desde criança me tinham dado; e para todos sou aqui a morgadinha, título
na verdade pouco elegante e que tão mau conceito fez conceber ao primo
Henrique da possuidora dele.

— Retracto-me, prima Madalena; agora que sei a pessoa aquém
ele pertence, parece-me outro. Acho-o bonito, gracioso…

— Vamos, vamos. Confesse que o título não é dos
mais românticos e que, de boa vontade, escreveria outro nome debaixo
do desenho de fantasia que ai fez, da mesma maneira que deu à humilde
e fiel jumenta, que eu montava há pouco, a conformação
e orelhas elegantes de um palafrém, e quase me transformou em uma amazona
inglesa.

Henrique respondeu, sorrindo: — Na impossibilidade de reproduzir as
graças naturais, socorri-me ao expediente das belezas de convenção.
Confesso o meu deplorável erro.

— Olhe que não estamos em Lisboa, primo Henrique. Repare para
essas árvores e refreie o sestro galanteador com que está.

— Por quem é ! Nao leve o rigor a tal extremo. Tão injusta
é consigo, que se recuse a aceitar, como naturais e sinceras, as frases
que a sua presença inspira? — Ai, meu Deus, como refina ! Veja
como essa criança, que tem no colo, o está encarando com os
olhos espantados. Se ela nunca ouviu falar assim aqui ! Henrique beijou as
faces da criança, movimento em que não ia uma intenção
menos lisonjeira do que nas frases que dissera, porque ele percebia que Madalena
era extremosa pelos seus pequenos primos.

Abriu-se, neste meio tempo, a porta da sala, e entrou, saltando, outra criança
mais crescida, mas ainda de vestidos curtos, trazendo na mão uma folha
de papel.

— Lena — dizia ela em voz alta. — Olha ; queres ver o
que o Sr. Augusto só me emendou hoje no tema de francês? Chegando
ao meio da sala, parou a olhar com estranheza para Henrique.

— Ê o Sr. Henrique de Souselas — disse Madalena. —
O hóspede da tia Doroteia. Esta é Mariana, outra de minhas primas
— acrescentou, vcltando-se para Henrique. — Já vê
que não faltam crianças nesta casa ; e ainda há mais.
É o que lhe dá o ar alegre que tem.

Mariana cumprimentou Henrique e não se constrangeu por mais tempo
; mostrando à prima a composição que o mestre lhe emendara,
disse : — Ora vê que nao tive muitos erros.

Madalena sorria, examinando o tema.

Henrique ia a fazer não sei que pergunta a Mariana, quando à
mesma porta, por onde ela entrara, apareceu o mestre, de quem se falava.

Augusto, que assim se chamava o recém-chegado, era um rapaz de pouco
mais de vinte anos de idade: de rosto pálido e fisionomia inteligente.

Ninguém adivinharia naquele tipo um mestre-escola de aldeia.

Trajava com simplicidade, porém com asseio e gosto, e havia em tôda
a sua figura certo ar de distinção, que feria quem pela primeira
vez o visse.

Num leve pendor de cabeça, no olhar penetrante e fixo, e nos lábios,
como habituados a fecharem-se à saída dos pensamentos íntimos,
lia-se o carácter pouco expansivo daquele adolescente.

Madalena dirigiu-lhe a palavra, em tom de manifesta deferência.

— como vão os seus discípulos, Sr. Augusto ? —
Óptimamente, minha senhora — respondeu o interrogado.

— O Sr. Augusto — disse Madalena, apresentando-o a Henrique
— o primeiro mestre de meu irmão Ângelo e hoje mestre de
Mariana e Eduardo.

— Esquece-se, minha senhora — acrescentou Augusto — que
de Angelo sou discípulo também, e mais discípulo do que
fui mestre.

— Do que me esqueci, e, a falar a verdade, não devia, foi de
que de Ângelo é efectivamente mais do que mestre, é amigo
; assim como de todos nós. Este senhor — continuou ela, concluindo
a apresentação — é o senhor Henrique de Souselas,
eme se esperava em Alvapenha; é ainda nosso primo.

Os dois cortejaram-se com afável delicadeza.

— Teve carta de Ângelo ? — perguntou em seguida a morgadinha.

— Não recebi ainda o correio de hoje.

— Nem nós; e é de estranhar que meu pai pelo menos não
me escrevesse ! Ângelo não virá passar a festa connosco
? Pobre rapaz ! Parece que renasce quando se vê aqui. É uma perfeita
criança então.

Eduardo, outro primo de Madalena, que Henrique ainda não vira, entrou
neste momento na sala, trazendo um maço de cartas na mão.

Depois de cumprimentar Henrique, a quem Madalena o apresentou, disse para
Augusto : — A mama deu-me essas cartas para o Sr. Augusto escolher daí
aquelas que eu pudesse 1er.

— Eu verei devagar — disse Augusto, guardando-as numa pasta
que trazia.

— Ah ! já temos o Eduardo a 1er cartas ! — disse a morgadinha,
afagando o primo.

— Pelo que vejo — disse Henrique de Souselas, vendo Augusto
em disposições de partir — tem uma vida muito ocupada
? — E tanto que sou obrigado a pedir licença para me retirar.

Tenho de ir esta tarde a casa do Seabra…

— Ai, lecciona ainda as pequenas do brasileiro ? — perguntou
Madalena.

— Ainda, sim, minha senhora.

— E como vão essas mulatinhas ? Augusto encolheu os ombros,
sorrindo ; gesto que não devia lisonjear a vaidade do sobredito brasileiro,
se tomasse a peito os dotes intelectuais das referidas mulatinhas.

Passados segundos, Augusto retirou-se apertando a mão a Madalena
que familiarmente lha estendeu, e a Henrique, que a imitou.

— Ia apostar que vai ali uma inteligência — disse Henrique
ao vê-lo sair — algum desses grandes espíritos que vivem
e morrem ignorados e improdutivos, porque os não aquece o sol do favor
público, nem os bafeja a aura da moda caprichosa. É terra de
maravilhas esta, ao que estou vendo.

— É um rapaz inteligente, é — disse a morgadinha
— e uma alma generosa. Desde tenra idade costumou-se a trabalhar. Não
tem família.

O pai foi um pobre e honrado advogado de um lugar perto daqui, que morreu
quase na miséria, deixando-o por educar. A mãe, que era destes
sítios, para aí veio, depois que viuvou. Ele tem sido, pode
dizer-se, mestre de si mesmo. Dirigiu os primeiros estudos de Ângelo
e hoje é o seu melhor amigo. A morgada, minha madrinha, legou-lhe um
patrimônio para ele se ordenar: não quis, e preferiu ser mestre-
escola. Meu pai, que lhe reconhecia inteligência para mais, tentou dissuadi-lo
disso, mas nada conseguiu. Não há quem o arranque destes sítios.

— Prende-o talvez alguma paixão? — Não sei. É
certo que é um professor modelo. O seu primeiro despacho foi temporário
; agora, porém, espera meu pai fazê-lo efectivo ; para o que
já ele fez novo concurso. Já vê que ambições
são as deste rapaz.

— Na verdade ! com muito menos fundamentos há quem aspire a
ser ministro. Mas com certeza o coração entra como elemento
no problema desse carácter.

— Mas ainda agora reparo ! — exclamou a morgadinha — eu
esquecida a conversar, e sem avisar a minha tia e Cristina da sua chegada
! Não o fiz logo, porque as sabia ocupadas em umas longas novenas,
em que andam ; mas agora é tempo. Vai Mariana, e tu, Eduardo ; ide
ambos dizer-lhes que está aqui o… o primo Henrique de Souselas.

Mariana e o irmão saíram a correr.

— Vai conhecer duas boas almas — disse Madalena, voltando-se
para Henrique — minha tia é uma santa senhora, cujo pior defeito
é supor-se vítima dos criados; e Cristina… Cristina é
um anjo.

r V HENRIQUE DE SOUSELAS sentia-se cada vez mais penetrado da simpatia que,
logo à primeira vista, aquela mulher lhe despertara.

Havia na morgadinha um misto de candura e de ironia, certa delicada reserva
flutuando, como uma sombra diáfana, na conversa familiar, a que tão
espontaneamente se dava ; um visível conhecimento dos usos e etiquetas
sociais, e ao mesmo tempo uma coragem para cortar por eles, como quem se sentia
sobranceira a toda a ousadia, inacessível às suspeitas dos mais
atrevidos : havia tantos enigmas naquela simpática índole feminina,
que poucos seriam impassíveis diante dela.

A pensar nisto se ficou Henrique de Souselas, calado, imóvel, absorto,
seguindo com os olhos os movimentos de Madalena, que, sem o menor constrangimento,
prosseguia nas suas ocupações domésticas.

Ouviram-se finalmente passos e vozes de diferentes timbres na sala imediata.

— Elas aí vêm — disse a morgadinha.

De feito, precedidas por Mariana e Eduardo, entraram na sala D. Vitória
e Cristina.

A mãe vinha dizendo : — É o que eu digo… Não
que vocês não querem crer ! Ora vejam se isto se atura… se
isto não é para meter uma pessoa no Inferno!…

Não tem que ver !… Não há ninguém que mais
dinheiro gaste com criados e que seja tão mal servida como eu!… Eu
só queria saber o que fazem os criados desta casa? Sim, só queria
que me dissessem o que eles fazem, esse bando de mandriões !… Ele
é o Torcato, ele é o Luis, ele é o Damião, ele
é a Ermelinda, ele é a Rosa, ele é a Violante… e nao
havia um só que me viesse dizer que tinha chegado o primo ! É
forte coisa !… Comprometem uma pessoa ! Então como está ?
— acrescentou ela, mudando de tom para cumprimentar Henrique, a quem
estendeu a mão.

Madalena, ao ouvi-la, tinha já trocado com este um olhar malicioso.

Henrique correspondeu delicadamente à saudação das
senhoras e procurou justificar os criados.

— Não mos desculpe — atalhou D. Vitória, elevando
outra vez o tom de voz — aquilo é de propósito para fazerem
ficar mal uma pessoa; ninguém me tira isto da cabeça… Aquilo
é de propósito! — Mas a marnã não vê
que as criadas estavam connosco à novena ? — lembrou timidamente
Cristina.

— Pois que não estivessem. Quem tem serviço a fazer
não pode ouvir novenas.

— Mas se a mama é que as mandou ! — Pois sim… pois
sim… mas… mas elas é que me deviam dizer nue tinharn que fazer.
Então eu é que lhes hei-de estar a lembrar as suas obrigações?
Não me faltava mais nada! Ora tens coisas, menina! Mas então
vamos a saber, primo Henrique, fez bem a sua jornada? Henrique principiou
a falar para desvanecer a irritação de P. Vitória.

como nós já sabemos dos pormenores da tal jornada, aproveitaremos
a ocasião para dizer duas palavras a respeito das novas personagens,
que estão em cena.

D. Vitória, havendo atingido já a idade respeitável
dos quarenta e tantos anos, dispensa-nos grandes longuras e esmeros de descrição.

Basta que o leitor saiba que era uma senhora nutrida, bondosa no fundo,
e que sabia muito bem trazer os vestidos escuros da sua viuvez. Impertinente
com os criados, doida pelos filhos e sobrinhos, muito sujeita a esquecimentos,
e confundindo-se facilmente sempre que tentava forçar o espírito
a abraçar alguma idéia mais complexa ; mãos rotas com
a pobreza; intolerante, em teoria, com os ladrões e malfeitores, porém
felizes deles se daquelas mãos lhes dependesse a condenação
; eis o que era D. Vitória. Cristina, porém, tinha dezanove
anos ; e esta idade goza de privilégios, que eu não posso infringir.
O leitor não me perdoaria se me visse passar estouvadamente por diante
da prima de Madalena, sem um olhar de homenagem à sua juventude e ao
seu tipo feminino. Reparemos pois.

Cristina era mais bonita do que bela. Não havia naquele rosto uma
só feição, que não fosse correda e delicada. Tez
alva e finíssima ; olhos meigos e quebrando-se com suavidade infantil
; boca, de onde parecia sempre prestes a sair um afago ou uma consolação
; voz, que da muita piedade daquele bom coração, tirava às
vezes modulações comoventes ; numa palavra, uma figura de querubim,
como as sonharam os mais inspirados artistas, cuja mão representou
na tela os augustos mistérios do cristianismo, tal era a primogénita
de D. Vitória. Mas não procurassem nela alguns daqueles atractivos,
que fixam de repente e como por magnífico influxo, a atenção
dos olhos, uma dessas particularidades fisionômicas, pelas quais a natureza
destruindo com arrojo feliz a geral harmonia de um semblante, consegue torná-lo
mais fascinador ; temperavam-se ali tão completamente todas as feições,
que a atenção não se sentia obrigada a passar do conjunto
delas, o que lhes diminuía muito a intensidade. É o grande senão
dos rostos harmonicamente perfeitos.

Concordava-se em que Cristina era galante, ninguém lhe negaria simpatias
; mas o pensamento na ausência dela, não se sentia dominado por
a sua imagem: perdia-a até num vago, quando pretendia fixá-la:
eram suaves de mais as inflexões daqueles contornos, brandas as tintas
que lhes davam relevo, para que a memória conseguisse reproduzir fácilmente
o tipo angélico, de que lhe ficara uma agradável mas vaga impressão.

Por um homem, em que predominasse a razão, Cristina poderia vir a
ser adorada; mas nas imaginações ardentes, nos corações
inflamáveis, difícil lhe seria produzir alguma impressão
duradoura.

Para bem se compreender a beleza de Cristina, era preciso sondar- lhe primeiro
o coração, apreciar todo o tesouro de sentimentos que ali se
continha ; então descobrir-se-lhe-ia nas feições certa
beleza ideal, reflexo de bondade e candura, uma dessas claridades que as almas
puras e generosas vertem nas fisionomias. Se nao fosse recear-me da Iinguagem
que saiba a filosofia, diria que a beleza, que possuem umas mulheres assim,
é uma beleza subjectiva.

De tudo isto é natural concluir que Henrique de Souselas podia simpatizar
com a cândida figura de Cristina, a qual baixava timidamente os olhos
diante dele, corando cheia de enleio e confusão, mas que qualquer sentimento
que ela lhe inspirasse não conseguiria por muito tempo desviar-lhe
o sentido dos encantos mais atraentes da morgadinha — que a muitos respeitos,
menos na bondade de coração, formava contraste completo com
sua prima.

Travara-se animada conversação entre as pessoas presentes,
e principalmente entre Henrique, D. Vitória e Madalena.

D. Vitória quis ser informada da doença de Henrique. Este
passou a fazer-lhe uma exposição igual, com pequenas variantes,
à que fizera à tia.

Mencionou, como a ela, aqueles vagos sintomas, aquelas tristezas, impaciencias
e desalentos, que tão ingènuamente a boa senhora classificara
como mania.

Enquanto Henrique falava, Madalena pôs-se a rir.

Henrique tornou para ela os olhos.

— Ó menina, de que ris tu ? — perguntou D. Vitória,
com certo tom de severidade.

— Rio-me daquela doença, tia. Pois já viu alguém
padecer daquilo? Ora diga? — Eu?… mas…

— Pode dizer que nao. E contudo o primo Henrique não mente.

Há daquelas doenças na cidade, há; mas na aldeia são
tão raras, que eu mesma as estranho já, eu que as vi em outro
tempo…

— Então não crê na realidade delas.

— Não lhes estou a dizer que sim ? Oiço até que
já têm levado ao suicídio. Acredito-o. Os hábitos
da civilização afeiçoam a seu modo a natureza humana
e criam moléstias novas, que nem por isso são menos naturais.
Mas que quer, primo ? A minha estranheza, ao ver um desses doentes em plena
aldeia, não é modificada por todas essas considerações.

É como um homem de casaca e gravata branca ; não há
nada mais sério e mais grave numa sala de baile, mas coloque-mo num
monte, e diga se o pode olhar a sério.

— Quer dizer que não devo queixar-me aqui, sob pena de zombarem
de mim.

— Tanto nao digo ; mas não o entenderão ; isso não.

— Porém a minha doença não é só
dessas, que se não dão na deia, prima Madalena ; eu creio que
verdadeiras desordens orgânicas…

— Ah ! também ? com esse aspecto de robustez ? !…

— Se eu sei o que tu estás aí a dizer, Lena! —
disse D. Vitória, que não tinha percebido bem o diálogo.

— É que eu, minha tia, teimei em fazer perder ao primo Henrique
dos os maus hábitos da cidade, com que veio para aqui. Sem isso o pode
curar-se.

— Sujeitar-me-ei da melhor vontade a tão agradável domínio.

— Principia mal, se principia com uma fineza. Já o avisei há
pouco…

— Será necessário tornar-me grosseiro, para me salvar
? Nesse caso renuncio à cura.

— Grosseiro, não; basta que seja razoável e sobretudo…

— Acabe.

— .Acabo? eu sei? Eu às vezes sou sincera de mais.

— Eu adoro as sinceridades.

— Já que o quer… É preciso que seja razoável
e sobretudo…

esafectado.

Henrique de Souselas mordeu ligeiramente os lábios, corando.

— Então acha?…

— Acho que está sempre a imaginar-se num salão ; faz
uns gestos e galantaria, desnecessários e perdidos.

— Ó meninos, eu não vos entendo — repetia D. Vitória,
Madalena sorriu.

— Digo eu que…

Um criado entrando com as cartas do correio, não a deixou continuar.

— Sempre chegou o correio ! — exclamou Madalena com vivaciade,
recebendo as cartas. —Porque veio tão tarde? — A mulher
contou-me lá umas histórias de uma queda, e…

— Coitada ! Aconteceu-lhe algum mal ? — Esteja descansada, minha
senhora. Ela partiu já e era um gosto -la a correr.

Madalena abriu com presad a carta recebida.

— É de meu pai — disse ela, olhando-lhe para a letra
e, depois e pedir licença, começou a 1er para si.

— Pois agora — dizia, neste meio tempo, D. Vitória a
Henrique— que deve é aproveitar estes bonitos dias para dar alguns
passeios.

As pequenas acompanham-no. Aonde me dizias tu no outro dia que querias ir,
Cristina? — Eu ! — disse Cristma, corando.

— Tu, sim, menina. Ainda ontem me falaste nisso. Ora onde era?…

— A Senhora da Saúde, mama.

— Ai, é verdade, à Senhora da Saúde. Aí
está já um passeio bonito.

e? Saem daqui uma manhã cedo, levam alguma coisa para lá comer,
porque o ar do monte abre o apetite, e a cavalo estão lá num
instante…

— A cavalo, mamã ! daqui à Senhora da Saúde ?
Ora ! Vai-se muito bem a pé — notou Cristina do lado.

— Isso é por os açudes.

— Pois por onde havíamos de ir ? — Por a Granja, que
é melhor.

— Por a Granja ! É uma légua ! — Que tem? mas
escusam de trepar como cabras por o lado dos açudes, que até
é perigoso ; e depois para que hão-de ir a pé, se para
aí estão os cavalos sem fazerem nada? É vontade de se
cansarem.

— Mas apetece ainda mais neste tempo. Só se… só se
ali o Sr. Henriaue…

— disse Cristina, embaraçada ao continuar.

— Eu o quê, minha senhora? — Perdão — interrompeu
D. Vitória. — Porque não hás-de tu chamar primo
ao primo Henrique? pois não chamamos tia à tia Doroteia? —
Por isso mesmo, mama — respondeu Cristina — os sobrinhos da tia
Doroteia não são…

— Não averigüemos desses parentescos, priminha —
acudiu Henrique — eu aceito a proposta da mama, peço para ser
considerado do número de seus primos.

Cristina baixou os olhos, sorrindo.

Henrique prosseguiu: — Mas parece que receava por mim, quando falou
em ir a pé à Senhora da Saúde. Não sei onde é
o lugar, mas desde já me comprometo a não cansar.

— Não tem que saber — disse D. Vitória, caminhando
para ume janela. — Ela lá está. Olhe que ainda é
necessário saber trepar.

— Tendo duas tão galantes companheiras de viagem — tornou
Henrique, depois de reparar no monte escarpado que ficava a alguma distância
dali, o mesmo que o almocreve lhe mostrou — parece-me que daria a pé
uma volta ao globo e que subiria a correr o Pico de Tenerife.

— O que eu lhe digo, primo — acrescentou D. Vitória —
é que se acautele, porque se lhes vai a fazer todas as vontades, tem
que ver.

— Ainda que morresse em tão agradável serviço,
teria de agradecer a Deus a morte.

— Cá me chegou aos ouvidos o cumprimento — disse Madalena,
que continuava a 1er. — Logo ajustaremos contas.

— É implacável esta nossa prima, não acha? —
perguntou Henrique, sorrindo, a Cristina, que por única resposta só
soube sorrir também.

— Pois então, é arranjarem, é arranjarem isso
e quanto antes, que não há que fiar no tempo. Eu se pudesse
também ia, mas já não são passeios para mim, e
depois estes criados…

Henrique de Souselas receou nova divagação sobre o assunto
predilecto de D. Vitória ; mas felizmente acudiu-lhe a morgadinha,
que disse, terminando a leitura da carta: — Escreve-me o pai que tenciona
vir passar connosco as férias do Natal e trazer Ângelo consigo.
Promete demorar-se até ao dia dos Reis.

As crianças saudaram a nova com gritos de alegria, e saltos de causarem
inveja a um clown de circo.

D. Vitória zangou-se.

— Então que pouca – vergonha é essa ? Parecem-me um
bando de patetas ! Ora vamos ! Já quietos. A culpa tem a Ermelinda,
que já vos devia ter levado para a quinta. Ó Senhor, esta praga
de criados, que nunca há-de fazer a sua obrigação ! As
crianças reprimiram um pouco mais as expansões de seus júbilos,
mas ainda ficaram cantando a meia voz, em música de composição
delas, o seguinte: — Vem o primo Ângelo ! Vem o primo Ângelo
! Ora viva, viva ! Ora viva, olé ! — Psiu ! Calai-vos ! —
bradou ainda D. Vitória ; e voltando-se para Madalena: — Mas
então como se entende isso, Lena? Então o pai diz que vem…

— Nas vésperas do Natal.

— Sim, nas vésperas do Natal, e vai…

— Depois dos Reis.

— Sim; está bem; e… sim… e então o Ângelo?…

— O Ângelo vem com ele. Quer ver a carta? — Não,
menina. Mas é preciso não fazer confusão… Então…

— Não há nada menos confuso… É só isto.

— Sim ; pois agora, sim ; agora está bem claro. Calai-vos,
diabretes ! Oh meu Deus, quo consumição ! Mas então porque
não entregou o criado há mais tempo essa carta ? Eh ! não
que vocês dizem que eles…

— Ó tia, pois não ouviu que foi a mulher das cartas
que se demorou, porque…

— Histórias ! Não me venham para cá com esses
contos. Vocês estão sempre prontos para desculpá-los.
São eles…

— 0 Lena, Lena — diziam as crianças — o primo Ângelo
não torna para Lisboa? — Há-de tornar.

— Ora! — Olha lá, ó Lena — disse D. Vitória
— sabes tu o que me lembra?…

Mas eu nem sei… com estes criados que tenho… Mas a mim lembra-me…
uma vez que teu pai vem com o pequeno… e… está agora cá
o primo Henrique… lembra-me a mim… mas, já digo, era se eu pudesse
contar com os criados que temos… lembra-me, juntarmo-nos todos para consoar…
A prima Doroteia também, e aqui o primo; mas era se…

uma perfeita ovação acolheu o projecto; as crianças
levaram as suas demonstrações de entusiasmo até ao delírio,
penduraram-se ao pescoço, à cinta, ao avental da mãe,
gritando todas a um tempo: — Ai, sim, mama, sim ; mande convidar a tia
Doroteia, mande ! E há-de ficar em casa, sim? Olhe e… e arma-se o
presépio… e… e…

e havemos de cantar as janeiras… Mande, mande, mamã, por as alminhas
; ora mande.

D. Vitória fingia arrenegar-se com aquela pequenada, e erguia o braço,
como para a fustigar asperamente, mas, contra a sua vontade, rompia-lhe o
riso dos lábios.

— Saiam daqui ! — exclamava ela, quando conseguiu estar séria.

— Saiam!… Não ouvem?… Espera que eu vos falo… Ai, não
fazem caso ? Ora esperem… Mariana, já dévias ter mais juizo…
Então, Eduardo ! Tu também ? Não tem vergonha ! Um homem
quase ! Saiam daqui, estafermos !

A idéia das consoadas em familia fora uma idéia, que a ninguém
deixara impassível. Cristina, a tímida Cristina, não
disfarçou um movimento de júbilo ; as mãos juntaram-se-lhe
instintivamente, e raiou-lhe no olhar suave um fulgor pouco costumado.

A própria Madalena não se mostrou superior àquela tocante
puerilidade.

Aproximou-se com viveza da tia, e beijando-a nas faces, disse-lhe afectuosamente
: — Ora aí está o que é muito bem-pensado.

— Pois sim, sim, mas o pior é… os criados — disse D.
Vitória.

— Quem fala nisso ? Na noite de Natal quem mais trabalha somos nós.
Demais, teremos, para dirigir as tarefas, a Maria de Jesus, a criada da tia
Doroteia.

— Isso é que é a pérola das criadas ! Oh ! aquela
prima Doroteia, aquela sua tia, primo Henrique, é que teve felicidade!
Mas dizes tu…

Bem se importam os de cá com a Maria.

— Não tem dúvida. Naquela noite quanto mais barulho
e desordem, melhor — aventurou-se a dizer Cristina, com ímpeto
revolucionário.

— Aí temos outra ! Não, filha ; isso é que não.
Para barulhos é que eu já não estou. Então, não.

— Está resolvido — disse a morgadinha, para cortar pelas
divagações da tia. — Aqui o Sr. de Souselas — acrescentou,
com maliciosa inflexão — fica desde já encarregado de
transmitir à tia Doroteia o nosso plano e, desde já, oficialmente
convidado.

— Aceito da melhor vontade.

— Não sei se o deva dizer. É preciso que o avise de
que naquela noite todos têm de trabalhar na cozinha ; a ninguém
se dispensa, um minuto, pelo menos, de colaboração nos guisados.
Por isso veja lá…

— Ó menina, tens coisas ! — disse D. Vitória.
Deixe-a falar, primo.

— Não é deixe-a falar. Eu não dispenso ninguém.

Júlio Dinis
Júlio Dinis

Um grupo de crianças e de mulheres do povo escutavam…

— E eu prometo não me recusar. Prontifico-me a tornar detestáveis
os pratos em que puser a mão. Que mais querem? Foi alegremente acolhida
a promessa.

As crianças, familiarizadas já com Henrique, em quem tinham
adivinhado um humor jovial, o que é sempre para elas um motivo de atracção,
trepavam-lhe já aos joelhos e dirigiam-lhe perguntas sobre perguntas,
dificultando-lhe as respostas.

— Havemos de jogar o rapa, não havemos ? — Havemos de
jogar, havemos — respondeu Henrique.

— E o par ou pernão ? — Também ; também
havemos de jogar o par ou pernão.

— E?…

— Tudo, tudo ; havemos de jogar tudo.

— Olhe : e sabe contar histórias ? — Sei também
contar histórias.

— Então há-de contar-nos, que nós também
lhe contamos a da Gata Borralheira, a da Maria de Pau e a da Menina com as
três estrelinhas na testa.

— Ora, o Sr. Henrique já as sabe — disse, fazendo-se
sisuda, Mariana.

— Pois não sei, não, senhora; quem lhe disse que eu
as sabia Y hei-de querer ouvir isso tudo.

— Ó meninos ! — exclamou D. Vitória, que até
ali estiverà distraída a discutir com Madalena. — Então
isso que é ? Já para baixo.

Ai, se lhes dá confiança, está arranjado, primo.

— Deixe-os estar, minha senhora, este contacto de alegrias é
salutar ; pegam-se.

— E não o diga a brincar — disse Madalena — que
também confio nessas crianças para o curarem dos seus males.

— Então deveras empreendeu curar-me ? — com toda a certeza.

— Nesse caso havemos de discutir devagar esse ponto de patologia.

— Não havemos, não, senhor. É mau médico
o que sofre que o doente o interrogue sobre a moléstia e o tratamento.
O médico deve ser obedecido com fé, e cega.

Cristina que, havia muito, defronte de Madalena,, fazia esforços
por lhe chamar a atenção, resolveu-se a falar-lhe.

— Lena — disse ela — que te parece a lembrança
que teve há pouco a mama? — A das consoadas ? Excelente.

— Não, menina, a do passeio à ermida.

— Ah! Excelente também. Marquemos já o dia.

— Quando queres ? — Depois de amanhã, que é quinta-feira-
— Seja, — Que diz, primo Henrique ? — Quando quiserem, primas;
agora mesmo…

— Mas, veja lá, atreve-se a fazer uma madrugada ? — Pois
não viu hoje ? — Ai, pois não! Na aldeia não se
chama isso uma madrugada.

É preciso que se levante às horas, a que se deitava na cidade.

— Que estás a dizer, Lena? — acudiu Cristina.—Deixe-a
falar.

Basta que saiamos daqui às cinco horas.

— Esta inocente Cristina ! Pois não é o mesmo que eu
digo ? Pergunta ao primo Henrique se tinha costume de se deitar mais cedo
em Lisboa.

— Engana-se, prima Madalena; lembre-se de que, há perto de
um ano, sou valetudinario.

— Ai, é verdade, que me tinha esquecido. O que vejo é
que há por aqui muita indolência.

— Quem a ouvir falar, há-de julgar que será ela a mais
madrugadora ; ora havemos de ver — disse Cristina.

Madalena põs-se a rir.

E o passeio ficou ajustado. A morgadinha lembrou que se convidasse Augusto,
por ser conhecedor do sítio e poder mostrar os mais belos pontos de
vista.

Henrique saiu finalmente da quinta do Mosteiro, já retardado uma
boa hora ao que prometera à tia Doroteia.

Um criado serviu-lhe de guia até Alvapenha.

Henrique de Souselas, ao findar aquela manhã, era inteiramente outro
do que viera para a aldeia. Todas aquelas horas se haviam passado, sem que
o afligissem os males habituais, sem que nem sequer pensasse neles. O viver
íntimo a que assistira, a troca recíproca de afectos entre os
membros de tão numerosa família, a franqueza cordial com que
fora recebido, produziram nele uma impressão profunda.

Costumado ao viver desconsolador e de gelo de rapaz solteiro e só
; não passando, nas casas que visitava, além da sala de visitas,
esse palco artificioso e reservado, onde as famílias ante as famílias
representavam a comédia social, Henrique estranhara, mas agradavelmente,
o espectáculo, quase novo, daquele interior, daqueles modestos costumes,
daquelas alegrias, que não se envergonham de aparecer sem reservas
nem disfarces. Foi uma revelação que recebeu. Sorriu- -lhe a
idéia de ter um dia uma família assim ; de viver entre crianças
que lhe trepassem aos joelhos, na companhia de afectos, que ali via manifestarem-se,
e até com alguém que ramasse com os criados, à maneira
de D. Vitória.

Escusado é dizer que a imagem da morgadinha aparecia sempre nestes
quadros que lhe traçava a fantasia : assim como, nos quadros dos grandes
mestres, aparecem quase sempre reproduzidas as feições queridas
da mulher que eles traziam no pensamento e a quem deram assim a imortalidade.

De manhã parecera-lhe a aldeia um paraíso terreal ; completara-o
a figura de uma mulher ; sem o sorriso dela nem o primeiro homem seria feliz
no éden, onde a mão de Deus o colocara.

— Anda, vagaroso, anda — disse D. Doroteia a Henrique, assim
que o viu chegar. — Se o jantar tiver esturro, a culpa é tua.

— Perdoe-me, tia. Demorei-me no Mosteiro…

— Ah ! foste lá ? E então gostaste daquela gente ":
— É uma família para o coração. Passa-se
o tempo ali tão depressa ! A morgadinha, sobretudo, é adorável
! — Ai, ai; como ele nos vem! Olha lá no que te metes, menino!
A mina boa é, mas… filho, anda ali encanto, que ainda ninguém
descobriu.

Henrique fitou os olhos na tia Doroteia, que dissera isto com certa malícia.

— Que quer dizer, tia? — Tu bem me percebes. Anda lá,
anda. Se fizesses tu o milagre, se quebrasses o encanto, grande coisa seria
; mas sempre te digo que não tomes a coisa a peito, que podes agravar
o teu mal.

Henrique levou o caso a rir, mas é certo que esteve um pouco mais
preocupado e distraído no resto da tarde.

VI 0 leitor, se alguma vez realizou uma viagem na companhia de qualquer
amigo, há-de ter observado que, durante os primeiros tempos que passam
juntos numa terra para ambos desconhecida, tão alheios às coisas
como às pessoas, no meio das quais se vêem, nem por momentos
se sofrem separados ; um segue sempre o outro em todos os passos que dá,
precisa dele para comunicar-lhe as primeiras impressões recebidas,
e pedir-lhe em troca as suas ; à medida porém que, pouco a pouco,
se vão familiarizando mais com os lugares e com as personagens daquele
mundo novo, afrouxa a constrição desses laços, e cada
um principia a readquirir a independência individual que de moto próprio
havia abdicado.

Um facto semelhante nos sucede com Henrique de Souselas. Encontrámo-
lo na estrada ; na companhia dele entrámos em uma terra, onde tudo
nos era estranho ; nada mais natural do que dar o braço um ao outro,
passar juntos a manhã, e fazer, em comum, as nossas visitas.

Agora, porém, que temos já algum conhecimento da terra e da
gente, é tempo de nos declararmos independentes, e sacudirmos o jugo
de uma companhia forçada, a qual, embora seja de um amigo estimável,
se é forçada, é sempre jugo, em certas ocasiões.

Os próprios Castor e Pólux, ou Pílades e Orestes, penso
eu, haviam de ter momentos em que se desejassem sós ; se é que
não deviam aos deuses a felicidade de possuírem curtos espíritos,
o que nao creio.

Deixemos, pois, Henrique de Souselas entretendo com a tia Doroteia a mais
pacífica das conversas que podem auxiliar a digestão de um jantar;
deixemo-lo no tranquilo recinto de Alvapenha, e vamos associar-nos a um dos
nossos recentes conhecimentos, que é Augusto, o mestre de Mariana e
de Eduardo, aquele pálido rapaz que entrevimos na sala da casa do Mosteiro.

Ao sair dali, Augusto seguiu através de campos e à beira de
vaiados, com aquele ar pensativo que lhe era peculiar.

O pouco que da história dele soubemos, pelas palavras da morgadinha,
é já bastante para que nos não admire a quase incessante
melancolia de Augusto.

Aos vinte anos e sem família ! com inteligência e mal podendo,
à custa de sacrifícios, cultivá-la à altura das
suas aspirações ! Alma generosa e compassiva, tendo muita vez
de limitar-se a chorar os infortúnios que via, porque a pobreza lhe
negava meios de remediá-los !… não serão estas ainda
nuvens bastantes para toldarem a luz de uma existência, embora a juventude
as ilumine? Havia alguns anos que esta disposição para a tristeza
se exacerbara em Augusto. Coincidiu o facto com algumas circunstâncias,
que convém referir.

A morgada dos Canaviais, madrinha de Madalena e de quem viera a esta o nome
de morgadinha, pelo qual mais conhecida era na aldeia, havia ao morrer instituído
um legado a favor de Augusto, então criança, com a condição
de ele abraçar a vida eclesiástica. O conselheiro, pai de Madalena,
devia administrar este legado, educando o rapaz nas escolas de Lisboa ou Porto,
desde o dia do seu primeiro exame até ao da primeira missa, porque
nesse lhe entregaria o capital por inteiro.

Isto sucedeu no tempo em que a mãe de Augusto, que havia dois anos
viuvara, lutava com a miséria, e o rapaz, pela sua penetração
e pelo entusiasmo com que aprendia, causava o espanto do velho mestre règio
da localidade.

Foi por todos abençoada a memória da morgada, por tão
bem cabido legado, que era ao mesmo tempo que remédio às privações
de uma família, prèmio e estímulo à inteligência
e à aplicação de uma criança, que prometia vir
a ser… Deus sabe o quê.

Ninguém se lembrou de perguntar a si próprio se a cláusula,
posta pela legatária como condição à concessão
do benefício, não podia ser uma crueldade que o anulasse ; se
comprar um futuro por dinheiro, sem querer saber a quantidade de aspirações,
de esperanças, de fantasias que sejam, a que se tem de renunciar pelo
contrato, não é uma iniqüidade ; se não era uma
quase simonia ir a casa do pobre, e fazendo luzir os reflexos do ouro nas
sombras da miséria, propor-lhe trocar por estes tesouros, que o fascinam,
os valiosos tesouros da alma. Eu por mim abomino estes legados condicionais,
que um espírito malévolo, egoísta e desejoso de dominar
ainda depois da morte, tantas vezes dita; essas meigas generosidades sao às
vezes a causa do infortúnio de uma vida inteira; aceites ou recusadas,
é raro que depois, a cada provação que nos experimenta,
uma voz interior nos não exprobre o partido que abraçamos. —
« Louco ! para que hesitaste em trocar meia dúzia de fantasmas
por um bem real ? Quem te mandou sacrificar a vaporosos ídolos de poetas
o benefício que te ofereciam ?» — dirá ela aos que
rejeitaram o pacto. — «Ambicioso ! — clamará aos
outros — aí tens a felicidade que julgaste comprar à custa
do que há de mais nobre na alma humana ; embriaga-te agora no incenso,
em que envolveste o altar do bezerro de ouro, consumindo aí as tuas
mais santas e generosas aspirações». Augusto não
adivinhou porém logo a crueldade da disposição testamentaria.
Era muito criança ainda; e depois uma ideia nobre o preocupou ; compreendeu
que ia ser o amparo daquela pobre mãe, que só podia abrigá-lo
com os extremos do seu muito amor.

Seu pai, morrendo, apenas conseguira deixar uma herança: foi à
viúva o dever de velar pelo filho. Augusto exultou vendo que podia
inverter aquele legado, velando ele pela fraca mulher, que, para bem o cumprir,
esgotaria decerto a vida.

Redobrou por isso a solicitude no aprender ; desenvolveu-se mais e mais
a inteligência, quase espontaneamente, pois justo é confessar
que bem rudes eram os cuidados de cultura que o velho magister lhe sabia dar.
Mas quem ignora os surpreendentes efeitos que da inteligência e do estudo,
da aptidão e da vontade, podem resultar? Dotem um homem dessas duas
faculdades poderosas e neguem-lhe embora os rneios de progresso, ele caminhará,
inventando-os primeiro, se tanto lhe for preciso.

E depois, é um grande alento aos espíritos superiores a consciência
de uma nobre missão a cumprir. Não há fadigas que tal
estímulo nao vença; abnegação, que não
inspire.

A Augusto era-lhe incitamento a idéia de que sua mãe precisava
dele.

Quando ainda aos seus treze anos fosse já bem conhecida a grandeza
dos sacrifícios que lhe exigiam, não hesitaria talvez, instigado
por aquela aspiração ; quanto mais que ainda mais lhe tinham
animado os sonhos, as doces imagens, tão gratas ao coração
do adolescente, e a que teria de renunciar.

Suspirava pelo dia do seu próximo exame, o qual, graças aos
esforços empregados, não se fez esperar muito.

Quando se aproximava a ocasião, o pai de Madalena mandou ir Augusto
para Lisboa e hospedou-o em sua casa até que chegou o dia.

Não confiando demasiadamente no ensino público da aldeia,
o conselheiro quis que o "seu pequeno hóspede recebesse algumas
lições de um professor da cidade, e deste obteve as melhores
informações da inteligência do rapaz, que só por
milagre dela conseguira sair muito pouco eivado dos vícios do ensino
de campo.

Augusto demorou-se algumas semanas em casa do conselheiro, Afinal fez o
exame, no qual foi felicíssimo, obtendo nele as mais distintas qualificações.

Imagine-se o efeito que a notícia produziu na aldeia. Exagerando-se,
dizia-se por lá que em tôda Lisboa corria a fama do rapaz, e
houve até quem nao hesitasse em afirmar que a criança confundira
os mestres, que fora uma maravilha.

O mestre-escola reclamou para si a glória do acontecimento, fundando-se
em que, através do discípulo, resplandecia a ciência do
mestre.

Os invejosos disputavam-lhe porém tão inquestionável
glória e riam-se dele.

A pobre mãe, essa, levou todo o dia a chorar de prazer e a render
graças à Virgem, a quem tanto encomendara o filho.

Voltou Augusto à terra.

Era o rapaz o assunto de todas as conversas : olhavam-no como um prodígio.
Todos o queriam ver, como se até ali o nao tivessem visto bem, e de
feito todos o foram ver; nem o abade, nem o administrador, nem o presidente
da Câmara faltaram. Foi tudo. Pois bem, de tantos que o viram, não
houve um só que não notasse que o pequeno vinha triste.

Ninguém contestava o facto : que ele como que saltava aos olhos ;
as interpretações é que variavam.

— Aquilo é dos ares de Lisboa; a quem não está
costumado… — dizia um.

— São canseiras de estudos — aventava outro. —
Há lá coisa que puxe mais por uma pessoa do que o estudo ! —
Não que vocês cuidam ! Um exame sempre abala a gente cá
por dentro — dizia um doutor, que levara dez anos a vencer um curso
de cinco.

Fosse pelo que fosse, Augusto trouxera de Lisboa uma melancolia, que os
ares da sua terra não dissiparam e que aumentava sempre que lhe falavam
no futuro e no legado da morgada.

Quem mais a estudou, e sentiu aquela súbita melancolia, foi, como
era de supor, a receosa mãe. Deus sabe que noites mal dormidas, que
sustos e que íntimos terrores ela lhe causou! Perguntas, súplicas,
argüiçoes, lágrimas, promessas, nada tiravam de Augusto,
que teimava em responder que nada tinha que o afligisse, que era a ilusão
de quem o via a tristeza que lhe supunham, e, para confirmar o que dizia,
ria; mas era mais triste aquele riso, do que o pranto, em que se desafogasse.

Para breve estava a entrada de Augusto no colégio de Lisboa, onde,
à custa do legado da defunta proprietária dos Canaviais, devia
continuar nos seus estudos, quando o rapaz pediu para ficar algum tempo na
aldeia. Não se pôde atinar com os motivos deste pedido. Indolência
não era ; pois no entretanto começou a estudar os rudimentos
do latim com o ilustre professor, que o leitor conhece já, mestre Bento
pertunhas.

A saúde vacilante da mãe de Augusto declinou nesse Inverno
; o que veio dar outro motivo à demora do filho.

Dias e dias passou o pobre rapaz sentado à cabeceira do leito dividindo
os seus cuidados entre o estudo e os carinhos pela estremecida enferma. Dois
anos se passaram desta vida, e quando, ao fim deles, Augusto abandonou aquele
leito, foi depondo um beijo nas faces geladas de um cadáver.

Era órfão.

A vaga sombra de melancolia, que já lhe toldava o rosto, condensou-
se-lhe mais então. Era quase um negrume de tristeza.

Por esse tempo, veio o conselheiro trazer Madalena para a aldeia, pois receava
pela saúde dela se persistisse em Lisboa.

O conselheiro propunha-se levar consigo Augusto, quando vollasse a Lisboa.
uma manhã, porém, este, de pouco mais de quinze anos, procurou-o
e disse-lhe com uma gravidade, que revelava uma tenção meditada
e irrevogável: — Venho prevenir V. Ex.ª de que desisto do
legado da sr.ª morgada.

Não quero ordenar-me.

O conselheiro fitou-o, estupefacto.

— Não queres ordenar-te! Porquê?…

— Já não tenho mãe a quem amparar. Por ela forçaria
a minha vocação sem remorsos ; por interesse próprio
não o posso fazer ; parece- me um sacrilégio.

O conselheiro era um homem muito do século. O seu trato social, a
freqüência dos círculos políticos e elegantes, haviam-lhe
dado todas as boas e más qualidades, que caracterizam aquela classe
de homens, e sabe-se que a candura de sentimentos não entra no número
das mais habituais dessas qualidades. Tinha uma razão clara, mas fria;
se abraçava uma boa causa, não o fazia cedendo ao entusiasmo,
mas somente depois de ponderar neumáticamente os fundamentos em que
ela se baseava; assim era que, em política, se costumara a contemporizar,
espaçando a adopção de qualquer medida, inquestionavelmente
boa, para tempos em que fosse mais conveniente ; não se apaixonava
por utopias, desconfiava delas ; havia muito tempo que desviara dos olhos
o prisma encantado, através do qual olham o mundo os poetas e todos
os mais sonhadores ; costumara-se a marcar por modelo, nas diferentes carreiras
da vida, não um tipo ideal, dotado de todas as virtudes, limpo de todos
os defeitos e vícios ; assentara a menor altura o alvo ; parecia- -lhe
que bom fito eram já os indivíduos que tinham conseguido maior
consideração na sua classe ; as máculas que eles tivessem
eram, por esse facto, máculas autorizadas. O pensar de outro modo era
pensar de romance ; agradável para entreter, porém mau nas aplicações
às coisas da vida. Numa palavra, o conselheiro era um homem de bem,
mas na esfera mundana ; não um daqueles tipos de pureza cristalina,
através da qual parece passarem sem desvio os raios da luz celeste;
mas já um tanto embaciado do bafo social, que não o fazia ainda
totalmente opaco.

Por isso sorriu à declaração de Augusto. A carreira
eclesiástica não lhe parecia tão escabrosa, como o futuro
sacerdote a fazia ; nem tão dura a lei, como em teoria se mostrava.
O conselheiro não pensava necessário tomar ao pé da letra
certos deveres impostos ; o mundo seria, como ele, tolerante em naturais infracções
; por tudo isso se riu.

Fez a Augusto uma longa dissertação sobre as vantagens da
vida eclesiástica, sobre os muitos interesses que lhe prometia, e a
leviandade com que ele queria renunciar a uma carreira segura, movido pelas
instigações de um espírito timorato ou de uma visão
fantástica.

Augusto insistiu. Sem corar perante o sorriso céptico do conselheiro,
declarou que não abraçaria a vida eclesiástica sem que
se sentisse com a coragem precisa para cumprir todos os deveres que ela lhe
impunha ; que era preciso uma grande abnegação, e que ele, depois
da morte de sua mãe, não tinha a certeza de a conseguir. Nos
interesses não pensava, e se pensasse, seria isso a primeira prova
de não estar preparado para a missão de que se queria encarregar.

Quando alguém abraça com lealdade e franqueza uma boa causa,
dificilmente é vencido. O conselheiro, costumado a não recuar
nas mais acerbas lutas do parlamento, calou-se dentro em pouco às objecções
daquela criança. como que teve remorsos de tentar sequer desvanecer
as ilusões a que o via abraçado — ilusões pelo
menos as supunha ele ; parecia-lhe uma obra satânica envenenar com um
sorriso aquele ideal em que vivia. — Respeitou-o e calou-se.

— Alguma criancice amorosa dos quinze anos — pensou para si.

Deixemos ao tempo convencê-lo. Não me encarregarei eu desse
papel, que é pouco simpático. Quem me restituirà aquelas
canduras ! Teria alcançado menos no mundo, mas talvez tivesse gozado
mais… ou melhor…

O conselheiro cedeu aparentemente, esperando que a reflexão modificaria,
mais tarde, as idéias do rapaz.

Exigiu dele que a ninguém anunciasse as tenções em
que estava de não se ordenar, pelo menos enquanto não passasse
mais tempo sobre aquela resolução.

E uma vez que ficava na terra, pediu-lhe o conselheiro que se encarregasse
da primeira educação de Ângelo, então de nove anos;
pois mais confiava para isso em Augusto, do que no professor oficial.

Augusto aceitou com prazer a incumbência, que, sobreadequada aos seus
gostos, lhe abria uma carreira, que ele já imaginara adoptar.

De então nasceu uma íntima amizade entre Ângelo e Augusto.

Foram rápidos os progressos do discípulo, e não menos
reais as vantagens que ao mestre resultaram do ensino, que lhe desenvolvia
cada vez mais a inteligência. — O conselheiro tinha motivos para
estar satisfeito da escolha.

Ao fim de um ano as repugnancias de Augusto em aceitar o legado eram as
mesmas ; o egoísmo paternal do conselheiro não o deixou ser
muito ardente a combatê-las. — Espaçou-se mais uma vez
a decisão.

Outras lições apareceram a Augusto, as quais ele acolheu com
gosto ; o mestre-escola reclamava também muitas vezes o seu auxílio
; compadecido da sua velhice, Augusto nunca lho recusou.

O velho acabou por declinar nele o serviço todo, sem que Augusto
consentisse em receber por isso o menor estipendio.

O público não se cansava de perguntar quando sena que o rapaz
principiaria os seus estudos em Lisboa e porque o não fazia já.
como não obtivesse resposta, comentava o facto, corno costuma comentar
todos os que não entende.

No entretanto, a educação de Augusto não ficara estacionaria.

com grandes sacrifícios a continuara ele ; e num ermo, como era aquela
aldeia, tinha muito de milagre o que fazia.

O latim de mestre Bento já mal satisfazia às impaciencias
do espírito deste discípulo entusiasta ; e não era raro
que a inteligência de Augusto visse mais fundo nos textos, do que a
experiência do mestre.

O acaso favoreceu os desejos do estudante.

Numa freguesia próxima estava, como abade, um doutor em teologia,
homem de sólido saber e de reputação extensa.

Um dia em que, por convite do seu colega, viera assistir e pregar na festa
do orago da aldeia, o padre encontrou-se com Augusto na sacristía e,
conversando-o, admirou-lhe a penetração, cativou-se da sua modéstia
e lamentou não estar mais perto dele, porque o auxiliaria, como pudesse,
nos estudos.

Augusto perguntou-lhe se era sincera aquela vontade ; afirmando- lhe o padre
que sim, respondeu que não seria então estoivo a distância,
porque ele a venceria.

E daí em diante, duas vezes por semana, às quintas-feiras
e domingos, franqueava légua e meia dos mais escabrosos caminhos, para
ir ouvir as lições do erudito abade. Assim se aperfeiçoou
na latinidade, cultivou a filosofia e adquiriu o gosto pelos nossos velhos
prosadores e poetas. Vinha de lá carregado de livros para 1er durante
a semana.

Tôda a biblioteca do padre lhe passou pelas mãos.

Era porém o teólogo clássico exclusivo e nada visto
em línguas e literaturas modernas.

A sorte não recusou ainda a Augusto um novo mestre.

Entre os muitos estudos de estradas, de que os governos em Portugal fazem
preceder, vinte anos antes, a construção definitiva de uma só,
que de ordinário sai sempre como se não fosse tão estudada,
um houve que levou à aldeia, em que eu e o leitor nos achamos, um engenheiro
que aí fez quartel e centro de operações, durante três
meses inteiros, A casa em que ele se alojou ficava próxima da de Augusto.
Cedo travaram conhecimento os dois. O engenheiro o menos que possuía’
eram livros de matemática; mas, enquanto a literatura moderna, trazia
nas malas e baús uma excelente provisão.

Não tendo que fazer às noites, entreteve-se a ensinar o francês
a Augusto e a ler-lhe os livros da sua biblioteca portátil. Voavam
as horas a Augusto naqueles serões ; neles aprendeu todos os nomes
da nossa literatura moderna, bem como os principais da de França e
Inglaterra. .

Quando o engenheiro partiu da aldeia já Augusto sabia o francês
bastante para se aperfeiçoar por si ; este amigo deixou-lhe em lembrança
grande parte dos seus livros, que Augusto releu muitas vezes.

Atingiu finalmente Ângelo a idade de precisar do colégio. O
conselheiro, ao levá-lo consigo, insistiu mais uma vez com Augusto
para que viesse também e aceitasse o legado da morgada. Foi em vão,
encontrou- o ainda inabalável.

E desta vez fez pública a sua desistência, e o ambicionado
patrimônio foi concedido a outro.

Meses depois morria o velho mestre-escola da aldeia.

Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquele lugar,
que já havia muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se interessasse
por que ele o obtivesse. O conselheiro quis tirar-lhe da idéia tal
projecto ; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o não
ter ambições era indício de uma profunda doença
moral; que a posição, a que ele aspirava, eqüivalia a uma
sepultura estreita a que se acolhesse vivo. Augusto persistiu porém
no intento; o conselheiro empenhou-se por ele em Lisboa. Conseguiu que uma
portaria, meio pelo qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa,
o dispensasse da idade que ainda não tinha, pois mal completara dezanove
anos, e Augusto foi por conseguinte admitido a concurso para tão pouco
disputado lugar e provido nele por três anos. O conselheiro, a quem
não fora impossível obter-lhe despacho vitalício, quis
ver assim se, no fim de três anos, o obrigava a abandonar tão
laboriosa e mal recompensada carreira, e de propósito o fez despachar
temporariamente, Conquanto o legado da morgada tivesse tido já outra
aplicação, o conselheiro não hesitaria em proteger, em
qualquer carreira, o mestre de seu filho.

Mas ao fim de três anos, Augusto, apesar de por experiência
conhecer já os espinhos da profissão, apresentou-se novamente
ao concurso para ob’ter novo despacho. Na época em que abrimos esta
narração, voltara Augusto de pouco de ultimar a nova prova;
e estava pendente ainda a decisão do ministério competente.
Desta vez tivera um competidor, homem muito protegido por influências
da localidade, as quais ainda não tinham podido vencer a do conselheiro,
que pugnava por Augusto.

Desde que fora para Lisboa, Ângelo não se esquecera de escrever
amiudadas vêzes a Augusto, contando-lhe dos seus estudos, e descrevendo-
lhe a sua vida na capital ; e quando vinha a férias, procurava transtir
ão que fora seu mestre a ciência que durante o ano adquirira.

Foi assim que Augusto principiou a estudar a língua inglesa, geografia
e a história.

Recebido o primeiro impulso, a sua inteligência e aplicação
faziam resto.

Um homem que havia na aldeia e com quem cedo teremos de travar conhecimento,
um velho ervanário, para alguns um sábio, para tros um louco,
para todos um homem honrado, concorreu também, m o seu contingente,
para a educação de Augusto.

De tempos a tempos, este velho misterioso apresentava-se em casa ele com
um pacote de livros debaixo do braço e, sorrindo, pousavaíos
em cima da mesa.

Eram quase sempre aqueles, que Augusto mostrava ou sentia mais desejos de
possuir. Da primeira vez, Augusto fitou o ervanário com espanto. Ninguém
o supunha rico ; como podia ele pois obter aqueles livros, alguns dos quais
eram de preço? O velho porém disse- -lhe, ao perceber-lhe a
surpresa: — Não queiras saber da minha vida, rapaz. Supõe
que eu tenho a servir-me uma vara de condão ou uma fada qualquer, e
deixa correr.

Augusto acabou por persuadir-se de que o ervanário tinha acumulado
riquezas, à força de economias: porque de economias vivera sempre.

De pequeno merecera àquele velho uma singular simpatia, e com afecto
de pai fora sempre tratado por ele.

Resignou-se a aceitar sem reflexões ; até porque sabia ser
fácil o escandalizar o velho com elas. O que fazia era evitar, na presença
dele, qualquer palavra que pudesse denunciar desejos de possuir um livro qualquer.
Mas o velho, como se tivesse de facto algum poder oculto a informá-lo,
às vezes parecia adivinhar ; e trazia-lhe livros que Augusto deveras
desejava, mas a respeito dos quais tinha a certeza de lhe não ter falado,
nem eram daqueles que o velho conhecia.

A seu pesar via-se quase inclinado a adoptar a crença supersticiosa
do povo a respeito daquele seu velho amigo.

Pensando melhor, pareceu-lhe procederem de Ângelo as informações,
pelas quais o velho se guiava na escolha. Não lhe atribuía porém
o presente, porque as economias de Ângelo não chegavam para tanto.

Depois de tudo quanto temos dito de Augusto, poderá ainda o leitor
estranhar os ares pensativos com que o vemos? Poucos passos andados, depois
que saiu do Mosteiro, encontrou Augusto a distribuidora das cartas, que lhe
entregou uma sobrescritada para ele. Era de Ângelo.

Augusto abriu-a imediatamente e leu-a ainda pelo caminho.

Era uma extensa carta, em que se sucediam os períodos em um desses
longos, incoerentes e difusos arrazoados, que constituem a essência
de uma carta de amigo para amigo.

Ângelo falava dos seus estudos, de saudades da terra, de esperanças
e de projectos, projectos que, naquelas idades, nascem e morrem a todo o instante.
Terminava esta carta, em que lhe participava a sua vinda à aldeia pelo
Natal, com o seguinte periodo: «Peço-lhe que diga à Lindita
que se não esqueça de mim. Dentro de poucos dias conto ir ver
os coelhos do quintal dela, e ajudá-la a tirar’ a água do poço.
O pai dela chega aí ao mesmo tempo que esta carta ; leva um livro para
si. » Augusto sorriu, ao 1er o pós-escrito.

