A Escrava Isaura – Bernardo Guimarães

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Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

 

 

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

 

Capítulo 1

Era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II.

No fértil e opulento município de Campos de Goitacases, à
margem do Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia
uma linda e magnífica fazenda.

Era um edifício de harmoniosas proporções, vasto e
luxuoso, situado em aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas
cobertas de mata em parte devastada pelo machado do lavrador. Longe em derredor
a natureza ostentava?se ainda em toda a sua primitiva e selvática rudeza;
mas por perto, em torno da deliciosa vivenda, a mão do homem tinha
convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e pomares deleitosos,
em gramais e pingues pastagens, sombreadas aqui e acolá por gameleiras
gigantescas, perobas, cedros e copaíbas, que atestavam o vigor da antiga
floresta. Quase não se via aí muro, cerca, nem valado; jardim,
horta, pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos eram divididos por viçosas
e verdejantes sebes de bambus, piteiras, espinheiros e gravatás, que
davam ao todo o aspecto do mais aprazível e delicioso vergel.

A casa apresentava a frente às colinas. Entrava?se nela por um lindo
alpendre todo enredado de flores trepadeiras, ao qual subia?se por uma escada
de cantaria de seis a sete degraus. Os fundos eram ocupados por outros edifícios
acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por trás
dos quais se estendia o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia perder?se
na barranca do grande rio.

Era por uma linda e calmosa tarde de outubro. O Sol não era ainda
posto, e parecia boiar no horizonte suspenso sobre rolos de espuma de cores
cambiantes orlados de fêveras de ouro. A viração saturada
de balsâmicos eflúvios se espreguiçava ao longo das ribanceiras
acordando apenas frouxos rumores pela copa dos arvoredos, e fazendo farfalhar
de leve o tope dos coqueiros, que miravam?se garbosos nas lúcidas e
tranqüilas águas da ribeira.

Corria um belo tempo; a vegetação reanimada por moderadas
chuvas ostentava?se fresca, viçosa e luxuriante; a água do rio
ainda não turvada pelas grandes enchentes, rolando com majestosa lentidão,
refletia em toda a pureza os esplêndidos coloridos do horizonte, e o
nítido verdor das selvosas ribanceiras. As aves, dando repouso ás
asas fatigadas do contínuo voejar pelos pomares, prados e balsedos
vizinhos, começavam a preludiar seus cantos vespertinos.

O clarão do Sol poente por tal sorte abraseava as vidraças
do edifício, que esse parecia estar sendo devorado pelas chamas de
um incêndio interior. Entretanto, quer no interior, quer em derredor,
reinava fundo silêncio, e perfeita tranqüilidade. Bois truculentos,
e médias novilhas deitadas pelo gramal, ruminavam tranqüilamente
à sombra de altos troncos. As aves domésticas grazinavam em
tomo da casa, balavam as ovelhas, e mugiam algumas vacas, que vinham por si
mesmas procurando os currais; mas não se ouvia, nem se divisava voz
nem figura humana. Parecia que ali não se achava morador algum. Somente
as vidraças arregaçadas de um grande salão da frente
e os batentes da porta da entrada, abertos de par em par, denunciavam que
nem todos os habitantes daquela suntuosa propriedade se achavam ausentes.

A favor desse quase silêncio harmonioso da natureza ouvia?se distintamente
o arpejo de um piano casando?se a uma voz de mulher, voz melodiosa, suave,
apaixonada, e do timbre o mais puro e fresco que se pode imaginar.

Posto que um tanto abafado, o canto tinha uma vibração sonora,
ampla e volumosa, que revelava excelente e vigorosa organização
vocal.

O tom velado e melancólico da cantiga parecia gemido sufocado de
uma alma solitária e sofredora.

Era essa a única voz que quebrava o silêncio da vasta e tranqüila
vivenda. Por fora tudo parecia escutá?la em místico e profundo
recolhimento.

As coplas, que cantava, diziam assim:

Desd’o berço respirando Os ares da escravidão, Como semente
lançada Em terra de maldição, A vida passo chorando Minha
triste condição.

Os meus braços estão presos, A ninguém posso abraçar,
Nem meus lábios, nem meus olhos Não podem de amor falar; Deu?me
Deus um coração Somente para penar.

Ao ar livre das campinas Seu perfume exala a flor; Canta a aura em liberdade
Do bosque o alado cantor; Só para a pobre cativa Não há
canções, nem amor.

Cala te, pobre cativa; Teus queixumes crimes são; E uma afronta esse
canto, Que exprime tua aflição.

A vida não te pertence, Não é teu teu coração.

As notas sentidas e maviosas daquele cantar escapando pelas janelas abertas
e ecoando ao longe em derredor, dão vontade de conhecer a sereia que
tão lindamente canta. Se não é sereia, somente um anjo
pode cantar assim.

Subamos os degraus, que conduzem ao alpendre, todo engrinaldado de viçosos
festões e lindas flores, que serve de vestíbulo ao edifício.

Entremos sem cerimônia. Logo à direita do corredor encontramos
aberta uma larga porta, que dá entrada à sala de recepção,
vasta e luxuosamente mobiliada. Acha?se ali sozinha e sentada ao piano uma
bela e nobre figura de moça. As linhas do perfil desenham?se distintamente
entre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas ainda mais negras
do que ele. São tão puras e suaves essas linhas, que fascinam
os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A tez é
como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por
uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve
palidez ou cor?de?rosa desmaiada. O colo donoso e do mais puro lavor sustenta
com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e
fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidios
rolos, e como franjas negras escondiam quase completamente o dorso da cadeira,
a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore polido,
a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di?la?íeis
misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo
celeste da inspiração.

Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar vago pairavalhe pelo espaço.

Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza,
e diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária
azul?clara desenhava?lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte
esbelto e a cintura delicada, e desdobrando?se?lhe em roda amplas ondulações
parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus nascendo
da espuma do mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas vaporosas. Uma pequena
cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía
o seu único ornamento.

Apenas terminado o canto, a moça ficou um momento a cismar com os
dedos sobre o teclado como escutando os derradeiros ecos da sua canção.

Entretanto abre?se sutilmente a cortina de cassa de uma das portas interiores,
e uma nova personagem penetra no salão. Era também uma formosa
dama ainda no viço da mocidade, bonita, bem feita e elegante.

A riqueza e o primoroso esmero do trajar, o porte altivo e senhoril, certo
balanceio afetado e langoroso dos movimentos davam?lhe esse ar pretensioso,
que acompanha toda moça bonita e rica, ainda mesmo quando está
sozinha. Mas com todo esse luxo e donaire de grande senhora nem por isso sua
grande beleza deixava de ficar algum tanto eclipsada em presença das
formas puras e corretas, da nobre singeleza, e dos tão naturais e modestos
ademanes da cantora. Todavia Malvina era linda, encantadora mesmo, e posto
que vaidosa de sua formosura e alta posição, transluzia?lhe
nos grandes e meigos olhos azuis toda a nativa bondade de seu coração.

Malvina aproximou?se de manso e sem ser pressentida para junto da cantora,
colocando?se por detrás dela esperou que terminasse a última
copia.

– Isaura!… disse ela pousando de leve a delicada mãozinha sobre
o ombro da cantora.

– Ah! é a senhora?! – respondeu Isaura voltando?se sobressaltada.

– Não sabia que estava aí me escutando.

– Pois que tem isso?.., continua a cantar… tens a voz tão bonita!…

mas eu antes quisera que cantasses outra coisa; por que é que você
gosta tanto dessa cantiga tão triste, que você aprendeu não
sei onde?…

– Gosto dela, porque acho?a bonita e porque… ah! não devo falar…

– Fala, Isaura. Já não te disse que nada me deves esconder,
e nada recear de mim?…

– Porque me faz lembrar de minha mãe, que eu não conheci,
coitada!… Mas se a senhora não gosta dessa cantiga, não a
cantarei mais.

– Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar
que és maltratada, que és uma escrava infeliz, vítima
de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto passas aqui uma vida
que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus senhores. Deram?te
uma educação, como não tiveram muitas ricas e ilustres
damas que eu conheço. És formosa, e tens uma cor linda, que
ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue
africano. Bem sabes quanto minha boa sogra antes de expirar te recomendava
a mim e a meu marido. Hei de respeitar sempre as recomendações
daquela santa mulher, e tu bem vês, sou mais tua amiga do que tua senhora.
Oh! não; não cabe em tua boca essa cantiga lastimosa, que tanto
gostas de cantar. – Não quero, – continuou em tom de branda repreensão,
– não quero que a cantes mais, ouviste, Isaura?… se não, fecho?te
o meu piano.

– Mas, senhora, apesar de tudo isso, que sou eu mais do que uma simples
escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, que tanto
me gabam, de que me servem?… são trastes de luxo colocados na senzala
do africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é: uma senzala.

– Queixas?te da tua sorte, Isaura?…

– Eu não, senhora; não tenho motivo… o que quero dizer com
isto é que, apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem,
sei conhecer o meu lugar.

– Anda lá; já sei o que te amofina; a tua cantiga bem o diz.
Bonita como és, não podes deixar de ter algum namorado.

– Eu, senhora!… por quem é, não pense nisso.

– Tu mesma; pois que tem isso?… não te vexes; pois é alguma
coisa do outro mundo? Vamos já, confessa; tens um amante, e é
por isso que lamentas não teres nascido livre para poder amar aquele
que te agradou, e a quem caíste em graça, não é
assim?…

– Perdoe?me, sinhá Malvina; – replicou a escrava com um cândido
sorriso. – Está muito enganada; estou tão longe de pensar nisso!
– Qual longe!… não me enganas, minha rapariguinha!… tu amas, e
és mui linda e bem prendada para te inclinares a um escravo; só
se fosse um escravo, como tu és, o que duvido que haja no mundo. Uma
menina como tu, bem pode conquistar o amor de algum guapo mocetão,
e eis aí a causa da choradeira de tua canção. Mas não
te aflijas, minha Isaura; eu te protesto que amanhã mesmo terás
a tua liberdade; deixa Leôncio chegar; é uma vergonha que uma
rapariga como tu se veja ainda na condição de escrava.

– Deixe?se disso, senhora; eu não penso em amores e muito menos em
liberdade; às vezes fico triste à toa, sem motivo nenhum…

– Não importa. Sou eu quem quero que sejas livre, e hás de
sê?lo.

Neste ponto a conversação foi cortada por um tropel de cavaleiros,
que chegavam e apeavam?se á porta da fazenda.

Malvina e Isaura correram à janela a ver quem eram.

Capitulo 2

Os cavaleiros, que acabavam de apear? se, eram dois belos e ele? gantes mancebos,
que chegavam da vila de Campos. Do modo familiar, por que foram entrando,
logo se depreendia que era gente de casa.

De feito um era Leôncio, marido de Malvina; e outro Henrique, irmão
da mesma.

Antes de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento mais
íntimo com os dois jovens cavaleiros.

Leôncio era filho único do rico e magnífico comendador
Almeida, proprietário da bela e suntuosa fazenda em que nos achamos.
O comendador, já bastante idoso e cheio de enfermidades depois do casamento
de seu filho, que tivera lugar um ano antes da época em que começa
esta história, havia?lhe abandonado a administração e
usufruto da fazenda, e vivia na corte, onde procurava alivio ou distração
aos achaques que o atormentavam.

Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidades
de seus pais amplos meios de corromper o coração e extraviar
a inteligência.

Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado,
andou de colégio em colégio, e passou como gato por brasas por
cima de todos os preparatórios, cujos exames todavia sempre salvara
à sombra do patronato.

Os mestres não se atreviam a dar ao nobre e munífico comendador
o desgosto de ver seu filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo
no primeiro ano enjoou?se daquela disciplina, e como seus pais não
sabiam contrariá?lo, foi?se para Olinda a fim de freqüentar o
curso jurídico. Ali depois de ter dissipado não pequena porção
da fortuna paterna na satisfação de todos os seus vícios
e loucas fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos,
e ficou entendendo que só na Europa poderia desenvolver dignamente
a sua inteligência, e saciar a sua sede de saber, em puros e abundantes
mananciais. Assim escreveu ao pai, que deu?lhe crédito e o enviou a
Paris, donde esperava vê?lo voltar feito um novo Humboldt. Instalado
naquele vasto pandemônio do luxo e dos prazeres, Leóncio raras
vezes, e só por desfastio, ia ouvir as eloqüentes preleções
dos exímios professores da época, e nem tampouco era visto nos
museus, institutos e bibliotecas. Em compensação era assíduo
frequentador do Jardim Mabile, assim como de todos os cafés e teatros
mais em voga, e tomara?se um dos mais afamados e elegantes leões dos
bulevares. No fim de alguns anos, ora de residência em Paris, ora de
giros recreativos pelas águas e pelas principais capitais da Europa,
tinha ele tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsa paterna,
que o comendador a despeito de toda a sua condescendência e ternura
para com seu único e querido filho, viu?se na necessidade de revocá?lo
à sombra dos pátrios lares a fim de evitar uma completa ruína.

Mas, mesmo assim, para não magoá?lo colhendo?lhe súbita
e rudemente as rédeas na carreira dos desvarios e dissipações,
assentou de atraí?lo suavemente acenando?lhe com a perspectiva de um
rico e vantajosíssimo casamento.

Leôncio pegou na isca e voltou à pátria um perfeito
dândi, gentil e elegante como ninguém, trazendo de suas viagens,
em vez de conhecimentos e experiência, enorme dose de fatuidade e petulância
e um tão perfeito traquejo da alta sociedade, que o tomaríeis
por um príncipe.

Mas o pior era que, se trazia o cérebro vazio, voltava com a alma
corrompida e o coração estragado por hábitos de devassidão
e libertinagem.

Alguns bons e generosos instintos, de que o dotara a natureza, haviam?se
apagado em seu coração ao roçar de péssimas doutrinas
confirmadas por exemplos ainda piores.

De volta da Europa, Leóncio contava vinte e cinco anos. O pai advertiu?lhe
com palavras insinuantes e jeitosas, que já era tempo de empregar?se
em alguma coisa, de abraçar alguma carreira; que já se tinha
aproveitado da bolsa paterna mais do que era preciso para sua educação,
e que era mister ir aprendendo se não a aumentar, ao menos a conservar
uma fortuna, à testa da qual teria de achar?se mais tarde ou mais cedo.
Depois de muita hesitação, Leôncio optou enfim pela carreira
do comércio que lhe pareceu ser a mais independente e segura de todas;
mas as suas idéias largas e audaciosas a este respeito aterraram o
bom do comendador. O comércio de importação e exportação
de gêneros, mesmo em larga escala, o próprio tráfego de
africanos, lhe pareciam especulações degradantes e impróprias
de sua alta posição e esmerada educação. O negócio
de balcão e a retalho, esse inspirava?lhe asco e compaixão.
Só lhe convinham as altas especulações cambiais, as operações
bancárias e transações em que jogasse com avultados capitais.

Só assim poderia duplicar em pouco tempo a fortuna patema. Com o
que tinha observado na Bolsa de Paris e em outras praças européias,
presumia?se com habilitação bastante para dirigir as operações
do mais importante estabelecimento bancário, ou as mais grandiosas
empresas industriais.

O pai porém não se animou a confiar sua fortuna aos azares
especulativos daquele financeiro em botão, e que até ali só
tinha dado provas de grande talento para consumir, em pouco tempo e em pura
perda, somas consideráveis. Resolveu portanto a não tocar?lhe
mais naquele assunto, esperando que o mancebo criasse mais algum juízo.

Vendo que seu pai esquecia?se completamente dos planos de criar-lhe um pecúlio
próprio, Leôncio olhou para o casamento como o meio suave e natural
de adquirir fortuna, como a única carreira que se lhe oferecia para
ter dinheiro a esbanjar a seu bel?prazer.

Malvina, a formosa filha de um riquíssimo negociante da corte, amigo
do comendador, já estava destinada a Leôncio por comum acordo
e aquiescência dos pais de ambos. A família do comendador foi
à corte; os moços viram?se, amaram?se e casaram; foi coisa de
poucos dias. Pouco tempo depois de seu casamento Leôncio passou pelo
desgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta boa e respeitável
senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida
íntima com seu marido, que, como homem de coração árido
e frio, desconhecia as santas e puras delícias da afeição
conjugal, e com suas libertinagens e devassidões dilacerava cotidianamente
o coração de sua esposa. Para cúmulo de males linha ela
perdido ainda na infância todos os seus filhos, ficando?lhe só
Leôncio. Lastimava?se principalmente por não ter-lhe deixado
o céu ao menos uma filha, que lhe servisse de companhia e consolação
em sua desolada velhice. Quis entretanto a sorte deparar?lhe em sua própria
casa uma tal ou qual compensação a seus infortúnios em
uma frágil criatura, que veio de alguma sorte encher o vácuo
que sentia em seu bondoso e terno coração, e tornar menos triste
e solitário o lar, em que passava os dias tão monótonos
e enfadonhos.

Havia nascido em casa uma escravinha, que desde o berço atraiu por
sua graça, gentileza e vivacidade toda a atenção e solicitude
da boa velha.

Isaura era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama
favorita e a criada fiel da esposa do comendador. Este, que como homem libidinoso
e sem escrúpulos olhava as escravas como um serralho à sua disposição,
lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascívia sobre a
gentil mucama. Por muito tempo resistiu ela ás suas brutais solicitações;
mas por fim teve de ceder às ameaças e violências. Tão
torpe e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo
ficar oculto aos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeu mortal
desgosto.

Acabrunhado por ela das mais violentas e amargas exprobrações,
o comendador não ousou mais empregar a violência contra a pobre
escrava, e nem tampouco conseguiu jamais por outro qualquer meio superar a
invencível repugnância que lhe inspirava. Enfureceu?se com tanta
resistência, e deliberou em seu coração perverso vingar?se
da maneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando?a de trabalhos
e castigos.

Exilou?a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados serviços,
para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recomendando bem
ao feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor,
porém, que era um bom português ainda no vigor dos anos, e que
não tinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão,
seduzido pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só
lhe dava carícias e presentes, de maneira que daí a algum tempo
a mulata deu à luz da vida a gentil escravinha, de que falamos. Este
fato veio exacerbar ainda mais a sanha do comendador contra a mísera
escrava. Expeliu com impropérios e ameaças o bom e fiel feitor,
e sujeitou a mulata a tão rudes trabalhos e tão cruel tratamento,
que em breve a precipitou no túmulo, antes que pudesse acabar de criar
sua tenra e mimosa filhinha.

Eis aí debaixo de que tristes auspícios nasceu a linda e infeliz
Isaura. Todavia, como para indenizá?la de tamanha desventura, uma santa
mulher, um anjo de bondade, curvou?se sobre o berço da pobre criança
e veio ampará?la à sombra de suas asas caridosas. A mulher do
comendador considerou aquela tenra e formosa cria como um mimo, que o céu
lhe enviava para consolá?la das angústias e dissabores, que
tragava em conseqüência dos torpes desmandos de seu devasso marido.

Levantou ao céu os olhos banhados em lágrimas, e jurou pela
alma da infeliz mulata encarregar?se do futuro de Isaura. criá?la e
educá?la, como se fosse uma filha.

Assim o cumpriu com o mais religioso escrúpulo. À medida que
a menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi?lhe ela mesma
ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou?lhe também
mestres de música, de dança, de italiano, de francês,
de desenho, comprou?lhe livros, e empenhou?se enfim em dar à menina
a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filha
querida. Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento
de suas graças e atrativos corporais, como pelos rápidos progressos
de sua viva e robusta inteligência, foi muito além das mais exageradas
esperanças da excelente velha, a qual em vista de tão felizes
e brilhantes resultados, cada vez mais se comprazia em lapidar e polir aquela
jóia, que ela dizia ser a pérola entrançada em seus cabelos
brancos. – O céu não quis dar?me uma filha de minhas entranhas,
– costumava ela dizer, – mas em compensação deu?me uma filha
de minha alma.

O que porém mais era de admirar na interessante menina, é
que aquela predileção e extremosa solicitude de que era objeto,
não a tornava impertinente, vaidosa ou arrogante nem mesmo para com
seus parceiros de cativeiro. O mimo, com que era tratada, em nada lhe alterava
a natural bondade e candura do coração. Era sempre alegre e
boa com os escravos, dócil e submissa com os senhores.

O comendador não gostava nada do singular capricho de sua esposa
para com a mulatinha, capricho que qualificava de caduquice.

– Forte loucura! – costumava exclamar com acento de comiseração.

– Está ai se esmerando em criar uma formidável tafulona, que
lá pelo tempo adiante há de lhe dar água pela barba.
As velhas, umas dão para rezar, outras para ralhar desde a manhã
até à noite, outras para lavar cachorrinhos ou para criar pintos;
esta deu para criar mulatinhas princesas. É um divertimento um pouco
mais dispendioso na verdade; mas.., que lhe faça bom proveito; ao menos
enquanto se entretém por lá com o seu embeleco, poupa?me uma
boa dúzia de impertinentes e rabugentos sermões… Lá
se avenha!…

Poucos dias depois do casamento de Leôncio, o comendador, com toda
a família, inclusive os dois novos desposados, transportou?se de novo
para a fazenda de Campos. Foi então que o comendador entregou a seu
filho toda a administração e usufruto daquela propriedade, com
toda a escravatura e mais acessórios nela existentes, declarando?lhe
que achando?se já bastante velho, enfermo e cansado, queria passar
tranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações,
para o que bastavam?lhe com sobejidão as rendas que para si reservava.
Feita em vida esta magnífica dotação a seu filho, retirou?se
para a corte. Sua esposa porém preferiu ficar em companhia do filho,
o que foi muito do gosto e aprovação do marido.

Malvina, que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândida
e boa, e um coração bem formado, não pôde deixar
de conceber logo desde o principio o mais vivo interesse e terna afeição
pela cativa Isaura.

Era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão
dócil, modesta e submissa, que apesar de sua grande beleza e incontestáveis
dotes de espírito, conquistava logo ao primeiro encontro a benevolência
de todos.

Isaura tornou?se imediatamente, não direi a mucama favorita, mas
a fiel companheira, a amiga de Malvina que, afeita aos prazeres e passatempos
da corte, muito folgou de encontrar tão boa e amável companhia
na solidão que ia habitar.

– Por que razão não libertam esta menina? – dizia ela um dia
à sua sogra. – Uma tão boa e interessante criatura não
nasceu para ser escrava.

– Tem razão, minha filha, – respondeu bondosamente a velha; – mas
que quer você?… não tenho ânimo de soltar este passarinho
que o céu me deu para me consolar e tornar mais suportáveis
as pesadas e compridas horas da velhice.

E também libertá?la para quê? Ela aqui é livre,
mais livre do que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho
gostos na vida nem forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte
a minha patativa? e se ela transviar?se por aí, e nunca mais acertar
com a porta da gaiola?… Não, não, minha filha; enquanto eu
for viva, quero tê?la sempre bem pertinho de mim, quero que seja minha,
e minha só. Você há de estar dizendo lá consigo
– forte egoísmo de velha! – mas também eu já poucos dias
terei de vida; o sacrifício não será grande. Por minha
morte ficará livre, e eu terei o cuidado de deixar?lhe um bom legado.

De feito, a boa velha tentou por diversas vezes escrever seu testamento
a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupila; mas o
comendador, auxiliado por seu filho com delongas e fúteis pretextos,
conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvável
e santo desejo de sua esposa, até o dia em que, fulminada por um ataque
de paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas sem ter tido um só
momento de lucidez e reanimação para expressar sua última
vontade.

Malvina jurou sobre o cadáver de sua sogra continuar para com a infeliz
escrava a mesma proteção e solicitude que a defunta lhe havia
prodigalizado. Isaura pranteou por muito tempo a morte daquela que havia sido
para ela mãe desvelada e carinhosa; e continuou a ser escrava não
já de uma boa e virtuosa senhora, mas de senhores caprichosos, devassos
e cruéis.

Capitulo 3

Falta?nos ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de Leôncio.
Era ele um elegante e bonito rapaz de vinte anos, frívolo, estouvado
e vaidoso, como são quase sempre todos os jovens, mormente quando lhes
coube a ventura de terem nascido de um pai rico. Não obstante esses
ligeiros senões, tinha bom coração e bastante dignidade
e nobreza de alma. Era estudante de medicina, e como estava?se em férias,
Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns dias
em sua fazenda.

Os dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde a véspera
linha ido ao encontro do cunhado.

Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves
estadas fizera na casa paterna, começou a prestar atenção
à extrema beleza e às graças incomparáveis de
Isaura. Posto que lhe coubesse em sorte uma linda e excelente mulher, ele
não se havia casado por amor, sentimento esse a que seu coração
até ali parecia absolutamente estranho. Casara?se por especulação,
e como sua mulher era moça e bonita, sentira apenas por ela paixão,
que se ceva no gozo dos prazeres sensuais, e com eles se extingue. Estava
reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele
coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas
pelo atrito da devassidão.

Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia crescendo
na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que
encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em vão
se esforçava para superar. Mas nem por isso desistia de sua tresloucada
empresa, porque em fim de contas, – pensava ele, – Isaura era propriedade
sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava?lhe o emprego da violência.

Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal
devassidão do comendador.

Pelo caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem de Isaura, Leôncio
conversara longamente com seu cunhado a respeito dela, exaltando?lhe a beleza,
e deixando transluzir com revoltante cinismo as lascivas intenções
que abrigava no coração. Esta conversação não
agradava muito a Henrique, que às vezes corava de pejo e de indignação
por sua irmã, mas não deixou de excitar?lhe viva curiosidade
de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.

No dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da manhã,
Isaura, que acabava de espanejar os móveis e arranjar o salão,
achava?se sentada junto a uma janela e entrelinha?se a bordar, à espera
que seus senhores se levantassem para servir?lhes o café. Leôncio
e Henrique não tardaram em aparecer, e parando à porta do salão
puseram?se a contemplar Isaura, que sem se aperceber da presença deles
continuava a bordar distraidamente.

– Então, que te parece? segredava Leôncio a seu cunhado. – Uma
escrava desta ordem não é um tesouro inapreciável? Quem
não diria que uma andaluza de Cádiz, ou uma napolitana?…

– Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique
maravilhado; é uma perfeita brasileira.

– Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos
e aquelas dezessete primaveras em uma moça livre, teriam feito virar
o juízo a muita gente boa. Tua irmã pretende com instância,
que eu a liberte, alegando que essa era a vontade de minha defunta mãe;
mas nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim sem mais nem menos
de uma jóia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho
de criá?la com todo o mimo e de dar?lhe uma primorosa educação,
não foi decerto para abandoná?la ao mundo, não achas?…
Também meu pai parece que cedeu às instâncias do pai dela,
que é um pobre galego, que por ai anda, e que pretende libertá?la;
mas o velho pede por ela tão exorbitante soma, que julgo nada dever
recear por esse lado. Vê lá, Henrique, se há nada que
pague uma escrava assim?…

– É com efeito encantadora – replicou o moço, – se estivesse
no serralho do sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar?te,
Leôncio, – continuou, cravando no cunhado um olhar cheio de maliciosa
penetração, – como teu amigo e como irmão de tua mulher,
que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma escrava tão
linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez
perigoso para a tranqüilidade doméstica…

– Bravo! – atalhou Leôncio, galhofando, – para a idade que tens, já
estás um moralista de polpa!… mas não te dê isso cuidado,
meu menino; tua irmã não tem dessas veleidades, e é ela
mesma quem mais gosta de que Isaura seja vista e admirada por todos. E tem
razão; Isaura é como um traste de luxo, que deve estar sempre
exposto no salão.

Querias que eu mandasse para a cozinha os meus espelhos de Veneza?…

Malvina, que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre como uma
manhã de abril, veio interromper?lhes a conversação.

– Bom dia, senhores preguiçosos! – disse ela com voz argentina e
festiva como o trino da andorinha. – Até que enfim sempre se levantaram!
– Estás hoje muito alegre, minha querida, – retorquiu?lhe sor? rindo
o marido; – viste algum passarinho verde de bico dourado?…

– Não vi, mas hei de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje aqui
em casa seja um dia de festa para todos. Isto depende de ti, Leôncio,
e estava aflita por te ver de pé; quero dizer?te uma coisa; já
devia tê?la dito ontem, mas o prazer de ver este ingrato de irmão,
que há tanto tempo não vejo, me fez esquecer…

– Mas o que é?… fala, Malvina.

– Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes, promessa sagrada,
que há muito tempo devia ter sido cumprida?… hoje quero absolutamente,
exijo, o seu cumprimento.

– Deveras?.., mas que promessa?… não me lembro.

– Ah! como te fazes de esquecido!… não te lembras, que me prometeste
dar liberdade a…

– Ah! já sei, já sei; – atalhou Leôncio com impaciência.
– Mas tratar disso aqui agora? em presença dela?… que necessidade
há de que nos ouça? – E que mal faz isso? mas seja como quiseres,
– replicou a moça tomando a mão de Leôncio e levando?o
para o interior da casa; – vamos cá para dentro. Henrique, espera aí
um momento, enquanto eu vou mandar preparar?nos o café.

Só depois da chegada de Malvina, Isaura deu pela presença
dos dois mancebos, que a certa distância a contemplavam cochichando
a respeito dela. Também pouco ouviu ela e nada compreendeu do rápido
diálogo que tivera lugar entre Malvina e seu marido. Apenas estes se
retiraram ela também se levantou e ia sair, mas Henrique, que ficara
só, a deteve com um gesto.

