Gil Vicente
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A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era o ano do Senhor de 1523. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.
A figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal ); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando.
Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantasiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:
Canta Inês:
Quien con veros pena y muere
Que hará quando no os viere?
(Falando)
INÊS
Renego deste lavrar
E do primeiro que o usou;
Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d’aturar.
Oh Jesu! que enfadamento,
E que raiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira!
Eu hei-de buscar maneira
D’algum outro aviamento.
Coitada, assi hei-de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem asa,
Que sempre está num lugar?
E assi hão-de ser logrados
Dous dias amargurados,
Que eu possa durar viva?
E assim hei-de estar cativa
Em poder de desfiados?
Antes o darei ao Diabo
Que lavrar mais nem pontada.
Já tenho a vida cansada
De fazer sempre dum cabo.
Todas folgam, e eu não,
Todas vêm e todas vão
Onde querem, senão eu.
Hui! e que pecado é o meu,
Ou que dor de coração?
Esta vida he mais que morta.
Sam eu coruja ou corujo,
Ou sam algum caramujo
Que não sai senão à porta?
E quando me dão algum dia
Licença, como a bugia,
Que possa estar à janela,
É já mais que a Madanela
Quando achou a aleluía.
Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:
MÃE
Logo eu adivinhei
Lá na missa onde eu estava,
Como a minha Inês lavrava
A tarefa que lhe eu dei…
Acaba esse travesseiro!
Hui! Nasceu-te algum unheiro?
Ou cuidas que é dia santo?
INÊS
Praza a Deos que algum quebranto?
Me tire do cativeiro.
MÃE
Toda tu estás aquela!
Choram-te os filhos por pão?
INÊS
Prouvesse a Deus! Que já é razão
De eu não estar tão singela.
MÃE Olhade ali o mau pesar…
Como queres tu casar
Com fama de preguiçosa?
INÊS
Mas eu, mãe, sam aguçosa
E vós dais-vos de vagar.
MÃE
Ora espera assi, vejamos.
INÊS
Quem já visse esse prazer!
MÃE
Cal’-te, que poderá ser
Que «ame a Páscoa vêm os Ramos».
Não te apresses tu, Inês.
«Maior é o ano que o mês»:
Quando te não precatares,
Virão maridos a pares,
E filhos de três em três.
INÊS
Quero-m’ora alevantar.
Folgo mais de falar nisso,
Assi me dê Deos o paraíso,
Mil vezes que não lavrar
Isto não sei que me faz
MÃE
Aqui vem Lianor Vaz.
INÊS
E ela vem-se benzendo…
(Entra Lianor Vaz)
LIANOR
Jesu a que me eu encomendo!
Quanta cousa que se faz!
MÃE
Lianor Vaz, que é isso?
LIANOR
Venho eu, mana, amarela?
MÃE
Mais ruiva que uma panela.
LIANOR
Não sei como tenho siso!
Jesu! Jesu! que farei?
Não sei se me vá a el-Rei,
Se me vá ao Cardeal.
MÃE
Como? e tamanho é o mal?
LIANOR
Tamanho? eu to direi:
Vinha agora pereli
Ó redor da minha vinha,
E hum clérigo, mana minha,
Pardeos, lançou mão de mi;
Não me podia valer
Diz que havia de saber
S’era eu fêmea, se macho.
MÃE
Hui! seria algum muchacho,
Que brincava por prazer?
LIANOR
Si, muchacho sobejava
Era hum zote tamanhouço!
Eu andava no retouço,
Tão rouca que não falava.
Quando o vi pegar comigo,
Que m’achei naquele p’rigo:
– Assolverei! – não assolverás!
-Tomarei! – não tomarás!
– Jesu! homem, qu’has contigo?
– Irmã, eu te assolverei
Co breviairo de Braga.
– Que breviairo, ou que praga!
Que não quero: aqui d’el-Rei! –
Quando viu revolta a voda,
Foi e esfarrapou-me toda
O cabeção da camisa.
MÃE
Assi me fez dessa guisa
Outro, no tempo da poda.
