Lima Barreto
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Dizem os dicionários que “coivara” e uma fogueira de gravetos. É possível que o professor Assis Cintra tenha outra opinião; mas tal coisa não vem ao caso, tanto mais que não me preocupo com essas coisas transcendentes de gramática e deixo a minha atividade mental vagabundar pelas ninharias do destino da Arte e das categorias do pensamento.
Admitindo a velha definição dos dicionários, no livro do Sr. Gastão Cruls, que tem como título essa palavra de origem tupaica, não há positivamente “coivara”, pois nele não se queimam só gravetos. Queimam-se grossas perobeiras e duros jacarandás. Os contos que o compõem, não são delgados galhos secos, há alguns que são verdadeiras toras de cerne.
O Sr. Gastão Cruís é médico, mas, graças a Deus, não escreve no calão pedante dos seus colegas. Escreve como toda a gente, naturalmente procurando os efeitos artísticos da arte de escrever, mas escreve sem o Elucidário de Viterbo e o Blutteau, nas mãos, e – que concubinato! – sem ter diante dos olhos o redundante padre Vieira e o enfático Herculano.
Vale a pena ler seu livro. É delicioso de naturalidade e precisão. Nota-se nele que o autor ama muito a vida da roça, a vida de fazenda; mas – coisa singular – esse amor que ama a vida da roça não ama a natureza. Não há nele um toque distinto que denuncie esse amor. Não é só à paisagem, mas mesmo aos bichos, aos bois, aos carneiros; o que ele ama é, por assim dizer, a vida social da roça. As relações do fazendeiro com os colonos, os seus negócios, as suas cerimônias domésticas. Digo isso de um modo geral, sem querer de forma alguma diminuir o mérito do autor.
O seu primeiro conto – O Noturno n.o 13 – é estranho e como que o autor quis manifestar nele que a sua concepção da vida não é rígida nem mecânica. Que o que se vê, não é tudo que existe; há “atrás” do que se vê muitas e muitas coisas.
Nem sempre os seus contos mantêm na aparência esse tom de transcendente espiritualidade; mas quase sempre essa sua singular feição de escritor nacional se trai aqui e ali.
Por exemplo: no G.C.P.A. é em nome dela – espiritualidade – que ele protesta contra os brutais processos da nossa atual medicina que só vê no doente, principalmente no seu cadáver, um caso a estudar, a dissecar, para escrever daí a dias uma chôcha memória que certamente morrerá na vala comum das revistas especiais, mas que dará a seu autor mais fama, portanto mais clientes e mais dinheiro. É a indústria clínica que se ceva nos cadáveres dos pobres desgraçados que morrem nos hospitais.
Despertou-me refletir um pouco, após a leitura desse magistral conto do Sr. Gastão Cruls, sobre certas ficções do atual ensino médico.
Esse professor Rodrigues que vai seguido de uma récua de estudantes, assistentes e enfermeiros e faz discursos mirabolantes (é do autor) diante do doente, ensina ele alguma coisa? É possível transmitir a outrem o que se sabe, por experiência ou estudo, dessa maneira afetada e oratória – maneira que é exigida “malgré-tout” – pelo auditório numérico que o cerca; é possível?
Penso bem que não. Quanto mais reduzido for o número de alunos, melhor ele poderia iniciá-los, quanto menos palavras arrevesadas, melhor eles compreenderiam o lente. As nossas escolas de grande freqüência devem ser condenadas.
De resto – o que o autor também nota – não é um suplício para um doente grave estar a ouvir palavras campanudas sobre a sua moléstia durante uma hora? Poderá isso concorrer para a sua cura? Não. De forma que um pobre-diabo que cai num hospital, em vez de ir para tratar-se, vai para morrer. Lembro agora um caso que se passou há tempos.
Uma parturiente, tendo-se recolhido à Santa Casa, um lente de partos quis fazê-la sujeitar-se ao “toque” por toda uma turma de estudantes. Ela se revoltou e houve escândalo. Os jornais falaram e não sei como as coisas ficaram. Ela tinha razão sob todos os pontos de vista. A verdade, porém, é que todo esse nosso ensino médico é malvado e improdutivo, tanto assim que o Sr. Dr. Clark acaba de afirmar que há pelo Brasil inteiro quatro mil médicos que não sabem medicina.