— Pobre Ângelo ! — murmurou ele. — Deus não
permita que sobreviva à tua última criancice essa simpatia por
Ermelinda. Estas generosas afeições de criança muitas
vezes, ao crescer, envenenam o coração.

Havia tanta amargura nestas reflexões de Augusto ! E, como absorvido
nelas, caminhou para casa do recoveiro Cancela, que era o pai da pequena,
a quem na carta se aludia.

VII

Acasa do recoveiro Cancela ficava numa das mais estreitas ruas da aldeia
e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das diversões
do proprietário, que ali gastava algumas horas disponíveis da
sua ocupada e laboriosa vida.

Cancela era um verdadeiro judeu errante da aldeia. A maior parte do tempo
ia-se-lhe nas estradas ; pernoitava hoje numa estalagem ; viam-no amanhã
já a mais de seis léguas de distância ; acotovelava um
dia a multidão nas ruas e feiras da cidade ; no outro entretinha os
curiosos da sua terra, deixando-lhes entrever os tesouros da experiência
adquirida à custa de muitos anos de fadigas.

As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que conjuntamente
vieram, não destruíram totalmente esse tipo dos antigos tempos,
anterior a elas. Além da época, que parecia dever marcar-lhes
limite à existência, passaram, sustentados pela força
dos hábitos e justificados pelas irregularidades dos serviços
das postas ; e Deus sabe quando de vez acabarão. Mas Cancela era além
disso um recoveiro de uma espécie rara e superior. Em todas as profissões
há sempre, no meio do vulgo, que as exerce sem entusiasmo nem consciência
dos gozos, superiores aos interesses, que elas podem oferecer, certo grupo
de escolhidos, que as idealizam, e enxergam um raio de poesia através
das sombras, uma flor entre os espinhos. Cancela era destes ; era o poeta
da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um turista, e assim
aproveitava todos os ensejos que se lhe oferecessem de explorar algum ponto
do País, ainda por ele desconhecido.

Este instinto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações
do conselheiro, pai de Madalena, com as famílias da aldeia, e a barateza
relativa das recovagens operadas por este meio primitivo, proporcionavam-lhe
algumas ocasiões disso, as quais o Cancela de boamente aproveitava.
Era de uma dessas expedições que ele devia voltar aquela manhã,
como o dava a entender a carta de Ângelo.

Quando porém Augusto lhe bateu à porta, achou-a ainda fechada;
escutou à fechadura, mas não pôde verificar o menor sinal
de que alguém estivesse dentro.

— É cedo ainda — pensou consigo. — Vejamos se estará
em casa do compadre.

Seguiu mais para diante pela rua por onde viera. — A poucos passos
mais, e do lado oposto, deparou-se-lhe outra casa de aspecto não menos
rústico do que a primeira, uma pequena casa térrea, de uma só
porta e uma só janela, e com o respectivo quintal ao fundo.

Do interior vinha um sussurro de vozes, como de conversa animada ; julgando
que seria o Cancela, de quem o proprietário era, além de vizinho,
confidente e compadre, Augusto empurrou a porta, que estava apenas cerrada
e entrou.

A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento quadrado, todo adornado
à volta de cruzes de pau, para as devoções da via-sacra,
e de imagens de santos e santas em caixilhos de todos os tamanhos.

Mais do que os outros enramelhetado e enfeitado, via-se ali o bento registo
de uma confraria, havia pouco tempo instituida na terra pelos missionários,
o qual ocupava o lugar de honra naquela devota exposição.

Era recente na aldeia o estabelecimento desta confraria, sociedade um tanto
misteriosa, por meio da qual seus interessados instituidores só visavam
a dar o reino do Céu aos filiados, contentando-se «apenas»,
em paga, com o do mundo, do qual, lembrados de antigos tempos, têm saudades
já. Os missionários, certos evangelizadores em terras onde a
palavra do Evangelho não é chave que abra a porta, pela qual
entraram os mártires no Céu, lá andavam por aquele tempo,
na aldeia onde se passa a acção desta história, plantando
a vinha, que eles chamavam do Senhor; as mulheres, abandonando os lares, seguiam-nos
como rebanhos ; o culto católico era por eles cada vez mais arrebicado
com orações absurdas e cerimônias ridículas, e
o eterno anatema da ignorância contra o progresso da sociedade servia
de tema predilecto aos seus bárbaros discursos.

Ardente prosólita destes apóstolos de fé duvidosa,
a Sr.* Catarina do Nascimento de S. João Baptista, a metade feminina
do casal em questão, tomara por modo de vida as devoções
da igreja, onda ia chorar as desgraças da humanidade, que tão
fora via andar da estrada direita.

Augusto pouco se demorou nesta sala ; respeitando a alcova conjugal, que
era vedada aos olhares profanos por uma colcha de chita de largas e folhudas
ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia à cozinha de onde lhe continuava
a chegar aos ouvidos o som de vozes, que primeiro o atraíra.

Ao contrário do que esperava, porém, só uma pessoa
encontrou na cozinha, conquanto falasse com a vivacidade que em poucos diálogos
se mantém.

Esta pessoa era o dono da casa, o Sr. José do Enxerto, ou vulgarmente
chamado ti’Zé-Pereira — nome que lhe vinha do popular e ruidoso
instrumento, o clássico zabumba, que nas nossas aldeias tem ainda hoje
aquele nome. — Era muito para ver e admirar a mestria, com que o nosso
homem o sabia tocar nas festas e arraiais, à frente das procissões
e cercos, e finalmente em todas as solenidades públicas.

O ti’Zé-Pereira era homem dos seus quarenta e tantos anos ; tinha
no rosto, principalmente no nariz, vestígios evidentes das suas simpatias
pela divindade celebrada nos antigos ditirambos. Esposo da Sr.’ Catarina do
Nascimento de S. João Baptista, vivia em perene sabatina com a sua
cara-metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas salvando
sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no ofício
de hortelão e, aos domingos e dias de festa, à força
de rufos e pancadaria na retesada pele do seu companheiro inseparável
— o zabumba. Era aos cuidados e vigilância deste par conjugal
que o recoveiro Cancela confiava o seu mais precioso tesouro, a pequena Ermelinda,
uma mimosa criança, que lhe ficara à sua viuvez tão cheia
de saudades, e a quem ele mais queria do que à menina dos olhos.

Ermelinda era afilhada da família Zé-Pereira, e a mesma a
quem ouvimos referir-se Angelo no fim da carta.

Zé-Pereira estava, como dissemos, só na cozinha, quando Augusto
ali chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo
para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e vazio,
falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e rouca da sua
escala de barítono, até ao mais agudo e desafinado falsete.
A língua pegava-se-lhe ao céu da boca, dificultando-lhe suspeitosamente
a articulação de algumas sílabas ; era evidente que se
apossara do hortelão o espírito familiar, o qual, neste caso,
era um verdadeiro espírito, na acepção química
do termo.

Zé-Pereira era um homem baixo, já grisalho, suficientemente
nutrido, de olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o entusiasmo,
o rapto artístico se apoderava dele ; usava de umas suíças
que pareciam tentar sumir-se-lhe pela boca dentro ; tinha longos braços,
acomodados as dificuldades e evoluções da sua arte, e pernas
que, do joelho para baixo, lhe divergiam em ângulo de mais de trinta
graus.

Quando Augusto deu com ele, o homem monologava, gesticulando : — Ora,
senhores, que é forte desgraça a minha!… É forte desraça!…

Aqui estou eu!… Um homem casado… casado à face da Igreja… que
me casou em dia de Sant’Iago o abade que foi… e que Deus tenha em descanso.
Não faltou nada… correram-se banhos diante de quem os quis ouvir,
e não houve quem pusesse impedimento… porque u não devia nada
a ninguém… sempre fui liso de contas… Sou casado com a Catarina
do Nascimento de S. João Baptista, filha do Antônio Canhestro,
do lugar dos Fojos… E casado para quê? Faz favor de me izer? Para
que casei eu?… Forte desgraça a minha! Casei-me para isso!… Para
vir para casa e achá-la vazia, o lume apagado e o caldo na horta…
e a mulher a papar missas e novenas lá por essas igrejas…

Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! É forte
desgraça!… Bem morria eu de frio e de fraqueza, se não fosse
aquele quartilhito… o timo, que sempre me deu sua aquela… sim… sempre
me conchegou estômago. Não que dizem que o vinho que faz, que
o vinho que aconece…

Pois casem-se com uma mulher que vá de madrugada para a reja e venha
de lá quando muito bem lhe pareça, e verão depois se
o vinho não serve de cobrir muita lazeira que se sofre… verão
depois…

Ora, senhores, que é forte desgraça a minha !… Diz que Deus
que disse, que a mulher que era a carne da nossa carne e o osso do nosso osso…

Deus devia de vez em quando tornar a dizer estas coisas… para não
esquecerem… como se faz na escola com a tabuada. A minha Catarina já
o não sabe, aposto… e pelos modos os padres não lhe dizem
isto na Igreja… pois deviam dizer!… A carne da minha carne e o osso do
meu osso!… mas é carne e osso que me não fazem caldo… Ora,
senhoes, que é forte desgraça a minha !… como há-de
um homem, se isto assim continua, pegar na enxada para dar uma cavadela ou
fazer qualquer sachada?… E também quero ver como hei-de no arraial
procissão de Santo Amaro, que não tarda aí, dar sequer
um rufo assim mais tal… assim mais científico? Eu se fosse bispo…

A caudalosa corrente deste soliloquio foi interrompida pela apação
de nova personagem à porta do quintal.

— Deixe estar, meu padrinho, deixe estar; tenha um bocadinho e paciência.
É um instante enquanto acendo o lume e lhe faço o caldo. Verá.

A pessoa, que assim falava ao entrar para a cozinha, era uma rapariga de
doze anos, alva e franzina, como a mais delicada criança a cidade,
com os olhos negros e expressivos de inteligência e de doçura,
e com os mais formosos cabelos louros que ainda enfeitaram uma cabeça
infantil. Não havia neles sombra que desvaecesse aquela cor deslumbrante
; reflectia-se-lhes a luz nas ondas, naturalmente lustrosas, como em tenuíssimos
fios de metal ; usava-os oitos e caídos, sem vislumbre de artifício,
de um e de outro lado o colo.

Condizia com a expressão angélica do semblante o suave e afecoso
timbre de voz com que falara.

O leitor prevê decerto que é Ermelinda, a filha do Cancela,
ou Lindita, como geralmente na aldeia lhe chamavam, a criança que tem
na sua presença.

Ermelinda sobraçava um molho de hortaliça, que fora colher
ao quintal, e dirigia-se com ela para o lar, que o descuido e a indiferença
conjugal deixavam ainda apagado àquela hora do dia.

Dando, porém, com os olhos em Augusto, parou, sorrindo-lhe.

— Ai, pois estava aí, Sr. Augusto?! E o meu padrinho talvez
sem reparar.

A estas palavras o desditoso marido voltou a cabeça è fitou
em Augusto um dos seus desemparelhados olhos.

— Olá, Sr. Augusto ! Viva ! Passe muito bem ! Entre ; esta
casa é sua… De jantar não lhe ofereço… porque…
porque… Forte desgraça a minha… Olhe! repare para este desaforo!…
Venho para casa, morto de trabalho… e vejo o lar apagado ! A minha mulher
está a ouvir missa, a confessar-se, a comungar… a tomar todos os
sacramentos… acho que os está a tomar todos… Louvado seja Deus
! Vem aí tão limpa de consciência, como eu estou do estômago…
Ora, senhores…

— Deixe estar, padrinho… Verá como isto se arranja depressa…

Olhe ; o lume já está aceso — dizia Ermelinda, acendendo
efectivamente o lume no lar.

— Já o dévias ter feito antes, Lindita — disse
Augusto, sentando-se junto dela.

— Mas se ainda agora vim das presas, onde fui lavar a roupa? —
Pobre pequena — disse o Zé-Pereira — também não
te há-de faltar lazeira, também ! — A mim? Agora. Não
que eu não sai de casa com as algibeiras vazias.

— Pois sim… mas é sempre preciso coisa que conforte… Ainda
se tu bebesses… já não digo um quartilho…

— Credo, meu padrinho! Que está a dizer? — Que espanto!…
Ora, senhores, que parece que o vinho é bebida amaldiçoada,
que todos lhe têm medo ! É ver se o padre na missa…

— Padrinho ! padrinho ! que vai dizer ? — interrompeu Ermelinda,
quase aterrada.

— Eu digo o que é verdade, rapariga!… Tenho minha presunção
de nunca dizer senão a verdade… Lá o pespeguei na cara do
sr. juiz de direito e mais do sr. doutor delegado e mais doutores, quando
fui a um juramento, por causa daquelas pancadas no recebedor… É que
nenhum desses santalhões, desses missionários, me têm
que ensinar nesse ponto… Os missionários!… Eu, um dia, tiro-me
dos meus cuidados e vou-me ao trabalho de lhes ir perguntar, quando eles estiverem
no púlpito, se Deus lhes manda que tirem as mulheres de casa, para
que os maridos não tenham que comer, quando voltarem do trabalho…

Um dia ainda lhes vou perguntar… isso vou…

— Olhe; a água não tarda a ferver; verá que dentro
em pouco…

continuou Ermelinda.

— Bem, Lindita, bem — disse Augusto — em paga da boa vontade,
com que trabalhas, vou dar-te uma alegre nova.

— A mim? Diga, — Trago-te visitas de alguém, que em poucos
dias te dará em vez de visitas, um abraço.

— De quem? Ah!… Angelo escreveu-lhe? — como adivinhaste depressa
! — Pois de quem mais havia de ser ? Mas diz que… em poucos dias…
Então ? — Tê-lo-emos cá pelo Natal.

— Fala verdade ? — Assim mo diz nesta carta. Queres 1er? —
Para quê? — respondeu a rapariga, fitando porém o papel
com os olhos cheios de curiosidade.

— Ora lê, lê… Até para ver se ainda te recordas
das lições que eu te dei.

— Ai, lá isso… mas, o caldo do meu padrinho…

— Deixa que o lume é que o há-de aquecer e não
a tua presença.

Ermelinda aproximou-se ; tomando a carta das mãos de Augusto, começou
a lê-la com intensa curiosidade.

Zé-Pereira prosseguiu no seu monólogo : — A religião,
senhores — dissertava ele—não manda tal… Isso é
que não manda… A religião é a palavra de Deus… e
Deus disse…

sim… Deus disse… Deus disse muita coisa… Disse que por este deixarás
pai e mãe. Ora a santa madre igreja é mãe, é,
sim, senhores ; que tem lá isso? mas não é mais mãe
do que a outra mãe… e então… senhores, uma mulher não
deve deixar por ela o seu marido ; porque o marido, senhores, é o tudo
de uma casa, e o ganha-pão da família. Ora, senhores, que é
forte desgraça.

O monólogo do desconsolado cônjuge e a leitura de Ermelinda
foram interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua: O dinheiro paga
tudo, Nao se fica a dever nada; Toma, toma o limão verde, Ó
da íresca limonada.

E logo em seguida estalaram as tábuas do soalho no corredor sob uns
passos pesados e ruidosos, e no limiar da porta da cozinha desenhou-se a figura
agigantada e hercúlea do recoveiro Cancela, pai da Ermelinda. Cancela,
ou o João Herodes, que assim também lhe chamavam por ter criado,
nos autos em que era actor aplaudido e popular, o tipo do sanguinário
e infanticida rei da Judeia, fora pela natureza dotado de uma estatura e robustez,
dignas de Adamastor.

Encontrava-se nele uma dessas felicíssimas realizações
dos temperamentos sanguíneos que, sem ameaçarem de insultos
apoplécticos, dão riqueza ao sangue, vigor aos músculos
e à fisionomia o aberto.e colorido da saúde e os reflexos da
satisfação interior.

A barba negra e espessa cercava-lhe as faces coradas, e o natural fulgor
dos olhos parecia aumentado sob o duplo arco de vastas sobrancelhas, que,
quando contraídas os rodeavam de sombras ameaçadoras, de onde
fuzilavam relâmpagos. Era formidável então ! O riso pairava-lhe,
porém nos lábios, quando na presença de amigos, descobrindo-lhe
duas fileiras de alvíssimos e bem dispostos dentes, desses que os excessos
e absurdos culinários ainda não deterioraram.

Parando à porta da cozinha, o Herodes (às vezes lhe chamaremos
assim, cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguém,
que mais que tudo trazia na memória — a filha. — Esta,
pela sua parte, mal o reconheceu, correu a lançar-se-lhe nos braços.

O pai pegou nela, como se fosse uma pena, levantou-a à altura dos
lábios e pousou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos,
ainda palpitantes de todo aquele intenso amor paternal.

— Ah ! — exclamou, pousando-a no chão e respirando como
quem acabava de satisfazer uma intensa necessidade do coração.
— Isto consola que nem o copo de água que a gente, em dias de
calma, pede à borda da estrada, quando se leva a boca seca e queimada
de poeira! Mais do que isso me sabem estes dois beijos que te dou, pequena.
Que querem?… Ó Sr. Augusto! também por cá? —
Esperava-o, Cancela.

— A mim? — continuou o homem, pousando no chão uma maia
que trazia. — Pois aqui me tem. Mas, dizia eu, um homem quando anda
lá fora, e pensa no que lhe irá por casa, sente às vezes
uns sustos, que parece que lhe fazem tudo escuro… As desgraças, para
sucederem, não põem muito… De um momento para outro… E depois
a gente ouve por lá conversas, vê coisas que parece que são
agouros… e que nos fazem a noite no coração… umas vezes
é um enterro… outras, um desastre…

um fogo… um… E as crianças sós, e os pais fora de casa!…
Ai! Isto é de ralar o coração de uma pessoa… Eu bem
sei que em boa companhia me fica a pequena. Aqui o compadre, tirante lá
a sua aquela pelo sumo da uva… Quantos foram já hoje, compadre, hem?…
mas, tirante isso, é homem de bem; a comadre é uma santa, que
só tem o defeito de querer ser santa deveras… mas enfim… tudo isso
não obsta; uma coisa é uma pessoa saber o que lhe vai por casa,
outra… Tremem-me as pernas sempre que entro na aldeia. A primeira alma de
Cristo, que encontro, estou sempre a ver quando me vem dar alguma nova má.

Salta-me cá por dentro o coração, que ninguém
faz uma idéia; eu bem canto a ver se disfarço, mas… Ai, filha
da minha alma, quando me passa pelo pensamento que te posso um dia vir achar
doente!… Assim me sucedeu com tua mãe… Deixei-a uma vez tão
satisfeita e alegre, e vai, quando voltei, a primeira pessoa que encontro,
diz-me à queima-roupa: «Venha, Sr. João, venha, que já
não vem sem tempo. Corra a casa, se ainda quer ver sua mulher…».
Foi corno se recebesse uma descarga em cheio no peito… corri, e…

A comoção impediu-o de continuar ; disfarçou como envergonhado
daquela fraqueza, beijando a filha outra vez.

Ermelinda percebeu a perturbação do pai e disse-lhe carinhosamente
: — Para que está agora a pensar nessas coisas que o afligem,
meu pai? — Deixa-me cá, rapariga. Isto às vezes também
faz bem. Mas, por isso, quando entro em casa e te vejo, pequena, e te vejo
com boas cores e alegre… nem eu sei o que tem mão em mim, que não
me ponho a dançar. Ah!… ah!… Ninguém tem uma filha como
eu! Olhe que não, Sr. Augusto; mal fica a mim dizê-lo, mas…
Lá por Lisboa e por o Porto há muita menina galante, isso há;
muita inglesinha loura, bonitas como anjos, mas cabelos assim dourados? —
e passava com orgulho os dedos pelos vastos cabelos de Ermelinda — mas
uma pele assim delicada — e afagava-lhe com as mãos a face, quase
a medo — mas olhos assim a meterem-se mesmo pelo coração
à gente? — e beijava-lhos com paixão — isso é
que eu ainda não vi, nem tenho de ver. como o Senhor concedeu um anjo
destes a um selvagem como eu, é que não sei… É a imagem
da mãe!… Ela também era poucochinho de si… miudinha e…

Mas não pensemos nestas coisas. Sim, senhores ; eis-me aqui outra
vez, e por sinal com a minha vida por arranjar e eu posto à taramela.
Trago- -lhe uma encomenda, Sr. Augusto, e muitos recados, muitos.

— Já sei ; Ângelo escreveu-me.

— Escreveu? Ah, Sr. Augusto, que rapaz aquele! Aquilo é uma
pérola ! com três milheiros de demônios do Inferno ! dali
há-de sair coisa grande. Eu não queria morrer sem ver o que
saía dali. Brinca como uma criança, mas, quando quer, põe-se
sério, e fala como homem.

E nada de soberbas, nem de ares enfastiados, como tomam aqueles senhores
da cidade, quando conversam com uma pessoa rústica… Qual história!
Ele tudo quer saber, tudo pergunta… isso é um nunca acabar, quando
lá me pilha… Então como vai Fulano? e Sicrano? e se já
se fez aquela casa, e se já acabou aquela obra, e se já casou
este, e se ainda vive aquele, e mais para aqui, e mais para acolá,
e tudo quer muito explicado… Ah! ah! ah!… tem diabo o pequeno… Pois
cá a respeito da rapariga?… Isso é uma comédia!…
Não se farta de me ouvir falar dela… Ah, Sr. Augusto, quantas vezes
chego a ter pena de que isto nascesse minha filha.

Ermelinda fitou o pai com os olhos espantados.

— Sim, filha — prosseguiu ele. — Deus não te devia
dar a um homem como eu, que enfim… com os diabos! lá alma e coração…

nao quero que haja aí quem me leve a barra adiante. Eu por um amigo…

e com mil demônios, até por um inimigo, se não for soberbo,
vamos lá, dou a camisa do corpo… Mas o mundo… Bem, bem, eu cá
me entendo.

Vamos à minha tarefa. Mas que tem você estado para aí
a pregar, compadre, desde que eu entrei? Hum! hum! parece-me que já
se cantou a glória, hoje, visto que já se está ao sermão.

Efectivamente Zé-Pereira tinha apenas concedido ao seu compadre um
olhar de distracção e um aceno de mão, e voltara de novo
às suas queixas amargas contra a sorte e contra a esposa.

Interrogado pelo Herodes, Zé-Pereira reproduziu uma das suas lamentações;
o compadre, enquanto desenfardelava a maia, ia cortando com reflexões
próprias essa longa jeremiada.

— Então com que a ti’Zefa deixou-o sem caldo, hem? É
malfeito, a falar a verdade. Lume apagado em casa de família é
coisa triste… Aqui está um livro para si, Sr. Augusto… Mas deixe
lá, compadre, que a minha pequena arranja-lhe num ai algumas berças…
Também eu estou em jejum desde as cinco horas da manhã… mas
estes missionários ! Ah ! com seiscentas mil dúzias de demônios,
eu ainda queria um dia…

— Deus Nosso Senhor seja nesta casa — disse uma voz gemida à
porta da cozinha.

— E o demo na do abade — resmungou Herodes.

Era a Sr.’ Catarina do Nascimento de S. João Baptista, tipo de beata,
que dispensa descrição, que regressava a casa depois de completar
o ciclo das suas devoções.

— Viva a comadre ! — disse o João Cancela, continuando
a mexer na maia.

Ermelinda foi beijar a mão à madrinha.

Augusto saudou-a afàvelmente.

O marido obrigou o corpo a uma meia rotação sobre o alqueire,
e, voltando-se para a mulher, disse-lhe, agitando os braços e as mãos,
espalmadamente abertas : — Mulher dos meus pecados, mulher de não
sei que diga, olha que a paciência um dia acaba-se, mulher ! Isto não
pode continuar assim, mulher ! Eu nao me casei para que tu me andes a ganhar
indulgências na igreja, mulher!… Isto são preparos, mulher?…
Um homem chega a casa e acha o caldo por fazer, porque a senhora sua esposa
deu em ouvir nove missas por dia e uma dúzia de novenas ! — Cala-te,
cala-te — retorquiu azedamente a devota metade do Zé-Pereira
— cala-te para aí, desalmado. Excomungado seja o mafarrico, que
assim me quer atentar logo que entro em casa ! Olha lá que não
morresses de fome ! Estás mal acostumado. Louvado seja Deus ! Já
não há quem queira sofrer neste mundo mortificações
! cuidas que não tens de sofrer as do Purgatório? E Deus nos
queira dar só o Purgatório e livrar-nos das penas do Inferno.
Que muito mal fazemos por lhe merecer misericórdia! Ora que não
há-de uma pessoa poder ter as suas devoções, que não
venha encontrar lamúrias em casa ! Ó minha rica Mãe do
Céu, seja para desconto dos meus pecados ! Sume-te, inimigo mau ! E
eu que deixei de rezar oito estações, que prometi à Senhora
da Rocha, e vai… Ora digam como há-de esta gente cumprir os jejuns
que manda a santa madre igreja, se, por duas horas de espera, já se
choram todos ! Bendito e louvado seja o sacratíssimo coração
de Maria ! Ó homem de Deus, e então aqueles santos eremitas,
que viviam no deserto de raízes e de água das fontes…

— Que lhes prestasse. Haviam de andar muito gordos. Eu queria-os ver
com uma enxada a trabalhar todo o dia no campo, e que lhes dessem depois raízes
para roer, a ver se gostavam. Ora, senhores, que é forte desgraça
a minha! Mulher, a religião manda que olhemos pelo nosso cadáver.
É má cristã a mulher que deixa o seu marido na penúria.

Isto é que os padres deviam ensinar. Vai-lhes lá perguntar
se, quando chegam a casa, não têm a sopa e o toucinho à
espera deles? — Cala-te, tentador, que me andas a tentar, cala-te, tem
vergonha nessa cara. Olha agora ! Eu queria ver-te com o trabalho do sr. padre
Domingos. Coitadinho ! desde as cinco horas da manhã até agora
a confessar ! — Confessar é parolar ; ora adeus ! — Tu
estás doido, alma perdida?! — E cuidas que ele não leva
marmelada nos bolsos? — Ó chagas do seráfico S. Francisco,
ainda mais terei de ouvir?! — Mulher, deixemo-nos de histórias
; com jejuns ninguém engorda.

Só os santos… de pau.

— Vamos, vamos — disse o Herodes, intervindo. — Não
vale zangarem- se por causa disso. A minha pequena deve ter o caldo quase
feito. Comam-no em santa paz e deixem-se de testilhas, que não é
bonito ; e muito menos entre marido e mulher. Você, compadre, também
tem culpas em cartório ; vamos lá. Há por aí umas
certas capelas, onde passa também bastante tempo em devoção
; enquanto à comadre, acredite o que lhe digo : a palavra de Deus não
é tão difícil, que uma pessoa precise de estar tanto
tempo a ouvi-la explicar. Eu cá penso que, fazendo a gente aquilo que
lhe diz o coração, e que não sente nenhuma aquela em
fazer, vai por caminho direito. E mais vale fazer o que Deus manda, do que
levar a vida a pedir perdão por o não ter feito. E também
não é bonito estarem agora as mulheres, horas e horas, pegadas
ao confessionário, como lapas nos rochedos, nem…

— Compadre ! — atalhou escandalizada a Sr.a Catarina —
compadre ! É essa a educação que dá à sua
filha ? São coisas que se digam diante de uma criança de doze
anos? Ande lá, ande lá… Ora Deus queira que lhe não
encontre ainda o pago. Era bem melhor que lhe ensinasse, ou mandasse ensinar,
a doutrina; que é mesmo uma vergonha o pouco que sabe dela.

— Bem tenho eu tempo para isso. A minha Ermelinda não deixa
passar pobre à porta, a quem não dê esmola ; criança
que não afague ; velho ou velha, que não corteje ; reza todas
as manhãs a oração, que a mãe lhe ensinou, o padre-nosso
e a ave-maria, onde se diz tudo o que se deve dizer a Deus ; de dia trabalha,
como filha de pobre que é, e mulher de casa que há-de ser…
O Senhor me perdoe, se mais é preciso ainda, que mais nao sei eu ensinar-lhe.

— Não tenha soberbas, compadre, não tenha soberbas !
E cautela com o mimo que dá à pequena que é o que perde
muitas almas.

— Que mimo,. que mimo ? Logo eu com este gênio de repentes é
que hei-de dar mimo a esta pobre criança, que nem o da mãe conheceu
! — Ora diga, compadre, acha que é muito bem feito, da sua parte,
deixar andar a rapariga com esses cabelos soltos? Não sabe que o Demônio…
cruzes! arma com eles laços às almas das criaturas? —
Fracas prisões são as do Diabo, se as forja só de cabelos!..,
Então por causa das tentações é que a comadre
rapou os seus? Ah! ah! Tem coisas! É teima velha! Eu já lhe
disse, comadre: Deus, que deu à pequena esses cabelos tão bonitos,
é porque lhos quis dar. Se quiser, que lhos tire, eu é que não.

— Deus cerca-nos de tentações, para que nós as
vençamos.

— Forte tentação venceu a comadre! aposto que os não
cortaria assim, se os tivesse como os da minha Ermelinda, hem ! Cortar os
cabelos à minha filha, eu ? ! fazer daquela cabeça de querubim
uma dessas cabeças tosquiadas, que por aí andam ! — Talvez
ainda se arrependa ! — Deixe lá, comadre. O que eu vejo é
que, junto de Deus e da Virgem, se pintam anjos, como a minha pequena, e não
figuras… respeitáveis, como a da comadre; ora então…

A beata, apesar de trazer sempre na memória o Vanitas vanitatum do
« Ecclesiastes », não foi inteiramente insensível
ao remoque do compadre. Azedou-se-lhe o humor, e, voltando-se para Ermelinda,
disse-lhe como para descarregar sobre ela a má vontade com que estava
ao pai: — Sai-te para lá. O senhor meu homem tinha muita pressa
de jantar ! Deixar assim uma criança fazer uma fogueira destas ! Nem
para assar um boi ! É preciso não ter consciência.

E tirou do lume um pequeno cavaco, para justificar o dito.

Zé-Pereira monologava ainda. Augusto continuava examinando o livro
recebido.

Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No ânimo daquela criança,
que era de uma organização nervosa, excepcional na aldeia, exercia
a beata uma espécie de fascinação, um misto de respeito
e de terror, capaz de dissipar todos os risos dos seus lábios infantis.
Era outra na presença da madrinha, fitava-lhe nas faces descarnadas
e macilentas os belos olhos negros ; seguia-lhe, quase assustada, o movimento
dos lábios austeramente contraídos ; tremia ao escutar-lhe a
voz aguda e penetrante, falando nas penas do Inferno ; chorava à menor
repreensão que dela recebia, e contudo amava-a, amava-a, porque Ermelinda,
na sua candura de criança, supunha a madrinha uma santa ; avultavam-
-lhe, como virtudes beatificantes, os defeitos da devota velha ; a inocente
julgava-se uma grande pecadora quando, depois de ter na mente aquele Efeito
tipo, voltava a olhar para si, para o fundo da sua consciência ; que
negros e hediondos pecados lá encontrava ! Uma pequena menque dissera
; um domingo em que faltou à missa ; um juramento , sem o sentir, lhe
saíra da boca ; um jejum que nao guardara, e outros crimes da mesma
força. A amedrontada criança chegava a recear pela salvação
da alma.

É sempre funesta a influência que exercem sobre a infância
os caracteres como os da beata.

O Herodes percebeu a impressão sob a qual estava a filha e acudiu-
lhe.

— Toma lá, Ermelinda — disse ele, tirando da maia uma
pequena medalha com um retrato. — É um presente do nosso amigo
Ângelo para nós, ou antes, para ti…

Ermelinda pegou no retrato com não reprimido alvoroço. Era
outra vez a criança.

A madrinha lançou para a medalha um olhar obliquo e reconheceu o
retrato.

— Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo ! —
rompeu ela, com um espanto exagerado. — Este homem não tem a
cabeça no seu lugar, por mais que me digam ! Ele quer perder a filha
decerto ! A fazer a cabeça doida a uma criança ! O Herodes,
ouvindo estas palavras, pousou com ímpeto a maia no chão, e
com os olhos chamejantes e as faces injectadas, vociferou, cedendo o campo
à cólera, que se lhe acumulou no seio : — Com seiscentos
milhões de diabos ! Você que está aí a dizer, mulher?
São os sermões dos missionários que lhe têm assim
afiado a língua e deitado peçonha na baba ? Com efeito ! Saiba
que dou mais pela criança, de quem é aquele retrato, do que
por quantos sotainas lhe ouvem os seus pecados todas as semanas e por quantas
beatas andam consigo a dar marradas no lajedo da igreja. Fazer a cabeça
doida à minha filha ! Tenha mão na língua, comadre, que
lhe não sofro tanto. Doida lha trazem a vossemecê os missionários
e os sermões.

Seu marido fora eu, que a mania lhe tirava.

O Zé-Pereira, apesar dos seus desgostos domésticos, zelava
a dignidade do casal ; e não levava à paciência que outro,
além dele, dissesse daquelas verdades à mulher; por isso, ouvindo-as,
através dos sonidos que lhe chiavam nos ouvidos, levantou-se, e sustentando-se
nas pernas vacilantes, e bracejando sempre, bradou : — Compadre ! Eu
sei quais são os meus deveres ! Compadre, prudência !… Compadre,
eu não consinto… Ora, senhores, que é forte coisa ! Compadre
!… veja que eu é que sou aqui o chefe da família e esta é
minha mulher! Psiu… Basta… Compadre… basta. Então? Ora, senhores.

Mas o Herodes já nada atendia; cada vez mais lhe crescia a vermelhidão
nas faces ; a irritação rompera os diques da cordura e ameaçava
engrossar cada vez mais. Às exclamações de Zé-Pereira
respondia já azedamente.

— Ora adeus, temos conversado… Seja homem, que bem pre.

cisa… Não basta dar à língua… Na taberna não
é que se governa a casa…

A Sr.* Catarina abstinha-se agora prudentemente.

Ermelinda, pálida, a tremer, abraçou o pai, quase chorando.

Augusto, que fora alheio ao princípio da contenda, conheceu enfim
que precisava de intervir. Saiu-lhe difícil a empresa.

Ensurdeciam os ouvidos dos contendores, a um o sangue, a outro o vinho.

Depois de muito custo, conseguiu enfim apaziguá-los. Deram-se mútuas
satisfações, e separaram-se apertando as mãos.

Augusto retirou-se com João Cancela e Ermelinda.

O par conjugai ficou, renovando-se cedo entre eles a interminável
contenda em que viviam.

VIII SAINDO de casa do Zé-Pereira, Augusto teve de escutar, ainda
por muito tempo, as vociferações e pragas, com que o Herodes
acoimava a fraqueza do compadre, que assim deixara a mulher tomar sobre si
um ascendente ofensivo da dignidade varonil. Augusto ouviu tudo com resignado
silêncio e atenção um pouco distraída, conseguindo
enfim a custo soltar-se das mãos do seu interlocutor, que, no fogo
da exposição de tão justos agravos, lhe segurava os braços
com pouco afável vivacidade ; afinal, porém, pôde deixá-lo
e voltou a casa.

Entrando no seu quarto, um pequeno e modesto quarto, mobi lado com uma banca,
poucas cadeiras e uma estante, cheia de livros, Augusto respirou.

Era ali o seu lugar de descanso ; a escola era em outra casa vizinha.

Nesta não havia, a amargurar-lhe as horas do repouso, vestígios
que lhe. recordassem as do suplício.

Leitor filantropo, que, abrasado em santo amor da humanidade, só
entrevés delícias na tarefa do ensino, e fazes deste vigiar
e encaminhar o espírito infantil, que desabrocha e respira pela primeira
vez no fecundo ambiente da ciência, um sedutor quadro de fantasia, perdoa-
me a palavra, suplício, de que me servi, e perdoa ainda mais ao carácter
de Augusto o ter saído exacta a expressão, que te feriu os humanitários
instintos.

Eu bem sei que é uma sublime missão a do mestre ; e que é
uma graciosa e amorável idade a da infância, e poucos melhor
do que Augusto possuíam presente o ideal de uma e amenizavam à
outra com branduras os amargones do penoso tirocínio ; mas que importa
? nem por isso é menos real o suplício. A cultura dos espíritos
é como a cultura das terras. O lavrador exulta, estremece de prazer,
vendo pulular do solo, arado e semeado de pouco, os rebentos do grão
que o calor fez germinar, e volverem-se as folhas, estendetrem-se e enflorarem-
se os ramos, penderem os frutos e colorirem-se das tintas da madureza; mas,
enquanto vergado, coberto de suor, arquejante, se afadiga a arrotear o terreno
duro e quem sabe se ingrato aos seus cuidados, muita vez lhe falece o alento,
e se olha de quando em quando para o Céu, não é para
lhe agradecer com risos os gozos que ele lhe dá ; mas para lhe pedir,
com lágrimas, a força que lhe mingua.

De igual modo, se é grato ao cultor das inteligências o vê-las
desenvolver, florir, frutificar; árdua, ímproba, desesperadora
é muita vez a tarefa da sua primeira educação. É
mister possuir um grande tesouro de ideal, para que o suave e risonho tipo,
que da infância concebemos, não se transtorne, na fantasia destas
vitimas dela, em não sei que figura diabólica e maligna, que
lhes envenena todos os momentos de alegria.

Além disso, o pobre professor de instrução primária,
sobre quem pesam os mais fastidiosos encargos da instrução,
não pode ser comparado absolutamente ao agricultor do nosso simile
; é antes o jornaleiro contratado por magro salário, para, à
força de braço, lavrar o solo, de onde, mais tarde, romperá
a vegetação, que ele não terá de ver e que a outros
concederá os gozos e o benefício. Venceu também o humilde
professor, e por o mesmo preço que o jornaleiro, que não vão
mais longe com ele as liberalidades dos nossos governos, venceu as maiores
cruezas do magistério ; mas não verá também o
resultado das suas fadigas. Fogem-lhe as inteligências, que educou,
justamente quando com mais amor as devia contemplar, e, se o destino reserva
a qualquer dessas inteligências um futuro de glórias, raro é
que volvam um olhar agradecido para as humildes mãos, que as sustentaram,
quando ainda não tinham asas para voar.

Quase todos os grandes homens cometem esta ingratidão. Falam nos
seus mestres de filosofia, de matemática, de literatura, e não
salvam do esquecimento, pronunciando-o, o nome do primeiro mestre, do que
os ensinou a 1er.

Considerações da ordem das que acabamos de fazer, quero acreditar,
não são as que mais preocupam o pensamento da maioria desses
pobres diabos, que, por noventa mil-réis anuais, se deixaram ligar
à atafona do ensino primário da aldeia ; porém devem
ser, além das misérias de tão mesquinha sorte, causas
de grandes torturas morais para alguma alma de instintos e aspirações
mais elevadas, que o destino amarrasse, como por escárnio, a este poste
de expiação. Nesse caso estava por certo a alma de Augusto.
No vasto mundo, que os livros abrem às imaginações, que
na vida real não encontram deleite, refugiava- se ele nas horas em
que as suas obrigações lhe permitiam respirar, Desta vez, porém,
por pouco tempo lhe foi dado saborear esse prazer.

Soaram nos vidros da janela pancadas repetidas e chamou-o de fora uma voz
bem conhecida dele.

Era a do mestre de latim, o Sr. Bento Pertunhas.

— Sr. Augusto, ó meu querido Sr. Augusto. Amice ! Pode falar
a um amigo e colega ? — dizia ele.

Augusto foi abrir-lhe a porta, não reprimindo um gesto de enfado,
O latinista entrou esfregando as mãos.

— A 1er, hem ! sempre a 1er ! sempre amarrado aos livros ! -jZ dizia
ele, batendo no ombro a Augusto. — Invejo-lhe mais a pachorra do que
o proveito. Olhe que não medra com isso ; nem ninguém lhe agradece
as canseiras que toma. Meu rico, por dois dias que um homem passa cá
neste mundo, tolo é o que se mata. E então neste país
!.. Faça como eu.

E, imitando com a boca os sons da trompa, seu instrumento predilecto, pós-se
a examinar os livros que via sobre a mesa.

— Então que estava lendo? que estava lendo?… Poh! poh! poh!…

Versos… Ora que nunca pude gostar de versos!… Poh! poh!… E nao e agora
porque se diga que não tinha queda ; não senhores ; em tempos
fiz até algumas quadras… Poh! poh!… já se sabe, até
certa idade, mas nunca fui muito para aí… Poh!… A minha vocação
é para a música,..

Poh! poh!… Lá para a música, sim… Poh! poh! poh!… Hermano
e Doroteia—continuava ele, examinando os livros.—Novelas… Poh!…

E isto que é ? Confessions de Rousseau — neste nome deixou
aos ditongos o valor português. — Poh ! poh ! As Metamorfoses…
Latim ! Oh que maçada! Poh! poh! poh! poh!…—E o Ovidio, que
lhe chegara às mãos, foi arremessado como se estivesse em brasa.

Augusto não pôde conservar-se sério, ante o instintivo
movimento de repulsão do mestre.

— Então que boa fortuna o traz por aqui, Sr. Pertunhas ? —
perguntou ele.

— Ai, é verdade ; eu lhe digo ao que venho. É para lhe
pedir um favor, meu caro Sr. Augusto. Eu bem sei que é abusar da sua
bondade…

Quousque tandem, Catilina… Mas, é por esta vez…

— Já sei ; ,quer que lhe vá dar lição
aos rapazes.

— Ah ! grande maganão, que adivinhou — exclamou o mestre,
abraçando Augusto com efusão. —> É isso mesmo,
se lhe não custasse…

— Irei.

— É que… eu lhe digo, eu tinha hoje de ir ao ensaio da filarmônica…

Percebe o senhor? Os Reis estão aí à porta e as outras
festas do Natal, e não há tempo a perder… Percebe? E eu tenho
ainda umas peças do Trovador para ensinar à minha gente. São
muito bonitas…

Poh! poh! poh! E então este ano, que pelos modos temos cá
o conselheiro e mais o pequeno… Não contando com esse sujeito que
aí chegou a Alvapenha. Chama-se Henrique de Souselas, é sobrinho
da velha, da D. Doroteia, e julgo que ainda aparentado no Mosteiro. Lá
chamam- -Ihe primo. Esteve lá esta manhã um par de horas, logo
que saiu da minha repartição. Dizem-me que é filhote
de Lisboa, solteiro, rico e se modo de vida. Rico e sem modo de vida! Que
lhe parece, hem? Olhe que sempre há gente muito feliz ! Aqui para nós,
sabe ao que me cheira a visita deste senhor? Aquilo é mosca que vem
ao cheiro do mel. Que diz, hem? Ninguém me tira disto. Pois não
lhe parece, hem? — Não sei bem o que quer dizer com a imagem
— respondeu Augusto, levemente enfadado. — Além de que
não posso adivinhar as intenções de um homem que pela
primeira vez encontrei esta manhã.

— Pois está claro que não ; nem eu ; mas enfim uma pessoa
logo tira pelo que vê… Ora pois diga, um rapaz de Lisboa, afeito a
divertimentos, a boa música, etcetera, andar léguas e léguas
para se meter neste desterro… Porque isto é um desterro. Sim, deve
concordar que não é natural. Mas se a gente se lembrar de que
a morgadinha, etcetera… O senhor bem me percebe… Todos, hoje em dia, sabem
o preço ao dinheiro, meu amigo.

A verbosidade do mestre Pertunhas estava evidentemente incomodando Augusto,
que não redarguia.

— Nada, nada ; ali anda plano, com certeza. Pelos modos, já
depois de amanhã vai o rapaz acompanhar as pequenas à ermida
da Saúde.

Ah !.. • mas agora me lembro ! o senhor é também da
súcia.

— Eu? — com certeza. Disse-mo o Damião, que tem ordem
das pequenas para o convidar. Se ainda não recebeu o recado, há-de
recebê-lo.

Em todo o caso, observe-o e verá se eu tenho razão.

— Vou jantar, Sr. Pertunhas, que já há muito para isso
me chamou a criada — disse Augusto, erguendo-se como para fugir àquela
conversa.

— Em seguida irei aos seus rapazes.

— Então vá, vá. Deus lhe pague o favor que me
faz e permita que eu lhe não peça muitos destes. E eu tenho
esperanças… Sabe que ando com idéias de arranjar o lugar de
recebedor, que está, como diz o outro, a encher dias? Já falei
ao conselheiro; mas o conselheiro promete muito e falta melhor, sobretudo
a um homem que não tenha influência em eleições.
O Sr. Joãozinho das Perdizes interessa-se por mim, é verdade
; mas, por outro lado, o Seabra brasileiro faz-me guerra. Eu ando a ver se
consigo pôr o Seabra a meu favor, porque enfim… Mas vá, vá
jantar, que eu espero.

— Se quiser fazer-me companhia…

— Muito obrigado. Eu já jantei. O meio-dia é a minha
hora. ¡ante à sua vontade.

Augusto saiu da sala. Mestre Bento Pertunhas, ficando só, deu algumas
voltas cantarolando, sentou-se depois, e pegando na pasta de Augusto, pôs-se
a examinar os papéis que ela continha.

Ao mesmo tempo simulava umas variações de trompa, à
força de contracções e esgares dos lábios.

A pasta, vítima da indiscrição do mestre, era a mesma
que Augusto trazia, quando o vimos no Mosteiro.

Entre os documentos contidos nela algum achou o mestre Pertunhas mais curioso
do que as escritas e temas dos discípulos, pois ao lê-lo, desenhou-se-lhe
no semblante a mais intensa curiosidade e cessou de todo a exibição
acústica, que com tanto ardor encetara.

Leu-o até ao fim com crescente avidez; e depois, olhando em volta
de si, para verificar que não era observado, dobrou-o e sorrateiramente
o escondeu no bolso. Fechou outra vez a pasta, pousou-a no sítio de
onde a tirara, continuou a 1er ou a fingir que lia com toda a atenção
um livro e encetou novas variações de trompa.

— Então já ! Apre ! Isso é jantar a vapor —
disse o latinista, pondo- se a pé, logo que Augusto voltou.

E momentos depois saíram juntos.

Querendo poupar os leitores à sensaboria de assistir a uma lição
de latim e a um ensaio da filarmônica, deixá-los-emos ambos,
para voltarmos ao Mosteiro.

Ao fim da tarde, depois do jantar, estavam as duas primas sentadas ao parapeito
do.muro da quinta, de onde, por sobre almargens e pomares vizinhos, a vista
se espraiava em amplíssimo horizonte até umas nuvens, que pareciam
limitá-lo.

D. Vitória saboreava, no seu quarto, as delícias da sesta
habitual.

As crianças brincavam a alguma distância, e os risos e os clamores
delas vinham como um chilrear de pássaros aos ouvidos das duas raparigas,
que, a cada momento, se surpreendiam em meditativo silêncio.

A natureza estava sereníssima. No ocidente desenhavam-se estreitos
e longos traços nebulosos, a que o sol dava um colorido tão
ardente, que se o pintor paisagista o produzisse na paleta, hesitaria, ao
passá-lo à tela, com receio de que o acoimassem de exagerado.
O verde dos campos apresentava a gradação vigorosa, que a luz
de um formoso dia de Inverno costuma dar-lhe.

Cristina interrompeu o silêncio por fim.

— O que eu não sei — principiou ela — é
como o primo Henrique de Souselas…

— Onze ! — atalhou a morgadinha, sem desviar os olhos do ponto
da perspectiva que fitava.

— Onze quê? — perguntou Cristina, erguendo os dela.

— com esta são onze as vezes que, esta tarde, depois de um
longo silêncio, abres a boca para me falares no primo Henrique de Souselas,
uma vez que está decidido que seja primo.

Cristina fez um gesto de despeito e corou levemente.

— E então que queres dizer com isso? — Eu? Nada. Digo
só que são onze vezes com esta.

— Não sabia que era proibido falar-te no primo Henrique. Bem,
nesse caso falaremos em outra coisa. Está um tempo muito bonito; nem
parece Dezembro.

— Não ; vai magnífico para os nabais — replicou
Madalena zombeteiramente — Se nao mudar com a nova Lua — continuou
Cristina, ainda formalizada.

— É excelente para secar os milhos, que bem precisavam ainda
disso, principalmente os das terras baixas.

E, acabando de dizer estas palavras, a morgadinha desatou a rir.

— Não sei de que te ris ! — acudiu Cristina, cada vez
mais séria.

pois não é esta a conversa de que tu gostas? — Ai, muito.
Eu sou doida por estas coisas de lavoura, bem sabes.

E, mudando repentinamente de tom, acrescentou: — Ora vamos, Criste,
não te zangues comigo.

— Não, mas é que às vezes não te entendo,
a falar verdade. Vens com umas coisas que metem raiva — respondeu-lhe
Cristina, sempre agastada.

— Já estou arrependida ; peço perdão. Fala lá
à tua vontade no primo Henrique, fala; que eu não contarei as
vezes que o fizeres.

Cristina reproduziu o gesto de impaciência: — Agradeço
a tua generosidade, mas já não tenho mais que dizer dele agora;
por isso…

— Pelo menos completa a dúzia.

— Lena ! Então ! Olha que se continuas com isso, fazes-me sair
daqui.

— Sempre queria que te vissem agora, Criste, esses que andam por aí
a gabar a docilidade do teu gênio, as branduras da tua índole
; queria que te vissem essa cara arrenegada, para saberem que também
há um àcidozinho na tal doçura… Mas fazes-me a graça
de só para mim teres dessas franquezas.

Cristina sorriu, ainda que não de todo aplacada, ao ouvir esta reflexão
da prima.

— E não sabes a razão disso ? — respondeu-lhe
ela — a razão é o gênio que tens, Lena. O teu gosto
é mortificares uma pessoa. Não há santo que não
perdesse a paciência contigo.

— Que injustiça ! que ingratidão ! Eu, que sou a vítima
das tempestades que o teu gênio pouco expansivo te junta no coração
a todo o instante ! Se alguma coisa te faz chorar, guardas as lágrimas
para o meu quarto ; se te irritam, vens desafogar as tuas còlerazinhas
sobre a minha cabeça. E pagas-me assim! — És muito infeliz
comigo. Pobre Lena ! — Vamos, vamos, Criste ! esquece o que eu disse
há pouco. Não te posso ver assim. — E tomando um tom natural,
mas sob o qual transparecia ainda certa malícia, Madalena continuou
: — Pois é verdade, dizias tu que não sabias por que o
primo Henrique de Souselas…

Cristina fez um movimento impaciente, como para levantar-se.

— Então que é isso? Não me aceitas a expiação?
— perguntou Madalena, sorrindo.

— Não ; não quero que se fale mais no Sr. Henrique de
Souselas.

Vejo que te não é agradável que as outras se ocupem
dele. Sejam quais forem as razões que tens para isso…

— Bravo ! Foi admirável de maldade o entono com que disseste
esse : «Sejam quais forem as razões». E venham-me falar
na candura desta criança! — Eu não quero dizer…

— O que queres dizer, não sei ; mas vejo que não és
senhora tua quando se fala neste assunto.

— Que lembrança ! — tornou Cristina, cada vez mais embaraçada
— pois imaginas deveras que eu?…

— E porque não ? — Lena ! — Nao há nada
mais natural.

— Se queres, juro-te…

— Ah ! — atalhou a morgadinha. pondo-lhe a mão nos lábios.
— Isso não, que é mais sério. Jurar não
te deixo eu. Conheço os escrúpulos da tua consciência,
e não quero obrigar-te a remorsos. «Juro»! E com que ousadia
ias pronunciar um juramento falso ! — Falso ! — Falso, sim ; falso
como os que o são. Olha, minha pobre Criste, queres então que
te fale com tôda a franqueza ? Esta conversa trouxe-a eu de propósito
para confirmar umas suspeitas que se me formaram e que vejo agora que eram
fundadas.

— Suspeitas! que suspeitas?…

— O primo Henrique de Souselas deixou em ti uma tal ou qual impressão.

— Lena ! — Conheci isso ainda quando ele cá estava ;
verifiquei-o depois e agora. Então tem juízo. Comigo sê
sempre o que tens sido. Eu gozo há muito do privilégio de conversar
à vontade contigo e de te ver sem aquela timidez que tens diante dos
outros. com o teu gênio, precisas de uma pessoa, como eu, com quem não
tenhas acanhamento e em quem possas até descarregar algumas maldadezitas
; e acredita que me lisonjeio com me dares a preferência.

— Mas como imaginaste?.., — Continuas ? Não tens de que
te envergonhar pelo interesse que porventura te inspirou esse rapaz. Henrique
de Souselas é elegante, é espirituoso, afável, possui
uma inteligência cultivada e muito trato do mundo…

— Mas…

— Faça favor de me ouvir — atalhou Madalena, pondo um
dedo nos lábios. Reconhecendo todas essas qualidades naquele nosso
primo, não quero por isso concluir que seja natural e prudente denunciares-te
já. E nem receio que isso aconteça, para te falar sinceramente,
porque te conheço o gênio tímido e porque… porque te
conheço o gênio tímido e mais nada.

Havia mais alguma coisa, havia, mas não era coisa que se dissesse,
Madalena sabia demais que Henrique não saíra daquela primeira
visita demasiado impressionado por a imagem de Cristina ; sabia talvez, suspeitava
decerto, não me atrevo a dizer que lisonjeada algum tanto, que no coração
do hóspede de Alvapenha reinava outra imagem mais persistente. Mas
vejam as leitoras se, sendo este o seu pensamento, ela o poderia formular?
O remédio pois era completar a frase como a completou.

Cristina já não tinha ousadia para negar, nem ainda coragem
para confessar. Encostando a face à mão, calou-se e deixou falar
Madalena.

A morgadinha prosseguiu : —-É preciso que saibas, Criste, que
é mais fácil conhecer os defeitos de uma pessoa, do que as suas
boas qualidades. Os defeitos são imprudentes e linguareiros, denunciam-se,
dão sinal de si, basta meia hora para se descobrirem em qualquer lugar
que habitem. As boas qualidades, não; essas sao modestas, humildes,
discretas; sabem esconder-se. São precisos anos para as descobrir todas.
Mas com que olhos de espanto me estás fitando ! Parece que te causa
estranheza o meu sermão ? Eu te digo a que ele vem. Logo que falei
com este nosso primo… e quem sabe se o futuro virá confirmar, em
relação a mim, esse título, que por fantasia lhe dou?
escusas de corar por eu dizer isto, Criste…; mas, dizia eu, logo que falei
com ele, saltaram-me aos olhos muitos dos seus defeitos.

— Quais são? — perguntou Cristina com viveza.

— Sossega ; são ligeiros, felizmente, e parece-me que os poderá
ainda perder; sobretudo se continuar a viver aqui. Quis-me também logo
parecer que no fundo havia uma mina de bons sentimentos por explorar. Nasceu
logo em mim a vontade de c sondar, a ver se conseguia purificá-lo do
que nele houvesse de menos heróico. Então que queres? para a
aldeia era um passatempo como outro qualquer. Mas redobrou-se em mim este
desejo e revestiu em mim mais sério carácter, desde que vi a
impressão que este sobrinho da tia Doroteia te causara.

— Lena ! como te deu para supor que eu me apaixonei assim em poucas
horas? Julgo que me imaginas apaixonada? — Não, ainda não;
inclinada, agradada, atraída,., ou outro qualquer termo desta força,
que deixarei à tua escolha, isso sim. Para isso não é
preciso muito tempo. As razões, pelas quais julguei isto, dispensa-
me de tas dizer, que pouco valem. Supõe que foi por um tacto especial,
por uma qualidade oculta, como a do tino que dizem que têm certos médicos
para reconhecerem o mal sem estudarem muito o doente.

— Pois o tino enganou-te.

— Enganaria ; mas deixa-me continuar. Se este senhor primo intruso
for realmente o que eu imagino que é, resta-me prepará-lo para
o tornar mais digno do amor desta boa Criste, que em tal caso favorecerei
; se não for, declaro-lhe já guerra e guerra de morte. A ti
competia fazer isso tudo, como a mais interessada, mas desconfiei da tua credulidade
e boa fé e da tua experiência. Olha, estou certa que o que mais
te atraiu em Henrique foi exactamente o que nele há de pior. Certo
verniz mentiroso, certo colorido, que é precise ter visto muita vez,
e em muitos indivíduos diferentes, para se ter na conta devida.

Ilude, agrada a quem não está costumado, e pode causar graves
enganos e desenganos mais graves ainda. Por enquanto o que ele nos mostra
é mais da sociedade em que vive, do que dele próprio. É
necessário deixar cair a primeira capa, para que o natural apareça.

— Não sabia que era assim fácil enganar-se uma pessoa
a respeito de outra — notou Cristina, sorrindo.