Eu cuidei que era jogo,
E ele… dai-o vós ao fogo!
Tomou-me tamanho riso,
Riso em todo meu siso,
E ele leixou-me logo.
LIANOR
Si, agora, eramá,
Também eu me ria cá
Das cousas que me dizia:
Chamava-me «luz do dia».
– «Nunca teu olho verá!» –
Se estivera de maneira
Sem ser rouca, bradar’eu;
Mas logo m’o demo deu
Catarrão e peitogueira,
Cócegas e cor de rir,
E coxa pera fugir,
E fraca pera vencer:
Porém pude-me valer
Sem me ninguém acudir…
O demo (e não pode al ser)
Se chantou no corpo dele.
MÃE
Mana, conhecia-te ele?
LIANOR
Mas queria-me conhecer!
MÃE
Vistes vós tamanho mal?
LIANOR
Eu m’irei ao Cardeal,
E far-lhe-ei assi mesura,
E contar lhe-ei a aventura
Que achei no meu olival.
MÃE
Não estás tu arranhada,
De te carpir, nas queixadas?
LIANOR
Eu tenho as unhas cortadas,
E mais estou tosquiada:
E mais pera que era isso?
E mais pera que é o siso?
E mais no meio da requesta
Veio hum homem de hüa besta,
Que em vê-lo vi o p’raíso,
E soltou-me, porque vinha
Bem contra sua vontade.
Porém, a falar a verdade,
Já eu andava cansadinha:
Não me valia rogar
Nem me valia chamar:
– «Aque de Vasco de Fois,
Acudi-me, como sois!»
E ele… senão pegar:
– Mais mansa, Lianor Vaz,
Assi Deus te faça santa.
– Trama te dê na garganta!
Como! isto assi se faz?
– Isto não revela nada…
– Tu não vês que são casada?
MÃE
Deras-lhe, má hora, boa,
E mordera-lo na coroa.
LIANOR
Assi! fora excomungada.
Não lhe dera um empuxão,
Porque sou tão maviosa,
Que é cousa maravilhosa.
E esta é a concrusão.
Leixemos isto. Eu venho
Com grande amor que vos tenho,
Porque diz o exemplo antigo
Que a amiga e bom amigo
Mais aquenta que o bom lenho.
Inês está concertada
Pera casar com alguém?
MÃE
Até `gora com ninguém
Não é ela embaraçada.
LIANOR
Eu vos trago um casamento
Em nome do anjo bento.
Filha, não sei se vos praz.
INÊS
E quando, Lianor Vaz?
LIANOR
Eu vos trago aviamento.
INÊS
Porém, não hei-de casar
Senão com homem avisado
Ainda que pobre e pelado,
Seja discreto em falar
LIANOR
Eu vos trago um bom marido,
Rico, honrado, conhecido.
Diz que em camisa vos quer
INÊS
Primeiro eu hei-de saber
Se é parvo, se sabido.
LIANOR
Nesta carta que aqui vem
Pera vós, filha, d’amores,
Veredes vós, minhas flores,
A discrição que ele tem.
INÊS
Mostrai-ma cá, quero ver
LIANOR
Tomai. E sabedes vós ler?
MÃE
Hui! e ela sabe latim
E gramática e alfaqui
E tudo quanto ela quer!
INÊS (lê a carta)
«Senhora amiga Inês Pereira,
Pêro Marquez, vosso amigo,
Que ora estou na nossa aldea,
Mesmo na vossa mercea
M’encomendo. E mais digo,
Digo que benza-vos Deos,
Que vos fez de tão bom jeito.
Bom prazer e bom proveito
Veja vossa mãe de vós.
Ainda que eu vos vi
Est’outro dia folgar
E não quisestes bailar,
Nem cantar presente mi…»
INÊS
Na voda de seu avô,
Ou onde me viu ora ele?
Lianor Vaz, este é ele?
LIANOR
Lede a carta sem dó,
Que inda eu são contente dele.
Prossegue Inês Pereira a carta:
«Nem cantar presente mi.