– Que me quer, senhor? – disse ela baixando os olhos com humildade.

– Espera ai, menina; tenho alguma coisa a dizer?te, – replicou o moço,
e sem dizer mais nada colocou?se diante dela devorando?a com os olhos, e como
extático contemplando?lhe a maravilhosa beleza.

Henrique sentia?se acanhado diante daquela nobre figura radiante de beleza,
e de angélica serenidade. Por seu lado Isaura também olhava
para o moço, atônita e tolhida, esperando em vão que lhe
dissesse o que queria. Por fim Henrique, afoito, e estouvado como era, lembrando?se
que Isaura, a despeito de toda a sua formosura, não passava de uma
escrava, entendeu que fazia um ridículo papel, deixando?se ali ficar
diante dela em muda e extática contemplação, e chegando?se
a ela com todo o desembaraço e petulância travou?lhe da mão,
e…

– Mulatinha, disse, – tu não fazes idéia de quanto és
feiticeira.

Minha irmã tem razão; é pena que uma menina assim tão
linda não seja mais que uma escrava. Se tivesses nascido livre, serias
incontestavelmente a rainha dos salões.

– Está bem, senhor, está bem! replicou Isaura soltando?se
da mão de Henrique; se é só isso o que tinha a dizer?me,
deixe?me ir embora.

– Espera ainda um pouco; não sejas assim má; eu não
te quero fazer mal algum. Oh! quanto eu daria para obter a tua liberdade,
se com ela pudesse obter também o teu amor!… És muito mimosa
e muito linda para ficares por muito tempo no cativeiro; alguém impreterivelmente
virá arrancar?te dele, e se hás de cair nas mãos de algum
desconhecido, que não saberá dar?te o devido apreço,
seja eu, minha Isaura, seja o irmão de tua senhora, que de escrava
te haja de fazer uma princesa…

– Ah! senhor Henrique! retorquiu a menina com enfado; – o senhor não
se peja de dirigir esses galanteios a uma escrava de sua irmã? isso
não lhe fica bem; há por aí tanta moça bonita,
a quem o senhor pode fazer a corte…

– Não; ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu te juro.

Olha, Isaura; ninguém mais do que eu está nas circunstâncias
de conseguir a tua liberdade; sou capaz de obrigar Leôncio a te libertar,
porque, se me não engano, já lhe adivinhei os planos e as intenções,
e protesto?te que hei de burlá?los todos; é uma infâmia
em que não posso consentir. Além da liberdade terás tudo
o que desejares, sedas, jóias, carros, escravos para te servirem, e
acharás em mim um amante extremoso, que sempre te há de querer,
e nunca te trocará por quanta moça há por esse mundo,
por bonita e rica que seja, porque tu só vales mais que todas elas
juntas.

– Meu Deus! – exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa; – tanta grandeza
me aterra; isso faria virar?me o juízo. Nada, meu senhor; guarde suas
grandezas para quem melhor as merecer; eu por ora estou contente com a minha
sorte.

– Isaura!… para que tanta crueldade!… escuta, – disse o moço
lançando o braço ao pescoço de Isaura.

– Senhor Henrique! – gritou ela esquivando?se ao abraço, – por quem
é, deixe?me em paz! – Por piedade, Isaura! – insistiu o rapaz continuando
a querer abraçá?la; – oh!… não fales tão alto!…
um beijo… um beijo só, e já te deixo…

– Se o senhor continua, eu grito mais alto. Não posso aqui trabalhar
um momento, que não me venham perturbar com declarações
que não devo escutar…

– Oh! como está altaneira! – exclamou Henrique, já um tanto
agastado com tanta resistência. – Não lhe falta nada!… tem
até os ares desdenhosos de uma grande senhora!… não te arrufes
assim, minha princesa…

– Arre lá, senhor! – bradou a escrava já no auge da impaciência.

– Já não bastava o senhor Leôncio!… agora vem o senhor
também…

– Como?… que estás dizendo?… também Leôncio?…
oh!… oh! bem o coração me estava adivinhando!… que infâmia!…
mas decerto tu o escutas com menos impaciência, não é
assim? – Tanto como escuto ao senhor.

– Não duvido Isaura; a lealdade, que deves a tua senhora, que tanto
te estima, não te permite que dês ouvidos àquele perverso.
Mas comigo o caso é diferente; que motivo há para seres cruel
assim? – Eu cruel para com meus senhores!!! Ora, senhor, pelo amor de Deus!…
Não esteja assim a escarnecer de uma pobre cativa.

– Não! não escarneço… Isaura!… escuta, – exclamava
Henrique forcejando para abraçá?la e furtar?lhe um beijo.

– Bravo!… bravíssimo! – retumbou pelo salão uma voz acompanhada
de sardônica e estrepitosa gargalhada.

Henrique voltou?se sobressaltado. Toda a sua amorosa exaltação
tinha?se?lhe gelado de súbito no âmago do coração.

Leôncio estava em pé no meio da porta, de braços cruzados
e olhando para ele com sorriso do mais insultante escárnio.

– Bravo! muito bem, senhor meu cunhado! – continuou Leôncio no mesmo
tom de mofa. – Está pondo em prática belissimamente as suas
lições de moral!… requestando?me as escravas!… está
galante!…

sabe respeitar divinamente a casa de sua irmã!…

– Ah! maldito importuno! murmurou Henrique, trincando os dentes de cólera,
e seu primeiro impulso foi investir de punho fechado, e responder com cachações
aos insolentes sarcasmos do cunhado.

Refletindo porém um momento, sentiu que lhe seria mais vantajoso
empregar contra o seu agressor a mesma arma de que se servira contra ele,
o sarcasmo, que as circunstâncias lhe permitiam vibrar de modo vitorioso
e decisivo. Acalmou?se, pois, e com sorriso de soberano desdém: – Ah!
perdão, meu cunhado! – disse ele não sabia que a peregrina jóia
do seu salão lhe merecesse tanto cuidado, que o levasse a ponto de
andá?la espionando; creio que tem mais zelo por ela do que mesmo pelo
respeito que se deve à sua casa e à sua mulher. Pobre de minha
irmã!… é bem simples, e admira que, há mais tempo,
não tenha conhecido o belo marido que possui!…

– O que estás dizendo, rapaz? – bradou Leôncio com gesto ameaçador;
– repete; que estás dizendo? – O mesmo que o senhor acaba de ouvir,
– redargüiu Henrique com firmeza, – e fique certo que o seu indigno procedimento
não há de ficar por muito tempo oculto à minha irmã.

– Qual procedimento!? tu deliras, Henrique?…

– Faça?se de esquerdo!… pensa que não sei tudo?… enfim.

adeus, senhor Leôncio: eu me retiro, porque seria altamente inconveniente,
indigno e ridículo da minha parte estar a disputar com o senhor por
amor de uma escrava.

– Espera, Henrique… escuta…

– Não, não; não tenho negócio nenhum com o senhor.
Adeus! – disse e retirou?se precipitadamente.

Leôncio sentiu?se esmagado, e arrependeu?se mil e uma vezes de ter
provocado tão imprudentemente aquele leviano e estouvado rapaz.

Ignorava que seu cunhado estivesse ao fato da paixão que sentia por
Isaura, e dos esforços que empregava para vencer?lhe a isenção
e lograr seus favores. verdade que lhe havia falado sem muito rebuço
a esse respeito; mas algumas palavras ditas entre rapazes, em tom de mera
chocarrice, não constituíam base suficiente para que sobre ela
Henrique pudesse articular uma acusação contra ele em face de
sua mulher.

Decerto a rapariga lhe havia revelado alguma coisa, e isto o fazia espumar
de despeito e raiva contra um e outra. Bem pouco lhe importava a perturbação
da paz doméstica, o que o enfurecia era o perigo em que se colocara
de ver desconcertados os seus perversos desígnios sobre a gentil escrava.

– Maldição! – rugia ele lá consigo. – Aquele maluco
é bem ca? paz de desconcertar todos os meus planos. Se sabe alguma
coisa, como parece, não porá dúvida em levar tudo aos
ouvidos de Malvina…

Leôncio ficou por alguns momentos em pé, imóvel, sombrio,
carrancudo, com o espírito entregue à cruel inquietação
que o fustigava.

Depois, pairando as vistas em derredor, deu com os olhos em Isaura, a qual,
desde que Leôncio se apresentara, corrida, trêmula e anelante,
fora sumir?se em um canto da sala; dali presenciara em silenciosa ansiedade
a altercação dos dois moços, como corça mal ferida
escutando o rugir de dois tigres, que disputaram entre si o direito de devorá?la.
Por seu lado também se arrependia do intimo d’alma, e raivava contra
si mesma pela indiscreta e louca revelação, que em um assomo
de impaciência deixara escapar dos seus lábios. Sua imprudência
ia ser causa da mais deplorável discórdia no seio daquela família,
discórdia, de que por fim de contas ela viria a ser a principal vítima.
A desavença entre os dois mancebos era como o choque de duas nuvens,
que se encontram e continuam a pairar tranqüilamente no céu; mas
o raio desprendido de seu seio teria de vir certeiro sobre a fronte da infeliz
cativa.

Capítulo 4

– Ah! estás ainda ai?… fizeste bem, – disse Leôncio mal avistou
Isaura, que trêmula e confusa não ousara sair do cantinho, a
que se abrigara, e onde fazia mil votos ao céu para que seu senhor
não a visse, nem se lembrasse dela naquele momento. – Isaura, continuou
ele, – pelo que vejo, andas bem adiantada em amores!… estavas a ouvir finezas
daquele rapazola…

– Tanto como ouço as suas, meu senhor, por não ter outro remédio.

Uma escrava, que ousasse olhar com amor para seus senhores, merecia ser
severamente castigada.

– Mas tu disseste alguma coisa àquele estouvado, Isaura?…

– Eu?! – respondeu a escrava perturbando?se; – eu, nada que possa ofender
nem ao senhor nem a ele…

– Pesa bem as tuas palavras, Isaura; olha, não procures enganar?me.
Nada lhe disseste a meu respeito? – Nada.

– Juras? – Juro, – balbuciou Isaura.

– Ah! Isaura, Isaura!… tem cuidado. Se até aqui tenho sofrido com
paciência as tuas repulsas e desdéns, não estou disposto
a suportar que em minha casa, e quase em minha presença, estejas a
escutar galanteios de quem quer que seja, e muito menos revelar o que aqui
se passa. Se não queres o meu amor, evita ao menos de incorrer no meu
ódio.

– Perdão, senhor, que culpa tenho eu de andarem a perseguir?me? –
Tens alguma razão; estou vendo que me verei forçado a desterrar?te
desta casa, e a esconder?te em algum canto, onde não sejas tão
vista e cobiçada…

– Para quê, senhor…

– Basta; não te posso ouvir agora, Isaura. Não convém
que nos encontrem aqui conversando a sós. Em outra ocasião te
escutarei. – preciso estorvar que aquele estonteado vã intrigar?me
com Malvina – murmurava Leôncio retirando?se. – Ah! cão! maldita
a hora em que te trouxe à minha casa! – Permita Deus que tal ocasião
nunca chegue! – exclamou tristemente dentro da alma a rapariga, vendo seu
senhor retirar?se.

Ela via com angústia e mortal desassossego as continuas e cada vez
mais encarniçadas solicitações de Leôncio, e não
atinava com um meio de opor?lhes um paradeiro. Resolvida a resistir até
à morte, lembrava?se da sorte de sua infeliz mãe, cuja triste
história bem conhecia, pois a tinha ouvido, segredada a medo e misteriosamente,
da boca de alguns velhos escravos da casa, e o futuro se lhe antolhava carregado
das mais negras e sinistras cores. Revelar tudo a Malvina era o único
meio, que se lhe apresentava ao espírito, para pôr termo às
ousadias do seu marido, e atalhar futuras desgraças. Mas Isaura amava
muito sua jovem senhora para ousar dar semelhante passo, que iria derramar?lhe
no seio um pego de desgostos e amarguras, quebrando?lhe para sempre a risonha
e doce ilusão em que vivia.

Preferia antes morrer como sua mãe, vitima das mais cruéis
sevícias, do que ir por suas mãos lançar uma nuvem sinistra
no céu até ali tão sereno e bonançoso de sua querida
senhora.

O pai de Isaura, o único ente no mundo, que à exceção
de Malvina se interessava por ela, pobre e simples jornaleiro, não
se achava em estado de poder protegê?la contra as perseguições
e violências de que se achava ameaçada. Em tão cruel situação
Isaura não sabia senão chorar em segredo a sua desventura, e
implorar ao céu, do qual somente podia esperar remédio a seus
males.

Bem se compreende pois agora aquele acento tão dorido, tão
repassado de angústia, com que cantava a sua canção favorita.
Malvina enganava?se atribuindo sua tristeza a alguma paixão amorosa.
Isaura conservava ainda o coração no mais puro estado de isenção.
Com quanto mais dó não a teria lastimado sua boa e sensível
senhora, se pudesse adivinhar a verdadeira causa dos pesares que o ralavam.

Capítulo 5

Isaura despertando de suas pungentes e amargas preocupações.

tomou seu balainho de costura e ia deixar o salão, resolvida a sumir?se
no mais escondido recanto da casa, ou amoitar?se em algum esconderijo do pomar.
Esperava assim esquivar?se à repetição de cenas indecentes
e vergonhosas, como essas por que acabava de passar. Apenas dera os primeiros
passos foi detida por uma extravagante e grotesca figura, que penetrando no
salão veio postar?se diante de seus olhos.

Era um monstrengo afetando formas humanas, um homúnculo em tudo mal
construído, de cabeça enorme, tronco raquítico, pernas
curtas e arqueadas para fora, cabeludo como um urso, e feio como um mono.

Era como um desses truões disformes, que formavam parte indispensável
do séquito de um grande rei da Média Idade, para divertimento
dele e de seus cortesões. A natureza esquecera de lhe formar o pescoço,
e a cabeça disforme nascia?lhe de dentro de uma formidável corcova,
que a resguardava quase como um capuz. Bem reparado todavia, o rosto não
era muito irregular, nem repugnante, e exprimia muita cordura, submissão
e bonomia.

Isaura teria soltado um grito de pavor, se há muito não estivesse
familiarizada com aquela estranha figura, pois era ele, sem mais nem menos,
o senhor Belchior, fiel e excelente ilhéu, que há muitos anos
exercia naquela fazenda mui digna e conscienciosamente, apesar de sua deformidade
e idiotismo, o cargo de jardineiro. Parece que as flores, que são o
símbolo natural de tudo quanto é belo, puro e delicado, deviam
ter um cultor menos disforme e repulsivo. Mas quis a sorte ou o capricho do
dono da casa estabelecer aquele contraste, talvez para fazer sobressair a
beleza de umas à custa da fealdade do outro.

Belchior tinha em uma das mãos o vasto chapéu de palha, que
arrastava pelo chão, e com a outra empunhava. não um ramalhete,
mas um enorme feixe de flores de todas as qualidades, à sombra das
quais procurava eclipsar sua desgraciosa e extravagante figura. Parecia um
desses vasos de louça, de formas fantásticas e grotescas, que
se enchem de flores para enfeitar bufetes e aparadores.

– Valha?me Deus! – pensou Isaura ao dar com os olhos no jardineiro.

– Que sorte é a minha! ainda mais este!… este ao menos é
de todos o mais suportável: os outros me amofinam, e atormentam: este
as vezes me faz rir.

– Muito bem aparecido, senhor Belchior! então, o que deseja? – Senhora
Isaura, eu… eu… vinha…, – resmungou embaraçado o jardineiro.

– Senhora!… eu senhora!… também o senhor pretende caçoar
comigo, senhor Belchior?…

Eu caçoar com a senhora!… não sou capaz… minha língua
seja comida de bichos, se eu faltar com o respeito devido à senhora…
Vinha trazer?lhe estas froles, se bem que a senhora mesma é uma frol…

– Arre lá, senhor Belchior!… sempre a dar?me de senhora!… se
continua por essa forma, ficamos mal, e não aceito as suas froles…
Eu sou Isaura, escrava da senhora D. Malvina; ouviu, senhor Belchior! – Embora
lá isso; e soverana cá deste coração, e eu, menina,
dou?me por feliz se puder beijar?te os pés. Olha, Isaura…

– Ainda bem! Agora sim; trate?me desse modo.

– Olha, Isaura, eu sou um pobre jardineiro, lá isso é verdade;
mas sei trabalhar, e não hás de achar vazio o meu mealheiro,
onde já tenho mais de meio mil cruzados. Se me quiseres, como eu te
quero, arranjote a liberdade, e caso?me contigo, que também não
és para andar aí assim como escrava de ninguém.

– Muito obrigada pelos seus bons desejos; mas perde seu tempo, senhor Belchior.
Meus senhores não me libertam por dinheiro nenhum.

– Ah! deveras!… que malbados!… ter assim no catibeiro a rainha da Jermosura!…
mas não importa, Isaura; terei mais gosto em ser escravo de uma escrava
como tu, do que em ser senhor dos senhores de cem mil cativos. Isaura!…
não fazes idéia de como te quero. Quando vou molhar as minhas
froles, estou a lembrar?me de ti com uma soidade!…

Deveras! ora viu?se que amor!…

– Isaura! – continuou Belchior, curvando os joelhos, – tem piedade deste
teu infeliz cativo…

– Levante?se, levante?se, – interrompeu Isaura com impaciência.

– Seria bonito que meus senhores viessem aqui encontrá?lo fazendo
esses papéis!… que estou?lhe dizendo?… ei?los aí!… ah!
senhor Belchior! De feito, de um lado Leôncio, e de outro Henrique e
Malvina, os estavam observando.

Henrique, tendo?se retirado do salão, despeitado e furioso contra
seu cunhado, assomado e leviano como era, foi encontrar a irmã na sala
de jantar, onde se achava preparando o café e ali em presença
dela não hesitou em desabafar sua cólera, soltando palavras
imprudentes, que lançaram no espírito da moça o germe
da desconfiança e da inquietação.

– Este teu marido, Malvina, não passa de um miserável patife
– disse bufando de raiva.

– Que estás dizendo, Henrique?!… que te fez ele?… – perguntou
a moça, espantada com aquele rompante.

– Tenho pena de ti, minha irmã… se soubesses… que infâmia!…

– Estás doido, Henrique!… o que há então? – Permita
Deus que nunca o saibas!… que vilania!…

– O que houve então, Henrique?… fala, explica?te por quem és,
– exclamou Malvina, pálida e ofegante no cúmulo da aflição.

– Oh! que tens?… não te aflijas assim, minha irmã, – respondeu
Henrique, já arrependido das loucas palavras que havia soltado. Tarde
compreendeu que fazia um triste e deplorável papel, servindo de mensageiro
da discórdia e da desconfiança entre dois esposos, que até
ali viviam na mais perfeita harmonia e tranquilidade. Tarde e em vão
procurou atenuar o terrível efeito de sua fatal indiscrição.

– Não te inquietes, Malvina, continuou ele procurando sorrir?se;
– teu marido é um formidável turrão, eis aí tudo;
não vás pensar que nos queremos bater em duelo.

– Não; mas vieste espumando de raiva, com os olhos em fogo, e com
um ar…

– Qual!… pois não me conheces?… sempre fui assim; por – dá
cá aquela palha – pego fogo, mas também é fogo de palha.

– Mas pregaste?me um susto!…

– Coitada!… toma isto, – disse?lhe Henrique, oferecendo?lhe uma xícara
de café, é a melhor coisa que há para aplacar sustos
e ataques de nervos.

Malvina procurou acalmar?se, mas as palavras do irmão tinham?lhe
penetrado no âmago do coração, como a dentada de uma víbora,
aí deixando o veneno da desconfiança.

O aparecimento de Leôncio, que vinha do salão, pôs termo
a este incidente. Os três tomaram café à pressa e sem
trocarem palavras; estavam já ressabiados uns com outros, olhavam?se
com desconfiança, e de um momento para outro a discórdia insinuara?se
no seio daquela pequena família, ainda há pouco tão feliz,
unânime e tranqüila. Tomado o café retiraram?se, mas todos
por um impulso instintivo, dirigiram seus passos para o salão, Henrique
e Malvina de braços dados pelo grande corredor da entrada, e Leôncio
sozinho por compartimentos interiores, que comunicavam com o salão.
Era ali com efeito que se achava o pomo fatal, mas inocente, que devia servir
de instrumento da desunião e descalabro daquela nascente família.

Chegaram ainda a tempo de presenciar o final da cena ridícula, que
Belchior representava aos pés de Isaura. Leôncio, porém,
que os espiava através das sanefas entreabertas de uma alcova, não
avistava Henrique e Malvina, que haviam parado no corredor junto à
porta da entrada.

– Oh! oh! – exclamou ele no momento em que Belchior prostrava?se aos pés
de Isaura. Creio que tenho dentro de casa um ídolo, diante do qual
todos vêm ajoelhar?se e render adorações!… até
o meu jardineiro!… Olá, senhor Belchior, está bonito!… Continue
com a farsa, que não está má… mas para tratar dessa
flor não precisamos de seus cuidados, não; tem entendido, senhor
Belchior!…

– Perdão, senhor meu, – balbuciou o jardineiro erguendo?se trêmulo
e confuso; – eu vinha trazer estas froles para os basos da sala…

– E apresentá?las de joelhos!… essa é galante!… Se continua
nesse papel de galã, declaro?lhe que o ponho pela porta fora com dois
pontapés nessa corcova.

Corrido, confuso e azoinado, Belchior, cambaleando e esbarrando pelas cadeiras,
lá se foi às cegas em busca da porta da rua.

– Isaura! ó minha Isaura! – exclamou Leôncio saindo da alcova,
avançando com os braços abertos para a rapariga, e dando à
voz até ali áspera e rude, a mais suave e tema inflexão.

Um ai agudo e pungente, que ecoou pelo salão, o faz parar mudo, gélido
e petrificado. Tinha avistado no meio da porta Malvina, que, pálida
e desfalecida, ocultava a fronte no ombro de seu irmão, que a amparava
nos braços.

– Ah! meu irmão! – exclamou ela voltando de seu delíquio,
– agora compreendo tudo que ainda há pouco me dizias.

E com uma das mãos comprimindo o coração, que parecia
querer?lhe estalar de dor, e com a outra escondendo no lenço as lágrimas,
que dos formosos olhos lhe brotavam aos pares, correu a encerrar?se em seu
aposento.

Leôncio desconcertado pelo terrível contratempo, de que acabava
de ser vítima, ficou largo tempo a passear, frenético e agitado,
de um a outro lado, ao longo do salão, furioso contra o cunhado, a
cuja impertinente leviandade atribuía as fatais ocorrências daquela
manhã, que ameaçavam burlar todos os seus planos sobre Isaura,
e excogitando meios de safar?se das dificuldades em que se via empenhado.

Isaura, tendo resistido em menos de uma hora, a três abordagens consecutivas,
dirigidas contra o seu pudor e isenção, aturdida, cheia de susto,
confusão e vergonha, correu a esconder?se entre os laranjais como lebre
medrosa, que ouve ladrarem pelos prados os galgos encarniçados a seguirem?lhe
a pista.

Henrique altamente indignado contra o cunhado não lhe queria ver
a cara; tomou sua espingarda e saiu disposto a passar o dia inteiro passarinhando
pelos matos, e a retirar?se impreterivelmente para a corte ao romper do dia
seguinte.

Os escravos ficaram pasmos, quando à hora do almoço Leôncio
achou?se sozinho à mesa. Leôncio mandou chamar Malvina, mas esta,
pretextando uma indisposição, não quis sair de seu quarto.
Seu primeiro movimento foi um ímpeto de cólera brutal; esteve
a ponto de atirar toalha, pratos, talheres e tudo pelos ares, e ir esbofetear
o desassisado e insolente rapaz, que em má hora viera à sua
casa para perturbar a tranqüilidade do seu viver doméstico. Mas
conteve?se a tempo, e acalmando?se entendeu que melhor era não se dar
por achado, e encarar com ares da maior indiferença e mesmo de desdém,
os arrufos da esposa, e o mau humor do cunhado. Estava bem persuadido que
lhe seria difícil, se não impossível, dissimular mais
aos olhos da esposa o seu torpe procedimento; incapaz, porém, de retratar?se
e implorar perdão, resolveu amparar?se da tempestade, que ia despenhar?se
sobre sua cabeça, com o escudo da mais cínica indiferença.
Inspiravam?lhe este alvitre o orgulho, e o mau conceito em que tinha todas
as mulheres, nas quais não reconhecia pundonor nem dignidade.

Depois do almoço Leôncio montou a cavalo, percorreu as roças
e cafezais, coisa que bem raras vezes fazia, e ao descambar do Sol voltou
para casa, jantou com o maior sossego e apetite, e depois foi para o salão,
onde, repoltreando?se em macio e fresco sofá, pôs?se a fumar
tranqüilamente o seu havana.

Nesse comenos chega Henrique de suas excursões venatórias,
e depois de procurar em vão a irmã por todos os cantos da casa,
vai enfim encontrá?la encerrada em seu quarto de dormir desfigurada,
pálida, e com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar.

– Por onde andaste, Henrique?… estava aflita por te ver, – exclamou a
moça ao avistar o irmão. – Que má moda é essa
de deixar a gente assim sozinha!…

– Sozinha?!… pois até aqui não vivias sem mim na companhia
de teu belo marido?…

– Não me fales nesse homem… eu andava iludida; agora vejo que andava
pior do que sozinha, na companhia de um perverso.

– Ainda bem que presenciaste com teus próprios olhos o que eu não
tinha ânimo de dizer?te. Mas, vamos! que pretendes fazer?…

– O que pretendo?… vais ver neste mesmo instante… Onde está ele?…
viste?o por ai?…

Se me não engano, vi?o no salão; havia lá um vulto
sobre um sofá.

– Pois bem, Henrique, acompanha?me até lá.

Por que razão não vais só? poupa?me o desgosto de encarar
aquele homem…

– Não, não; é preciso que vás comigo; estava
à tua espera mesmo para esse fim. Preciso de uma pessoa que me ampare
e me alente. Agora até tenho medo dele.

– Ah! compreendo; queres que eu seja teu guarda?costas, para poderes descompor
a teu jeito aquele birbante. Pois bem; presto?me de boa vontade, e veremos
se o patife tem o atrevimento de te desrespeitar.

Vamos!

Capítulo 6

– Senhor Leôncio, – disse Malvina com voz alterada aproximando?se
do sofá, em que se achava o marido, – desejo dizer?lhe duas palavras,
se isso não o incomoda.

– Estou sempre às tuas ordens, querida Malvina, – respondeu levantando?se
lesto e risonho, e como quem nenhum reparo fizera no tom cerimonioso com que
Malvina o tratava. – Que me queres?…

– Quero dizer?lhe, – exclamou a moça em tom severo, e fazendo vãos
esforços para dar ao seu lindo e mavioso semblante um ar feroz, – quero
dizer?lhe que o senhor me insulta e me atraiçoa em sua casa, da maneira
a mais indigna e desleal…

– Santo Deus!… que estás aí a dizer, minha querida?…

explica?te melhor, que não compreendo nem uma palavra do que dizes…

– Debalde, que o senhor se finge surpreendido; bem sabe a causa do meu desgosto.
Eu já devia ter pressentido esse seu vergonhoso procedimento; há
muito que o senhor não é o mesmo para comigo, e me trata com
tal frieza e indiferença…

– Oh! meu coração, pois querias que durasse eternamente a
lua?de?mel?… isso seria horrivelmente monótono e prosaico.

– Ainda escarneces, infame! – bradou a moça, e desta vez as faces
se lhe afoguearam de extraordinário rubor, e fuzilaram?lhe nos olhos
lampejos de cólera terrível.

– Oh! não te exasperes assim, Malvina; estou gracejando – disse Leôncio
procurando tomar?lhe a mão.

– Boa ocasião para gracejos!… deixe?me, senhor!… que infâmia!…

que vergonha para nós ambos!…

– Mas enfim não te explicarás? – Não tenho que explicar;
o senhor bem me entende. Só tenho que exigir…

– Pois exige, Malvina.

– Dê um destino qualquer a essa escrava, a cujos pés o senhor
costuma vilmente prostrar?se: liberte?a, venda?a, faça o que quiser.
Ou eu ou ela havemos de abandonar para sempre esta casa; e isto hoje mesmo.
Escolha entre nos.

– Hoje?! – E já! – És muito exigente e injusta para comigo,
Malvina, – disse Leôncio depois de um momento de pasmo e hesitação.
– Bem sabes que é meu desejo libertar Isaura; mas acaso depende isso
de mim somente? é a meu pai que compete fazer o que de mim exiges.

– Que miserável desculpa, senhor! seu pai já lhe entregou
escravos e fazenda, e dará por bem feito tudo quanto o senhor fizer.
Mas se acaso o senhor a prefere a mim…

– Malvina!… não digas tal blasfêmia!…

– Blasfêmia!… quem sabe!… mas enfim dê um destino qualquer
a essa rapariga, se não quer expelir?me para sempre de sua casa. Quanto
a mim, não a quero mais nem um momento em meu serviço; é
bonita demais para mucama.