— Se é ! Lembras-te do que tantas vezes conta tua mãe
? Que, quando há anos foi a Lisboa, comprou lá por bom preço
um cofrezinho que ela supunha preciosíssimo, e que chora hoje a sua
tentação, desde que o verniz brilhante, que ele tinha, caiu
e ficou à vista a realidade? pois o mesmo acontece muitas vezes em
contratos de outra ordem e bem mais sérios do eme este. Há vernizes
maravilhosos, que iludem os inexperientes.

Houve um instante de silêncio, no fim do qual Cristina perguntou,
olhando pela primeira vez fita para Madalena: — Ora diz-me, Lena, qual
será a razão pela qual eu não devo acreditar que esses
pensamentos te ocorreram, porque era o teu destino, e não o meu, que
vias dependente do estudo que fazias? A morgadinha fixou na prima um olhar
triste e cheio de amargas recriminações.

— Por uma razão muito poderosa, Criste, porque ias abrir o
coração a um sentimento mau, que macularia o teu carácter
generoso e cândido — a desconfiança. Porque me ofenderias,
duvidando da lealdade, com que te falo, quando te falo séria ; e porque
me farias mal sem necessidade e imerecidamente, pois que a consciência
me diz que to não merecia. Satisfaz-te esta razão? A voz de
Madalena perdera o tom de ironia, que às vezes tinha, e tomara quase
o da comoção.

Cristina arrependeu-se logo do que dissera, e, também comovida, apertou
as mãos da amiga.

— Não faças caso do que eu disse, Lena ; perdoa-me.
Quando eu duvidar de ti, pedirei a Deus que me tire a vida, porque terei já,
para tudo e para sempre, envenenado o coração.

A morgadinha readquiriu outra vez o seu bom humor.

— Estamos quase a cair no sentimentalismo. Cautela. Saldemos antes
as nossas contas, como mulheres de juizo. Em compensação da
pequena ofensa que me fizeste, vais-me fazer uma confissão formal,
a que até agora tens evitado. Ora confessa, adivinhei o estado do teu
coração ? Diz.

Cristina hesitou, — Vamos — insistiu a morgadinha — acredita
que preciso de uma declaração para me guiar… E crê que
é para bem teu.

— Que queres que te diga ? Eu não me sinto apaixonada.

— Mas já te disse que me bastava um termo menos violento…

um «agradada», por exemplo.

— Confesso que…

—-Olha, se queres, podes até parar aí. Esse «confesso
que…» já diz muito. Agora deixa-te guiar por mim. Eu vigiarei.
Afianço-te que não corro o perigo ae me apaixonar por ele ;
creio que há ali um excelente coração, mas que queres?
Não é o tipo que me agrada…

0 meu ideal, como se costuma dizer.

— E então qual é o teu ideal ? — Ai, eu sou muito
exigente. Desespero de o encontrar. Quero-o assim uma espécie de arcanjo
S. Miguel, ânimo de querreiro em figura de querubim ; e não sei
onde o procure.

Neste sentido se prolongou o diálogo entre as duas primas, até
que D. Vitória, findando a sua sesta, veio ter com elas à quinta.
Segundo o costume, ralhava contra os criados, a quem, não sei por que
processo, atribula umas dores de cabeça com que acordara.

No dia seguinte, Henrique voltou de manhã ao Mosteiro ; redobrou
de galanteio com Madalena, a qual redobrou de ironia. Cristina já mal
podia disfarçar a pena que lhe causava o pouco que era atendida, mas
a sua timidez não a deixava lutar.

De tarde, Henrique teve de condescender com o padre, procurador de Alvapenha,
que se prontificou a mostrar-lhe as raridades e monumentos da terra. Assim,
com grande pesar seu, foi obrigado a renunciar a nova visita às senhoras
do Mosteiro, para gastar as expressões da sua admiração
diante das alfaias da sacristía paroquial ; da tosca escultura de não
sei que imagem de santo, a qual passava por um primor ; de uma sala nua, com
uma mesa ao centro, forrada de baeta verde e cadeiras à volta, que
era a sala das sessões do corpo municipal ; e de umas pirâmides
de ripa, que tinham servido, havia oito anos, em festejos oficiais.

como e de supor, Henrique passou uma tarde deliciosa.

DOIS dias depois da Chegada de Henrique, e naquele que se destinara para
o passeio à ermida, Cristina foi mais madrugadora do que as aves. A
hora, a que estas ainda se não ouvem chilrear, já a prima de
Madalena abandonava o leito, receosa de se fazer esperar pelos companheiros
da projectada excursão matinal. Quase não dormira tôda
a noite aquela rapariga, com tal preocupação.

As estrelas viram-na erguer, e tiveram muito tempo de se despedirem dela,
antes de se esconderem discretas ante o aparecimento do dia.

Cristina vestiu-se à pressa e dirigiu-se ao quarto de Madalena, Esta
dormia ainda. O projecto de passeio à ermida não a alvoroçara
tanto. Cristina foi acordá-la ao leito.

A morgadinha abriu os olhos e fitou-os admirada na prima.

— Que queres tu, Cristina? Que lembrança foi essa hoje de andares
estremunhando a casa esta noite? — Levanta-te, preguiçosa, levanta-te.
Não o dizia eu ontem? Então são estas as madrugadas em
que falavas? — Decerto que não são madrugadas ; isto é
noite é o que é.

— Dentro em pouco é dia. Queres ver? E, dizendo isto, Cristina
abriu para trás as portas das janelas e correu as cortinas.

A estrela da manhã, Vénus, aquela brilhante e ao mesmo tempo
suave estrela, que umas vezes assiste no crepúsculo às melancolías
da natureza, outras vezes na aurora ao renascimento dos seus júbilos,
cintilava mesmo defronte do leito de Madalena.

— Vês ? — disse Cristina.

— Muito pouco. É esse o teu sol? como vai alto! É pena
que não alumie melhor do que esta lamparina.

Cristina sentia redobrar com estas delongas a sua impaciência, quase
de criança. • — Anda, Lena, anda. Assim não chegamos
a ver do alto da ermida o romper do Sol.

— Pois queres ver isso de lá ? ! Que crueldade ! Em uma manhã
de Dezembro ! — Está tão bonita, que parece de Primavera,
— Triste lembrança a nossa ontem de combinarmos este passeio.

Isto é lá coisa que se faça? Vale por uma viagem aos
pólos.

Cristina não fazia senão ir do leito de Madalena para a janela
e voltar da janela para o leito, em virtude daquela irresistível necessidade
de movimento, embora sem ordem nem fim, que experimentamos quando nos deixamos
apossar da impaciência.

— Não fazes idéia como está bonito cá
fora ; nalguns pontos ainda se vê neve.

— Oh, que agradável e tentadora beleza! Ainda se vê neve!…

Parece-me que já estou gelada… com essa palavra tiraste-me o alento
que ia ganhando. Vês? — Mas nao está frio ; até
parece que aqueceu o tempo. Então, Lena!… Eles… não tardam
por ai. Cuidas que te vai custar muito, e é um engano; aqui estou eu,
que não sinto frio nenhum.

— Ora, mas tu estás em condições muito particulares.
Quem tera uma fogueira no coração, não precisa…

— Aí principias com as tuas coisas l — Eu nao’ sei ;
o que é certo é que esse teu entusiasmo pelos passeios matutinos
não é natural. Quantas vezes recusaste acompanhar- me quando
eu tos propunha? Ora, se me dás licença, eu explico isso.

— Não quero saber de explicações ; veste-te,
anda.

— Seja ! Infeliz lembrança a deste passeio. E foi daquela tia
Vitória, que nem por isso nos quis acompanhar. Não, que já
tem juizo ; dorme a estas horas o sono da madrugada, que é uma consolação.
Que sorte de invejar! E a morgadinha, continuando assim a exagerar o sacrificio
daquela madrugada e a aludir aos motivos secretos a que atribuía o
ardor e heroicidade da prima ante os rigores de Dezembro, tudo isto de propósito
para a ver impaciente, principiou a vestir-se.

Cristina ficara à janela, espiando os progressos do amanhecer e transmitindo
à prima as observações que fazia.

— Olha, eu que digo?… já o Manuel vai abrir o portão…
Não ouves os pardais?… É dia claro já… Havemos de
chegar com sol à ermida, o que não tem graça nenhuma…
Avia-te, Lena… Hás-de ser a última a estar pronta… Aí
vai ja o Luis com o almoço. É que não chegamos lá
senão ao meio-dia. Ele aí vem ! Eu bem digo.

— Ele ! Quem é esse ele que aí vem ? — Pois quem
há-de ser ? Então não é o primo Henrique que nos
acompanha ? — Ë o primo Henrique, é o Sr. Augusto e é
o Luis, que tua mãe teimou em mandar com o almoço. Não
sabia qual dos três te merecia as honras de um «ele».

— Eu dizia o primo Henrique, que já aí está no
pátio — disse Cristina, que nesta ocasião correspondia
ao cumprimento que o recém- -chegado lhe fazia de baixo.

— Então, com efeito já chegou? — perguntou a morgadinha,
admirada.

— Bravo ! Nunca o esperei. Ai, Criste, que me parece que ele também
tem alguma coisa no coração ! — Tamcém o julgo
— respondeu Cristina, despeitada ; — é ver como ontem te
falou.

— Sossega. Quando o coração tem alguma coisa, não
se fala assim com a pessoa que causou esse mal.

— Não sei o que ele me está a dizer — disse Cristina,
olhando para o pátio. — Posso abrir a janela, Lena? — Eu
já estou preparada para sofrer todas as crueldades esta manhã.
Abre lá a janela, abre. Fala-lhe.

Cristina correu a vidraça.

A voz de Henrique chegou distintamente aos ouvidos de Madalena.

I — Então aquela grande madrugadora da nossa prima, onde está
? — perguntou ele a Cristina.

Cristina respondeu, sorrindo: — Está a fazer a diligência
que pode para ficar ‘pronta antes do meio-dia.

— Oh, que vingança a minha ! Ela que tanto falou da minha indo
lência ! — disse Henrique jovialmente, e continuou falando sempre
de Madalena, e elevando a voz às vezes para se dirigir directamente
a ela, mas sempre sem receber resposta.

Esta insistência impacientou Cristina, para quem ele nem urn galanteio
tivera ainda.

— De maneira que nós, priminha — continuou Henrique —
damos uma lição de mestre àquela arrogante de ontem.
Estou ansioso porque ela nos apareça; quero ver a coragem com que ousa
apresentar- se.

— Eu vou chamá-la — disse secamente Cristina, e veio
dizer a Madalena, com certo modo, que não podia escapar a esta : —
Olha se apareces ali ao Sr. Henrique de Souselas, que não descansa
enquanto te não vê.

A morgadinha, que acabava de ajustar ao espelho as trancas, dando ao penteado
a mais singela e graciosa disposição, voltou-se para a priminha
e disse-lhe sorrindo : — Isso são já ciúmes ? Mal
sabes quanto gosto de te ver assim I Ao menos há já vida nesse
teu coração, minha pobre pequena. O que te peço é
que não me odeies, só por que esse rapaz se lembrou de perguntar
por quem não via.

— Estás a imaginar ciúmes, como ontem imagina vas…

— Amores ? justo ; e com a mesma felicidade em acertar ; podes ir
acrescentando. Mas, parece-me que aí está mais alguém
no pátio.

Oiço falar. Vai ver. Será Augusto? Nesse caso, espera-se só
por mim para completar a caravana. E eu estou pronta. Marchemos.

Augusto havia efectivamente chegado ao pátio.

Henrique trocara com ele alguns cumprimentos, e principiaram depois ambos
a passear, um ao lado do outro, à espera das que deviam ser-lhes companheiras
na romagem.

A conversa manteve-se pouco animada. Augusto não era expansivo com
as pessoas, a quem o não prendiam hábitos de longa intimidade
; Henrique, talvez por não conhecer a extensão e natureza dos
conhecimentos de Augusto, abstinha-se de falar dos assuntos em que entraria
de mais vontade. Falaram pois de coisas indiferentes a ambos, e quase frivolas;
no frio, na chuva, no Inverno e no Verão, nos prós e contras
da vida do campo e de vários outros assuntos secos de si e já
além disso muito esgotados, e tudo cortado por aquelas pausas e silêncios
constrangidos e insuportáveis, que o leitor há-de conhecer por
experiência.

Digamos nós a verdade ; estes dois homens não sentiam um pelo
outro aquela súbita e inexplicável simpatia, que abre os corações
e dá margens a confidencias.

Nos dois curtos encontros que tinham tido, manifestara-se entre eles certa
frieza mais que cerimoniática, uma quase desconfiança instintiva.

Chegaram as senhoras. Foram acolhidas com prazer por ambos.

Ainda quando não fossem senhoras o seriam; a chegada de Um terceiro,
quando dois indiferentes estão na presença um do outro, em entrevista
forçada e fatigadora, é sempre saudada interiormente como uma
redenção.

Madalena e Cristina vinham ambas formosas, com a espécie de manti
lhas ou capuzes de que usavam, adequados aos rigores de uma manhã de
Dezembro.

Apareceram ambas a rir. Foi o caso que, passando próximo do quarto
de D. Vitória, pé ante pé, para não a acordarem,
esta pressentiu- as, e mesmo do leito perguntou-lhes: — Então
já vão, meninas? — Vamos, tia ; vamos, mama — respondsram
as duas a um tempo — O Luis já partiu com o almoço? —
Já partiu, já, minha senhora.

— E ides agasalhadas ? — como se fôssemos para a Sibéria
— respondeu Madalena.

— Olhai, sempre levem os guarda-chuvas por cautela. E ide com Nossa
Senhora.

— Cá os levamos. Adeus, tia ; adeus, mama.

— Adeus, filhas ; até logo, se Deus quiser. Olhai lá
não vos estaféis.

Ora os tais guarda-chuvas é que não iam. Para quê? com
uma manhã daquelas, que nem de Inverno parecia, pois que até
o frio abrandara com o vento ! Por isso é que vinham ainda a rir.

Chegando ao pátio, cumprimentaram os seus dois companheiros.

Henrique, depois de formular um galanteio a Madalena, ofereceu-lhe atenciosamente
o braço, que Madalena recusou com alguma impaciência, porque
se lembrou de Cristina.

— Muito obrigada, primo — disse ela com vivacidade. —
Mas é preciso que o advirta de que não vamos passear pelas avenidas
de um parque. Vamos trepar montes, atravessar ribeiras, costear precipícios,
e para tudo isso é necessária a completa liberdade de movimentos.

Há ocasiões, em que melhor nos servem os nossos dois braços,
do que o braço de outro, embora seja o de um herói.

— Mas decerto que não é à borda dos precipicios
que esse auxílio se escusa — replicou Henrique.

— É, muitas vezes é. Há bordas tão estreitas,
que mal cabe nelas uma pessoa só; felizmente que a natureza nos dá
um braço então…

um braço de giestas, por exemplo.

— Vê lá, Lena — disse Cristina ao ouvido da prima.
— Talvez seja melhor que aceites. Resta-me, a mim, o braço de
Augusto.

— Se continuas com essas loucuras, Cristina, obrigas-me a odiar-te.

Sr, Augusto — continuou voltando-se para este — espero que tome
a direcção do nosso passeio; ninguém melhor conhece os
mais belos pontos de vista ; leve-nos por lá, embora tenhamos de comprar
as belezas à custa de perigos e de fadigas. Partamos ! O monte onde
se erigira a capela da Senhora da Saúde, afamada pelos seus milagres
e pela sua romaria num círculo de muitas léguas de raio, era
uma elevada rocha vulcânica, que dominava as freguesia rurais de mais
de dois concelhos. Estendiam-se-lhe aos pés as alcatifas da mais rica
vegetação ; banhava-lhos a água dos ribeiros, das levadas
e torrentes, artérias fertilizadoras de extensas veigas e pomares;
mas ele, o gigante orgulhoso e selvagem, recebia aqueles preitos, olhava sobranceiro
aquela opulência, e, como se fizesse gala da sua rudeza, em vez de cobrir
os ombros com o manto real, que lhe estendiam aos pés, permanecia áspero,
severo e nu, como nas épocas primitivas, em que uma convulsão
tremenda o evocara do seio da terra, para o consolidar em colosso.

Apenas, como símbolo de realeza, coroava-lhe a fronte alta a alameda,
que, havia perto de um século, a piedade cristã plantara em
volta da ermida, para refrigèrio e conforto dos devotos cristãos
que ali iam. Era custosa a ascensão por o lado, por onde os nossos
romeiros, contra os conselhos de D. Vitória, a empreendiam. Quando,
ao sair de uma longa rua, apertada entre muros de quintas, Henrique achou
de súbito diante de si a mole imensa e talhada quase a pique, que lhe
disseram tinha de subir; ele, que raro em Lisboa estendia além do Rossio
os seus passeios, com medo das íngremes calçadas da cidade alta,
julgou ouvir um absurdo.

Parou a contemplar o monte, como hesitando em atravessar o riacho, que dele
o separava.

O riacho, engrossado pelas águas da chuva dos dias anteriores, levantava
um bramido atordoador ao cair em toalha dos açudes e ao escoar rápido
pela cal da azenha, que lhe obstruía o leito e cuja enorme roda movia.

Àquela hora, ainda pouco clara da madrugada, este sítio da
raiz do monte tinha não sei que aspecto selvagem e melancólico,
que quase infundia pavor. Os altos choupos, em que se enroscavam, como serpentes
negras, os troncos flexuosos e despidos das vides ; mais longe, o canavial,
ondulando ligeiramente ao perpassar através dele a brisa da madrugada,
e, aqui e além, um desses degenerados aloés dos nossos climas,
débeis e enfezados, como se os devorasse a nostalgia da sua verdadeira
pátria, eram acessórios que concorriam para o efeito geral do
quadro.

A morgadinha, percebendo a hesitação de Henrique, deu-lhe
alento com lançar-lhe em rosto a sua pusilanimidade. Henrique encheu-
-se de brios e atravessou, com não menor denodo do que os outros, o
riacho, por o passadiço de altas pedras, colocadas a pequena distância
umas das outras, e que as águas a cada momento ameaçavam cobrir.

Atiavessada a corrente, seguia-se escalar o monte; para isso tornava-se
indispensável caminhar em continuados ziguezagues, aproveitando os
cortes que a fouce do tempo conseguira abrir naquela massa granitica e os
toscos degraus, com que uma arte rudimentar procurara facilitar, por aquele
lado, o acesso da ermida à piedade dos devotos.

As dificuldades para Henrique eram continuas.

A cada momento os embaraços deste forneciam motivo para risos da
parte de Madalena. Cristina não lhe podia levar a bem que se risse
daquilo.

Para compensar as fadigas de tão trabalhosa ascensão, havia,
porém, a paisagem, que, a cada passo andado, a cada ângulo que
se dobrava, aparecia mais surpreendente e maravilhosa.

Poucos peitos teriam força para reprimir um brado de admiração.

As névoas daquela manhã de Dezembro não eram bastantes
para velarem a beleza do quadro.

À medida que os nossos quatro peregrinos iam subindo, ampliava- -se-lhes
mais e mais o horizonte ; aveludava-se a relva da planicie, parecia aplanarem-se
os outeiros vizinhos, e os campos tomavam a aparência dos canteiros
de um jardim.

Henrique não retinha o entusiasmo que aquele espectáculo lhe
causava.

— É magnífico ! é admirável ! é
soberbo ! — dizia ele, a cada momento e quando não era inquietadoramente
preocupado com os perigos do caminho.

O entusiasmo de Augusto não era menos vivo ! Dir-se-ia que eram os
montes a sua pátria, e que a melancolia nostálgica, que o oprimia
na planície, se ia dissipando à medida que subia a encosta.

Madalena e Cristina também não estavam menos impressionadas
por o que viam. Esta, porém, tinha uma causa secreta a aguarentar-lhe
o prazer, que as belezas naturais lhe pudessem ocasionar.

Era esta causa a mesma dos seus leves despeitos de pela manhã.

Henrique continuava a ser todo atenções e galanteios com Madalena;
parava a cada momento naqueles pontos do caminho, que lhe pareciam mais difíceis
de vencer, para lhe oferecer a mão a ela, sempre a ela, a quem dirigia
também todas as reflexões que o aspecto da paisagem lhe suscitava
e nunca à esquecida Cristina que, nesses momentos, quase achava a manhã
desagradável e o sítio feio e sombrio.

A morgadinha respondia sempre em curtas frases a Henrique e recusava insistentemente
o auxílio que ele lhe oferecia.

— Estou a suspeitar que esses oferecimentos do primo são mais
devidos à necessidade que sente, de quem o auxilie, do que ao empenho
de nos auxiliar — disse ela sorrindo. — A falar verdade, para
quem tem passado a vida a trilhar os passeios do Chiado, que admira ? Eu fui
criada nisto. Tenho um pouco de alpestre. Adiante.

E de uma ocasião, em que estava perto dele, disse-lhe a meia voz:
— Pode ser que Cristina careça mais do seu braço, primo.
Ainda não teve a lembrança de lho oferecer.

Henrique só então deu por esse esquecimento ; apressou-se
a remediá-lo, oferecendo a Cristina também o braço, que
esta recusou corando.

— Então porque recusas? — perguntou-lhe a morgadinha,
em voz baixa.

— Porque não quero abusar da delicadeza dele, nem da tua.

A morgadinha abanou a cabeça em ar de repreensão, fitando-a,
mas não lhe disse nada.

Pouco a pouco ia sendo mais completo o silêncio em torno deles.

Já tinham passado acima dos rumores do vale, que não subiam
a mais de meia encosta. Chegaram enfim ao cimo do monte ; tudo anunciava o
próximo aparecimento do Sol.

— Chegamos a tempo ! — exclamou Madalena que, deitando a correr,
fora a primeira que atingira a pianura. Sua Majestade ainda se não
levantou.

Os outros estavam, dentro em pouco tempo, ao pé dela.

Houve um longo espaço de silêncio, concedido espontaneamente
à contemplação daquela perspectiva solene.

As primeiras palavras, que se disseram, foram ditas em voz baixa, naquele
tom, que insensivelmente lhes damos, quando na presença de um espectáculo
grandioso e belo. Fala-se baixo e pouco ; não se formulam longos períodos
de aprimorado estilo, nivela-se a eloqüência de todos em simples
frases, como estas: — É belo! — É magnífico
! — É sublime ! E nada mais. Pouco mais disseram os quatro na
ocasião de que falámos. E eu, por análogas razões,
os imitarei, desistindo de descre- .ver o que só bem se aprecia, quando
pela vista se abrange o conjunto de todo o panorama. O leitor, que nunca visse
alguma cena semelhante, não a imaginaria pela descrição,
forçosamente pálida, que aí lhe deixasse dela ; e para
o que a viu, a memória lhe preencherá bem a lacuna.

Desvanecida a primeira impressão, que não deixa ao espírito
a serenidade precisa para os processos da análise, principiaram, como
é costume, a fazerem notar uns aos outros os sítios mais conhecidos.

Isto manteve por momentos uma perfeita e desenleada familiaridade entre
os quatro.

Cristina descuidou-se da sua timidez e despeites ; Madalena dos seus projectos
e desconfianças ; Henriaue e Auqusto deixaram também a sua mútua
frieza.

— Lá está o Mosteiro — disse Madalena, apontando
para o lugar indicado. — como parece pequeno, visto daqui ! —
E verdade — respondia Cristina — e olha, Lena, como se vêem
bem as janelas do teu quarto.

— Lá está aquela que tu abriste esta manhã para
cumprimentares…

Sentindo a mão de Cristina comprimir-lhe o braço, concluiu:
— Para cumprimentares a estrela de alva.

— As janelas do quarto da mama julgo que ainda estão fechadas.

— Tanto não posso eu distinguir ; contudo afianço-te
que sim.

A tia Vitória não é muito matinal.

— Aquela casa acolá não é a de Alvapenha ? —
perguntou Henrique, apontando noutra direcção.

— É — respondeu Augusto — e, mais adiante, ali
tem a devesa, em que passou anteontem. Não é verdade? —
É justamente. Com efeito ! Foi um soberbo passeio o que eu dei ! Daqui
é que se vê. Lá vejo umas presas, por onde me lembro de
ter passado também.

— Vê, acolá, aquela casa que tem uma capela ao lado?
— perguntou Madalena, apontando para um ponto distante.

— Perfeitamente.

— É a minha quinta dos Canaviais.

— Ah! É verdade, lá estão uns canaviais, se me
não engana a vista.

— Justamente. Não sei se sabe que há naquela capela
uma imagem de Nossa Senhora, muito milagrosa.

— Sim ? hei-de visitá-la.

— Coisa que se lhe peça, fazendo-se o voto da meia-noite, é
concedido — disse Cristina, fitando desta vez Henrique, com a expressão
da mais insinuante sinceridade.

— Que quer dizer o voto da meia-noite ? — Tem uma pessoa de
rezar à meia-noite, e sozinha, sete estações no altar
da Senhora — continuou Cristina.

— Só isso ? Boa é de cumprir a promessa. Já vejo
que não ha aqui na terra desejo que se não satisfaça.

— Mais devagar — acudiu Madalena, sorrindo — pouca gente
se atreve até a ir lá à meia-noite, porque a alma de
minha madrinha passeia a horas mortas por a sua antiga casa, dizem.

— Cada vez sinto mais desejos de lá ir — acrescentou
Henrique, depois de ouvi-la.

— Além, entre aquelas árvores, Sr.* D. Madalena, vive
um filósofo disse Augusto, indicando outro ponto de perspectiva.

— É verdade ; o bom do tio Vicente.

— Tio Vicente ? Quem é o tio Vicente ? Temos mais algum tio
com que eu possa aumentar o meu parentesco na aldeia? — O tio Vicente
é um santo velho, que se ocupa a colher ervas pelos montes e vales
para fazer remédios, que dizem milagrosos. Ainda é nosso parente,
mas em grau muito arredado ; contudo chamamos-lhe tio, assim como quase toda
a gente por aqui.

— Que sombras negras sao aquelas que se vêem no adro da igreja
? — perguntou Cristina.

— Na igreja? Ah! acolá? É verdade, parece um cordão
de formigas — disse Henrique de Souselas.

— São as mulheres que vão ouvir o missionário
— respondeu a morgadinha. — Escutem, lá está a tocar
o sino.

Efectivamente chegavam ao alto do monte as débeis mas sonoras badaladas
do campanário da aldeia.

— A estas horas principiam as lamentações daquele pobre
Zé- -Pereira, que tão mal olhado anda por a mulher, desde que
ela deu nessas devoções — notou Augusto, sorrindo, ao
lembrar-se da cena doméstica a que na véspera assistira.

— Degenerou aquela mulher ! — disse Madalena — e, se quer
que lhe fale a verdade, Sr. Augusto, custa-me ver o Cancela deixar a Lindita
entregue assim a essa gente quando sai da terra. A pequena é tão
apreensiva! — Visto isso, já chegou aqui à aldeia a influência
dos missionários ? — perguntou Henrique.

— E não tem lavrado pouco ! — tornou Madalena.

Cristina, que era um poucochinho devota, censurou timidamente as palavras
da morgadinha.

— Primo Henrique — disse ela — julgo que ainda será
preciso o seu auxílio para livrar do contágio esta inocente
Cristina.

— Pronto, prima Madalena; para as boas causas tenho sempre armada
a minha vontade.

— Olha, Lena, não vês ? — exclamou Cristina —
são os pequenos que nos estão a dizer adeus das janelas do mirante.

De facto nas mais altas janelas do Mosteiro agitavam-se uns lenços
brancos.

Mariana e Eduardo haviam-se erguido para saudarem, de longe, a irmã
e a prima. Estas tiraram também os lenços e corresponderam-
-lhes aos sinais.

Interrompeu-as a voz de Henrique, dizendo: — Anuncio a V. Ex.ª,
que chega o rei da criação.

Efectivamente o cume do telhado da ermida e as franças despidas da
alameda já se tingiam de luz.

Todas as vistas se voltaram para o Oriente. Assinalava-o uma esplêndida
faixa de púrpura, que, em insensível graduação,
desmaiava para as extremidades até se perder de todo no azul-celeste.

Rompia já, do meio dela, um pequeno segmento do Sol, depois, o astro
inteiro aparecia afogueado e vermelho, como um escudo de metal candente, e
logo se desprendeu da terra, de onde parecia surgir, e subiu nos ares, como
um brilhante aeróstato, ao qual se rompessem as prisões que
o retinham.

O monte inundou-se de luz. O vale, em baixo, estava ainda envolto nas meias
sombras da madrugada.

Nisto apareceu do outro lado da capela um dos criados de Alvapenha, que
veio anunciar que o almoço estava pronto.

— Pois deveras temos um almoço? — exclamou Henrique,
sinceramente surpreendido.

— Graças à previdência de minha tía, previdência
de que eu zombava em casa, mas que sou obrigada a admirar agora. De facto,
parece-me que estes ares do monte e frescuras da madrugada lhe devem ter aberto
o apetite — respondeu Madalena. E logo após continuou para Henrique
: — Agora é ocasião mais acomodada de pôr em prática
os recursos do seu galanteio, primo. Quer dar o braço a Cristina? Henrique,
em quem a morgadinha suspeitara a intenção de lhe render a ela
a fineza, que assim declinou na prima, teve de condescender, limitando-se
a exprimir num olhar as suas queixas, olhar que Madalena fingiu não
-perceber.

E, conversando e rindo, dirigiram-se para o lugar onde, sobre uma mesa de
pedra e lousa e ao ar livre, estava disposto o almoço.

D. Vitória não era senhora que se saísse mal de empresas
destas.

A alvura da toalha, a excelência da louça e o bem disposto
e apurado das iguarias convidavam.

Não se concebe apetite refractario a um tal conjunto de circunstâncias.

O fastio, neste caso, seria um fastio mórbido, correspondente a lesão
orgânica e como tal sem poesia.

Henrique e Augusto principalmente fizeram, como era natural, justiça
à cozinha do Mosteiro.

Henrique, que parecia haver esquecido as suas mil e uma doenças,
conversou animada e espirituosamente.

Contaram-se anedotas ; Augusto aplaudiu as de Henrique ; este riu com vontade
das que ouviu a Augusto.

A morgadinha, por sua própria mão, preparou o chá.

Nestas alturas do almoço encetou novamente Henrique o tiroteio de
amabilidades, de que por muito tempo não sabia prescindir.

Dir-se-ia ser este o sinal para se perturbar a santa harmonia do congresso.
Parecia que todos os outros, mais ou menos, se sentiam contrariados.

Henrique ficara sentado junto da parede da capela. Inclinando-se sobre o
espaldar da cadeira a saborear um charuto havano, descobriu umas letras escritas
na parede, exactamente por cima da cabeça.

— Bravo ! — exclamou, depois de as 1er para si — não
imaginava que havia poetas na aldeia! Querem ouvir? E leu: Se estás
mais perto do Céu Nestas alturas da serra, Ai, porque tens, peito meu
Inda saudades da Terra? Em vez de erguer os olhares À luz deste firmamento,
Desço-os à sombra dos lares, Onde tenho o pensamento.

— É pena que a chuva apagasse o resto. Quem é o bardo,
prima? — Não sei ; da aldeia decerto que não é
— respondeu Madalena, com indiferença.

Augusto ergueu-se da mesa e foi passear para a alameda.

— Da aldeia, não, diz a prima ; e porque não ? com esta
natureza é fácil criarem-se os poetas. Eu estou vendo nesta
quadra a folha de um romance. Aqui a serra de algum Bernardim inédito,
tão capaz de escrever saudades, como de as sentir. Os lares, pela sombra
dos quais o olhar do poeta trocava os esplendores do Céu…, algumas
dessas casas, que aí se vêem em baixo. Quem sabe se não
será até o Mosteiro? Eu, por mim, confesso que se estivesse
hoje aqui só, ou em outra companhia — acrescentou, olhando significativamente
para a morgadinha — não teria dúvida em subscrever esta
quadra, como a exacta expressão do meu sentir, porque…

Em vez de erguer os olhares À luz deste firmamento, Eu também…

Os abaixaria aos lares Onde tenho o pensamento.

Cristina levantou-se também da mesa e foi ter com Augusto à
alameda.

Madalena, que a seguiu com a vista, não disfarçou um gesto
de despeito ao ficar só com Henrique.

— Prima Madalena — disse em tom mais afectuoso Henrique, passado
tempo, e depois de mais algumas palavras — deixe-me falar- -lhe com
franqueza, agora que estamos sós. Conhecemo-nos há dois dias
; eu, porém, sinto-me tão seguro já do que lhe vou dizer,
que não hesito. Não pode imaginar a indelével recordação
que me ficará desta manhã.

— Perdão — atalhou Madalena — diga-me primeiro
o que e isso que me vai dizer. Prepara-se para me agradecer o almoço?
Eu sou como os reis ; gosto de estar prevenida do sentido das felicitações
que me dirigem, para ir preparando uma resposta adequada.

— Que prazer tem em ser cruel ! — Deixemo-nos de loucuras —
continuou Madalena séria já. — Quem ouvisse o Sr. Henrique
de Souselas havia de supor que se preparava para me fazer uma declaração.

— uma declaração do mais puro afecto, do mais sincere
sentimento, porque não?

— Ah! Pois, se eram essas de facto as suas intenções,
peço-lhe desista delas.

— Porquê ? — Porque não posso escutá-lo.

— Ou não quer.

— Ou não quero ; seja.

— Teria eu a desventura de chegar tarde, prima? Acaso o seu coração
já…

— Que impertinente pergunta? Se já, não tenho ainda
no Sr. Henrique a necessária confiança para o tomar por confidente.
Conhecemo- -nos apenas de ontem, que é o mesmo que não nos conhecermos.

— E acrescentou logo depois : — Cristina, anda ser arbitra numa
disputa entre mim e o primo Henrique.

— Que vai fazer? — perguntou-lhe Henrique, admirado.

Cristina aproximou-se ; Augusto seguiu-a. Henrique não desviava os
olhos da morgadinha que, sem lhe dar atenção, prosseguiu para
Cristina : — O primo Henrique falava com certa exaltação
da doçura do teu carácter ; o meu amor-próprio disse-me
que — era pouco delicado estar assim a lisonjear uma mulher na presença
de outra — e redarguì por isso, pondo em dúvida a asserção
e afirmando que havia um fermentozinho de maldade na tua doçura. Ele
nega por impossível, eu insisto e estamos nisto. Agora diz tu.

— Cristina corou intensamente e não teve que responder.

Henrique, que nas palavras de Madalena julgou ouvir algumas que, pelo sentido
e inflexão, com que foram ditas, lhe eram dirigidas, aceitou desafrontadamente
a posição, em que Madalena o colocara, e respondeu: —
Venci eu ! O facto de querer a priminha poupar uma réplica amarga à
acusação que lhe fazem, é a mais eloquente prova, já
não digo só da doçura, mas da natureza angélica
do seu carácter. Já vê, prima Madalena, que «quando
uma das mulheres que diz, for como a nossa boa Cristina, não se podem
admitir essas revoltas de amor- -próprio a que aludiu».

A morgadinha percebeu também o duplo sentido destas últimas
palavras ; mas fingiu não compreender.

Henrique, ao desviar por acaso os olhos, encontrou os de Augusto fixos nele,
enquanto um sorriso lhe dissipava um pouco dos lábios a grave expressão
que lhe era habitual, temperando-a com não sei que de irónico,
que não escapou também a Henrique.

Os olhares destes dois homens trocaram-se por momentos, sem que nenhum parecesse
disposto a baixar-se diante do outro.

Desviou-os porém uma dupla exclamação de Madalena e
de Cristina, dizendo : — Olhem o tio Vicente por aqui ! Dobrava efectivamente
naquele momento a esquina da ermida, e aproximava-se da mesa do almoço,
o velho ervanário, em que já temos falado no decurso dos passados
capítulos.

X ERA uma expressiva figura de ancião o ervanário.

A fronte larga e desafrontada de cãs, os olhos ainda vivos e penetrantes
e, em tôda a fisionomia, permanentes indicios de habituais meditações
e porventura de passados infortúnios, elevavam aquele semblante muito
acima da vulgaridade. Os anos ou, mais ainda do que os anos, os pesares haviam
subjugado nele a robustez de outros tempos ; os hábitos de solidão,
que adquirira, a pouco e pouco lhe amoldaram o carácter até
fazerem do velho um desses tipos excepcionais, que atravessam o mundo entre
a estranheza de quantos os rodeiam, a ninguém permitindo sondar os
mistérios que guardam consigo e para si, e criando para uso próprio
regras de viver, sem atenção as convenções sociais.

Era um enigma vivo.

Nas aldeias acompanhava-o uma fama quase de nigromante; atribuíam-lhe
curas milagrosas, obtidas com os símplices, a cuja cultura e colheita
consagrava as maiores atenções e canseiras.

Ninguém lhe queria mal, que a ninguém o fizera nunca. Poucos
porém ousariam, depois do esconder do Sol, ir procurá-lo à
isolada casa em que vivia, escondida num quintal, que era cultivado com todo
o amor pelo velho.

Em todos os casos intrincados vinham consultar o ervanário, e ele,
como seguro da sua proficiência, em caso algum recusava o alvitre.

Em resultado de leituras aturadas, mas sem escolha nem método, de
uns alfarrábios herdados de um tio frade que tivera, adquirira imperfeitas
e mal digeridas noções de ciência, de que se mostrava
orgulhoso.

Livros de medicina antigos, alguns de jurisprudência, outros de lógica
e de astronomia, constituíam a sua mesclada biblioteca. Entre os livros
mais predilectos e consultados contava um exemplar da Polianteia, de Curvo
Semedo.

O ervanário principiara em criança uma educação
tal ou qual, que reveses de família haviam interrompido.

Os meios conhecimentos, que das suas habituais leituras extraíra,
e os erros, que de tais livros assimilara, eram os elementos com que chegou
a arquitectar uma ciência informe, que na aldeia passava por maravilhosa.

E o caso era que a fama do homem voara de freguesia em freguesia, de concelho
em concelho, e de muito lonae o vinham ouvir como a oráculo.

Os costumes do velho, que errava por vales e montes à procura dos
símplices, cujas ocultas virtudes conhecia, as suas maneiras rudes,
a austeridade da fisionomia, a franqueza, sem contemplações,
com que dizia quanto pensava, tinham gravado fundo na imaginação
popular aquêle tipo, para ela quase lendário.

Depois de se sentar à mesa, o ervanário estendeu familiarmente
a mão a Augusto, que lha apertou com afecto, — Bons dias, rapaz
— disse o velho ; e, dirigindo-se a Madalena e Cristina, acrescentou
com maneiras paternais — Adeus, pequenas, grandes madrugadas hoje !
Voltou-se depois para Henrique, e fitou-o com olhos inquisidores e quase desconfiados,
terminando por lhe dizer simplesmente : — Guarde-o Deus ! Henrique correspondeu-lhe
no mesmo tom.

Sem mais o atender, Vicente voltou-se para Madalena e perguntou- lhe com
voz audível para Henrique, e referindo-se a ele : — Quem é
? Henrique respondeu com ligeiro tom de mofa: — O homem que, melhor
que ninguém, está habilitado a responder a essa pergunta.

O velho nem sequer o olhou.

— Este senhor — respondeu Madalena — é sobrinho
de D. Doroteia ; está hóspede em Alvapenha. Veio para aqui restabelecer-se
da saúde.

Vicente tornou a examinar Henrique.

— Então é doente?… Não parece… Olhar vivo…
Cores boas…

voz sã… Hum!…

Madalena julgou perceber que as maneiras rudes do velho estavam desagradando
a Henrique ; por isso apressou-se a intervir, respondendo jovialmente : —
A doença deste senhor é um pouco de imaginação.

— E grandes efeitos nascem daí — acudiu sentenciosamente
o velho. — Lá vêm na Polianteia muitos casos curiosos.
Um homem, por ter comido umas amoras, foi atacado de dores de cabeça,
de que morreu. Pois tanto cismou que das amoras lhe viera o mal, que até
se lhe formou no crânio uma pedra do feitio de uma amora.

— Com efeito ! — disse Henrique, com irónica expressão
de pasmo — aí estava um cérebro de concepções
rijas ! — É divertido ! — disse Vicente, com ligeiro sarcasmo
e olhando para Madalena.

— Pelo contrário — acudiu a morgadinha — o seu
mal é a melancolia.

Não é verdade? — Eu já não sei qual é
o meu mal. Estou quase a dar razão à tia Doroteia, que lhe chamou
mania.

— Mania e melancolia não são a mesma coisa — emendou
o velho.

.— Também lá na Polianteia se diz isso bem claro. A
melancolia é sem ira nem fúria, porque procede de humor frio,
e a mania de sangue quente ou cólera requeimada.

— De colera requeimada ? Deve ser uma coisa terrível ! —
continuou Henrique, no mesmo tom.

Madalena, receando que a ironia dos comentários de Hennque acabasse
por irritar o velho, perguntou a este : — Parece-lhe que terá
cura a doença ? — Pode ter ; mais rebeldes melancolias se curam.
Este é divertido afinal. Hum!… Mas contra tristezas e manias não
há como as folhas de ouro em caldo de frangão com ñores
de borragem e de erva-cidreira, — Este é como os calvos, que
vendem aos outros pomadas para fazer nascer o cabelo ; é um argumento
vivo contra a eficácia da beberagem que receita para as manias —
disse Henrique a meia voz para Augusto, que lhe ficava próximo.

O velho, que não tinha ainda dado mostras de ofensa pelas maneiras
impertinentes de Henrique, corou desta vez e faiscou-lhe nos olhos um relâmpago
de irritação.

Havia-se sentido ferido no ponto mais melindroso da sua dignidade.

— Está bom, menino — replicou ele amargamente. —
Não diga mais, para se não envergonhar depois. Eu calo-me ;
e desculpe-me se falei. Estou costumado a ver pobres e ricos virem a minha
casa pedir- -me o favor de os atender. Ainda assim aí vai mais um conselho,
apesar de mos não pedir. Seja atencioso com a velhice que não
é baixeza nenhuma. Mas que é isto ? — exclamou, mudando
de tom e olhando para um redemoinho de folhas secas que o vento trouxera até
perto dele. — As folhas vêm deste lado ! Então virou o
vento ? É verdade.

Ah! sim?… Percebo.

E, depois de olhar para o ar, continuou: — Mudanças tão
repentinas !… Hum !… Já me não agrada aquêle azul
e aquelas nuvens.

E levantou-se.

— Dou-lhes meia hora, e verão tudo isto coberto e quem sabá
o mais que virá! Aconselho-os a que vão descendo o monte, que
não é seguro descê-lo quando as enxurradas engrossam.
Eu, por mim, já me não demoro, que não tenho confiança
na firmeza das minhas pernas. Oh ! noutros tempos !… Enfim, tudo tem de
acabar. Adeus ! E, sem mais palavras, sobraçou a caixa de lata em que
arquivava as’ ervas medicinais e outras substâncias, que andava colhendo,
e partiu, depois de dizer adeus a Augusto, a Madalena e a Cristina.

Logo que o ervanário desapareceu, Henrique soltou uma risada, em
que parecia haver o que quer que era de forçado.

— É realmente curiosa esta antigualha — disse ele, que
interiormente sentia já remorsos pela maneira por que tratara o velho.

— Ai, primo Henrique ; que ainda está muito pouco preparado
para viver na aldeia ! — disse a morgadinha. — Tem uns melindres
e uma maneira de ver as coisas ! Tudo lhe parecem faltas de atenções,
propósitos de ofender ! depois há um sarcasmo cruel nas suas
palavras, a que os espíritos não estão aqui habituados
e de que se sentem por isso feridos. Isso nao e bom! Se vai assim, ou terá
de nos deixar cedo, ou grandes desavenças suscitara por aí.
Não repara que estes modos são próprios do campo’? —
Perdoe-me, prima Madalena; mas confesso que nunca tive demasiado jeito para
iidar com doidos. Deve confessar que este homem…

— É um homem de bem — atalhou Augusto com voz firme e
com uma severidade de expressão, que até ali não mostrara
ainda.

Henrique voltou-se admirado e fitou-o em silêncio. Augusto arrostou
firmemente aquele olhar.

— Não o nego — respondeu Henrique, pouco depois —
mas infelizmente os homens de bem envelhecem, como os outros, e a extrema
velhice traz a imbecilidade.

— Engana-se ; esse homem, apesar de algumas fantasias, tem ainda um
juízo são e uma razão clara.

— Acha? — tornou Henrique, já algum tanto azedado. —
Há-de dar-me licença de não fazer obra por as suas apreciações…
se me é permitido.

— Procede mal — redarguiu Augusto. — Porque eu conheço
aquele homem há muito e o senhor acaba apenas de o ver pela primeira
vez. Foi o senhor quem primeiro deu às suas palavras um tom irritante,
que desafiou uma digna correcção. Não lhe ficaria mal
se tivesse sido mais generoso. A consciência lho está dizendo
neste momento melhor do que eu.

— Lê fundo nas consciências dos outros ! — Não
é difícil. Em todos os homens a consciência tem uma só
maneira de ser. Reprova sempre o mal, aponta sempre a culpa.

— Estou admirando a súbita loquacidade que se lhe manifestou
I Até aqui supunha-o taciturno. Vejo que lhe mereço a fineza
de abrir uma excepção aos seus hábitos de laconismo em
meu favor. Muito agradecido. Isso que dizia eram máximas ou pensamentos
morais? Não reparei.

Augusto corou, mas respondeu com firmeza: — Nem uma nem outra coisa
; é um género muito mais modesto do que qualquer dos dois. Simplesmente
um preceito de civilidade.

Henrique ia responder irritado, mas conteve-se e tornou com dobrada ironia:
— É verdade, é verdade… esquecia-me que a civilidade
entra no seu programa… de mestre-escola.

— Justamente ; tenho alguns discípulos que lisonjeiam o mestre
; rapazinhos da aldeia, pobres, rotos e descalços, mas nesse ponto
podem dar lições a elegantes filhos das cidades.

— Pois estimarei, nas minhas longas horas de ócio, aqui na
aldeia, dever-lhe algumas lições também. Contudo, como,
felizmente, as circunstâncias em que estou me permitem prescindir do
benefício do I Estado, que o subsidia, há-de conceder-me que
pague as lições que receber.

— Nunca me envergonhei de aceitar a recompensa do meu trabalho, se
o discípulo pode dar-ma… sem sacrifício.

— E aceita-a em tôda a espécie de moeda, não é
verdade? perguntou Henrique, cada vez mais petulantemente.

Augusto respondeu com a mesma serenidade : — Não faço
também escrúpulo nisso, contanto que me fique o direito salvo
de pagar na mesma espécie de trocos, quando julgar que os devo.

O diálogo ia, como vamos vendo, de momento para momento adquirindo
mais acerbo carácter.

Cristina, que já tremia de assustada, cingiu o braço de Madalena,
como para convidá-la a intervir rapidamente.

Esta não o tinha ainda feito por uma simples razão. Desconhecia
Augusto. A audácia com que o via repelir as ironias do seu adversário,
a firmeza inalterável com que lhe sustentava o olhar, o sorriso que,
em desdéns, rivalizava com o dele, eram tão novos para a morgadinha,
que a surpresa, que dai lhe vinha, nem a deixava ainda perceber a utilidade
de uma intervenção. O aviso de Cristina chamou-a, porém,
à realidade.

— Tem-me querido parecer, ainda que me custa a acreditar, que isso
entre os senhores é uma altercação — disse ela
por fim. — Vejam que só têm por testemunhas duas mulheres,
que mal lhes podem servir de padrinhos, se a contenda tomar outra feição.
Por isso não é muito para louvar a escolha que fizeram da ocasião,
para uma justa tão pouco… amável.

— Perdão, prima Madalena; reconheço a minha culpa, e
a grosseria do meu proceder, Mas aqui o Sr. Augusto, costumado a impor aos
discípulos o seu pensamento, quis estender até mim este despotismo
de… magister… Ora o meu pensamento pugnou pela sua independência…

— Desculpe ; supondo-o um homem de brio e de pundonor, julguei que
me agradeceria, se conseguisse modificar-lhe uma opinião desfavorável,
que levianamente formou de quem lha não merecia.

Vejo que prefere ser injusto. Seja-o. Pense o que quiser. Mas o que eu não
sofro é que se diga diante de mim uma palavra contra um homem que respeito
e de quem sou amigo, sem que erga a voz a defendê-lo.

Se não costuma fazer o mesmo por os seus, nem sente viva e irresistível
a necessidade de o fazer, lastimo-o ; é porque não os tem.

— com mais paz de espírito se discutirá tudo isso depois
— disse Madalena. — É de crer que, como sempre, haja de
parte a parte razão e agravos. Agora convido-os, antes de descermos,
a visitar a ermida, cuja porta está sempre, dia e noite, aberta aos
devotos que a piedade aqui traz. E tal é o prestígio que a defende,
que não consta de um só roubo sacrilego que se fizesse nela.

Entraram na ermida. Era um pequeno santuário, todo forrado de azulejo
antigo, com enegrecidas pinturas a fresco nos apainelados do tecto, representando
episódios da Paixão; os altares, adornados de colunas e florões
de talha dourada, atestavam nos muitos ex-votos que deles pendiam e nos quadros,
cuja perspectiva deixava a perder de vista a dos desenhos chineses e que representavam
milagres de todo o género, a fé ardente com que era adorada
a imperfeita escultura da Virgem.

E apesar de tudo tinha este templo um ar de solenidade manifesto.

De onde lhe vinha ele ? Da sua mesma pobreza e nudez, do silêncio
que reinava em torno, da altura a que se erguia, do isolamento em que estava.

Ali dentro demoraram-se os quatro visitantes, Madalena e Henrique examinando
alguns dos quadros dos milagres ; Cristina, que prolongara mais do que a prima
a oração que fizera, contemplando a imagem da Senhora ; Augusto
com os olhos fitos nas colunas do altar, porém, não sei se pensando
nelas.

Esperava-os uma surpresa à saída.

Realizara-se o prognóstico do ervanário.

O vento sui que,’ segundo ele notara, soprava já havia algum tempo,
viera condensar os vapores, que arrasta de ordinário na sua corrente,
e empanar com eles a limpidez do firmamento. O azul do céu semeara-se,
pouco a pouco, de pequenos ñocos brancos, de manchas irregulares e
de longos e encurvados veios que lhe davam uma aparência quase marmórea.
Cedo estas massas de nuvens cresceram, tocaram-se, confundiram-se, acabando
por tingir uniformemente tôda a extensão do firmamento. Ao mesmo
tempo, outras nuvens, mais pesadas e mais escuras, começaram a erguer-se
do sul e caminharam impetuosas no espaço, como montanhas móveis,
que viessem em pavorosa carreira, de encontro às serras, que as aguardavam
firmes.

Um denso véu de nevoeiro escondia já a paisagem, quando saíram
da ermida.

— Depressa ! — exclamou Augusto — já não
há tempo a perder ! Desçamos antes que a tormenta nos colha.

— Tem medo ? — disse Henrique em tom de mofa. — Um montanhês
! — Talvez tenha ; em todo o caso há-de ver que não é
de inimigo pouco digno de o inspirar. Por agora peço-lhe tréguas
às zombarias e, por amor destas senhoras, aconselho-o a que trabalhe
por apressar a descida. Felizmente que o criado já partiu. Ë um
embaraço de menos.

Vamos. — Detendo-se, porém, disse para Madalena : — Se
descêssemos por o outro lado, minha senhora? — Para quê?
— respondeu esta.—É um momento enquanto chegamos abaixo.

A tempestade caracterizava-se cada vez mais ; crescia a cerração
do ar ; os álamos gemiam, vergados pela impetuosidade das lufadas do
sul ; a chuva principiou por grossas gotas, e cedo aumentou assustadoramente
; havia na atmosfera surdos rumores de tempestades longínquas ; algumas
nuvens tomavam uma cor térrea, outras um carregado de chumbo, ambas
igualmente sinistras Cristina, pálida de susto, murmurava em voz baixa
orações fervorosas ; Madalena sorria para a animar, mas ela
própria estava inquieta.

Não era de facto uma empresa de todo fácil o descer o monte
por um tempo daqueles. O caminho, já de si íngreme e precipitoso,
era quase impraticável quando as correntes se despenhavam por ele,
como em catadupas, e os ventos vinham despedaçar-se furiosos de encontro
às arestas salientes da rocha. — Era necessário estar
muito amestrado para o descer sem perigo.

Augusto era de todos o que melhor o conseguiria ; assim não tivesse
de repartir os seus cuidados por tantos. De pequeno se costumara àquelas
aventuras ; e já então seguia, sem vertigem, a mais estreita
borda dos despenhadeiros do monte.

A tudo, porém, atendia agora, desenvolvendo uma actividade e perícia,
que inspirava alento e confiança aos mais. Ágil como um animal
montes, girava em volta da pequena caravana, de que tàcitamente fora
reconhecido chefe. Ora adiante a dirigir os passos pelos lugares de mais fácil
trânsito, ora à retaguarda a dar a mão a Madalena, que
vira em embaraço, ou a amparar Cristina, a quem muita vez chegou a
levantar nos braços, para a fazer franquear um ponto do caminho, em
que ela parara, sentindo que lhe resvalavam os pés no declive e na
humidade do chão. O próprio Henrique, que não era o menos
embaraçado do rancho, e nem isso admira, só a custo podia prescindir,
em certos lances, do auxílio de Augusto.

O amor-próprio e orgulho do hóspede de Alvapenha iam um tanto
mortificados nesta retirada inglória. Nenhum dos seus muitos talentos
e aptidões, de tanto valor no terreno, também escorregadio,
das salas de baile, lhe valiam para ali. Era evidente a sua inferioridade
neste momento ; ora Henrique não era homem que, tendo consciência
disto, ficasse indiferente; mas que remédio? Procuraria mais tarde
uma compensação.

Não descrevemos todos os episódios desta laboriosa descida,
alguns dos quais somente a preocupação, em que iam os ânimos,
impedia achar risíveis ; porém que mais tarde deviam, como é
costume, vir a ser alimento de animadas e joviais recordações.

Assim foi que, a meio da encosta e em sítio em que se lhes cortava
ao lado do caminho, que cautelosamente desciam, uma ribanceira quase a pique
e eriçada de fragas salientes e ângulos de rocha, em cujas fendas
e sinuosidades apenas os tojos e as giestas e algum pinheiro enfezado tinham
conseguido vegetar, uma violenta rajada de vento, desprendendo a mantilha
de Madalena, depois de a revolutear no espaço, arremessou-a ao abismo.

Ficou suspensa nos espinhos das tojeiras, porém em lugar, onde seria
difícil o acesso, de qualquer lado que se tentasse.

Madalena, no momento, não pôde reter um grito, que fez parar
com terror Henrique e Augusto que caminhavam adiante. Voltaram-se assustados.

A morgadinha, com a cabeça descoberta, trancas ligeiramente desordenadas,
as faces um pouco pálidas, sorria já do seu exagerado susto.

A rir, explicou o sucedido, pedindo perdão pelo sobressalto que involuntariamente
causara.

— Descansa em paz ! — disse ela, olhando para a mantilha ; e
acrescentou : — Sigamos.

— Mas não será possível tirá-la dali ?
— perguntou Augusto, examinando o sítio.

— Para quê ? Não podemos demorar-nos agora com isso —
respondeu Madalena.

— Eu desço a cortar uma cana lá abaixo aos moinhos e
volto num momento — insistiu Augusto, dispondo-se a executar o que dizia.

Henrique notou, sorrindo : — O alvitre é de homem prudente.
Cuidei que os montanheses não eram de tão bom aviso.

E, animado pelo desejo de humilhar Augusto, por quem se sentia humilhado,
e ao mesmo tempo cedendo à influência que sobre ele exercia a
fascinadora figura de Madalena, Henrique arrojou-se a uma desnecessária
imprudência.

Sem dar tempo a que o impedissem ou lhe fizessem qualquer reflexão,
deixou-se escorregar no despenhadeiro, segurando-se com as mãos à
borda do caminho ; tenteou com os pés as fendas e as anfractuosidades
da rocha, até conseguir firmá-los ; segurou-se ora a uma raiz
saliente, ora a um ramo mais tenaz ; à força de vontade dominou
a sua impericia em exercícios desta ordem, e finalmente conseguiu,
estendendo o braço, segurar a mantilha, que o vento arrojara ao precipício.

Depois, com dobradas dificuldades e porventura redobrados perigos, pôde,
roçando-se como réptil, e ferindo as mãos nas asperezas
da rocha e nos espinhos das tojeiras, em que se firmava, pousar outra vez
os pés em terra, sem aceitar a mão que Augusto lhe oferecia,
e com gesto radiante entregou a mantilha a Madalena, fixando em Augusto um
olhar de triunfo.

Os espectadores desta cena haviam-na presenciado sem soltar uma palavra,
sem fazer um movimento, quase gelados de susto e de espanto.

Quando Henrique voltou com a mantilha, Augusto meneou a cabeça, murmurando
: — Que imprudência ! — Na verdade ! — disse Madalena,
ainda nervosa com a impressão que este incidente lhe causara —
foi uma loucura ; uma loucura imperdoável.