Pois Deos sabe a rebentinha
Que me fizestes então.
Ora, Inês, que hajais bênção
De vosso pai e a minha,
Que venha isto a concrusão.
E rogo-vos como amiga,
Que samicas vós sereis,
Que de parte me faleis
Antes que outrem vo-lo diga.
E, se não fiais de mi,
Esteja vossa mãe aí,
E Lianor Vaz de presente.
Veremos se sois contente
Que casemos na boa hora.»
INÊS
Des que nasci até agora
Não vi tal vilão com’este,
Nem tanto fora de mão!
LIANOR
Não queirais ser tão senhora.
Casa, filha, que te preste,
Não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
No tempo d’agora, Inês?
Antes casa, em que te pês,
Que não é tempo d’escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
«Ou seja sapo ou sapinho,
Ou marido ou maridinho,
Tenha o que houver mister.»
Este é o certo caminho.
MÃE
Pardeus, amiga, essa é ela!
«Mata o cavalo de sela
E bom é o asno que me leva».
Filha, «no Chão de Couce
Quem não puder andar choute.»
E: «mais quero eu quem m’adore
Que quem faça com que chore».
Chamá-lo-ei, Inês?
INÊS
Si.
Venha e veja-me a mi.
Quero ver quando me vir
Se perderá o presumir
Logo em chegando aqui,
Pera me fartar de rir.
MÃE
Touca-te, se cá vier
Pois que pera casar anda.
INÊS
Essa é boa demanda!
Cerimónias há mister
Homem que tal carta manda?
Eu o estou cá pintando:
Sabeis, mãe, que eu adivinho?
Deve ser um vilãozinho
Ei-lo, se vem penteando:
Será com algum ancinho?
PÊRO
Homem que vai aonde eu vou
Não se deve de correr
Ria embora quem quiser
Que eu em meu siso estou.
Não sei onde mora aqui…
Olhai que m’esquece a mi!
Eu creo que nesta rua…
E esta parreira é sua.
Já conheço que é aqui.
Chega Pêro Marques aonde elas
estão, e diz:
Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir cá…
Eu vos escrevi de lá
Üa cartinha, senhora…
E assi que de maneira…
MÃE
Tomai aquela cadeira.
PÊRO
E que val aqui uma destas?
INÊS
(Ó Jesu! que João das bestas!
Olhai aquela canseira!)
Assentou-se com as costas pera elas, e diz:
PÊRO
Eu cuido que não estou bem…
MÃE
Como vos chamais, amigo?
PÊRO
Eu Pêro Marques me digo,
Como meu pai que Deos tem.
Faleceu, perdoe-lhe Deos,
Que fora bem escusado,
E ficamos dous eréos.
Porém meu é o mor gado.
MÃE
De morgado é vosso estado?
Isso viria dos céus.
PÊRO
Mais gado tenho eu já quanto,
E o mor de todo o gado,
Digo maior algum tanto.
E desejo ser casado,
Prouguesse ao Espírito Santo,
Com Inês, que eu me espanto
Quem me fez seu namorado.
Parece moça de bem,
E eu de bem, er também.
Ora vós er ide vendo
Se lhe vem milhor ninguém,
A segundo o que eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui
Pêras da minha pereira…
Hão-de estar na derradeira.
Tende ora, Inês, per i.
INÊS
E isso hei-de ter na mão?
PÊRO
Deitae as peas no chão.
INÊS
As perlas pera enfiar..
Três chocalhos e um novelo…
E as peias no capelo…
E as pêras? Onde estão?
PÊRO
Nunca tal me aconteceu!
Algum rapaz m’as comeu…
Que as meti no capelo,
E ficou aqui o novelo,
E o pente não se perdeu.
Pois trazia-as de boa mente…
INÊS
Fresco vinha aí o presente
Com folhinhas borrifadas!
PÊRO
Não, que elas vinham chentadas
Cá em fundo no mais quente.