– O que lhe dizia eu, senhor Leôncio? acudiu Henrique, que já
cansado e envergonhado do papel de mudo guarda?costas, entendeu que devia
intervir também na querela. – Está vendo?.. eis aí o
fruto que se colhe desses belos trastes de luxo, que quer por força
ter em seu salão…

– Esses trastes não seriam tão perigosos, se não existissem
vis mexeriqueiros, que não hesitam em perturbar o sossego da casa dos
outros para conseguir seus fins perversos…

– Alto lá, senhor!… para impedir que o senhor não transportasse
o seu traste de luxo do salão para a alcova, percebe?… o escândalo
cedo ou tarde seria notório, e nenhum dever tenho eu de ver de braços
cruzados minha irmã indignamente ultrajada.

– Senhor Henrique! bradou Leôncio avançando para ele, hirto
de cólera e com gesto ameaçador.

– Basta, senhores – gritou Malvina interpondo?se aos dois mancebos. – Toda
a disputa por tal motivo é inútil e vergonhosa para nós
todos. Eu já disse a Leôncio o que tinha de dizer; ele que se
decida; faça o que entender. Se quiser ser homem de brio e pundonor,
ainda é tempo. Se não, deixe?me, que eu o entregarei ao desprezo
que merece.

– Oh! Malvina! estou pronto a fazer todo o possível para te tranqüilizar
e contentar: mas deves saber que não posso satisfazer o teu desejo
sem primeiro entender?me com meu pai, que está na corte. É preciso
mais que saibas, que meu pai nenhuma vontade tem de libertar Isaura, tanto
assim, que para se ver livre das importunações do pai dela,
que também quer a todo custo libertá?la, exigiu uma soma por
tal forma exorbitante, que é quase impossível o pobre homem
arranjá?la.

– O de casa!… dá licença? – bradou neste momento com voz
forte e sonora uma pessoa, que vinha subindo a escada do alpendre.

– Quem quer que é, pode entrar, – gritou Leôncio dando graças
ao céu, que tão a propósito mandava?lhe uma visita para
interromper aquela importuna e detestável questão e livrá?lo
dos apuros em que se via entalado.

Entretanto, como se verá, não tinha muito de que congratular?se.
O visitante era Miguel, o antigo feitor da fazenda, o pai de Isaura, que havia
sido outrora grosseiramente despedido pelo pai de Leôncio.

Este, que ainda o não conhecia, recebeu?o com afabilidade.

– Queira sentar?se, – disse?lhe, – e dizer?nos o motivo por que nos faz
a honra de procurar, – Obrigado! – disse o recém?chegado, depois de
cumprimentar respeitosamente Henrique e Malvina. – V. S.a sem dúvida
é o senhor Leôncio?…

– Para o servir.

– Muito bem!… é com V. S.ª que tenho de tratar na falta do
senhor seu pai. O meu negócio é simples, e julgo que o posso
declarar em presença aqui do senhor e da senhora, que me parecem ser
pessoas de casa.

– Sem dúvida! entre nós não há segredo, nem
reservas.

– Eis aqui ao que vim, senhor meu, – disse Miguel, tirando da algibeira
de seu largo sobretudo uma carteira, que apresentou a Leôncio; – faça
o favor de abrir esta carteira; aqui encontrará V. S.ª a quantia
exigida pelo senhor seu pai, para a liberdade de uma escrava desta casa por
nome Isaura.

Leôncio enfiou, e tomando maquinalmente a carteira, ficou alguns instantes
com os olhos pregados no teto.

– Pelo que vejo, – disse por fim, – o senhor deve ser o pai…

aquele que dizem ser o pai da dita escrava. ? é o senhor. ? não
me lembra o nome..

– Miguel, um criado de V. S.a – É verdade; o senhor Miguel. Folgo
muito que tenha arranjado meios de libertar a menina; ela bem merece esse
sacrifício.

Enquanto Leôncio abre a carteira, e conta e reconta mui pausadamente
nota por nota o dinheiro, mais para ganhar tempo a refletir sobre o que deveria
fazer naquelas conjunturas, do que para verificar se estava exata a soma,
aproveitemo?nos do ensejo para contemplar a figura do bom e honrado português,
pai da nossa heroína, de quem ainda não nos ocupamos senão
de passagem.

Era um homem de mais de cinqüenta anos; em sua fisionomia nobre e alerta
transpirava a franqueza, a bonomia, e a lealdade.

Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas maneiras
e conversação, conhecia?se que aquele homem não viera
ao Brasil, como quase todos os seus patrícios, dominado pela ganância
de riquezas. Tinha o trato e a linguagem de um homem polido, e de acurada
educação. De feito Miguel era filho de uma nobre e honrada família
de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus pais, vítimas
de perseguições políticas, morreram sem ter nada que
legar ao filho, que deixaram na idade de dezoito a vinte anos. Sozinho, sem
meios e sem proteção, viu?se forçado a viver do trabalho
de seus braços, metendo?se a jardineiro e horticultor, mister este,
que como filho de lavrador, robusto, ativo e inteligente, desempenhava com
suma perícia e perfeição.

O pai de Leôncio, tendo tido ocasião de conhecê?lo, e
apreciando o seu merecimento, o engajou para feitor de sua fazenda com vantajosas
condições. Ali serviu muitos anos sempre mui respeitado e querido
de todos, até que aconteceu?lhe a fatal, mas muito desculpável
fraqueza, que sabemos, e em consequência da qual foi grosseiramente
despedido por seu patrão. Miguel concebeu amargo ressentimento e mágoa
profunda, não tanto por si, como por amor das duas infelizes criaturas,
que não podia proteger contra a sanha de um senhor perverso e brutal.

Mas forçoso lhe foi resignar?se. Não lhe faltava serviço
nem acolhimento pelas fazendas vizinhas. Conhecedores de seu mérito,
os lavradores em redor o aceitariam de braços abertos; a dificuldade
estava na escolha.

Optou pelo mais vizinho, para ficar o mais perto possível de sua
querida filhinha.

Como o comendador quase sempre achava?se na corte ou em Campos, Miguel tinha
muita ocasião e facilidade de ir ver a menina, à qual cada vez
ia criando mais entranhado afeto. A esposa do comendador, na ausência
deste, dava ao português franca entrada em sua casa, e facilitava?lhe
os meios de ver e afagar a filhinha, com o que vivia ele mui consolado e contente.
De feito o céu tinha dado à sua filha na pessoa de sua senhora
uma segunda mãe tão boa e desvelada, como poderia ser a primeira,
e que mais do que esta lhe podia servir de amparo e proteção.
A morte inesperada daquela virtuosa senhora veio despedaçar?lhe o coração,
quebrando?lhe todas as suas lisonjeiras esperanças.

Muito pode o amor paterno em uma alma nobre e sensível!…

Miguel, sobrepujando todo o ódio, repugnância e asco, que lhe
inspirava a pessoa do comendador, não hesitou em ir humilhar?se diante
dele, importuná?lo com suas súplicas, rogar?lhe com as lágrimas
nos olhos, que abrisse preço à liberdade de Isaura.

– Não há dinheiro que a pague; há de ser sempre minha,
– respondia com orgulhoso cinismo o inexorável senhor ao infeliz e
aflito pai.

Um dia enfim para se ver livre das importunações e súplicas
de Miguel, disse?lhe com mau modo: – Homem de Deus, traga?me dentro de um
ano dez contos de réis, e lhe entrego livre a sua filha e… deixe?me
por caridade. Se não vier nesse prazo, perca as esperanças.

– Dez contos de réis! é soma demasiado forte para mim.. ?
mas não importa!… ela vale muito mais do que isso. Senhor comendador,
vou fazer o impossível para trazer?lhe essa soma dentro do prazo marcado.
Espero em Deus, que me há de ajudar.

O pobre homem, à força de trabalho e economia, impondo?se
privações, vendendo todo o supérfluo, e limitando?se
ao que era estritamente necessário, no fim do ano apenas tinha arranjado
metade da quantia exigida. Foi?lhe mister recorrer à generosidade de
seu novo patrão, o qual, sabendo do santo e nobre fim a que se propunha
seu feitor, e do vexame e extorsão de que era vítima, não
hesitou em fornecer?lhe a soma necessária, a título de empréstimo
ou adiantamento de salários.

Leôncio, que como seu pai julgava impossível que Miguel em
um ano pudesse arranjar tão considerável soma, ficou atônito
e altamente contrariado, quando este se apresentou para lha meter nas mãos.

– Dez contos, – disse por fim Leôncio acabando de contar o dinheiro.
– É justamente a soma exigida por meu pai. – Bem estólido e
avaro é este meu pai, murmurou ele consigo, – eu nem por cem contos
a daria. – Senhor Miguel, – continuou em voz alta, entregando?lhe a carteira,
– guarde por ora o seu dinheiro; Isaura não me pertence ainda; só
meu pai pode dispor dela. Meu pai acha?se na corte, e não deixou?me
autorização alguma para tratar de semelhante negócio.
Arranje?se com ele.

– Mas V. S.ª é seu filho e herdeiro único, e bem podia
por si mesmo…

– Alto lá, senhor Miguel! meu pai felizmente é vivo ainda,
e não me é permitido desde já dispor de seus bens, como
minha herança.

– Embora, senhor; tenha a bondade de guardar esse dinheiro e enviá?lo
ao senhor seu pai, rogando?lhe da minha parte o favor de cumprir a promessa
que me fez de dar liberdade a Isaura mediante essa quantia.

– Ainda pões dúvida, Leôncio?! – exclamou Malvina impaciente
e indignada com as tergiversações do marido. – Escreve, escreve
quanto antes a teu pai; não te podes esquivar sem desonra a cooperar
para a liberdade dessa rapariga.

Leôncio, subjugado pelo olhar imperioso da mulher, e pela força
das circunstâncias, que contra ele conspiravam, não pôde
mais escusar?se.

Pálido e pensativo, foi sentar?se junto a uma mesa, onde havia papel
e tinta, e de pena em punho pôs?se a meditar em atitude de quem ia escrever.
Malvina e Henrique, debruçados a uma janela, conversavam entre si em
voz baixa. Miguel, sentado a um canto na outra extremidade da sala, esperava
pacientemente, quando Isaura, que do quintal, onde se achava escondida, o
tinha visto chegar, entrando no salão sem ser sentida, se lhe apresentou
diante dos olhos. Entre pai e filha travou?se a meia voz o seguinte diálogo:
– Meu pai!… que novidade o traz aqui?… a modo que lhe estou vendo um ar
mais alegre que de costume.

– Calada! – murmurou Miguel, levando o dedo à boca e apontando para
Leôncio. – Trata?se da tua liberdade.

– Deveras, meu pai!… mas como pôde arranjar isso? – Ora como?!…
a peso de ouro. Comprei?te, minha filha, e em breve vais ser minha.

– Ah! meu querido pai!… como vossemecê é bom para sua filha!…

se soubesse quantos hoje já me vieram oferecer a liberdade!…

mas por que preço! meu Deus!… nem me atrevo a lhe contar. Meu coração
adivinhava, continuou beijando com terna efusão as mãos de Miguel;
– eu não devia receber a liberdade senão das mãos daquele
que me deu a vida!…

– Sim, querida Isaura! – disse o velho apertando?a contra o coração.
– O céu nos favoreceu, e em breve vais ser minha, minha só,
minha para sempre!…

– Mas ele consente?… perguntou Isaura apontando para Leôncio.

– O negócio não é com ele, é com seu pai, a
quem agora escreve.

– Nesse caso tenho alguma esperança; mas se minha sorte depender
somente daquele homem, serei para sempre escrava.

– Arre! com mil diabos!… resmungou consigo Leôncio levantando?se,
e dando sobre a mesa um furioso murro com o punho fechado. – Não sei
que volta hei de dar para desmanchar esta inqualificável loucura de
meu pai! – Já escreveste, Leôncio? – perguntou Malvina voltando?se
para dentro.

Antes que Leôncio pudesse responder a esta pergunta, um pajem, entrando
rapidamente pela sala, entrega?lhe uma carta tarjada de preto.

– De luto!… meu Deus!… que será! – exclamou Leôncio, pálido
e trêmulo, abrindo a carta, e depois de a ter percorrido rapidamente
com os olhos lançou?se sobre uma cadeira, soluçando e levando
o lenço aos olhos.

– Leôncio! Leôncio!… que tem?… exclamou Malvina pálida
de susto; e tomando a carta que Leôncio atirara sobre a mesa, começou
a ler com voz entrecortada:

"Leôncio, tenho a dar?te uma dolorosa notícia, para a qual
teu coração não podia estar preparado. E um golpe, pelo
qual todos nós temos de passar inevitavelmente, e que deves suportar
com resignação. Teu pai já não existe; sucumbiu
anteontem subitamente, vítima de uma congestão cerebral…"

Malvina não pôde continuar; e nesse momento, esquecendo?se das
injúrias e de tudo que lhe havia acontecido naquele nefasto dia, lançou?se
sobre seu marido, e abraçando?se com ele estreitamente, misturava suas
lágrimas com as dele.

– Ah! meu pai! meu pai!… tudo está perdido! – exclamou Isaura,
pendendo a linda e pura fronte sobre o peito de Miguel. – Já nenhuma
esperança nos resta!…

– Quem sabe, minha filha! – replicou gravemente o pai. – Não desanimemos;
grande é o poder de Deus!…

Capítulo 7

Na fazenda de Leôncio havia um grande salão toscamente construído,
sem forro nem soalho, destinado ao trabalho das escravas que se ocupavam em
fiar e tecer lã e algodão.

Os móveis deste lugar consistiam em tripeças, tamboretes,
bancos, rodas de fiar, dobadouras, e um grande tear colocado a um canto.

Ao longo do salão, defronte de largas janelas guarnecidas de balaústres,
que davam para um vasto pálio interior, via?se postada uma fila de
fiandeiras. Eram de vinte a trinta negras, crioulas e mulatas, com suas tenras
crias ao colo ou pelo chão a brincarem em redor delas.

Umas conversavam, outras cantarolavam para encurtarem as longas horas de
seu fastidioso trabalho. Viam?se ali caras de todas as idades, cores e feitios,
desde a velha africana, trombuda e macilenta, até à roliça
e luzidia crioula, desde a negra brunida como azeviche até à
mulata quase branca.

Entre estas últimas distinguia?se uma rapariguinha, a mais faceira
e gentil que se pode imaginar nesse gênero. Esbelta e flexível
de corpo, tinha o rostinho mimoso, lábios um tanto grossos, mas bem
modelados, voluptuosos, úmidos, e vermelhos como boninas que acabam
de desabrochar em manhã de abril. Os olhos negros não eram muito
grandes, mas tinham uma viveza e travessura encantadoras. Os cabelos negros
e anelados podiam estar bem na cabeça da mais branca fidalga de além?mar.
Ela porém os trazia curtos e mui bem frisados à maneira dos
homens. Isto longe de tirar?lhe a graça, dava à sua fisionomia
zombeteira e espevitada um chispe original e encantador. Se não fossem
os brinquinhos de ouro, que lhe tremiam nas pequenas e bem molduradas orelhas,
e os túrgidos e ofegantes seios que como dois trêfegos cabritinhos
lhe pulavam por baixo de transparente camisa, tomá?la?íeis por
um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era esta
criança, que tinha o bonito nome de Rosa.

No meio do sussurro das rodas, que giravam, das monótonas cantarolas
das fiandeiras, do compasso estrépito do tear, que trabalhava incessantemente,
dos guinchos e alaridos das crianças, quem prestasse atento ouvido,
escutaria a seguinte conversação, travada timidamente e a meia
voz em um grupo de fiandeiras, entre as quais se achava Rosa.

– Minhas camaradas, – dizia a suas vizinhas uma crioula idosa, matreira
e sabida em todos os mistérios da casa desde os tempos dos senhores
velhos, – agora que sinhô velho morreu, e que sinhá Malvina foi?se
embora para a casa de seu pai dela, é que nós vamos ver o que
e rigor de cativeiro.

– Como assim, tia Joaquina?!…

– Como assim!… vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô
velho não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado – atrás
de mim virá quem bom me fará. – Este sinhô moço
Leôncio… hum!… Deus queira que me engane… quer?me parecer que
vai?nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho…

– Cruz! ave Maria!… não fala assim, tia Joaquina!… então
é melhor matar a gente de uma vez…

– Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui
a pouco nós tudo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou
pra o cafezal apanhar café, e o pirai do feitor aí rente atrás
de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café,
e mais café, que é o que dá dinheiro.

– Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor,
– observou outra escrava, – se estar na roça trabalhando de enxada,
ou aqui pregada na roda, desde que amanhece até nove, dez horas da
noite. Quer?me parecer que lã ao menos a gente fica mais à vontade.

– Mais à vontade?!.., que esperança! – exclamou uma terceira.

– Antes, aqui, mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre
do maldito feitor.

– Qual, minha gente! – ponderou a velha crioula – tudo é cativeiro.
Quem teve a desgraça de nascer cativo de um mau senhor, dê por
aqui, dê por acolá, há de penar sempre. Cativeiro é
má sina; não foi Deus que botou no mundo semelhante coisa, não;
foi invenção do diabo. Não vê o que aconteceu com
a pobre Juliana, mãe de Isaura? – Por falar nisso, – atalhou uma das
fiandeiras, – o que fica fazendo agora a Isaura?… enquanto sinhá
Malvina estava aí, ela andava de estadão na sala, agora…

– Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, – acudiu Rosa com
seu sorriso maligno e zombeteiro.

– Cala a boca, menina! – bradou com voz severa a velha crioula.

– Deixa dessas falas. Coitada da Isaura. Deus te livre a você de estar
na pele daquela pobrezinha! se vocês soubessem quanto penou a pobre
da mãe dela! ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo,
Deus te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leôncio a coisa vai tomando
o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor desta Rosa
mas inda mais bonita e mais bem feita…

Rosa deu um muxoxo, e fez um momo desdenhoso.

– Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! – continuou
a crioula velha. – O ponto foi sinhô velho gostar dela… eu já
contei a vocês o que é que aconteceu. Juliana era uma rapariga
de brio, e por isso teve de penar, até morrer. Nesse tempo o feitor
era esse siô Miguel, que anda aí, e que é pai de Isaura.
Isso é que era feitor bom!… todo mundo queria ele bem, e tudo andava
direito. Mas esse siô Francisco, que ai anda agora, cruz nele!… é
a pior peste que tem botado os pés nesta casa. Mas, como ia dizendo,
o siô Miguel gostava muito de Juliana, e trabalhou, trabalhou até
ajuntar dinheiro para forrar ela. Mas nhonhô não esteve por isso,
ficou muito zangado, e tocou o feitor para fora.

Também Juliana pouco durou; pirai e serviço deu co’ela na
cova em pouco tempo. Picou aí a pobre menina ainda de mama, e se não
fosse sinhá velha, que era uma santa mulher, Deus sabe o que seria
dela!… também, coitada!… antes Deus a tivesse levado!…

– Por quê, tia Joaquina?…

– Porque está?me parecendo, que ela vai ter a mesma sina da mãe…

– E o que mais merece aquela impostora? – murmurou a invejosa e malévola
Rosa. – Pensa que por estar servindo na sala é melhor do que as outras,
e não faz caso de ninguém. Deu agora em namorar os moços
brancos, e como o pai diz que há de forrar ela, pensa que e uma grande
enhora. Pobre do senhor Miguel!… não tem onde cair morto, e há
de ter para forrar a filha! – Que má língua é esta Rosa!
– murmurou enfadada a velha crioula, relanceando um olhar de repreensão
sobre a mulata. – Que mal te fez a pobre Isaura, aquela pomba sem fel, que
com ser o que e, bonita e civilizada como qualquer moça branca, não
é capaz de fazer pouco caso de ninguém?… Se você se
pilhasse no lugar dela, pachola e atrevida como és, havias de ser mil
vezes pior.

Rosa mordeu os beiços de despeito, e ia responder com todo o atrevimento
e desgarre, que lhe era próprio, quando uma voz áspera e atroadora,
que, partindo da porta do salão, retumbou por todo ele, veio pôr
termo à conversação das fiandeiras.

– Silêncio! – bradava aquela voz. – Arre! que tagarelice!… pa? rece
que aqui só se trabalha de língua!…

Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de fisionomia
dura e repulsiva, apresenta?se à porta do salão, e vai entrando.
Era o feitor. Acompanhava?o um mulato ainda novo, esbelto e aperaltado, trajando
uma bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda de fiar. Logo após
eles entrou Isaura.

As escravas todas levantaram?se e tomaram a bênção ao
feitor.

Este mandou colocar a roda em um espaço desocupado, que infelizmente
para Isaura ficava ao pé de Rosa.

– Anda cá, rapariga; – disse o feitor voltando?se para Isaura. –
De hoje em diante é aqui o teu lugar; esta roda te pertence, e tuas
parceiras que te dêem tarefa para hoje. Bem vejo que te não há
de agradar muito a mudança; mas que volta se lhe há de dar?…
teu senhor assim o quer. Anda lá; olha que isto não é
piano, não; é acabar depressa com a tarefa para pegar em outra.
Pouca conversa e muito trabalhar…

Sem se mostrar contrariada nem humilhada com a nova ocupação,
que lhe davam, Isaura foi sentar?se junto a roda, e pôs?se a prepará?la
para dar começo ao trabalho. Posto que criada na sala e empregada quase
sempre em trabalhos delicados, todavia era ela hábil em todo o gênero
de serviço doméstico: sabia fiar, tecer, lavar, engomar, e cozinhar
tão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois colocar?se com toda
a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenas
notava?se no sorriso, que lhe adejava nos lábios, certa expressão
de melancólica resignação; mas isso era o reflexo das
inquietações e angústias, que lhe oprimiam o coração,
que não desgosto por se ver degradada do posto que ocupara toda sua
vida junto de suas senhoras.

Cônscia de sua condição, Isaura procurava ser humilde
como qualquer outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes
de seu espirito, os fumos da vaidade não lhe intumesciam o coração,
nem turvavam?lhe a luz de seu natural bom senso. Não obstante porém
toda essa modéstia e humildade transiuzia?lhe, mesmo a despeito dela,
no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo, proveniente
talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem o querer sobressaía
entre as outras, bela e donosa, pela correção e nobreza dos
traços fisionômicos e por certa distinção nos gestos
e ademanes. Ninguém diria que era uma escrava, que trabalhava entre
as companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que, por desenfado,
fiava entre as escravas. Parecia a garça?real, alçando o colo
garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros vulgares.

As outras escravas a contemplavam todas com certo interesse e comiseração,
porque de todas era querida, menos de Rosa, que lhe tinha inveja e aversão
mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteirado do motivo desta
malevolência de Rosa. Não era só pura inveja; havia aí
alguma coisa de mais positivo, que convertia essa inveja em ódio mortal.

Rosa havia sido de há muito amásia de Leôncio, para
quem fora fácil conquista, que não lhe custou nem rogos nem
ameaças. Desde que, porém, inclinou?se a Isaura, Rosa ficou
inteiramente abandonada e esquecida.

A gentil mulatinha sentiu?se cruelmente ferida em seu coração
com esse desdém, e como era maligna e vingativa, não podendo
vingar?se de seu senhor, jurou descarregar todo o peso de seu rancor sobre
a pessoa de sua infeliz rival.

……………………………………………………………………

– Um raio que te parta, maldito! – Má lepra te consuma, coisa ruim!
– Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! – Estas e
outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor,
apenas este voltou?lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado
entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios.

abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do azorrague desapiedado
para açoitá?los e acabrunhá?los de trabalhos. É
assim que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para
revoltar?se contra o algoz, que a executa.

Como já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar?se perto de Rosa.
Esta assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de ditérios
e remoques sarcásticos e irritantes.

– Tenho bastante pena de você, Isaura. disse Rosa para dar começo
às operações.

– Deveras! – respondeu Isaura, disposta a opor às provocações
de Rosa toda a sua natural brandura e paciência. Pois por quê,
Rosa?…

– Pois não é duro mudar?se da sala para a senzala, trocar
o sofá de damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por
essa roda? Por que te enxotaram de lá, Isaura? – Ninguém me
enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina foi?se embora em
companhia de seu irmão para a casa do pai dela.

Portanto nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui
trabalhar com vocês.

– E por que é que ela não te levou, você, que era o
ai?jesus dela?… Ah! Isaura, você cuida que me embaça, mas está
muito enganada; eu sei de tudo. Você estava ficando muito aperaltada,
e por isso veio aqui para conhecer o seu lugar – Como és maliciosa!
– replicou Isaura sorrindo tristemente, mas sem se alterar; pensas então
que eu andava muito contente e cheia de mim por estar lá na sala no
meio dos brancos?… como te enganas!… se me não perseguires com
a tua má língua, como principias a fazer, creio que hei de ficar
mais satisfeita e sossegada aqui.

– Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita
aqui, se não acha moços para namorar? – Rosa, que mal te fiz
eu, para estares assim a amofinar?me com essas falas?…

– Olhe a sinhá, não se zangue!… perdão, dona Isaura;
eu pensei que a senhora tinha esquecido os seus melindres lá no salão.

– Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala ou na cozinha
eu não sou mais do que uma escrava como tu. Também deves?te
lembrar, que se hoje te achas aqui, amanhã sabe Deus onde estarás.
Trabalhemos, que é nossa obrigação. deixemos dessas conversas
que não têm graça nenhuma.

Neste momento ouvem?se as badaladas de uma sineta; eram três para
quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As escravas
suspendem seus trabalhos e levantam?se; Isaura porém não se
move, e continua a fiar.

– Então? – diz?lhe Rosa com o seu ar escarninho, – você não
ouve, Isaura? são horas; vamos ao feijão.

– Não, Rosa; deixem?me ficar aqui; não tenho fome nenhuma.

Fico adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.

– Tem razão; também uma rapariga civilizada e mimosa como
você não deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que
te mande um caldinho, um chocolate?…

– Cala essa boca, tagarela! – bradou a crioula velha, que parecia ser a
priora daquele rancho de fiandeiras. – Forte lingüinha de víbora!…
deixa a outra sossegar. Vamos, minha gente.

As escravas retiraram?se todas do salão, ficando só Isaura,
entregue ao seu trabalho e mais ainda às suas tristes e inquietadoras
reflexões. O fio se estendia como que maquinalmente entre seus dedos
mimosos, enquanto o pezinho nu e delicado, abandonando o tamanquinho de marroquim,
pousava sobre o pedal da roda, a que dava automático impulso. A fronte
lhe pendia para um lado como açucena esmorecida, e as pálpebras
meio cerradas eram como véus melancólicos, que encobriam um
pego insondável de tristura e desconforto. Estava deslumbrante de beleza
naquela encantadora e singela atitude.

– Ah! meu Deus! – pensava ela; nem aqui posso achar um pouco de sossego!…
em toda parte juraram martirizar?me!… Na sala, os brancos me perseguem e
armam mil intrigas e enredos para me atormentarem. Aqui, onde entre minhas
parceiras, que parecem me querer bem, esperava ficar mais tranqüila,
há uma, que por inveja, ou seja lá pelo que for, me olha de
revés e só trata de achincalhar?me.

Meu Deus! meu Deus!… já que tive a desgraça de nascer cativa,
não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil
das negras, do que ter recebido do céu estes dotes, que só servem
para amargurar?me a existência? Isaura não teve muito tempo para
dar larga expansão às suas angustiosas reflexões. Ouviu
rumor na porta, e levantando os olhos viu que alguém se encaminhava
para ela.

– Ai! meu Deus! – murmurou consigo. – Aí temos nova importunação!
nem ao menos me deixam ficar sozinha um instante.

Quem entrava era, sem mais nem menos, o pajem André, que já
vimos em companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e petulante se
foi colocar defronte de Isaura.

– Boa tarde, linda Isaura. Então, como vai essa flor? – saudou o
pachola do pajem com toda a faceirice.

– Bem, respondeu secamente Isaura.

– Estás mudada?… tens razão, mas é preciso ir?se
acomodando com este novo modo de vida. Deveras que para quem estava acostumada
lá na sala, no meio de sedas e flores e águas?de?cheiro, há
de ser bem triste ficar aqui metida entre estas paredes enfumaçadas
que só tresandam a sarro de pito e morrão de candeia.

– Também tu, André, vens por tua vez aproveitar?te da ocasião
para me atirar lama na cara?…

– Não, não, Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário,
dói?me deveras dentro do coração ver aqui misturada com
esta corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu,
que só merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco.
Esse senhor Leôncio tem mesmo um coração de fera.

– E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.

– Qual!… não acredito; não é aqui teu lugar. Mas
também por outra banda estimo bem isso.

– Por quê? – Porque, enfim, Isaura, a falar?te a verdade, gosto muito
de você, e aqui ao menos podemos conversar mais em liberdade…

– Deveras!… declaro?te desde já que não estou disposta a
ouvir tuas liberdades.

– Ah! é assim! – exclamou André todo enfunado com este brusco
desengano. – Então a senhora quer só ouvir as finezas dos moços
bonitos lá na sala!… pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode
ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz
de melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado, enluvado,
calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que mais e, – acrescentou
batendo com a mão na algibeira, – com as algibeiras sempre a tinir.
A Rosa, que também é uma rapariguinha bem bonita, bebe os ares
por mim; mas coitada!… o que é ela ao pé de você?…

Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias
de fazer tão pouco caso de mim. Se tu quisesses, olha… escuta.