E a perturbação era tal, que nem acertou com uma frase de
agradecimento, com que pagasse a imprudente galantaria, que mais desejava
repreender, do que recompensar.

Esta reserva ofendeu Henrique ; serviços a seu ver de menor importância,
tinham merecido a Augusto mais calorosas palavras.

Revoltou-o esta ingratidão.

Mal sabia ele que estava sendo ainda mais ingrato, não concedendo
sequer um olhar às faces desmaiadas pelo terror, aos lábios
trémulos e aos olhos arrasados de lágrimas, com que o fitava
Cristina.

Ela, que o tinha seguido muda de susto e de ansiedade em tôda aquela
louca aventura, ela que, ao terror do perigo, ajuntava a afligi-lo o desespero
de ver que fora outra a que inspirava aquelas loucuras! Aguardavam-nos em
baixo novos trabalhos a vencer. com a força das enxurradas, que se
precipitavam clamorosas pelas vertentes e algares, era provável que
a levada que corria na raiz do monte tivesse engrossado mais e acabasse de
cobrir a ponte rústica, que à vinda já tinham encontrado
quase submersa.

Augusto, prevendo isso, voltou-se para as senhoras, dizendo: — Eu
vou adiante assegurar-me do estado da ponte, para no caso de estar já
coberta, como é provável, ver se o moleiro nos abre a porta
do moinho, a fim de passarmos por lá. Vão descendo devagar,
que eu volto.

— Então deixa-nos sós? — exclamou Cristina, assustada.

— É um instante.

— Não sei se nos atreveremos a dar um passo sem a sua indicação
— disse Madalena.

— O pior está passado. Além daquela pedra já
vêem o ribeiro e a ponte ; o caminho indica-se por si.

E, dizendo isto, desceu àgilmente por uma espécie de escadaria
aberta na rocha, a qual mais depressa o devia conduzir ao lugar que demandava.

Henrique ia agora na frente ; após, seguia-se Madalena. Cristina
fechava o cortejo.

O mau humor de Henrique aumentara de ponto, em conseqüência dos
receios com que as duas raparigas tinham visto Augusto abandonar, por momentos,
a direcção do rancho.

Ficava assim bem evidente a pouca ou nenhuma confiança que lhes estava
merecendo o auxílio de Henrique, representando ele assim naquela contingência,
em vez do papel de protector, o de protegido, que o humilhava.

Obrigado a digerir, como pudesse, o seu fundo descontentamento, Henrique
perdera com isso aquela volubilidade de conversação que mantivera
todo o dia.

Nunca, na presença de Madalena, deixara passar tanto tempo sem formular
um desses galanteios que a impacientavam e obrigavam a uma resposta, nem sempre
demasiado afável.

Madalena, por seu lado, não se sentia com disposição
para falar.

Cristina menos.

Este silêncio acabou por exasperar Henrique.

Haviam já percorrido grande parte do caminho, que os distanciava
do riacho. Avistavam-se as águas turvas e impetuosas, que, com mais
fragor do que nunca, se contorciam naquele apertado leito.

Foi então que Henrique desafogou o seu ressentimento.

— Estou deveras arrependido, prima Madalena — disse ele com
leve ironia — do meu espontâneo movimento de há pouco.
Devia lembrar- me de que ao nosso cavalheiroso guia devem pertencer todos
os triunfos e tôda a glória desta jornada ; mas como daquela
vez se me afigurou que era demasiado cauteloso para herói…

uma simultânea exclamação de Madalena e de Cristina
não o deixou prosseguir.

Voltando-se para saber a causa, que a motivara, viu-as paradas, pálidas,
olhando com ansiedade para a base do monte.

Seguindo a direcção do olhar delas, Henrique reconheceu a
causa daquele duplo grito.

Refiramo-lo em poucas palavras.

Quando Augusto chegou ao ribeiro, para averiguar se a ponte estava ou não
transitável, surpreendeu-o um espectáculo inesperado.

O ervanário que, prevendo tempestade e receoso dos perigos de que
em tais condições a descida era acompanhada, se apressara a
partir, não conseguira chegar ao ribeiro, antes do desencadeamento
da borrasca. O andar vagaroso e precavido do velho e as freqüentes pausas
que fazia, ou para descansar ou para colher a rara planta montesinha, o insecto,
o verme, o molusco ou o mineral de ocultas virtudes, elementos da sua farmacopeia,
foram retardando de maneira que a chuva apanhou-o a meio caminho, e mais difícil
de descer lhe tornou a metade que lhe faltava. Assim, não obstante
haver partido antes dos outros, não lhes levava muitos passos de avanço.

Ao chegar à levada, encontrou já as pedras do tosco passadiço,
a que se dava o nome de ponte, cobertas pela água. O velho deu-se pressa
em descer para a passar ainda a pé enxuto ; mas a levada, agora torrente
caudalosa, ganhava corpo de momento para momento ; cedo já não
se viam sinais de ponte. O ervanário parou, embaraçado. Acima
ficavam-lhe os açudes, transformados em impetuosas cataratas ; abaixo,
o moinho, em cujas enormes rodas espumava a corrente com espantoso fragor.

O velho Vicente hesitou. Era para causar vertigens o que via.

As águas, sem transparência, ocultavam de todo a vista das
pedras.

Tenteou com o bordão o sitio em que as supôs. Encontrou a primeira,
pousou um pé nesse ponto ; firmou-se como pôde, para resistir
à força da corrente ; tenteou outra vez, reconhecendo outra
pedra, deu mais um passo, e outro, e mais outro, até que de repente,
ou por esvaimento de sentidos ou por se firmar em falso, vacilou e, perdendo
o equilíbrio, caiu na levada para o lado dos moinhos.

Foi neste momento que Augusto chegou ; viu-o pois cair, viu-o estrebuchar,
lutando com a impetuosidade das águas ; reconheceu a urgente necessidade,
para evitar uma horrível desgraça, de acudir, sem perda de tempo,
ao pobre velho, que a torrente arrastava para os lados do moinho.

Cedendo a este pensamento, Augusto franqueou, quase de um salto, o espaço,
que o separava ainda do ribeiro, e lançou-se à água.

Era a vez de Augusto revelar coragem. Henrique também a pos.

suía, mas abusava dela ou, por vaidade, malbarata va-a em ninharias,
Ainda nisto se revelava o seu amor de ostentação. Imaginava-se
sempre num palco, diante de espectadores que o viam e aplaudiriam, se desempenhasse
bem o papel de homem perfeito. Fraco perante doenças imaginárias,
arriscaria, para evitar o ridículo, a própria vida, assim como
sufocaria, porventura, um impulso generoso, que não pudesse harmonizar-se
com a convenção, que se chama elegância.

Eram estes os defeitos que Madalena adivinhara nele.

Augusto era diferente.

As suas grandes qualidades guardava-as com modéstia dos olhos estranhos,
para somente as revelar, quando pudessem ser úteis.

Ao ver cair a mantilha de Madalena, não arriscou temeràriamente
a vida para a buscar. Procurava com placidez os meios de o fazer, com mais
segurança, embora com menos romantismo ; mas, para salvar uma vida,
para obedecer a um instinto, verdadeiramente nobre e generoso, nada o fazia
recuar.

Logo que Augusto voltou a terra e auxiliou o ervanário a subir para
a margem, Madalena, respirando enfim com desafogo, respondeu às anteriores
palavras de Henrique, dizendo em suave tom de censura : — Bem vê
que nem sempre é cauteloso o nosso guia, primo Henrique.

Sabe também arriscar a vida, quando uma razão de humanidade
Iho pede. A sua imprudência de há pouco… agradeço-lha,
mas… não posso aprová-la. Confesse que não foi tão
justificada como esta.

Henrique tinha a razão clara bastante e a consciência justa
para ver que, apesar da sua façanha cavalheiresca, ficara, desta vez
ainda, inferior ao seu companheiro.

Qualquer que fosse o desgosto, que a descoberta lhe produzisse, é
certo que teve sobre a rebelião dos maus instintos poder suficiente
para se obrigar a ir apertar a mão a Augusto.

O velho Vicente estava pálido e extenuado pelo esforço da
luta com a corrente ; ainda assim abraçou também Augusto, dizendo
: — Agradeço a Deus o haver-me dado esta ocasião de te
dever a vida, rapaz. Era um prazer que desejava levar da Terra, quando a deixasse.

Madalena e Cristina rodeavam o velho de cuidados.

Apareceram, enfim, do outro lado do ribeiro, os criados enviados por D.
Vitória com guarda-chuvas e roupas de agasalho. com eles vinha também
o moleiro, a quem mandaram chamar para dar passagem pelo moinho, visto estar
obstruída a ponte, e ao mesmo tempo para que as senhoras pudessem aí
dentro mudar de fato.

Augusto seguiu o ervanário a casa.

Passada meia hora saíam também do moinho os outros todos,
depois de haverem renovado a roupa que a chuva repassara.

No Mosteiro, D. Vitória recebeu a filha e a sobrinha com muitas exclamações
e ralhos por não terem ido prevenidas com guarda-chuvas, como ela lhes
recomendara ; estas iras cedo se derivaram sobre os criados, a quem, entre
outros delitos, atribuía o de a não haverem avisado de que na
véspera passara por ali o caldeireiro ambulante, repemcando nos seus
arames, o que, sendo prognóstico infalível de chuva, faria com
que ela, sabendo-o, se opusesse a tal passeio.

Em Alvapenha, D. Doroteia e Maria de Jesus não levantaram menor celeuma,
ao verem chegar Henrique. Fizeram-no meter na cama, cobriram-no de cobertores,
emborcaram-no de punch e tais medos lhe insinuaram, que as apreensões
patológicas de Henrique agitaram-se e tentaram reapossar-se da sua
antiga vítima.

XI CENSURÁVEL descuido tem sido o nosso em não conduzir o
leitor a um dos lugares mais importantes da aldeia, onde se passam os singelos
episódios desta narração.

Que se diria de um cicerone que, por esquecimento ou propósito, deixasse
de apresentar um viajante, recém-chegado a uma cidade, na assembléia,
clube, grêmio, ou o que quer que seja, onde se reúnem as principais
personagens dela, onde se compendiam as grandes questões e interesses
locais, as pequenas vaidades e intrigas, as modas efémeras, os volúveis
caprichos que agitam os espíritos, onde se comenta o boato de ontem,
se dão ao de hoje mil versões diversas e se adivinha já
o de amanhã? Pois no mesmo delito incorremos nós, chegando a
este undérimo capítulo, sem ter guiado os leitores à
venda de Damião Canada, a qual podia dizer-se o verdadeiro coração
daquele organismo social.

Tudo quanto na terra havia de certa representação ali ia falar
da coisa pública e também da particular ; — da particular
dos outros mais do que da própria, entenda-se.

Aproveitemos um resto da tarde, em que a natureza após horas continuadas
de chuva e de temporal, como que procurou respirar e permitiu que o Sol, já
no ocaso, levantasse uma ponta do manto de nuvens que o envolvia, e mandasse
os raios amortecidos às cristadas serras fronteiras ; aproveitemos
este intervalo de sossego para entrarmos na taberna.

Tinham passado dois dias depois do passeio ao monte, que descrevemos.

Henrique de Souselas teve de condescender com uma leve angina que lhe legaram
os rigores daquela excursão, e ficou em Alvapenha entretendo-se a escrever
cartas aos amigos e a cismar numa iminente desorganização da
laringe, a que imaginava conduzirem-no os seus incómodos actuáis.

No Mosteiro nada também ocorreu, que mereça narrar-se ao leitor.

Deixemos, pois, por momentos, os nossos conhecidos, e vejamos n que dizem
os freqüentadores do estabelecimento de Damião Canada.

Brilhante é a assembléia ali reunida. Além do proprietário,
barriguda e rubicunda figura, que, assim posta ao pé das pipas, podia
servir de tipo para a representação de um Sileno, havia várias
individualidades de peso nos destinos de toda a comarca.

Dê-se primeiro menção ao nosso já conhecido Bento
Pertunhas a quem as humanidades não faziam soberbo a ponto de recusar-se
a entrar em comunicação social com os seus conterrâneos.

Observada esta deferência, mencionemos os mais.

Um era nem mais nem menos do que o Sr. Joãozinho das Perdizes, em
quem já temos ouvido falar por mais do que uma vez.

Era o dito Sr. Joãozinho morgado e proprietário em uma das
freguesias próximas, chamada de Pinchões ; mas propriedades
e morgadia andavam-lhe tão embaraçadas em redes de demandas
e de hipotecas, que Deus nos acuda.

Os autos, que diziam respeito à casa das Perdizes, enchiam um cartório.
Graças, porém, ao seu gênio despreocupado e folgazão,
o Sr. Joãozinho deixava aos procuradores os cuidados judiciais ; os
cuidados agrícolas aos rendeiros e feitores ; os do futuro, a Deus
ou ao Diabo ; e para si não reservava nenhuns.

Prosseguia naquela vida airada, que já lhe era necessidade. Frequentava
as feiras, onde ia para jogar e fazer trocas de cavalos com os ciganos, e
às vezes para dar e levar sovas monumentais. — Nos meses de caça,
a vida do morgado era perfeitamente nómada: estendia por léguas
e léguas as suas excursões venatorias, contentando-se com qualquer
cama e comida, de que, de ordinário, participavam os cães que
o acompanhavam ; distraía-se também a conquistar os corações
femininos da freguesia, calando com dinheiro algumas queixas mais acerbas
e insofridas de um ou outro pai, marido ou irmão. Em todas as tabernas
das freguesias vizinhas tinha contas em aberto, o que não obstava a
que entrasse em todas com ares de conquistador e expendesse ali as suas opiniões
absolutas, com grande exibição de berros e de punhadas.

com tôdas estas qualidades, era o Sr. Joãozinho dao Perdizes
um homem verdadeiramente popular entre os da sua freguesia ; movia-os no sentido
que quisesse.

Tudo por lá era o Sr. Joãozinho ; não havia função,
rixa, solenidade oficial, para que ele não fosse consultado. É
que a superioridade do morgado das Perdizes não era daquelas que intimidam
e acanham o povo ; ninguém hesitava em falar-lhe e em procurá-lo
em casa, porque, falando e vivendo com eles, o Sr. Joãozinho não
constrangia ninguém.

Os seus defeitos, a sua vida de feiras e de tabernas eram outras tantas
causas a popularizá-lo ; justo é porém que se diga que
algumas boas qualidades também para isso concorriam. O Sr. Joãozinho
não era avarento, nem soberbo. Sentado a beber, e com dinheiro no bolso.

não consentia que pessoa alguma, desde o mais rico proprietário
até ao jornaleiro mais miserável, recusasse tomar assento a
seu lado. Não eram poucos os filhos-famílias que resgatara de
soldado, sem a menor caução ou interesse, chegando a ficar empenhado
para os livrar; e se algum desgraçado se via perseguido pela justiça,
encontrava, fosse qual fosse a enormidade do crime, asilo seguro na herdade
das Perdizes, que em certas épocas era um perfeito valhacouto de malfeitores.

Graças, pois, a estas análogas qualidades, era o Sr. Joãozinho
uma verdadeira potência eleitoral.

Eis aí o homem moralmente.

Pelo lado físico, suponham um sujeito de trinta e cinco anos, gordo,
vermelho, de longas e encaracoladas melenas em desordem, bigode aparado e
a barba quase sempre malfeita ou por fazer. Na maneira de vestir inculcava
os hábitos da vida e um certo desleixo com sua pessoa, que lhe era
peculiar. Trazia o colete quase sempre desapertado e com alguns botões
de menos, de modo que os peitos da camisa formavam hérnia pela abertura;
entre as calças descaídas e o colete avistava-se o cós
das ceroulas, no qual era jeito muito seu o enfiar a mão; ao pescoço
trazia um lenço de seda escaríate, negligentemente atado e com
longas pontas flutuantes; uma jaqueta de peles com alamares, calças
de fazenda chamada pele do Diabo, botas de montar e esporas constituíam
o resto do vestuário. O cigarro, que quase sempre fumava até
às últimas, crestara-lhe profundamente as pontas dos dedos ‘é
o canto dos lábios. O palito andava-lhe sempre atrás da orelha;
a navalha de ponta na algibeira, e, para qualquer parte que ia, acompanhava-
o uma tumultuosa matilha de galgos, podengos e perdigueiros.

Segunda e não menos importante personalidade era a do Sr. Eusebio
Seabra, chamado por antonomàsia — o Brasileiro.

Era um homem de cinqüenta anos ; bem figurado e sisudo, de falar compassado
e com seus quês de oráculo, frases sentenciosas e ares de protecção
a todo o mundo.

Saíra criança da aldeia e fora tentar fortuna ao Brasil. Por
lá esteve quarenta anos, e voltou o homem grave que vemos e rico. como
enriqueceu não sei, e ninguém na terra o sabia. Veio edificar
uma casa no sítio em que nascera, uma casa grande de cantaria e azulejo,
com três andares e varandas, jardim com estátuas de louça
e alegretes pintados de verde e amarelo, o qual jardim tinha mais fama naquela
aldeias vizinhas do que os jardins suspensos da Babilônia. Trouxera
um papagaio e uma arara, igualmente famosos, e uma botica homeopá.

tica, que ele próprio manipulava.

As ambições de Eusebio Seabra limitavam-se a vir a ser a pri-.

meira personagem de influência na aldeia. Para isso principiou por
fazer alguns reparos na igreja paroquial, presenteou com vestidos novos todos
os santos dos altares, e mandou renovar um sino, que havia doze anos tocava
a rachado. Fez à sua custa a festa do orago chegando a mandar vir fogo
preso da cidade e um aerostato, que ardeu a pouca altura do chão. Apesar,
porém, de todos estes benefícios à localidade, o conselheiro
Manuel Bernardo, pai da morgadinha, conquanto vivesse quase sempre em Lisboa,
continuava a fazer-lhe sombra e a contestar-lhe as ambiciosas vistas. Por
isso, apesar da aparente amizade com que Seabra o acolhia e lisonjeava até,
conservava pójele no fundo uma má vontade, um ciúme,
de que eram de recear, tarde ou cedo, explosões.

Seabra era tão asseado, quanto o Sr. Joãozinho das Perdizes
descurado no seu vestir. Usava sempre de suíça irrepreensivelmente
talhada em volta do queixo ; camisa muito lavada ; peito aberto e três
grandes botões de brilhantes; no trajo combinavam-se as variegadas
cores de uma ave da América ; e o ouro, distribuído com profusão
por todos os acessórios da sua pessoa, atestava os bons resultados
dos seus quarenta anos de Brasil. Passeava pela aldeia de chinelos de marroquitn
verde ou sapatos de tapete, e era tal nele a delicadeza do andar, que voltava
a casa sem que uma mancha enodoasse a alvura das suas meias de algodão
fino. Aos domingos e dias de festa indignava a relva dos caminhos, calcando-a
com bota de polimento.

Além destes dois e do nosso conhecido Zé-Pereira, que bebia,
em silêncio, ao pé do taberneiro, havia um padre, coadjutor da
freguesia, dois lavradores abastados e já de avançada idade,
e outros que deixaremos confundidos na massa indistinta dos comparsas.

No momento em que entramos, usava da palavra o brasileiro, que estava sentado
à porta da taberna, na mais limpa cadeira do estabelecimento.

— Pois é verdade — disse ele — fomos todos da mesma
criação.

O conselheiro Manuel Bernardo saiu daqui para Lisboa um ano depois de eu
ir para o Brasil. Andámos ambos na mesma escola, que era a do padre
Joaquim, ali pelo sítio da Corredoura. Vossemecê há-de
estar lembrado, Sr. Luis — acrescentou, dirigindo-se com a afabilidade
protectora, que o caracterizava, a um dos lavradores.

— Ora se estou! muito bem. Era na casa em que hoje mora o Chico da
Luciana.

— É verdade que sim. Pois ali andei eu e o conselheiro e aquela
ratão do Vicente, ervanário, que era já rapaz taludo.
Lembra-me, como se fosse hoje, de quando jogávamos todos três
a pedra no terreiro a Corredoura.

— Olha lá, hem ! —• diziam dois lavradores com
um sorriso corsão nos lábios — então com que o
Sr. Seabra também jogava a pedra ! Eh! eh! eh!…

— Ora, como um homem. Eu fui levadinho da breca. Boa sova levei de
minha mãe, por causa de umas calças novas que rompi.

— Ora vedes ? — diziam os outros.

— Ai tempos, tempos ! — disse, suspirando, o brasileiro.

— Quem havia de dizer então ao que V. S.* e o conselheiro tinham
e chegar ! — notou lisonjeiramente o Sr. Bento Pertunhas.

— Eu sim — respondeu com tôda a sua modéstia o
brasileiro. — que cheguei eu? Comi candeias acesas pelo Brasil, para
arranjar m bocado de pão para o resto da vida ; com isso me contento.
O mais, ou um pobre diabo que ninguém conhece, um homem ignorante,
sem princípios. Ele é outra coisa.

— Não é tanto assim — insistiu Pertunhas —
todos sabem que . S.* se quisesse…

— Olhe, meu caro amigo, eu conheço-me ; se tivesse o juízo
de muitos, que por aí vejo figurando, então havia de me ver
na brecha; porque, não é por me gabar, mas não me tenho
por menos do que muitos deles.

— Ora pois, não, não — disseram os lavradores,
Pertunhas e o adre.

— Alguns que até ministros têm sido…

— Por essa estou eu…

XIII

AO outro dia a impaciência de Ângelo não lhe permitiu
longa demora no leito. Tardava-lhe o ver todos aqueles sítios, tão
seus conhecidos ; árvores que uma por uma distinguía, sebes,
atalhos de campos, e quebradas de montes. A custo o puderam reter para o almoço;
resignou-se porém a não ultrapassar, até então,
os muros da quinta. Logo porém que sorveu à pressa o último
golo de chá, partiu, veloz como uma lebre, sem sequer dar ouvidos à
enfiada de recomendações de sua tia D. Vitória, que teimava
em o querer prevenir, com socos, gabão e guarda-chuva, de uma hipotética
mudança de tempo.

Ângelo partiu. A tudo que via pelo caminho encontrava ligada uma recordação
e uma saudade ; mas seguia sempre, como quem não errava ao acaso pelos
campos, antes era guiado naquele passeio por um intento, que tinha pressa
de realizar.

Atravessou grande parte da aldeia, cortejando, cumprimentado e festejado
por quantos encontrava pelos caminhos, ou às portas e janelas das casas,
nos campos e nos ribeiros.

Chegou enfim à casa, onde já dissemos morar o recoveiro Cancela
e a sua filha Ermelinda.

Era evidentemente aquele o termo proposto por Ângelo ao passeio matinal,
porque retardou o passo à medida que se aproximava, e parou à
porta da casa.

Achou-a fechada, mas não lhe causou isso embaraço.

como quem estava habituado a vencer estes estorvos, sondou resolutamente
o muro do quintal, construído de pedras soltas, e dispôs- se
à escalada.

Com a agilidade e destreza próprias de quem passou na aldeia os primeiros
anos da vida, o irmão de Madalena trepou sem vacilar até ao
alto do muro, e num momento pousou os pés no chão do quintal.

Vendo-se dentro da fortaleza, olhou em redor com precaução
e, com mais precaução ainda, se dirigiu para um bosquezito de
laranjeiras, que era o lugar de recreio do pequeno horto.

Foi motivo destas precauções o ter já avistado, por
entre os troncos e a rama baixa das laranjeiras, um vulto que se lhe figurou
conhecido.

Assim se foi aproximando sem que o pressentissem e, oculto por detrás
de uma sebe de roseiras silvestres, pôs-se à espreita.

Era Ermelinda a pessoa que estava no laranjal.

Sentada sobre o tronco partido de uma laranjeira velha, que meses antes
havia sido derrubada, a filha do Cancela e afilhada da família Zé-Pereira,
tinha todas as faculdades aplicadas à decifração dos
hieroglíficos caracteres de um pequeno papel manuscrito, que segurava
nas mãos e lia a meia voz. De quando em quando interrompia a leitura
e, erguendo a cabeça para o céu, parecia repetir o que lera,
como se pretendesse decorá-lo.

Angelo aplicou mais o ouvido, a ver se alguma das palavras, gue ela declamava,
lhe revelava a natureza do manuscrito.

De facto, de uma vez a pequena leu em voz mais audível e ele escutou
a seguinte quadra: — Que lamentável tragédia, Que os meus
olhos tristes viram I E publicam minhas vozes Aqueles que não ouviram
! E principalmente o rei, Que se chama o rei tirano, Nesta região remota
Do Egipto dilatado.

Depois de 1er isto, a rapariguita levantou a cabeça e repetiu : —
Que lamentável tragédia Que os meus olhos tristes viram . ..

Angelo saiu do esconderijo, e sempre vagarosamente, e com precaução,
veio colocar-se por detrás dela, sem que fosse pressentido ainda.

Tão perto chegou, que, por cima do ombro de Ermelinda, podia já
1er as quadras que ela estava decorando: •— Tenho mil línguas,
mil bocas …

ia Ermelinda continuar a 1er, quando uma respiração mais profunda
Se Angelo a fez desviar a cabeça.

Dando com os olhos nele, soltou um grito de sobressalto ; depois sorriu
e instintivamente procurou esconder no bolso do avental o papel que lia.

Angelo segurou-lhe a mão.

— Que estavas a 1er, Linda ? — Não é nada…

— Deixa ver.

— Não deixo.

— Porque não deixas ? — Para não ser curioso.
Que modos são esses de andar a escutar a gente? — Pois sim, sim
; mas deixa-me ver os versos.

— Não são versos. Quem lhe disse que eram versos? —
Pois não ouvi? Que era isso de tirano e de Egipto, que dizias? —
Que há-de ser ? — disse afinal Ermelinda, dando-lhe o papel.

— São os versos do auto dos Reis. Sabe agora ? — Do auto
dos Reis ? Ai, sim ; está a chegar o dia ! Mas que tens tu com o auto
dos Reis? — É que este ano meu pai quer que eu seja a Fama.

— Viva ! E que bonita Fama que vais ser ! E já sabes os versos
? — Estava a decorá-los.

— Tenho mil línguas, mil bocas…

dizia Ângelo, lendo no princípio. — O que é pena
è pôr uma chochice destas na boca de uma Fama como tu.

— Que está a dizer ? Então os versos não são
bonitos ? — Oh ! pois não são ! — exclamou Ângelo,
gracejando. — São uma perfeição ! E tendo-os corrido
com a vista, principiou a lê-los com acentuação e ênfase
cómicamente exageradas.

— Ora ouve lá : Sabei que aquele Herodes, Lobo cruel carniceiro.

Tremendo de inveja pura Lhe venham tirar o reino.., — Então
que há que dizer a isto ? E prosseguiu : Feria raios de fogo De seus
olhos com mudança: E só pretende fazer Alvo da sua vingança.

— Isto é claro e sublime ! — Lendo assim, pudera ! —
disse Ermelinda, rindo.

É preciso que advirta o leitor que estas quadras e auto, a que nos
estamos referindo, nao são obra da nossa imaginação.
Por aí corre manuscrito o auto, mais ou menos extravagantemente ortografado,
segundo o sistema ou o capricho do copista. Em quase todas as aldeias ¿os
arredores do Porto podem ver em cada ano representado este ou outro análogo,
com aplauso e glòria da arte. Às mãos nos veio uma dessas
cópias, à qual, menos na ortografia, escrupulosamente nos cingimos.

Ângelo era talvez em demasia severo na apreciação critica
sobre o merecimento literário da obra, ao chamar-lhe uma chochice É
raro que a musa popular não tenha, apesar da sua rudeza, alguma inspiração.

Neste mesmo auto, se encontram vestigios dela. Mas não é nossa
missão apreciar as opiniões dos actores que pomos em cena; tão
somente as registamos, sem nos responsabilizarmos por nenhuma.

Ângelo redarguiu à reflexão de Ermelinda : — Pois
bem; para que não digas que é da maneira de 1er, que eles parecem
chochos, repara ; vou lê-los agora com toda a seriedade.

Ora escuta: Que quantos até dois anos Em Belém fossem nascidos,
E toda a sua comarca Matassem a ferro frio.

Sem excepção a pessoa Que nos distritos se achasse.

Entendendo desta sorte Que nós lhe não escapássemos.

— Olhem que sensaboria ! Esta divisão administrativa e judicial,
em distritos e comarcas, que o autor fez na Judeia e que tanto parecia revoltar
Ângelo, era uma destas liberdades shakespearianas, que se devem perdoar
aos gênios.

— E não foi assim? — perguntou Ermelinda, que não
percebia ainda o motivo dos reparos de Ângelo. — Pois Herodes
mandou matar todas as crianças da Judeia ; então não
mandou ? — Mandou, mandou ; mas a Fama é que devia contar isso
melhor.

— Melhor ? ! Então não é bonito esse verso ?
E Ermelinda, tirando o manuscrito das mãos de Ângelo, leu a seguinte
quadra : Para livrarem seus filhos Da morte dos inocentes Dos braços
faziam cruzes Aquelas mães impacientes.

Os instintos populares da filha do Cancela perceberam a beleza, talvez um
pouco rude, do tocante quadro, que estes versos exprimem.

Esta pequena contenda literária entre duas crianças podia
dar margem a profundas reflexões a quem para elas estivesse disposto.

Ângelo estava no princípio de uma educação esmerada
Principiara já a desenvolver-se nele a inteligência, e a acordar
os instintos artísticos que estremeciam já sob as primeiras
seduções da forma.

Nestas épocas críticas, em que esses segredos se revelam,
é tal o encanto em que eles nos trazem que exclusivamente nos votamos
ao novo culto com a fanática intolerância. Onde as louçamas
do estilo os primores e a sonora harmonía do metro, e o brilhantismo
das imagens nos nao afagam os sentidos, recusamos demorar a vista; e escapa-nos
assim na sombra muita beleza real, às vezes oculta sob a grosseira
revestidura da poesia ou narrativa popular.

É necessário que passe o entusiasmo, a violência da
paixão nascente, que venha a frieza de ânimo necessária
à imparcialidade do juízo, para que nos não cause repulsão
a aspereza e grosseria até da forma e consigamos apreciar o belo que
porventura nela se envolva.

Dá-se com a beleza da idéia e da forma de qualquer obra literária,
o que se dá com a beleza moral e a beleza física de uma mulher.

Ambas sao feitas para nos comoverem e dominarem. Mas, quando o assomar de
um sentir novo começa a alvoroçar o sangue do adolescente, quando
formas vagas e formosíssimas principiam a encantar- -lhe os sonhos
de suas noites febris, a paizão da forma domina-o ; por ela sacrifica
tudo; uma modelação perfeita, um delineamento gracioso poderá
decidir da sua vida inteira, e na fascinação que o cega, nunca
verá a formosura da alma, que se abriga numa pouco feliz encarnação.

É que para apreciar a beleza moral, para a ver transparecer, através
do invólucro exterior, é preciso deixar passar a vertigem dos
primeiros momentos, ou não a ter ainda experimentado.

Por isso na infância e nas idades viris é que melhor se apreciam
essas fealdades, que escondem um coração angélico. A
adolescência é impíamente cruel para com elas.

Por uma lei análoga é o povo, o simile da criança,
porque não tem os sentidos educados para as mais subtis belezas da
forma, e é o homem a quem ela já não fascina, embora
ainda e sempre o deleite, como poderosíssimo elemento de beleza literária
— são estes os leitores que mais aptos estão para avaliarem
uma ou outra inspiração que, entre muitos desvarios, tem a humilde
musa que visita a cabana do lavrador ou a oficina do artista.

Apesar da defesa de Ermelinda, Angelo não perdoou ao auto.

— Sabes que mais? Não decores isso — disse-lhe ele resolutamente.

— Meu pai quer.

— O que é que quer teu pai ? — Quer que eu entre no auto.

— E hás-de entrar. Quem te diz que não ? — E quer
que seja a Fama.

— E hás-de ser a Fama — E não hei-de falar ? —
Hás-de falar. Tinha que ver uma Fama que não falasse. Para que
lhe serviriam as cem bocas? — Então ? — Então ;
é que não é forçoso que digas o que aí
está.

— E que hei-de eu dizer ? — Outra coisa.

Ermelinda olhava Ângelo admirada, sem conseguir compreendê-lo.

— Outra coisa ! — repetiu ela, instintivamente.

— Olha — prosseguiu Ângelo. — Daqui até chegar
o dia do auto muito tempo. Eu te darei outros versos para estudares, em lugar
!ses.

— E onde os tem? — Eu os procurarei. Não digas tu nada.
Basta que no dia recites, vez desses, os que eu te der!.

— Mas que dirá meu pai e o Sr. Pertunhas ? — O mestre
de latim ? Pois que tem ele com o auto ? — É quem ensina como
a gente há-de dizer.

— Ah ! sim ? Pois para que ele nada diga, guarda para a ocasião
versos que eu te arranjar. Até há-de ter graça ver a
cara com que eles ficarão todos, quando lhes sair uma coisa bem diferente
do que esperam.

— Mas… diga: onde é que vai buscar esses versos? —
Não sairei da aldeia para isso. Numa visita que daqui vou fazer, conto
obtê-los. Agora falemos de outra coisa. Que é de teu pai? —
Saiu a levar umas encomendas. Minha madrinha dali defronte, está para
a igreja e meu padrinho nas hortas. E eu vou tratar do jantar de meu pai.

— Pois vai, que eu faço-te companhia.

E Angelo seguiu-a à cozinha, e aí, ela sentada na soleira
da porta a escolher hortaliça, ele a dar de comer aos coelhos e às
galinhas, se entretiveram a conversar.

Ângelo falou-lhe de Lisboa, dos teatros, contou-lhe enredos de dramas
que o tinham comovido; tipos e situações de romances, que se
lhe haviam gravado na memória ; invenções da arte moderna,
versos, anedotas, contos.

Ermelinda era tôda ouvidos a escutá-lo.

Passadas horas, Ângelo levantou-se e despediu-se, para sair.

— Onde é que vai ? — Vou visitar Augusto, que deve estar
agora em casa.

— E ainda o não viu ? — Ainda não. A minha primeira
visita foi esta.

— Então vá, que ele deve estar morto por o ver. Ah!…
Já sei a pessoa a quem vai pedir os versos ! — Quem te disse
que Augusto os fazia? — Eu vi-o estar a escrever na parede da capela
da Senhora da Saúde de uma vez que eu ia levar o jantar a meu padrinho,
que estava a trabalhar para aqueles sítios.

— E leste-os? — Não, que não quis que ele me visse.
Mas que havia ele de escrever na capela? Então não adivinhei?
— Não sei. Adeus.

— Diga.

— E chamavas-me curioso ! E Ângelo saiu apressadamente.

Momentos depois estava com Augusto.

A conversa entre ambos teve tôda a intimidade da de dois afeo.

tuosos amigos.

Angelo fez a narração dos episódios da sua vida de
colégio ; das dificuldades e das belezas dos seus estudos naquele ano.
Augusto que da aldeia com ele os seguia, passo a passo, interrogava-o sobra
algumas dúvidas que tinha, e esclarecia às vezes também,
graças à sua poderosa penetração e natural lucidez,
as que o ensino do colégio havia deixado no espírito do seu
antigo discípulo.

A geografia e a história, que eram as disciplinas estudadas naquele
ano por Ângelo, deram assunto a grande parte deste diálogo, Augusto
inclinara-se aos estudos históricos, inclinação em que
o ervanário o entretinha com freqüentes presentes de livros daquele
género.

Em exame de livros novos, referências a outros lidos, e leituras de
alguns mais apreciados, passaram os dois grande parte da manhã, até
que por fim Ângelo disse a Augusto : — Ah ! é verdade !
Tenho um favor a pedir-lhe.

— Qual é? — Sabe que está para breve o dia de
Reis ? — Sim.

— E portanto o auto com que o povo daqui o festeja ; aquele auto em
que o Herodes faz tremer meio mundo? — Bem sei — respondeu Augusto,
sorrindo.

— Este ano teremos a Linda a fazer de Fama. Fama bonita, por certo
; mas se soubesse os versos que lhe deram para recitar ! E Ângelo reproduziu,
como pôde, as quadras do monólogo da Fama no auto dos Reis.

De quando em quando passava um sorriso pelos lábios de Augusto.

— Eu iá conhecia isso. É o costume — disse ele
no fim.

— Mas não lhe parece que de uma Fama como aquela, se devia
esperar melhor do que isto? — E então que quer que eu lhe faça?
— Outros versos para o lugar destes.

— Outros!… Eu?…—perguntou Augusto.

— Porque não ? — Oue lembrança ! — Não
me venha negar que os faz.

— Versos? — Sim.

— Quer dizer que os leio.

— E que os escreve. Vamos. Mas se insiste em recusar, diga-me então
quem é que os escreveu na parede da capela da Senhora da Saúde,
para eu me dirigir a ele.

— Então houve quem escrevesse versos na parede da capeia? -perguntou
Augusto, sorrindo.

— Não que eu visse; mas já duas pessoas-mo afirmaram,
e as peitas de ambas recaíram no mesmo homem.

— Quem foram essas pessoas? —De uma o ouvi agora mesmo. Foi
Ermelinda.

— Ah! — A outra foi Lena.

—Le… A Sr.’ D. Madalena? — É verdade, minha irmã.
E estranhou, com razão, que eu o não soubesse.

— E como o soube ela ? — Leu-os, e pela leitura conjecturou
o autor.

Augusto calou-se como absorvido por um pensamento, que todo o preocupava.

Ângelo continuou falando, sem que fosse escutado; afinal concluiu,
disendo : — Então quer falar ao poeta da Ermida para que me dê
o que peço? —Poesia não lhe pode ele dar, agora se…
alguns versos o satisfazem…

— Sim, sim, venham os versos ; que a poesia eu a procurarei neles,
até a achar. Desde já lhos agradeço.

— A ele? — A ambos — respondeu Angelo, rindo. —
E agora diga-me, Augusto : Ainda está resolvido a viver aqui sempre
enterrado ? Não fensa em mudar de vida? — Nenhuma outra me namora
mais ; o destino que a bondade da morgada me oferecia… não tenho
coragem para aceitá-lo. Assusla- me o peso do crepe.

— Nem eu lhe digo que deva aceitar esse. Mas o Augusto não
Brá amigos que o ajudem a seguir outros destinos menos obscuros do
que este e menos pesados do que o que o legado lhe impunha? Meu pai já…

— Que quer ?( Não me posso vencer até pedir ou aceitar
de outrem auxílios, quando Deus mos não tem recusado ainda;
nem sei até se esses destinos, que diz menos obscuros, me fariam mais
venturoso.

Há índoles que nasceram afeiçoadas para a obscuridade.
Incomoda-as a demasiada luz. umas plantas querem ar e sol e luz ; outras vivem
ai em qualquer canto escuso e obscuro, e lá mesmo dão flor.
Porque é isto não sei, mas…

— Sei eu — disse uma voz da parte de fora da janela, junto da
qual se passara o diálogo ..

Voltaram-se os dois ao ouvi-la. A figura do ervanário desenhava-»
no vão da janela, como um retrato de velho num caixilho de galeri —
Ah ! o tio Vicente ! — exclamou Ângelo, correndo-lhe , encontro.

O ervanário encostou-se, ainda de fora, ao’ peitoril da janela ficando
assim com meio corpo para dentro da sala.

— Viva o nosso doutor — disse ele, sorrindo, a Ângelo.
— Por enquanto ainda esse coraçãozito está como
era. Não esqueceu os seus amigos da aldeia.

— Está como sempre estará — respondeu Ângelo.

— Sempre ! — repetiu o velho. — Sempre e nunca são
duas palavras de terrivel significação… Mas enfim… de bom
metal é o coração assim o não enferrugem os ares
da cidade, como ao de… como ao de tantos…

E mudando subitamente de tom, disse para Augusto : — com que dizias
tu que não sabes porque algumas plantas vivem de pouca luz e de pouco
ar, aí em qualquer buraco do muro? É por que vivem muito pelas
raízes essas. As plantas vivem do ar pelas folha.

e vivem da terra pelas raízes. Lá diz aquele livro da História
Natural que eu tenho. umas prendem-se pouco ao chão ; precisam, pois,
de se abrirem muito ao ar para poderem viver ; outras, porém, profun.

dam tanto a terra, com tantas raízes se seguram, que delas lhe vem
todo o sustento e não desdobram muitas folhas, nem crescem em gran.

des ramos para o ar, como umas e como outras há homens no mundo,
Tu és dos que deixam ganhar raízes ao coração
e delas vivem. Que te importa o mais? essas grandezas que os outros procuram?
Mas é preciso cautela, rapaz! Há corações como
a hera, que onde quer que se encosta, prende-se com raízes. Quem é
assim deve dirigir com prudência as suas inclinações.
Se para mau lado dobra, se se encosta a árvore de preço… mal
dele! que o separarão com força, fazendo- lhe estalar todas
as raízes que o prendiam.

As palavras de uma obscuridade sibilina, ditas pelo ervanário, parecia
terem um sentido para Augusto, que visivelmente se perturbou ao ouvi-las.

— Que está aí a dizer, tio Vicente ! — disse Augusto,
sem ousar fitar o velho.

— Nada. Tontarias de velhice. A prudência, que os anos dão,
vê longe e fundo, rapaz… É verdade que… às vezes…
o arrojo dos moços é também guia feliz… Anda lá
com a tua estrela, anda. Ao que já vejo, não sei se te possa
chamar louco… como ao princípio não duvidei fazê-lo.
É certo que é pouco seguro o terreno em que sustentas os teus
castelos.

— Os meus castelos ! Que castelos faço eu ? — Não
hei-de ser eu que tos mostre… Só te quero avisar que não ponhas
grande fé em sonhos… Lembras-te do que se passou no monte da ermida?
— No monte da ermida? — Nao viste por lá no outro dia uns
sinais de trovoada ? A inconstancia é sempre de recear. O que naquela
manhã se passou, o que então vi…

—Que viu?… Que se passou? O ervanário demorou por algum tempo
o olhar em Augusto e com tal expressão, que o obrigou a desviar o seu
; depois acrescentou : — Nada ; o que todos os dias acontece. O céu
azul tez-se pardo, a luz clara cobriu-se de sombras, os raios do Sol tornaram-se
torrentes de chuva. Pois não te lembras?… E tudo devido a uma mudança…

de vento… a uns ares que vinham do sul…

Augusto não entendia ou fingia não entender estes misteriosos
dizeres do ervanário Ângelo estava distraído deveras.

O velho voltou-se, de súbito, para este, perguntando-lhe : —
Tem ido ao Mosteiro o hóspede de Alvapenha? — Esteve lá
ontem.

— É amigo das crianças ? — Parece-o.

— Conta muitas histórias às senhoras? — Entretém-nas
bastante.

— E ao .. e a teu pai ? Ouve-o com atenção ? —
Conversaram muito toda a noite.

O ervanário parecia ligar grande valor a estas perguntas, porque
a cada resposta obtida, abanava pausadamente a cabeça com certo ar
meditativo.

Augusto relanceava também para a fronte, meio contraída, do
velho um olhar entre curioso e timido.

O ervanário prosseguiu : — Enfim .. A desconfiança é
um achaque da velhice e nem sempre os mais felizes são os mais acautelados.
Deus que vele, se os bons lhe merecem ainda a graça da sua protecção.

— O tio Vicente desconfia do primo Henrique ? — perguntou Ângelo
rindo.

— Primo ? ! — repetiu o velho, admirado.

— Primo lhe chamamos nós, porque a tia Vitória teima
que, sendo ele sobrinho da tia Doroteia, é nosso primo também.

— Ah? Já aí vamos? E Lena?…

— Lena, Criste, todos lhe chamam por lá assim.

O ervanário pôs-se a murmurar algumas palavras ininteligíveis,
terminando por estas: — E, como no Egipto, é o vento sui que
traz a praga dos gafanhotos.

Mas Deus que vele, Deus que vele. E eu não me demoro mais, que vou
ainda daqui aos pardieiros de Cernuche.

— A caça dos sapos, tio Vicente ? — perguntou Ângelo,
gracejando.

— Não, que não é agora o tempo — respondeu,
sisudo, o velho — Dos sapos ! Galante caça, na verdade ! —
continuou Angelo no mesmo tom.

— Galante não será ela pequeno — respondeu o velho
; — mas abençoada a chamarías se te torcesses no leito
com as dores do carbúnculo, que não há remédio
mais eficaz para o curar, do que a pele destes animais seca ao ar livre.

— E a das toupeiras? O tio Vicente também caça toupeiras?
— Em seu tempo. Oh ! a toupeira é animal de abençoadas
vir.

tudes ! Basta que um dente que se lhe arranque, estando ela viva, trazido
ao pescoço, cura a mais desesperada dor de dentes.

— Não deve ser fácil operação a de tirar
os dentes às toupeiras — tornou Ângelo.

O ervanário continuou : — A quinta-essência das toupeiras
é milagrosa contra cancros e herpes.

— A quinta-essência das toupeiras ! — repetiu Angelo,
rindo.

— Não rias, criança — acudiu severamente o ervanário.
— Qug não é bonito rir do que os homens doutos asseguram.
Eu já o experimentei, logo que o li naquele grande livro da Polianteia,
livro corno se não faz hoje outro.

— E como ó que se tira a quinta-essência a uma toupeira,
tio Vicente ? — Tomam-se as toupeiras e queimam-se até as fazer
em cinzas.

Mistura-se a estas cinzas o sumo de celidónia maior, até haver
quatro dedos de sumo acima das cinzas. Mete-se tudo num vidro bem fechado,
que se enterra por dez dias e .. e… Bem, bem. Ele ri!… Tolo sou eu em
gastar tempo e paciência com crianças.

— Espere, espere, tio Vicente… Não vá embora… Então
depois de enterrar tudo isso, que se faz? — Até logo… Pede
a Deus que nunca te seja preciso fazer a pergunta com menos vontade de rir.

— E assim vai sem me dar um remédio ! Olhe, tio Vicente, eu
padeço às vezes de um sono tão pesado que me não
deixa estudar.

O ervanário voltou-se e, com toda a seriedade, respondeu : —
E julgas que não sei de remédio para isso ? Experimenta e verás,
Mete um ou dois morcegos debaixo dos travesseiros e eu te afirmo que… Mas
adeus, que se me faz tarde e daqui a Cernuche é uma légua, E
o ervanário retirou-se, meio agastado com o cepticismo de Ângelo
e sobraçando a caixa de lata e o saco dos seus tesouros medicinais.

Ângelo e Augusto ficaram rindo da ciência e das singularidades
do velho, riso em que não entrava, porém, o menor laivo de malignidade;
porque ambos tinham pelo velho uma verdadeira estima, que ele bem lhes merecia,
pois sempre do coração o achavam votado a seu favor.

O diálogo de Ângelo e de Augusto prolongou-se ainda até
as horas do jantar.

XIV EU não sei se esta história terá leitor tão
mal-aventurado, que não possua recordações e saudades
associadas à noite de Natal, àquela festiva-e abençoada
noite, em que as ruas e os lugares públicos se despovoam, e nos lares
domésticos parece crepitar e cinlilar o fogo mais acalentador do que
nunca. Se algum deserdado da fortuna há aí que não saiba
o que é a festa das consoadas em família, esse que não
leia este capítulo, que nele não encontrará prazer. Se
alguns as gozaram já noutros tempos, porém hoje erram a essas
horas peias ruas solitárias, olhando com inveja para cada raio de luz
que rompe das frestas de tantas janelas discretamente fechadas, ouvindo comovidos
o ruído das alegrias que vão no seio das famílias, e
pela fantasia criando em cada morada um mundo íntimo de afectos e de
venturas, como o de que a sorte os privou, que esses me perdoem as amargas
saudades que porventura lhes avive assim.

É certo que não há noite mais alegre; alegre desta
alegria que vai direita ao coração, sem perturbar os sentidos
com fumos de embriaguez; alegre desta alegria cândida a que o homem
é sujeito do berço à velhice, a qual respeitam os estos
das paixões, na idade delas, e o gelo do egoísmo, no declinar
da vida.

Bem escura, bem ventosa, bem fria e húmida surjas tu sempre, noite
de vinte e quatro de Dezembro, que melhor então se avaliará
pelo contraste a luz, o calor, o conchego dos lares, e mais íntimos
se estreitarão os círculos da família em roda da ceia
patriarcal.

E vós todos, a quem uma moda tola não constrangeu ainda a
abandonar os hábitos que de pequenos contraístes, e festejais
ainda o Natal de Cristo, segundo o estilo velho, continuai a manter genuínos
esses costumes nacionais, que não resultará daí desdouro
para o vosso nome ou brasão. A roda da civilização, a
que aplicáis ombros com tanto denodo, não se cravará
por isso. — Podeis, elegantes meninas, cantar loas sem escrúpulo
diante do presépio armado na sala mais intima da casa, que nem por
isso cantareis pior na das visitas as árias italianas, que aprendestes
no colégio ; não coreis de colaborar, por excepção,
esta noite nos mesteres da cozinha, que sobra de água-de-co’ónia
e perfumes tendes no toucador para as abluções purificatorias.
Homens graves, a república perdoar-vos-á uma pequena infidelidade,
a política do Pais e da Europa não periclitará desnorteada
se, por um pouco, lhe negardes a vossa atenção; humanizai-vos
pois uma vez por ano, e baixai ao seio da família os olhares, que ponderosos
empenhos vos trazem sublimados. — Entrai com as crianças em jogos
pueris e fáceis, que não destemperareis a inteligência
para as filosóficas cogitações «D bastón
e do whist.

A família do Mosteiro era fiel às clássicas usanças
desta noite tradicional. E naquele ano sobretudo as festas das consoadas deviam
ser coisa falada graças ao plano de D. Vitória de reunir no
Mosteiro a resumida família de Alvapenha ; plano que vimos aprovado
por aclamacào por tôda a assembléia presente.

D. Doroteia veio efectivamente na companhia de Henrique de Souselas e de
Maria de Jesus.

Foram recebidos no Mosteiro por uma completa ovação das crianças.

D. Doroteia viu-se literalmente enlaçada em braços intantis,
que lhe tolhiam os movimentos e que, dizia ela, quase ameaçavam asfixiá-la
Tudo isto dava motivo a exclamações e risos, que inauguraram
um estado de coisas, o qual nunca mais devia cessar aquela noite A balbúrdia,
a azáfama festiva que ia no Mosteiro é indescritível
Na cozinha, nas salas, nos corredores tudo era movimento e ruído Aqui
eram as crianças jogando, a pinhões, o «par ou pernão»
e o «rapa», jogos popularissimos e de ocasião que, de tão
conhecidos dispensam o trabalho de descrevê-los. Estes jogos, como é
de prever’ não se executavam sem um concurso de vozearia e de algazarra,
que desafiava a impaciência de D. Vitória, a qual, segundo o
costume, ia pelo que se passava na sala, ralhar com os criados à cozinha.

No aposento imediato ao quarto cie D. Vitória, armara-se o presépio,
diante do qual ardiam seis velas de cera em castiçais de prata maciça.

As duas velhas senhoras, D. Doroteia e D. Vitória, encetaram logo
no princípio da noite uma longa e devota .reza, meio recitada, meio
cantada, a qual se continuava com uma interminável enfiada da padre-nossos
e ave-manas, a que respondia, em coro, a parte feminina da família,
as enancas e as criadas Corifeu era a senhora de Alvapenha, que em voz trémula
e quebrada pela idade, entoava em singela cantilena copias como esta: Ó
infante suavíssimo, Vinde, vinde já ao mundo Livrar-nos do cativeiro
Deste jazigo profundo.

E seguia-se um padre-nosso e uma ave-maria.

Angelo havia ao princípio, com as suas travessuras desordenado um
pouco o andamento regular das rezas, mas D. Vitória tomou o heróico
expediente de o expulsar do congresso, e tudo serenou.

À sala, onde Henrique de Souselas conversava com o conselheiro em
assuntos, todos desta vez longe da política, chegaram as surdas harmonias
daquelas cantigas e rezas. Henrique mostrou curiosidade de saber o que era
aquilo. O conselheiro, sorrindo, convidou-o a segui-lo para por si próprio
se poder informar.

E, tomando por aposentos interiores, conseguiram ambos introdução
na sala da novena justamente ao lado de D. Vitória e de D. Doról
a , que, de embebidas que estavam nas suas orações nem por eles
deram.

O conselheiro e Henrique ajoelharam sisudamente ao lado daquelas boas senhoras,
e quando após um dos padre-nossos, ditos por n, Doroteia, se devia
seguir a resposta do coro feminino, este emude, com a chegada dos dois, a
qual desafiara risos a custo sufocados, foi substituído por um dueto
de vozes masculinas, que sobressaltaram primeiro, e escandalizaram depois
ambas as sisudas senhoras.

O tumulto que o episódio produziu fez atrair as crianças ;
D. Vitóla teve muito que fazer, muito que repreender o cunhado, muito
que falhar com os filhos e com o sobrinho, muito que carpir-se com D. Doróla,
muito que recriminar os criados, rindo-se, bem a seu pesar, no meio de todas
estas tarefas.

Terminou confusamente a novena com tal ocorrência. Os desordeiros
somente capitularam, consentindo em retirar-se, quando lhes prometeram que
se encurtaria a lista dos padre-nossos. Henrique voltou com o conselheiro
a admirar o primor que a paciência de um artista imaginoso realizara
na confecção do presépio, onde estavam representados
todos os episódios da natividade de Jesus, e muitos outros.

Era efectivamente uma complicada máquina aquele presépio,
e seria prova de profunda indiferença artística passer por ele
sem um exame, embora fugaz.

Este traste antiquíssimo na família gozava de nomeada num
círculo de léguas em redor. Havia empenhos para o ver no tempo
do Natal, e se algum viajante estacionava dois dias na aldeia, encontrava
sempre quem lhe recomendasse o visitar o presépio, como coisa digna
de ver-se.

Consistia ele numa espécie de santuário de pau-preto, no meio
do qual havia uma pequena gruta tôda cravejada de caramujos e rosas
de papel, com estâmes de fio de prata. Dentro dessa gruta estava deitado
o menino Deus, não sobre umas palhas, como a tradição
refere, mas graças aos impulsos do compadecido coração
de D. Vitória, que, ainda que tarde, parecia tentear um lenitivo aos
antigos rigores da humanidade, em uma bonita cama de lençóis
de renda com cercadura dourada ; colcha de cetim bordado, e colchão
e travesseiro da mais macia penugem de aves americanas. Ao lado, Nossa Senhora
e S. José,.

de proporções quase iguais às do menino ; mais longe
a vaca e a mula tradicionais. Os episódios porém eram inquestionavelmente
o mais interessante da obra. Vários grupos de pastores, soldados e
fidalgos de todos os tamanhos, feitios e vestuários, ornavam a cena.
Ali um cego tocador de sanfona; um grupo de galegos dançando, ao som
da gaita de fole ; uma pastora com ovos mais adiante ; ao lado, um grupo celebrando
um piquenique, perfeita actualidade, tudo em mangas de camisa, com gravata
e botas de cano; — outros fumando e bebendo cerveja. uma amazona inglesa,
com o seu jóquei, galopava pelas cercanias de Belém; um vareiro
e uma vareira caminhavam a par com ofertas para o menino. Ao longe, nos visos
da serra, apareciam os três Reis Magos, que deviam levar dez dias a
chegar a baixo Não esqueceu ao inspirado autor daquele monumento escultural
os muros de Jerusalém. Eles lá estavam coroados de ameias e
de milicíanos fardados à inglesa e armados de lanças
e arcabuz. Eram gigantes aqueles guerreiros, pois, não obstante estar
a muralha no plano do fundo do quadro, qualquer deles era duas vezes maior
do que as figuras do plano da frente. No alto da muralha arvorava-se a bandeira
portuguesa. Havia vários santos espalhados pelas agruras daquelas montanhas,
e, entre os aditamentos feitos pela devoção de D. Vitória
ao presépio, contava-se o de um Santo Antônio de Lisboa, que
apesar de taumaturgo, parecia muito admirado de se ver naquele tempo e lugar.
Um galo colossal soltava do telhado do presépio o grito anunciador,
anjos e querubins espreitavam do Céu por entre nuvens de algodão
e estrelas de ouropel. Era um prodígio.

Descrevendo ràpidamente esta maravilhosa fábrica, sentia eu
vivo orgulho de ter revelado ao mundo uma preciosidade sem igual, e a que
a unânime admiração faria cedo ou tarde justiça
; tive porém de abandonar esta lisonjeira idéia, ao achar-me
precedido por um dos romancistas mais justificadamente populares da nação
vizinha. Das páginas de um delicioso quadro de costumes de Fernán
Caballero, a eminente escritora de que a Andaluzia se ufana, conheci eu serem
não somente nacionais, mas peninsulares pelo menos, estes modelos de
presépios, com os seus ingenuos anacronismos, cunho irrecusável
que o povo imprime a todas as suas obras de arte. Onde falta o anacronismo,
falta a assinatura do povo.