Vossa mãe foi-se? Ora bem…
Sós nos leixou ela assi?…
Cant’eu quero-me ir daqui,
Não diga algum demo alguém…
INÊS Vós que me havíeis de fazer?
Nem ninguém que há-de dizer?
(O galante despejado!).
PÊRO
Gil Vicente
VIDAL
Assi diz Rabi Zarão.
MÃE
Inês, guar’-te de rascão!
Escudeiro queres tu?
INÊS
Jesu, nome de Jesu!
Quão fora sois de feição!
Já minha mãe adivinha…
Folgastes vós na verdade
Casar à vossa vontade?
Eu quero casar à minha.
MÃE
Casa, filha, muit’embora.
ESCUDEIRO
Dai-me essa mão, senhora.
INÊS
Senhor de mui boa mente.
ESCUDEIRO
Per palavras de presente
Vos recebo desd’agora.
Nome de Deus, assi seja!
Eu, Brás da Mata, Escudeiro,
Recebo a vós, Inês Pereira
Por mulher e por parceira
Como manda a Santa Igreja.
INÊS Eu, aqui diante Deus,
Inês Pereira, recebo a vós,
Brás da Mata, sem demanda,
Como a Santa Igreja manda.
LATÃO
Juro al Deu! Aí somos nós!
Os Judeus ambos
Alça manim, ó dona, ha!
Arreia espeçulá.
Bento o Deu de Jacob,
Bento o Deu que a Faraó
MÃE Espantou e espantará.
Bento o Deu de Abraão,
Benta a terra de Canão.
Para bem sejais casados!
Dai-nos cá senhos ducados.
MÃE Amenhã vo-los darão.
Pois assi é, bem será
Que não passe isto assi.
Eu quero chegar ali
Chamar meus amigos cá,
E cantarão de terreiro.
ESCUDEIRO
Oh! quem me fora solteiro!
INÊS
Já vós vos arrependeis?
ESCUDEIRO
Ó esposa, não faleis,
Que casar é cativeiro.
Aqui vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem a festa, e diz uma delas, per nome Luzia:
Luz. Inês, por teu bem te seja!
Oh! que esposo e que alegria!
INÊS
Venhas embora, Luzia,
E cedo t’eu assi veja.
MÃE
Ora vae tu ali, Inês,
E bailareis três por três.
FERNANDO
Tu connosco, Luzia, aqui,
E a desposada ali,
Ora vede qual direis.
Cantam todos a cantiga que se segue:
«Mal herida va la garça
Enamorada,
Sola va y gritos dava.
A las orillas de um rio
La garça tenia el nido;
Ballestero la ha herido
En el alma;
Sola va y gritos dava.»
E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:
FERNANDO
Ora, senhores honrados,
Ficai com vossa mercê,
E nosso Senhor vos dê
Com que vivais descansados.
Isto foi assi agora,
Mas melhor será outr’hora.
Perdoai pelo presente:
Foi pouco e de boa mente.
Com vossa mercê, Senhora…
Luz. Ficai com Deus, desposados,
Com prazer e com saúde,
E sempre Ele vos ajude
Com que sejais bem logrados.
MÃE
Ficai com Deus, filha minha,
Não virei cá tão asinha.
A minha bênção hajais.
Esta casa em que ficais
Vos dou, e vou-me à casinha.
Senhor filho e senhor meu,
Pois que já Inês é vossa,
Vossa mulher e esposa,
Encomendo-vo-la eu.
E, pois que des que naceu
A outrem não conheceu,
Senão a vós, por senhor
Que lhe tenhais muito amor
Que amado sejais no céu.
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:
INÊS
Si no os huviera mirado
No penara,
Pero tampoco os mirara.
O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui agastado lhe diz:
ESCUDEIRO
Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas m’andáveis vós?
Juro ao corpo de Deus
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar
Eu vos farei assoviar..
INÊS
Bofé, senhor meu marido,
Se vós disso sois servido,
Bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO
Mas é bem que o escuseis,
E outras cousas que não digo!
INÊS
Porque bradais vós comigo?