E dizendo isto o maroto do pajem, avizinhando?se de Isaura, foi?lhe lançando
desembaraçadamente o braço em torno do colo, como quem queria
falar?lhe em segredo, ou talvez furtar?lhe um beijo.

– Alto lá! – exclamou Isaura repelindo?o com enfado. – Está
ficando bastante adiantado e atrevido. Retire?se daqui, se não irei
dizer tudo ao senhor Leôncio.

– Oh! perdoa, Isaura; não há motivo para você se arrufar
assim.

És muito má, para quem nunca te ofendeu, e te quer tanto bem.
Mas deixa estar, que o tempo há de te amaciar esse coraçãozinho
de pedra.

Adeus; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor
de Deus, não vá dizer nada a ninguém. Deus me livre que
sinhó moço saiba do que aqui se passou; era capaz de me enforcar.
O que vale, – continuou André consigo e retirando?se, – o que vale
é que neste negócio parece?me que ele anda tão adiantado
como eu.

Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação
de senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só momento!
Como não devia viver aflito e atribulado aquele coração!
Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em roubar?lhe
a paz da alma, e torturar?lhe o coração: três amantes,
Leôncio, Belchior, e André, e uma êmula terrível
e desapiedada, Rosa. Fácil lhe fora repelir as importunações
e insolências dos escravos e criados; mas que seria dela, quando viesse
o senhor?!…

De feito, poucos instantes depois Leôncio, acompanhado pelo feitor,
entrava no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento suspendera
o seu trabalho, e com o rosto escondido entre as mãos se embevecia
em amargas reflexões, não se apercebera da presença deles.

– Onde estão as raparigas que aqui costumam trabalhar?… perguntou
Leôncio ao feitor, ao entrar no salão.

– Foram jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.

– Mas uma cá se deixou ficar… ah! é a Isaura… Ainda bem!
– refletiu consigo Leôncio, – a ocasião não pode ser mais
favorável; tentemos os últimos esforços para seduzir
aquela empedernida criatura.

Logo que acabem de comer, – continuou ele dirigindo?se ao feitor, – leve?as
para a colheita do café. Há muito que eu pretendia recomendar?lhe
isto e tenho?me esquecido. Não as quero aqui mais nem um instante;
isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem
proveito algum, em continuas palestras. Não faltam por aí tecidos
de algodão para se comprar.

Mal o feitor se retirou, Leôncio dirigiu?se para junto de Isaura.

– Isaura! murmurou com voz meiga e comovida.

– Senhor! – respondeu a escrava erguendo?se sobressaltada; de? pois murmurou
tristemente dentro d’alma: – meu Deus! é ele!… é chegada a
hora do suplício.

Capítulo 8

Agora nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura
em sua penível situação diante de seu dissoluto e bárbaro
senhor para informarmos o leitor sobre o que ocorrera no seio daquela pequena
família, e em que pé ficaram os negócios da casa, depois
que a notícia da morte do comendador, estalando como uma bomba no meio
das intrigas domésticas, veio dar?lhes dolorosa diversão no
momento em que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição,
reclamavam forçosamente um desenlace qualquer.

Aquela morte não podia senão prolongar tão melindrosa
e deplorável situação, pondo nas mãos de Leôncio
toda a fortuna patema, e desatando as últimas peias que ainda o tolhiam
na expansão de seus abomináveis instintos.

Leôncio e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns
dias, durante os quais parece que deram tréguas aos arrufos e despeitos
recíprocos. Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte,
cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu em ficar?lhe
fazendo companhia durante os dias de nojo.

– Conforme for o procedimento de meu marido, disse?lhe ela, – iremos juntos.
Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer a Isaura,
não ficarei mais nem um momento em sua casa.

Leôncio encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu
durante alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo
pesar. Entretanto, não era assim. É verdade que Leôncio
não deixou de sofrer certo choque, certa surpresa, que não golpe
doloroso, com a noticia do falecimento de seu pai; mas no fundo d’alma, –
força é dizê?lo, – passado o primeiro momento de abalo
e consternação chegou até a estimar aquele acontecimento,
que tanto a propósito vinha livrá?lo dos apuros em que se achava
enleado em face de Malvina e de Miguel. Portanto, durante a sua reclusão,
em vez de entregar?se à dor que lhe deveria causar tão sensível
golpe, Leôncio, que por maneira nenhuma podia resignar?se a desfazer?se
de Isaura, só meditava os meios de safar?se das dificuldades, em que
se achava envolvido, e urdia planos para assegurar?se da posse da gentil cativa.
As dificuldades eram grandes, e constituíam um nó, que poderia
ser cortado, mas nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa
que seu pai fizera a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de
dez contos de réis.

Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas mãos,
reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também,
e nem podia contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar
livre Isaura por sua morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua paixão
e de seus sinistros intentos sobre a cativa, justamente irritada, exigia com
império a imediata alforria da mesma. Não restava ao mancebo
meio algum de se tirar decentemente de tantas dificuldades senão libertando
Isaura. Mas Leôncio não podia se conformar com semelhante idéia.
O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado, o incitava a saltar
por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as leis do decoro
e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga
e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seus frenéticos
desejos. Resolveu pois cortar o nó, usando de sua prepotência,
e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de afrontar
com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas exigências
e exprobrações de Malvina.

Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à dor
de que julgava seu marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso negócio:
– Temos tempo, Malvina, – respondeu?lhe o marido com toda a calma. – É?me
preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário da
casa de meu pai. Tenho de ir à corte arrecadar os seus papéis
e tomar conhecimento do estado de seus negócios. Na volta e com mais
vagar trataremos de Isaura.

Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu?se de palidez mortal; ela
sentiu esfriar?lhe o coração apertado entre as mãos geladas
do mais pungente dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o sonhado
castelo de suas aventuras conjugais. Ela esperava que o marido fulminado por
tão doloroso golpe naqueles dias de amarga meditação
e abatimento, retraindo?se no santuário da consciência, reconhecesse
seus erros e desvanos, implorasse o perdão deles, e se propusesse a
entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias desculpas e fúteis
evasivas do marido vieram submergi?la de chofre no mais amargo e profundo
desalento.

– Como?! – exclamou ela com um acento que exprimia a um tempo altiva indignação
e o mais entranhado desgosto. – Pois ainda hesitas em cumprir tão sagrado
dever?… se tivesses alma, Leôncio, terias considerado Isaura como
tua irmã, pois bem sabes que tua mãe a amava e idolatrava como
a uma filha querida, e que era seu mais ardente desejo libertá?la por
sua morte e deixar?lhe um legado considerável, que lhe assegurasse
o futuro. Sabes também que teu pai havia feito promessa solene ao pai
de Isaura de dar?lhe alforria pela quantia de dez contos de réis, e
Miguel já te veio pôr nas mãos essa exorbitante quantia.
Sabes tudo isto, e ainda vens com dúvidas e demoras!…

Oh! isto é muito!… não vejo motivo nenhum para demorar o
cumprimento de um dever de que há muito tempo já devias ter?te
desempenhado.

– Mas para que semelhante pressa?… não me dirás Malvina?
– replicou Leôncio com a maior brandura e tranqüilidade. – De que
proveito pode ser agora a liberdade para Isaura? porventura não está
ela aqui bem? é maltratada?… sofre alguma privação?…
não continua a ser considerada antes como uma filha da família,
do que como uma escrava? queres que desde já a soltemos à toa
por esse mundo?…

assim decerto não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão
solicita se mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina;
não devemos por ora entregar Isaura a si mesma. É preciso primeiro
assegurar?lhe uma posição decente, honesta e digna de sua beleza
e educação, procurando?lhe um bom marido, e isso não
se arranja assim de um dia para outro.

– Que miserável desculpa, meu amigo!… Isaura por ora não
precisa de marido para protegê?la; tem o pai, que é homem muito
de bem, e acaba de dar provas de quanto adora sua filha. Entreguemo?la ao
senhor Miguel, que ficará em muito boas mãos, e debaixo de muito
boa sombra.

– Pobre do senhor Miguel! – replicou Leôncio com sorriso desdenhoso.
– Terá bons desejos, não duvido; mas onde estão os meios,
de que dispõe, para fazer a felicidade de Isaura, principalmente agora
em que decerto empenhou os cabelos da cabeça para arranjar a alforria
da filha, se é que isso não proveio de esmolas, que lhe fizeram,
como me parece mais certo.

Por única resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou.

Todavia quis ainda acreditar na sinceridade das palavras de seu marido,
fingiu?se satisfeita e retirou?se sem dar mostras de agastamento. Não
podia, porém, prolongar por mais tempo aquela situação
para ela tão humilhante, tão cheia de ansiedade e desgosto,
e no outro dia insistiu ainda com mais força sobre o mesmo objeto.
Teve em resposta as mesmas evasivas e moratórias. Leôncio afetava
mesmo tratar desse negócio com certa indiferença desdenhosa,
como quem estava definitivamente resolvido a fazer o que quisesse. Malvina
desta vez não pôde conter?se, e rompeu com seu marido. Este,
como já friamente havia deliberado, aparou os raios da cólera
feminina no escudo de uma imprudência cínica e galhofeira, o
que levou ao último grau de exacerbação a cólera
e o despeito de Malvina.

No outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer
que fosse, deixava precipitadamente a casa de Leôncio, e partia em companhia
de seu irmão Henrique a caminho do Rio de Janeiro, jurando no auge
da indignação nunca mais pôr os pés naquela casa,
onde era tão vilmente ultrajada, e varrer para sempre da lembrança
a imagem de seu desleal e devasso marido. No assomo do despeito não
calculava se teria forças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos
juramentos, inspirados pela febre do ciúme e da indignação;
ignorava que nas almas tenras e bondosas como a sua o ódio se desvanece
muito mais depressa do que o amor; e o amor, que Malvina consagrava a Leôncio,
a despeito de seus desmandos e devassidões, era muito mais forte do
que o seu ressentimento, por mais justo que este fosse.

Leôncio por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aos assomos
da esposa a mais inerte e cínica indiferença, viu de braços
cruzados e sem fazer a minima observação, os preparativos daquela
rápida viagem, e recostado ao alpendre, fumando indolentemente o seu
charuto, assistiu à partida de sua mulher, como se fora o mais indiferente
dos hóspedes.

Entretanto, essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural
e sincera; não que ele sentisse pesar algum pela brusca partida de
sua mulher; pelo contrário, era júbilo, que sentia com a realização
daquela caprichosa resolução de Malvina, que assim lhe abandonava
o campo inteiramente livre de embaraços, para prosseguir em seus nefandos
projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquele fingido pouco?caso, conseguia
disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava
o coração; e como era aforismo adotado e sempre posto em prática
por ele, posto que em circunstâncias menos graves, – que contra as cóleras
e caprichos femininos não há arma mais poderosa do que muito
sangue?frio e pouco?caso, Malvina não pôde descobrir no fundo
daquela afetada indiferença o júbilo intenso em que nadava a
alma de seu marido.

O que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses longos
dias de luto, de consternação, de ansiedade e dissabores? Desde
que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do comendador, Isaura
perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momento antes Miguel
fizera desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeu
que um destino implacável a entregava vítima indefesa entre
as mãos de seu tenaz e desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda
sorte de sua mãe, não encontrava em sua imaginação
abalada outro remédio a tão cruel situação senão
resignar?se e preparar?se para o mais atroz dos martírios. Um cruel
desalento, um pavor mortal apoderou?se de seu espírito, e a infeliz,
pálida, desfeita, e como que alucinada, ora vagava à toa pelos
campos, ora escondida nas mais espessas moitas do pomar, ou nos mais sombrios
recantos das alcovas, passava horas e horas entre sustos e angústias,
como a tímida lebre, que vê pairando no céu a asa sinistra
do gavião de garras sangrentas.

Quem poderia ampará?la? onde poderia encontrar proteção
contra as tirânicas vontades de seu libertino e execrável senhor?
Só duas pessoas poderiam ter por ela comiseração e interesse;
seu pai e Malvina. Seu pai, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso
em casa de Leôncio, e só podendo comunicar?se com ela a custo
e furtivamente, em pouco ou nada podia valer?lhe. Malvina, que sempre a havia
tratado com tanta bondade e carinho, ai! a própria Malvina, depois
da cena escandalosa em que colhera seu marido, dirigindo a Isaura palavras
enternecidas, começou a olhá?la com certa desconfiança
e afastamento, terrível efeito do ciúme, que torna injustas
e rancorosas as almas ainda as mais cândidas e benevolentes A senhora,
com o correr dos dias, tornava?se cada vez menos tratável e benigna
para com a escrava, que antes havia tratado com carinho e intimidade quase
fraternal.

Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocência de
Isaura, se não fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal
inimiga.

Depois do desaguisado, de que Isaura foi causa inocente, Rosa ficou sendo
a mucama ou criada da câmara de Malvina, e esta às vezes desabafava
em presença da maligna mulata os ciúmes e desgostos que lhe
ferviam e transvazavam do coração.

– Sinhá está?se fiando muito naquela sonsa… – dizia?lhe
a maliciosa rapariga. – Pois fique certa que não são de hoje
esses namoricos; há muito tempo que eu estou vendo essa impostora,
que diante da sinhá se faz toda simplória, andar?se derretendo
diante de sinhô moço.

Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim com a cabeça
virada.

Estes e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente insinuar nos
ouvidos de sua senhora, eram bastantes para desvairar o espírito de
uma cândida e inexperiente moça como Malvina, e foram produzindo
o resultado que desejava a perversa mulatinha.

Acabrunhada com aquele novo infortúnio, Isaura fez algumas tentativas
para achegar?se de sua senhora, e saber o motivo por que lhe retirava a afeição
e confiança, que sempre lhe mostrara, e a fim de poder manifestar sua
inocência. Mas era recebida com tal frieza e altivez, que a infeliz
recuava espavorida para de novo ir mergulhar?se mais fundo ainda no pego de
suas angústias e desalentos.

Todavia, enquanto Malvina se conservava em casa, era sempre uma salvaguarda,
uma sombra protetora, que amparava Isaura contra as importunações
e brutais tentativas de Leôncio. Por menor que fosse o respeito, que
lhe tinha o marido, ela não deixava de ser um poderoso estorvo ao menos
contra os atos de violência, que quisesse pôr em prática
para conseguir seus execrandos fins. Isaura ponderava isso tudo, e é
custoso fazer?se idéia do estado de terror e desfalecimento em que
ficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando?a inteiramente
ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaros caprichos
daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.

De feito, Leôncio mal viu sumir?se a esposa por trás da última
colina, não podendo conter mais a expansão de seu satânico
júbilo, tratou logo de pôr o tempo em proveito, e pôs?se
a percorrer toda a casa em procura de Isaura. Foi enfim dar com ela no escuro
recanto de uma alcova, estendida por terra, quase exânime, banhada em
pranto e arrancando do peito soluços convulsivos.

Poupemos ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí
se deu.

Contentemo?nos com dizer que Leôncio esgotou todos os meios brandos
e suasivos ao seu alcance para convencer a rapariga que era do interesse e
dever dela render?se a seus desejos. Fez as mais esplêndidas promessas,
e os mais solenes protestos; abaixou?se até às mais humildes
súplicas, e arrastou?se vilmente aos pés da escrava, de cuja
boca não ouviu senão palavras amargas, e terríveis exprobrações;
e vendo enfim que eram infrutíferos todos esses meios, retirou?se cheio
de cólera, vomitando as mais tremendas ameaças.

Para dar a essas ameaças começo de execução,
nesse mesmo dia mandou pô?la trabalhando entre as fiandeiras, onde a
deixamos no capítulo antecedente. Dali teria de ser levada para a roça,
da roça para o tronco, do tronco para o pelourinho, e deste certamente
para o túmulo, se teimasse em sua resistência às ordens
de seu senhor.

Capítulo 9

Leôncio impaciente e com o coração ardendo nas chamas
de uma paixão febril e delirante não podia resignar?se a adiar
por mais tempo a satisfação de seus libidinosos desejos. Vagando
daqui para ali por toda a casa como quem dava ordens para reformar o serviço
doméstico, que dai em diante ia correr todo por sua conta, não
fazia mais do que espreitar todos os movimentos de Isaura, procurando ocasião
de achá?la a sós para insistir de novo e com mais força
em suas abomináveis pretensões. De uma janela viu as escravas
fiandeiras atravessarem o pátio para irem jantar, e notou a ausência
de Isaura.

– Bom!… vai tudo às mil maravilhas, murmurou Leôncio com
satisfação; nesse momento passava?lhe pela mente a feliz lembrança
de mandar o feitor levar as outras escravas para o cafezal, ficando ele quase
a sós com Isaura no meio daqueles vastos e desertos edifícios.

Dir?me?ão que, sendo Isaura uma escrava, Leôncio, para achar?se
a sós com ela não precisava de semelhantes subterfúgios,
e nada mais tinha a fazer do que mandá?la trazer à sua presença
por bem ou por mal. Decerto ele assim podia proceder, mas não sei que
prestígio tem, mesmo em uma escrava, a beleza unida à nobreza
da alma, e à superioridade da inteligência, que impõe
respeito aos entes ainda os mais perversos e corrompidos. Por isso Leôncio,
a despeito de todo o seu cinismo e obcecação, não podia
eximir?se de render no fundo d’alma certa homenagem à beleza e virtudes
daquela escrava excepcional, e de tratá?la com mais alguma delicadeza
do que às outras.

– Isaura, – disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos
apenas encetado, – fica sabendo que agora a tua sorte está inteiramente
entre as minhas mãos.

– Sempre esteve, senhor, – respondeu humildemente Isaura.

– Agora mais que nunca. Meu pai é falecido, e não ignoras
que sou eu o seu único herdeiro. Malvina por motivos, que sem dúvida
terás adivinhado, acaba de abandonar?me, e retirou?se para a casa de
seu pai. Sou eu, pois, que hoje unicamente governo nesta casa, e disponho
do teu destino. Mas também, Isaura, de tua vontade unicamente depende
a tua felicidade ou a tua perdição.

– De minha vontade!… oh! não, senhor; minha sorte depende unicamente
da vontade de meu senhor.

– E eu bem desejo – replicou Leôncio com a mais terna inflexão
de voz, – com todas as forças de minha alma, tornar?te a mais feliz
das criaturas; mas como, se me recusas obstinadamente a felicidade, que tu,
só tu me poderias dar?…

– Eu, senhor?! oh! por quem é, deixe a humilde escrava em seu lugar;
lembre?se da senhora D. Malvina, que é tão formosa, tão
boa, e que tanto lhe quer bem. É em nome dela que lhe peço,
meu senhor; deixe de abaixar seus olhos para uma pobre cativa, que em tudo
está pronta para lhe obedecer, menos nisso, que o senhor exige…

– Escuta, Isaura; és muito criança, e não sabes dar
ás coisas o devido peso. Um dia, e talvez já tarde, te arrependerás
de ter rejeitado o meu amor., – Nunca! – exclamou Isaura. – Eu cometeria uma
traição infame para com minha senhora, se desse ouvidos às
palavras amorosas de meu senhor.

– Escrúpulos de criança!.., escuta ainda, Isaura. Minha mãe
vendo a tua linda figura e a viveza de teu espírito, – talvez por não
ter filha alguma, – desvelou?se em dar?te uma educação, como
teria dado a uma filha querida. Ela amava?te extremosamente, e se não
deu?te a liberdade foi com o receio de perder?te; foi para conservar?te sempre
junto de si. Se ela assim procedia por amor, como posso eu largar?te de mão,
eu que te amo com outra sorte de amor muito mais ardente e exaltado, um amor
sem limites, um amor que me levará à loucura ou ao suicídio,
se não… mas que estou a dizer!… Meu pai, – Deus lhe perdoe, – levado
por uma sórdida avareza, queria vender tua liberdade por um punhado
de ouro, como se houvesse ouro no mundo que valesse os inestimáveis
encantos, de que os céus te dotaram.

Profanação!… eu repeliria, como quem repele um insulto,
todo aquele que ousasse vir oferecer?me dinheiro pela tua liberdade. Livre
és tu, porque Deus não podia formar um ente tão perfeito
para votá?lo à escravidão. Livre és tu, porque
assim o queria minha mãe, e assim o quero eu. Mas, Isaura, o meu amor
por ti é imenso; eu não posso, eu não devo abandonar?te
ao mundo. Eu morreria de dor, se me visse forçado a largar mão
da jóia inestimável, que o céu parece ter?me destinado,
e que eu há tanto tempo rodeio dos mais ardentes anelos de minha alma…

– Perdão, senhor; eu não posso compreendé?lo; diz?me
que sou livre, e não permite que eu vá para onde quiser, e nem
ao menos que eu disponha livremente de meu coração?! – Isaura,
se o quiseres, não serás somente livre; serás a senhora,
a deusa desta casa. Tuas ordens, quaisquer que sejam, os teus menores caprichos
serão pontualmente cumpridos; e eu, melhor do que faria o mais terno
e o mais leal dos amantes, te cercarei de todos os cuidados e carinhos, de
todas as adorações, que sabe inspirar o mais ardente e inextinguível
amor. Malvina me abandona!… tanto melhor! em que dependo eu dela e de seu
amor, se te possuo?! Quebrem?se de uma vez para sempre esses laços
urdidos pelo interesse! esqueça?se para sempre de mim, que eu nos braços
de minha Isaura encontrarei sobeja ventura para poder lembrar?me dela.

– O que o senhor acaba de dizer me horroriza. Como se pode esquecer e abandonar
ao desprezo uma mulher tão amante e carinhosa, tão cheia de
encantos e virtudes, como sinhá Malvina? Meu senhor, perdoe?me se lhe
falo com franqueza; abandonar uma mulher bonita, fiel e virtuosa por amor
de uma pobre escrava, seria a mais feia das ingratidões.

A tão severa e esmagadora exprobração, Leôncio
sentiu revoltar?se o seu orgulho. escrava insolente! – bradou cheio de cólera.
– Que eu suporte sem irritar?me os teus desdéns e repulsas, ainda vá:
mas repreensões!… com quem pensas tu que falas?…

– Perdão! senhor!… exclamou Isaura aterrada e arrependida das palavras
que lhe tinham escapado.

– E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo… mas não,
é muito aviltar?me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu
de pedir aquilo que de direito me pertence? Lembra?te, escrava ingrata e rebelde,
que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais ninguém.
És propriedade minha; um vaso, que tenho entre as minhas mãos
e que posso usar dele ou despedaçá?lo a meu sabor, – Pode despedaçá?lo,
meu senhor; bem o sei; mas, por piedade, não queira usar dele para
fins impuros e vergonhosos. A escrava também tem coração,
e não é dado ao senhor querer governar os seus afetos.

– Afetos!… quem fala aqui em afetos?! Podes acaso dispor deles?…

– Não, por certo, meu senhor; o coração é livre;
ninguém pode escravizá?lo, nem o próprio dono.

– Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá,
e se não cedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força…
mas para quê? para te possuir não vale a pena empregar esses
meios extremos.

Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos
como a tua condição; para te satisfazer far?te?ei mulher do
mais vil, do mais hediondo de meus negros.

– Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu pai fez
morrer de desgosto e maus?tratos a minha pobre mãe; já vejo
que me é destinada a mesma sorte. Mas fique certo de que não
me faltarão nem os meios nem a coragem para ficar para sempre livre
do senhor e do mundo.

– Oh! – exclamou Leôncio com satânico sorriso, – já chegaste
a tão subido grau de exaltação e romantismo!… isto
em uma escrava não deixa de ser curioso. Eis o proveito que se tira
de dar educação a tais criaturas! Bem mostras que és
uma escrava, que vives de tocar piano e ler romances. Ainda bem que me preveniste;
eu saberei gelar a ebulição desse cérebro escaldado.
Escrava rebelde e insensata, não terás mãos nem pés
para pôr em prática teus sinistros intentos. Olá, André,
– bra? dou ele e apitou com força no cabo do seu chicote.

– Senhor! – bradou de longe o pajem, e um instante depois estava em presença
de Leôncio.

– André, – disse?lhe este com voz seca e breve – traze?me já
aqui um tronco de pés e algemas com cadeado.

– Virgem santa! – murmurou consigo André espantado. – Para que será
tudo isto?… ah! pobre Isaura!…

– Ah! meu senhor, por piedade! – exclamou Isaura, caindo de joelhos aos
pés de Leôncio, e levantando as mãos ao céu em
contorções de angústia; pelas cinzas ainda quentes de
seu pai, há poucos dias falecido, pela alma de sua mãe, que
tanto lhe queria, não martirize a sua infeliz escrava. Acabrunhe?me
de trabalhos, condene?me ao serviço o mais grosseiro e pesado, que
a tudo me sujeitarei sem murmurar; mas o que o senhor exige de mim, não
posso, não devo fazê?lo, embora deva morrer.

– Bem me custa tratar?te assim, mas tu mesma me obrigas a este excesso.
Bem vês que me não convém por modo nenhum perder uma escrava
como tu és. Talvez ainda um dia me serás grata por ter?te impedido
de matar?te a ti mesma.

– Será o mesmo! – bradou Isaura levantando?se altiva, e com o acento
rouco e trémulo da desesperação, – não me matarei
por minhas próprias mãos, mas morrerei às mãos
de um carrasco.

Neste momento chega André trazendo o tronco e as algemas, que deposita
sobre um banco, e retira?se imediatamente.

Ao ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplício
turvaram?se os olhos a Isaura, o coração se lhe enregelou de
pavor, as pernas lhe desfaleceram, caiu de joelhos e debruçando?se
sobre o tamborete, em que fiava, desatou uma torrente de lágrimas.

– Alma de minha sinhá velha! – exclamou com voz entrecortada de soluços,
– valei?me nestes apuros; valei?me lá do céu, onde estais, como
me valíeis cá na Terra.

– Isaura, – disse Leôncio com voz áspera apontando para os
instrumentos de suplício, – eis ali o que te espera, se persistes em
teu louco emperramento. Nada mais tenho a dizer?te; deixo?te livre ainda,
e fica?te o resto do dia para refletires. Tens de escolher entre o meu amor
e o meu ódio. Qualquer dos dois, tu bem sabes, são violentos
e poderosos. Adeus!…

Quando Isaura sentiu que seu senhor se havia ausentado, ergueu o rosto,
e levantando ao céu os olhos e as mãos juntas, dirigiu à
Rainha dos anjos a seguinte fervorosa prece, exalada entre soluços
do mais íntimo de sua alma: – Virgem senhora da Piedade, Santíssima
Mãe de Deus!… vós sabeis se eu sou inocente, e se mereço
tão cruel tratamento. Socorrei?me neste transe aflitivo, porque neste
mundo ninguém pode valer?me.

Livrai?me das garras de um algoz, que ameaça não só
a minha vida, como a minha inocência e honestidade. Iluminai?lhe o espírito
e infundi?lhe no coração brandura e misericórdia para
que se compadeça de sua infeliz cativa. É uma humilde escrava
que com as lágrimas nos olhos e a dor no coração vos
roga pelas vossas dores sacrossantas, pelas chagas de vosso Divino Filho:
valei?me por piedade.

Quanto Isaura era formosa naquela suplicante e angustiosa atitude! oh! muito
mais bela do que em seus momentos de serenidade e prazer!… se a visse então,
Leôncio talvez sentisse abrandar?se o férreo e obcecado coração.
Com os olhos arrasados em lágrimas, que em fio lhe escorregavam pelas
faces desbotadas, entreaberta a boca melancólica, que lhe tremia ao
passar da prece murmurada entre soluços, atiradas em desordem pelas
espáduas as negras e opulentas madeixas, voltando para o céu
o busto mavioso plantado sobre um colo escultural, ofereceria ao artista inspirado
o mais belo e sublime modelo para a efígie da Mãe Dolorosa,
a quem nesse momento dirigia suas ardentes súplicas. Os anjos do céu,
que por certo naquele instante adejavam em torno dela agitando as asas de
ouro e carmim, não podiam deixar de levar tão férvida
e dolorosa prece aos pés do trono da Consoladora dos aflitos.

Absorvida em suas mágoas Isaura não viu seu pai, que, entrando
pelo salão a passos sutis e cautelosos, encaminhava?se para ela.

– Oh! felizmente ela ali está, – murmurava o velho, – o algoz aqui
também andava! oh! pobre Isaura!… que será de ti?!…

– Meu pai por aqui!… – exclamou a infeliz ao avistar Miguel. – Venha,
venha ver a que estado reduzem sua filha.

– Que tens, filha?… que nova desgraça te sucede? – Não está
vendo, meu pai?… eis ali a sorte, que me espera, – respondeu ela apontando
para o tronco e as algemas, que ali estavam ao pé dela.

– Que monstro, meu Deus!… mas eu já esperava por tudo isto…

– É esta a liberdade que pretende dar àquela que a mãe
dele criou com tanto amor e carinho. O mais cruel e aviltante cativeiro, um
martírio continuado da alma e do corpo, eis o que resta à sua
desventurada filha… Meu pai, não posso resistir a tanto sofrimento!…
restava?me um recurso extremo; esse mesmo vai?me ser negado. Presa, algemada,
amarrada de pés e mãos!… oh!… meu pai! meu pai!… isto
é horrível!…

Meu pai, a sua faca, – acrescentou depois de ligeira pausa com voz rouca
e olhar sombrio, – preciso de sua faca.