Em todo o caso era digno da menção que dele fizemos o presépio
do Mosteiro.

Enquanto Henrique e o conselheiro o estudavam por miúdo, D. Vitória
fizera desfilar o cortejo das criadas para a cozinha, onde urgia o serviço,
e seguindo-as ia-lhes demonstrando que eram as piores criadas do mundo, por
isso que, tendo tanto que fazer, perdiam tempo a cantar loas diante do presépio.
D. Doroteia cedo tomou com Madalena e Cristina o mesmo caminho.

O conselheiro e Henrique ficaram nas salas com os pequenos, e com eles entraram
em jogos, como se fossem crianças também.

O aspirante a ministro, o deputado, o orador, o homem grave e sério
das salas de Lisboa perdera todo o ar diplomático: agora era somente
o homem da família; pueril, travesso, alegre, folgazão.

— Meu caro — dissera ele a Henrique no princípio da noite
— vou fazer-lhe um pedido. Hoje deve ser banido o menor assunto político,
a menor discussão séria. Deixe-se correr frivola a conversa
da noite, o contrário sena urna profanação, que atrairia
sobre nossas cabeças as justas iras dos anjos domésticos que
nestas noites andam invisíveis misturados com a família.

— Apoiado — respondeu Henrique ; — aceito e comprometo-me
a cumprir a proposta.

Henrique possuía em alto grau o talento de se tornar agradável.

Compreendendo que eram sinceros os desejos do conselheiro, tão frio
e pueril conseguiu mostrar-se, que todos o tratavam como membro da família,
e ao próprio conselheiro parecia já impossível que ainda
fossem tão recentes as suas relações mais íntimas
com aquele rapaz.

— Animo, sr. conselheiro — dizia-lhe Henrique, no momento em
que eles ambos estavam empenhados a jogar a cabra-cega com os pequenos. —
Coragem, que temos gloriosos exemplos a animar- -nos; até, entre outros,
o do meu homónimo Henrique IV. É sabido o episódio recordado
por uma gravura célebre.

O conselheiro secundava-o, rindo ; graças a estes jogos, a sala estava
dentro em pouco em desordem ; os móveis fora da sua posição,
o chão alastrado de cascas de pinhões, que estalavam sob os
passos, os tapetes desviados, as cortinas soltas.

Já por noite avançada, disse o conselheiro para Henrique :
— Falta-nos ainda um artigo importante do ritual destas festas, o principal.
É dirigir uma visita à cozinha. Porque a obra principal desta
noite é fazer uma ceia e não comê-la. Por isso convido-o
a acompanhar- me lá.

— com tanta mais vontade, que estou há muitos dias comprometido
a isso com as senhoras.

— Nesse caso é tempo.

E ambos tomaram pelo corredor, que conduzia à cozinha.

Escusado parece dizer que a turba infantil os seguiu tumultuàriamente,
anunciando-os ao longe com risadas e gritos de alegria.

A cozinha do Mosteiro era uma digna cozinha de frades. Ocupava um vasto
recinto rectangular, rasgado em amplas janelas e fornecido de bancas monumentais,
condizendo com a estupenda chaminé, que parecia ainda saudosa dos odoríferos
vapores que outróra espalhavam os tachos e as grelhas monásticas.

Ia indizivel animação na cozinha, quando Henrique aí
entrou com o pai de Madalena. Era um barafustar de criadas, um chiar de certas,
um borbulhar de caçarolas e tachos, um tinir de pratos, um tilintar
de cristais no meio de uma babel de ordens, de perguntas, de reclamações,
de conselhos, todos atinentes a negócios culinários. E D. Vitória
ralhava, e a Sr.ª de Alvapenha promulgava preceitos, e Maria de Jesus
desdenhava do serviço das colegas, e Madalena e Cristina riam de todos
e de tudo, e Ângelo a todos impacientava.

Não se imagina! A chegada do conselheiro e do seu hóspede
veio exacerbar a desordem. Ergueram-se risos e exclamações,
as quais ainda assim eram subjugadas pelos reparos e censuras de D. Vitória,
a qual dizia para o conselheiro: — Sempre o mano tem coisas ! Olhem
agora para o que lhe havia de dar ! Vão lá para dentro, vão.
Não venham atrapalhar-nos mais ainda do que estamos. E o primo Henrique
também! Ora esta!…

— Não se aflija, mana. Nós não podíamos
resignar-nos a ficar alheios à tarefa principal do dia. E até
porque é necessário dar andamento a isto para chegarmos a tempo
da missa do galo.

— Pois querem ir à missa do galo ? — Está de ver
que sim.

— Eu também vou — disse Cristina.

— E eu — acudiu Madalena.

— Mais um, que irá também — disse Henrique.

— E eu, e eu — acrescentaram diferentes vozes.

— Ai, minhas encomendas ! — suspirou D. Vitória. —
Então porque não disseram isso logo? Agora como há-de
ser? E saiu em direcção à sala da ceia a dispor as coisas.

É preciso que se diga que D. Vitória vivia na cândida
ilusão de que era e’a quem faz’a tudo em casa, enquanto que manda a
verdade declarar que nunca mais regularmente corriam as coisas domésticas
do que quando dormia esta aliás excelente senhora.

— Mãos à obra, Sr. Henrique ! — bradou o conselheiro,
insistindo na resolução com que viera.

— Pronto — respondeu Henrique.

— Então ? então ? … Que vão fazer ? —
perguntava D. Vitória, aflita, voltando à cozinha.

— Querem ver que preparos ? ! — dizia D. Doroteia, sorrindo
e olhando com curiosidade para o que faziam os dois.

— Cumpro uma promessa que fiz a estas senhoras, minha tia —
dizia Henrique, aproximando-se da banca, perto da qual trabalhavam Madalena
e Cristina.

— É verdade que sim — acudiu Madalena — e eu exijo
o cumprimento da promessa.

— Vamos lá, Sr. Henrique — tornou o conselheiro —
aceite-me alguns preceitos da prática. A regra é fazer tudo
o mais indigesto possivel ; porque essa qualidade é o característico
dos manjares desta noite.

— Nesse caso, vejo que nasci para cozinhar a ceia do Natal, pois desafio
o melhor estômago do mundo a que subjugue os meus guisados com os seus
sucos digestivos.

— Eu já escolhi tarefa — disse o conselheiro, tirando
das mãos de Cristina a colher com que ela mexia o vaso onde se preparava
o vinho quente, esse punch nacional, que nesta noite seria uma falta imperdoável
se esquecesse no programa daquele banquete.

Cristina quis resistir ; mas o conselheiro venceu, e cedo principiou a desempenhar-se
deste trabalho, no meio de hilaridade geral.

Angelo dispensou a tia Doroteia do trabalho da preparação
dos mexidos.

Henrique, seguindo o exemplo do conselheiro, e no seguimento do seu constante
propòsito, aproximou-se da morgadinha, que naquele momento se ocupava
a regar de calda de mel umas recentes rabanadas, — Peço trabalho,
prima Madalena.

— Não há falta de braços nesta repartição,
primo Henrique. Vá a outra porta.

— Agrada-me mais esta tarefa, acho-a ao alcance das minhas forças.

— Esta ? Como se engana ! Não sabe que as rabanadas são
a essência da ceia de Natal? E logo havia de confiar-lhas? — Ah
! não ligava tanta importância a estas representações
da pastelaria primitiva, notáveis porque recordam a infância
da arte ! Enquanto a mim, já no tempo da peregrinação
dos hebreus, Moisés lhes ensinava a cozinhar disto.

Madalena abanou a cabeça em sinal de repreensão.

— Perdoe às pobres rabanadas o pouco ar de moda que têm.
A sua elegância é implacável, primo Henrique. Um indigesto
manjar francês seria de melhor tom, bem sei. Até nisso ! —
Para provar que estou arrependido da minha irreverência, consinta-me
que a coadjuve, prima.

— Não pode ser ; pesa sobre mim uma tremenda responsabilidade.

— Isso equivale a recusar-me o foro de família, que tão
humildemente reclamo.

— Justamente — respondeu Madalena. — Eu sou muito escrupulosa
nisso. Faz mal em não reclamar esse foro de Cristina, que talvez encontrasse
mais disposta a conceder-lho.

— Mas, se me não engano, foi a prima Madalena que primeiro
me conferiu o apreciável titulo de parentesco com que nos tratamos.

— O de primos? Esse sim; mas não tem os privilégios
que lhe quer dar.

— Que privilégios são ? — Ah!… o de colaborar
numa ceia de consoadas, por exemplo.

— Parece-lhe, priminha, que será muito exigir o que eu peço?
— perguntou Henrique a Cristina, que principiara a escutá-los.

— Não ouvi — respondeu esta, corando e sorrindo, como
sempre que lhe falava Henrique.

— Escusado é consultar Cristina — acudiu a morgadinha—por
que em muitas coisas pensa ela em oposição comigo. E nisto…

— E nisto…

— Nisto de atender a requerimentos, é talvez mais condescendente.

— Ao que estou vendo — disse o conselheiro jovialmente —
grandes coisas se tinham passado aqui antes da minha chegada. Vejo lavrar
uma hostilidade entre Lena e o Sr. de Souselas, que me dá sérias
inquietações.

— E eu julgo que não. Ao que ouvi ao Henriquinho, a primeira
vez que viu a nossa Lena no Mosteiro!…—disse D. Doroteia, com tôda
a indiscrição da sua ingenuidade.

Madalena procurou acudir a tempo à corrente das revelações,
a que viu disposta a boa senhora.

Veio oportunamente em seu auxílio Angelo, que tendo feito uma digressão
pela sala do refeitório, voltou com a alegre nova de que a ceia estava
na mesa.

O anúncio foi recebido com aparente entusiasmo. Suspenderam-se trabalhos,
quase completos, u’timaram-se à pressa outros, e a companhia dirigiu-se
para o corredor.

Pouco depois de Ângelo, chegou D. Vitória, desmentindo-o e
pretendendo suster a corrente, que ameaçava invadir a sala, que ela
ainda não dera por pronta. Já não era tempo. O conselheiro,
tomando duas crianças ao colo, rompia a marcha, e atrás dele
até a pacifica D. Doroteia clamava insubordinada que não recuaria
um passo.

E falando e rindo, assim entraram na sala.

Estava ofuscante de luzes, esplêndida de louças e baixelas,
enfeitada de flores e de cristais e enevoada dos vapores das iguarias.

Houve um grande rumor de cadeiras arrastadas, uma confusão e incoerência
de ordens de D. Vitória para marcar lugares, infracções
destas ordens, que a impacientavam, como se com isso pudesse perigar a ordem
natural e social do mundo, e, como justa conseqüência, caía
sobre a cabeça dos criados uma enfiada de recriminações,
que eles por hábito já sofriam com exemplar paciência.

Restabelecida enfim a ordem, procedeu-se à ceia.

Ceia de Natal ! abençoado banquete, ao qual todos se devem sentar
nas mesmas disposições de ânimo em que ordenava Cristo
estivessem os que fossem orar ao templo ; ceia com tanto afã cozinhada,
e com tão pouca vontade comida, falem embora contra ti os médicos
e os gastrónomos eméritos, condenando uns a indigesiibilidade
dos teus cozinhados, outros o pouco delicado deles ; reage contra as idéias
novas, que vêm da França e da Alemanha; cerra as fornalhas às
iguarias exóticas e furta-te às mãos da estranha geração
de vatéis, que aspiram a dominar pelos paladares o espírito
nacional.

Modifiquem embora o caracter vernáculo de todas as outras refeições,
mas respeitem esta, consagrada pelas memórias da família, justificada
pelo facto de que quase não é feita para ser comida.

Assim sucedia com a do Mosteiro. Apesar das instigações do
conselheiro, das instâncias de D. Vitória, das garantias de D.
Doroteia sobre a inocuidade dos guisados, os pratos corriam à roda
da mesa quase intactos e intactos voltavam à cozinha de onde saíram.

Mas se se comia pouco — e de facto, à excepção
de Henrique, do conselheiro e das crianças, quase ninguém parecia
haver-se sentado ali para cear — mas, dizíamos nós, se
se comia pouco, em compensação íalava-se muito.

O conselheiro a todos dirigia a palavra, demonstrando urna iniciativa eficaz
para baralhar e generalizar as conversas e assim conservar constante a animação.
Tudo desafiava risos, o dito de uma criança, a anedota contada por
Henrique, as distracções de D. Vitória, as canduras de
D. Doroteia, os paradoxos sustentados pelo conselheiro, as alusões
da morgadinha a Cristina, a confusão desta, as maliciosas insinuações
de Ângelo.

Assim procedeu o repasto nocturno até à altura das saudações
e dos toasts. Nesta parte, justo é confessar que Henrique e o conselheiro
foram menos abstinentes. Era difícil resistir à preciosidade
dos vinhos.

Passados os recíprocos brindes entre os parentes, o conselheiro,
voltando-se para Ângelo, autorizou-o a propor também um brinde.

Ângelo levantou-se então para brindar Augusto.

O conselheiro secundou-o, levando o copo aos lábios.

— Ah ! o Sr. Augusto — disse Henrique, antes de beber e com
certo tom de ironia. — Conheço; é uma ave rara destas
imediações, que tem obras de cavaleiro errante sob umas aparências
de filósofo.

— Brios de cavaleiro ? — disse Ângelo, com vivacidade.
— Ainda isso não é tudo, Sr. Henrique ; pode acrescentar,
e alma de herói também.

— Pois dê-se-lhe também alma de herói, e se for
preciso até consciência de santo. Vá à saúde
da fénix.

E bebeu.

Depois de pousar o copo, prosseguiu com o mesmo tom anterior: — O
que vejo é que é perigoso falar com a mais ligeira irreverência
desta personagem; corre-se o risco de ver voltar contra o ímpio, que
tanto ousa, os poderes conspirados do Céu e da Terra. Bem; prometo
acatar essa preciosidade.

— E creia — disse-lhe o conselheiro — que lhe é
merecedor de tôda a consideração. Augusto é um
destes caracteres excepcionais que vivem à sombra de uma modéstia
impenetrável e à sombra dela muitas vezes morrem. É necessário
ter a vista muito exercitada nestas explorações de almas modestas,
para descobrir uma assim.

— Felizmente para os miopes como eu — prosseguiu Henrique —
elas fazem às vezes a fineza de se despojarem da sua timidez e de se
mostrarem à luz. Não é verdade, prima Madalena? —
Que admira ; — respondeu Madalena — bem oculto está o fogo
na pederneira, primo Henrique, mas, percutindo-a, salta a faísca.

— Pobre rapaz — notou a Sr.* de Alvapenha — aquilo nem
parece deste tempo. O que eu não sei, primo Manuel, é porque
ele se não resolveu a tomar ordens. Recusar o legado da D. Rosa! —
Não seja isso a dúvida. Ele sabe que, adoptando essa ou outra
qualquer carreira, não lhe faltarão recursos para segui-la até
ao fim.

Devo-lhe esse auxilio, assim ele o aceitasse; mas tem um gênio singular
aquele rapaz! — É uma fénix — insistiu Henrique,
irònicamente. — Vejo que não é susceptível
de discussão, impõe-se à gente como um axioma.

Eu tenho hábitos de livre-pensador, mas… forçar-me-ei a
incluir no meu credo esse dogma.

— Perdão — replicou Angelo. — Um axioma não
se demonstra, e a boa alma de Augusto está todos os dias a demonstrar-se
por acções generosas.

— Por favor ! ! Dêem como não ditas as minhas palavras
! Arrependo- me da minha irreverência, e se ele aqui estivesse, principiaria
a penitenciar-me na sua presença.

— E é certo que nos falta aqui Augusto. como te não
lembraste dele, Ângelo? — Não viria. Nesta noite nao deixaria
o tio Vicente.

— Ah, sim. Esquecia-me daquele pobre Vicente.

— É do ervanário que falam ? — perguntou Henrique.

— Justamente.

— Outra fénix ; e quer-me parecer que também pertence
ao número dos invioláveis; não é verdade, prima?
— Pertence ao número dos infelizes, primo, o que é justo
considerar- se uma espécie de inviolabilidade.

A resposta colocou Henrique em mau terreno e por isso apressou- se a desviar
do ponto principal a questão, dizendo : — Infeliz ? Porque lhe
chama infeliz ? Os visionários como ele têm em si os elementos
da própria felicidade, e ninguém possui poder de perturbar-lha.
Além de que o ervanário goza aqui na terra de uma certa soberania,
que deve lisonjeá-lo.

— E olha que nem em Lisboa há talvez quem saiba tanto como
ele em coisas de doenças e de remédios, menino — disse
D. Doroteia, que era uma das fervorosas apologistas da ciência do ervanário.

— É na verdade um homem singular ! — disse o conselheiro.
— Dantes, na noite de Natal, e em todas as solenidades de família,
tínhamo- lo também por comensal, que ainda é parente
arredado da casa.

Há anos, porém, deu em tomar a peito o meu procedimento político
e em pregar-me sermões e dirigir-me censuras, que eu fazia por escutar
com a possível resignação. Mas um dia foi mais amargo
nas suas recriminações e eu achava-me com maior Susceptibilidade
; julgo que lhe respondi com bastante acrimònia, e o homem saiu de
minha casa ofendido e protestando não voltar mais a ela. Procurei-o,
escrevi-lhe, tentei demovê-lo do seu propósito. Não houve
de quê. Havia-o ferido no seu orgulho, e é intolerante nestas
condições.

— Sei-o já por experiência ; — disse Henrique —
que numa única entrevista que tive com ele, e que durou minutos, deu-me
ocasião de lhe conhecer a irritabilidade.

— Vamos, primo Henrique ; talvez possa haver quem suponha que nessa
entrevista não demonstrou o primo pior do que ele possuir as qualidades
de que o acusa.

— Agora — continuou o conselheiro — vão consideravelmente
exacerbar-se os despeitos do ervanário contra mim.

— Porquê ? —perguntou Madalena.

— Porquê?… por causa do traçado que se adoptou para
a estrada.

— Então ? — disseram simultaneamente Ângelo e Madalena.

— A casa e o quintal do ervanário são os primeiros cortados.

— Não pode ser ! — exclamou Madalena, com evidente expresão
de susto.

Ângelo dirigiu ao pai um olhar também inquieto.

Cristina não exprimiu menos apreensiva tristeza.

— Ë inevitável. Os dois primeiros traçados tinham
certas durezas.

O primeiro era uma luva lançada a uma influência eleitoral,
poderosíssima; o brasileiro Seabra.

— Ah! — disse Madalena, com certa amargura na expressão
e no olhar.

O conselheiro reparou nela e em Ângelo, em cuja fisionomia se não
lia menos intenso desgosto.

— Estou adivinhando que meus filhos votariam por que antes se arrostasse
com os despeitos desse influente. A lógica do sentimentalismo tem dessas
exigências absolutas.

Madalena respondeu : — Julguei que era a da consciência, meu
pai.

— A consciência diz-me que há interesses superiores às
contemplações com as singularidades de um velho honrado, mas
.. meio tonto.

Na carreira política ceder ao coração é morrer
ou ser vencido. O sentimentalismo exagerado, Lena, tem o inconveniente de
dar tanto vulto as vezes a um sacrifício individual, que, para o evitar,
não duvida prejudicar maiores e mais gerais interesses e operar sacrifícios
mais custosos. É muito tocante na verdade o amor de um velho pelas
suas árvores e pela sua casa; porém, mais respeitável
é o bem-estar e a conveniência de uma localidade.

— E é tão necessário para a felicidade desta
terra o sacrifício a que se quer obrigar o ervanário? —
perguntou Ângelo, e Madalena secundou com o olhar a pergunta do irmão.

— Eu te digo, Ângelo — respondeu o conselheiro, levemente
despeitado. — Eu tinha a vaidade de me supor ainda prestável
para esta gente, que me tem elegido tantas vezes. Dos nossos patrícios,
deixem-me dizê-lo aqui em família, não vejo ainda quem
dê garantias de desempenhar o mandato muito melhor do que eu. Chamasse
eu contra mim a animadversão deste povo, e eles, à falta de
outros, aceitariam amanhã qualquer nome inscrito na carteira do ministro;
um homem que nunca tivessem visto, e que nem soubesse em que ponto da carta
estava o círculo de que se propunha ser representante. Mas perdoa-me,
Lena, talvez isto te esteja parecendo um censurável excesso de vaidade.

— Não, meu pai, ninguém acredita mais do que eu no muito
valor da sua influência, mas… Oh meu Deus!… isso vai sêr a
morte do pobre tío Vicente ! Imagine bem o que é naquelas idades
e com aquele gènio a grandeza do sacrifício que vão exigir
dele? — Custa-me ser obrigado a isso; porém…

— Valia mais esperar algum tempo. A vida dele não pode ser
muito longa. Deixem-no morrer em paz, à sombra daquelas árvores
a que ele quer tanto. Que importa passar mais alguns anos sem uma estrada
? — Poesia! — disse o conselheiro, sorrindo para Henrique, que
lhe correspondeu.

— Perdão ! — acudiu Madalena, corando — é
caridade.

— Ora vamos, Lena. Sê razoável. Todos sofrem no mundo
sacrifícios maiores do que esse ; eu mesmo, que me não tenho
ainda assim por vítima da sorte…

— E não haveria outro meio ? — perguntou Ângelo.
— Acaso há só esses dois lugares para dirigir a estrada?
— Que antes nunca se fizesse ! — exclamou Madalena, apaixonadamente.

— Aí temos como o sentimento me torna retrógada a minha
Lena.

Já clama contra as estradas como qualquer reaccionario convicto.
Havia um outro traçado, mas esse ia destruir completamente os campos
do Brejo.

— Ah ! então esse, esse ! São bens nossos ! —
exclamou Madalena com vivacidade.

— São bens de Ângelo, filha, e porventura aqueles que
um dia mais valiosos se tornarão para teu irmão.

— Os charcos? — disse Ângelo, encolhendo os ombros —
oral Só para viveiro de rãs.

— Hoje pouco mais são do que isso, e como tal no-los pagariam
agora. Dentro, porém, de alguns anos, operados ali os trabalhos de
esgoto, que eu projecto, verão em que se transforma aquilo. É
exigir a um homem muita abnegação pretender dele que sacrifique
assim os elementos da riqueza futura de seus filhos ; quanto mais que as vantagens
não seriam tais que…

— Não pediríamos esmola, meu pai — notou timidamente
Ângelo.

— Nem o Vicente a pedirá. Visto que estais tão desprendidos
de interesse, que não hesitais em fazer-lhe sacrifício dos vossos
bens, podeis ceder-lhe o suficiente para o compensar da perda.

— Mas quem o compensará dos golpes nos seus afectos? —
perguntou Madalena.

— Também tu ! São segredos do coração
feminino essas compensações.

Deixo-as à tua disposição.

— Meu pai ! meu pai ! se é ainda possível atalhar-se
I — É impossível.

— Meu tio ! — secundou Cristina.

— Mano ! Primo ! — disseram a um tempo as senhoras mais idosas.

— O que posso fazer é ir eu pròprio falar com o Vicente,
para o mover a consentir na expropriação amigável, que
farei que lhe seja 0 mais vantajosa possivel.

— E tem coração para lhe ir propor isso ? — Diz
antes se tenho coragem para arrostar com as i ras do velho, e com as maldições
que já sei vai sacudir sobre mim.

Lena calou-se, suspirando.

— Mas vejam a inevitável fatalidade que me persegue ! —
continuou o conselheiro. — Eu, que tinha feito voto de não me
entreter de negócios públicos esta noite ! Ai, Lena, Lena, a
culpada és tu ! — Eu?! Eu, que abomino a política! que
só ela podia fazer entrar a crueldade no coração de meu
pai ! — Ó tio, veja se faz com que a estrada vá por outro
sitio ! — implorou meigamente Cristina.

— Também tu, Criste ! também tu ! — Pudera, mano
! Não, que uma coisa assim ! Isso é até uma ingratidão
para com um homem a quem esta aldeia tanto deve — disse D. Vitória.

— Pois não é ! E logo um quintal onde cresciam tantas
plantas de virtudes ! — acrescentou D. Doroteia.

— Vá vendo, Sr. Henrique, como se conspiram todos contra mim.

Veja como um sentimento insignificante organiza uma oposição.

— É uma lição que estou recebendo, sr. conselheiro.

— Meu pai — insistiu Madalena — eu espero ainda que, ouvindo
o tio Vicente, se comoverá e trabalhará por alterar esse fatal
plano que principia por arrancar árvores, mas que, pode estar certo,
com elas arrancará uma vida.

— Romances ! Lena, romances ! Os romances, lidos em plena aldeia,
são perigosos. Falta aqui nos ares um certo cepticismo que, não
sendo em doses exageradas, tem a vantagem de não deixar ver as coisas
da vida através do prisma dos livros de imaginação. Mas
basta de falar em política. Amanhã procurarei o ervanário.
Espero uma recepção de gelo, e vou preparado para uma ladai
ha de recriminações, mas irei. Nada esperes, porém, da
entrevista Lena; nem o mal, se ma! é, se poderia já atalhar;
nem o orgulho de Vicente lhe permitiria expansões à sensibilidade,
que cheguem a comover-me, Conheço-o.

Madalena não instou. Ficou, porém, pensativa e sem o menor
vestígio da alegria com que principiara o serão.

Nisto ouviu-se um toque de sino longínquo.

— Já toca para a missa do galo ! Ouvem ? — disse D. Vitória.

— Vamos ! Não há tempo para demoras — exclamou
o conselheiro, levantando-se.

Todos o imitaram, menos Madalena. _ — Não vens, Lena? —
perguntou Cristina.

— Não.

— São amuos, ñlha — disse-lhe o conselheiro, indo
por trás dela e, tomando-lhe a cabeça entre as mãos,
beijou-a na fronte.

— Não, meu pai, é uma dor de cabeça tão
violenta ! — A maldita política é o que faz ! Pois fica
; fica, porque está fria a noite.

— Far-te-ei companhia, Lena — disse Cristina.

— Não, não. Se insistes, obrigas-me a sair.

— Aviem-se ! — dizia D. Doroteia. — Henriquinho, vens
? Henrique, cujo ardor em ouvir a missa da meia-noite esfriou desde que viu
Madalena ficar, respondeu: — O tia… a falar verdade!… se me dispensassem!…

— Vem daí, preguiçoso ! anda ! — É que
.. para um homem doente…

— Ai, não ; se te há-de às vezes fazer mal, então
não — apressou- se a dizer a precavida senhora.

E foi deferido por unanimidade o requerimento de Henrique, a quem cedo depois
Torcato foi ensinar o caminho para o quarto onde devia pernoitar.

O conselheiro, D. Doroteia, Cristina e Angelo foram para a missa do galo.

D. Vitória, Madalena e Henrique ficaram no Mosteiro,

XV FECHANDO-SE no quarto, que lhe deram para pernoitar, Henrique de Souselas
sentiu poucas disposições de dormir. uma profunda excitação
impedia-lhe o repouso; em parte era devida às ocorrências daquela
noite, tão fora dos seus hábitos de vida; em parte, digamo-lo
em verdade, à influência dos vinhos, com que secundara os brindes
do conselheiro, e com que ele próprio iniciara outros.

A imaginação, excitada como estava, cada vez, entre outras
imagens, lhe representava mais bela a de Madalena. A espécie de hostilidade
permanente com que a morgadinha o tratava, ainda mais parecia seduzi-lo.

Nos poucos dias que passara na aldeia, havia Henrique, com novos hábitos,
adquirido uma maneira de ver e de julgar as coisas e as pessoas, diferente
da que lhe era habitual na cidade, no círculo de amigos com quem convivia;
assim foi que abjurou tàcitamente, e sem dar por isso, certo cepticismo
convencional, que uma antipática escola conseguiu pôr muito na
moda.

Graças a estas melhoras morais, tão verdadeiras nele como
as físicas, as quais até o constante pensamento das doenças
lhe haviam dissipado, pudera ele considerar Madalena como uma mulher superior
ao tipo, pelo qual a mencionada escola costuma modelar o sexo; e aceitou sem
má prevenção a aberta sinceridade daquele carácter
simpático, que descrevia com entusiasmo nas suas cartas a um dos seus
mais íntimos amigos de Lisboa.

Tais estados de convalescença são, porém, sujeitos
a recaídas.

Neste dia, véspera de Natal, recebera ele a resposta àquelas
cartas, e sob as impressões, com que ficou da leitura, tinha vindo
para o Mosteiro.

O amigo ria-se, com todo o elegante cepticismo de um homem da moda, da candura
e da ingenuidade de Henrique. Dizia-se sinceramente penalizado à vista
dos profundos estragos que alguns dias de província tinham operado
nele. Via-o disposto a idealizar a mulher, a mais perigosa e mofina monomania
que, dizia o tal, pode transtornarei cérebro de qualquer homem.

Com aquela ausência de escrúpulos, com que todos os dias caracteres.

aliás não pervertidos, levianamente caluniam ou ferem de suspeitas
reputações de todo o género, ele fazia irreverentes alusões
à morgadinha e zombava de Henrique, que ainda tomava a sério
as isenções de uma rapariga de vinte e três anos. Acabava
por o aconselhar a que indagasse de algum primo tímido e modesto, ainda
que menos ingênuo decerto do que ele Henrique se estava mostrando.

Esta carta fez mal a Henrique. Exacerbou-lhe a doença, que estava
em via de cura. Um espírito mefistofèlico parecia havê-la
ditado. Henrique transportou-se pela imaginação, depois de lê-la,
a um dos círculos que habitualmente frequentava em Lisboa ; supôs-se
a fazer ali a narração da sua vida na aldeia, e parecia-lhe
estar vendo os sorrisos com que o escutariam, e ele próprio construía
os epigramas, com que lhe seria por certo comentada a narração.
E então uma vergonha de má índole, vergonha do homem
que põe um preceito de elegância acima de um ditame de moral,
fazia-o corar, apesar de a sós consigo mesmo. Voltava a 1er a carta,
que lhe parecia ditada pela experiência e pelo bom senso, enquanto que
a ingenuidade das suas crenças se lhe figurava ridicula e desarrazoada.

Quem há que não tenha tido momentos destes? Quem se pode gabar
de não ter perguntado um dia aos seus escrúpulos mais nobres
se não são meros preconceitos que ficaram de uma educação
acanhada? Quem não pôs um momento em dúvida as sublimes
verdades que a mãe lhe ensinou em criança? Henrique estava passando
por um desses acessos de cepticismo. Madalena era já para ele uma astuciosa,
que muito se deveria ter rido da sua simplicidade ; e tanto o incomodava essa
idéia, que prometia a si próprio ser dai por diante mais arrojado.
Esta ordem de reflexões estavam acudindo outra vez a Henrique e recebiam
da excitação, que se apoderara dele aquela noite, uma tenacidade
maior. Sentindo a cabeça em fogo, Henrique levantou-se, apagou a luz,
e abrindo a janela do quarto, saiu à varanda que deitava para a quinta,
a respirar o ar livre.

A noite era sem luar e sem névoas. Descobriam-se muitas estrelas
no céu, que com forte cintilação parecia iluminarem a
terra de um ténue crepúsculo, que mal deixava distinguir os
objectos.

O ar frio da noite estava produzindo em Henrique um prazer que ele procurava
prolongar.

Não havia passado muito tempo, depois que assim se encostara à
varanda do quarto, quando lhe atraiu a atenção certo vulto alvacento,
que furtivamente se movia numa das ruas da quinta.

Pareceu-lhe uma figura de mulher.

Justamente naquela ocasião tinha Henrique na memória o periodo
final da carta do seu amigo.

Por isso ocorreu-lhe uma idéia satânica.

— Ah!… Querem ver que… A dor de cabeça súbita…
A insistência em ficar só… Percebo… Um primo timido e modesto
..

E murmurando estas palavras, um sorriso maligno encrespava os lábios
de Henrique.

— Se eu pudesse averiguar isto… Mas ela corre com uma ligeireza
que, antes que eu ache meio de sair para a quinta… já a levará
bem longe.

O meio porém não era difícil de encontrar. Da varanda
em que estava Henrique passava-se com grande facilidade para outra imediata,
na qual havia uma escada de comunicação para a quinta.

Reconhecendo esta disposição do terreno, Henrique operou num
momento a descida, e pouco depois procurava através da quinta os vestigios
da mulher que tinha perdido de vista.

Nesta operação esforçava-se por combinar com a máxima
ligeireza a possivel precaução, para não ser por causa
alguma frustrada a sua pesquisa.

A quinta do Mosteiro era extensa e cerrada tôda em volta por um sólido
muro de alvenaria. Aqui e ali abriam-se nele diferentes portas que deitavam
para os diversos lugares da aldeia. Neste vasto recinto havia pomares, lameiros,
vinhedos e hortas, por onde Henrique errava à toa, já desanimado
de ser bem sucedido no empenho.

De repente julgou ouvir, a pouca distância, o rodar de uma chave na
fechadura. Parou por precaução e ficou-se a escutar. Logo depois
ouviu o bater de uma porta e mais nada.

Então adiantou-se rapidamente ; num momento deu com a porta, que
ainda se conservava aberta. Saiu por ela para a rua, mas achou-a deserta.

Dirigiu-se à esquina que dali avistava; dobrou-a, mas nada viu; as
ruas eram solitárias, e uma só casa térrea que havia
ao lado de um quintal estava discretamente fechada e silenciosa.

Desistindo de prosseguir na infrutuosa pesquisa, Henrique voltou para a
porta.

— Esperemos aqui por esta donzela destemida que assim anda de noite
a correr aventuras. Há-de ser curioso observar como ela fica quando
me encontrar por guarda-portao. Veremos se ainda depois disto durarão
aqueles ares de soberania com que me trata. Um primo timido e modesto!…

E, sorrindo à lembrança da cena que se preparava, Henrique
fechou a porta por dentro, e acendendo um charuto, pôs-se a passear,
aguardando o regresso da morgadinha.

Para não perdermos muito tempo à espera também, aproveitá-
-lo-emos a inquirir de coisas e de pessoas, cujo conhecimento é útil
à continuação da nossa história.

A pouca distância do extremo da quinta do Mosteiro e num sítio
a que a abundância de vegetação e a suavidade de perspectiva
davam o mais pitoresco aspecto, estava a casa e o quintal do ervanáno,
casa e quintal já conderados pelos lapis e tira-linhas dos engenheiros
e oferecidos em se orificio aos melhoramentos municipais e concelhios.

Acharia justificado o quase terror, com que Madalena e Ângelo escutaram
a nova desta expropriação, quem conhecesse a vivenda rústica
do ervanário e soubesse do amor que ele votava a cada objecto dela,
assim como da vida que, havia tantos anos, ali vivia escondido e obscuro.

Para o quintal, que a abundância das árvores de espinho fazia
sempre verde, abriam-se as janelas da pequena e humilde saleta, onde o ervanário
se entregava às suas leituras e lucubrações científicas.

Logo ao pé da porta se estendiam o jardm em parte de recreio, pelas
flores que o adornavam, em parte de utilidade, pelas símplices medicinais,
de virtudes mais ou menos problemáticas, que o velho nele cultivava.

Vicente tinha entranhada a paixão vegetal, deixem-me assim chamar-
lhe. Adorava as plantas pelas suas flores, pelos seus frutos e pelos poderes
curativos que lhes atribuía. E como se elas possuíssem a responsabilidade
dos efeitos produzidos, assim lhes queria e as amimava, quando salutares ;
assim as aborrecia e maltratava, quando nocivas.

A vida isolada e o gênio do velho, que sempre fora dado a singularidades,
aumentavam estas disposições, que unham o que quer que era de
panteístico ; e não era raro surpreenderem-no conversando com
elas, como se convencido de que o estavam compreendendo.

A borragem, a salva, a fumaria, a erva-terrestre, a erva-moura, os trevos,
os geranios, as papoulas, as violetas, tão boa camaradagem lhe faziam,
que nem lhe deixavam sentir a solidão.

O ervanário não tinha pessoa alguma ao seu serviço.
Ele próprio cozinhava e por suas mãos fazia todos os mesteres
domésticos.

É pois de imaginar que não seria muito complicado o banquete
das consoadas naquela casa, e que devia formar em tudo contraste com o que
à mesma hora se celebrava no Mosteiro.

De feito, quando ali eram mais ruidosas as conversas e mais espontâneos
os risos, dois homens apenas, sentados um defronte do outro, a uma pequena
mesa circular, solenizavam naquela modesta sala o sanio aniversario. Um era
o proprietário da casa, o outro Augusto, um dos poucos que se atrevia
a frequentar àquelas horas mortas a habitação do velho.

Além da mesa, sobre a qual estava uma ceia composta de queijo, maçãs,
nozes, castanhas, duas sopeiras com escabeche, especialidade na confecção
da qual o ervanário era eminente, e uma garrafa de vinho do Porto de
prometedora cor de topàzio, consistia o resto da mobília numa
estante de pinho, vergada sob o peso de in-fólios de grossas encadernações
e folhas vermelhas nos aparos, em algumas cadeiras e bancos também
ocupados com livros e com vários utensílios empregados nas explorações
científicas do velho, tais como caixas de lata, frascos, martelos,
foicinhas, limas, os quais ainda sobravam para alastrarem o chão.

Todo o recinto era apenas alumiado por um candeeiro de azeite, e a escassa
luz, que dos três lumes que, em atenção à solenidade
da noite, o velho acendera, ia reflectir-se no vulto alvacento de um Cristo
de marfim pendente de um crucifixo negro, que sobressaía naquelas paredes
nuas e caiadas.

Havia bastante tempo que aqueles dois homens, sentados defronte um do outro,
guardavam silêncio ; um desses silêncios, durante os quais os
espíritos, como se impacientes com as longuras da palavra, tendo-se
desembaraçado dela, voam a par, para adiantarem caminho e voltarem
mais longe a associarem-se à sua mais lenta companheira.

Augusto, com os olhos fixos na luz que iluminava a cena, parecia alheio
a quanto o rodeava.

O ervanário, sem desviar os olhos dele, com o braço estendido
para o cálice que tinha defronte de si, e a cabeça inclinada,
parecia espiar, um por um, todos os gestos de Augusto, e estudar neles os
pensamentos que o preocupavam. Enfim rompeu o primeiro silêncio: —
Pobre rapaz ! Diz-me para aí tudo o que tens. Para que te metes a esconder
de mim aquilo que eu há tanto te leio nos olhos, criança? —
O quê, tio Vicente ? — perguntou Augusto inquieto.

— O quê? ! Ouve, Augusto. Deu-te Deus o engenho, sem te esfriar
o coração: são dons do Céu, que se pagam caro
e com lágrimas, rapaz.

Bondade de coração, com a cabeça… assim, assim…
a dar esmolas aos pobres se satisfaz: cabeça de fogo, mas coração
de gelo… todos os meios de levar ao fim ambições, tanto os
bons como os maus, todos lhe servem ; mas coração como o teu,
com o espirito que tens !… ai, pobre Augusto, se se escapa ao infortúnio,
é por milagroso poder do Senhor.

— Não o entendo, tio Vicente — disse Augusto, com manifesta
confusão.

— Não ! Olha para mim. E vê se te atreves a repeti-lo.

Augusto baixou a cabeça.

O velho sorriu com ar de comiseração e simpatia.

— Tu ainda não sabes fingir. Vamos lá ; e cuidas que
me não havia de custar, se não tivesse acertado? — E,
depois de breve pausa, continuou : — Mas ainda quando penso em como
tu, uma cabeça forte, assim te deixaste enfeitiçar !…—E
tomando o cálice, que tinha defronte se si, disse com resolução:
— Quero beber à tua saúde, Augusto, e para que em breve
se te desfaça essa loucura.

Quando ia a levantar o cálice aos lábios, a mão de
Augusto susteve- lhe o braço.

— Não beba. Loucura embora, deixe-me viver e morrer com ela..
Sou feliz assim.

— Ah ! — disse o velho ervanário, tomando um ar mais
grave ; e pousou o copo, sem desviar de Augusto o olhar penetrante e fixo.

Augusto, depois de um curto silêncio, prosseguiu com maior veemência
e colorindo-lhe as faces um não costumado rubor: — Sim. Porque
o não hei-de confessar ? Essa loucura que diz, trago-a comigo, vivo
com ela e quase que para ela. Quero-lhe assim, e não a desejaria perder.
Amor? não é; a tanto não chega… antes um culto, isso
sim. É uma adoração como aquela, em que de pequenos nos
educam para com a Virgem. Que esperanças tenho? Nenhumas.

Nem procuro alimentá-las. Quer que lhe diga? Vê-la; respirar
estes ares que ela respira; atravessar estas devesas em que ela passeia; amimar
as mesmas crianças que ela amima ; socorrer, com o meu óbolo
de pobre, a miséria sobre a qual ela espalha caridosa as dádivas
da sua abençoada opulência… e, aí está; são
as minhas aspirações; é o futuro que desejo, e com que
me contento. Leu no meu coração, disse ; e há muito que
mo dá a entender ; mas, não viu claro de todo, confesse.

Julgou talvez que haveria em volta deste sentimento um enxame de esperanças
loucas, e delas se ria. Delas por certo foi que se riu; é muito generoso
para se rir do mais. Enganou-se, porém, tio Vicente ; vê agora
que se enganou, nao é verdade? Essas esperanças não existem.

Se existissem, bem vê que não estaria aqui. Não me teria
impelido a ambição pelo caminho de realizá-las? Não
se me têm oferecido os meios para tentá-lo? Mas, veja, quero-lhe
tanto, e tanto me satisfaz esta felicidade a meu modo, que não arrisco
um instante dela para tentar uma ventura maior.

O ervanário escutava silencioso, porém meneando a cabeça
com ares de quem não punha demasiada fé naquelas palavras.

— Aos vinte anos!…— disse ele por"fim — sentir
o que dizes…

ser feliz assim!… Deixa passar mais tempo; deixa tomar corpo à
paixão e verás… verás depois…

— Tem dez anos — disse Augusto, sorrindo.

— Dez anos ! — É verdade. De criança a conheço,
a paixão que diz; por issò confio nela. Tenho fé em que
se não transviará.

— Dez anos!—repetiu o velho, admirado.—Porém…
há dez anos ..

— Há dez anos saí eu daqui, tio Vicente. Não
se lembra? Era então uma pobre criança da aldeia, educada entre
os braços de minha mãe, e conhecendo, uma por uma, as árvores
destes sítios e mais nada.

Saí daqui e fui para Lisboa. Não imagina as fortes impressões
que recebi na noite que ali cheguei. Nunca a história mais maravilhosa
de fadas e de encantamentos que ouvia, quando era pequeno, nunca me feria
a imaginação assim ! Tudo era novo para os meus sentidos. O
rumor, as luzes, os palácios, os edifícios, os carros produziam-me
quase uma vertigem; sentia-me vacilar. Achei-me, nem sei bem como, de tão
atordoado que ia, numa casa onde estava o conselheiro, e em que se reunia,
naquela noite, uma companhia numerosa de homens, de senhoras e de crianças,
muitas da mesma idade que eu, e que formavam uma assembléia à
parte. A sala era magnífica ; muitas luzes, muitos espelhos, muitas
flores, móveis dourados, tapetes, quadros, cristais, e para acabar
de me confundir, o piano, objecto novo para mim, e que eu me não fartava
de admirar. Tudo isto me perturbava, como imagina, e por força me havia
de dar uns ares de estupefacto. O conselheiro recebeu-me com afecto ; deu
explicações às pessoas presentes a respeito da minha
vida, e deixou-me entregue às crianças. Aí fiquei eu,
bisonho rapaz da aldeia, com a minha jaqueta mal talhada, o meu olhar tímido,
os meus modos acanhados, no meio de uma turba de crianças elegantes,
que se me figuravam de uma essência superior à minha.

As crianças são desapiedadas, quando assim em companhia. Cedo
percebi que estava sendo o alvo da zombaria delas; riam ao princípio
com disfarce e falavam-se ao ouvido, olhando-me de relance, redobravam as
risadas e transmitiam reflexões a meu respeito, cujo sentido julguei
adivinhar. Depois dobrou a ousadia nelas. dirigiram-me ditos, gracejos, cada
vez menos disfarçados; formaram grupos em volta de mim; se eu falava,
respondiam-me rindo. Então apoderou-se de mim um profundo desalento,
comprimiu-se-me o coração de tristeza. Lembrei- me, com saudades,
das árvores da minha aldeia, do meu pobre quarto, da minha mãe
; e achei-me ali tão só, tão sem conforto nem amizades,
que as lágrimas me vieram ferventes aos olhos. Ainda hoje não
hesito em dizê-lo, foi aquele um dos mais amargos momentos da minha
vida. Nós, quando adultos, esquecemos facilmente os martírios
da infância, quando nesta idade uma sensibilidade exagerada tão
dolorosos os faz. Foi então que se deu um facto que, na minha piedosa
superstição de rapaz aldeão, quase me pareceu de intervenção
divina.

Abriu-se a porta, e entrou na sala uma criança, que eu não
tinha ainda visto. Era uma menina pálida, de gesto afável e
angélico. Vestia tôda de branco. Entrou e aproximou-se do conselheiro,
que jogava com uns amigo?, O conselheiro, depois de beijá-la, não
sei que lhe disse ao ouvido. Ela correu então a sala com a vista; viu-me
e veio direita a mim.

— Não conhecias já da aldeia Madalena ? — perguntou
o ervanário.

— Não; minha mãe veio para aqui no ano em que, por morte
da sua, Madalena voltou a Lisboa. A afabilidade, a singeleza desafectada com
que me falou, causou-me um alívio inefável. Ainda hoje sinto
como que os reflexos daquela suave impressão. Parecia-me ouvir a voz
de minha mãe ; tinha o timbre da simpatia. Encheu-se-me logo de coniança
o coração. com ela não senti mais aquele acanhamento
que me enleava. Depois falava-me de coisas que eu sabia tão bem ! Perguntavame
a respeito dos campos, das árvores, das abelhas, dos ninhos dos pássaros,
das flores, dos trabalhos do linho… interrogando-me e escuando- me com tanta
deferência e atenção, que me inspirava coragem, e julgo
que me estava dando ares de mais importância junto daqueles pequenos
senhores e senhoras que, pouco a pouco, se foram despoando dos seus desdéns
e acabaram por me escutar e interrogar tam- )ém com curiosidade. Já
uns me lançavam os braços ao ombro, outros fbrmavam círculo
em volta de mim, e cedo fui eu a principal personagem daquela noite. Essa
criança…

— Era Madalena ; adivinhá-lo-ia agora, se já o não
soubesse. Não jodia deixar de ser ela — exclamou o ervanário,
com um fulgor de simpatia a iluminar-lhe o olhar. — Era ela ; sempre
assim foi ! — Era. Esta cena pueril teve uma grande influência
no meu espírito.

Hoje ainda, se penso nela, acho-a de uma grande significação
moral. Pois não é mais apreciável numa criança
esta prova de superioridade de carácter, do que nas idades em que muitas
vezes a razão e o cálculo a impõem a uma índole
naturalmente pouco generosa? Ali era tudo espontaneidade. Desde então
a adoro.

O ervanário parecia não ter já ânimo para sorrir.

— Agora vejo por que trouxeste da cidade aquela grande triseza.

Tão novo ! — É verdade. Foi esse o motivo. Madalena
foi sempre para mim afável ; inclinava-se sobre o livro em que me via
estudar, corrigia, sorrindo, os defeitos da minha educação aldeã,
e, se reconhecia processos no discípulo, manifestava uma alegria que
era para mim o maior incentivo e o maior prêmio. Fiz os exames. Quando
voltei a casa, Madalena com certo ar de gravidade, que aquela criança
já então ornava, perguntou-me, no meio de uma conversa própria
de crianças: E sente-se com gênio para ser padre, Augusto?»
Já me não lembro do que lhe respondi. Trouxe porém comigo
aquela pergunta ; trouxe-a para a solidão da minha aldeia. Procurei
cerrar os ouvidos à voz inteior, que desde então ma repetia
sempre, até junto da cabeceira de minha mãe, cuja maior aspiração
era, como sabe, ver-me padre. Mas m vão ! foi desde então uma
dúvida constante com que lutava. com morte de minha mãe tudo
mudou. Pela primeira vez respondi à interrogação, que
havia tanto tempo dirigia a mim próprio, e consegui por fim responder:
«Não». Eis o segredo do meu passado.

— E porque disseste « Não » ? — Porque vi
que tôda a minha vida era para a consagrar a um sonho ; que o sonharia
no altar, no púlpito e no confessionário ; que para toda a parte
me seguiria a imagem, a que eu já não podia renunciar, e a qual
então já não contemplaria sem remorsos, como agora o
faço. Foi por isto.

— Só? Não te iludirás a ti mesmo, Augusto? Repara
bem, que nisto pode ir a tua felicidade ! Estás bem certo de que não
há uma esperança dentro do teu coração? —
Se a tivesse ..

Ia a continuar, quando julgou ouvir o rumor de passos na rua.

Cedo batiam na porta duas leves pancadas, e uma voz dizia de fora: —
Está acordado ainda, tio Vicente O ervanário trocou um olhar
com Augusto. A voz era de Madalena.

Augusto ergueu-se com presteza. O ervanário quis retê-lo.

— Onde vais ? — Deixe-me sair. Não poderia vê-la
agora. Não estou preparado com a minha indiferença.

— Pobre máscara ! — Nesse caso sai pelo quintal.

— Tio Vicente ! — repetiu Madalena de fora.

— Eu vou, minha ave nocturna ; eu vou já. Espera — continuou
em voz baixa para Augusto : — dá-me a tua palavra que não
escutarás.

— Dou; mas .. promete que nada lhe dirá? — Eu?!… Louco!
Assim te pudesse fazer esquecer, quanto mais ..

Adeus ! Depois de assegurar-se de que Augusto saíra pelo lado do
quintal, o ervanário foi abrir a porta da rua à morgadinha.

XVI ORA com Deus venha a minha fada ; esta querida Lena, que se não
esquece dos seus amigos velhos… Boas festas me trazes pela noite, filha!
No rosto e nas maneiras de Madalena havia evidentes indícios de preocupação.

— Boas noites, tio Vicente! Pouco me posso demorar; eu venho…

O ervanário conduziu-a para junto da mesa, onde estavam ainda os
sinais da refeição, que havia pouco findara. Vendo os dois talheres,
a morgadinha olhou interrogadoramente para Vicente: — Estava alguém
consigo ? — Esteve Augusto, que ceou aqui. Porquê ? Temos por
aí mais alguns livros a comprar-lhe ? — continuou, sorrindo,
com benèvola malícia. — Tenho eu mais uma vez de chamar
em meu auxílio a fada que, de vez em quando, me ensina em segredo quais
os livros que o rapaz mais deseja e de que eu mal sei dizer os nomes? Hei-de
ainda ouvir calado agradecimentos, que não mereço, e que ele
mais de coração daria, a quem são de justiça devidos?
— Não, tio Vicente ; não se trata agora disso.

— Ai, Lena, Lena, que nao sei bem o que devo pensar de tôdas
estas coisas.

A morgadinha parecia um pouco perturbada com as palavras do ervanário.

— Que há-de pensar ? Há nada mais natural ? Ângelo
foi que me eu o exemplo. Ele sabia o amor que Augusto tem à leitura.
Porém cofre de Ângelo é pequenino, bem sabe; enquanto
que eu chego a em saber em que hei-de consumir o que me sobra. Por isso foi
que me lembrei… porém como não conviria que eu própria
fizesse o presente, nem ele de mim o aceitaria, é que eu lhe pedi que
o fizesse em seu nome. Mas falemos de outra coisa, porque me não posso
demorar.

Venho às ocultas e enquanto a minha gente foi à missa do galo.
Tio Vicente, um objecto muito grave me obrigou a procurá-lo a estas
horas.

— Ah ! — disse o velho, sentando-se em tom de gracejo. —
Adivinho a gravidade do caso. O filhito do boieiro, o teu afilhado predilecto,
tem algum princípio de sarampo ou de garrotilho, e vens…

— Não, não. Diga-me, tio Vicente, tem muito amor a esta
casa e a este quintal? O velho tornou-se imediatamente sério.

— Se lhe tenho amor ? ! Que pergunta I — Tem? — Nasci
aqui, filha.

— Custar-lhe-ia a…

— A quê? — A… a…

E Madalena hesitava.

— Fala ! — insistiu o velho, já inquieto.

— A separar-se dela? O ervanário respondeu simples.

— Ah ! morreria.

Madalena fez um gesto de aflição.

Em Vicente crescia o desassossego.

— Mas… Diz, Madalena; o que significam essas palavras? — É
que…

— Explica-te ! — exclamou o ervanário, quase imperiosamente.

— Oiça-me, tio Vicente ; oiça-me, mas não se
aflija. Eu vim de propósito para o prevenir. Mas, por amor de Deus,
sossegue.; senão tira-me o ânimo de continuar.

— Que sossegue, e tu a atormentares-me com essas demoras.

— Perdoe… Fala-se em deitar abaixo estas árvores e esta casa,
p a r a . . .

O ervanário de um ímpeto pôs-se a pé. Fulgurou-lhe
nos olhos um relâmpago de ira terrível.

Madalena calou-se, assustada.

— Deitar abaixo estas árvores e esta casa?! Quem?… Quem se
atreve ? Pois que venham ! que venham ! Mas reparando no terror que estava
causando a Madalena, procurou reprimir-se, e com uma voz que ele se esforçava
por tornar tranquila, continuou : — Mas vejamos. Então querem,
dizes tu… Fala, Lena, fala… Diz o que sabes. Quem é?… Para que
fim? Pois quem pode lembrar-se de… Fala, bem vês que eu estou sossegado,
filha, — Há um projecto de estrada…

— Ah ! — disse Vicente, com um grito de raiva. — Não
digas mais. Já sei — continuou com renascente exaltação.
— Já sei. Adivinho o resto. É teu pai que o determina;
é teu pai que o resolveu? Madalena baixou a cabeça com dolorosa
expressão.

O furor do velho exaltou-se outra vez.

— Teu pai ! Teu pai, Lena ! Então esse homem jurou matar-me
? — Tio Vicente! — Ele não sabe o que sao para mim estas
árvores e estas paredes ? Ele não sabe que a minha alma está
nelas, presa a estas raízes? que com elas se despedaçará?
Esse homem sem coração não vê que são estas
as minhas afeições, as únicas? a minha única família?
Ele, o companheiro dos meus primeiros anos ! que, como eu, aí brincou,
à sombra dessas mesmas árvores e sob os olhares de meu pai,
que também o abençoava, tão duro de coração
se fez que, sem respeito por estas memórias todas, assim me quer separar
do que me dá vida, do que ainda me prende ao mundo? E é teu
pai este homem, Lena? — Por quem é, tio Vicente; oiça-me.
Deixe-me dizer-lhe ao que vim, que talvez tudo se remedeie ainda.

— Sim, sim; tudo se remediará… com a minha morte. Talvez
que ela seja útil a teu pai… Talvez precise dela.

— Oh ! não creia, não creia.

— É duas vezes doloroso o golpe ; porque me separa do que amo
deveras e por vir da mão de quem vem. Eu era amigo de teu pai, Lena.
Acredita que o era… ainda. Conheci-o tão generoso e tão inocente,
como teu irmão Ângelo. Muitas vezes me entusiasmei ao ouvi-lo
falar dos seus projectos. E acreditei nele. Tinha então no olhar um
fogo, que não mentia. Vi-o seguir a carreira pública e acompanhei-o
com a minha fé. Não tardaram os primeiros desenganos ; não
lhes quis dar crédito ao princípio. Vieram outros e outros.
Fui vendo então que os maus ares daquela terra tinham embaçado
o brilho do carácter, que eu julguei melhor do que os outros. Mas o
pior dos desenganos estava-me reservado ainda. Para teu pai hoje os homens
são medidos pelos votos que podem lançar na urna eleitoral!
— Por amor de Deus, tio Vicente, não fale assim! Não duvide
de meu pai ! — exclamou Madalena, a quem cruelmente estavam afligindo
as recriminações amargas do ervanário. — Meu pai
estima-o e respeita-o. Não tem o coração endurecido que
diz. Ele mesmo amanhã aqui há-de vir. Verá então…

— Ele? Amanhã?…

— Para isso venho preveni-lo. Não o receba com asperezas, tio
Vicente ; fale-lhe com brandura. Talvez o comova, talvez seja ainda possível
valer a tudo. Ainda não está decidido… Julgo… E que estivesse

— Amanhã ! Teu pai vem aqui amanhã ? E ousa vir ele
próprio anunciar-me o que sabe que vai ser uma sentença de morte?
— Não ; ele ignora o mal que isto lhe causa, creia. Sabendo-o,
verá como…

— Teu pai conhece-me, Madalena. Teu pai conhece-me, e há muito.
Não julgues que pode errar, calculando o efeito deste golpe.