ESCUDEIRO
Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada
Que não me respondais nada,
Em que ponha fogo a tudo,
Porque o homem sesudo
Traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar
Com homem nem mulher que seja;
Nem somente ir à igreja
Não vos quero eu leixar
Já vos preguei as janelas,
Por que não vos ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada
Nesta casa, tão fechada
Como freira d’Oudivelas.
INÊS
Que pecado foi o meu?
Porque me dais tal prisão?
ESCUDEIRO
Vós buscastes discrição,
Que culpa vos tenho eu?
Pode ser maior aviso,
Maior discrição e siso
Que guardar o meu tisouro?
Não sois vós, mulher meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?
Vós não haveis de mandar
Em casa somente um pêlo.
Se eu disser: – isto é novelo –
Havei-lo de confirmar
E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
E cousa que vós digais
Não vos há-de valer mais
Que aquilo que eu quiser.
(para o criado)
Moço, às Partes d’Além
Me vou fazer cavaleiro.
MOÇO
(Se vós tivésseis dinheiro
Não seria senão bem…)
ESCUDEIRO
Tu hás-de ficar aqui.
Olha, por amor de mi,
O que faz tua senhora:
Fechá-la-ás sempre de fora.
(para Inês)
Vós lavrai, ficai per i.
MOÇO
Co dinheiro que leixais
Não comerei eu galinhas…
ESCUDEIRO
Vae-te tu por essas vinhas,
Que diabo queres mais?
MOÇO
Olhai, olhai, como rima!
E depois de ida a vindima?
ESCUDEIRO
Apanha desse rabisco.
MOÇO Pesar ora de São Pisco!
Convidarei minha prima…
E o rabisco acabado,
Ir me-ei espojar às eiras?
ESCUDEIRO Vai-te per essas figueiras,
E farta-te, desmazelado!
MOÇO Assi?
ESCUDEIRO
Pois que cuidavas?
E depois virão as favas.
Conheces túbaras da terra?
MOÇO
I-vos vós, embora, à guerra,
Que eu vos guardarei oitavas…
Ido o Escudeiro, diz o Moço:
MOÇO
Senhora, o que ele mandou
Não posso menos fazer.
INÊS
Pois que te dá de comer
Faze o que t’encomendou.
MOÇO
Vós fartai-vos de lavrar
Eu me vou desenfadar
Com essas moças lá fora:
Vós perdoai-me, senhora,
Porque vos hei-de fechar.
Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga:
INÊS
«Quem bem tem e mal escolhe
Por mal que lhe venha não s’anoje.»
Renego da discrição
Comendo ò demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso
Estava a boa condição.
Cuidei que fossem cavaleiros
Fidalgos e escudeiros,
Não cheios de desvarios,
E em suas casas macios,
E na guerra lastimeiros.
Vede que cavalarias,
Vede que já mouros mata
Quem sua mulher maltrata
Sem lhe dar de paz um dia!
Sempre eu ouvi dizer
Que o homem que isto fizer
Nunca mata drago em vale
Nem mouro que chamem Ale:
E assi deve de ser.
Juro em todo meu sentido
Que se solteira me vejo,
Assi como eu desejo,
Que eu saiba escolher marido,
À boa fé, sem mau engano,
Pacífico todo o ano,
E que ande a meu mandar
Havia m’eu de vingar
Deste mal e deste dano!
Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz:
MOÇO
Esta carta vem d’Além
Creio que é de meu senhor.
INÊS
Mostrai cá, meu guarda-mor
E veremos o que i vem.
Lê o sobrescrito.
«À mui prezada senhora
Inês Pereira da Grã,
À senhora minha irmã.»
De meu irmão…Venha embora!
MOÇO
Vosso irmão está em Arzila?
Eu apostarei que i vem
Nova de meu senhor também.
INÊS
Já ele partiu de Tavila?
MOÇO
Há três meses que é passado.
INÊS
Aqui virá logo recado
Se lhe vai bem, ou que faz.
MOÇO
Bem pequena é a carta assaz!
INÊS
Carta de homem avisado.