– Que pretendes fazer com ela, Isaura? que louco pensamento é o teu?…

– Dê?me essa faca, meu pai; eu não usarei dela senão
em caso extremo; quando o infame vier lançar?me as mãos para
deitar?me esses ferros, farei saltar meu sangue ao rosto vil do algoz.

– Não, minha filha; não serão necessários tais
extremos. Meu coração já adivinhava tudo isto, e já
tenho tudo prevenido. O dinheiro, que não serviu para alcançar
a tua liberdade, vai agora prestar?nos para arrancar?te às garras desse
monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.

– Sim, meu pai, fujamos; mas como? para onde? – Para longe daqui, seja para
onde for; e já, minha filha, enquanto não suspeitem coisa alguma,
e não te carregam de ferros.

– Ah! meu pai, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a minha
sorte!…

– A empresa é arriscada, não posso negar?te; mas ânimo.
Isaura; é nossa única tábua de salvação;
agarremo?nos a ela com fé, e encomendemo?nos à divina providência.
Os escravos estão na roça; o feitor levou para o cafezal tuas
companheiras, teu senhor saiu a cavalo com o André; não há
talvez em toda a casa senão alguma negra lá pelos cantos da
cozinha. Aproveitemos a ocasião, que parece mesmo nos vir das mãos
de Deus, no momento em que aqui estou chegando. Eu já preveni tudo.

Lá no fundo do quintal à beira do rio está amarrada
uma canoa; é quanto nos basta. Tu sairás primeiro e irás
lá ter por dentro do quintal; eu sairei por fora alguns instantes depois
e lá nos encontraremos. Em menos de uma hora estaremos em Campos, onde
nos espera um navio, de que é capitão um amigo meu, e que tem
de seguir viagem para o Norte nesta madrugada. Quando romper o dia, estaremos
longe do algoz que te persegue. Vamo?nos, Isaura; talvez por esse mundo encontremos
alguma alma piedosa, que melhor do que eu te possa proteger.

– Vamo?nos, meu pai; que posso eu recear?… posso acaso ser mais desgraçada
do que já sou?…

Isaura, cosendo?se com a sombra do muro, que rodeava o pátio, abriu
o portão, que dava para o quintal, e desapareceu. Momentos depois Miguel
rodeando por fora os edifícios costeava o quintal, e achava?se com
ela à margem do rio.

A canoa vogando sutilmente bem junto à barranca, impelida pelo braço
vigoroso de Miguel, em poucos minutos perdeu de vista a fazenda.

Capitulo 10

Já são passados mais de dois meses depois da fuga de Isaura,
e agora, leitores, enquanto Leôncio emprega diligências extraordinárias
e meios extremos, e desatando os cordões da bolsa, põe em atividade
a polícia e uma multidão de agentes particulares para empolgar
de novo a presa, que tão sorrateiramente lhe escapara, façamo?nos
de vela para as províncias do Norte, onde talvez primeiro que ele deparemos
com a nossa fugitiva heroína.

Estamos no Recife. É noite e a formosa Veneza da América do
Sul, coroada de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano,
que a estreita em carinhoso amplexo e a beija com amor. É uma noite
festiva: em uma das principais ruas nota?se um edifício esplendidamente
iluminado, para onde concorre grande número de cavalheiros e damas
das mais distintas e opulentas classes. É um lindo prédio onde
uma sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saraus. Alguns
estudantes dos mais ricos e elegantes, também costumam descer da velha
Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os esplendores
e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e aos meigos
olhares e angélicos sorrisos das belas e espirituosas pernambucanas,
esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos
praxistas.

Suponhamos que também somos adeptos daquele templo de Terpsícore,
entremos por ele a dentro, e observemos o que por aí vai de curioso
e interessante. Logo na primeira sala encontramos um grupo de elegantes mancebos,
que conversam com alguma animação. Escutemo?los.

– É mais uma estrela que vem brilhar nos salões do Recife,
– dizia Álvaro, – e dar lustre a nossos saraus. Não há
ainda três meses, que chegou a esta cidade, e haverá pouco mais
de um, que a conheço.

Mas creia?me, Dr. Geraldo, é ela a criatura mais nobre e encantadora
que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é
um anjo, é uma deusa!…

– Cáspite! – exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deusa!… São
portanto três entidades distintas, mas por fim de contas verás
que não passa de uma mulher verdadeira. Mas dize?me cá, meu
Álvaro; esse anjo, fada, deusa, mulher ou o que quer que seja, não
te disse de onde veio, de que família é, se tem fortuna, etc.,
etc., etc.? – Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder?te que
veio do céu, que é da família dos anjos, e que tem uma
fortuna superior a todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e inteligente,
e uma beleza incomparável. Mas sempre te direi que o que sei de positivo
a respeito dela é que veio do Rio Grande do Sul em companhia de seu
pai, de quem é ela a única família; que seus meios são
bastantemente escassos, mas que em compensação ela é
linda como os anjos, e tem o nome de Elvira, – Elvira! – observou o terceiro
cavalheiro – bonito nome na verdade!… mas não poderás dizer?nos,
Álvaro, onde mora a tua fada?…

– Não faço mistério disso; mora com seu pai em uma
pequena chácara no bairro de Santo Antônio, onde vivem modestamente,
evitando relações, e aparecendo mui raras vezes em público.
Nessa chácara, escondida entre moitas de coqueiros e arvoredos, vive
ela como a violeta entre a folhagem, ou como fada misteriosa em uma gruta
encantada.

– É célebre! – retorquiu o doutor – mas como chegaste a descobrir
essa ninfa encantada, e a ter entrada em sua gruta misteriosa? – Eu vos conto
em duas palavras. Passando eu um dia a cavalo por sua chácara, avistei?a
sentada em um banco do pequeno jardim da frente. Surpreendeu?me sua maravilhosa
beleza. Como viu que eu a contemplava com demasiada curiosidade, esgueirou?se
como uma borboleta entre os arbustos floridos e desapareceu. Formei o firme
propósito de vê?la e de falar?lhe, custasse o que custasse. Por
mais, porém, que indagasse por toda a vizinhança, não
encontrei uma só pessoa que se relacionasse com ela e que pudesse apresentar?me.
Indaguei por fim quem era o proprietário da chácara, e fui ter
com ele. Nem esse podia dar?me informações, nem servir?me em
coisa alguma. O seu inquilino vinha todos os meses pontualmente adiantar o
aluguel da chácara; eis tudo quanto a respeito dele sabia. Todavia
continuei a passar todas as tardes por defronte do jardim, mas a pé
para melhor poder surpreendêla e admirá?la; quase sempre, porém,
sem resultado. Quando acontecia estar no jardim, esquivava?se sempre às
minhas vistas como da primeira vez. Um dia, porém, quando eu passava,
caiu?lhe o lenço ao levantar?se do banco; a grade estava aberta; tomei
a liberdade de penetrar no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar?lho,
quando já ela punha o pé na soleira de sua casa. Agradeceu?me
com um sorriso tão encantador, que estive em termos de cair de joelhos
a seus pés; mas não mandou?me entrar, nem fez?me oferecimento
algum.

– Esse lenço, Álvaro, – atalhou um cavalheiro, – decerto ela
o deixou cair de propósito, para que pudesses vê?la de perto
e falar?lhe. É um apuro de romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.

– Não creio; não há naquele ente nem sombra de coquetterie;
tudo nela respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar
meus pés daquele lugar, onde uma força magnética me retinha,
e que parecia rescender um misterioso eflúvio de amor, de pureza e
de aventura…

Álvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão
suaves recordações.

– E ficaste nisso, Alvaro! – perguntava outro cavalheiro; – o teu romance
está?nos interessando; vamos por diante, que estou aflito por ver a
peripécia…

– A peripécia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo
sei qual será. Esgotei enfim os estratagemas possíveis para
ter entrada no santuário daquela deusa; mas foi tudo baldado. O acaso
enfim veio em meu socorro, e serviu?me melhor do que toda a minha habilidade
e diligência. Passeando eu uma tarde de carro no bairro de Santo Antônio,
pelas margens do Beberibe, passeio que se tornara para mim uma devoção,
avistei um homem e uma mulher navegando a todo pano em um pequeno bote.

Instantes depois o bote achou?se encalhado em um banco de areia.

Apeei?me imediatamente, e tomando um escaler na praia, fui em socorro dos
dois navegantes que em vão forcejavam por safar a pequena embarcação.
Não podem fazer idéia da deliciosa surpresa que senti, ao reconhecer
nas duas pessoas do bote a minha misteriosa da chácara e seu pai…

– Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de
ser dramático; a história de seus amores com a tal fada misteriosa
vai tomando visos de um poema fantástico.

– Entretanto, é a pura realidade. Como estavam molhados e enxovalhados,
convidei?os a entrarem no meu carro. Aceitaram depois de muita relutância,
e dirigimo?nos para a casa deles. É escusado contarvos o resto desde
então, se bem que com algum acanhamento foi?me franqueado o umbral
da gruta misteriosa.

– E pelo que vejo, – interrogou o doutor, – amas muito essa mulher? – Se
amo! adoro?a cada vez mais, e o que é mais, tenho razões para
acreditar que ela… pelo menos não me olha com indiferença.

– Deus queira que não andes embaído por alguma Circe de bordel,
por alguma dessas aventureiras, de que há tantas pelo mundo, e que,
sabendo que és rico, arma laços ao teu dinheiro! Esse afastamento
da sociedade, esse mistério, em que procuram tão cuidadosamente
envolver a sua vida, não abonam muito em favor deles.

– Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair?se às
pesquisas da polícia? – observou um cavalheiro.

– Talvez moedeiros falsos, – acrescentou outro.

– Tenho má?fé, – continuou o doutor – todas as vezes que vejo
uma mulher bonita viajando em países estranhos em companhia de um homem,
que de ordinário se diz pai ou irmão dela. O pai de tua fada,
Álvaro, se é que é pai, é talvez algum cigano,
ou cavalheiro de indústria, que especula com a formosura de sua filha.

– Santo Deus!… misericórdia! – exclamou Álvaro. – Se eu
adivinhasse que veria a pessoa daquela criatura angélica apreciada
com tanta atrocidade, ou antes tão impiamente profanada, quereria antes
ser atacado de mudez, do que trazê?la à conversação.
Creiam, que são demasiado injustos para com aquela pobre moça,
meus amigos. Eu a julgaria antes uma princesa destronizada, se não
soubesse que é um anjo do céu. Mas vocês em breve vão
vê?la, e eu e ela estaremos vingados; pois estou certo que todos a uma
voz a proclamarão uma divindade. Mas o pior é que desde já
posso contar com um rival em cada um de vocês.

– Por minha parte, disse um dos cavalheiros, – pode ficar tranqüilo,
pois sempre tive horror às moças misteriosas.

– E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito medo
de fadas, – acrescentou o outro.

– E como é, perguntou o Dr. Geraldo, – que vivendo ela assim arredada
da sociedade, pôde resolver?se a deixar a sua misteriosa solidão,
para vir a este baile tão público e concorrido?…

– E quanto não me custou isso, meu amigo! – respondeu Álvaro.
– Veio quase violentada. Há muito tempo que procuro convencê?la
por todos os modos, que uma senhora jovem e formosa, como é ela, escondendo
seus encantos na solidão, comete um crime, contrário às
vistas do Criador, que formou a beleza para ser vista, admirada e adorada;
pois sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários,
que desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra. Argumentos,
instâncias, súplicas, tudo foi perdido; pai e filha recusavam?se
constantemente a aparecerem em público, alegando mil diversos pretextos.
Vali?me por fim de um ardil; fiz?lhes acreditar que aquele modo de viver retraído
e sem contato com a sociedade em um país, onde eram desconhecidos,
já começava a dar que falar ao público e a atrair suspeitas
sobre eles, e que até a polícia começava a olhá?los
com desconfiança: mentiras, que não deixavam de ter sua plausibilidade…

– E tanta, – interrompeu o doutor. – que talvez não andem muito longe
da verdade.

– Fiz?lhes ver, – continuou Álvaro, – que por infundadas e fúteis
que fossem tais suspeitas, era necessário arredá?las de si,
e para isso cumpria?lhes absolutamente freqüentar a sociedade. Este embuste
produziu o desejado efeito.

– Tanto pior para eles, – retorquiu o doutor; – eis aí um indício
bem mau, e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem eles
inocentes, e bem pouco se importariam com as suspeitas do público ou
da policia, e continuariam a viver como dantes.

– Tuas suspeitas não têm o menor fundamento, meu doutor. Eles
têm poucos meios, e por isso evitam a sociedade, que realmente, impõe
duros sacrifícios às pessoas desfavorecidas da fortuna, e eles…
mas ei?los, que chegam… Vejam e convençam?se com seus próprios
olhos.

Entrava nesse momento na ante?sala uma jovem e formosa dama pelo braço
de um homem de idade madura e de respeitável presença.

– Boa noite, senhor Anselmo!… boa noite, D. Elvira!… felizmente ei?los
aqui! – isto dizia Álvaro aos recém?chegados, separando?se de
seus amigos, e apressurando?se para cumprimentar a aqueles com toda a amabilidade
e cortesia. Depois oferecendo um braço a Elvira e outro ao senhor Anselmo,
os vai conduzindo para as salas interiores, por onde já turbilhona
a mais numerosa e brilhante sociedade. Os três interlocutores de Álvaro,
bem como muitas outras pessoas, que por ali se achavam, puseram?se em ala
para verem passar Elvira, cuja presença causava sensação
e murmurinho, mesmo entre os que não estavam prevenidos.

– Com efeito!… é de uma beleza deslumbrante! Que porte de rainha!…

– Que olhos de andaluza!…

– Que magníficos cabelos! – E o colo!… que colo!… não
reparaste?…

– E como se traja com tão elegante simplicidade! – assim murmuravam
entre si os três cavalheiros como impressionados por uma aparição
celeste.

– E não reparaste, – acrescentou o Dr. Geraldo, – naquele feiticeiro
sinalzinho, que tem na face direita?… Álvaro tem razão; a
sua fada vai eclipsar todas as belezas do salão. E tem de mais a mais
a vantagem da novidade, e esse prestígio do mistério, que a
envolve. Estou ardendo de impaciência por lhe ser apresentado; desejo
admirá?la mais de espaço.

Neste tom continuaram a conversar, até que, passados alguns minutos,
Álvaro, tendo cumprido a grata comissão de apresentador daquela
nova pérola dos salões, estava de novo entre eles.

– Meus amigos, – disse?lhes ele com ar triunfante. – convido?os para o salão.
Quero já apresentar?lhes D. Elvira para desvanecer de uma vez para
sempre as injuriosas apreensões, que ainda há pouco nutriam
a respeito do ente o mais belo e mais puro, que existe debaixo do Sol, se
bem que estou certo que só com a simples vista ficaram penetrados de
assombro até a medula dos ossos.

Os quatro cavalheiros se retiraram e desapareceram no meio do turbilhão
das salas interiores. Foram, porém, imediatamente substituídos
por um grupo de lindas e elegantes moças, que cintilantes de sedas
e pedrarias como um bando de aves?do?paraíso, passeavam conversando.

O assunto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão
era totalmente diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação
dos rapazes. Nenhum mal nos fará escutá?las por alguns instantes.

– Você não saberá dizer?nos, D. Adelaide, quem é
aquela moça, que ainda há pouco entrou na sala pelo braço
do senhor Álvaro? – Não, D. Laura; é a primeira vez que
a vejo, parece?me que não é desta terra.

– Decerto; que ar espantado tem ela!… parece uma matuta, que nunca pisou
em um salão de baile; não acha, D. Rosalina? – Sem dúvida!..,
e você não reparou na toilette dela?… meu Deus!… que pobreza!
a minha mucama tem melhor gosto para se trajar.

Aqui a D. Emília é que talvez saiba quem ela é.

– Eu? por quê? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Álvaro
já me tinha dado notícias dela, dizendo que era um assombro
de beleza.

Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.

– Aquele senhor Álvaro sempre é um excêntrico, um esquisito;
tudo quanto é novidade o seduz. E onde iria ele escavar aquela pérola,
que tanto o traz embasbacado?…

– Veio de arribação lá dos mares do Sul, minha amiga,
e a julgar pelas aparências não é de todo má.

– Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais suportável.

– Pelo contrário, D. Laura; aquele sinal é que ainda lhe dá
certa graça particular…

– Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava que você
também tem na face um sinalzinho semelhante; esse deveras fica?te muito
bem, e dá?te, muita graça; mas o dela, se bem reparei, é
grande demais; não parece uma mosca, mas sim um besouro, que lhe pousou
na face.

– A dizer?te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o salão;
é preciso vê?la mais de perto, estudá?la com mais vagar
para podermos dar com segurança a nossa opinião.

E, dito isto, lá se foram elas com os braços enlaçados,
formando como longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando
perder?se entre a multidão.

Capitulo 11

Álvaro era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna
parece terem querido despejar à porfia todo o cofre de seus favores.
Filho único de uma distinta e opulenta família, na idade de
vinte e cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor
de uma fortuna de cerca de dois mil contos.

Era de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre e simpática
expressão da fisionomia do que pelos traços físicos,
que entretanto não eram irregulares. Posto que não tivesse o
espírito muito cultivado, era dotado de entendimento lúcido
e robusto, próprio a elevar?se à esfera das mais transcendentes
concepções. Tendo concluído os preparatórios,
como era filósofo, que pesava gravemente as coisas, ponderando que
a fortuna de que pelo acaso do nascimento era senhor, por outro acaso lhe
podia ser tirada, quis para ter uma profissão qualquer, dedicar?se
ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto pairava pelas altas regiões
da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos acadêmicos;
mas quando teve de embrenhar?se no intrincado labirinto dessa árida
e enfadonha casuística do direito positivo, seu espírito eminentemente
sintético recuou enfastiado, e não teve ânimo de prosseguir
na senda encetada. Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações,
aprazia?se mais na indagação das altas questões políticas
e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e interpretar leis
e instituições, que pela maior parte, em sua opinião,
só tinham por base erros e preconceitos os mais absurdos.

Tinha ódio a todos os privilégios e distinções
sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista.

Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista
exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos
uma não pequena porção da herança de seus pais,
tratou logo de emancipá?los todos. Como porém Álvaro
tinha um espírito nimiamente filantrópico, conhecendo quanto
é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão
para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos em uma de
suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção
confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar grandes
vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro.

A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento,
e eles sujeitando?se a uma espécie de disciplina comum, não
só preservavam?se de entregar?se à ociosidade, ao vício
e ao crime, tinham segura a subsistência e podiam adquirir algum pecúlio,
como também poderiam indenizar a Álvaro do sacrifício,
que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico
como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade
de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração
impressionável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância,
e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal,
próprios das almas elevadas e dos corações bem formados.

Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali
a mulher que lhe devia tocar o coração, a encarnação
do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de sua poética imaginação.
Com tão excelentes e brilhantes predicados, Álvaro por certo
devia ser objeto de grande preocupação no mundo elegante, e
talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais
de uma ilustre e formosa donzela. Ele, porém, igualmente cortês
e amável para com todas, por nenhuma delas ainda havia dado o mínimo
sinal de predileção.

Pode?se fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível
decepção que reinou nos círculos das belas pernambucanas
ao verem o vivo interesse e solicitude de que Álvaro rodeava uma obscura
e pobre moça; a deferência com que a tratava, e os entusiásticos
elogios que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não ficaram
tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus
o prêmio da formosura.

Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de
senhoras havia falado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com
certa eloquência apaixonada, que a todas surpreendeu e inquietou. As
moças ardiam por ver aquele protótipo de beleza, e já
de antemão choviam sobre a desconhecida e o seu campeão mil
chascos e malignos apodos. Quando, porém, a viram, apesar dos contrafeitos
e desdenhosos sornsos que apenas lhes roçavam a flor dos lábios,
sentiram uma desagradável impressão pungir?lhes no íntimo
do coração. Peço perdão às belas, de minha
rude franqueza; a vaidade é, com bem raras exceções,
companheira inseparável da beleza e onde se acha a vaidade, a inveja,
que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por
muito tempo. A beleza da desconhecida era incontestável; sua modéstia
e timidez em nada prejudicavam a singela e nativa elegância de que era
dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo suntuoso,
que a rodeava assentava?lhe maravilhosamente, e realçava?lhe ainda
mais os encantos naturais. O efeito deslumbrante, que Elvira produziu logo
ao primeiro aspecto, e o empenho com que Álvaro procurava fazer sobressaltar
os sedutores atrativos de Elvira, como de propósito para eclipsar as
outras belezas do salão, eram de sobejo para irritar?lhes a vaidade
e o amor?próprio. Uma e outra deviam ser naquela noite o alvo de mil
olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados epigramas.

Álvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade com
que ele e a sua protegida, – podemos dar?lhe esse nome, – eram acolhidos naquela
reunião; mas a tímida e modesta Elvira, que em parte alguma
encontrava lhaneza e cordialidade, achava?se mal naquela atmosfera de fingida
amabilidade e cortesania, e em cada olhar via um escárnio desdenhoso,
em cada sorriso um sarcasmo.

Já sabemos quem era Álvaro; agora travemos conhecimento com
o seu amigo, o Dr. Geraldo.

Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado altamente conceituado
no foro do Recife. Entre as relações de Álvaro era a
que cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate,
firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de nobreza,
davam?lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro.
Seu espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado
jurisconsulto, prestando o maior respeito às instituições
e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo
antagonismo com as idéias excêntricas e reformistas de seu amigo;
mas esse antagonismo, longe de perturbar ou arrefecer a recíproca estima
e afeição, que entre eles reinava, servia antes para alimentá?las
e fortalecê?las, quebrando a monotonia que deve reinar nas relações
de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por fim
de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que uma
quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem, enjoadas
de tanto se dizerem – amém, – ver?se?ão forçadas a recolherem?se
ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra; plácida, cômoda
e sonolenta amizade!… De mais, a contrariedade de tendências e opiniões
são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando?se e temperando?se
umas pelas outras.

É assim que muitas vezes o positivismo e o senso prático do
Dr. Geraldo serviam de corretivo às utopias e exaltações
de Álvaro, e vice?versa.

Da boca do próprio Álvaro já ouvimos por que acaso
veio ele conhecer D. Elvira, e como conseguiu levá?la ao sarau, a que
ainda continuamos a assistir.

– Meu pai, – dizia uma jovem senhora a um homem respeitável, em cujo
braço se arrimava, entrando na ante?sala, onde ainda nos conservamos
de observação. – Meu pai, fiquemos por aqui um pouco nesta sala,
enquanto está deserta. Ah! meu Deus! – continuou ela com voz abafada,
depois de se terem sentado junto um do outro; – que vim eu aqui fazer, eu
pobre escrava, no meio dos saraus dos ricos e dos fidalgos!… este luxo,
estas luzes, estas homenagens, que me rodeiam, me perturbam os sentidos e
causam?me vertigem. É um crime que cometo, envolvendo?me no meio de
tão luzida sociedade; é uma traição, meu pai;
eu o conheço, e sinto remorsos… Se estas nobres senhoras adivinhassem
que ao lado delas diverte?se e dança uma miserável escrava fugida
a seus senhores!… Escrava! – exclamou levantando?se – escrava!…

afigura?se?me que todos estão lendo, gravada em letras negras em
minha fronte, esta sinistra palavra!… fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta
sociedade parece estar escarnecendo de mim; este ar me sufoca… fujamos.

Falando assim a moça, pálida e ofegante, lançava a
cada frase olhares inquietos em roda de si, e empuxava o braço de seu
pai, repetindo sempre com ansiosa sofreguidão: – Vamo?nos, meu pai;
fujamos daqui.

– Sossega teu coração, minha filha, – respondeu o velho procurando
acalmá?la. – Aqui ninguém absolutamente pode suspeitar quem
tu és. Como poderão desconfiar que és uma escrava, se
de todas essas lindas e nobres senhoras nem pela formosura, nem pela graça
e prendas do espirito nenhuma pode levar?te a palma? – Tanto pior, meu pai;
sou alvo de todas as atenções, e esses olhares curiosos, que
de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me a cada instante estremecer;
desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus pés, e
me sumisse em seu seio.

– Deixa?te dessas idéias; esse teu medo e acanhamento é que
poderiam nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de receio.
Ostenta com desembaraço todos os seus encantos e habilidades, dança,
canta, conversa, mostra?te alegre e satisfeita, que longe de te suporem uma
escrava, são capazes de pensar que és uma princesa.

Toma ânimo, minha filha, ao menos por hoje; esta também, assim
como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por
este constrangimento; não nos é possível ficar por mais
tempo nesta terra, onde começamos a despertar suspeitas.

– É verdade, meu pai!… que fatalidade!… – respondeu a moça
com uma triste oscilação de cabeça. – Assim pois estamos
condenados a vagar de pais em país, sequestrados da sociedade, vivendo
no mistério, e estremecendo a todo instante, como se o céu nos
tivesse marcado com um ferrete de maldição!… ah! esta partida
há de me doer bem no coração!… não sei que encanto
me prende a este lugar. Entretanto, terei de dizer adeus eterno a… esta
terra, onde gozei alguns dias de prazer e tranqüilidade! Ah! meu Deus!…
quem sabe se não teria sido melhor morrer entre os tormentos da escravidão!…

Neste momento entrava Álvaro na ante?sala percorrendo?a com os olhos,
como quem procurava alguém.

– Onde se sumiriam? – vinha ele murmurando; – teriam tido a triste lembrança
de se irem embora?… oh! não; felizmente ei?los ali! – exclamou alegremente,
dando com os olhos nos dois personagens que acabamos de ouvir conversar. –
D. Elvira, V. Ex.ª. é modesta demais; vem esconder?se neste recanto,
quando devia estar brilhando no salão, onde todos suspiram pela sua
presença. Deixe isso para as tímidas e fanadas violetas; à
rosa compete alardear em plena luz todos os seus encantos.

– Desculpe?me, – murmurou Isaura – uma pobre moça criada como eu
na solidão da roça, e que não está acostumada
a tão esplêndidas reuniões, sente?se abafada e constrangida…

– Oh! não… há de acostumar?se, eu espero. As luzes, o esplendor,
as harmonias, os perfumes, constituem a atmosfera em que deve brilhar a beleza,
que Deus criou para ser vista e admirada. Vim buscá?la a pedido de
alguns cavalheiros, que já são admiradores de V. Ex.ª.
Para interromper a monotonia das valsas e quadrilhas, costumam aqui as senhoras
encantar?nos os ouvidos com alguma canção, ária, modinha,
ou seja o que for. Algumas pessoas a quem eu disse, – perdoe?me a indiscrição,
filha do entusiasmo – que V. Ex.ª possui a mais linda voz, e canta com
maestria, mostram o mais vivo desejo de ouvi?la.

– Eu, senhor Álvaro!… eu cantar diante de uma tão luzida
reunião!…

por favor, queira dispensar?me dessa nova prova. É em seu próprio
interesse que lhe digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou certa que irei
solenemente desmenti?lo. Poupe?nos a nós ambos essa vergonha.

– São desculpas, que não posso aceitar, porque já a
ouvi cantar, e creia?me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza de
que a senhora canta admiravelmente, não seria capaz de expô?la
a um fiasco. Quem canta como V. Ex.ª não deve acanhar?se, e eu
por minha parte peço?lhe encarecidamente que não cante outra
coisa, senão aquela maviosa canção da escrava, que outro
dia a surpreendi cantando, e afianço a V. Ex.ª que arrebatará
os ouvintes.

– Por que razão não pode ser outra? essa desperta?me recordações
tão tristes…

– E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos lábios
de V. Ex.ª.

– Ai! triste de mim! – suspirou dentro da alma D. Elvira: – aqueles mesmos
que mais me amam, tomam?se, sem o saber, os meus algozes!…

Elvira bem quisera escusar?se a todo transe; cantar naquela ocasião
era para ela o mais penoso dos sacrifícios. Mas não lhe era
mais possível relutar, e lembrando?se do judicioso conselho de seu
pai, não quis mais ver?se rogada, e aceitando o braço que Álvaro
lhe oferecia, foi por ele conduzida ao piano, onde sentou?se com a graça
e elegância de quem se acha completamente familiarizada com o instrumento.

Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações
palpitando na mais ansiosa expectação, se apinharam em volta
do piano; os cavalheiros estavam ansiosos por saberem se a voz daquela mulher
correspondia à sua extraordinária beleza; se a fada seria também
uma sereia; as moças esperavam, que ao menos naquele terreno, teriam
o prazer de ver derrotada a sua formidável êmula, e já
contavam compará?la com o pavão da fábula, queixando?se
a Juno que, o tendo formado a mais bela das aves, não lhe dera outra
voz mais que um guincho áspero e desagradável.