Mas que queres tu? ensinaram-lhe já a avaliar em pouco as vénetas
de um velho quase tonto. Homens que trazem o pensamento em interesses tão
altos, não têm vista para estas pequenas desgraças.

Madalena sentia-se possuir de uma profunda tristeza, ao ouvir falar o ervanário.
Era uma dolorosa provação para o seu amor de filha ver assim
uma nuvem de desconfiança ofuscar a ideal concepção que
ela formara do pai, e não ter forças para a afugentar. As vezes
uma dúvida cruel fazia-lhe, a seu pesar, supor que o ervanário
tinha razão.

Agora só conseguia opor um gesto suplicante àquelas acerbas
acusações, que por muito tempo ainda desatenderam esta súplica
muda.

Afinal serenou a violência da irritação do velho ; sucedeu-lhe,
porém, uma comoção profunda, dominado por a qual disse
a Madalena: — Sossega, Lena ; amanhã eu receberei teu pai sem
a menor aspereza. Fizeste bem em vir primeiro, filha. Se o não esperasse,
talvez não soubesse conter-me. Agradecido. uma noite é bastante
para me preparar. Agora vai, deixa-me só; deixa-me… chorar.

E cobrindo o rosto com as mãos, deixou-se cair, soluçando,
sobre a mesa, junto da qual se achava.

Madalena correu para ele, comovida.

— Então, tio Vicente, então! Sossegue! Amanhã
meu pai virá.

Fale-lhe, e eu espero que ainda será tempo de evitar .. o mal.

— Pode ser, pode ser… —respondia o velho. — E se não
puder, Deus me acudirá, para não viver por muito tempo fora
da casa em que nasci.

Madalena já não tinha que lhe dizer.

— Eu pedirei também, e Cristina, e todos pediremos, como |á
pedimos. Tenho esperança.

— Não, filha, não peças tu. Deixa-me só
com teu pai amanhã.

Disseste que tinhas vindo sem ninguém saber? — continuou ele.—
Olha que te não dêem pela falta. Vai, que é tempo.

— Mas…

— Vai, filha. Eu estou já tranquilo. Bem vês. Deus te
recompense a bondade que tiveste. Vai. Queres que te acompanhe? — Não
é preciso. Vim pela porta das presas, que deixei aberta.

São dois passos e estou na quinta. Mas, tio Vicente…

— Vai então; e Deus te abençoe.

E o velho pousou a mão sobre a cabeça de Madalena, que saiu
comovida.

E ele caiu outra vez sobre a mesa, sem reter o pranto que lhe rebentava
dos olhos.

É sombria a saudade naquelas idades, porque as esperanças
são já muito débeis para lhe darem luz.

Saindo de casa do ervanário, perturbada ainda pelos sentimentos que
ali a tinham agitado, a morgadinha dirigiu-se à pressa para a porta
da quinta por onde saíra. Ao impeli-la para entrar, a porta resistiu.

Este facto surpreendeu e inquietou um pouco Madalena. Quem poderia ter fechado
a porta? E se efectivamente estava fechada, tornava-se- -Ihe necessário
um longo rodeio pela aldeia para chegar a outra que pudesse encontrar aberta.

Nesta hesitação impeliu outra vez instintivamente a porta,
que lhe opôs a mesma resistência.

Cedo, porém, sentiu o rodar da chave na fechadura e viu mover-se
lentamente a porta, e no vão, que aumentava, desenhar-se uma figura
de homem.

Antes que pudesse, através da obscuridade da noite, reconhecer a
pessoa, que assim tão a propósito lhe acudia, deram-lha a conhecer
estas palavras: — Muito boas noites, prima Madalena. Espero que pelo
menos me concederá licença para exercer, junto de si, as humildes
funções de porteiro.

Era Henrique de Souselas.

Madalena não foi superior a um vago sentimento de receio, ao encontrar-se
aí com o hóspede de Alvapenha ; contudo esforçou-se por
dominar-se e respondeu, com aparente presença de espírito: —
Ah ! É o primo Henrique. Muito boas noites. Aí temos um requinte
de galantaria que eu estava muito longe de esperar.

— E de desejar, não ? — E de desejar também, confesso-o.
Por mais diligente que seja um porteiro, nunca o é tanto como uma porta
aberta.

— Mas é mais discreto.

— Duvido. Em todo o caso, agradeço o incômodo.

E, dizendo isto, preparava-se para entrar, sem mais explicações.

— uma palavra, prima Madalena — disse Henrique, retendo-a por
o braço e com certa expressão nas palavras e no gesto, que redobrou
o sobressalto da morgadinha. — Não há mais acomodado terreno
para um diálogo solene do que o limiar de uma porta. Ordinariamente
no limiar das portas o homem muda de máscara ; depõe a que apresenta
na sociedade e afivela a que traz na família, e vice-versa. Ora nessas
mudanças é fácil surpreender o verdadeiro rosto da pessoa.

— Será tudo o que quiser o limiar de uma porta, primo ; menos
um lugar muito confortável para serões numa noite de Dezembro.

E Madalena tentou de novo seguir para diante.

Henrique susteve-a outra vez.

— Um momento só, prima Madalena; tenho necessidade de saber
se me quer para aliado ou para inimigo.

.— Não vejo a necessidade da aliança que propõe,
nem as razões para a luta.

— Sejamos francos. A prima deve confessar que a minha presença
aqui foi um desagradável contratempo. uma certa altivez e consciência
de invulnerabilidade, de que tinha o incômodo de se revestir, sempre
que tratava comigo, depois desta importuna ocorrência terá de
se modificar.

— Não havia dado por essa… revestidura que diz; mas, se ela
existiu, far-me-á o favor de dizer: porque não pode continuar?
— Essa é boa ! porque eu faço a justiça à
prima de supor que não vai tão longe a sua hipocrisia.

— Hipocrisia ! — disse Madalena, com acento mais severo.

— Perdão; não tive tempo para inventar outro termo mais…

brando. Dissimulação talvez lhe agrade mais. Seja dissimulação.
Mas depois do ocorrido…

— Agora exijo eu que se explique, senhor.

— Ora vamos. Seja razoável. Poder-me-á dar uma explicação…

edificante… desta sua excursão nocturna? — Obsta apenas a
que eu lha dê, Sr. Henrique de Souselas, a falta de uma pequena formalidade
: a de lhe reconhecer o direito de interrogar-me.

— Muito bem. Cada vez confirmo mais a minha idéia. A prima
é uma mulher admirável, uma mulher superior, educada na alta
escola de uma sociedade distinta, sobranceira por isso a pieguices provincianas.

Tanto mais me encanta ! E creia que me envergonho só ao lembrar-
me do que terá pensado de mim, vendo-me tomar a sério as suas
profissões de fé, tão cheias de franqueza e de candura.
Devo ter-lhe parecido bem ridículo, não é verdade? —
Agora é que me está parecendo bem enigmático, —
Sim ? Nesse caso eu me decifro. A prima não ignora que eu a amo.

— Pois ignorava ! — atalhou Madalena, com ironia.

— E sabe decerto, por experiência do mundo, que para homens
como eu, a indiferença, a frieza e os desdéns redobram o ardor
da paixão.

— Sim ; já li isso num romance.

— A prima tem sido para comigo de uma crueldade rovoltante, mas pouco
sincera. Eu resignava-me a sofrer, porque um resto de ingenuidade que me ficou
dos quinze anos, iludia-me na interpretação de tais resistências.
Tive a puerilidade de a supor uma mulher de excepção; pouco
me faltou para a divinizar. Estava reservado para esta memorável noite
de Natal o desengano.

— Ah! então parece-lhe…

— Que a prima representa admiràvelmente o seu papel. Pode gabar-se
de ter iludido um homem habituado às cenas da comédia social.

Madalena respondeu, com um tom de voz cheio de severidade e de nobreza:
— Tenho-o estado a escutar, Sr. Henrique de Souselas, sem que eu própria
bem saiba o que me retém aqui : se é compaixão que me
inspira a profunda doença moral em que o vejo tomado, se a curiosidade
de saber a que tendem todos esses arrazoados. Vejo-o inclinado a imaginar
que por um facto, que a sua pouca delicada indiscrição preparou,
eu ficarei de hoje em diante à mercê da sua generosidade.

Conhece-me muito pouco, Sr. Henrique ! Ainda quando esse facto não
pudesse ter uma explicação natural, e que me não repugnará
declarar quando quiser, saiba que tenho orgulho de mais para arrostar com
tudo, até com a calúnia, de preferência a resignar-me
ao menor predomínio que me seja odioso.

— Bravo ! — Saiba mais, Sr. Henrique de Souselas, que se eu
não lhe fizesse a justiça de acreditar que desses seus actos
e palavras não é absolutamente irresponsável talvez a
má influência da ceia desta noite, bastariam eles para me inspirarem
por si e pelo seu carácter o mais completo desprezo; e então
seria, como nunca, manifesta a minha independência, porque eu nunca
temi os seres que desprezo.

Henrique principiava a ser de novo subjugado pelo tom de severidade e de
energia, com que a morgadinha lhe falava ; ainda assim um resto de cepticismo
obrigou-o a replicar: — Santo Deus ! prima Madalena ; não dê
um colorido tão pavoroso às minhas suposições.
Despojá-la de uma crueza desumana, para a dotar de uma sensibilidade,
verdadeiramente feminil, é uma justiça feita ao seu coração.
E o facto que o acaso me revelou a nada mais me autoriza. O pequeno e natural
despeito por me haver deixado iludir desvaneceu-se já, creia ; e agora
só me resta invejar a sorte de quem tem a felicidade…

— Basta! Ordeno-lhe que se cale, senhor! Nem mais um instante o escutarei
; poupar-lhe-ei assim os remorsos que amanhã teria da sua infâmia…

E animada por uma resolução mais enérgica, Madalena
caminhou soberanamente para a porta.

Henrique colocou-se-lhe outra vez diante.

— Um momento mais.

— Deixe-me passar, senhor.

— Não, sem que me oiça antes.

— É uma violência ? — É uma súplica.

Neste momento saiu da obscuridade da rua fronteira um vulto que avançou
para eles.

— Sr.* D. Madalena, se for preciso reter o insolente, que se lhe atravessa
no caminho, ponho um braço à sua disposição.

E Augusto, de quem partiram estas palavras, veio colocar-se entre Henrique
e Madalena.

Ouvindo-o e reconhecendo-o, Henrique estremeceu de cólera.

O olhar que fixou no recém-chegado traiu a veemência da impressão
recebida. Depois sucedeu-se-lhe no espirito outra ordem de idéias.

Olhou para Madalena, em quem não era menor a surpresa causada pela
inesperada presença de Augusto, olhou outra vez para este e soltou
uma risada cheia de malignidade e de_ ironia, que a ambos fez estremecer.

— Aí está uma aparição tanto a tempo,
prima Madalena, que aos mais incrédulos infundiria fé na intervenção
da Providência. Que foi sem dúvida providencial o acaso, que
trouxe por aqui, a estas horas mortas, um tão generoso e intrépido
salvador. Não é verdade, prima? O que vale estar de bem com
Deus.

Estas palavras mostraram a Augusto que a sua intervenção,
ainda que generosa e devida a um espontâneo impulso da alma, não
fora porventura das mais convenientes.

— Senhor! — exclamou ele, indignado, dando um passo para Henrique.

— Sossegue — tornou este, com dobrado sarcasmo. — O senhor
é um perfeito herói de romance ; entusiasta, cavalheiresco,
mas, em certas ocasiões, incômodo de candura, por isso mesmo.
Se soubesse o transtorno que veio causar a um belo diálogo que eu sustentava
aqui com a Sr.* D. Madalena! Não vê como a deixou embaraçada?
Perdeu com a sua vinda o fio da comédia, que desempenhava com perfeita
ciência de actriz. As almas ingênuas e generosas, como a sua,
Sr. Augusto, são às vezes de uma impertinencia! Vamos, Sr."
D. Madalena; não descoroçoe. Assim esgotou todos os recursos
da sua imaginação? Vamos, introduza mais este elemento de aparição
de um herói no enredo, e organize a comédia com o superior talento
que tem! Eu por mim aceito todos os papéis que me distribuir.

Augusto ia responder, quando Madalena o atalhou dizendo com voz firme :
— Perdão ; vejo nesta noite em todos uma notável disposição
para usurparem direitos que não possuem! O Sr. Henrique o de me interrogar;
o Sr. Augusto, o de me defender. A um repetirei o que já há
pouco lhe disse ; se algum dia tiver necessidade de explicar as minhas acções,
fá-lo-ei diante de outros juízes, em quem reconheço o
direito de o serem. Ao outro peço licença para lhe lembrar que,
se o titulo de hóspede e de parente não fosse bastante para
me assegurar da parte do Sr. Henrique de Souselas os respeitos que me são
devidos, tinha ainda na minha família defensores legítimos e
não seria por isso obrigada a recorrer à protecção
de um estranho. Meus senhores…

E, inclinando-se senhorilmente, a morgadinha passou por entre eles e entrou
para a quinta, sem que nenhum a procurasse reter.

— Se esta senhora aceitasse a sua protecção e eu teimasse
naquilo que chamou a minha insolencia, qual seria, pouco mais ou menos, o
seu procedimento? Poder-se-á saber? — perguntou Henrique, logo
que a morgadinha desapareceu.

Augusto, em quem a fria altivez da resposta dela deixara o desespero no
coração, respondeu acerbamente : — Procuraria ensiná-lo
a ser cortês. Bem ve que não me esqueço facilmente do
meu programa de mestre-escola.

— Vejo ; é a segunda tentativa de lição que lhe
mereço. Permite- me que amanhã o procure para dar princípio
a um curso de educação mais regular? Augusto respondeu, sorrindo
: — É um cartel em forma ? Não sei se estarei ensaiado
para essa comédia.

— Se o género trágico lhe agrada mais, dar-se-lhe-á
esse sabor.

— Bem ouviu que se me negou o direito de tomar partido por esta causa.
Qualquer cena dessas entre nós seria pouco delicada…

amanhã.

— Pois bem, contemporizemos ; e até lá é de esperar
que algum motivo ocorra que a explique melhor… aos olhos dos outros.

— como queira ; a minha porta não se fecha a quem me procura.

E separaram-se depois de se cortejarem.

— Se me não engano — dizia consigo Henrique, em caminho
do quarto — é um verdadeiro desafio o que eu acabo de dirigir
a este rapaz. Quer-me parecer que estou sendo bem ridículo, desafiando
um mestre-escola. Se lhe deixo a escolha das armas, decide-se pela férula.
Tem graça! Veremos o que amanhã, à luz do dia, eu penso
disto tudo. Eu já não fico por mim esta noite. Estou a querer
convencer- me de que tenho andado estouvadamente e com não demasiado
cavalheirismo. Que diabo ! É que esta mulher e este criancelho são
irritantes. Ela com a sua altivez, ele com os seus brios. Mas, na verdade,
será este o Endimíão desta esquiva Diana? Caprichos feminis…
É o tal primo ingènuo e tímido .. A ociosidade da aldeia
para alguma coisa há-de dar. Mas da maneira por que ela lhe falou…
Havia certo tom de sinceridade… Astucias… O que é certo é
que estou em luta com uma mulher superior… Pois lutemos, priminha, mas com
armas leais.

Não me prevalecerei do segredo que o acaso me revelou, se segredo
existe… Veremos como ela amanhã me trata…

Esta cena deixou em Augusto uma perturbação de espírito
mais profunda.

As operações mentais, que o preocuparam toda a noite, eram
daquelas a que repugna chamar pensar. É mais uma febre intelectual,
um suceder de imagens sem ordem nem filiação, que não
conduz a nenhum resultado, que não aconselha nenhum partido, que não
esclarece, ofusca.

como se explica esta diferença entre os dois? Por um aparente paradoxo;
porque Augusto tinha mais hábitos de refletir. Quando numa vida de
episódios uniformes e aparentemente vulgares, o espírito exerce
demasiado a análise, habitua-se a estudar factos que para outros passam
por insignificantes, e descobre-lhes faces novas e desconhecidas.

Costumado assim a ligar valor a tudo, quando sucede que no decurso da vida
se lhe depara um facto de maior vulto, a confusão do primeiro momento
é inevitável. Assim como a balança de precisão,
apropriada para oscilar com pesos tenuissimos, não é a que pode
servir para os grandes pesos, também a inteligência costumada
a pesar subtis acidentes, de que se compõe o drama habitual da vida,
não é a que de súbito pode avaliar algum mais complexo
e importante.

A resolução nestes espíritos, depois de formada, é
mais tenaz; mas, enquanto se não forma, vai neles um tumulto de idéias
que se não podem analisar.

Não analisemos, pois, as de Augusto.

Madalena não sossegou enquanto não viu Henrique voltar ao
quarto, pelo mesmo caminho por onde saíra.

— Que resultará disto? — pensava ela. — Que fará
ele amanhã?….

E preciso não me acobardar, ou estou vencida… Mas que se passaria
depois que os deixei?… Veremos amanhã.

No meio desta série de pensamentos, Madalena sorriu.

É que lhe ocorrera então este pensamento : — Dizem que
nós, as mulheres, temos filtros subtis para nos tornar amadas. Pois
será mais difícil fazer-se aborrecida? como o conseguirei? XVII
N A O havia mentido a grande cintilação das estrelas na noite
de Natal.

A manhã do dia seguinte correspondeu ao augùrio meteorológico,
rompendo pura, desnevoada, com um céu azul sem manchas, e um sol de
fundir os gelos dos montes e os gelos da velhice.

O frio intenso convidava a sair, e desde pela manhã aldeões
de ambos os sexos, de camisas lavadas e roupas domingueiras, atravessavam
os campos, saltavam sebes e cancelos, desembocavam das azinhagas e quelhas
na direcção da igreja matriz, onde se deviam celebrar as festas
da Natividade.

Era dia santo entre os que mais o são ; e os dias santos na aldeia
têm uma feição solene e festiva, que mal avaliamos nós,
os que passamos a vida nos apertados horizontes das cidades, fantasiando o
campo por meia dúzia de pardais, que chilram ruidosamente nas copas
das enfezadas árvores das nossas praças e jardins.

Desde que a moda estabeleceu a lei de não solenizar o domingo nem
o dia santo, com um vestuário mais asseado, com um prato mais esquisito
na lista do jantar, com uma diversão excepcional, que todos deram em
vestir-se, comer e trabalhar nesses dias, exactamente como em todos os da
semana, perderam nas cidades os dias do Senhor a feição típica
e interessante, que por muito tempo tiveram; e quem hoje bem os quiser apreciar
tem de ir num sábado pernoitar ao campo, para amanhecer no domingo
ao som do sino, que chama para a missa matinal.

Dirá então se não parece que até o Sol tem outra
luz e que as árvores e as plantas se toucaram de flores novas, que
guardam de reserva para os dias de festa.

Este particular aspecto do domingo estava-o logo pela manhã sentindo
Henrique de Souselas, encostado à varanda do quarto em que pernoitara,
e enquanto esperava que o chamassem para o almoço.

De vez em quando a recordação das cenas nocturnas da véspera
desviava-lhe para outra ordem de reflexões o pensamento ; acudiam-
-lhe todos aqueles incidentes à memória, mas vagos e confusos,
como se tivessem sido sonhados ; chegava quase a duvidar da realidade deles.

Agora estava experimentando certa curiosidade e também receio de
saber como seria recebido pela morgadinha, e que posição deveria
tomar na presença dela.

Formava a este respeito várias conjecturas, sem se fixar em nenhuma.

Destas cogitações veio por fim arrancá-lo o toque da
campainha anunciando o almoço.

— Vamos — disse Henrique — preparemo-nos para o primeiro
embate. Apuremos a vista para num relance julgar do estado das coisas, e por
ele regular o meu plano de táctica.

E depois de uma rápida consulta ao toucador, desceu para a sala do
almoço.

Já ali encontrou reunida tôda a família do Mosteiro,
e a morgadinha presidindo à mesa e preparando o chá.

Todos saudaram Henrique, e a um tempo se informaram da maneira por que ele
tinha passado a noite.

Henrique respondeu que a tinha dormido deliciosamente ; e, falando, desviava
o olhar para Madalena, que a encontrou do modo mais natural, sem timidez nem
audácia.

Seguiram-se os cumprimentos em particular, chegando portanto a vez de cumprimentar
Madalena.

— Bons dias, prima Madalena — disse Henrique, estendendo a e
fixando-a com olhar investigador.

Madalena respondeu-lhe ao cumprimento, com sorriso que nada de afectado
nem de constrangido: — Bons dias, primo Henrique. Devem-lhe parecer
horrorosos.

nossos hábitos matinais. Foi uma indiscrição mandar
tocar a cama.

Esqueci-me de prevenir que respeitassem a índole cidadã.

— Eu é que não consentia : — disse o conselheiro
— na aldeia na aldeia. Em Lisboa também as minhas alvoradas são
mais — Tem razão, sr. conselheiro. Eu próprio não
esperei que me asse o toque da sineta. Há muito que eu namorava a manhã
da janela do meu quarto.

— Eu não pude dormir tôda a santa noite — disse
D. Doroteia.

— Estranhei a cama e a casa. Eu cá sou assim, quem me tira
do meu ninho!…

— Ó prima, não vá sem resposta — disse
D. Vitória — que também eu não pus olho, e mais
sou de casa. E por sinal que sempre hei-de querer saber quem foi o criado
que lhe deu para andar toda a noite por a quinta. Eram que horas e eu ainda
ouvia pés nas escadas de pedra. É verdade ; o primo Henrique
não ouviu ? Era mesmo junto do seu quarto.

— Não, minha senhora; eu não senti rumor.

E, dizendo isto, Henrique procurou os olhares da morgadinha, que justamente
naquela ocasião lhe servia uma chávena de chá, e que
de novo o fixou sem perturbação nem afectada indiferença.

Henrique sentiu-se embaraçado com isto. Custava um pouco à
sua vaidade este nenhum vestígio de ressentimento ou de receio que
encontrava em Madalena.

No entretanto D. Vitória continuava a comentar com D. Doroteia o
facto das passadas que ouvira de noite.

— Deixe-se disso, prima. É porque não sabe o que vai.
São coisas destes criados. Não faz idéia ! É uma
pouca-vergonha ! É preciso paciência de santa para os aturar.

— Ângelo — disse a morgadinha ao irmão —
entretido como estás a conversar com as crianças, esqueces-te
de servir a Criste, que também se esquece de se fazer lembrar. Que
distracções por aqui vão ! Ângelo reparou para
a prima, que em todo aquele tempo estiverà calada e caída em
uma daquelas abstracções, a que ultimamente era sujeita.

— Eu não sei que tem hoje esta Criste — disse Angelo.
— Julgo que lhe fez mal o frio da noite de ontem.

— É verdade, até está falta de cor ! Ora queira
Deus que não seja coisa de cuidado. Dói-te alguma coisa, menina
? — perguntou D. Vitória, — Não, mama — respondeu
Cristina.

— Ó meninas, vocês também são umas desacauteladas.
Eu bem te dizia ontem, Criste, que levasses mais roupa. Tudo é não
faz mal, tudo é não tem dúvida, e depois é que
vem o queixarem-se.

Isto disse a senhora de Alvapenha e muitas coisas mais neste sentido. Estas
reflexões fizeram Henrique desviar os olhos para a pessoa que era objecto
delas.

Cristina estava efectivamente pálida e pensativa ; e desta cor e
desta expressão recebia uns ares de poesia melancólica, que
a tornavam mais graciosa.

Henrique notou pela primeira vez a beleza desta criança, em que mal
fixara a atenção até ali, e pela primeira vez se demorou
a observá-la com alguma insistência.

— Ê interessante esta pequenita — pensava ele consigo.

Cristina ia a levantar os olhos para responder a D. Doroteia, quando encontrou
os de Henrique a fitá-la. Assomou-lhe então às faces
um mal pronunciado rubor, a palavra resolveu-se num sorriso e os olhos baixaram-se
de novo.

— Há-de ser adorável esta mulher — pensou desta
vez Henrique, vendo-a sob novo aspecto.

O conselheiro disse, sorrindo : — Ora, que estão a dizer ?
A Criste até está com umas cores muito bonitas. Triste? Melancolías
dos dezoito anos nunca me deram cuidados.

Provavelmente está agora nalgum episódio sentimental no romance
da sua imaginação. Nao sondemos aqueles mistérios, mana.
Já não é para nós compreendê-los, prima
Doroteia.

Todos riram do dito do conselheiro, o que redobrou o enleio de Cristina.

A morgadinha, a quem nao passara despercebida a impressão que a prima
desta vez parecia ter causado a Henrique, quis aproveitar o ensejo que havia
tanto procurava, e para isso propôs que se desse uma volta pela aldeia
antes da missa do dia. Esperava ela que as atenções de Henrique,
durante o passeio, seriam para Cristina se não decorresse o tempo preciso
para que se dissipasse no espírito do volúvel rapaz a impressão
que o dominava.

A manhã convidava à excursão campestre. A proposta
da morgadinha foi acolhida com aplauso. O conselheiro prometeu acompanhá-
los até à casa do ervanário, a quem tinha de visitar
aquela manhã.

Levantaram-se todos da mesa, e à excepção de D. Vitória
e D. Doroteia, todos saíram.

A morgadinha, sob não sei que pretexto, deixou-se ficar um pouco
atrás para dar tempo a Henrique de oferecer o braço a Cristina,
o que efectivamente aconteceu.

— Bem — disse Madalena consigo ao vê-los — agora
que os anjos bons de um e de outro se convençam da obra meritoria que
fazem entendendo-se.

E, aproximándose do pai, Madalena apoiou-se-lhe no braço.

Ângelo ia com as crianças adiante.

Aproximemo-nos nós de Henrique e de Cristina, para ver se os anjos
bons deles ambos acederam ao convite de Madalena.

— Não há prazer que se compare ao de um passeio assim
pelos campos, numa manhã como a de hoje, e em companhia tão
amável — dizia Henrique, procurando aquilatar o espírito
da sua partner, num certame de galantaria, fora do qual não concebia
que se pudesse temperar uma paixão.

Pobre rapariga! Que eloqüentes e apaixonadas respostas lhe estava porventura
ditando a alma! mas o enleio da timidez fechava- -lhe os lábios, não
lhe deixando formulá-las; apenas pôde responder: — Está
muito agradável a manhã, está ; nem parece de Inverno
! — Pelo que vejo, não gosta do Inverno ? É natural em
uma senhora isso. Faltam-lhe as flores e as aves, suas irmãs. Eu prefiro
o Inverno, porque prepara a vida íntima, as cenas ao canto do fogão,
as leituras em comum, e traz-me à idéia as imagens de um viver
a que a fantasia de todos sorri ; de todos os que têm um resto de coração
; refiro-me as imagens de uma família.

Não há quem sustente mais tremendas lutas do que os tímidos.

A alma revolta-se neles, com toda a violência dos seus instintos,
contra não sei que mistério de temperamento, que lhes reprime
as expansões.

Na aparência é fraqueza e serenidade, mas no íntimo
há esforços realizados, que os fortes nem concebem sequer.

Cristina encobria no seu enleio uma destas lutas. Os lábios só
puderam responder: — Na cidade o Inverno é mais fácil
de passar, julgo eu ; porém na aldeia…

— Na aldeia e em tôda a parte se pode gozar a felicidade que
eu imagino. Não é fora das portas de casa que devemos procurar
os elementos para instituir a nossa ventura, e por isso… Mas a prima há-de
estar admirada de ouvir falar assim um homem que completou os seus vinte e
sete anos sem família. Não é verdade? Cristina só
pôde sorrir: — Mas que quer? Quem muito idealiza arrisca-se a
morrer apaixonado do ideal e abraçado à pior das realidades.
É a conseqüência legítima e triste do aspirar demasiado.
Até hoje tenho encontrado na vida mulheres formosas, amáveis,
interessantes ; porém nenhuma que satisfizesse às necessidades
do meu coração, de quem me afirmasse a consciência poder
esperar a realização do meu sonho. Perdoe-me falar-lhe nisto,
priminha ; é uma ousadia que tomei, porque um instinto me disse que
possui no coração bastante bondade para ma perdoar.

— Está a gracejar ? — disse Cristina, em quem redobrava
a turbação, e que, ao mesmo tempo que estava sendo feliz, desejava
ver interrompida a sua felicidade : contradições próprias
dos tímidos.

— A prima é muito moça — continuou Henrique, que
não desesperava aínda de animar esta Galateia — e talvez
por isso lhe causará estranheza este meu modo de falar. Um dia virá,
porém, em que o compreenderá melhor. Se então encontrar
um desconfortado como eu, peço-lhe que tenha misericórdia dele
e o salve do desalento, em atenção a quem a conheceu numa época,
em que só podia ver em si, priminha, a aurora de uma esperança
que já não tinha de luzir para ele.

— Mas… salvá-lo!… como salvá-lo?!…

— como as mulheres salvam ; amando.

— Bem digo eu que está a gracejar — balbuciou Cristina,
com voz trémula.

— Tem o defeito da inocência — disse Henrique para si.
— Não se lhe tira uma resposta de jeito.

Nisto chegaram defronte da porta, por onde Madalena tinha saído da
quinta na noite passada.

— Agora deixo-os por aqui — disse o conselheiro — irei
encontrá- los à igreja. Vou arrostar com a fera silvestre ao
próprio covil.

— Meu pai, lembre-se do que lhe recomendei — disse Madalena.

— Sossega, filha ; serei de cera. Até logo.

— Até logo.

E o conselheiro tomou a direcção da casa do ervanário.

— Era tempo ! — disse Henrique consigo. — A minha eloqüência
arrefecia na proximidade deste gelo.

A morgadinha havia quase adivinhado tudo ; estudando as fisionomias de Cristina
e de Henrique, conheceu que se não haviam entendido.

— Ainda não ! — murmurou ela. — Pobre Criste !
como se deve estar odiando a si mesma! como há-de esta criança
vencer este obstinado? Mas não perco ainda as esperanças.

Henrique, na presença destes sítios, recordou-se da cena da
véspera e tentou outra vez experimentar Madalena.

— Esta porta é da quinta do Mosteiro, não é,
prima? — É — respondeu Madalena, imperturbável ;
e voltando-se para Angelo : — O que te faz lembrar esta porta, Ângelo?
— perguntou ela.

— Que muitas vezes por aqui saímos, eu e vós ambas,
já de noite, e sem a tia saber, para irmos ter com o tio Vicente, que
voltava da caça das borboletas.

— Fica perto a casa dele ? — perguntou Henrique.

— É ali, logo ao dobrar daquela esquina — respondeu Angelo.

Henrique pensava: — Seria para provocar uma explicação
que ela fez a pergunta ? Esta mulher é admirável! Não
lhe sei resistir.

E já lhe não restavam vestígios da impressão
causada por Cristina.

— Este ervanário — continuou ele em voz alta —
deve, pelos seus hábitos excêntricos e até pelo solitário
do sítio em que vive, ter aqui na terra certa famazinha de feiticeiro.

— E tem — afirmou Madalena — mas de feiticeiro bem intencionado.

— Devem correr muitas fábulas a respeito dele, do seu viver.

— É certo que poucos se atrevem a passar aqui de noite, apesar
de todo o bem que ele faz de dia.

— Ah ! Então temem-se de passar aqui de noite !… Pobre homem
!…

O que lhe valerá é algum espírito forte que ainda por
aí haja na aldeia.

Que diz, prima Madalena? haverá? Antes que a morgadinha respondesse,
Angelo disse : — À excepção de Augusto, que ali
vem quase todas as noites, ninguém mais o visita.

— Ah!… O Sr. Augusto vem ali quase todas as noites?! Madalena lutava
para reprimir a impaciência.

— Lá me parecia que havia de existir algum de coragem. Para
tanto não chegava o seu animo, não, prima? — Tanto chega,
que já muita vez ali tenho ido só, e a altas horas — respondeu
Madalena com a maior firmeza.

— Sim ? ! E não tem medo ? — De quê? De almas do
outro mundo? não tenho crença para tanto. De malfeitores? não
os há aqui. Nesta terra todos me respeitam, nem com uma suspeita me
ofendem — disse a morgadinha, acentuando com expressão as últimas
palavras.

Henrique acudiu imediatamente : — Longe de mim duvidá-lo.

E calaram-se por muito tempo.

Pela sua parte prosseguia o conselheiro no caminho para casa do ervanário.
Cruzou-se com vários homens, mulheres e crianças de aspecto
doentio e sofredor, que voltavam de consultar o velho a respeito dos seus
males ; eram mancos, ictéricos, escrofulosos, crianças de aspecto
raquítico e enfezado, os mais melancólicos exemplares do infortúnio
humano.

— São os peregrinos que vêm de Meça — disse
consigo o conselheiro.

– Pelo que vejo, a clientela do meu velho amigo ervanário mantém-
se fiel como dantes. Valha-nos Deus, que o meu severo censor não trata
com muito respeito o código.

Entrou enfim a porta do quintal.

Poucos passos andados encontrou-se com o Zé-Pereira, que vinha virando
e revirando nas mãos um papel e monologando, segundo o costume : —
Oral ora! ora!… Estragar o vinho de nosso Senhor com esta mexerufada. Isto
até era um pecado. Nessa não caio eu! O conselheiro interrogou-o
sobre as causas daquele aranzer.

O homem, depois de cortejar, respondeu mostrando uma receita que lhe dera
o ervanário no virtuoso intento de lhe fazer aborrecer o vinho, causa
dos seus males. A receita era extraída da Polianteia, e tinha por ingredientes
uma cabeça e sangue de carneiro, cabelos de homem e fígado de
enguia ; mas o doente ia pouco disposto a experimentar- lhe a eficácia.

Depois de se separar do Zé-Pereira, o conselheiro seguiu por uma
rua de limoeiros, e como homem a quem era familiar a topografia do quintal.
Cedo chegou à vista do ervanário, que dera audiência sub
tegmine fagi.

Estava sentado à borda de um tanque, a que uma dessas árvores
dava sombra.

O conselheiro saiu enfim de trás dos limoeiros e veio ter com ele.

Ao rumor dos passos, Vicente voltou a cabeça, e, depois de reconhecer
quem era, retomou a sua primeira posição e ficou silencioso.

— Bons dias, Vicente — disse o conselheiro com familiaridade
e parando defronte dele.

— Bons dias, Manuel — respondeu o ervanário, deixando-se
ficar sentado.

— Saía agora daqui um homem, que julgo será rebelde
a toda a tua medicina. Padece de mal que se não cura.

— Os vícios são enfermidades mais rebeldes do que os
achaques do corpo, são.

— Já que tu não apareces no Mosteiro, como dantes, para
solenizar connosco as festas do Natal, vim eu ver-te.

— Obrigado.

— A tua misantropia vai-se azedando, Vicente — continuou o conselheiro,
sentando-se à beira do tanque. — Cada vez te estás a sequestrar
mais dos homens, cada vez mais os aborreces.

— Eu não aborreço os homens, enganas-te. Não
os aborrece quem passa a vida a procurar os meios de aliviar os padecimentos
dos seus semelhantes. Estou velho, isso sim; e, como velho, encontro já
no mundo pouca gente com quem me entenda. As idéias do meu tempo passaram.
Por isso deixo-me ficar em casa a pensar nele.

— És um homem singular ; um verdadeiro filósofo. Ora
diz-me : e em que cogitas tu, quando assim passas uma manhã inteira,
sentado nesse banco, com os joelhos ao sol, os braços cruzados, e os
olhos no chão? — No passado. Pois não to disse já?
O domingo reservo-o eu para me recordar. Aí está que há
pouco, quando aqui me vim sentar, ao ouvir os repiques na igreja, lembrei-me
de que era dia de Natal, e o meu pensamento voltou quarenta anos atrás
a um dia igual ao de hoje. Lembras-te dele," Manuel? — Do dia de
Natal de há quarenta anos ? Não.

— Lembro-me eu. Faz hoje mesmo quarenta e dois anos que, mais cedo
do que estas horas, vieste ter comigo aqui a casa. Tinhas pouco mais ou menos
a idade que hoje tem teu filho Ângelo. Meu pai saíra ; julgámos
nós ambos boa a ocasião de levar a cabo um projecto que havia
muito tempo trazíamos na cabeça. Crescia a um canto do muro,
além, à beira do poço, uma pequena faia que ali não
podia durar muito tempo ; meu pai todos os dias a ameaçava com a enxada
e a custo a tínhamos defendido. Resolvemos transplantá-la. Deitámos
mãos à obra essa manhã, e, no fim de alguns segundos,
estava a faia mudada. Trouxemo-la para onde a deixassem em paz os hortelões,
e para junto da água que ela já tinha procurado. Conheces a
árvore hoje? — Não — disse o conselheiro, olhando
em roda, como à procura de algum pequeno arbusto.

— Olha que há quarenta anos; a planta é hoje árvore.
É esta a que me encosto.

O conselheiro levantou então os olhos para os ramos vigorosos da
árvore, como se lhe parecesse impossível ter sido removida para
ali por suas mãos.

— É singular como os anos correm, e as árvores crescem
depressa — disse ele, distraídamente.

— Depois da nossa tarefa, sentámo-nos — prosseguiu o
ervanário.

— Tu ficaste, exactamente como estás agora, à beira
deste tanque.

Então, lembra-me bem; olhando para os ramos tenros deste arbusto,
que ainda não sabíamos se viveria, tu disseste : « Fizemos
uma obra que durará mais do que nós ». E eu respondi :
« Quem sabe ? O machado vem quando menos se espera ».

— como te lembras bem dessas coisas ! — disse o conselheiro,
sorrindo constrangidamente, porque não agourava bem do exordio que
abrira a entrevista.

— Ai, eu tenho boa memória! Houve um momento de silêncio,
que Vicente interrompeu sùbitamente, dizendo : — Mas afinal o
que te trouxe hoje aqui? O conselheiro respondeu com resolução:
— Ver-te, como disse, e ao mesmo tempo falar-te de um objecto grave.

— Sim? E comigo é que vens tratar os objectos graves? —
Porque não ? sempre foste homem de bom conselho.

— Nem sempre, Manuel, ou nem sempre pensaste assim.

— Não poderás dizer que deixasse alguma vez de te respeitar.

Os nossos gênios diferem, os nossos diversos hábitos da vida
ensinaram- nos a pensar diversamente a respeito de muitas coisas. Daí
procedem divergências naturais, que contudo nos não obrigam a
deixar de nos estimarmos, julgo eu.

— Bem, então dizias tu que vinhas?…

— Trata-se de um negócio de muita importância, Vicente.

— Diz.

— Responde-me primeiro : tens ainda ânimo para sacrifícios
? — Pouco tenho que sacrificar.

— Tens, e é um sacrifício doloroso.

— Acaba.

— Trata-se de te desapossar desta casa e deste quintal, para abrir
por aqui a estrada em projecto.

O ervanário, contra a expectativa do conselheiro, acolheu sem surpresa
estas palavras, e respondeu, com certa ironia: — E para que me vens
consultar? Posso eu opor-me a isso? Avisas-me para eu me arredar a tempo da
sombra destas árvores, mais velhas do que eu, a fim de que não
me esmaguem ao caírem decepadas? Ês generoso, Manuel, em teres
ainda em conta a vida de um homem inútil.

— Aí estás já com as tuas recriminações.
Acredita que eu…

— Não mintas, Manuel, não mintas. Ias dizer que não
tinhas tomado parte neste projecto. Tem coragem e lealdade, homem, e diz tudo.

Entre mortificares o coração de um velho e pobre amigo e ofenderes
os interesses de algum rico e poderoso influente, tomaste o primeiro partido
; e, como os diferentes hábitos de vida te ensinaram em muitas coisas,
como dizes, a pensar diferente de mim, não deste a isso o nome de ingratidão.

— Ouve.

— Sê franco, que eu te ouvirei.

— Pois bem, serei franco. Sim, confesso-to; era indispensável
que esta estrada se fizesse. Bem o sabes. Estava nisso empenhada a minha palavra
e a minha honra. Há muito que os meus adversários me fazem guerra
por causa dela. Trabalhei e consegui, apesar desta situação
política me ser contrária. Três traçados se ofereciam.
Um sacrificava uma grande parte dos bens de meus filhos, de Ângelo que
não é muito rico, que está no princípio da existência,
e que só Deus sabe se no decurso dela não teria ocasião
de maldizer a improvidencia de quem devera olhar por os seus interesses. Querias
que o sacrificasse? Sabes que os Brejos, vendidos hoje, nada valiam; e que
dentro em pouco tempo, convenientemente trabalhados, podem ser de um valor
importante. Querías que o fizesse? ou não me desculpas por o
não ter feito? — Fizeste bem — respondeu o ervanário.

— O outro traçado cortava os bens do brasileiro Seabra. Conheces
este homem? Um elemento que, nas mãos de quem lhe saiba lisonjear e
conduzir a vaidade, pode ser de utilidade para esta terra ; mas também
uma cabeça que, entregue a si, não faz coisa de jeito. O homem
opunha-se formalmente a esse traçado ; se o não atendesse, declarava-
se, por despeito, no campo contrário ao meu. Se vencia (e algumas armas
tem para lutar), imagina a calamidade que seria para este círculo o
confiar àquelas mãos os seus destinos ; vencido, era perder
a esperança de tirar dos bens fornecidos cofres, que o homem possui,
alguma coisa mais útil do que um sino para a igreja ou vestimentas
novas para as imagens dos altares. Eu ando a catequizar o homem, para ver
se consigo dele uma casa para escolas, melhor do que esse albergue que aí
temos, e um estabelecimento sericícola; se o desatendesse, lá
iam as esperanças destes melhoramentos tão úteis, e que
o mais que nos poderão custar é um diploma de visconde ou uma
comenda. Sei que te não agradam estes meios, porém olha que
em política são dos mais inocentes que podem empregar-se. Já
vês pois que o segundo traçado tinha desvantagens para o círculo,
por cujo interesse me empenho deveras ; podes crê-lo. Resta pois o terceiro
traçado que, lealmente o confesso, não era o melhor, nem científica
nem economicamente considerado ; eu sabia de mais o que valia para o teu coração
o sacrifício que se te vinha exigir ; eu mesmo possuo memórias
ligadas a estas árvores, e não há homem que, aos cinqüenta
anos, veja sem repugnância desaparecerem os vestígios dos seus
tempos de infância e de juventude ; mas sabia também que tu eras
uma alma generosa e heróica, e que não duvidarias comprar, a
custa das tuas dores e saudades, um melhoramento para esta terra que tanto
amas. Esta estrada, prometida há tanto, e concedida ainda agora de
má vontade, corre risco de se não fazer, se, quanto antes, não
principiarem os trabalhos; a menor oposição dos proprietários,
o menor embargo dilatòrio, podem ser motivo para o seu adiamento, porventura
indefinido. Por isso também me animei, porque contava contigo, Vicente.
Enganei-me ? O ervanário estava cada vez mais pensativo.

— Pensaste bem. A velhice é assim ; e eu queria dar mais importância
a dois anos de vida que me restam, do que à vida nova que vai haver
para esta terra. Fizeste bem.

— Esperava ouvir isso mesmo de ti, Vicente. Além de que, dissipa
as apreensões com que estás; em toda a parte terás árvores…

O ervanário interrompeu-o: — Se não entendes o amor
que tenho a estas, não faças por consolar- me, Manuel, porque
me afliges mais.

— Porém deixa-me dizer-te, Vicente, que no Mosteiro, ou em
qualquer das nossas propriedades, tens sempre um lugar vago à tua espera,
tanto à mesa, como ao canto do fogão, e amigos que te receberão
com prazer.

— Não receio ficar sem abrigo, Manuel. Em cada choupana de
pobre teria tecto e pão. Conto com a colheita de algum bem que semeei.

— Eu farei com que o contrato da expropriação seja o
mais favorável possível. Vejamos, em quanto avalias…

— Não falemos nisso. A avaliar por o que eu lhe quero, ninguém
mo pagaria ; a não atender a isso, tudo será pagá-lo
bem.

— Mas…

— Não falemos nisso, homem. Tenho medo de que estas árvores
me oiçam propor o preço por que as vendo. Se alguma coisa posso
pedir-te, então…

— Tudo. Diz em que te posso servir.

— Peço-te que decidas a pretensão daquele pobre rapaz,
de Augusto ; que te lembres um dia de que aqui na aldeia há um homem,
que tem vinte anos, um coração e uma cabeça como tu sabes,
e que de ti e dos teus, da gente que dá e vende graças, honras
e empregos, só quer um favor… mais uma justiça; lembra-te
disso.

— Falas do despacho efectivo para professor? É uma coisa facílima;
mais que ele queira… E antes ele quisesse mais; esse rapaz perde por modesto.
Acredita, às vezes é mais fácil servir os ambiciosos.

Nem eu sei o que tem empatado esse negócio. É certo que há
um competidor, por quem alguém trabalha ; mas não importa ;
conta com isso, como negócio concluído.

— Enquanto não vir…

— Hoje mesmo escrevo para Lisboa. É só isso que pedes
? Vè lá.

— E que me deixes agora só.

— E não me ficas querendo mal, Vicente ? — Não.
Estou a acreditar que tiveste razão, ou pelo menos que supões
que a tens. Basta-me isso para te perdoar.

— Ver-te-ei no Mosteiro antes de partir ? Depois do dia de Reis volto
a Lisboa, e só tornarei para a campanha eleitoral.

— Não prometo.

— Adeus.

O conselheiro estendeu a mão ao ervanário, que não
retirou a sua, e partiu.

— Está feito ! — ia pensando o conselheiro à saída
— não foi tão difícil como julgava. Está
razoável o homem. Quem o viu e quem o vê ! O que faz a idade
! Bem ! Agora é apressar os trabalhos para antes das eleições,
a ver se acalmam algum fermentozito de oposição, que por aí
possa haver, que pequeno será.

Nestas cogitaç&otildeotilde;es chegou à igreja. Madalena esperava-o
no adro, — Então? — perguntou ela, com ansiedade.

— Tudo está remediado ; entendemo-nos perfeitamente —
respondeu o conselheiro com manifesta satisfação.

— Deveras ! Eu logo vi que o pai havia de ceder ! — exclamou
Madalena, com alegria.

— como ceder? — tornou o pai.—Ele é que foi mais
condescendente do que eu esperava. Não opôs a menor resistência,
nem se queixou muito amargamente.

— Pois consentiu ? ! — Sem grande custo, ao que parecia.

— Oh meu Deus ! meu Deus ! agora é que eu temo deveras. Pobre
tio Vicente ! assusta-me isso que diz, meu pai ! — Ora vamos ; a tua
imaginação é que te ilude. Mas deixa-me aqui falar com
o morgado das Perdizes e com o brasileiro, que julgo que têm que me
dizer. Vai para a igreja, que eu vou já ter convosco.

E separando-se da filha, o conselheiro dirigiu-se ao grupo, era que estavam
aquelas duas notabilidades.

— Dou-lhes uma boa nova, meus senhores — disse o conselheiro,
depois de cumprimentá-los — dentro em pouco temos os alviões
a trabalhar cá na terra. Estive agora com o Vicente ; receei resistências
a parte do homem, que nos obrigassem a expropriações judiciais,
sempre demoradas. Mas não, achei-o nas melhores disposições
; e sim, dentro em poucos dias…

— Mas, para diante da casa dele, talvez os outros proprietários
o sejam tão dóceis — lembrou o brasileiro.

— Bem sabe que são terras insignificantes, cujos possuidores
m pouco se contentam.

— Os antigos possuidores talvez se contentassem com pouco —
disse o brasileiro, sorrindo velhacamente — mas os modernos…

— Pois mudaram de senhorio ? — Por contrato de venda assinado
e legalizado ontem mesmo.

— E quem os comprou ? — Este seu criado.

O conselheiro teve vontade de o esganar ; conteve-se, porém, dizendo
: — Tanto melhor ; quero-me antes com proprietários ilustrados
independentes, que compreendam a importância dos melhoramentos públicos,
do que…

— Isso são histórias, meu caro amigo; em primeiro lugar
estão os melhoramentos particulares. Eh, eh, eh.

— Decerto que não há-de querer pôr estorvos a
uma empresa como esta.

— Estorvos, nao, mas enfim… Amigos, amigos, negócios à
parte.

O conselheiro sorriu, enquanto que interiormente mandava ao Diabo o espírito
mercantil e interesseiro do seu antigo condiscípulo.

— Pode-me dar duas palavras, sr. conselheiro ? — requereu do
ado o Sr. Joãozinho das Perdizes.

— Mil que pretenda — acudiu o conselheiro ; e tomando o braço
o morgado afastou-se do grupo.

— Eu tenho a pedir-lhe um favor — principiou o morgado. —
Eu, como sabe, interesso-me muito pelo mestre-escola do Chão do Pereiro,
que quer vir ensinar para aqui. Este negócio está empatado,
como sabe ; por isso queria que o senhor escrevesse para Lisboa a este respeito.

— Pois sim, mas… — fez-lhe notar o conselheiro — não
sabe que é Augusto o outro concorrente? — Então que tem
isso ? — Não lhe parece que seria uma injustiça ? Um rapaz
de merecimento, como ele é, aqui da terra, que já exerce o emprego
há três anos e com tanta inteligência? e havíamos
de…

— É verdade — atalhou o outro — pois isso é
verdade, mas…

Enfim, ele que passe para outra parte.

— Mas se o rapaz quer isto ? — Quer ! quer !… também
o outro quer. Ora essa é fresca. E vamos, sr, conselheiro, a gente
também não há-de estar só a fazer favores sem
os receber quando os pede. com este já sao três. Pedi-lhe para
o meu tio abade ser cónego ; foi tanto cónego como eu. Pedi
umas caudelarias lá para a freguesia… estou à espera delas.,.
Ora isto não se faz. O senhor sabe que eu lhe tenho vencido as eleições
com a gente da minha freguesia, que vai para onde eu a levo. Pois agora não
sei o que será. A não se decidir este negócio depressa…

— Ora não será isso motivo para tanto.

— com certeza que é — insistiu o Sr. Joãozinho.
— Então digo- -lhe mais : a mim já me falaram. Há
aí alguém que não desgostaria dos votos de que eu disponho,
e votar pelos que já estão no poleiro não sei se lhe
diga que não é pior.

O conselheiro, mortificado como estava, disse, sorrindo : — Não
posso convencer-me de que o meu amigo seja capaz de fazer isso por qualquer
causa que possa dar-se. Mas deixe estar que, em relação ao que
me diz, eu verei.

— Mau! Não é «eu verei». Então falo-lhe
claro. Se daqui até às eleições não estiver
feito o despacho, não conte comigo.

— Mas quem lhe diz que não há-de estar ? — Pois
lá isso…

— Sossegue. Hoje mesmo escrevo para Lisboa.

— Bem.

O sino tocava a chamar para a festa.

Terminou o diálogo.

— O pior — ia pensando o conselheiro — o pior é
que prometi ao Vicente que apressaria o despacho de Augusto. Não tem
dúvida; é tão magra a posta, que não vale a pena
disputá-la. Para Augusto arranjarei alguma coisa melhor. É preciso
ter ambição por ele. Se ele quisesse ir para Lisboa?… Mas,
pelo que me disse este basbaque, já se maquina no campo contrário
! Hei-de sondar o Tapadas a ver o que sabe.

Estas conferências com o brasileiro e com o morgado tinham mortificado
o pai de Madalena a ponto de não conter um movimento de impaciência,
assim que viu que o Pertunhas se aproximava dele, e, à força
de cortesias e cumprimentos, lhe pedia um momento de atenção,
Sabidas as contas, tratava-se do tal emprego de recebedor, que o latinista
com tanto ardor namorava.

O conselheiro descarregou sobre este pouco influente eleitor o mau humor
que os outros lhe causaram, e respondeu desabridamente: — Ora adeus
! O senhor é uma sanguessuga que se não farta de chupar. Contente-se
com o que tem ; vá conjugando o laudo, laudas, que outros, com mais
merecimentos, nem isso conseguem ; e deixe-me, O mestre Pertunhas ouviu com
humilde sorriso a admoestação, e curvou-se para deixar passar
o conselheiro.

Mas lá consigo dizia: — Sim? Ele é isso.?! Pois veremos
se a sanguessuga te não pica.

E entrou também para a igreja, com não muito cristãs
disposições de espírito.

XVIII

DO dia de Natal ao dia de Reis passou o tempo para o conselheiro em visitas
às freguesias e aos influentes daquele círculo eleitoral, visitas
a que o acompanhava Henrique de Souselas, que tomava parte, com gosto, nestas
excursões políticas.

Em casa do Sr. Joãozinho das Perdizes, na freguesia de Pinchões,
passaram eles um dia. Nos solares do morgado tudo era desordem e desmazelo,
a cada passo se tropeçava num podengo ou se trilhava a cauda a um perdigueiro.
Henrique sustentou uma verdadeira luta com o proprietário, para esquivar-se
a engolir todas as enormes doses de carne de porco e de vinho, com que ele,
à viva força, o queria regalar.

No quarto em que os hóspedes pernoitaram estavam amontoados no meio
do chão uns poucos de alqueires de milho e de castanhas, e aos pés
dos leitos dormiam enroscados dois galgos, que eles não conseguiram
desalojar, e que tôda a noite os incomodaram com latidos ao menor rumor
que escutavam fora.

Henrique lamentou a influência eleitoral do morgado das Perdizes,
que o obrigava a esta noitada.

Outro dia jantaram em casa do brasileiro, que lhes mostrou tôda a
sua propriedade, tendo Henrique de obrigar a sua eloqüência a esgotar-
se em afectadas exclamações, diante dos prodígios de
mau gosto reunidos ali.

As estátuas de louça, os alegretes de azulejo, os arcos feitos
de cana, por onde se entrelaçavam magras trepadeiras ; um pequeno modelo
de fragata brasileira com tripulação de altura dos cestos de
gávia, flutuando num tanque circular; uma gruta estucada de azul e
com assentos de palhinha, para onde vinha 1er as folhas o Sr. Seabra, eram
as principais maravilhas do jardim. Nas salas mobília rica, mas vulgar
; litografías coloridas em custosas molduras douradas ; bordados, diplomas
de sócio de não sei quantas sociedades brasileiras ; tudo encaixilhado,
e no lugar de honra a estampa das capelas do Bom Jesus de Braga. À
impertinencia de admirar estas preciosidades acrescia a de ouvir e de ter
de achar graça a um papagaio que cantava o hino brasileiro.

Henrique saiu de lá exausto de paciência.

com estas visitas políticas, passou, como dissemos, todo o período
das festas do Natal, sem que entre as personagens da nossa história
ocorresse coisa que mereça nota.

Entre Madalena e Henrique mantinha-se a mesma luta moral ; nem um nem outro
recordavam declaradamente a cena nocturna, em que tão acerbas palavras
se haviam trocado. Augusto não voltara ao Mosteiro dssde então.
Era tempo de férias para as crianças, o que fazia natural esta
ausência, contra a qual Angelo em vão protestava.

Madalena nunca porém aludia a ela. Cristina passava o tempo, querendo-
se mal por a sua timidez, e de quando em quando amuando de ciúmes com
Madalena, que ria deles e os dissipava com uma palavra.

Chegou enfim o dia de Reis, aquele em que devia realizar-se no pátio
do Mosteiro o auto que, havia muito, mestre Pertunhas andava ensaiando.

Henrique e D. Doroteia vieram jantar ao Mosteiro, e ficaram para assistir
à solenidade popular.

Já por vezes temos ouvido falar neste auto, que prometia ser coisa
memoranda nos anais dos festejos públicos da terra. Havia meses que
o Sr. Pertunhas esgotava os tesouros da sua ciência dramática
a ensaiá-lo, e vimos com antecipação andar Ermelinda
decorando a parte da Fama, que lhe competia desempenhar.

Estes autos e entremezes, que nas aldeias se representam, são como
os restos grosseiros que da nossa arte primitiva a varredura estrangeira deixou
ficar pelo chão, Não obstante as extravagâncias e as modulações
toscas e risíveis de muitos, é certo que nos mostram que a Euterpe
rústica tem conservado mais fiel a índole peninsular, do que
sua irmã, a civilizada musa das cidades, a cujo paladar já sabem
mal as popularíssimas redondilhas, tão apreciadas ainda na Espanha.

Em ocasiões de festa levanta-se em qualquer terreiro ou pátio
de quinta um tablado ; vêm adorná-lo as mais vistosas colchas
de chita, das quais também se formam os bastidores; alugam-se nos depósitos
mais modestos da cidade ou vila próxima vestidos de reis, de príncipes
e de guerreiros, em que se combinam os elementos de épocas e de nacionalidades
disparatadas, e perante uma platéia rústica, ao ar livre, como
no teatro antigo, desfiam-se em cantada choradeira as sentimentais peripécias
da vida de qualquer santo, ou, entre gargalhadas, os episódios cómicos
de algum enredo popular.