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
«Muito honrada irmã,
Esforçai o coração
E tomai por devação
De querer o que Deus quiser.»
E isto que quer dizer?
«E não vos maravilheis
De cousa que o mundo faça,
Que sempre nos embaraça
Com cousas. Sabei que indo
Vosso marido fugindo
Da batalha pera a vila,
A meia légua de Arzila,
O matou um mouro pastor.»
MOÇO
Ó meu amo e meu senhor!
INÊS
Dai-me vós cá essa chave
E i buscar vossa vida.
MOÇO
Oh que triste despedida!
INÊS
Mas que nova tão suave!
Desatado é o nó.
Se eu por ele ponho dó,
O Diabo me arrebente!
Pera mim era valente,
E matou-o um mouro só!
Guardar de cavaleirão,
Barbudo, repetenado,
Que em figura de avisado
É malino e sotrancão.
Agora quero tomar
Pera boa vida gozar,
Um muito manso marido.
Não no quero já sabido,
Pois tão caro há de custar.
Aqui vem Lianor Vaz, e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz:
LIANOR
Como estais, Inês Pereira?
INÊS
Muito triste, Lianor Vaz.
LIANOR
Que fareis ao que Deus faz?
INÊS
Casei por minha canseira.
LIANOR
Se ficaste prenhe basta.
INÊS
Bem quisera eu dele casta,
Mas não quis minha ventura.
LIANOR
Filha, não tomeis tristura,
Que a morte a todos gasta.
O que havedes de fazer?
Casade-vos, filha minha.
Inês Jesu! Jesu! Tão asinha!
Isso me haveis de dizer?
Quem perdeu um tal marido,
Tão discreto e tão sabido,
E tão amigo de minha vida?
LIANOR
Dai isso por esquecido,
E buscai outra guarida.
Pêro Marques tem, que herdou,
Fazenda de mil cruzados.
Mas vós quereis avisados…
INÊS
Não! já esse tempo passou.
Sobre quantos mestres são
Experiência dá lição.
LIANOR
Pois tendes esse saber
Querei ora a quem vos quer
Dai ò demo a opinião.
Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo:
INÊS
Andar! Pêro Marques seja.
Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
E não cavalo folão.
Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero.
Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor Vaz:
LIANOR
Nô mais cerimónias agora;
Abraçai Inês Pereira
Por mulher e por parceira.
PÊRO
Há homem empacho, má-hora,
Cant’a dizer abraçar..
Depois que a eu usar
Entonces poderá ser:
INÊS
(Não lhe quero mais saber
Já me quero contentar..).
LIANOR
Ora dai-me essa mão cá.
Sabeis as palavras, si?
PÊRO
Ensinaram-mas a mi,
Porém esquecem-me já…
LIANOR
Ora dizei como digo.
PÊRO
E tendes vós aqui trigo
Pera nos jeitar or riba?
LIANOR
Inda é cedo… Como rima!
PÊRO
Soma, vós casais comigo,
E eu com vosco, pardelhas!
Não cumpre aqui mais falar
E quando vos eu negar
Que me cortem as orelhas.
LIANOR
Vou-me, ficai-vos embora.
INÊS
Marido, sairei eu agora,
Que há muito que não saí?
PÊRO
Si, mulher saí-vos i,
Qu’eu me irei pera fora.
INÊS
Marido, não digo isso.
PÊRO
Pois que dizeis vós, mulher?
INÊS
Ir folgar onde eu quiser
PÊRO
I onde quiserdes ir,
Vinde quando quiserdes vir
Estai onde quiserdes estar.
Com que podeis vós folgar
Qu’eu não deva consentir?
Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz:
Señores, por caridad
Dad limosna al dolorido
Ermitaño de Cupido
Para siempre en soledad.
Pues su siervo soy nacido.
Por ejemplo,
Me meti en su santo templo
Ermitaño en pobre ermita,
Fabricada de infinita
Tristeza en que contemplo,
Adonde rezo mis horas
Y mis dias y mis años,
Mis servicios y mis daños,
Donde tu, mi alma, Iloras
El fin de tantos engaños.