A conjuntura era delicada e solene; a moça achava?se na difícil
situação de uma prima?dona, que, precedida de uma grande reputação,
faz a sua estréia perante um público exigente e ilustrado. Em
tomo dela fazia?se profundo silêncio; as respirações estavam
como que suspensas, ao passo que parecia ouvir?se o palpitar de todos os corações
no ofego da expectação. Álvaro, apesar de conhecer já
a excelência da voz de Elvira e sua maestria no canto, não deixava
de mostrar?se inquieto e comovido. Elvira por sua parte pouco se importaria
de cantar bem ou mal; desejaria até passar pela moça a mais
feia, a mais desengraçada e a mais tola daquela reunião, contanto
que a deixassem a um canto esquecida e sossegada. Dir?se?ia que estava debaixo
do império de algum terrível pressentimento. Mas Elvira amava
a Álvaro, e grata ao delicado empenho, com que este, cheio de solicitude
e entusiasmo, se esforçava por apresentá?la como um protótipo
de beleza e de talento aos olhos daquela brilhante sociedade, para satisfazê?lo,
e não desmentir a lisonjeira opinião, que propalara a respeito
dela, desejava cantar o melhor que lhe fosse possível. Era ao triunfo
de Álvaro que aspirava mais do que ao seu próprio.

Uma vez sentada ao piano, logo que seus dedos mimosos e flexíveis,
pousando sobre o teclado, preludiaram alguns singelos acordes, a moça
sentiu?se outra, revelando aos circunstantes maravilhados um novo e original
aspecto de sua formosura. A fisionomia, cuja expressão habitual era
toda modéstia, ingenuidade e candura, animou?se de luz insólita;
o busto admiravelmente cinzelado, ergueu?se altaneiro e majestoso; os olhos
extáticos alçavam?se cheios de esplendor e serenidade; os seios,
que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila
noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como
oceano encapelado; seu colo distendeu?se alvo e esbelto como o do cisne que
se apresta a desprender os divinais gorjeios. Era o sopro da inspiração
artística, que, roçando?lhe pela fronte, a transformava em sacerdotisa
do belo, em intérprete inspirada das harmonias do céu. Ali sentia?se
ela rainha sobre seu trono ideal; ali era Calíope sentada sobre a tripo
de sagrada, avassalando o mundo ao som de enlevadoras e inefáveis harmonias.
Das próprias inquietações e angústias da alma
soube ela tirar alento e inspiração para vencer as dificuldades
da árdua situação em que se achava empenhada. Banhou
os lábios com as lágrimas do coração, e a voz
lhe rompeu do peito com tão original e arrebatadora vibração,
em modulações tão puras e suaves, tão repassadas
de sublime melancolia, que mais de uma lágrima viu?se rolar pelas faces
dos freqüentadores daquele templo dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!
Elvira acabava de alcançar um triunfo colossal. Mal terminara o canto,
o salão restrugiu entre os mais estrondosos aplausos, e parecia que
vinha desabando ao ruído atordoador das palmas e dos vivas! A fada
de Álvaro é também uma sereia; – dizia o Dr. Geraldo
a um dos cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. – Resume tudo em
si… que timbre de voz tão puro e tão suave; julguei?me arrebatado
ao sétimo céu, ouvindo as harmonias dos coros angélicos.

– É uma consumada artista… no teatro faria esquecer a Malibran,
e conquistaria reputação européia. Álvaro tem
razão; uma criatura assim não pode ser uma mulher ordinária,
e muito menos uma aventureira… A música dando o sinal para a quadrilha,
interrompe a conversação ou não nô?la deixa ouvir.

– D. Elvira, – diz Álvaro dirigindo?se à sua protegida, que
já se achava sentada ao pé de seu pai, – lembre?se, que me fez
a honra de conceder?me esta quadrilha.

Elvira esforçou?se por sorrir e combater o terrível abatimento,
que ao deixar o piano de novo se apoderara de seu espírito.

Tomou o braço de Álvaro, e ambos foram ocupar o seu lugar
na quadrilha.

Capitulo 12

Agora os leitores já sabem, se é que há mais tempo não
adivinharam, que a suposta Elvira não é mais do que A Escrava
Isaura, assim como Anselmo não passa do feitor Miguel, ambos os quais
são já nossos conhecidos antigos. Como também sabem que
Isaura não só era dotada de espírito superior, como também
recebera a mais fina e esmerada educação, não lhe estranharam
a distinção das maneiras, a elegância e elevação
da linguagem, e outros dotes, que faziam com que essa escrava excepcional
pudesse aparecer e mesmo brilhar no meio da mais luzida e aristocrática
sociedade.

Foi a situação desesperada, em que via sua querida filha,
que inspirou a Miguel o expediente extremo de uma fuga precipitada, exposta
a mil azares e perigos. Lembrava?se ele com horror do miserando destino de
que em iguais circunstâncias fora vítima a mãe de Isaura,
e bem sabia que Leôncio, tão desalmado como o pai, e ainda mais
corrupto e libertino, era capaz de excessos e atentados ainda maiores.

Tendo perdido a esperança de libertar a filha, entendeu que podia
utilizar?se da soma, que para esse fim tinha agenciado, empregando?a em arrancar
a pobre vitima das mãos do algoz, por qualquer meio que fosse.

Bem via que aos olhos do mundo tirar uma escrava da casa de seus senhores,
e proteger?lhe a fuga, além de ser um crime, era um ato desairoso e
indigno de um homem de bem; mas a escrava era uma filha idolatrada, e uma
pérola de pureza, prestes a ser poluída ou esmagada pela mão
de um senhor verdugo, e esta consideração o justificava aos
olhos da própria consciência.

Bem se lembrara o infeliz pai de dar denúncia do fato às autoridades,
implorando a proteção das leis em favor de sua filha para que
não fosse vitima das violências e sevícias de seu dissoluto
e brutal senhor. Mas todos a quem consultava respondiam?lhe a uma voz: – Não
se meta em tal; é tempo perdido. As autoridades nada têm que
ver com o que se passa no interior da casa dos ricos. Não caia nessa;
muito feliz será, se somente tiver de pagar as custas, e não
lhe arrumarem por cima algum processo, com que tenha de ir dar com os costados
na cadeia. – Onde se viu o pobre ter razão contra o rico, o fraco contra
o forte?…

Miguel entretinha relações ocultas com alguns dos antigos
escravos da fazenda de Leôncio, os quais, lembrando?se ainda com saudades
do tempo de sua boa administração, conservavam?lhe o mesmo respeito
e afeição, e por meio deles tinha exata informação
do que se passava na fazenda. Sabendo dos cruéis apuros a que sua filha
se achava reduzida depois da morte do comendador, não hesitou mais
um instante, e tratou de tomar todas as providências e medidas de segurança
para roubar a filha, e pô?la fora do alcance de seu bárbaro senhor.
Na mesma madrugada, que seguiu?se à tarde, em que a raptou, fazia?se
de vela com Isaura para as províncias do Norte em um navio negreiro,
de que era capitão um português, antigo e dedicado amigo seu.
Este chegando às alturas de Pernambuco, como daí tinha de singrar
para a costa da África, largou?os no Recife, prometendo?lhes que dentro
em três ou quatro meses estaria de volta e pronto a conduzi?los para
onde quisessem.

Miguel que em sua profissão de jardineiro ou de feitor havia passado
a vida desde a infância dentro de um horizonte acanhado e em círculo
mui limitado de relaçóes, tinha pouco conhecimento e nenhuma
experiência do mundo, e portanto não podia calcular todas as
conseqüências da difícil posição em que ia
colocar a si e a sua filha. Durante os longos anos que esteve feitorando a
fazenda do comendador e de outros, não se dera senão uma ou
outra fuga insignificante de escravos, por alguns dias e para alguma fazenda
vizinha, e, portanto, não é para admirar que ele quase completamente
ignorasse a amplitude dos direitos, que tem um senhor sobre o escravo, e os
infinitos meios e recursos de que pode lançar mão para capturá?los
em caso de fuga. Entendeu, pois, que em Pernambuco poderia viver com sua filha
em plena seguridade, ao menos por três ou quatro meses, uma vez que
se afastassem da sociedade o mais que pudessem, e procurassem esconder sua
vida na mais completa obscuridade.

Isaura também, se bem que tivesse o espírito mais atilado
e esclarecido, longe do objeto principal de seu terror e aversão, não
deixava de sentir?se tranqüila, e até certo ponto descuidosa dos
perigos a que vivia exposta. Mas essa tal ou qual tranquilidade só
durou até o dia em que pela primeira vez viu Álvaro. Amou?o
com esse amor exaltado das almas elevadas, que amam pela primeira e única
vez, e esse amor, como bem se compreende, veio tornar ainda mais crítica
e angustiosa a sua já tão precária e mísera situação.

Alvaro tinha na fisionomia, nas maneiras, na voz e no gesto, um não
sei quê de nobre, de amável e profundamente simpático,
que avassalava todos os corações. O que não seria ele
para aquela que única até ali lhe soubera conquistar o amor?
Isaura não pôde resistir a tão prestigiosa sedução;
amou?o com o ardor e entusiasmo de um coração virgem; e com
a imprevidência e cegueira de uma alma de artista, embora não
visse nesse amor mais do que uma nova fonte de lágrimas e torturas
para seu coração.

Medindo o abismo que a separava de Álvaro, bem sabia que de nenhuma
esperança podia alimentar?se aquela paixão funesta, que deveria
ficar para sempre sepultada no íntimo do coração, como
um cancro a devorá?lo eternamente.

No seu cálice de amarguras, já quase a transbordar, tinha
de receber da mão do destino mais aquele travo cruel, que lhe devia
queimar os lábios e envenenar?lhe a existência.

Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de
sua verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava?se
consigo mesma de impor às poucas pessoas que com ela tratavam de perto,
um respeito e consideração a que nenhum direito podia ter. Mas
considerando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar à
sociedade, conformava?se com sua sorte. Deveria, porém, ela, ou poderia
sem inconveniente manter o seu amante na mesma ilusão? Com seu silêncio,
conservando?o na ignorância de sua condição de escrava,
deveria deixar alimentar?se, crescer profunda e enérgica paixão,
que o moço por ela concebera?… não seria isto um vil embuste,
uma indignidade, uma traição infame? não teria ele o
direito, ao saber da verdade, de acabrunhá?la de amargas exprobrações,
de desprezá?la, de calcá?la aos pés, de tratá?la
enfim como escrava abjeta e vil, que ficaria sendo? – Oh! isto para mim seria
mais horrível que mil mortes! – exclamava ela no meio do angustioso
embate de idéias que se lhe agitavam no espírito. – Não,
não devo iludi?lo; isto seria uma infâmia… vou?lhe descobrir
tudo; é esse o meu dever, e hei de cumpri?lo. Ficará sabendo
que não pode, que não deve amar?me; porém ao menos não
ficará com o direito de desprezar?me.. uma escrava, que procede com
lisura e lealdade, pode ao menos ser estimada. Não; não devo
enganá?lo; hei de revelar?lhe tudo.

Esta era a resolução que lhe inspiravam seu natural pundonor
e lealdade, e os ditames de uma consciência reta e delicada, mas quando
chegava o momento de pô?la em prática fraqueava?lhe o coração.
e Isaura ia diferindo de dia para dia a execução de seu propósito.

Falecia?lhe de todo a coragem para quebrar por suas próprias mãos
a doce quimera, que tão deliciosamente a embalava, e em que às
vezes conseguia esquecer por longo tempo sua mísera condição,
para lembrar?se somente que amava e era amada.

– Deixemos durar mais um dia – refletia consigo. – esta ilusória,
mas inefável ventura. Sou uma condenada, que arrancam da masmorra para
subir ao palco e fazer por momentos o papel de rainha feliz e poderosa; quando
descer, serei de novo sepultada em minha masmorra para nunca mais sair. Prolonguemos
estes instantes; náo será lícito deixar passar ao menos
em sonhos uma hora de felicidade sobre a fronte do infeliz condenado?… sempre
será tempo de quebrar esta frágil cadeia de ouro, que me prende
ao céu, e baquear de novo no inferno de meus sofrimentos.

Nesta indecisão, nesta luta interna, em que sempre a voz da paixão
abafava os ditames da razão e da consciência, passaram?se alguns
dias até àquele, em que Alvaro os induziu por meios quase violentos
a aceitarem convite para um baile. Desde então Isaura entendeu que
seria uma deslealdade, uma infâmia inqualificável, conservar
por mais tempo o seu amante na ilusão a respeito de sua condição,
e que não havia mais meio de prolongar, sem desdouro para eles, tão
falsa e precária situação.

Era muito abusar da ignorância do nobre e generoso mancebo! Uma escrava
fugida apresentar?se em um baile, e apavonar?se em seu braço à
face da mais brilhante e distinta classe de uma importante capital!…

era pagar com a mais feia ingratidão e a mais degradante deslealdade
os serviços, que com tanta delicadeza e amabilidade lhe havia prestado.
Isto repugnava absolutamente aos escrúpulos da melindrosa consciência
de Isaura. É verdade que Miguel, aterrado pelas considerações
que Álvaro lhe fizera, viu?se forçado a anuir ao seu gracioso
convite; Isaura porém guardara absoluto silêncio, o que ambos
tomaram por um sinal de aquiescência.

Enganavam?se. Isaura recolhida ao silêncio não fazia mais do
que tentar esforços supremos para sacudir o fardo daquele disfarce,
que tanto lhe pesava sobre a consciência, rasgando resolutamente o véu
que encobria aos olhos do amante sua verdadeira condição. Por
mais, porém, que invocasse toda a sua energia e resolução,
no momento decisivo a coragem a abandonava. Já a palavra lhe pairava
pelos lábios entreabertos, já tinha o passo formado para ir
prostrar?se aos pés de Álvaro, mas encontrando pousado sobre
ela o olhar meigo e apaixonado do mancebo, ficava como que fascinada; a palavra
não ousava romper os lábios paralisados e refluía ao
coração, e os pés recusavam?se ao movimento como se estivessem
pregados no chão. Isaura estava como o desgraçado a quem circunstâncias
fatais arrastam ao suicídio, mas que ao chegar à borda do precipício
medonho em que deseja arrojar?se, recua espavorido.

– Fraca e covarde criatura que eu sou! – pensou ela por fim esmorecida:
– que miséria! nem tenho coragem para cumprir um dever! não
importa; para tudo há remédio; cumpre que ele ouça da
boca de meu pai, o que eu não tenho ânimo de dizer?lhe.

Esta idéia luziu?lhe no espírito como uma tábua salvadora;
agarrou?se a ela com sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse
o ânimo, tratou de pô?la em execução.

– Meu pai, – disse ela resolutamente apenas Álvaro transpôs
o portão do pequeno jardim, – declaro?lhe que não vou a esse
baile; não quero, nem devo por forma nenhuma lá me apresentar.

– Não vais?! – exclamou Miguel atônito. – E por que não
disseste isto há mais tempo, quando o senhor Álvaro ainda aqui
se achava? agora que já demos nossa palavra…

– Para tudo há remédio, meu pai, – atalhou a filha com febril
vivacidade – e para este caso ele é bem simples. Vá meu pai
depressa à casa desse moço, e diga?lhe o que eu não tive
ânimo de dizer?lhe; declare?lhe quem eu sou, e está tudo acabado.

Dizendo isto, Isaura estava pálida, falava com precipitação,
os lábios descarados lhe tremiam, e as palavras, proferidas com voz
convulsa e estridente, parecia que lhe eram arrancadas a custo do coração.
Era o resultado do extremo esforço que fazia, para levar a efeito tão
penível resolução. O pai olhava para ela com assombro
e consternação.

– Que estás a dizer, minha filha! – replicou?lhe ele – estás
tão pálida e alterada!.. parece?me que tens febre… sofres
alguma coisa? – Nada sofro, meu pai; não se inquiete pela minha saúde.
O que eu estou lhe dizendo é que é absolutamente necessário
que meu pai vá procurar esse moço e confessar?lhe tudo…

– Isso nunca!… estás louca, menina?… queres que eu te veja encerrada
em uma cadeia, conduzida em ferros para a tua província, entregue a
teu senhor, e por fim ver?te morrer entre tormentos nas garras daquele monstro!
oh! Isaura, por quem és, não me fales mais nisso, Enquanto o
sangue me girar nestas veias, enquanto me restar o mais pequenino recurso,
hei de lançar mão dele para te salvar…

– Salvar?me por meio de uma indignidade, de uma infâmia, meu pai!…
retorquiu a moça com exaltação. – Como posso eu, sem
cometer a mais vil deslealdade, aparecer apresentada por ele como uma senhora
livre em uma sala de baile?… Quando esse senhor e tantas outras ilustres
pessoas souberem que ombreou com elas, e a par delas dançou uma miserável
escrava fugida…

– Cala?te, menina! – interrompeu o velho, incomodado com a exaltação
da filha. – Não fales assim tão alto… tranqüiliza?te;
eles nunca saberão de nada. O mais breve que puder ser deixaremos esta
terra; amanhã mesmo, se for possível. Embarcaremos em qualquer
paquete, e iremos para bem longe, para os Estados Unidos, por exemplo. Lá,
segundo me consta, poderemos ficar fora do alcance de qualquer perseguição.
Eu com o meu trabalho, e tu com as tuas prendas e habilitações,
podemos viver sem sofrer necessidades em qualquer canto do mundo.

– Ah! meu pai! essa idéia de irmos para tão longe, sem esperança
de um dia podermos voltar, me oprime o coração.

– Que remédio, minha filha!.., já agora, ainda que tenhamos
de ir parar ao fim do mundo, nos é forçoso fugir às garras
do monstro.

– Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor
Álvaro, nobre e generoso como é, sabendo da minha verdadeira
condição, e das terríveis circunstâncias que nos
obrigam a andar assim fugitivos e disfarçados pelo mundo, talvez queira
e possa nos amparar e valer contra as perseguições…

– E quem nos afiança isso?… o mais certo é ele entregar?te
ao desprezo, logo que saiba que não passas de uma escrava fugida, se,
despeitado com o logro que levou, não for o primeiro a denunciar?te
à polícia. No transe em que nos achamos, é de absoluta
necessidade enganar a ele e a todos; se revelarmos a quem quer que seja o
segredo de nossa posição, estamos perdidos. Toma coragem, e
vamos ao baile, minha filha; é um sacrifício cruel, mas passageiro,
a que devemos nos sujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos
longe, e se algum dia souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nos
verão o rosto, nem ouvirão nossos nomes. Tens a consciência
escrupulosa em demasia. Se ignoram quem tu és, a tua companhia em nada
os pode infamar. Com isso não fazes mal a ninguém; é
uma medida de salvação, que todos te perdoariam.

– Meu pai parece que tem razão; mas não sei por que, repugna?me
absolutamente ao coração dar esse passo.

– Mas é preciso dá?lo, minha filha, se não queres para
nós ambos a desgraça e a morte. Se não formos a esse
baile, e desaparecermos de um dia para outro, como nos é forçoso,
então as suspeitas que começamos a despertar tomarão
muito maior vulto, e a policia pôr?se?á à nossa pista,
e nos perseguirá por toda parte. É um sacrifício na verdade,
mas não será ele muito mais suave do que as perseguições
da polícia, a prisão, as torturas e a morte, que é o
que podes esperar em casa de teu senhor?…

Isaura não respondeu; seu espírito agitava?se entre as mais
pungentes e amargas reflexões.

As palavras de seu pai a tinham abismado em glacial e profundo desalento.
Aturdida por tantos golpes, sua alma debatia?se em um mar de dúvidas
e perplexidades, como frágil barca em meio de um oceano irritado, sacudida
aos boléus por vagalhões desencontrados.

O grito de sua consciência escrupulosa e delicada, a lisura e sinceridade
de seu coração, que não podia acomodar?se com o embuste
e a mentira, e uma espécie de vago pressentimento que lhe pesava sobre
o espírito, a desviavam daquele baile, e por momentos pareciam fixar
definitivamente a sua resolução; e firme neste propósito
dizia consigo mesma: – não, não irei.

Por outro lado as considerações de seu pai, que pareciam tão
razoáveis, bem como o desejo de ver Álvaro ainda uma vez, de
gozar por algumas horas a sua presença, faziam?lhe de novo flutuar
o espírito no mar das irresoluções. A lembrança
de que em breve, talvez no dia seguinte, tinha de deixar aquela terra e separar?se
de Álvaro, sem esperança alguma de jamais tornar a vê?lo,
sem poder dizer?lhe um adeus, sem que ele pudesse saber quem ela era, nem
para onde ia, dilacerava-lhe o coração. Partir sem ter um ente
a quem apertar nos braços na hora da despedida, nem ter um seio onde
verter as lágrimas da mais pungente saudade; partir para levar uma
vida errante e fugitiva, sem esperança nem consolação
alguma, através de mil trabalhos e perigos, para terminá?la
talvez entre os tormentos da mais atroz escravidão, oh!…

isto era pavoroso! – e, entretanto, era esse o único futuro que a
pobre Isaura tinha diante dos olhos. Mas não; tinha ainda diante de
si uma noite inteira de prazer e de ventura, uma noite esplêndida de
baile e regozijo de seu amante, respirando o mesmo ar, inebriando?se de sua
voz, bebendo o seu hálito, recolhendo dentro d’alma seus olhares apaixonados,
sentindo na sua a pressão daquela mão adorada, contando as pulsações
daquele coração, que só por ela palpitava. Oh! uma noite
assim valia bem uma eternidade, viessem depois embora as angústias
e perigos, a escravidão e a morte! Cândida e modesta como era,
nem por isso Isaura deixava de ter consciência do quanto valia. Vendo?se
o objeto do amor de um jovem de espírito elevado, e dotado de tão
nobres e brilhantes qualidades como Álvaro, ainda mais se confirmou
na idéia que de si mesma fazia.

Com sua natural perspicácia e penetração, bem depressa
convenceu?se de que o afeto que o mancebo lhe consagrava não era simples
e superficial homenagem rendida a seus encantos e talentos, nem tampouco passageiro
capricho de mocidade, mas verdadeira paixão, sincera, enérgica
e profunda. Era isso para ela motivo de um orgulho íntimo, que a elevava
a seus próprios olhos, e por momentos a fazia esquecer?se que era uma
escrava.

– Estou convencida de que sou digna do amor de Álvaro, senão,
ele não me amaria; e se sou digna de seu amor, por que não o
serei de me apresentar no seio da mais brilhante sociedade? A perversidade
dos homens pode acaso destruir o que há de bom e de belo na feitura
do Criador? Assim refletia Isaura, e exaltada com estas idéias e com
a sedutora perspectiva de algumas horas de inefável ventura em companhia
do amante exclamava dentro d’alma: – Hei de ir, hei de ir ao baile! Enquanto
Isaura, silenciosa e com a face na mão, se embebia em suas cismas,
procurando firmar?se em uma resolução, o pai, não menos
inquieto e preocupado, passeava distraído entre os canteiros do jardim,
aguardando com ansiedade uma resposta definitiva de sua filha.

– Irei, meu pai, irei ao baile, – disse ela por fim levantando?se, mas vou
preparar?me para ele como a vítima que tem de ser conduzida ao sacrifício
entre cânticos e flores. Tenho um cruel pressentimento, que me acabrunha…

– Pressentimento de quê, Isaura?…

– Não sei, meu pai; de alguma desgraça.

– Pois quanto a mim, Isaura, o coração como que está?me
adivinhando que de ir a esse baile resultará a nossa salvação.

Capitulo 13

Não pense o leitor que já se acha terminado o baile a que
estávamos assistindo. A pequena digressão que por fora dele
fizemos no capitulo antecedente, nos pareceu necessária para explicar
por que conjunto de circunstãncias fatais a nossa heroína, sendo
uma escrava, foi impelida a tomar a audaciosa resolução de apresentar?se
em um esplêndido e aristocrático sarau, – fraqueza de coração,
ou timidez de caráter, que pode ser desculpada, mas não plenamente
justificada em uma pessoa de consciência tão delicada e de tão
esclarecido entendimento.

O baile continua, mas já não tão animado e festivo
como ao princípio.

Os aplausos frenéticos, a admiração geral, de que Isaura
se havia tornado objeto da parte dos cavalheiros, tinham produzido um completo
resfriamento entre as mais belas e espirituosas damas da reunião.

Arrufadas com seus cavalheiros prediletos, em razão das entusiásticas
homenagens, que francamente iam render aos pés daquela que implicitamente
estavam proclamando a rainha do salão, já nem ao menos queriam
dançar, e em vez de tisos folgazões, e de uma conversação
franca e jovial, só se ouviam pelos cantos entre diversos grupos expansões
misteriosamente sussurradas, e cochichos segredados entre amarelas e sarcásticas
risotas.

Propagava?se entre as moças como que um sussurro geral de descontentamento.
Era como esses rumores surdos e profundos, que restrugem ao longe pelo espaço,
precedendo uma grande tempestade.

Dir?se?ia que já estavam adivinhando que aquela mulher, que por seus
encantos e dotes incomparáveis as estava suplantando a todas, não
era mais do que – uma escrava. Muitas mesmo se foram retirando, nomeadamente
aquelas que afagavam alguma esperança, ou se julgavam com algum direito
sobre o coração de Álvaro. Aniquiladas sob o peso dos
esmagadores triunfos de Isaura, não se achando com ânimo de manterem?se
por mais tempo na liça, tomaram o prudente partido de irem esconder
no misterioso recinto das alcovas o despeito e vergonha de tão cruel
e solene derrota.

Não diremos todavia que no meio de tantas e tão nobres damas,
distintas pelos encantos do espírito e do corpo, não houvesse
muitas que, com toda a isenção e sem a menor sombra de inveja,
admirassem a beleza de Isaura, e aplaudissem de coração e com
sincero prazer os seus triunfos, e foram essas que conseguiram ir dando alguma
vida ao sarau, que sem elas teria esmorecido inteiramente. Todavia não
é menos certo que do belo sexo, sem distinção de classes,
ao menos a metade é ludibrio dessas invejas, ciúmes e rivalidades
mesquinhas.

Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro por
seu par. Enquanto dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas
de jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e champanha.
Esta saleta comunica imediatamente com o salão onde se dança,
por uma larga porta aberta. Acham?se ai uma meia dúzia de rapazes,
pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estróinas
e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade,
dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça
de charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa
donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora
da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do
cepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela
saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se acham sempre
no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie, alardeando
o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e frivolidades
da vida.

Entre eles acha?se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um
pouco a atenção, visto que tem de tomar parte um tanto ativa
nos acontecimentos desta história. Este nada tem de esplenético
nem de byroniano; pelo contrário o seu todo respira o mais chato e
ignóbil prosaísmo.

Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena de anos. Tem
cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa
é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias,
o que, na opinião de Lavater, é indicio de espírito lerdo
e acanhado a roçar pela estupidez. O todo da fisionomia tosca e quase
grotesca revela instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza
de caráter. O que, porém, mais o caracteriza é certo
espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que
lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e principalmente no
fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio
de velhacaria. É estudante, mas pelo desalinho do trajo, sem o menor
esmero e nem sombra de elegância, parece mais um vendilhão. Estudava
há quinze anos à sua própria custa, mantendo?se do rendimento
de uma taverna, de que era sócio capitalista. Chama?se Martinho.

– Rapaziada, – disse um dos mancebos, – vamos nós aqui a uma partida
de lansquenê, enquanto esses basbaques ali estão a arrastar os
pés e a fazer mesuras.

– Justo! – exclamou outro, sentando?se a uma mesa e tomando baralhos. –
Já que não temos coisa melhor a fazer, vamos às cartas.

Demais, no baralho é que está a vida. A vista de uma sota
me faz às vezes estremecer o coração em emoções
mais vivas do que as sentiria Romeu a um olhar de Julieta… Afonso, Alberto,
Martinho, andem para cá; vamos ao lansquenê; duas ou três
corridas somente…

– De boa vontade aceitaria o convite, – respondeu Martinho, – se não
andasse ocupado com um outro jogo, que de um momento para outro, e sem nada
arriscar, pode meter?me na algibeira não menos de cinco contos de réis
limpinhos.

– De que diabo de jogo estás aí a falar?… nunca deixarás
de ser maluco?… deixa?te de asneiras, e vamos ao lansquenê.

– Quem tem um jogo seguro como eu tenho, há de ir meter?se nos azares
do lansquenê, que já me tem engolido bem boas patacas?…

Nem tão tolo serei eu.

– Com mil diabos, Martinho!… então não te explicarás?…
que maldito jogo é esse?…

– Ora, adivinhem lá… Não são capazes. uma bisca de
estrondo.

Se adivinharem, dou?lhes uma ceia esplêndida no melhor hotel desta
cidade; bem entendido, se encartar a minha bisca.

– Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalhau ardido,
e porque não é possível haver quem adivinhe as asneiras
que passam lá por esses teus miolos extravagantes. O que queremos é
o teu dinheiro aqui sobre a mesa do lansquenê.

– Ora, deixem?me em paz, – disse Martinho, com os olhos atentamente dirigidas
para o salão de dança. – Estou calculando o meu jogo… suponham
que é o xadrez, e que eu vou dar xeque?mate à rainha… dito
e feito, e os cinco contos são meus…

– Não há dúvida, o rapaz está doido varrido…
Anda lá, Martinho; descobre o teu jogo, ou vai?te embora, e não
nos estejas a maçar a paciência com tuas maluquices.

– Malucos são vocês. O meu jogo é este… mas quanto
me dão para descobri?lo? olhem que é coisa curiosa.

– Queres?nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres,
não é assim?… pois desta vez afianço?te da minha parte,
que não arranjas nada. Vai?te aos diabos com o teu jogo, e deixa?nos
cá com o nosso. As cartas, meus amigos, e deixemos o Martinho com suas
maluquices.