A circunstância de ser o auto desta vez desempenhado no pátio
do Mosteiro, e que fora em parte por deferência ao deputado do círculo,
em parte por conveniência dos empresários, pela apropriação
do terreno a todos os efeitos, e pela ajuda de custo, que sempre em tais casos
recebiam de S.a Ex.ª, essa circunstância, dizemos, aumentava o
número de espectadores.

Das janelas do Mosteiro gozava-se, como de um camarote de frente, do espectáculo
popular.

O terreiro era destinado para o povo, em grande parte atraído também
pela pipa de vinho, que o conselheiro nestes dias mandava Pôr à
disposição dos seus representados.

Desde a véspera havia grande agitação e azáfama
no pátio do Mosteiro. Os artífices levantavam o tablado cênico;
pregavam e despregavam tábuas ; serravam barrotes ; os directores,
e à frente deles o infatigável e imaginoso Pertunhas, davam
ordens contraditórias ; e os curiosos estacionavam em magotes, dificultando
tudo, censurando o que viam fazer, e aventando alvitres absurdos.

Herodes, o pai de Ermelinda, andava em brasas. Aproximava-se a hora dos
seus triunfos. O gênio dramático palpitava nele, cheio de vida
e entusiasmo.

Ia mais uma vez pousar nos ombros o manto da realeza judaica; brandir a
espada infanticida, carregar aqueles sobrecenhos com que fazia chorar as crianças
e estremecer as mães ; ia ressuscitar Herodes, o déspota legendário.

Trabalhando e suando, resmoneava os versos do seu papel de tirano e insensìvelmente
fazia gestos e esgares prometedores de efeitos cênicos futuros.

Os seus colegas eram menos ardentes pela arte. O Herodes olhava- os com
a sobranceria de um Taima, e muitas vezes lamentava sinceramente a ausência
de vocações dramáticas que auxiliassem a dele.

E não sorriam os leitores a esta veleidade artística do recoveiro
; ‘ ali havia fundamentos para ela. O Cancela era o minério de um trágico,
deixem-me assim dizer. No meio de uma escória de rusticidade continha
abafado mineral de lei.

Tivessem sido outras as contingências da sua vida, vê-lo-iam
porventura arrebatar platéias inteiras com as revelações
do gênio, que às vezes num grito, num sorriso, num gesto se manifesta
; mas ainda assim inculto, não mentia nele o verdadeiro entusiasmo,
o sentimento da arte que lhe afogueava as faces e os olhos, e lhe animava
o gesto no calor do desempenho ; não mentia aquela embriaguez que lhe
causavam os aplausos da multidão. Não há verdadeiro gênio
artístico que se não namore do público, embora o saiba
caprichoso, inconstante e ingrato. O homem, indiferente aos aplausos das turbas,
nunca será poeta nem artista de verdadeira inspiração.
O amor vivo da glória adiantou a meio caminho os empreendedores desta
nova conquista de velocino.

Ermelinda, essa tremia com a comoção de artista nove!, à
lembrança do espectáculo, em que pela primeira vez ia entrar.

As senhoras do Mosteiro, ou antes Madalena e Cristina, tinham querido encarregar-se
da toilette da Fama.

Logo de manhã fora, pois, a pequena Linda para o Mosteiro, e passava
das mãos de Madalena para as de Cristina e das desta para as daquela,
e sempre com recato preciso para que ninguém mais lhe pusesse os olhos,
pois que pretendiam reservar para a ocasião a surpresa tôda.
Contra a curiosidade de Angelo é que mais tiveram que lutar.

Logo depois da uma hora da tarde começou a povoar-se o pátio
de espectadores, e os actores a reunirem-se na parte do tablado, oculto por
as colchas de chita aos olhares da multidão.

Principiava a ensaiar os instrumentos o pessoal da filarmónica, dirigida
por mestre Pertunhas, cuja trompa célebre servia também de batuta.

Chiava já o clarinete, assobiava o flautim, roncava o figle, uivava
a flauta, e todos prometiam aos ouvidos a mais inarmònica das torturas.

Mestre Pertunhas, distribuídas as partituras, e vendo todos a postos,
deu o sinal de principiar.

Um, dois, três ; um, dois — dizia ou fazia ele com os olhos
e com os movimentos da cabeça e pés, porque a boca, essa já
estava aplicada à embocadura da trompa. O segundo «três»
era o tempo fatal.

Os músicos, porém, ou por distraídos, ou por a comoção
pròpria dos actos solenes, não corresponderam ao sinal, e a
nota furiosa, extraída da trompa do mestre Pertunhas, achou-se só
no espaço, e fugiu envergonhada a esconder-se na concavidade dos montes
vizinhos, deixando na passagem os ouvidos quase em sangue.

Este sucesso foi saudado com uma gargalhada geral, que redobrou quando as
notas dos outros instrumentos, vendo partir desacompanhada a nota chefe e
reconhecendo a falta, saíram alvoroçadas atrás dela,
cada uma por sua vez. Foi uma debandada musical de indescritível efeito.

O auditório, o sempre implacável auditório popular,
apupava.

Henrique e o conselheiro riam, os actores do auto espreitavam detrás
da cortina a ver o que era aquilo. Mestre Pertunhas barafustava por entre
os da banda, berrando, ralhando, cheio de cólera e de razão.

uma sinfonia com quatro meses de ensaio ! A falar a verdade ! Ordenadas
as coisas rompeu, enfim, a sinfonia.

Os tipos dos artistas, marcialmente uniformizados com fardas que foram de
um corpo de infantaria, eram para tentar o lápis de um Cham ou Gavarni.
Ali um gordo e rubicundo merceeiro, que ameaçava estalar todas as costuras
da farda, primitivamente feita para um indivíduo de metade das dimensões
dele, com as faces insufladas, a testa contraída e os olhos injecíados
para extrair de um obsoleto serpentão, que embocava com arreganho assustador,
as mais destemperadas notas ; acolá um flautim, de braços compridos
e tíbias esquinadas, cora meio braço fora das mangas, com meia
perna de fora das calças, figura em que havia nao sei o que de onomatopaico,
tão bem se casava com os silvos, horripilantemente agudos, que arrancava
do exíguo instrumento.

O artista pratilheiro era um velho recurvado, de nariz adunco, faces escavadas,
olhos de coruja, suíças em tufos no meio das faces, e óculos
na ponta do nariz. Um zarolha evacuava os pulmões dentro de um figle
; um corcovado e semianão repicava os ferrinhos com uma prodigalidade
assustadora ; as baquetas da caixa estavam confiadas às mãos
calosas de um moço de lavoura, de repas hirsutas a cobrir- -lhe a testa,
olhos esbugalhados e lábio pendente. E, no meio destas e análogas
figuras, a alma de tudo, o Sr. Pertunhas, torcendo-se, batendo com o pé,
suando, arregalando os olhos, piscando-os, marcando o A MORGADINHA DOS CANAVIAIS
compasso com a cabeça armada de enorme trompa, que lhe dava então
não sei que aparências de proboscidiano.

Tal era a filarmònica da terra, que Henrique, o conselheiro e tôda
a família do Mosteiro escutavam das janelas, e à qual tiveram
de dispensar elogios, que o regente aceitou com a modéstia de artista
que se. conhece. Henrique foi quem mais sublimes esforços fez para
sofrer com paciência aquelas torturas acústicas. Ele que nem
à orquestra de São Carlos perdoava uma desafinação,
obrigado a escutar com um sorriso aquela banda pandemónica ! —
Coragem! coragem!—murmurava-lhe o conselheiro, impassível como
perfeito político. — Nas ocasiões é que os homens
se conhecem ! Coragem.

— É em extremo forte a provação ! — respondia-lhe,
gemendo, Henrique.

— Firmeza ; que a palidez do susto nos não atraiçoe
— continuava aquele.

Isto obrigava Henrique a nova luta; desta vez para manter a seriedade.

Afinal calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido tocar.
Sucedeu-lhe um intervalo de silêncio. Passou pela assembléia
o estremecimento que precede as ocasiões solenes. Os olhares de tantos
espectadores fixavam-se na coberta de chita que já se via ondular.
Ouviu-se um surdo rumor, significativo de ansiedade, como se fora a resultante
do palpitar de tantos corações.

Apareceu, enfim, a primeira personagem do auto. Era o Herodes.

A alta e membruda figura do pai de Ermelinda, com os seus ombros largos,
as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabelos e barbas negras e espessos,
o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as junturas do tablado, o timbre
volumoso de voz e certo arreganho selvático, com que falava e gesticulava,
imprimia na multidão um quase pavor, que nem o conhecimento íntimo
que tinha do homem conseguia dissipar.

Herodes trazia manto real e turbante muçulmano, borzeguins vermelhos,
corpete de veludilho azul, calções golpeados. Pendia- -lhe à
cinta um alfange e uma pistola; ao peito algumas condecorações.

Aparência geral, a dos profetas nas procissões.

O auto rompe com um monólogo de Herodes.

O tirano da Judeia, sobressaltado e meditabundo, faz considerações
substanciosas sobre as condições dos reis em geral e a sua em
particular. Principia ele assim: Não há vida mais inquieta,
Nem mais cheia de cuidados, Do que a de um rei que pretende Conservar os seus
estados.

O Cancela dizia isto em tom pausado, com os braços cruzados, medindo
o palco a passos largos.

Continuavam várias proposições de fisiologia do trono,
e, do caso genérico baixando ao particular, da tese à hipótese,
principia a falar de si. Cancela, conhecedor dos segredos da arte, começava
aqui a dar mais vida à recitação, como para mostrar o
maior empenho que tomava a alma neste capítulo da especialidade. Referia-se
aos anúncios da vinda do Messias, e inquietava-se ; a maré das
paixões subia ; a voz traduzia-lhe o crescimento. Depois seguia-se
um como reflexo de desalento, para com mais violência se exaltarem os
afectos. Nos paroxismos da fúria, o Cancela, dando tôda a força
à sua voz potente, soltava berros, que participavam da natureza dos
de tigre.

Começarei desde logo A publicar leis tiranas, Que aterrem os meus
montes, Os palácios e as choupanas.

Será tal o meu furor, Tal a minha indignação, Que ninguém
se atreverá A conquistar meu brasão.

O interesse do espectáculo aumentava. Os olhos do público
principiavam a fixar-se. A excitação de ânimos a que os
transportes de Herodes, inquieto pelo seu brasão, levara o público,
foi serenada por um chorado coro de anjos que cantavam atrás da cortina:
Não temas, ó rei cruel, Oue te conquiste o dossel.

Herodes pára aterrado, ao escutar estas vozes, apesar de lhe afiançarem
a segurança do dossel, pela qual ele parecia receoso. Vacila, entra-lhe
o medo no coração, medo que procura afugentar com bravatas,
em que ameaçava pôr tudo por terra. O Cancela exprimia tudo isto
com abundância de gestos e de movimentos.

Aqui é que subia a tôda a altura o gênio dramático
do Herodes, Para este final do monólogo reservava todos os segredos
da arte; apoderava-se dele a musa do palco ; desapareciam-lhe diante dos olhos
os espectadores, via o mundo ; perdia a consciência da individualidade
própria ; supunha-se Herodes ; e até .. oh força da arte
! ofuscavam-se- -lhe os bons instintos da índole generosa e quase chegava
a ter verdadeira ânsia de sangue e carnificina. O público era
dominado por o artista, e num destes silêncios que todos prevêem
se desencadeará era brados de entusiasmo e frenesi, escutava-lhe as
duas quadras finais- Porém o furor me incitai Dava, ao dizer isto,
três passos à frente, desembainhava o alfange e abria os braços.
Tinha o que quer que era de Adamastor, visto assim.

O brio dá-me ousadia.

Levantava os braços acima da cabeça, espalmando a mão
esquerda.

Para defender o ceptro A favor da tirania I Aqui agitava os bracos como
asas de moinhos.

Será cada lança um raio I • E, dizendo isto, tinha nos
olhos o fulgurar do relâmpago.

Cada espada um corisco, E o braço, armado do alfange, baixava com
a rapidez do simile.

Cada soldado um trovão, E trovejava-lhe a voz.

Cada golpe um basilisco ! E, na posição e gesto em que ficava,
não era menos terrível e pavoroso do que a fera da comparação.

uma tempestade de aplausos rompeu de todos os lados ; só as mulheres
e as crianças ficaram silenciosas e imóveis, porque lhes parecia
um pecado aplaudirem Herodes. E não sei se, o que fizera menos escrupulosa
neste ponto a parte masculina, fora o exemplo partido das janelas do Mosteiro
; porque é certo que em geral os tiranos no palco são admirados,
mas raras vezes aplaudidos.

Herodes, depois de agradecer os aplausos públicos, senta-se e segue
o auto.

Daríamos de bom grado na íntegra tão importante peça
dramática ou pelo menos circunstanciada notícia dela, se não
receássemos o recheio excessivo para esta ordem de alimentos literários,
que se querem leves. Não podemos contudo resignar-nos a passá-la
por alto inteiramente.

Além do Herodes, são figuras do auto: o caixeiro do dito —
assim se lhe chama pelo menos no folheto, o que dá a entender que Herodes
era homem de escrituração regular — o capitão das
tropas reais, os três reis magos, o anjo, a Virgem, S. José e
o Menino Jesus, a criada de Santa Isabel, dois cidadãos de diferentes
cidades, o criado de um dêles, a Fama e duas crianças, chamadas
Giraldinho e Amorzinho.

As cenas passam-se sucessivamente nos paços de Herodes, na lapa de
Belém, e em diversas paragens da estrada do Egipto.

A imaginação do espectador era a encarregada da mudança
do cenário.

O poeta corre tôda a clave das paixões humanas, vibra todas
as cordas do coração.

Ao terror despertado por Herodes e suas ameaças, sucede a simpatia
pelos três reis, personificados daquela vez por três moços
de lavoura, de manto, luvas de algodão e turbante, os quais, em lamúria
nasal e com profusão de xes, cantarolavam as quadras do seu papel,
em uma das quais, patrióticamente anacrónica, pediam aqueles
bons magos ao Deus nascido a protecção para Portugal.

Excitava a piedade a família sagrada. O velho S. José, como
carpinteiro que era, aparelhava um madeiro a enxó e plaina, enquanto
a Virgem dormia. A Virgem era um rosado barbatolas, em quem principiava a
despontar o buço da puberdade. O anjo aparecia, como nas procissões,
carregado de cordões de ouro.

No transe da fugida para o Egipto há uma cena da mais que homérica
simplicidade. Quando os sagrados esposos estão para partir, chega a
eles a criada de Santa Isabel, prima da Senhora, outro mocetão em trajes
femininos, e da parte da ama oferece aos foragidos algum dinheiro e refrescos
; pedindo desculpa por não poder dar quanto queria, o que tudo a Senhora
agradece com as frases da tarifa, recomendando-se muito a sua prima.

O cómico caminha ao lado do patético, como no drama moderno.

Há personagens, reflexões e cenas sempre apreciadas e já
aguardadas pelo público, que as saúda com sinceras gargalhadas.
Destas a principal é evidentemente a que se passa entre um cidadão,
de quem a sacra família recebe gasalhado, e o criado do mesmo.

É uma cena de disputa doméstica, cheia de alusões satíricas
à classe dos criados de servir, a qual era sempre aplaudida. O cidadão,
depois de mostrar ao criado, de relógio em punho — anacronismo
shakespeariano — a demora excessiva que ele tivera fora de casa, diz
para o auditório: Não se pode ter criados Hoie em dia, nesta
vida, Ou quem houver de os ter Não lhes deve dar guarida.

Neste ponto do auto houve aquela tarde um pequeno mas gracioso episódio.

D. Vitória, que achava esta a parte melhor pensada e mais conceituosa
de tôda a peça, de afinada que estava pelo seu modo de sentir,
não pôde conter-se, que não exclamasse : — Aquilo
é que é uma verdade ! A espontaneidade da reflexão fez
rir a família do Mosteiro, riso que teve eco em baixo, entre o povo,
que enchia o pátio.

A cena cómica prolonga-se, mandando o patrão distribuir pelo
caixeiro o rapé ao audit&oacoacute;rio; outra liberdade que produzia sempre
o maior efeito.

O criado trazia uma enorme tabaqueira, um verdadeiro baú, e oferecia
pitadas ao público, dizendo : O meu amo, com ser rico, Gosta destas
paruscadas.

Nunca os senhores tiveram As pitadas tão baratas.

Os risos e as galhofas desordenaram, segundo o costume, por muito tempo,
a regularidade do espectáculo. Todos tiravam pitadas, todos falavam,
riam e guinchavam. todos fingiam espirrar e não se ouvia senão:
«Dominus tecum» e «Deus te salve» no meio de tôda
aquela confusão. Porém a um sinal de mestre Pertunhas, que deixou
por um pouco folgar o espírito das massas, tudo entrou na ordem.

Preparava-se nova transição dramática. O criado, que
vai a sair, volta, dizendo com gesto espantado e tom exclamatorio : Jesus,
Jesus, que é isto? Jesus do meu coração ! O sinal da
cruz me livre De tão terrivel visão.

Era a Fama que aparecia.

Ermelinda entrava em cena.

No meio daquelas figuras rústicas, e mais ou menos grosseiras, que
entravam no auto, a figura delicada e angélica de Ermelinda produzia
tão completo contraste, que um murmúrio significativo de profunda
sensação correu o auditório.

Ermelinda estava surpreendente de formosura. Haviam-se associado ao que
era nela dotes naturais os cuidados de Madalena e de Cristina, para lhe darem
a aparência superior.

O próprio Henrique, que até ali estiverà comentando
maliciosamente o espectáculo, não pôde reter uma exclamação
de surpresa, que foi secundada por o conselheiro. É que parecia que
um verdadeiro anjo ocupava agora a cena.

A simplicidade do vestir concorria para esse efeito.

Ermelinda trazia uma longa túnica alvíssima e de amplas mangas,
que lhe descia solta dos ombros sem sacrificar a menor beleza dos graciosos
contornos e esbeltas proporções daquela criança, que
prometia ser uma mulher escultural. Os cabelos, cuja cor loura era de uma
pureza rara, caíam-lhe desatados e profusos sobre os ombros, brilhando
como fios de ouro na alvura dos vestidos ; a fronte ficava- -lhe livre, e
o oval das faces sobressaía naquela moldura natural. com os braços
descaídos, os dedos encruzados, e a cabeça ligeiramente pendida,
em expressão de melancolia, e os olhos elevando-se para procurarem
os de Madalena e de Cristina nas janelas do Mosteiro, mas que de longe parecia
procurarem o Ceu, Ermelinda adiantava-se vagarosa, serena, tendo no gesto
o encanto da inocência, tendo nos passos a hesitação da
timidez. Havia tanto de sobrenatural no vulto cândido, franzino e melancólicamente
suave daquela criança, que o actor que estava em cena não teve
de simular espanto, porque o sentia real, e não podia desviar os olhos
daquela aparição.

O silêncio era profundo ; parecia que em todos estava actuando a força
de um encantamento.

como na antiga tragédia, o facto principal da acção,
a carnificina dos inocentes, passava-se fora de cena. À Fama competia
narrá-lo.

Ermelinda, a meio do palco, parou. com uma voz argentina e leve tremor de
comoção, principiou lentamente e no meio de um religioso silêncio
a recitar os versos da narração, os quais, como o leitor já
sabe, não eram os do auto, que mestre Pertunhas se estafara a ensaiar.

Os versos que Ermelinda recitou, diziam assim : * Desci dos celestes coros,
Por Deus mandada a escutar Da infância as queixas e os choros, Para
lhos ir confiar.

Desci. Na terra, nos mares Tanta miséria encontrei, Que os meus magoados
olhares Da terra e mar desviei.

Desci. E tantos gemidos, Tão dolorosos ouvi ! Que turbados os sentidos.

Quis recuar… mas desci.

Nesta colheita de dore3 Pelo mundo todo andei, No pranto dos pecadores As
minhas vestes molhei.

Vagueando dias e dias, Chegara à Judeia enfim, Quando um clamor de
agonia3 Veio de longe até mim.

O Sol, o Sol inflamado Destas terras orientais, Tinha no disco afogueado
Não sei que estranhos sinaÍ3 Soavam menos distantes Sinistros
brados de dor, Choros de mães e de infantes, Cantos de morte e terror,
Vi anjos de asas nevadas Em bandos subir ao Céu, Ouais pombas amedrontadas
Fugindo à voz de escarcéu.

«Onde ides? Quem vos persegue? A que tormentas fugis ?» Um,
que triste o bando segue, Estas palavras me diz : «Somos as almas de
infantes Mortos em guerra feroz : Inda das mães delirantes Nos chama
a sentida voz.

«Só a materna saudade Nossa carreira detém, Embora no
Céu, quem há-de Esquecer o amor de mãe?» Disse
e o semblante formoso com as asas encobriu, E ao bando silencioso Silencioso
se uniu.

Eu segui. Na ímpia cidade Aterrada penetrei…

Ai, da fera humanidade Os meus olhos desviei! Que cena ! Corre nas praças
Sanguinária multidão, como nuvem de desgraças Semeando
a desolação.

Caem por terra sem vida Tenras crianças às mil, E uma turba
enfurecida Corre à matança febril.

As mães pálidas, chorosas, Suplicam, pedem em vão!
Nessas feras sanguinosas Não palpita um coração.

Outras tentam em delírio, Os seus filhos disputar, E com eles no
martírio Gostosas se vão juntar.

Sobre a terra ensangüentada Eu soluçando, ajoelhei, E de intensa
dor magoada, A Deus piedade implorei.

Findava a prece, e uma estrela No horizonte despontou, Pura, cintilante,
bela O caminho me traçou.

À humilde e escondida estancia Da venturosa Belém Cheguei
; vi um Deus na infancia Nos temos braços da mãe.

Minha colheita de dores Naquele berço depus, Da humanidade aos rigores
Pedi remédio a Jesus.

No olhar do divino infante Raiou a luz e fulgor, Foi a aurora radiante Que
anunciou um redentor.

Não se descreve a impressão causada por estes versos, que
assim transformavam a Fama do auto no Anjo da guarda da infância.

Muitas causas concorriam para produzir este efeito : a figura, a voz e o
gesto de Ermelinda, que lhe davam uma aparência verdadeiramente angélica,
e depois aquelas palavras inesperadas, aquela exposição desconhecida
e em versos a que a melancolia da toada, em que eram recitados, parecia aumentar
a cadência métrica. Enquanto debaixo da impressão daquela
voz sonora e infantil, ninguém procurava explicar o mistério.
Milagre lhes parecia e quase como milagre o aceitavam, e de ouvidos atentos,
olhos estendidos e bocas semiabertas parecia recolherem, uma a uma, aquelas
palavras, como se de um verdadeiro emissário celeste as escutassem.
O tablado enchera-se pouco a pouco de gente, e ninguém dera por isso.
Os actores que estavam atrás da cortina tinham sido feridos pelos primeiros
versos, diferentes dos que eles esperavam; isto obrigou-os a espreitar. Depois,
como arrastados pela magia daquela voz e daquele gesto, vieram adiantando-se,
adiantando- se, e cedo formaram círculo à volta de Ermelinda.
O primeiro da frente era o Herodes. O espanto, os afectos, o orgulho de pai,
a exaltação de artista combinavam-se para dar-lhe ao rosto uma
expressão quase de êxtase. Olhava para a filha como se a visse
animada de inspiração divina.

Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobrolho, prevendo trapalhada
aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de boca aberta, era de
todos o mais espantado. No Mosteiro só Angelo sorria, ele só
interpretava o milagre. Todos os mais escutavam silenciosamente aquela voz
de criança, que, em campo descoberto e no meio de tantos espectadores,
soava distinta e vibrante como se efectivamente tivesse alguma coisa de sobre-humana.

Depois que ela terminou, persistiu por algum tempo o silêncio, sem
que os espectadores pudessem voltar logo a si nem os actores se lembrassem
de continuar o auto. Henrique foi quem primeiro rompeu este quase encantamento.
Profundamente impressionado também por aquela cena, exprimiu num «bravo»
todo o entusiasmo que sentia.

Foi o sinal.

O silêncio degenerou na mais altíssona ovação.

O Herodes esqueceu o papel que desempenhava, o caracter que tinha a sustentar
a lógica da situação, e tomando nos braços musculosos
o corpo débil e franzino da filha, levou-a em triunfo para a beira
do palco ; os outros actores disputavam-lha ; do pátio estendiam-se
centenas de braços para a receberem ; das janelas do Mosteiro acenavam-
lhe, vitonando-a, os lenços das senhoras ; os homens aplaudiam-na com
palmas. Herodes parecia devorar a filha com beijos, afagá-la com lágrimas
de entusiasmo e de paixão; e Ermelinda foi de braços em braços,
entire beijos e afagos, transportada do tablado para a sala do Mosteiro, onde
não foi menos calorosa a recepção.

Do auto ninguém mais se lembrou, e, apesar dos esforços do
mestre Pertunhas, todos o deram por terminado ali e prescindiram de ver as
restantes cenas, com grande desgosto dos actores que entravam nelas.

O Herodes, ainda vestido de rei, andava como doido pelas salas do Mosteiro.
Seria para rir aquele entusiasmo, se não fosse bastante patético
para comover.

— Mas como foi isto, meu Deus? como foi isto? Que milagre foi este?
Ai que versos, Maria Santíssima! Que versos! E como ela os dizia !
— exclamava ele, quase convencido da milagrosa natureza da cena que
vira.

Madalena, chamando Ângelo de lado, perguntou-lhe : — Foi Augusto
que fez aqueles versos? Ângelo sorriu.

— Porque me perguntas isso a mim? — Porque o deves saber.

— Então não crês no milagre? — Responde.

Ângelo ia a responder, quando Henrique disse em voz alta para c conselheiro:
— Se eu digo a V. Ex." que o Bernardim existe.

— Mas quem é ? — perguntou o conselheiro.

— Não sei ; porém posso afiançar a V. Ex."
que nao são estes os primeiros vestígios que encontro dele.
As paredes das capelas dos montes são as suas confidentes. Não
está certa, prima Madalena, de umas quadras sentimentais que lemos
na ermida da Senhora da Saúde ? — Sim ; recordo-me.

— Não acha entre essas e as do auto analogia de estilo, que
a levem a atribuí-las à mesma pessoa? — Estou pouco habituada
a analisar estilos, primo.

— Mas talvez este lhe seja habitual.

Madalena fitou Henrique com um olhar de altivez, que o obrigou a acrescentar
: — Por muito o ver por aí desperdiçado por paredes de
capelas e ruínas, e nos troncos das árvores.

Ermelinda foi de uma discrição impenetrável. Quando
lhe perguntavam quem lhe ensinara os versos, sorria, respondendo que não
sabia, ou que não podia dizê-lo.

— Apostemos que nisto entra Ângelo ? — disse o conselheiro.

O Herodes cada vez parecia mais convencido de que fora pura inspiração.

Henrique, aproveitando uma ocasião em que estava próximo da
morgadinha, disse-lhe ao ouvido : — Parece-me que ia pôr o dedo
no rouxinol silvestre, que tão bem canta sem se mostrar.

— Sim? — Não há muitas noites que eu o vi vaguear
nestas imediações.

Estas aves melancólicas amam as inspirações nocturnas.

— Pois as noites nem sempre são boas conselheiras, primo. E
a hora favorável à espionagem e às… calúnias…
Mas se sabe quem é, diga-o. Aqui em minha casa e no seio de minha família,
é sempre bem recebida a verdade. Não há quem se tema
dela.

E a morgadinha, dizendo isto, deixou-o desdenhosamente.

— Desta vez foi de uma severidade ! — pensou Henrique. —
Cada vez me convenço mais de que o idilio existe e que vai já
muito adiantado.

Mas agora me lembro ; e o meu duelo com o Romeu, que nunca mais vi ? Não
foi má tolice aquela minha ! Preciso de procurar o homem para lhe dizer
que o caso não vale a pena.

O despeito de Madalena pelas palavras de Henrique fora desta vez mais intenso;
quase chegou a fazê-la desesperar da tenção que alimentava
ainda, pois disse a Cristina : — Ai, filha, que não sei se deva
curar-te antes a ti do que a ele.

— Que dizes ? ! — Nada. Há doenças que fazem desesperar
os médicos.

Era já noite. Os grupos, que ainda depois do auto se conservaram
no pátio do Mosteiro, a brindarem a hospitalidade dos proprietários,
foram dispersando pouco a pouco.

A banda de mestre Pertunhas saiu também com o fim de se preparar
para as serenatas a casa do brasileiro e de várias personagens da terra,
a quem era devido o cantar os Reis.

Ângelo saíra da sala. Fora para o fim da rua de sobreiros,
anterior ao pátio da quinta, esperar por Ermelinda para lhe dizer adeus.

A medida que a noite se cerrava, parecia que se estendiam as sombras à
fronte e ao coração do pobre rapaz.

Era a noite de Reis, a última dos dias de férias; na manhã
seguinte devia partir com o pai para Lisboa.

Que amarguras as destas últimas horas ! que intensas saudades não
se amontoam no coração das crianças ao expirar o termo
desse feliz espaço de tempo, que viveram para os carinhos da família
e para os folguedos despreocupados ! Percebe-se em nós mesmos aquela
iminência de lágrimas, que à menor palavra rebentam.

Quem não terá recordações de infância
a falar-lhe disto? O pátio despovoara-se de gente ; através
das vidraças da casa viam-se já brilhar as luzes interiores.
Com o olhar fito no chão, a cabeça inclinada, Ângelo permanecia
imóvel. Cortejavam-no, ao passar, homens e mulheres, sem que ele desse
por isso.

De repente voltou-se, porque ouviu atrás de si uns passos conhecidos.

Era Ermelinda, que voltava para casa. O pai ficara atrás a pôr
em ordem as roupas e mais objectos que serviram no auto.

— Esperava por ti, Ermelinda, para te dizer adeus — disse Angelo.

— Então vai-se embora ? — Vou amanhã — respondeu
Ângelo, com a voz presa de comoção, — Muito cedo
? — De madrugada.

Os dois calaram-se por algum tempo, olhando para o lado.

— E agora quando volta ? — Eu sei lá? agora… só
para Agosto.

Novo silêncio.

— Então… adeus…

— Adeus, Ermelinda.

E com a voz quase sumida e os olhos enevoados de lágrimas, Angelo
estreitou contra o peito aquela que de pequena tratara como irmã, e
que chorava ainda mais do que ele.

Que melancólico fim de dia tão alegre ! A este tempo uma sombra
escura passou por eles e estacou.

— Ermelinda ! — disse logo a voz esganiçada e colérica,
que saiu daquele vulto.

Ermelinda estremeceu ao ouvi-la.

Era a mulher do Zé-Pereira que voltava das suas devoções
e ficara surpreendida com o espectáculo que vira. A assustadiça
castidade daquela matrona tôda se alvoroçou com a tocante despedida
das duas crianças.

Ermelinda aproximou-se, a tremer, da madrinha, que rudemente a agarrou pelo
braço e a levou consigo.

Ângelo esteve quase resolvido a ir tirar das mãos daquela harpia
a inocente vítima ; mas a chegada de Herodes estorvou- o.

A Sr.’ Catarina do Nascimento de S. ]oão Baptista ia dizendo, ao
levar consigo a afilhada: — Que terão ainda de ver meus olhos,
meu Divino Pai do Céu? Que mundo este de abominação,
meu doce Jesus ! Ó Virgem das Dores, isto é para se ver e não
se crer ! Uma criança, uma criança de dois dias, se pode dizer,
e já assim com a alma perdida ! Oh meu Jesus crucificado!…

— Minha madrinha — dizia Ermelinda, chorando.

— Anda, anda, anda, minha amiga, que já os demônios saltam
e riem de contentes. Teu pai é que tem a culpa. Isto são lá
modos? trazer-te por entremezes, que são artes do demonio, e arredar-te
da Igreja, que é a casa do Senhor! É a missa dos domingos, e
acabou se.

Os resultados são estes !… Ai, filha, que muita penitência
te é já precisa para salvares a alma ! — Minha madrinha,
minha madrinha, por as almas não me diga isso — exclamava Ermelinda
aterrada.

— Os três inimigos da alma te farão guerra, criatura,
assanhados como cães raivosos… Eu previa isto… É o lucro
de andar por essas casas de Satanás, onde não há religião
nem temor de Deus… Oh meu Divino Jesus, e para isto tanto padeceste por
nós ! E nós tão pouco caso fazemos dos vossos preceitos,
meu doce Jesus, filho de Maria Virgem…

Depois queixamo-nos da vossa justiça, quando já ardemos nos
fogos do Inferno !…

A pequena Ermelinda tremia cada vez mais.

A velha prosseguiu, em todo o caminho, nestas exclamações,
bramando contra o pecado, contra a família do Mosteiro, que acoimava
de hereges, contra o pai de Ermelinda e contra esta, e, no seu fervor religioso,
desenvolvia sobre o tema do pecado dissertações não em
demasia apropriadas aos ouvidos de uma criança.

O resultado foi apoderar-se da pequena Linda um excessivo terror. Das palavras
da madrinha, que nem bem entendia, ficara-lhe uma horrível convicção
de que tinha a alma perdida, e com lágrimas ardentes pagava a pobre
criança bem caro as alegrias daquela tarde, de que já tinha
remorsos. Este desalento e pavor quase a fizeram doente.

Quando o pai voltou, estranhou-a. Ele, que vinha orgulhoso com os triunfos
próprios e com os da filha, sobressaltou-se ao abraçá-la,
Interrogou-a ; pediu, ordenou ; nada pôde saber que explicasse os vestígios
de lágrimas que descobria nela; se instava, provocava-lhe o pranto;
desistiu pois.

Pobre pai ! não pôde dormir aquela noite ! Logo de madrugada
teve de levantar-se, porque tinha de partir para o Porto em recovagem.

Deixou Ermelirida a dormir; não a quis acordar; beijou-a na fronte
desmaiada, abençoou-a e saiu.

— Comadre — disse ao passar por casa do Zé-Pereira —
aí lhe deixo a pequena. Olhe-me por ela, que não está
lá muito boa.

— Vá com Deus — disse uma voz de dentro.

Era a Sr.a Catarina.

O recoveiro partiu, silencioso e triste.

XIX NO dia seguinte ao dos Reis partiram para Lisboa, como estava determinado,
o conselheiro e Ângelo, o que deu lugar no Mosteiro a muitas saudades,
O conselheiro devia voltar somente por ocasião das eleições
gerais que estavam próximas.

Alguns dias depois, num domingo em que se festejava na aldeia o padroeiro
Santo Amaro, de quem reza a Igreja a quinze de Janeiro, estava Henrique de
Souselas na sala de jantar de Alvapenha, escutando sua tia e Maria de Jesus,
que ambas o entretinham com longas conferências de coisas de pouco interesse
e às quais ele ligava a mínima atenção.

Tinham acabado de jantar havia pouco tempo. A mesa conservava se ainda posta
; Henrique fumava um charuto, recostando-se para o espaldar da cadeira; D.
Doroteia, de mãos cruzadas diante da cinta, falava; Maria de Jesus
que, depois de pôr em arranjo a cozinha, viera, segundo o costume patriarcal,
tomar parte na sala na conversa do pospasto, auxiliava a memória da
ama sempre que esta emperrava, corrigia- lhe as involuntárias e freqüentes
inexactidões em que a via cair.

Henrique habituara-se já a estes placidíssimos hábitos
; e, apesar de não ligar atenção à conversa, ou
por isso mesmo que lha não ligava, achava-lhe certas virtudes estomacais
que lha tornavam agradável.

Depois de muitas voltas, a conversa caiu sobre as ocorrências do auto
dos Reis.

— Eu ainda estou para saber como aquilo foi ! — dizia D. Doroteia.

— Quando me lembro ! como aquela rapariga falava ! — Ó
senhora ; olhe que já me disseram que a pequena tinha espírito
— disse Maria de Jesus, com ar de mistério.

— Olhem o milagre I — respondeu D, Doroteia. — Por essa
estou eu.

— Diz que desde aquele dia anda amarela e triste, que nem parece a
mesma.

— Então é mais do que certo.

— Ai, a tia Doroteia também com crendices!—disse Henrique,
rindo. — Então parece-lhe que traz espírito aquela criança
? — Pois, menino, aquilo a falar a verdade ! — E não é
mais natural supor que alguém lhe ensinou os tais versos ? —
Mas quem? se o Pertunhas diz que os versos eram outros e até que aqueles
não calhavam bem nas loas? — O Pertunhas é um parvo. Houve
alguém que ensinou aquilo à pequena e até suspeito com
que fim.

— Não, Sr. Henriquinho, olhe que ali anda coisa ruim. Também
o filho do Ceboleiro, quando trazia o espírito, dizia coisas tão
bonitas que nem um livro. A senhora não se lembra? — Ora se me
lembra ! — Digam-me — insistiu Henrique. — Quem há
aqui na aldeia que faça versos? — Versos ! — repetiu a
D. Doroteia, admirada. — Ninguém, que eu saiba.

— Ó senhora ! Então o João do Trolha ? Não
deita tão bonitos versos nos desafios? — Sem ser o João
do Trolha — tornou Henrique, sorrindo.

— Ai, não se ria, Sr. Henriquinho; olhe que os deita muito
bem! Ainda no outro dia, na noite de Janeiras, não se lembra, senhora,
dos versos que ele botou? Viva a senhora D. Doroteia.

Paminho de bem-me-queres, Quando põe a sua touca É a rainha
das mulheres.

E depois a mim: Viva a senhora Maria, A pérola das criadas, Quando
se chega à ¡anela Ficam as estrelas pasmadas.

— Ora com o que você vem, mulher ! Não tinham as estrelas
mais que fazer do que pasmarem — disse D. Doroteia.

— Isso é por dizer, senhora; já se sabe que… sim…
como o outro que diz…

— E além do João do Trolha, quem há mais que
faça versos ? — perguntou Henrique.

— Que eu saiba!… —disseram as duas.

— E aquele Augusto ? — O Augustito do doutor? O filho! Coitado
do pobre rapaz. Ele sim ! Credo ! Não, aquilo é um rapaz de
muito juízo. , — Isso não tira. Então a tia julga
que só os tolos fazem versos ? — Tolos não digo, mas…

— Mas um pouco feridos na asa, não é verdade? —
Ora pois então diz-me tu, menino, se um homem sério… sim…

um homem de respeito, faz versos? — Porque não ? — Versos
? ! — Versos, sim, senhora.

D. Doroteia fez um gesto de incredulidade.

Henrique ia redarguir, quando ouviram passos no patamar de pedra da entrada
e após algumas pancadas à porta da sala, — Abra, tia Doroteia
— disseram de fora as vozes de Madalena e de Cristina, que foram logo
reconhecidas.

E cedo depois entravam alegremente na sala, em companhia de D, Vitória,
que vinha mais retardada.

D. Doroteia levantou-se para recebê-las.

— Bons dias ou boas tardes, tia Doroteia, porque me parece que já
jantaram. Vimos aqui para confiar aos seus cuidados a tia Vitória,
que não nos quer acompanhar a ouvir a palavra eloquente do missionário
— disse a morgadinha.

— Eu não ; para apertos e barafundas é que nao estou.

— E tu vais, Lena ? — perguntou D. Doroteia.

— Então ? Não quero passar por impenitente. Ainda o
não ouvi.

Pode crer ? Além de que percebi na Criste um fervor, com o qual quis
condescender.

— Dizem que prega tão bem ! — atalhou Cristina.

— Pois pregará, mas eu é que já não estou
para sermões — ponderou D. Vitória.

— Vou eu também ouvir o missionário — disse Henrique,
levantando- se. — Já mo mostraram há dias. Se os dotes
oratórios do homem corresponderem à figura…

— Então ? — interrogou D. Doroteia.

— É um homem gordo e vermelho, de pulso grosso e, em geral,
tipo da grossura do pulso.

— Pois bom é que vás, menino — disse D. Doroteia
— para acompanhares as pequenas.

— como quiser, primo — acudiu Madalena — mas não
se constranja.

O Torcato também vai.

— Que quer dizer? Que me dispensa? — Não ; mas que se
é só por condescendência que…

— É por prazer. É por devoção.

— Nesse caso…

E Henrique foi procurar o chapéu para acompanhar as duas primas à
igreja.

O Santo Amaro fora festejado com espavento na treguesia da sua invocação.
Vésperas, missa cantada, duplo sermão, e procissão à
volta da igreja, nada faltara para solenizar a festa.

O sermão da manhã fora pregado por o abade ; o da tarde havia
sido concedido ao missionário, que o aproveitara para uma das suas
catequeses.

• A procissão já tinha recolhido, quando chegaram à
igreja a morgadinha e Cristina, na companhia de Henrique e Torcato. Havia
no adro muita gente, e algumas barracas de doce e de café, como num
arraial.

Pela porta principal da igreja engolfava-se a multidão, como em boca
de sorvedouro, sùbitamente aberto no leito de um rio, se precipitam
as águas impetuosas.

A fama, que peias aldeias circunvizinhas apregoava o nome do missionàrio,
atraíra imensa gente a escutar o sermão.

As senhoras do Mosteiro romperam a custo por entre a compacta massa popular,
que se amontoava à porta da igreja, e conseguiram, por deferência
excepcional dos mesários, entrar Dela sacristía para a capela-mor.

Tinha um aspecto melancólico o interior da igreja naquela ocasião.

Pobre de si e pouco alumiada, mais escura e lùgubre parecia com a
extraordinária quantidade de gente que a enchia, na maior parte mulheres
de roupas escuras e em que só alvejava o lenço branco que usavam
à cabeça.

Apesar da quadra ir fria, como de Janeiro que era, respirava-se ali dentro
uma atmosfera quente, abafadiça e pouco salutar.

Um surdo murmúrio formado por centenares de vozes rezando, a meio
tom, orações e ladainhas, contrastava com as altas vozes de
festa, que se escutavam lá fora, e requintava a triste impressão
que se recebia ao entrar. Ali um grupo de mulheres, de joelhos, escutavam
a leitura de pias orações, que uma fazia em tom lutuoso, e respondiam
em coro com padre-nossos e ave-marias ; além viam-se outras com as
faces rojadas no chão, batendo no peito e desentranhando exclamações,
para comoverem a Divindade ; outras em êxtase, como Santas Teresas,
de braços abertos diante da imagem da Virgem; outras arnortalhadas,
em cumprimento ,de promessa feita a algum santo. Cavados na espessura das
paredes havia uns pequenos cubículos, que serviam de confessionários.
Às portas destes nichos, munidas de um crivo de folha, aderiam, como
as lapas nos rochedos, os vultos escuros das penitentes, fazendo para dentro
a circunstanciada exposição dos pecados da semana, e recebendo
de lá regras de bem viver, preceitos de devoção, às
vezes exagerada e inspirada de certa moral de convenção, com
que a ignorância ou a má fé porfiam em falsificar os simples
e luminosos ditames da moral, que a consciência reconhece e que o Evangelho
apregoa.

Às vezes despegava daquele crivo de pecados uma das confessadas ;
e exausta de forças, abatida de ânimo, descrendo da misericórdia
divina, ia cair com desalento nos degraus do altar de Deus, que o fanatismo
cego, senão hipócrita, lhe pintara inexorável verdugo.

Quando outra se não sucedia a esta, via-se rodar nos gonzos a pequena
porta destes cubículos, e sair de lá um padre de batina, socos
e capote de cabeção, satisfeito de si, e revendo-se naqueles
corpos prostrados, naqueles gemidos surdos, naquelas lágrimas humedecendo
o pavimento do templo, tristes indícios de desalento moral, com que
conseguira quebrantar os ingênuos espíritos que dirigia pela
intimidação cruel.

De tudo isto vinha o aspecto sombrio e lùgubre à igreja, que
nem as luzes dos altares, nem as sanefas e cortinas de damasco, que com tanta
arte dispusera mestre Pertunhas, conseguiam dissipar.

Henrique estava sendo desagradavelmente impressionado por o que via.

Olhava com desgosto para aqueles sinais de um terror supersticioso, e sentia
exacerbarem-se-lhe as prevenções que nutria contra o clero,
cuja influência moral, aliás justa e vantajosa, é cada
vez mais diminuída por aqueles dos seus membros.que pretendiam aumentá-la
por meios impróprios de sublimidade da sua missão e até
dos preçei- ;os da religião, de que se dizem ministros.

Henrique fez algumas reflexões neste mesmo sentido a Madalena, que
não pôde deixar de apoiá-las, tanto mais que sabia o ânimo
de Cristina, que os escutava, não de todo superior a este aparato terrorífico.

A hora marcada para o sermão aproximava-se; haviam-se já evacuado
os diferentes confessionários, e o povo cada vez se apertava mais em
todos os pontos da igreja e trasbordava para fora das portas do templo. Quem
de dentro olhasse para a porta principal veria que a grande distância,
na rua, se prolongava a multidão.

Apenas um confessionário permanecia ainda ocupado. Havia mais de
uma hora, que ali estacionava de joelhos uma penitente com a cabeça
coberta por a capa de pano, com que rodeava o crivo do confessionário.

Nem o menor movimento revelava animação naquele vulto.

Henrique notara essa imobilidade, que ao princípio o fez sorrir ;
depois causou-lhe espanto e acabou, enfim, por o indignar. Qual, porém,
não foi a sua surpresa e a de Madalena, quando, ao terminar a confissão,
reconheceram as feições da penitente por as de Ermelinda, a
filha do Herodes, a formosa e amorável criança, que, dias antes,
tanto entusiasmo causara, agora pálida, abatida, sem aqueles sorrisos
nos lábios, que tanta graça lhe davam ! E era esta criança
que tão longos pecados tinha a narrar, para assim ficar tanto tempo
aos pés do confessor? Ermelinda, vagarosa, trémula, tendo claros
os vestígios de lágrimas, e, como que enleada de vergonha, caminhou
por entre os grupos de mulheres ajoelhadas na igreja e veio cair de joelhos
ao lado da madrinha e cedo rojava com ela a fronte no chão, que regava
de lágrimas ferventes.

Pobre criança ! Que negros crimes lavariam aquelas lágrimas
? Que culpas teria a expiar aquela inconsolável dor? O confessionário
de onde ela se afastara, abriu-se, enfim, e às vistas, que para ali
se voltaram, mostrou um padre gordo, corado, de olhos e fronte pequenos, cabelos
grisalhos, rompendo-lhe a um dedo das sobrancelhas. O homem parou algum tempo
a fitar o auditório.

Espalhou-se no templo um sussurro particular ; um movimento comum animou
aquelas cabeças todas, quando este homem apareceu.

Era o missionário.

A sua passagem para a sacristía foi uma passagem verdadeiramente
triunfal. Curvaram-se até ao chão as beatas, beijando-lhe a
mão ou as borlas da batina, e pedindo-lhe a bênção,
que ele distribuía com profusão.

Mas a meio caminho da sacristía, para onde se dirigia, surgiu- -lhe
quase do chão um estorvo.

Zé-Pereira, o desconfortado marido, estava diante dele, gesticulando
e realizando um tríplice e admirável esforço para firmar
as pernas, para abrir os olhos, e para desembaraçar a língua.

Dizia o homem: — Ó sr. aquele… ó sr. padre, ou missionário,
ou lá o que é…

eu quero-lhe perguntar uma coisa. Deus disse… sim, Deus disse…

A religião manda… Quando um homem se casa…

O missionário não esperou pelo fim da inesperada interpelação;
com modos rudes e pulso vigoroso arredou de si o atrevido, e bradou, fulo
de cólera : — Então que desaforo é este ? Deixam
um homem neste estado vir ter comigo ? ! E com maneiras e palavras igualmente
ásperas impôs silêncio ao povo, que rira do desengano do
Zé-Pereira. Os mordomos acudiram logo para afastarem o Zé-Pereira
dali para fora. Ele deixou-se ir, limitando- se a dizer mansamente : —
Ora, senhores, que é forte desgraça a minha ! Então uma
pessoa não pode dizer o que sente? Ia ele já fora da igreja
e ainda se lhe ouvia a voz repetir: — Ora, senhores, que é forte
desgraça a minha! Quando depois desta cena, o missionário passou
por Henrique, murmurou este em voz perceptível, ao ouvido da morgadinha:
— Diga se este todo e este modo de tratar ovelhas não é
mais de magarefe do que de pastor? O missionário ouviu estas palavras,
pois que se voltou como se uma víbora o picasse, e faiscou-lhe no olhar
o fulgor de um ódio farisaico.

Henrique arrostou-o com audácia provocadora.

O padre entrou para a sacristía.

No entretanto o auditório dispunha-se para escutar o sermão,
o mais comodamente que era possivel naquele pequeno recinto.

No fim de alguns minutos aparecia no púlpito a figura bem nutrida
e pouco atraente do famigerado educador dos povos.

Fitou com sobranceria os ouvintes e com particular insistência fixou
em Henrique, que lhe ficava fronteiro, um olhar, que ele sustentou com firmeza.

Esta tácita provocação durou alguns minutos, no fim
dos quais poderia talvez, quem estivesse prevenido, distinguir nos lábios
do padre um sorriso rancoroso e perceber-lhe um movimento de cabeça
quase ameaçador.

Enfim soltou o texto latino do sermão.

Seguiu-se nova pausa, e principiou.

Apesar do exemplo de Sterne, que não duvidou entressachar nas páginas
humorísticas da Vida e opiniões de Tristam Shandy, um sernão
sobre a consciência, eu não ouso transcrever para aqui o modelo
e eloqüência sacra, recitado pelo missionário naquele dia.

Ainda se eu pudesse transmitir aos leitores o tom rouco de voz, extravagância
de gestos, o decomposto dos movimentos com que o orador acompanhava recitação
dos descosidos períodos daquela indigesta prática, talvez me
animasse à empresa, para lhes dar um exemplo da vigorosa eloqüência,
com que se anda atrasando a civilização do povo e prejudicando
a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja voz é
abafada por aquela gritaria.

As mais tétricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.

Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas
ardentes, inúmeras torturas, a que o menor delito, tal como um jejum
mal guardado, uma confissão malfeita, uma involuntária falta
missa, uma penitência esquecida, uma oração suprimida,
arriscava as almas por tôda a eternidade. Para cada pecado venial uma
perspectiva de tormentos sem fim. O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal
,de Santo Ofício, onde os autos-de-fé, os potros, e cavaletes
guardavam os delinqüentes arrastados até ali ; eis o resumo da
oração.

A fatal e desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu
no pórtico do Inferno, traçava-a este sobre os umbrais do tribunal
do Eterno.

Na escultura de Cristo, obra rude do buri! popular, mostrava o vulto de
um acusador, surgindo ali a pedir vingança, e não o do Redenor
sublime a implorar e prometer perdão. E tudo isto de mistura com imprecações
contra as modernas instituições sociais, contra a obra do século,
contra os descobrimentos, contra a ciência, contra tudo em que e descobrisse
o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e as idéias
em sentido menos favorável à propaganda reaccionaria.

A medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador;
aumentava a desordem dos gestos e refinava a selvageria das imagens.

Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditório,
e principalmente da parte feminina dele iam crescendo em choro manièsto,
em gritos e alaridos. Cedo era já um angustioso clamor em tôda
igreja. Madalena, que se sentia, ela própria, um pouco impressionada
)or este espectáculo de desolação, voltou os olhos para
Cristina. Viu-a trémula, pálida, com as faces banhadas em lágrimas,
tendo no gesto todos os sinais de um intenso pavor.

Assustada com o estado da prima, a morgadinha fez notá-lo a Henrique,
e tàcitamente lhe comunicou as apreensões que sentia.

Henrique compreendeu a necessidade de dissipar a funesta influência
que se estava exercendo no ânimo tímido de Cristina.

Sentou-se por isso junto das duas raparigas e principiou a disraí-
las com comentários satíricos às palavras do sermão
e à figura do orador, que ambas ofereciam farto alimento para eles.

Daí a pouco Madalena instava já com Henrique para que se calasse.

Previa o perigo que poderiam correr, persistindo naqueles comentários
impróprios do lugar.

Efectivamente não tinham passado despercebidos do padre os comentários
de Henrique, nem os sorrisos mal disfarçados de Madalena; e a raiva
despertada pela descoberta cada vez inflamava mais o orador, exacerbando-lhe
a virulência da frase.

Já não podia tirar os olhos daquele grupo, e por vezes a cólera
estrangulando-lhe quase a laringe, interrompera-lhe o discurso.

Alguns ouvintes, seguindo a direcção daqueles olhares faiscantes,
haviam atingido já a causa deles.

Daí algumas murmurações que principiaram a sussurrar
pela igreja.

No grupo das beatas, em que estava Ermelinda, foram elas mais acerbas do
que nenhumas. A Sr.a Catarina e as suas companheiras fartaram-se de anatematizar
a impiedade e a heresia da gente do Mosteiro, e no coração da
filha do Cancela, dominado pelo terror que o sermão levara ao cúmulo,
calavam aqueles dizeres, que a faziam quase olhar, como se fossem já
presas do Inferno, para Madalena e Cristina, a irmã e a prima de Ângelo,
do- seu amigo de infância, em.quem já não se atrevia a
pensar.

Numa ocasião em que o missionário fulminava com mais veemência
os progressos da indústria moderna e chamava redes do Demònio
e caminhos do Inferno aos telégrafos eléctricos e às
vias férreas, Henrique aproximando-se dos ouvidos das duas primas,
fez não sei que reflexão tanto a propósito, que a morgadinha
não conteve o riso ; a própria Cristina sorriu também.

Era de mais ! O padre pulou no púlpito. com os olhos em chamas, as
faces apoplécticas, os lábios espumantes, os punhos cerrados
e os braços hirtos e estendidos na direcção de Henrique,
rompeu nestes violentos termos: — Fora do templo, pedreiros-livres,
que vindes aqui escarnecer da palavra do Senhor ! Fora do templo, ímpios
libertinos, que não respeitais os ministros de Deus, nem o seu altar
! Andam lobos no povoado e vieram esconder-se entre as ovelhas na casa do
Senhor ! Escorraçai- os, irmãos, se não queréis
que se vos pegue a lepra do pecado e que Deus arrase esta aldeia, como arrasou
Comorra e Sodoma. São esses os que trazem das cidades a peste para
as aldeias ; são estas as pragas que nos vêm com as estradas
e com a civilização. Fugi deles, que trazem o Demônio
na alma! Homens sem religião, mulheres sem temor de Deus, mações,
pedreiros-livres, vindes para aqui tentar as almas? Eu vos esconjuro! eu vos
requeiro! Vade-retro!, Satanás, vade- -retro ! vade-retro !…

E de cada vez que repetia a fórmula exorcista, o missionário
estendia o braço na direcção de Henrique.

Este, desde que viu que a imprecação lhe era dirigida, levantou-se
e fitou o padre com ousadia imprudente. Preparava-se para lhe responder ali
mesmo.

Quando o missionário concluiu, o sussurro da igreja degenerou m desordem.
Das beatas transmitiu-se a revolta aos homens do campo, cuja mã vontade,
para com a gente das cidades, cresce sempre que e suspeitam alvo dos desdéns
ou zombarias desta. As ameaças soavam á distintas, os varapaus
mexiam-se pouco pacificamente, o escândalo ornara proporções
assustadoras.

Cristina quase desfalecia; Madalena, pálida, mas sem perder a presença
de espírito, que nunca a abandonava, segurou o braço de Henrique
e queria obrigá-lo a retirar-se da igreja.

Henrique resistia e procurava falar.

O velho Torcato, trémulo e enfiado, puxava também por ele
como podia.

O alarido, a confusão, a desordem recrudesciam. O padre tinha perdido
a cabeça, e do púlpito animava a anarquia, berrando e bocejando.

Alguns homens prudentes, e entre eles o santo homem de um cura que havia
na freguesia, obrigaram, quase à força, Henrique a sair da igreja
por a porta da sacristía.

Ao vê-lo retirar, acompanhado das senhoras, o povo precipitou- se
em confusão para a porta principal, para os vir esperar à saída
da sacristia, e correu clamando atordoadoramente.

E defeito, quando ali chegaram, viram-se em frente de uma impenetrável
parede humana, de centenares de rostos que os fitavam furiosos, de braços
que os ameaçavam, e de bocas de onde partiam gritos de «morte
aos pedreiros-livres, aos libertinos e aos hereges».

Madalena recuou ; Cristina encostou-se-lhe ao ombro, quase desmaiada.

Henrique parou à porta, pálido, mas sem recuar diante daquela
gente furiosa e ameaçadora.

— Que querem de mim e destas senhoras ? — perguntou ele, com
voz firme.

Em vez de responder-lhe, berraram com mais violência: — Morra
o pedreiro-livre ! — Ensinem esses senhores da cidade I — Pouca-vergonha
! — Isto não fica assim ! Isto é de maia ! — Mação
! — Herege ! — Quero passar ! — repetiu Henrique, no mesmo
tom imperioso.

— Havemos de ensinar estes fidalgos.

— Excomungados ! — Havemos de lhes dar os risinhos na igreja.