Y acabando
Las horas, todas llorando,
Tomo las cuentas una y una,
Con que tomo a la fortuna
Cuenta del mal en que ando,
Sin esperar paga alguna.
Y ansi sin esperanza
De cobrar lo merecido,
Sirvo alli mis dias Cupido
Con tanto amor sin mudanza,
Que soy su santo escogido.
Ó señores,
Los que bien os va d’amores,
Dad limosna al sin holgura,
Que habita en sierra oscura,
Uno de los amadores
Que tuvo menos ventura.
Y rogaré al Dios de mi,
En quien mis sentìdos traigo,
Que recibais mejor pago
De lo que yo recebi
En esta vida que hago.
Y rezaré
Com gran devocion y fé,
Que Dios os libre d’engaño,
Que esso me hizo ermitaño,
Y pera siempre seré,
Pues pera siempre es mi daño.
INÊS
Olhai cá, marido amigo,
Eu tenho por devação
Dar esmola a um ermitão.
E não vades vós comigo
PÊRO
I-vos embora, mulher
Não tenho lá que fazer
(Inês fala a sós com o Ermitão):
INÊS
Tomai a esmola, padre, lá,
Pois que Deus vos trouxe aqui.
ERMITÃO
Sea por amor de mi
Vuesa buena caridad.
Deo gratias, mi señora!
La limosna mata el pecado,
Pero vos teneis cuidado
De matar-me cada hora.
Deveis saber
Para merced me hacer
Que por vos soy ermitaño.
Y aun más os desengaño:
Que esperanças de os ver
Me hizieron vestir tal paño.
INÊS
Jesu, Jesu! manas minhas!
Sois vós aquele que um dia
Em casa de minha tia
Me mandastes camarinhas,
E quando aprendia a lavrar
Mandáveis-me tanta cousinha?
Eu era ainda Inesinha,
Não vos queria falar.
ERMITÃO
Señora, tengo-os servido
Y vos a mi despreciado;
Haced que el tiempo pasado
No se cuente por perdido.
INÊS
Padre, mui bem vos entendo
Ó demo vos encomendo,
Que bem sabeis vós pedir!
Eu determino lá d’ir
À ermida, Deus querendo.
ERMITÃO
E quando?
INÊS
I-vos, meu santo,
Que eu irei um dia destes
Muito cedo, muito prestes.
ERMITÃO
Señora, yo me voy en tanto.
(Inês torna para Pêro Marques):
INÊS
Em tudo é boa a concrusão.
Marido, aquele ermitão
É um anjinho de Deus…
PÊRO
Corregê vós esses véus
E ponde-vos em feição.
INÊS
Sabeis vós o que eu queria?
PÊRO
Que quereis, minha mulher?
INÊS
Que houvésseis por prazer
De irmos lá em romaria.
PÊRO
Seja logo, sem deter
INÊS
Este caminho é comprido…
Contai uma história, marido.
PÊRO
Bofá que me praz, mulher
INÊS
Passemos primeiro o rio.
Descalçai-vos.
PÊRO
E pois como?
INÊS
E levar me-eis no ombro,
Não me corte a madre o frio.
Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:
INÊS
Marido, assi me levade.
PÊRO
Ides à vossa vontade?
INÊS
Como estar no Paraíso!
PÊRO
Muito folgo eu com isso.
INÊS
Esperade ora, esperade!
Olhai que lousas aquelas,
Pera poer as talhas nelas!
PÊRO
Quereis que as leve?
INÊS
Si.
Uma aqui e outra aqui.
Oh como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?
PÊRO
Eu não saberei entoar..
INÊS
Pois eu hei só de cantar
E vós me respondereis
Cada vez que eu acabar:
«Pois assi se fazem as cousas».
Canta Inês Pereira:
INÊS
«Marido cuco me levades
E mais duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»
INÊS
«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo.
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss’amo,
Com duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas»
INÊS
«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero.
Sempre fostes percebido
Pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»
E assi se vão, e se acaba o dito Auto.
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