– Com suas velhacarias, dirás tu… não me pilha.

– Ah! toleirões! – exclamou o Martinho, – vocês ainda estão
com os beiços com que mamaram. Andem cá, andem, e verão
se é maluquice, nem velhacaria. Enfim quero mostrar?lhes o meu jogo,
porque desejo ver se a opinião de vocês estará ou não
de acordo com a minha. Eis aqui a minha bisca. – concluiu Martinho mostrando
um papel, que sacou da algibeira; – não é nada mais que um anúncio
de escravo fugido.

– Ah! ah! ah! esta não é má!…

– Que disparate!… decididamente estás louco, meu Martinho.

– A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?…

– Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão?do?mato?
Estas e outras frases escapavam aos mancebos de envolta, em um coro de intermináveis
gargalhadas, que competiam com a orquestra do baile.

– Não sei de que tanto se espantam, – replicou frescamente o Martinho;
– o que admira é que ainda não vissem este grande anúncio
em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuído por toda a
cidade com o jornal do Comércio.

– Porventura somos esbirros ou oficiais de justiça, para nos embaraçarmos
com semelhantes anúncios? – Mas olhem que o negócio é
dos mais curiosos, e as alvíssaras não são para se desprezarem.

– Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância de
ouro, que faz?te andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile!
– pois é aqui que poderás encontrar semelhante gente?…

– Olé… quem sabe?!… tenho cá meus motivos para desconfiar
que por aqui mesmo hei de achá?la, assim como os cinco continhos que,
aqui entre nós, vêm agora mesmo ao pintar, pois que o armazém
de meu sócio bem pouco tem rendido nestes últimos tempos.

Martinho chamava armazém à pequena taverna de que era sócio
Ditas aquelas palavras foi postar?se junto à porta que dava para o
salão e ali ficou por largo tempo a olhar, ora para os que dançavam,
ora para o anúncio, que tinha desdobrado na mão, como quem averigua
e confronta os sinais.

– Que diabo faz ali o Martinho? – exclamou um dos mancebos que entretidos
com as mímicas do Martinho, tomando?as por palhaçadas, tinham?se
esquecido de jogar.

– Está doido, não resta a menor dúvida. – observou
outro. – Procurar escravo fugido em uma sala de baile!… Ora não faltava
mais nada! Se andasse à cata de alguma princesa, decerto a iria procurar
no quilombos.

– Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ai anda.

– Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali dançando,
e ele não tira os olhos dos que dançam.

– Deixá?lo; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre
foi um maníaco de primeira força.

– É ela! – disse o Martinho, deixando a porta, e voltando?se para
seus companheiros; – é ela; já não tenho a menor dúvida;
é ela, e está segura.

– Ela quem, Martinho?…

– Ora! pois quem mais há de ser?…

– A escrava fugida?!…

– A escrava fugida, sim, senhores!… e ela está ali dançando.

– Ah! ah! ah! ora, vamos ver mais esta, Martinho!… até onde queres
levar a tua farsa? deve ser galante o desfecho. Isto é impagável,
e vale mais que quantos bailes há no mundo. – Se todos eles tivessem
um episódio assim, eu não perdia nem um. – Assim clamavam os
moços entre estrondosas gargalhadas.

– Vocês zombam? – olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.

– Melhor! Melhor! – vamos com isso, Martinho! – Não acreditam?…
pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a farsa.

Dizendo isto, Martinho sentou?se em uma cadeira, e desdobrando o anúncio,
pôs?se em atitude de lê?lo. Os outros se agruparam curiosos em
torno dele.

– Escutem bem, – continuou Martinho. – Cinco contos! – eis o título
pomposo, que em eloqüentes e graúdos algarismos se acha no frontispício
desta obra imortal, que vale mais que a Ilíada de Camões…

– E que os Lusíadas de Homero, não é assim, Martinho?
deixa?te de preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.

– Eu já lhes satisfaço, – disse Martinho, e continuou lendo:
Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município
de Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isáura,
cujos sinais são os seguintes: Cor clara e tez delicada como de qualquer
branca; olhos pretos e grandes; cabelos da mesma cor, compridos e ligeiramente
ondeados; boca pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos;
nariz saliente e bem talhado; cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular;
tem na face esquerda um pequeno sinal preto, e acima do seio direito um sinal
de queimadura, mui semelhante a uma asa de borboleta. Traja?se com gosto e
elegância, canta e toca piano com perfeição. Como teve
excelente educação e tem uma boa figura, pode passar em qualquer
parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugiu em companhia de um português,
por nome Miguel, que se diz seu pai. É natural que tenham mudado o
nome. Quem a apreender, e levar ao dito seu senhor, além de se lhe
satisfazerem todas as despesas, receberá a gratificação
de 5:OOO$OOO.

– Deveras, Martinho? – exclamou um dos ouvintes, – está nesse papel
o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Vênus,
e vens dizer?nos que é uma escrava fugida!…

– Se não querem acreditar ainda, leiam com seus próprios olhos:
aqui está o papel…

– Com efeito! acrescentou outro – uma escrava assim vale a pena apreendê?la,
mais pelo que vale em si, do que pelos cinco contos.

Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregá?la ao seu senhor.

– Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma criatura
tão perfeita só se pode encontrar nos palácios dos príncipes.

– Ou no reino das fadas; e pelos sinais e indícios estou vendo que
não pode ser outra senão essa nova divindade que hoje apareceu…

– Sem mais nem menos; deu no vinte, atalhou Martinho, e cha? mando?os para
junto da porta: – Agora venham cá, – continuou, – e reparem naquela
bonita moça, que dança de par com Álvaro. Pobre Álvaro
como está cheio de si! se soubesse com quem dança, caía?lhe
a cara aos pés. Reparem bem, meus senhores, e vejam se não combinam
perfeitamente os sinais?…

– Perfeitamente! – acudiu um dos moços, – é extraordinário!
lá vejo o sinalzinho na face esquerda, e que lhe dá infinita
graça. Se tiver a tal asa de borboleta sobre o seio, não pode
haver mais dúvida. O céus! é possível que uma
moça tão linda seja uma escrava! – E que tenha a audácia
de apresentar?se em um bailes destes? – acrescentou outro. Ainda não
posso capacitar?me.

– Pois cá para mim, – disse o Martinho – o negócio é
liquido, assim como os cinco contos, que me parece estarem já me cantando
na algibeira; e até logo, meus caros.

E dizendo isto dobrou cuidadosamente o anúncio, meteu?o na algi?
beira, e esfregando as mãos com cínico contentamento, tomou
o chapéu, e retirou?se.

– Forte miserável… – disse um dos comparsas – que vil ganância
de ouro a deste Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender
aquela moça aqui mesmo em pleno baile.

– Por cinco contos é capaz de todas as infâmias do mundo. Tão
vil criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos
todos conspirar para expeli?lo da Academia. Cinco contos daria eu para ser
escravo daquela rara formosura.

– É assombroso! Quem diria, que debaixo daquela figura de anjo estaria
oculta uma escrava fugida! – E também quem nos diz que no corpo da
escrava não se acha asilada uma alma de anjo?…

Capitulo 14

Havia terminado a quadrilha. Álvaro ufano, e cheio de júbilo,
conduzia o seu formoso par através da multidão, através
de uma viva fuzilaria de olhares de inveja e de admiração, que
se cruzavam em sua passagem; a pretexto de oferecer?lhe algum refresco, a
foi levando para uma sala dos fundos, que se achava quase deserta. Até
ali ainda ele não havia feito a Elvira uma declaração
de amor em termos positivos, se bem que esse amor se estivesse revelando a
cada instante, e cada vez mais ardente e apaixonado, em seus olhos, em suas
palavras, em todos os seus movimentos e açóes. Alvaro julgava
já ter adquirido completo conhecimento do coração de
sua amada, e nos dois meses durante os quais a havia estudado, não
havia descoberto nela senão novos encantos e perfeições.
Estava plenamente convencido que de todas as formosuras que até ali
tinha conhecido, Elvira era em tudo a mais digna de seu amor, e já
nem por sombras duvidava da pureza de sua alma, da sinceridade do seu afeto.
Pensava portanto que, sem receio algum de comprometer o seu futuro, podia
abandonar o coração ao império daquela paixão,
que já não podia dominar. Quanto à origem e procedência
de Elvira, era coisa de que nem de leve se preocupava, e nunca se lembrou
de indagar. A distinção de classes repugnava a seus princípios
e sentimentos filantrópicos. Fosse ela uma princesa que o destino obrigava
a andar foragida, ou tivesse o berço na palhoça de algum pobre
pescador, isso lhe era indiferente. Conhecia?a em si mesma, sabia que era
uma das criaturas mais perfeitas e adoráveis que se pode encontrar
sobre a Terra, e era quanto lhe bastava.

Observava Alvaro em seus costumes, como já sabemos, a severidade
de um quaker, e seria incapaz de abusar do amor que havia inspirado à
formosa desconhecida, aninhando em seu espírito um pensamento de sedução.

Naquela noite pois o apaixonado mancebo, rendido e deslumbrado mais que
nunca pelos novos encantos e atrativos que Elvira alardeava entre os esplendores
do baile, não pôde e nem quis dilatar por mais tempo a declaração,
que a cada instante lhe ardia nos olhos, e esvoaçava pelos lábios,
e apenas achou?se em lugar onde pudesse não ser ouvido senão
de Elvira: – D. Elvira, – lhe disse com voz grave e comovida, – se a senhora
é um anjo em sua casa, nos salões do baile é uma deusa.
O meu coração há muito já lhe pertence; sinto
que o meu destino de hoje em diante depende só da senhora. Funesta
ou propícia, a senhora será sempre a minha estrela nos caminhos
da vida. Creio que me conhece bastante para acreditar na sinceridade de minhas
palavras. Sou senhor de uma fortuna considerável; tenho posição
honrosa e respeitável na sociedade; mas não poderia jamais ser
feliz, se a senhora não consentir em partilhar comigo esses bens, que
a fortuna prodigalizou?me.

Estas palavras de Álvaro, tão meigas, tão repassadas
do mais sincera e profundo amor, que em outras condições teriam
caído como bálsamo celeste sobre o coração de
Isaura a banhá?lo em inefáveis eflúvios de ventura, eram
agora para ela como um atroz e pungente sarcasmo do destino, um hino do céu
ouvido entre as torturas do inferno.

Via de um lado um anjo, que, tomando?a pela mão com um suave sorriso,
mostrava?lhe um éden de delícias, ao qual se esforçava
por conduzi?la, enquanto de outro lado a hedionda figura de um demônio
atava?lhe ao pé um pesado grilhão, e com todo o seu peso a arrastava
para um gólfão de eternos sofrimentos.

É que a pobre Isaura, cheia de sustos e desconfianças, durante
uma pausa tinha notado os movimentos do infame Martinho, quando encostado
ao umbral da saleta com um papel na mão, parecia examiná?la
com a mais minuciosa atenção. Aquela vista produziu nela o efeito
de um raio; não duvidou mais que estava descoberta, e irremissivelmente
perdida para sempre. Súbita vertigem lhe escureceu os olhos, pareceu?lhe
que o chão lhe faltava debaixo dos pés, e que ia sendo tragada
pelas fauces de um abismo imensurável. Para não cair foi?lhe
preciso agarrar?se fortemente com ambas as mãos ao braço de
Álvaro.

arrimando?se em seu peito.

– Que tem, minha senhora? – perguntara?lhe este, assustado. – Está
incomodada?…

– Algum tanto, – respondeu Elvira com voz desfalecida e arquejante, e reanimando?se
pouco a pouco. – Foi uma dor aguda… uma pontada deste lado… mas vai passando…
não estou acostumada com este aperto… o remoinhar da dança
me fez mal.

– Mas há de acostumar?se em pouco tempo – replicou?lhe Álvaro,
segurando?lhe uma das mãos e sustendo?a com um braço pela cintura.
– A senhora nasceu para brilhar nos salões… mas, se quer retirar?se…

– Não, senhor; continuemos; já agora estamos na final…

Com estas respostas evasivas Álvaro tranqüilizou?se, e em razão
dos movimentos rápidos da quadrilha na marca final, que imediatamente
seguiu?se, não pôde notar a extrema palidez e profundo transtorno
das feições de Elvira. A infeliz já não dançava,
arrastava?se automaticamente pela sala; seu espírito não estava
ali, não ouvia nem via outra coisa senão a figura repugnante
do Martinho, postada como esfinge ameaçadora junto à porta da
saleta, para a qual ela volvia de quando em quando olhos cheios de ansiedade
e pavor.

E o sangue todo lhe refluía ao coração, que lhe tremia
como o da pomba que sente estendida sobre o colo a garra desapiedada do gavião.

Em tal estado de susto e perturbação, Isaura não atinava
com o que devia responder àquela tão sincera e apaixonada declaração
do mancebo. Guardou silêncio por alguns instantes, o que Álvaro
interpretou por timidez ou emoção.

– Não me quer responder? – continuou com voz meiga, – uma só
palavra é bastante…

– Ah! senhor, – murmurou ela suspirando, o que posso eu responder às
doces palavras que acabo de ouvir de sua boca? Elas me encantam, mas…

Elvira interrompeu?se bruscamente; um súbito estremecimento agitando
o braço de Álvaro o fez olhar para ela com sobressalto e inquietação.

– É ele!… – este som sussurrou?lhe pelos lábios como um
gemido rouco e convulsivo; acabava de avistar Martinho, entrando na sala em
que se achavam, e sentiu mortal calafrio percorrer?lhe todo o como.

– Desculpe?me, senhor – continuou ela – não é possível
por hoje ouvir suas doces palavras; sinto?me mal; preciso retirar?me. Se o
senhor tivesse a bondade de levar?me onde está meu pai…

– Por que não, D. Elvira?… mas oh!… como está pálida!…
está sofrendo muito, não é assim?… quer que eu a acompanhe?…
que lhe chame um médico?… aqui mesmo os há…

– Obrigada, senhor Álvaro; não se inquiete; isto é
um mal passageiro, cansaço talvez; em chegando a casa ficarei boa.

– E quer então retirar?se sem me deixar uma só palavra de
consolação e de esperança?…

– De consolação talvez, mas de esperança…

– Por que não? – Se nem eu mesma posso tê?la…

– Então não me ama…

– Amo?o muito.

– Então será minha…

– Isso é impossível…

– Impossível!… que obstáculo pode haver?…

– Não sei dizer?lhe, senhor; minha desgraça.

Esta amorosa confidência no momento em que se achava no ponto mais
interessante, foi bruscamente interrompida pela presença de Martinho,
que se lhes atravessou pela frente, fazendo uma profunda reverência.
Álvaro indignado carregou o sobrolho, e esteve a ponto de enxotar o
importuno, como quem enxota um cão. Elvira estacou como que petrificada
de pavor.

– Senhor Álvaro, disse?lhe respeitosamente o Martinho, – com a permissão
de V. Sa preciso dizer duas palavras a esta senhora, a quem V. S.a dá
o braço.

– A esta senhora! – exclamou maravilhado o cavalheiro. – Que tem o senhor
que ver com esta senhora? – Negócio de suma importância; ela
bem o sabe, melhor do que eu e o senhor.

Álvaro, que bem conhecia o Martinho, e sabia quanto era abjeto e
desprezível, julgando ser aquilo manobra de algum rival invejoso, e
covarde, que se servia daquele miserável para ultrajá?lo ou
expô?lo ao ridículo, teve um assomo de indignação,
mas contendo?se por um momento: – Tem a senhora algum negócio com este
homem? – perguntou a Elvira.

– Eu?!… nenhum, por certo; nem mesmo o conheço, – balbuciou a moça,
pálida e a tremer.

– Mas, meu Deus! D. Elvira, por que treme assim? como está pálida!..,
maldito importuno, que assim a faz sofrer!… oh! pelo céu, D.

Elvira, não se assuste assim. Aqui estou eu a seu lado, e ai daquele
que ousar ultrajar?nos! – Ninguém quer ultrajá?los, senhor Álvaro
– replicou o Martinho; mas o negócio é mais sério do
que o senhor pensa.

– Enfim, senhor Martinho, deixe?se de rodeios e diga?nos aqui mesmo o que
quer com esta senhora.

– Posso dizê?lo; mas seria melhor que V. S.a o ignorasse.

– Oh! temos mistério!… pois nesse caso declaro?lhe que não
abandonarei esta senhora um só instante, e se o senhor não quer
dizer ao que veio, pode retirar?se.

– Nessa não caio eu, que não hei de perder o meu tempo, e
o meu trabalho, e nem os meus cinco contos. – Estas últimas palavras
resmungou?as ele entre os dentes.

– Senhor Martinho, por favor queira não abusar mais da minha paciência.
Se não quer dizer ao que veio, ponha?se já longe da minha presença…

– Oh! senhor! retorquiu Martinho, sem se perturbar; – já que a isso
me força, pouco me custa fazer?lhe a vontade, e com bastante pesar
tenho de declarar?lhe, que essa senhora a quem dá o braço, é
uma escrava fugida!…

Álvaro, se bem que conhecesse a vilania e impudência do caráter
de Martinho, no primeiro momento ficou pasmo ao ouvir aquela súbita
e imprevista delação. Não podia dar?lhe crédito,
e refletindo um instante confirmou?se mais na idéia de que tudo aquilo
não passava de uma farsa posta em jogo por algum indigno rival, com
o fim de desgostá?lo ou insultá?lo. A pessoa do Martinho, que
não poucas vezes, na qualidade de truão ou palhaço, servia
de instrumento às vinganças e paixões mesquinhas de entes
tão ignóbeis como ele, servia para justificar a desconfiança
de Álvaro, que acabou por não sentir senão asco e indignação
por tão infame procedimento.

– Senhor Martinho, – bradou ele com voz severa, – se alguém pagou?lhe
para vir achincalhar?me a mim e a esta senhora, diga quanto ganha, que estou
pronto a dar?lhe o dobro para nos deixar em paz.

A esta sanguinolenta afronta, a larga e impudente cara do Martinho nem de
leve se alterou, e por única resposta: – Torno a repetir, – bradou
com todo o descaramento, – e em voz bem alta, para que todos ouçam:
esta senhora que aqui se acha, é uma escrava fugida, e eu estou encarregado
de apreendê?la e entregá?la a seu senhor.

Entretanto Isaura, avistando seu pai, que também a procurava por
toda a parte com os olhos, largando o braço de Álvaro correu
a ele, lançou?se?lhe nos braços, e escondendo o rosto em seu
ombro: – Que opróbrio, meu pai! – exclamou com voz sumida e a soluçar.

– Eu bem estava pressentindo!…

– Este homem, se não é um insolente, ou está louco
ou bêbado, – bradava Álvaro pálido de cólera. –
Em todo o caso deve ser enxotado como indigno desta sociedade.

Já alguns amigos de Álvaro agarrando o Martinho pelo braço,
se dispunham a pó?lo pela porta a fora, como a um ébrio ou alienado.

Devagar, meus amigos, devagar!.., disse?lhes ele com toda a calma. – Não
me condenem sem primeiro ouvirem?me. Escutem primeiro este anúncio
que lhes vou ler, e se não for verdade o que eu digo, dou?lhes licença
para me cuspirem na cara, e me atirarem da janela abaixo.

Entretanto, esta pequena altercação começava a atrair
a atenção geral, e numerosos grupos movidos de curiosidade se
apinhavam em torno dos contendores. A frase fatal – esta senhora é
uma escrava! – proferida em voz alta por Martinho, transmitida de grupo em
grupo, de ouvido em ouvido, já havia circulado com incrível
celeridade por todas as salas e recantos do espaçoso edifício.
Um sussurro geral se propagara por todo ele, e damas e cavalheiros, e tudo
o que ali se achava, inclusive músicos, porteiros e fâmulos,
atropelando?se uns aos outros, arrojavam?se afanosos para a sala, onde se
dava o singular incidente que estamos relatando.

A sala estava literalmente apinhada de gente, que afiava o ouvido e alongava
o pescoço o mais que podia para ver e ouvir o que se passava.

Foi no meio desta multidão silenciosa, imóvel, estupefata
e anelante, que Martinho, sacando tranqüilamente da algibeira o anúncio,
que nós já conhecemos, desdobrou?o ante seus olhos, e em voz
bem alta e sonora o leu de principio a fim.

– Bem se vê, – continuou ele concluída a leitura, – que os
sinais combinam perfeitamente, e só um cego não verá
naquela senhora a escrava do anúncio. Mas para tirar toda a dúvida,
só resta examinar se ela tem o tal sinal de queimadura acima do seio,
e é coisa que desde já se pode averiguar com licença
da senhora.

Dizendo isto, Martinho com impudente desembaraço se encaminhava para
Isaura.

– Alto lá, vil esbirro!… bradou Álvaro com for&cceccedil;a,
e agarrando o Martinho pelo braço, o arrojou para longe de Isaura,
e o teria lançado em terra, se ele não fosse esbarrar de encontro
ao grupo, que cada vez mais se apertava em torno deles. – Alto lá!
nem tanto desembaraço! escrava, ou não, tu não lhe deitarás
as mãos imundas.

Aniquilada de dor e de vergonha, Isaura erguendo enfim o rosto, que até
ali tivera sempre debruçado e escondido sobre o seio de seu pai, voltou?se
para os circunstantes, e ajuntando as mãos convulsas no gesto da mais
violenta agitação: – Não é preciso que me toquem,
– exclamou com voz angustiada.

– Meus senhores, e senhoras, perdão! cometi uma infâmia, uma
indignidade imperdoável!… mas Deus me é testemunha, que uma
cruel fatalidade a isso me levou. Senhores, o que esse homem diz, é
verdade. Eu sou… uma escrava!…

O rosto da cativa cobriu?se de lividez cadavérica, como lírio
ceifado pendeu?lhe a fronte sobre o seio, e o donoso corpo desabou como bela
estátua de mármore, que o furacão arranca do pedestal,
e teria rojado pela terra, se os braços de Álvaro e de Miguel
não tivessem prontamente acudido para amparar?lhe a queda.

Uma escrava!… estas palavras, soluçadas no peito de Isaura como
o estertor do arranco extremo, murmuradas de boca em boca pela multidão
estupefata, ecoaram largo tempo pelos vastos salões, como o rugir sinistro
das lufadas da noite pela grenha de fúnebre arvoredo.

Este estranho incidente produziu no sarau o mesmo efeito que faria em um
acampamento a explosão de um paiol de pólvora; nos primeiros
momentos, susto, pasmo e uma espécie de estertor de angústia;
depois, agitação, alarma, movimento e alarido.

Álvaro e Miguel conduziram Isaura desfalecida ao boudoir das damas,
e aí, ajudados por algumas senhoras compassivas, prestaram?lhe os socorros
que o caso reclamava, e não a abandonaram enquanto não recobrou
completamente os sentidos. Martinho, inquieto e ressabiado, os seguia e espiava
o mais de perto que lhe era possível, com receio de que lhe roubassem
a presa.

É impossível descrever a celeuma que se levantou, a agitação
que sublevou todos os espíritos, e as diversas e opostas impressões
que produziu nos ânimos aquela inesperada revelação. Com
que cara ficariam tantas belezas de primeira ordem, tantas damas das mais
distintas jerarquias sociais, ao saberem que aquela que as havia suplantado
a todas, em formosura, donaire, talentos e graças do espírito,
não era mais que uma escrava! eu mesmo não sei dizer; os leitores
que façam idéia.

Entretanto em muitas delas o cruel desapontamento por que acabavam de passar
não deixava de ser mesclado de um certo contentamento íntimo,
mormente naquelas que se sentiam enfadadas pelas deferências e homenagens
que certos cavalheiros, tomados de entusiasmo, haviam francamente rendido
à gentil desconhecida. Estavam humilhadas, mas também vingadas.
Quanto ás que tinham esperanças ou pretensões ao amor
de Alvaro, – e não eram poucas, – essas exultaram de júbilo
ao saberem do caso, e o nobre mancebo tornou?se o alvo de mil desapiedados
apodos e pilhérias.

– O que me diz do escravo da escrava? – diziam elas – com que cara não
ficaria o pobre homem!…

– Com a mesma. Decerto vai forrá?la e casar?se com ela. Aquilo é
um maluco capaz de todas as asneiras.

– E que mau! Terá ao mesmo tempo mulher e talvez uma boa cozinheira.

Triste consolação! o estigma do cativeiro não podia
apagar da bela fronte de Isaura, antes mais realçava o cunho de superioridade
que o sopro divino nela havia gravado em caracteres indeléveis.

Entre os mancebos a impressão era bem diferente. Poucos, bem poucos,
deixavam de tomar vivo interesse e compaixão pela sorte da infeliz
e formosa escrava. Por todos os cantos falava?se e discutia?se com calor a
respeito do caso. Alguns, a despeito da evidência dos indícios
e da confissão de Isaura, ainda duvidavam da verdade que tinham diante
dos olhos.

– Não; aquela mulher não pode ser uma escrava, – diziam eles,
– aqui há algum mistério, que algum dia se desvendará.

– Qual mistério? o caso é muito factível, e ela mesma
o confessou.

Mas quem será esse bruto e desalmado fazendeiro, que conserva no
cativeiro uma tão linda criatura? – Deve ser algum lorpa de alma bem
estúpida e sórdida.

– Se não for algum sultãozinho de bom gosto, que a quer para
o seu serralho.

– Seja como for, esse bruto deve ser constrangido a dar?lhe a liberdade.
Na senzala uma mulher que merecia sentar?se num trono!…

– Também só o infame do Martinho, com o seu satânico
instinto de cobiça, poderia farejar uma escrava na pessoa daquele anjo!
que impudência! se o visse agora aqui, era capaz de estrangulá?lo!
Entretanto, Martinho, que se havia previamente munido de um mandado de apreensão,
e se fazia acompanhar de um oficial de justiça, exigia terminantemente
que se lhe fizesse entrega de Isaura. Álvaro, porém, interpondo
o valimento e prestígio de que gozava, opôs?se decididamente
a essa exigência, e tomando por testemunhas as pessoas que ali se achavam,
constituiu?se fiador da escrava, comprometendo?se a entregá?la a seu
senhor, ou a quem por ordem dele a reclamasse. Em vão Martinho quis
insistir; uma multidão de vozes, que o apupavam e cobriam de injúrias,
forçaram?no a calar?se e desistir de sua pretensão.

– Ah! malditos! querem?me roubar! – bradava Martinho como um possesso. –
Meus cinco contos! ai! meus cinco contos! lá se vão pela água
abaixo.

E dizendo isto procurou a escada, e saltando?a aos dois e três degraus,
lá se foi bramindo pela porta a fora.

Capítulo 15

Já é passado cerca de um mês depois dos acontecimentos
que acabamos de narrar. Isaura e Miguel, graças à valiosa intervenção
de Álvaro, continuam a habitar a mesma pequena chácara no bairro
de Santo Antônio. Já não lhes sendo mais possível
pensar em fugir para mais longe nem ocultarem?se, ali se conservam por conselho
de seu protetor, esperando o resultado dos passos que este se comprometera
a dar em favor deles, porém sempre na mais angustiosa inquietação,
como Dâmocles tendo sobre a cabeça aguda espada suspensa por
um fio.

Álvaro vai quase todos os dias à casa dos dois foragidos,
e ali passa longas horas entretendo?os sobre os meios de conseguir a liberdade
de sua protegida, e procurando confortá?los na esperança de
melhor destino.

Para nos inteirarmos do que tem ocorrido desde a fatal noite do baile, ouçamos
a conversação que teve lugar em casa de Isaura, entre Álvaro
e o seu amigo Dr. Geraldo.

Este, na mesma manhã que seguiu?se á noite do baile, deixara
o Recife e partira para uma vila do interior, onde tinha sido chamado a fim
de encarregar?se de uma causa importante. De volta à capital no fim
de um mês, um de seus primeiros cuidados foi procurar Álvaro,
não só pelo impulso da amizade, como também estimulado
pela curiosidade de saber do desenlace que tivera a singular aventura do baile.
Não o tendo achado em casa por duas ou três vezes que aí
o procurou, presumiu que o meio mais provável de encontrá?lo
seria procurá?lo em casa de Isaura, caso ela ainda se achasse no Recife
residindo na mesma chácara; não se iludiu.

Álvaro, tendo reconhecido a voz de seu amigo, que da porta do jardim
perguntava por ele, saiu ao seu encontro; mas antes disso, tendo assegurado
aos donos da casa que a pessoa que o procurava era um amigo íntimo,
em quem depositava toda confiança, pediu?lhes licença para o
fazer entrar.

Geraldo foi introduzido em uma pequena sala da frente. Posto que pouco espaçosa
e mobiliada com a maior simplicidade, era esta salinha tão fresca,
sombria e perfumada, tão cheia de flores desde a porta da entrada,
a qual bem como as janelas estava toda entrelaçada de ramos e festões
de flores, que mais parecia um caramanchão ou gruta de verdura, do
que mesmo uma sala. Quase toda a luz lhe vinha pelos fundos através
de uma larga porta dando para uma varanda aberta, que olhava para o mar. Dali
a vista, enfiando?se por entre troncos de coqueiros, que derramavam sombra
e fresquidão em tomo da casa, deslizava pela superfície do oceano,
e ia embeber?se na profundidade de um céu límpido e cheio de
fulgores.