Vimos já esse professor Rodrigues, diante do doente, a fazer hipóteses mirabolantes e ousadas; agora, seguindo na esteira do Sr. Cruís, vamos ver no – A Neurastenia do professor Filomeno – outra feição do nosso ensino médico. O Dr. Filomeno é um sábio em medicina porque conhece o léxico antigo da nossa língua. Tem outras manias; essa, porém, é a principal. A sua lógica é de uma inflexibilidade aristotélica e ele a aplica largamente na sua clínica. Vejamos este caso, tal qual o autor nos conta e conforme expõe o grande Filomeno, lido no “Thinherabos”, no Rui de Pina, no Diogo do Couto, no frei Luís de Sousa, no João de Barros e outros cacêtes. Eis aí como narra o arguto autor do Coivara:
“A um indivíduo que o fora consultar enfermado pela moléstia de Friedreich, queixando-se muito da marcha propulsiva, que já o fizera levar várias quedas, o professor Filomeno, ao invés de qualquer prescrição medicamentosa, preferira recomendar uma alimentação intensiva pelos siris e caranguejos. Mais tarde ele explicara a Raul por que assim procedera, começando por lhe citar um aforismo latino: “Cancri nunquam recte ingrediuntur”.
“Como Raul não compreendesse o latinório e se mostrasse um tanto atrapalhado, o Dr. Filomeno logo traduziu:
— “Os caranguejos nunca andam em linha reta”. Compreendes agora por que lhe receitei os crustáceos? Ora, se esse indivíduo tem uma desordem do equilíbrio que o impele a correr e cair para a frente, nada mais natural do que neutralizar essa força propulsora por meio dos gânglios nervosos dos siris e caranguejos, que são animais exclusivamente laterigrados, isto é, só sabem andar para os lados.”
Filomeno chama isto opoterapia. Valha-me Deus! Eu me alonguei nestes dois contos em que se tratam de coisas do ensino médico, entre nós, talvez demais um pouco. Mas era preciso. É tão importante a medicina na nossa vida que toda a crítica deve ser feita por todos, àqueles que nos têm de curar, sobretudo àqueles que isso ensinam.
Há, porém, nos contos do Sr. Cruís muita coisa outra que não a pura preocupação das coisas de sua profissão.
“Noites Brancas”, por exemplo, é conto fora dos nossos moldes, terrível, fantástico e doloroso. Beijos de uma morfética, dentro da noite escura. Oh! que horror!
O que estranho no autor de um livro tão digno, como é Coivara, é a admiração que parece ter por Oscar Wilde e se traduz em frases quentes no seu conto “A Noiva de Oscar Wilde”.
Esse Wilde que se intitulava a si mesmo – “King of Life”, “Rei da Vida” – não passou antes de “Reading” de nada mais do que o “Rei dos Cabotinos”.
Com uma singular sagacidade, ele soube conquistar a alta sociedade de sua terra, expondo-lhe os vícios e, ao mesmo tempo, os justificando com paradoxos, nem sempre de bom quilate. As suas obras são medíocres e sem valimento. Às vezes até, com uma originalidade duvidosa, mesmo nos paradoxos. Faltou a Wilde sempre o senso da vida, sentimento do alto destino do homem, a frescura e a ingenuidade do verdadeiro talento, a grandeza da concepção e a força de execução.
Ele é um mascarado que enganou e explorou toda uma sociedade, durante muito tempo, com arremedos, trejeitos e “poses” de artista requintado. Queria distinções sociais e dinheiro.
Para isso, lançou mão das mais ignominiosas ousadias, entre as quais, a de ostentar o porco vício que o levou ao cárcere. Aí, ele despe-se do peplo, tira o anel da múnia do dedo, põe fora o cravo verde, perde toda a basófia e abate-se. Dostoiewsky passou alguns anos na Sibéria, num atroz presídio, entre os mais inumanos bandidos que se possa imaginar, e não se abateu…
A sua vaidade, a sua jactância, a sua falta de profundo sentimento moral, o seu egoísmo, o seu narcisismo imoral obrigaram-no a simular tudo que ferisse e espantasse a massa, para fazer sucesso, até esse imundo vício que o levou à prisão de “Reading”. Ao que parece, ele em si não era portador de tal tara. Adquiriu-a para chamar a atenção sobre si. Era elegante… Não é um artista, nem grande, nem pequeno; ele é um egoísta simulador de talento que uma sociedade viciosa e fútil impeliu até ao “hard labour”. Tudo nele é factício e destinado a causar efeito. Não tenho todo o processo a que foi submetido; mas possuo grandes extratos que vem na obra do Dr. Laups – Perversion et perversité sexuelles – prefaciada por Zola. Pelas leituras deles, é que afirmei sobre ele o que acima fica dito.
Toda a sua jactância, todo o seu cinismo em mostrar-se possuidor de vícios refinados e repugnantes, toda a sua vaidade – tudo isso que o arrastou à desgraça, – talvez tenha dado um bom resultado. Sabe qual é, meu caro Dr. Cruls? É tê-lo feito escrever o De Profundis. A vida é coisa séria e o sério na vida está na dor, na desgraça, na miséria e na humildade.
A edição do Coivara é primorosa, como todas da Livraria Castilho, desta cidade.
A.B.C., 23-7-1921
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