Henrique não podia já reprimir a impetuosidade do gênio;
deu um passo para eles, levantando o chicote que trazia na mão.

Era uma imprudência perigosa. Num momento uma verdadeira nuvem de
varapaus cruzou-se sobre a cabeça dele.

E os gritos de «morra! mata! abaixo os pedreiros-livres e hereges
! » levantaram-se mais ameaçadores do que antes. Madalena susteve,
a tremer, o braço de Henrique.

E o tumulto crescia cada vêz mais e cada vêz mais aumentava
o perigo.

uma grande pedra, impelida de longe, veio bater na verga porta da sacristía,
e na queda ameaçava ferir a cabeça de uma criança que,
entremetendo-se no grupo dos amotinadores, conseguira colocar- se junto de
Madalena, e de olhos espantados assistia àquilo tudo com infantil curiosidade,
enquanto a mãe aflita a chamava em altos gritos, procurando-a no adro.
A morgadinha, estendendo as mãos para proteger a cabeça da criança,
foi ferida nos dedos pela pedra. com gesto sereno, e em tom desafectadamente
repreensivo e ao mesmo tempo plácido, disse para tôda aquela
gente : — Não vêem que iam matando esta criança
? Esta simples acção, e estas palavras da morgadinha, produziram
mais efeito do que todos os arrazoados e todas as resistências. Havia
nelas claros indícios de uma índole generosa, e a generosidade
foi e será sempre um dos mais poderosos elementos para dominar e comover
as massas. Sabem-no os especuladores políticos, que tanto se esforçam
por simulá-la, quando precisam do povo.

— Quem foi que atirou a pedra ? — perguntou um.

— Temos tolice ! — Nada de pedra, olá ! — Então
isto é coisa de garotos ! Estava a quebrar-se a fúria da onda
popular. Os que antes gritavam «morra» achavam já repreensível
a primeira tentativa de lapidação.

E contudo era a pedra a arma mais pronta para executar a sentença.

Era evidente que o maior perigo passara e que um pouco de prudência
resolveria a crise.

O pior era que Henrique possuía em pequeno grau essa qualidade, e,
irritado pelo insulto, ia cometer talvez algum acto irreflectido, apesar dos
esforços de Cristina e de Torcato para o reprimirem.

uma circunstância, porém, veio inesperadamente em auxílio
deles, e concorreu para dissipar a tempestade.

Foi o caso que, depois de ser posto fora da igreja o Zé-Pereira,
que, pelas razões que o leitor já sabe, e ainda mais depois
do malogro da interpelação ao missionário, não
olhava com bons olhos para este, veio desconsoladamente sentar-se no adro,
sobre os degraus de um cruzeiro, tendo ao seu lado o popular tambor, instrumento
das suas glórias, e que ainda naquele dia servira à frente da
procissão.

Aí se conservou enquanto durou o sermão. Junto do artista
deitara- se a dormir o seu satélite, o rapaz do bombo, o que, a passadas
compassadas e valentes, secundava os rufos rápidos e febris que o outro
executava na caixa — pancadas que eram, por assim dizer, as vírgulas
daqueles floridlssimos períodos acústicos.

Em posição de cansaço e desalento o Zé-Pereira
monologava, como era hábito seu, sempre que tinha o cérebro
repassado do espirito familiar.

Lamentava consigo, o bom do homem, o desmazelo doméstico da sua cara-metade
; a influência funesta dos missionários na paz das famílias,
e sobretudo a indiferença que principiava a perceber nas massas para
as maravilhas do predilecto instrumento, que ele conhecia a preceito.

Era de facto esta uma das causas dos pesares secretos do hortelão.

Desde que, por influência do mestre Pertunhas, se instituíra
a filarmónica na aldeia, Zé-Pereira andava triste e desassossegado.

Naquilo viu ele a morte da sua arte. Um ceci tuera cela, como o que preocupava
e entristecia o arcediago de Notre-Dame de Paris, analogamente inquietava
o nosso homem. O espírito e gosto público entravam em nova fase,
preparava-se uma revolução na arte. O reformado era o mestre
Pertunhas ; instituindo a banda marcial, verdadeira extravagância romântica
comparada à simplicidade e nobreza clássica dos portentosos
rufos do Zé-Pereira, o mestre de latim realizou um cometimento digno
de menção na história da arte.

Pobre Zé-Pereira! Estas reflexões estavam-lhe acudindo todas,
e mantinham-no, havia perto de uma hora, em uma posição contemplativa
diante do tombado instrumento de seus ruidosíssimos triunfos. Lia-se
naqueles olhares fixos uma melancolia quase poética.

Nesta contemplação o surpreendeu a tumultuosa e súbita
saída do povo pela porta da igreja, e as cenas de motim que se lhe
seguiram.

A inteligência perra de Zé-Pereira não achou logo a
explicação do que via. Pouco a pouco porém os varapaus
no ar, os gritos, a confusão, principiaram a dar-lhe uma vaga consciência
da desordem popular.

Os instintos ordeiros e pacíficos de Zé-Pereira acordaram,
e o homem ergueu-se.

Olhou algum tempo para o lugar do maior tumulto, e em seguida passou ao
tiracolo a alça do tambor.

Olhou outra vez, e com um pontapé acordou o seu satélite,
que, estremunhado, tomou automàticamente para si o bombo do acompanhamento.

Olhou outra vez, e viu nos ares a pedra que feriu Madalena. Então
o Zé-Pereira não esperou mais nada, tomou uma resolução,
fez um sinal ao rapaz, e ..

Pom — fez a baqueta deste, caindo com tôda a força sobre
a retesada superfície do bombo.

Taplão, taplão, rataplão, rataplão…—responderam
as baquetas movidas pelas amestradas mãos do Zé-Pereira.

Muitas cabeças de amotinados voltaram-se na direcção
do som.

O Zé-Pereira prosseguiu; adquiria cada vez mais velocidade o jogo
das baquetas; começava a ganhá-lo o vapor do entusiasmo.

Principiou a acudir o povo para junto do artista.

Este tomara-se já do raptus, do frenesi musical. Já não
eram só as mãos, eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça
que rufavam.

De olhos fechados, dentes ferrados nos lábios, ventas ofegantes,
contraídos quase titànicamente os músculos do pescoço,
a vergá-lo para trás, Zé-Pereira parecia endemoninhado.
Não via, não ouvia, não sentia, não tinha consciência
de si, nem dos seus actos ; todo ele era fogo, delírio, convulsão,
febre, loucura. Parecia que poderosas correntes eléctricas se transmitiam
do tambor ao cérebro, e do cérebro ao tambor, desafiando aqueles
movimentos choreicos, aqueles grunhidos surdos, aquelas visagens extravagantes,
aquelas contracções gerais, que o torciam, desconjuntavam e
desfiguravam.

Vencera-o completamente a febre ; sangue, nervos, músculos, cérebro,
tudo era domínio seu ; congestionado, alucinado, louco, rufou, rufou,
rufou com desespero, rufou até as baquetas se não avistarem,
de rápidas que se moviam; rufou até o ouvido quase não
perceber a descontinuidade dos sons ; rufou finalmente até cair por
terra exausto, no colapso que sucede às convulsões do espasmo.
Se tinha de ser aquele o declinar de uma glória, todos os astros lhe
invejariam tão esplêndido crepúsculo O povo inteiro aplaudiu
o artista.

E quando voltaram a si do êxtase em que ele os tivera, acharam já
fechadas as portas da sacristía e nem vestígios da família
do Mosteiro.

O povo dispersou pacificamente.

— Foi isso que jurou, ou antes que não procuraria ser visto
? — perguntou Madalena, sorrindo. — Veja qual desses juramentos
será mais em harmonia com os seus actos.

A lembrança da excursão nocturna aos Canaviais, para espiar
Madalena, tirou a Augusto o ânimo de responder.

Madalena compreendeu aquele embaraço, e não insistiu.

— Mas suponhamos que assim foi ; visto isso, parte para buscar as
provas da sua justificação? — Não, minha senhora,
parto, porque desisto dela. Basta-me estar justificado para com a consciência.

— Não tem direito de o fazer. uma alma, que é nobre,
deve homenagem a si própria. Resignar-se à suspeita, é
como um suicídio moral.

— Justamente, minha senhora; e não concebe que haja casos em
que o suicídio seja natural? — Meu Deus, Augusto — exclamou
Ângelo — como eu o estranho ! o que o levou a esse desespero ?
A morgadinha sorria, ao responder ao irmão : — É uma febre
que passa, verás. Quer que lhe fale com franqueza, Sr. Augusto? Tenho
um secreto pressentimento a dizer-me que, apesar dessa descrença, apesar
dessa carta, e apesar de estar por minutos o momento da partida, não
só não partirá, mas até há-de tomar parte
na nossa primeira festa de família, a do próximo casamento de
Cristina.

Estas últimas palavras fizeram impressão em Augusto, que instintivamente
repetiu: •— Do próximo casamento de Cristina ? ! —
Pois não sabia que Cristina vai casar ? — perguntou Madalena
com a maior naturalidade, mas fitando os olhos em Augusto. — É
verade, o Sr. Henrique de Souselas teve pressa de legitimar o título
de irimos, com que arbitrariamente nos tratávamos.

Augusto olhou para Madalena, com indefinivel expressão, dizendo :
— Quê?… pois é com Cristina… pois Henrique vai casar
com…

Só depois de lhe romperem dos lábios estas palavras, é
que, reconhecendo a indiscrição da sua surpresa, acrescentou
com mal simulada indiferença: — Ah ! não sabia ! —
Deveras ? Pois não tinha ouvido falar deste casamento ? Oh !…

querem ver que supunha também que era eu que me casava?… Digo sto,
porque o Cancela também estava na mesma crença. Parece que correu
essa voz na aldeia. Estes boatos !… E acham logo quem se fie eles! E, mudando
de inflexão, prosseguiu: — São dois noivos exemplares,
Henrique e Cristina, perdidos um por o outro. Cristina, com a sua timidez,
exerce um forte império sobre aquele incorrigivel da capital. Mas para
isso foi preciso encontrá- lo doente. Tenho orgulho de ser eu a primeira
a legitimar, de alguma maneira, aquela simpatia. Foram singulares as circunstâncias
em que isto se efectuou. Eu lhe conto. Foi de noite, e noite de chuva, na
capela- -mor da minha propriedade dos Canaviais, onde Cristina fora rezar,
pela saúde de Henrique, as estações da meia-noite; onde
Henrique foi para seguir e observar Cristina, e onde eu fui, com a Brísida,
para os vigiar a ambos e preparar-lhe o futuro; intervenção
algum tanto perigosa; porque podia haver quem me seguisse a mim com menos
generosas intenções de que as de qualquer dos três, e
que, ao ver-me em tão extraordinário sítio, a tais horas,
não me concedesse a confiança precisa para acreditar, através
de tudo, na minha inocência.

A alusão era clara, e mais clara a fazia a inflexão com que
foi pronunciada.

Augusto curvou a cabeça e murmurou: — Tem razão, algum
miserável.

— Ou algum infeliz — corrigiu delicadamente Madalena. —
Os infelizes são também sujeitos a perderem a fé. Mas
quem lhes pode levar a mai isso? Houve alguns instantes de silêncio,
no fim dos quais a morgainha disse mais jovialmente : — Mas afiancei
há pouco que não partiria. Acaso me enganei ? Augusto, como
o leitor concebe decerto, já não tinha ânimo nem razão
para dizer que partia. Calou-se.

Ângelo, a cuja pronta inteligência não tinha ficado latente
o verdadeiro sentido deste diálogo, graças também ao
conhecimento que le tinha, havia muito, do coração de sua irmã
e do de Augusto, respondeu por ele: — Não te enganaste, não,
Lena. Também eu já digo que Augusto não partirá.

E Augusto sem protestar ! Madalena tornou-se de subito mais séria
e grave do que até ali, e a mesma gravidade tinha na voz, quando de
novo se dirigiu ao irmão, dizendo : — Para vir aqui, pedi o auxílio
do teu braço de criança, Angelo, como se fora o de um homem.
Deixa-me considerar-te por mais algum tempo ainda da mesma maneira, enquanto
não termino a minila missão.

Há pouco, depois que me leste a carta, que a ti tinha sido dirigida,
perguntaste-me: «Que tencionas fazer?» Não é assim?
— Foi, e tu respondeste-me o que eu esperava. Pediste-me que te acompanhasse
aqui.

— Hás-de ter já percebido que o pensamento que me obrigou
a este passo, que não sei se me deverão censurar, creio até
que devem, que esse pensamento não está cumprido ainda. , —
Vejo que não.

— Pois é diante de ti, Ângelo, que considero como um
homem, como um bom conselheiro, é diante de ti como seria diante de
quem quer que ai estivesse em teu lugar a ouvir-me, que eu vou concluir o
meu pensamento.

E voltando-se para Augusto, Madalena acrescentou, com firmeza, que só
um demasiado rubor trairia, se a luz fosse bastante para o denunciar.

— Augusto, está pobre, sem família, sem amigos, e, para
última provação, até as traições
e as suspeitas lhe não pouparam o nome honrado que herdou. Essa posição
dá-lhe direitos que eu sei compreender, creia. É uma espécie
de nobreza, de que se não pode exigir humilhação alguma.
Por isso, sem hesitar, com toda a lealdade, vim aqui em companhia de Ângelo
estender-lhe a mão e dizer-lhe que se, como tenho razão para
crer, as simpatias de uma alma que há muito o compreende, Augusto,
se essas simpatias podem bastar às aspirações da sua,
se para ganhar coragem, os meus afectos lhe podem servir, conte com o auxilio
da minha alma… e dos meus afectos. É diante de ti, que faço
esta confissão, Ângelo. Terás que me ralhar por causa
dela? Ao ouvir aquelas palavras, Augusto esqueceu toda a hesitação
e tomando entre as suas a mão que Madalena lhe estendia, cobriu-a de
beijos apaixonados.

Madalena nao teve pressa de retirá-la.

Ângelo veio também beijar as faces da irmã. Era assim
que respondia à pergunta dela.

Pobres crianças! Porque afinal eram crianças todos três,
crianças a quem ainda os romances namoram, sem que se lembrem de que,
ao transplantá-los para a vida real, todos os desconhecem e censuram,
e só regando-os de lágrimas é que as mais das vezes se
consegue nutri-los.

XXXIII O olhar de Augusto radiava já com o vivo fulgor da alegria.

— Obrigado, Madalena, deu-me a vida com essas palavras geneosas.

Deixe-me adorá-la, anjo, anjo libertador ! Compreendo os devees que
tenho a cumprir. Hei-de ter força para conquistar as provas a minha
inocência. Preciso agora delas; hei-de obtê-las, e depois…

Aqui reteve-se de súbito, e uma nuvem de tristeza toldou-lhe e novo
o rosto.

Madalena, como se o compreendesse, concluiu: — E depois sou eu quem
tem o direito de exigir que não parta.

Bem vê que, depois do passo que dei, se algum escrúpulo ou
orgulho pesasse no seu coração, Augusto, seria uma dolorosa
ofensa que me fàzia. Aceitou a mão, que eu com lealdade lhe
ofereci ; a lealdade obriga- o agora a seguir o caminho do Mosteiro.

Depois de alguns instantes de reflexão, Augusto respondeu outra vez
com firmeza : — Tem razão, Madalena. Terei coragem para cumprir
o meu dever.

Escusado é dizer que o Herodes teve de partir só O bom homem
ficou espantado ao encontrar em casa de Augusto tão inesperada companhia,
mas não lhe foi dificil, depois do que viu ouviu, conjecturar qual
a natureza dos motivos que tinham feito mudar e resolução o
seu companheiro de jornada.

Partiu, desejando todas as felicidades aos seus amigos.

Estes nao conseguiram dissuadi-lo de partir.

Não havia já estimulo para arrancar aquele coração
ao desalento.

Madalena e Ângelo voltaram ao Mosteiro.

O resto da noite de Augusto passou sob a influência de tão
vioentas paixões, que desisto de descrevê-las.

manhã do dia seguinte estava toda a família de Madalena, na
qual incluímos ]á D. Doroteia e Henrique, reunida em uma das
salas do Mosteiro.

As duas primas, Madalena e Cristina, trabalhavam em costura; Angelo e Henrique,
jogavam o xadrez; D. Doroteia e D. Vitória, conversavam a respeito
do preço de umas meadas de linho, que esta tinha dado a corar, e da
péssima qualidade do fiado, efeito evidente, segundo D. Vitória,
das criadas que tinha, que nem para fiar serviam. O conselheiro examinava
distraído vários memoriais e cartas de empenho, que recebera,
já a pedir empregos e graças em paga dos serviços eleitorais,
às vezes hipotéticos.

A cada passo, porém, Madalena suspendia o trabalho para olhar para
a porta da sala, principalmente quando nos ‘imediatos aposentos se escutava
algum rumor; ou trocava olhares com Angelo, que não com menor freqüência
os desviava das pedras do tabuleiro para encontrar os da irmã.

Henrique também, de quando em quando, tinha que perguntar a Cristina,
e esta para lhe responder, julgava-se obrigada também a afastar os
olhos da costura.

D. Vitória e D. Doroteia não era raro meterem-se na conversa
dos outros, de onde fácil transição achavam logo para
voltarem aos seus assuntos favoritos : meadas e criados.

O conselheiro interrompia a cada momento a leitura com bocejos, ou fazia
notar alguma mais exorbitante pretensão de tantas que examinava.

Era evidente que todas aquelas cabeças estavam pouco preocupadas
com os assuntos aparentes das suas cogitações.

— Ó Lena ! — dizia Cristina, que pela terceira vez chamava
a prima, sem conseguir ser ouvida — que tens tu esta manhã ?
Que distracções são essas, que não respondes quando
te chamam? — Pois falaste-me? — É o que eu digo ! Ó
menina, há que séculos te estou eu a perguntar em que tempo
é que as laranjeiras têm flor? — Ah! Criste!—acudiu
o conselheiro do lado, sorrindo. — Esse pensamento é linguareiro
; ficamos todos sabendo aquilo em que tens estado a cismar.

Cristina corou intensamente, ao perceber o sentido das palavras do conselheiro,
e tentou defender-se, dizendo: — Ora, não era isso, tio. Eu perguntava,
porque ..

— Sossega, quando o véu estiver pronto, a laranjeira não
nos faltará com ramos e flores.

— Não, mano — disse D. Vitória — olhe que
se não trata de ver o que está dando nas laranjeiras, dentro
em pouco não há uma só na quinta. Que também para
serem comidas as laranjas pelos criados…

Porque quase que são só para eles. Não que não
faz idéia!…

E continuou com D. Doroteia a narração dos abusos de que os
criados eram culpados.

Dai a momentos foi o conselheiro o primeiro a falar.

— Esta é galante ! — disse ele, examinando uns papéis
e rindo.

— Ora oiça isto, Henrique. Aqui está um homem que deseja
que eu lhe empregue nada menos do que sete sobrinhos que tem. Sete ! É
uma geração como a de Jacob; se estivéssemos na corte
de Faraó!…

— Se se satisfizessem cada um com uma pasta?… Era um ministério
completo — disse Henrique.

— Oh ! oh ! — disse o conselheiro, passados alguns momentos.

— Cá está o meu amigo Pertunhas, teimando com o lugar
de recebedor.

— Pois o maroto ainda se atreve ? — E que despesa de estilo
que faz ! É uma ode congratulatòria em prosa.

Nestas entremeadas conversas e diálogos curtos e interrompidos passou-se
o tempo até à chegada do correio, sucesso que marca época
uma manhã passada na aldeia.

Naquele dia sobretudo eram esperadas com ânsia as cartas e os periódicos,
que deviam trazer notícias do resultado das eleições
dos diferentes círculos tío País.

O conselheiro já por três vezes consultara o relógio,
estranhando que o correio se demorasse.

Enfim, chegou. O conselheiro pôs de lado os memoriais e requerimentos
; Henrique deu súbito desfecho ao jogo com um lanço absurdo,
ambos se precipitaram sobre os periódicos e cartas ; Angelo veio encostar-se
ao espaldar da cadeira de Henrique.

O conselheiro principiou por 1er uma carta.

Henrique rompeu a cinta do primeiro periódico.

— Oh ! oh ! — disse o conselheiro, logo às primeiras
linhas que eu. — Temos crise ministerial. As eleições
foram pouco favoráveis ao governo; perderam-se em quase toda a parte!
— Assim também se depreende do estilo em que vem escrito este
artigo de fundo — disse Henrique.

— Dizem-me nesta carta que já se fala em que o ministério
vai pedir a sua demissão.

— Este artigo alude apenas a uma reconstrução do gabinete.

— «O Governo — prosseguiu o conselheiro, lendo —
nem espera pela constituição da câmara e cai por estes
dias, infaliveimente. Quando você receber esta, já talvez ele
pertença aos livros findos.» — «Diz-se que há
para esta noite conselho de ministros para resoler sobre qual o seu procedimento,
visto a índole provável na futura câmara» —
lia Henrique no periódico, que logo em seguida pôs de ado, para
consultar outro.

— «Não imagina — continuava o conselheiro, lendo
a carta — o movimento de ambições que vai já por
aqui». Ora se não imagino! — Um número do Sufrágio
Nacional !—exclamou Henrique, abrindo segundo periódico. —
Provavelmente é alguma amabilidade que lhe dirigem, sr. conselheiro;
eles que lho mandam! — Sim, decerto. como da outra vez. Veja lá
— disse o conselheiro sorrindo — aos moribundos tudo se perdoa.

Henrique correu a vista pela folha, para saber o que motivara a emessa dela
para o Mosteiro, onde não costumava vir.

— Ah ! temos correspondência cá da terra ! — exclamou
por fim.

— Deve ser isso. Já tardava. É o comunicado do Seabra.
Leia, que são curiosos. O homem a apreciar as eleições
de domingo deve ser soberbo. Isso não se pode perder. Leia, leia —
Assina-se Um eleitor indignado.

— Justo. É o estilo do homem. Vamos lá ver isso.

Henrique principiou a 1er em voz alta o comunicado do brasileiro.

A peça literária, de precioso lavor, em que o Sr. Seabra contava
ao mundo os factos eleitorais da sua terra, muito desejaria eu transcrevê-
la aqui, se, pela sua extensão, não tomasse demasiado espaço,
e se, pela sua unidade e estreita ligação lógica, se
não subtraísse à menor tentativa de fragmentação.

Aquele comunicado era indivisível.

Apesar desta forçada omissão, espero que os leitores farão
a justiça de supor o escrito digno do distinto economista, que ouvimos
discursar com tanta proficiência na taberna do Canada.

O homem escrevia recheado de indignação pela série
de ilegalidades, escândalos, subornos e pressões de todo o género,
de que.

dizia ele, fora teatro aquela pacífica aldeia do Minho.

„ Em linguagem chã e rude ia tornar patente, acrescentava,
aos olhos de todos uma pestifera chaga do organismo social. Sofismara-se a
urna e calcara-se aos pés a Carta. As frases em itálico são
dele, Depois de um exordio por esta afinação, em que fazia a
conveniente razão de ordem, entrava o homem na matéria. Era
um modelo .de impertinente bisbilhotice o escrito; desfiava-se ali a vida
de todos os eleitores com uma minuciosidade esmagadora.

Coniava-se como o compadre de Fulano dissera isto e aquilo ao sobrinho de
Sicrano, e como tal indivíduo fizera e acontecera; e como tal disse
que havia de fazer, e não fez ; e como aquele nem disse nem fez ; e
como aqueloutro dissera e fizera, e assim por diante. Um dos mais maltratados
era o Sr. Joãozinho das Perdizes. Dizia o autor da correspondência
que o morgado se tinha vendido por vinho; que exercera pressão sobre
os eleitores da sua freguesia; que era homem de péssimos costumes e
moral depravada; jogador, bulhento, beberrão cheio de dívidas,
amigo de malfeitores, etcefera.

O conselheiro e Henrique seguiam a leitura com gargalhadas.

O comunicado passava depois a ocupar-se com o mestre Pertunhas.

O brasileiro não lhe perdoara a pressa com que este celebrara a vitória
do conselheiro, à frente da filarmónica que regia.

Por vingança chamava-lhe todos os nomes injuriosos, que a raiva lhe
sugeria, inclusive o de estafador de trompa, e fechava por estas memoráveis
palavras : «Para levar à evidência o carácter infame
e intrìguista deste sevandija, basta que diga que foi ele que, poucos
dias antes, subtraiu de uma pasta aquela célebre carta política,
que tanto deu que falar no Pais.

E este homem exerce o cargo de administrador do correio. Proh pudor! como
o leitor imagina, esta parte da correspondência produziu sensação
no auditório.

Logo que Henrique concluiu a leitura, saiu de quase todas as bocas uma exclamação
de surpresa ou de alegria.

— como é?… como é?…—perguntou o conselheiro.
— Diz que…? — É o mistério que se explica —
respondeu Henriaue.—A traição encarrega-se de a si própria
se desmascarar.

— Então foi o Pertunhas? !… Mas… diz-se que tirou a carta
de uma pasta! — Era a de Augusto.

— Mas como estava ela aí ? — Lá isso sei eu como
foi — disse D. Vitória — fui eu que, por engano, lha tinha
dado junta com outras para ele escolher alguma para a leitura dos pequenos.

Cristina celebrou a descoberta, beijando com efusão a morgadinha,
e dizia: — Venceste,- Lena! agora está bem provada a inocência
dele, até para os que mais duvidavam ! — E quem não duvidaria?
— acudiu o conselheiro, como para se desculpar da desconfiança.

— Quem o conhecesse bem, meu pai — respondeu Madalena, a quem
a comoção recebida dava animação ao olhar e ao
semblante. — Eu e Ângelo, por exemplo.

— E então eu? —acrescentou Cristina. — Eu não
entro na conta ? Esta reclamação valeu-lhe da parte da prima
a paga do beijo que recebera.

— Olhem o pobre rapaz ! — dizia D. Vitória, sinceramente
consternada.— E eu que o tratei tão mal! Bem me dizia ele: «Não
tenha pressa de dizer nada a seus filhos, minha senhora, não lhes ensine
a duvidar de um homem que eles se costumaram a amar e a respeitar».

E o caso é que eu, desde que lhe ouvi dizer aquilo, de um modo tão
sério e triste, fiquei ressentida, e não disse nada às
crianças, que todos os dias me perguntavam ainda por ele.

— Mas…—dizia D. Doroteia, deveras embaraçada —
eu não sei ainda bem do que se trata. Pois suspeitavam de Augusto?…
Mas o quê ?…

— Ó tia Doroteia! — atalhou Henrique— por quem
é, não insista na pergunta. Depois que se sabe que uma suspeita
é falsa, não há nada que mais escalde os lábios
do que obrigá-la de novo a passar por eles.

— Tens razão, menino. E que precisão tenho eu de saber
uma coisa que não é verdadeira ? Mas na verdade ! Suspeitaram
de Augusto ! Ah! Henrique, está-me a parecer que também tu tens
esse pecado a pesar-te na consciência. Ora anda lá.

I — Não, tia. Há muito que lhe faço justiça.
Ao princípio não digo que não. Mas durou pouco tempo
e já estava arrependido. Augusto convenceu-me pela maneira com que
me falou, convenceu-me sem provas : e até se, em expiação,
me não pus em campo a auxiliá-lo a justificar-se, é porque
ele exigiu que me abstivesse disso, e depois, o meu desastre… quero dizer
— emendou, olhando para Cristina — a felicidade que me procurou
sob a forma de doença…

Cristina pagou-lhe com um sorriso o galanteio.

O conselheiro, que ficara pensativo depois das primeiras reflexões
que lhe ouvimos fazer, disse suspirando : — Estou sentindo verdadeiros
remorsos pelo mal que por certo causei àquele rapaz com as minhas suspeitas.
Mas que havia eu de fazer? As aparências eram-lhe contrárias!…
E depois, nesta vida de política, aprende-se tanto e tão depressa
a duvidar! É sorte minha! Homens, a quem eu estimava deveras, foram
exactamente os que mais fiz padecer ! Senão, vejam : o ervanário,
meu companheiro de infância, e que sempre me teve amizade, apesar das
aparências rudes de que a revestia, dispuseram-se as coisas de modo
que o privei da casa em que nasceu e talvez lhe apressasse com isso a morte…
E ele, coitado, vingou-se nobremente; mas vingou-se, porque nunca mais me
sairá da idéia aquela cena da igreja. Augusto, um rapaz que
conheci pequeno, e já então de viva inteligência e de
sentimentos nobres… pois tudo se conspirou para o perder, e não só
o privei do modesto lugar que ele exercia, mas até levantei contra
ele uma acusação infamante, e quase o expulsei de minha casa
.. É triste que a vida política me tenha obrigado a estas crueldades
! Preciso de compensar de alguma sorte o mal que fiz. De que maneira lhes
parece melhor? — Eu se fosse — disse D. Doroteia — fazia
como a morgada, e o rapaz, em vez de vir a ser só padre, havia de se
formar em Coimbra, como o reitor de Friande…

— Isso era se ele quisesse ser padre ; — acudiu D. Vitória
— mas parece-me que não quer. Nada, nada, eu o que fazia era
demitir aquele velhaco do Pertunhas, e dava a este o lugar de mestre de latim,
e arranjava que ficasse também com o correio. Ora anda, já que
o outro foi tratante !…

O conselheiro sorriu ao expediente da cunhada, e não pôde deixar
de dizer: — Nesse caso deixava só ao Pertunhas a regência
da filarmônica? E tu, Lena, qual é a tua opinião? Madalena
respondeu sem vacilar: — A minha opinião é que o pai deve
ir a casa de Augusto pedir- -lhe humildemente perdão pela ofensa que
lhe fez.

— Mas involuntária — ponderou o conselheiro, em tom de
despeito, que não pôde bem disfarçar.

— Mas ofensa — repetiu Madalena, sem que o sorriso dissipasse
totalmente a força da expressão.

— É um pouco dura de cumprir a sentença, sobretudo esse
advérbio humildemente… Não lhe parece? — perguntou o
conselheiro, voltando- se para Henrique.

— Eu tinha vontade de dizer também a minha opinião —
respondeu Henrique; — mas receio certos melindres… Contudo, parece-me
que encontraria uma recompensa, que poderia fazer esquecer a Augusto a ofensa
e dores muito mais pungentes do que as que sofreu em virtude desta desagradável
ocorrência.

— Qual é ? — perguntou o conselheiro.

Henrique olhou para Madalena, respondendo: — Repito que tenho escrúpulos
em dizê-lo, porque talvez não seja eu o mais competente para
o fazer.

— Tem razão, primo — disse Madalena. — Ele próprio
o dirá.

É mais natural.

— Mas sabe-lo também tu, Lena ? — Sei.

— Então diz-no-lo. Melhor para mim, se puder prevenir desejos.

Madalena hesitou.

— Vamos, Henrique — disse Cristina, sorrindo — não
esteja com tantos escrúpulos. Diga o que pensa.

— Pois quer? mas se sua prima me não perdoa? — Eu o protegerei.
Fale.

— Então, Criste ? — tornou Madalena.

— Bem; nesse caso… Visto que mo ordena quem pode.

— Fale, fale—disseram a um tempo o conselheiro, D. Vitória
e D. Doroteia.

— Falarei. A recompensa a que Augusto aspira é a de fazer parte
da família de… da nossa família—respondeu Henrique,
olhando para Madalena, que já não tentava retê-lo.

— De fazer parte da nossa família ? — repetiu o conselheiro.
— Mas como? — como há-de ser? visto eu não estar
resolvido a prescindir de.

Cristina, e Mariana ser ainda criança, fácil é de conjecturar
o único meio que ainda resta de realizar aquela pretensão.

O conselheiro compreendeu afinal e, fitando Madalena, pôs-se a rir,
dizendo: — Pobre rapaz ! Pois meteu-se-lhe isso na cabeça ? —
Mas que é afinal ? eu não entendo — dizia, embaraçada,
D. Vitória.

— É uma coisa muito simples — respondeu Henrique. —
Augusto sentiu o efeito dos encantos da minha prima Madalena, mas sentiu-os
a ponto de ligar a eles a sua felicidade, e de cair em adoração
para com a magnetizadora.

Esta explicação foi recebida com espanto por D. Vitória.

— Ora ! está a brincar, primo Henrique ? Não ouve aquilo,
prima Doroteia ? • — Mas que é, que é ? —
perguntou esta.

— Dia que o Augusto aspirava ..

— Perdão, eu disse que o Augusto adorava e não aspirava.
Quem pode tomar contas a um coração do culto que ele guarda
religiosamente em si ? A prima Lena é adorada por aquele rapaz, isso
afirmo eu, porém…

— É possível ! — exclamou também D. Doroteia,
espantada. — Por essa nao esperava eu. Olhem para o que lhe havia de
dar! Pobre Augusto ! O conselheiro ria ainda da notícia que recebera.

Madalena corou ao ouvir todas aquelas exclamações de estranheza.

Cedendo ao impulso enérgico do seu caracter impetuoso e apaixonado,
disse com vivacidade: — Não sei que haja no que diz o primo Henrique,
nada que mereça esses espantos. Pois quem sou eu afinal? Que distância
me separa da humanidade, para que se tenha por um desacato uma afeição
que inspire? É verdade. Julgo que não se enganou o primo Henrique.
Também eu descobri esse afecto em Augusto. Nasceu-lhe no coração
e não na cabeça, meu pai. Há muito que o sei, e nunca
a descoberta me causou o espanto que vejo nos outros. Digo mais, causou-me
orgulho.

Orgulho, sim, porque é natural senti-lo por ter inspirado sentimentos
daquela ordem a um carácter generoso que, experimentado pelo infortúnio,
saiu sempre da prova mais nobre e mais puro do que dantes.

O conselheiro, que ouvira a filha com impaciência, acudiu, em tom
profundamente irritado: — Bem, bem, deixemo-nos de loucuras e de poesias,
Lena. Vê lá se me queres fazer acreditar que a vida da aldeia
te estragou o natural bom senso, até ao ponto de tomares a sério
fantasias e criancices.

— Não é fantasia nem criancice, é uma resolução
de mulher —• respondeu Madalena, com firmeza.

— uma resolução de criança, que está na
minha mão remediar ,— tornou o conselheiro, como quem desejava
cortar o incidente.

Porém para o gênio de Madalena já não era possível
recuar nem parar ; replicou : — Talvez não. Deixe-me então
dizer-lhe tudo, meu pai. Augusto nunca me revelou esse segredo do seu coração.
Adivinhei-lho eu.

Longe de procurar ser entendido, ocultava-se e fugia; ainda ontem estava
resolvido a deixar a aldeia para sempre.

— Mas ficou — notou o conselheiro com ironia.

— Ficou — respondeu tranquilamente Madalena — porque eu
lhe pedi que ficasse.

O conselheiro, ouvindo estas palavras, estremeceu de surpresa e fitou a
filha com olhar severo e interrogador.

A morgadinha prosseguiu com uma serenidade, que ocultava um esforço
interior: — Ficou, porque eu lhe disse que o havia compreendido e que
aceitava a afeição desinteressada e pura que ele guardava no
coração ; ficou, porque eu, que só tarde soube do desespero
que o obrigava a partir, e que o sabia tão leal como pobre, tão
inocente como perseguido pelo infortúnio eu, que o vi quase expulsar
desta casa, sob o peso de uma acusação em cuja verdade nunca
pude acreditar, julguei do meu dever ir eu própria procurá-lo
para lhe estender a mão e dizer-lhe: «Fique, e prometo-lhe que
todos lhe farão justiça em breve».

Quando Madalena acabou de dizer estas palavras com firmeza e exaltação
crescentes, ninguém ousou falar na sala ; e os olhos de todos dirigiram-se
quase instintivamente para o conselheiro.

Cristina tremia ; as outras senhoras pasmavam ; Henrique e Angelo sentiram-se
profundamente inquietos.

Todos viram passar por diferentes cores as taces do conselheiro, os lábios
agitaram-se num tremor convulso, e com a voz evidentemente alterada pela cólera,
disse para a filha, passados alguns instantes: — Pois saiba, senhora,
que para as leviandades de uma rapariga estouvada, há meios mais racionais
do que esses que parecem naturalíssimos à sua razão estragada
pelos romances. Eu ainda não prescindi da minha autoridade paterna,
e ela me servirá para corrigir essas levezas, de que deveria envergonhar-se.

Esta cena de família aumentava cada vez mais a dificuldade da posição
de todos os que estavam presentes. Ninguém ousava intervir, ou, desejando-o,
ninguém sabia a maneira de o fazer.

Entre as falsas situações, em que nos achamos às vezes
nesta vida, poucas se podem comparar no incómodo que produzem, à
de assistir a uma questão doméstica, por qualquer motivo que
seja originada.

Quem se conservou daquela vez menos inactiva foi Cristina, que prendeu Lena
nos braços, não sei se para instintivamente a defender, se para
reprimir-lhe o ímpeto de reacção que receava nela.

A morgadinha efectivamente repeliu-a com brandura de si e respondeu ao pai
: — As vezes aos caracteres levianos estão confiadas tarefas
generosas.

Cabe-lhes sanar muitas injustiças que por cálculo os mais
reflectidos, e por isso mais desconfiados, praticam sem piedade. Não
me envergonho nem arrependo do passo que dei. Não fiz mais do que salvar
do desespero uma alma nobre e magnânima, que, se se perdesse, talvez
um dia a sua consciência, senhor, o acusasse de não ser inocente
nessa perda. Quis evitar-lhe remorsos, meu pai. Se isto foi leviandade, que
os anos ma não dissipem, como dizem que costumam fazer, porque prefiro
ser leviana assim, a ser cruel como…

O pai atalhou-a e, cada vez com mais veemência, replicou: —
Pois siga, se quiser, a sua fantasia, senhora, mas ierá de escolher
entre os seus caprichos e a minha aprovação. F’que certa que,
com o consentimento meu, nunca um rapaz pobre, sem família e sem posição,
especulará com o estouvamento de uma herdeira rica, que, tão
esquecida do que deve a si e aos seus, não hesitou em o procurar na
própria casa, sem reparar que estava sendo vítima de uma comédia
armada à sua crédula sensibilidade.

Antes do conselheiro concluir estas palavras estava alguém mais na
sala.

Era Augusto.

Da sala próxima, onde chegara muito antes ouvira ele o que o conselheiro
dizia em tom elevado, e o sentido das palavras que ouviu venceu-lhe tôda
a hesitação e obrigou-o a entrar.

O conselheiro reparando de súbito nele, interrompeu-se e parou, Augusto
respondeu-lhe então com dignidade e tristeza: — Esse rapaz pobre,
sem posição e sem família, tem nesse tríplice
infortúnio outros tantos títulos para ser respeitado dos felizes,
como V. Ex.a, e eu não prescindo desses direitos.

O conselheiro continuava silencioso, como hesitando no que devesse responder
a Augusto. A. irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas
já lho não permitia a consciência.

Augusto continuou : — Sei que V. Ex.’ está já convencido
de que as suspeitas, que pesavam sobre mim, eram injustas. Nesse periódico,
que ainda tem na mão, vêm as provas da minha inocência.
Vi-o em casa do Seabra, de onde venho agora. Procurei-o, decidido a saber
toda a verdade por qualquer preço que fosse ; ele não ma negou
; contou-me tudo. Por isso, ao vir aqui, sr. conselheiro, ao voltar a esta
casa, onde era recebido como amigo, antes que me expulsassem dela como infame,
esperava encontrar a receber-me a justiça e a amizade… Enganei-me;
em vez delas, foi o insulto, mais pungente e menos justificado do que o primeiro,
que eu encontrei ! — Menos justificado ? — repetiu o conselheiro,
azedadamente, — Menos justificado, sim, muito menos ; porque V. Ex.a
podia julgar- me criminoso, pode julgar-se com direito de duvidar de mim,
mas nao tem o de duvidar de sua filha; porque a Sr.a D. Madalena pedindo a
seu irmão que a acompanhasse a casa de um pobre, que ela sabia ser
vítima de uma imerecida acusação, e a quem o desalento
e o desespero faziam sucumbir, não se esqueceu do que devia a si e
aos seus; pelo contrário, aos seus devia aquele acto de sublime generosidade,
porque das mãos dos seus viera o golpe que me ferira. Eu tinha sido
expulso desta casa, sr. conselheiro, como um miserável e infame ; os
filhos de V. Ex.ª, que sempre foram meus amigos, a quem V. Ex.* ensinara
a sê-lo, vieram à minha dizer-me : « Não parta,
deve à nossa confiança a justiça de ficar».

— É verdade — disse Ângelo — eu acompanhei
Madalena. O pai diz-me muitas vezes que não tenha pressa de principiar
a duvidar ; eu não podia principiar por Augusto. Não duvidei.

O conselheiro respondeu a Augusto com reserva e mal disfarçado despeito,
ainda que em tom moderado: — Sei que fui injusto consigo, Augusto, e
sinto-o do coração, creia.

Ainda que as aparências o culpassem, arrependo-me de não ter
tido mais força a minha confiança para não ceder. Peço-lhe
por isso… humildemente…

perdão, Iria a sua casa pedir-lho se não viesse aqui. Que
mais quer? Acha-se com direitos a exigir mais? Será isso motivo para
antever realizadas loucuras de rapaz?…

Augusto não o deixou continuar.

— Oiça-me, sr. conselheiro — disse ele plàcidamente
— diante de todas as pessoas que me escutam, lealmente e sem hesitar,
patentearei o meu coração. É verdade que essas loucuras
se apoderaram de mim, que desde criança até hoje, tenho sido
todo delas ; mas que importam aos outros, se eu comigo as guardava? se nunca
por elas regulei os actos da minha vida? Ocorrências imprevistas me
arrancaram este segredo, que eu fiz sempre por sufocar. Nem ambições
me despertou, como meio de realizá-lo, porque nem eu realizá-lo
pensava.

Resignar-me-ia a morrer com ele, sem o revelar a ninguém ; mas adivi
nhado por quem o fizera nascer, e, deixe-se-me o orgulho de o dizer, adivinhado
e correspondido, que muito era que me tomasse a vertigem, e que eu por momentos
me deixasse cegar pelo fulgor de imprevistas esperanças? Perdoe-se-me
a franqueza. As ilusões duraram pouco; as palavras de V. Ex.’ dissiparam-nas…
um tanto cruelmente, mas em todo o caso acordei. Creia, sr. conselheiro, que
o ser pobre, sem família e sem nome, impõe também uma
certa ordem de deveres, a que eu serei fiel. Não é o de humilhar-me,
é o de manter a única dignidade que me resta, a dignidade moral.
Já vê V. Ex.ª que se enganou de duas maneiras : nem da parte
do rapaz pobre houve especulação, nem da parte da herdeira rica
estouvamento.

E, acabando de dizer estas palavras, Augusto inclinou-se respeitosamente
diante do conselheiro, e ia a sair, depois de lançar a Madalena um
extremo olhar de despedida.

A morgadinha, porém, ergueu-se, e, apesar dos esforços de
Cristina para a reter, veio colocar-se no caminho de Augusto, e estendendo-
lhe a mão, disse : — Não saia, Augusto. Em nome de meu
pai lhe peço que não saia.

— Madalena ! — disse o conselheiro com severidade.

— Sim, em seu nome, senhor; porque quero livrar-lhe o futuro de remorsos
; sim, em seu nome, porque hei-de fazer-lhe ouvir a voz do coração,
que tantas vezes desatende, arrependendo-se amargamente depois.

— Madalena ! — repetiu o conselheiro com mais força.

— Minha senhora ! — disse Augusto.

Porém a morgadinha obedecia agora inteiramente à veemência
do carácter apaixonado.

— Sinceramente revelei há pouco os sentimentos do meu coração
; todos me ouviram ; todos ouviram agora Augusto. Fale, senhor, com a mesma
franqueza e lealdade com que nós o fazemos; poderá confessar
a natureza dos escrúpulos que o obrigam a essa resistência? Não
se envergonharia deles? E quer que lhe obedeça! mas obedecer- lhe seria
ofendê-lo, porque seria acreditar na constância dessa má
paixão que o domina, e no seu bom coração não
pode ela durar muito tempo.

O conselheiro, no auge da irritação, ia talvez a responder
violentamente.

Cristina e Angelo tinham-se aproximado de Madalena ; as outras senhoras
principiavam a ensaiar em surdina as primeiras tentativas conciliadoras ;
Henrique meditava um plano de intervenção, que ele supunha já
indispensável, quando um incidente veio interromper esta cena e modificar
a feição crítica do caso.

O incidente foi a chegada de um criado de farda, pertencente ao serviço
de um proprietário da vila próxima. Este criado era portador
de uma mensagem para o conselheiro.

O velho Torcato tinha adormecido na sala imediata; o lacaio dispensou- se
de o acordar, e guiou-se pelo som das vozes para chegar à presença
do conselheiro.

A chegada do lacaio acalmou a tempestade doméstica, que principiava
a carregar-se.

O conselheiro, conhecendo-o, interrogou-o sobre o fim daquela visita.

O criado respondeu: — Venho para entregar a V. Ex.ª esta parte
telegráfica, que chegou a meu amo logo depois que tinham partido as
malas do correio, de maneira que não pôde mandá-la com
elas.

O conselheiro, agitado ainda, pegou no pape!, que o mensageiro lhe deu,
e correu-o com a vista.

Imediatamente um raio de alegria lhe fuzilou nos olhos.

Acabando de 1er, disse ao criado, que esperava resposta: — Diz a teu
amo que recebi, e que pode responder que sim.

O criado saiu.

Neste meio tempo as senhoras e Cristina rodeavam Madalena e combinavam um
projecto de harmonia doméstica. Angelo e Henrique desempenhavam-se
junto de Augusto de quase idêntica tarefa.

O conselheiro estendeu a Henrique a parte telegràfica, enquanto que
uma visível satisfação se lhe desenhava no semblante.

— Leia e admire — disse ele.

Henrique leu, e não reteve uma exclamação de surpresa.

A parte dizia : «Avise o conselheiro Manuel Bernardo para quanto antes
se apre- • sentar em Lisboa. Estou encarregado de organizar ministério
e quero que ele aceite uma das pastas.» Assinava-a um dos mais notáveis
vultos políticos do Pafs.

Henrique, que sabia o valor de certas oportunidades, e a quem a surpresa
da notícia não fez esquecer a crise doméstica a que assistira,
disse, logo que acabou de 1er, e dirigindo-se a Madalena: — Prima Madalena,
compete-lhe ser a primeira a dar ao novo ministro os emboras pela sua nomeação.

A palavra «ministro» produziu sensação na sala.

D. Vitória exclamou : — Ministro! Pois quem é que está
ministro? O mano? .. Ora, sim senhor! acertou sua majestade!…

— Mas… Valha-nos Deus! O ponto está que não façam
por ai alguma revolução para o deitar abaixo — acudiu
D. Doroteia, em cujo ânimo os factos das nossas dissensões civis
tinham deixado sinistras jdeias ligadas à palavra ministro.

Madalena, Ângelo e Cristina correram a abraçar o conselheiro;
Henrique reteve, porém, os dois últimos dizendo: — Primeiro
Lena. Talvez tenha a pedir alguma mercê a S. Ex.», e à
primeira não há caracter de ministro que não ceda.

O conselheiro sorriu já.

Madalena beijou-lhe a mão, e o pranto, provocado pela violência
das cenas anteriores, e até ali a custo reprimido, rebentou agora abundante,
banhando as mãos do pai.

Henrique afastou-se a conversar com Augusto, para o não deixar sair
da sala.

O coração do conselheiro não era de pedra. Duas causas
poderosíssimas conspiravam-se para abrandá-lo. como homem político,
havia a satisfação da máxima ambição de
todos, a notícia de ser chamado ao ministério. Nos momentos
em que vemos satisfazer-se qualquer ardente desejo do nosso coração,
abrimo-nos às simpatias para com os desejos dos outros ; se de nós
depende realizá-los, cedemos de boa vontade. como pai, havia as lágrimas
da filha a convencê-lo, e a eloqüência deste argumento das
lágrimas em olhos de mulher, é geralmente sabida ; quanto mais
se a mulher é jovem e bela ! quanto mais se a mulher é filha!
Sem o menor vestígio da irritação anterior, o conselheiro
ergueu Madalena, apertou-a ao seio e disse-lhe meigamente: — Porque
choras tu, Lena ? Criança ! Então prometes-me ser muito feliz,
se eu te deixar fazer as tuas loucuras? • Madalena respondeu-lhe, abraçando-o
afectuosamente, e beijando- o.

Há argumento mais convincente do que este? Conhecem arma mais poderosa
contra as severidades de um pai? O conselheiro beijou também paternalmente
nas faces a filha, e voltando-se depois para Augusto, disse-lhe, em tom de
voz quase afectuoso : — Augusto, vou confiar-lhe a minha felicidade,
confiando-lhe a felicidade da minha Lena. Vingue-se da injustiça e
do mal que lhe fiz, tornando-ma venturosa. É a única vingança
à altura da sua alma.

Augusto não teve tempo para responder. Se uns restos de orgulho tentassem
lutar1 ainda com o amor, sufocá-los-iam os esforços combinados
da Cristina, de D. Vitória e de D. Doroteia, que o arrastaram quase
para junto do conselheiro.

E tôda aquela família, em que não havia naquele momento
um só coração triste, confundiu-se por algum tempo no
mais desordenado, pueril e patético grupo, que pode desenhar um artista.

Para mais tocante confusão ainda, as crianças que voltavam
dos seus brinquedos na quinta, entraram então na sala, e de boa vontade
se associaram àquela manifestação de alegria, sem querer
saber o que a motivara.

São assim as crianças. Alegres por instinto, saúdam
as cenas alegres sempre que as vêem, sentem-nas antes de as explicarem.

Foram inumeráveis os beijos, os abraços, as palavras de afecto,
os sorrisos, as lágrimas, as exclamações pueris que se
trocaram entre os diversos actores desta cena de família.

Chegado a este ponto da minha narração, nada melhor posso
fazer do que deixar à imaginação dos leitores concluí-la.

Haverá algum tão malfadado, que na sua vida não tenha
visto representada uma cena assim? Esse mesmo, se existe, obriga-me a não
prosseguir.

O quadro que reproduzisse, exacerbar-lhe-ia o desconsolo da alma, de que
por certo é vítima.

Paremos aqui, para que nos fique nos ouvidos este jovial rumor de beijos,
de risos e de vozes de alegria, porque, a prolongarmos mais a riarração,
vê-lo-iamos abafado pelos sons revolucionados e anárquicos da
filarmônica da terra, que não tardará a festejar a nomeação
do conselheiro, e sobretudo pelo estridor da tuba do mestre Pertunhas, tuba
verdadeiramente épica, e capaz de mudar a cor ao gesto, como a de que
fala o poeta.

Fechemos, pois, aqui a história, dando apenas sucinta conta dos acontecimentos
ulteriores.

CONCLUSÃO O conselheiro partiu no dia seguinte para Lisboa, para
tomar parte na pilotagem da nau do Estado. Estive tentado a dizer, para satisfação
de ânimo dos meus leitores, que, sob a direcção dos talentos
e aptidões do novo estadista, se locupletou a fazenda pública,
prosperou a agricultura e a indústria, refulgiram as artes e as letras
; e que Portugal, como a Grécia, sob Péricles, causou o assombro
das nações do mundo.

Mas receei que, fantasiando no nosso país um governo fecundo e próspero,
a inverosimilhança do facto prejudicasse no espírito dos leitores
a dos outros episódios narrados, e lhes entrasse com is;o a desconfiança
no cronista. Resolvi pois ser franco, declarando que sob a direcção
do conselheiro e dos seus colegas, Portugal regeu-se, como se tem regido sob
as dúzias de ministérios, que nós todos havemos já
conhecido.

O conselheiro, já ministro, voltou lempos depois à aldeia,
para assistir aos casamentos de Madalena e de Cristina, que se verificaram
no mesmo dia, Cristina e Henrique foram viver para Alvapenha, para condescender
com D. Doroteia, que nao podia resignar-se a viver só.

Sob a superintendência do novo administrador, transformou-se completamente
a quinta, e é hoje uma das mais rendosas e bem geridas propriedades
daqueles sitios.

Henrique, o elegante do Chiado, o freqüentador do Grêmio e de
Sao Carlos, está um rico e laborioso proprietário rural. Apaixonou-se
pela agricultura, e promete realizar o tipo do antigo patriarca.

Cumpriu-se a sua visão.

Das mil e uma moléstias, com. que saíra de Lisboa, já
nem memória lhe resta.

Cristina, além de ser adorada pelo marido, vê-se rodeada pelo
amor e carinhos de D. Doroteia e de Maria de Jesus, as quais, sem o menor
despeito, a viram tomar o ceptro da realeza doméstica, que usa com
adorável brandura, desenvolvendo de dia para dia os seus talentos de
mulher. 4 No Mosteiro não correm pior as coisas, sob os cuidados de
Augusto e de Madalena, que aí ficaram, por exigências de D. Vitória.

Augusto, além de se ocupar de agricultura, alimenta a imaginação,
já não a fazer versos, mas em outra forma de poesia : a organizar
a escola sob bases mais racionáis, e dotação mais fecunda
; a generalizar e educar os processos agrícolas; a implantar indústrias
novas.

É assim que a sericultura, graças aos seus cuidados, é
hoje ali cultivada com bons resultados, e outras já principiam a ensaiar-se.

Madalena é sempre a mulher que foi; se é que as nobres qualidades
já reveladas nos seus actos de juventude, não se vão
caracterizando ainda melhor, à medida que de mais graves deveres se
incumbe a sua missão de mulher. Inteligência temperada por um
bom senso natural, que a educação esmerada não estragou,
como a tantas acontece, carácter apaixonado, mas de trato afável
e insinuante, meiga sem indolência, grave sem severidade, acompanha-a
o encanto que a todos prende, que não faz sentir a ninguém o
peso da obediência.

É hoje quem tudo dirige no Mosteiro ; querida pelos primos, querida
por D. Vitória, adorada pelo marido e abençoada pelo povo, que
socorre com esmolas e conselhos, pode bem dizer-se que reina naqueles sítios.

D. Vitória resignou na sobrinha todos os encargos domésticos,
salvo o direito de ralhar com os criados, que ela sustenta serem os piores
do mundo ; pronta sempre a intervir a favor de qualquer deles, quando despedidos.

Em relação às personagens secundárias desta
história, pouco teremos a dizer.

O brasileiro fez as pazes com o conselheiro, porque este, logo que entrou
para o ministério, mandou lavrar o decreto em que se nomeava visconde
de não sei quê o seu antigo inimigo. Foi este o primeiro acto
político do gabinete, que o País ingrato teve a sem-razão
de nao aplaudir.

O brasileiro, em paga, entrou com Augusto em competência de melhoramentos
locais, com grande proveito da aldeia, O Sr. Joãozinho, em vista desta
fusão de partidos, achou-se incorporado na liga, e em pouco tempo teve
ocasião de demonstrar de novo a sua influência eleitoral, trazendo
compacta à uma a freguesia de Pinchões, para reeleger o conselheiro
que, pela sua nomeação, perdera o lugar de deputado. Desta vez
ninguém lho disputou, e era edificante ver o brasileiro ao lado do
Tapadas, esquecidos antigos ódios, votando de comum acordo e de boa
harmonia.

A reconciliação entre dois adversários comove sempre
a alma.

O Sr. Joãozinho não mudou de hábitos, e cada vez tem
mais dívidas, mais cães e mais bebedeiras.

O Pertunhas foi perdoado, e continua imperturbável nas suas funções
de ensino e na comissão do correio, odiando os irmãos Vir gilios
e desafogando as suas mágoas na embocadura da trompa.

O homem queixa-se de ter sido vítima de uma vingança. Confessa
que por brincadeira tirara uma carta da pasta de Augusto, mas que a tornara
a colocar no seu lugar, e por isso…

A família Zé-Pereira vai em rápida decadência
; o homem já nem tem força para fazer ressoar o zabumba. É
esta uma das que maia deve à caridade de Madalena.

O conselheiro, ainda hoje no gozo imperturbado dos votos unânimes
daquele círculo eleitoral, vem de quando em quando retemperar o ânimo
exausto nas fadigas parlamentares e nas diversões da capital, no seio
da sua feliz família, e volta melhor.

Ângelo, logo que principiam as férias dos seus estudos superiores,
corre com alvoroço de criança a gozar na aldeia os dias que
ele já pressente terem de ser os mais felizes de toda a sua vida.

A quinta dos Canaviais, à qual andam ligadas suaves recordações
dos dois venturosos pares, que os incidentes desta história reuniram,
foi transformada por Madalena numa habitação de recreio, onde
as duas famílias celebram, durante o ano, algumas festas em comum.

Estes melhoramentos vieram confirmar o título de que Madalena havia
muito estava de posse.

E hoje é ela ainda entre a gente do povo conhecida pelo nome de «
Morgadinha dos Canaviais ».

 

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