Miguel e Isaura depois de terem cumprimentado o visitante e trocado com
ele algumas palavras de mera civilidade, presumindo que queriam estar sós,
retiraram?se discretamente para o interior da casa.

– Na verdade, Álvaro, – disse o doutor sorrindo?se, – é uma
deliciosa morada esta, e não admira que gostes de passar aqui grande
parte do teu tempo. Parece mesmo a gruta misteriosa de uma fada. É
pena que um maldito nigromante quebrasse de repente o encanto de tua fada,
transformando?a em uma simples escrava! – Ah! não gracejes, meu doutor;
aquela cena extraordinária produziu em meu espírito a mais estranha
e dolorosa impressão: porém, francamente te confesso, não
mudou senão por instantes a natureza de meus sentimentos para com essa
mulher.

– Que me dizes?… a tal ponto chegará a tua excentricidade?!..

– Que queres? a natureza assim me fez. Nos primeiros momentos a vergonha
e mesmo uma espécie de raiva me cegaram; vi quase com prazer o transe
cruel por que ela passou. Que triste e pungente decepção! Vi
em um momento desmoronar?se e desfazer?se em lama o brilhante castelo que
minha imaginação com tanto amor tinha erigido!… uma escrava
iludir?me por tanto tempo, e por fim ludibriar?me, expondo?me em face da sociedade
à mais humilhante irrisão! faze idéia de quanto eu ficaria
confuso e corrido diante daquelas ilustres damas, com as quais tinha feito
ombrear uma escrava em pleno baile, perante a mais distinta e brilhante sociedade!…

– E o que mais é, – acrescentou Geraldo, – uma escrava que as ofuscava
a todas por sua rara formosura e brilhantes talentos. Nem de propósito
poderias preparar?lhes mais tremenda humilhação, um crime, que
nunca te perdoarão, posto que saibam que também andavas iludido.

– Pois bem, Geraldo; eu, que naquela ocasião, desairado e confuso,
não sabia onde esconder a cara, hoje rio e me aplaudo por ter dado
ocasião a semelhante aventura. Parece que Deus de propósito
tinha preparado aquela interessante cena, para mostrar de um modo palpitante
quanto é vã e ridícula toda a distinção
que provém do nascimento e da riqueza, e para humilhar até o
pó da terra o orgulho e fatuidade dos grandes, e exaltar e enobrecer
os humildes de nascimento, mostrando que uma escrava pode valer mais que uma
duquesa.

Pouco durou aquela primeira e desagradável impressão. Bem
depressa a compaixão, a curiosidade, o interesse, que inspira o infortúnio
em uma pessoa daquela ordem, e talvez também o amor, que nem com aquele
estrondoso escândalo pudera extinguir?se em meu coração,
fizeram?me esquecer tudo, e resolvi?me a proteger francamente e a todo o transe
a formosa cativa. Apenas consegui que Isaura recobrasse os sentidos, e a vi
fora de perigo, corri à casa do chefe de polícia, e expondo-lhe
o caso, graças às relações de amizade, que com
ele tenho, obtive permissão para que Isaura e seu pai, – fica sabendo
que é realmente seu pai, – pudessem recolher?se livremente à
sua casa, ficando eu por garantia de que não desapareceriam; e assim
se efetuou, a despeito dos bramidos do Martinho, que teimava em não
querer largar a presa. Todavia, no dia seguinte pela manhã, o mesmo
chefe, pesando a gravidade e importância do negócio, quis que
ela fosse conduzida à sua presença para interrogá?la
e verificar a identidade de pessoa.

Encarreguei?me de conduzi?la. Oh! se a visses então!… Através
das lágrimas, que lhe arrancava sua cruel situação, transparecia,
em todo o seu brilho, a dignidade humana. Nada havia nela que denunciasse
a abjeção do escravo, ou que não revelasse a candura
e nobreza de sua alma. Era o anjo da dor exilado do céu e arrastado
perante os tribunais humanos.

Cheguei a duvidar ainda da cruel realidade. O chefe de polícia, possuído
de respeito e admiração diante de tão gentil e nobre
figura, tratou?a com toda a amabilidade, e interrogou?a com brandura e polidez.
Coberta de rubor e pejo confessou tudo com a ingenuidade de uma alma pura.
Fugira em companhia de seu pai, para escapar ao amor de um senhor devasso,
libidinoso e cruel, que a poder de violências e tormentos tentava forçá?la
a satisfazer seus brutais desejos. Mas Isaura, a quem uma natureza privilegiada
secundada pela mais fina e esmerada educação, inspirara desde
a infância o sentimento da dignidade e do pudor, repeliu com energia
heróica todas as seduções e ameaças de seu indigno
senhor. Enfim, ameaçada dos mais aviltantes e bárbaros tratamentos,
que já começavam a traduzir?se em vias de fato, tomou o partido
extremo de fugir, o único que lhe restava.

– O motivo da fuga, Álvaro, a ser verdadeiro, é o mais honroso
possível para ela, e a toma uma heroína; mas… enfim de contas
ela não deixa de ser uma escrava fugida.

– E por isso mesmo mais digna de interesse e compaixão. Isaura tem?me
contado toda a sua vida, e segundo creio, pode alegar, e talvez provar direito
à liberdade. Sua senhora velha, mãe do atual senhor, a qual
criou?a com todo o mimo, e a quem ela deve a excelente educação
que tem, tinha declarado por vezes diante de testemunhas, que por sua morte
a deixaria livre; a morte súbita e inesperada desta senhora, que faleceu
sem testamento, é a causa de Isaura achar?se ainda entre as garras
do mais devasso e infame dos senhores.

– E agora, o que pretendes fazer?…

– Pretendo requerer que Isaura seja mantida em liberdade, e que lhe seja
nomeado um curador a fim de tratar do seu direito.

– E onde esperas encontrar provas ou documentos para provar as alegações
que fazes? – Não sei, Geraldo; desejava consultar?te, e esperava?te
com impaciência precisamente para esse fim. Quero que com a tua ciência
jurídica me esclareças e inspires neste negócio. Já
lancei mão do primeiro e mais óbvio expediente que se me oferecia,
e logo no dia seguinte ao do baile escrevi ao senhor de Isaura com as palavras
as mais comedidas e suasivas, de que pude usar, convidando?o a abrir preço
para a liberdade dela. Foi pior; o libidinoso e ciumento Rajá enfureceu?se
e mandou?me em resposta esta carta insolente, que acabo de receber, em que
me trata de sedutor e acoutador de escravas alheias, e protesta lançar
mão dos meios legais para que lhe seja entregue a escrava.

– É bem parvo e descortês o tal sultanete, – disse Geraldo
depois de ter percorrido rapidamente a carta, que Álvaro lhe apresentou;
– mas o certo é que, pondo de parte a insolência…

– Pela qual há de me dar completa e solene satisfação,
eu o protesto.

– Pondo de parte a insolência, se nada tens de valioso a apresentar
em favor da liberdade da tua protegida, ele tem o incontestável direito
de reclamar e apreender a sua escrava onde quer que se ache.

– Infame e cruel direito é esse, meu caro Geraldo. É já
um escárnio dar?se o nome de direito a uma instituição
bárbara, contra a qual protestam altamente a civilização,
a moral e a religião. Porém, tolerar a sociedade que um senhor
tirano e brutal, levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o direito
de torturar uma frágil e inocente criatura, só porque teve a
desdita de nascer escrava, é o requinte da celeradez e da abominação.

– Não é tanto assim, meu caro Álvaro; esses excessos
e abusos devem ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o
poder público devassar o interior do lar doméstico, e ingerir?se
no governo da casa do cidadão? que abomináveis e hediondos mistérios,
a que a escravidão dá lugar, não se passam por esses
engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça,
mas nem mesmo os vizinhos, deles tenham conhecimento?…

Enquanto houver escravidão, hão de se dar esses exemplos.
Uma instituição má produz uma infinidade de abusos, que
só poderão ser extintos cortando?se o mal pela raiz.

– É desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona desumanamente
essas vítimas ao furor de seus algozes, ainda há no mundo almas
generosas que se incumbem de protegê?las ou vingá?las. Quanto
a mim protesto, Geraldo, enquanto no meu peito pulsar um coração,
hei de disputar Isaura à escravidão com todas as minhas forças,
e espero que Deus me favorecerá em tão justa e santa causa.

– Pelo que vejo, meu Álvaro, não procedes assim só
por espírito de filantropia, e ainda amas muito a essa escrava.

– Tu o disseste, Geraldo; amo?a muito, e hei de amá?la sempre e nem
disso faço mistério algum. E será coisa estranha ou vergonhosa
amar?se uma escrava? O patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e por
ela abandonou Sara, sua mulher. A humildade de sua condição
não pode despojar Isaura da cândida e brilhante auréola
de que a via e até hoje a vejo circundada. A beleza e a inocência
são astros que mais refulgem quando engolfados na profunda escuridão
do infortúnio.

– É bela a tua filosofia, e digna de teu nobre coração;
mas que queres? as leis civis, as convenções sociais, são
obras do homem, imperfeitas, injustas, e muitas vezes cruéis. O anjo
padece e geme sob o jugo da escravidão, e o demônio exalça?se
ao fastígio da fortuna e do poder.

– E assim pois, – refletiu Álvaro com desânimo, – nessas desastradas
leis nenhum meio encontras de disputar ao algoz essa inocente vítima?
– Nenhum, Álvaro, enquanto nenhuma prova puderes aduzir em prol do
direito de tua protegida. A lei no escravo só vê a propriedade,
e quase que prescinde nele inteiramente da natureza humana. O senhor tem direito
absoluto de propriedade sobre o escravo, e só pode perdê?lo manumitindo?o
ou alheando?o por qualquer maneira, ou por litígio provando?se liberdade,
mas não por sevícias que cometa ou outro qualquer motivo análogo.

– Miserável e estúpida papelada que são essas vossas
leis. Para ilaquear a boa?fé, proteger a fraude, iludir a ignorância,
defraudar o pobre e favorecer a usura e rapacidade dos ricos, são elas
fecundas em recursos e estratagemas de toda a espécie. Mas quando se
tem em vista um fim humanitário, quando se trata de proteger a inocência
desvalida contra a prepotência, de amparar o infortúnio contra
uma injusta perseguição, então ou são mudas, ou
são cruéis. Mas não obstante elas, hei de empregar todos
os esforços ao meu alcance para libertar a infeliz do afrontoso jugo
que a oprime. Para tal empresa alenta?me não já somente um impulso
de generosidade, como também o mais puro e ardente amor, sem pejo o
confesso.

O amigo de Álvaro arrepiou?se com esta deliberação
tão franca e entusiasticamente proclamada com essa linguagem tão
exaltada, que lhe pareceu um deplorável desvario da imaginação.

– Nunca pensei, replicou com gravidade, – que a tal ponto chegasse a exaltação
desse teu excêntrico e malfadado amor. Que por um impulso de humanidade
procures proteger uma escrava desvalida, nada mais digno e mais natural. O
mais não passa de delírio de uma imaginação exaltada
e romanesca. Será airoso e digno da posição que ocupas
na sociedade, deixares?te dominar de uma paixão violenta por uma escrava?
– Escrava! – exclamou Álvaro cada vez mais exaltado, – isso não
passa de um nome vão, que nada exprime, ou exprime uma mentira. Pureza
de anjo, formosura de fada, eis a realidade! Pode um homem ou a sociedade
inteira contrariar as vistas do Criador, e transformar em uma vil escrava
o anjo que sobre a Terra caiu das mãos de Deus?…

– Mas por uma triste fatalidade o anjo caiu do céu no lodaçal
da escravidão, e ninguém aos olhos do mundo o poderá
purificar dessa nódoa, que lhe mancha as asas. Álvaro, a vida
social está toda juncada de forcas caudinas, por debaixo das quais
nos é forçoso curvar?nos, sob pena de abalroarmos a fronte em
algum obstáculo, que nos faça cair. Quem não respeita
as conveniências e até os preconceitos sociais, arrisca?se a
cair no descrédito ou no ridículo.

– A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma
úlcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege.
Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito
por um preconceito absurdo, resultante de um abuso que nos desonra aos olhos
do mundo civilizado. Seja eu embora o primeiro a dar esse nobre exemplo, que
talvez será imitado. Sirva ele ao menos de um protesto enérgico
e solene contra uma bárbara e vergonhosa instituição.

– És rico, Álvaro, e a riqueza te dá bastante independência
para poderes satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos
de tua imaginação romanesca. Mas tua riqueza, por maior que
seja, nunca poderia reformar os prejuízos do mundo, nem fazer com que
essa escrava, a quem segundo todas as aparências quererias ligar o teu
destino, fosse considerada, e nem mesmo admitida nos círculos da alta
sociedade…

– E que me importam os círculos da alta sociedade, uma vez que sejamos
bem acolhidos no meio das pessoas de bom senso, e coração bem
formado? Demais, enganas?te completamente, meu Geraldo. O mundo corteja sempre
o dinheiro, onde quer que ele se ache. O ouro tem um brilho que deslumbra,
e apaga completamente essas pretendidas nódoas de nascimento. Não
nos faltarão, nunca, eu te afianço, o respeito, nem a consideração
social, enquanto nos não faltar o dinheiro.

– Mas, Álvaro, esqueces?te de uma coisa muito essencial; e se te
não for possível obter a liberdade de tua protegida?…

A esta pergunta Álvaro empalideceu, e oprimido pela idéia
de tão cruel como possível alternativa, sem responder ? palavra
olhava tristemente para o horizonte, quando o boleeiro de Álvaro, que
se achava postado com sua caleça junto à porta do jardim, veio
anunciar?lhe que algumas pessoas o procuravam e desejavam falar?lhe, ou ao
dono da casa.

– A mim! – resmungou Álvaro; porventura estou eu em minha casa?…
mas como também procuram o dono desta… faça?os entrar.

– Álvaro, disse Geraldo espreitando por uma janela, – se me não
engano, é gente da polícia; parece?me que lá vejo um
oficial de justiça.

Teremos outra cena igual à do baile?…

– Impossível!.., com que direito virão tocar?me no depósito
sagrado, que a mesma polícia me confiou!…

– Não te fies nisso. A justiça é uma deusa muito volúvel
e fértil em patranhas. Hoje desmanchará o que fez ontem.

Capítulo 16

O primeiro cuidado de Martinho logo ao sair do baile, em que viu malograda
a sua tentativa de apreender Isaura, foi escrever ao senhor dela uma longa
e minuciosa carta, comunicando?lhe que tinha tido a fortuna de descobrir a
escrava que tanto procurava.

Contava por miúdo as diligências que fizera para esse fim,
até descobri?la em um baile público e encarecia o seu próprio
mérito e perspicácia para esbirro, dizendo que a não
ser ele, ninguém seria capaz de farejar uma escrava na pessoa de uma
moça tão bonita e tão prendada.

Alterando os fatos e as circunstâncias do modo o mais atroz e calunioso,
dizia?lhe em frases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife com
Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder de armar
laços à rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido
apanhar um patinho bem gordo e fácil de depenar. Era este um pernambucano
por nome Álvaro, moço duas vezes milionário, e mil vezes
desmiolado, que tinha por ela uma paixão louca. Este moço, a
quem ela trazia iludido e engodado ao ponto de ele querer desposá?la,
caiu na tolice de levá?la a um baile, onde ele Martinho teve a fortuna
de descobri?la, e a teria apreendido, e estaria ela já de marcha para
o poder de seu senhor, se não fosse a oposição do tal
senhor Álvaro, que apesar de ficar sabendo de que ralé era a
sua heroína, teve a pouca?vergonha de protegê?la escandalosamente.
Prevalecendo?se das valiosas relações, e da influência
de que gozava no país em razão de sua riqueza, conseguiu impedir
a sua apreensão, e tornando?se fiador dela a conservava em seu poder
contra toda a razão e justiça, protestando não entregá?la
senão ao seu próprio senhor. Julga que a intenção
de Álvaro é tentar meios de libertá?la, a fim de fazê?la
sua mulher ou sua amásia. Julgava de seu dever comunicar?lhe tudo isso
para seu governo.

Era este em suma o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguiu para
o Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Álvaro, fazendo
proposições para a liberdade de Isaura. Leôncio, contente
com a descoberta, mas cheio de ciúme e inquietação em
vista das informações de Martinho, apressou?se em responder
a ambos, e o mesmo paquete que trouxe a resposta insolente e insultuosa que
dirigiu a Álvaro, foi portador da que se destinava a Martinho, na qual
o autorizava a apreender a escrava em qualquer parte que a encontrasse, e
para maior segurança remetia?lhe também procuração
especial para esse fim, e mais algumas cartas de recomendação
de pessoas importantes para o chefe de policia, para que o auxiliasse naquela
diligência.

Martinho mais que depressa dirigiu?se à casa da polícia, e
apresentando ao chefe todos esses papéis, requereu?lhe que mandasse
entregar?lhe a escrava.

O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido, entendeu
que não lhe era possível denegar?lhe o que pedia, e expediu
ordem por escrito, para que lhe fosse entregue a escrava em questão.
e deu?lhe um oficial de justiça e dois guardas para efetuarem a diligência.

Foi, portanto, o Martinho, que, munido de todos os poderes, competentemente
autorizado pela polícia, apresentou?se com sua escolta à porta
da casa de Isaura, para arrebatar a Alvaro a cobiçada presa.

– Ainda este infame! – murmurou Álvaro entre os dentes ao ver entrar
o Martinho. – Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado mancebo
arrancara do íntimo da alma.

– Que deseja de mim o senhor? – perguntou Álvaro em tom seco e altivo.

– V. S.ª que bem me conhece, – respondeu Martinho, – já pode
presumir pouco mais ou menos o motivo que aqui me traz.

– Nem por sombras posso adivinhá?lo, antes me causa estranheza esse
aparato policial, de que vem acompanhado.

– Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava
fugida, por nome Isaura, que há muito tempo foi por mim apreendida
no meio de um baile, no qual se achava V. S.ª e devendo eu enviá?la
a seu senhor no Rio de Janeiro, V. S.ª a isso se opôs sem motivo
algum justificável, conservando?a até hoje em seu poder contra
todo o direito.

– Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa
competente para dar ou tirar direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe
que eu sou depositário dessa escrava, e que com todo o direito e consentimento
da autoridade a tenho debaixo de minha proteção.

– Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma arbitrariedade,
cessou, desde que V. S.ª nada tem alegado em favor da mesma escrava.

E demais, – continuou apresentando um papel, – aqui está ordem expressa
e terminante do chefe de polícia, mandando que me seja entregue a dita
escrava.

A isto nada se pode opor legalmente.

– Pelo que vejo, senhor Martinho, – disse Álvaro depois de examinar
rapidamente o papel que Martinho lhe entregara, – ainda não desistiu
de seu indigno procedimento, tornando?se por um pouco de dinheiro o vil instrumento
do algoz de uma infeliz mulher? Reflita, e verá que essa infame ação
só pode inspirar asco e horror a todo o mundo.

Martinho achando?se acostado pela policia, julgou?se com direito de mostrar?se
áspero e arrogante, e, portanto, com imperturbável sangue-frio:
– Senhor Álvaro, – respondeu, – eu vim a esta casa somente com o fim
de exigir em nome da autoridade a entrega de uma escrava fugida, que aqui
se acha acoutada, e não para ouvir repreensões, que o senhor
não tem direito de dar?me. Trate de fazer o que a lei ordena e a prudência
aconselha, se não quer que use de meu direito…

– Qual direito?!…

– De varejar esta casa e levar à força a escrava.

– Retira?te, miserável esbirro! – bradou Álvaro com força,
não podendo mais sopear a cólera. – Desaparece de minha presença,
se não queres pagar caro o teu atrevimento!…

– Senhor Álvaro!… veja o que faz! O Dr. Geraldo, não achando
muita razão em seu amigo, por prudência até ali se tinha
conservado silencioso, mas vendo que a cólera e imprudência de
Alvaro ia excedendo os limites, julgou de seu dever intervir na questão,
e aproximando?se de Alvaro, e puxando?lhe o braço: – Que fazes, Álvaro?
– disse?lhe em voz baixa. – Não vês que com esses arrebatamentos
não consegues senão comprometer?te, e agravar a sorte de Isaura?
mais prudência, meu amigo.

– Mas… que devo eu fazer?… não me dirás? – Entregá?la.

– Isso nunca!… – replicou Álvaro terminantemente.

Conservaram?se todos silenciosos por alguns momentos. Álvaro parecia
refletir.

– Ocorre?me um expediente, – disse ele ao ouvido de Geraldo, – vou tentá?lo.

E sem esperar resposta aproximou?se de Martinho.

– Senhor Martinho, – disse?lhe ele, – desejo dizer?lhe duas palavras em
particular, com permissão aqui do doutor.

– Estou às suas ordens, – replicou Martinho.

– Estou persuadido, senhor Martinho, – disse?lhe Alvaro em voz baixa, tomando?o
de parte, – que a gratificação de cinco contos é o motivo
principal que o leva a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher, que
nunca o ofendeu. Está em seu direito, eu reconheço, e a soma
não é para desprezar. Mas se quiser desistir completamente desse
negócio, e deixar em paz essa escrava, dou?lhe o dobro dessa quantia.

– O dobro!… dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os
olhos.

– Justamente; dez contos de réis de hoje mesmo.

– Mas, senhor Alvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor
da escrava, dei passos para esse fim, e…

– Que importa!… diga que ela evadiu?se de novo, ou dê outra qualquer
desculpa…

– Como, se é tão público que ela se acha em poder de
V. S.ª ?…

– Ora!… isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo
e atilado como o senhor embaraça?se com tão pouca coisa!…

– Vá, feito – disse Martinho depois de refletir um instante. – Já
que Sa. tanto se interessa por essa escrava, não quero mais afligi?lo
com semelhante negócio, que a dizer?lhe a verdade bem me repugna.

Aceito a proposta.

– Obrigado; é um importante serviço que vai me prestar.

– Mas que volta darei eu ao negócio para sair?me bem dele? – Veja
lá; sua imaginação é fácil em recursos,
e há de inspirar?lhe algum meio de safar?se de dificuldades com a maior
limpeza.

Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os olhos
pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levando à
testa o dedo índice: – Atinei! exclamou. – Dizer que a escrava desapareceu
de novo, não é conveniente, e iria comprometer a V. S.ª
que se responsabilizou por ela. Direi somente que, bem averiguado o caso,
reconheci que a moça, que Sa. tem em seu poder, não é
a escrava em questão, e está tudo acabado.

– Essa não é mal achada… mas foi um negócio tão
público…

– Que importa!… não se lembra V. S.ª de um sinal em forma
de queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no anúncio?
direi, que não se achou semelhante sinal, que é muito característico,
e está destruída a identidade de pessoa. Acrescentarei mais
que a moça, por quem V. S.ª se interessa, vista de noite é
uma coisa, e de dia é outra; que em nada se parece com a linda escrava
que se acha descrita no anúncio, e que em vez de ter vinte anos mostra
ter seus trinta e muitos para quarenta, e que toda aquela mocidade e formosura
era efeito dos arrebiques, e da luz vacilante dos lustres e candelabros.

– O senhor é bem engenhoso. – observou Alvaro sorrindo?se; – mas
os que a viram nenhum crédito darão a tudo isso. Resta, porém,
ainda uma dificuldade, senhor Martinho; é a confissão que ela
fez em público!… isto há de ser custoso de embaraçar?se.

– Qual custoso!… alega?se que ela é sujeita a acessos de histerismo,
e é sujeita a alucinações.

– Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua perícia e habilidade.
E depois? – E depois comunico tudo isso ao chefe de policia, declaro?lhe que
nada mais tenho com esse negócio, passo a procuração
a qualquer meirinho, ou capitão?do?mato, que se queira encarregar dessa
diligência, e em ato contínuo escrevo ao senhor da escrava comunicando?lhe
o meu engano, com o que ele por certo desistirá de procurá?la
mais por aqui, e levará a outras partes as suas pesquisas. Que tal
acha o meu plano?…

– Admirável, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho.

– Vou já neste andar, e em menos de duas horas estou aqui de volta,
a dar parte do desempenho de minha comissão.

– Aqui não, que não poderei demorar?me muito. Espero?o em
minha casa, e lá receberá a soma convencionada.

– Podem?se retirar, – disse Martinho ao oficial de justiça e aos
guardas, que se achavam postados do lado de fora da porta. – Sua presença
não é mais necessária aqui. Não há dúvida!
– continuou ele consigo mesmo: – isto vai a dobrar como no lansquenê.
Esta escrava é uma mina, que me parece não estar ainda esgotada.

E retirou?se, esfregando as mãos de contentamento.

– Então, que arranjo fizeste com o homem, meu Álvaro? – perguntou
Geraldo, apenas Martinho voltou as costas.

– Excelente, – respondeu Álvaro; – a minha lembrança surtiu
o desejado efeito, e ainda mais do que eu esperava.

Álvaro em poucas palavras deu conta ao seu amigo do mercado que fizera
com o Martinho.

– Que caráter desprezível e abjeto o deste Martinho! – exclamou
Geraldo. – De um tal instrumento não se pode esperar obra que preste.
E julgas ter conseguido muita coisa, Álvaro, com o passo que acabas
de dar?…

– Não muito, porém alguma coisa sempre posso conseguir. Pelo
menos consigo deter o golpe por algum tempo, e como diz lá o rifão
popular, meu Geraldo, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

Enquanto Leôncio, persuadido que a sua escrava não se acha
aqui no Recife, a procura por todo esse mundo, ela fica aqui tranqüilamente
à minha sombra, livre das perseguições e dos maus?tratos
de um bárbaro senhor; e eu terei tempo para ativar os meios de arranjar
provas e documentos que justifiquem o seu direito à liberdade. É
quanto me basta por agora; quanto ao resto, já que pareces julgar a
minha causa irremissivelmente perdida, a justiça divina me inspirará
o modo por que devo proceder.

– Como te enganas, meu pobre Álvaro!… cuidas que arredando o Martinho
ficas por enquanto livre de perseguições e pesquisas contra
a tua protegida? que cegueira!… não faltarão malsins igualmente
esganados por dinheiro, que pelos cinco contos de réis, que para estes
miseráveis é uma soma fabulosa, se ponham à cata de tão
preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deu o alarma, e que esse
negócio tem atingido a um certo grau de celebridade, em vez de um,
aparecerão cem Martinhos no encalço da bela fugitiva, e não
terão mais que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro.

– És muito meticuloso, Geraldo, e encaras as coisas sempre pelo lado
pior. É bem provável que peguem as patranhas inventadas pelo
Martinho, e que ninguém mais se lembre de descobrir a cativa Isaura
nessa moça, por quem me interesso, e embora mil malsins a procurem
por todos os cantos do mundo, pouco me importará. Sempre obtenho uma
dilação, que poderá me ser muito vantajosa.

– Pois bem, Álvaro; vamos que assim aconteça; mas tu não
vês que semelhante procedimento não é digno de ti?…
que assim incorres realmente nos epítetos afrontosos, com que obsequiou?te
o tal Leôncio, e que te tomas verdadeiramente um sedutor e acoutador
de escravos alheios?…

– Desculpa?me, meu caro Geraldo; não posso aceitar a tua reprimenda.

Ela só pode ter aplicação aos casos vulgares, e não
às circunstâncias especialíssimas em que eu e Isaura nos
achamos colocados. Eu não dou couto, nem capeio a uma escrava: protejo
um anjo, e amparo uma vítima inocente contra a sanha de um algoz. Os
motivos que me impelem, e as qualidades da pessoa por quem dou estes passos,
nobilitam o meu procedimento, e são bastantes para justificar?me aos
olhos de minha consciência.

– Pois bem, Alvaro; faze o que quiseres; não sei que mais possa dizer?te
para demover?te de um procedimento, que julgo não só imprudente,
como, a falar?te com sinceridade, ridículo, e indigno da tua pessoa.

Geraldo não podia dissimular o descontentamento que lhe causava aquela
cega paixão, que levava o seu amigo a atos que qualificava de burlesco
desatino, e loucura inqualificável. Por isso, longe de auxiliá?lo
com seus conselhos, e indicar?lhe os meios de promover a libertação
de Isaura, procurava com todo o empenho demovê?lo daquele propósito,
pintando o negócio ainda mais difícil do que realmente o era.
De bom grado, se lhe fosse possível, teria entregado Isaura a seu senhor
somente para livrar Álvaro daquela terrível tentação,
que o ia precipitando na senda das mais ridículas extravagâncias.

Capitulo 17

Achando?se só, Alvaro sentou?se junto a uma mesa, e apoiando nela
os cotovelos com a fronte entre as mãos, ficou a cismar profundamente.

Isaura, porém, pressentindo pelo silêncio que reinava na sala,
que já ali não havia pessoas estranhas, foi ter com ele.

– Senhor Álvaro, – disse ela chegando?se de manso e timidamente;
– desculpe?me… eu venho decerto lhe aborrecer… queria talvez estar só…

Não, minha Isaura; tu nunca me aborreces; pelo contrário,
és sempre bem?vinda junto de mim…

– Mas vejo?o tão triste!… parece?me que aqui entrou mais gente,
e alteravam?se vozes. Deram?lhe algum desgosto, meu senhor?…

– Nada houve de extraordinário, Isaura; foram algumas pessoas que
vieram procurar o doutor Geraldo.

– Mas então, por que está assim triste e abatido? – Não
estou triste nem abatido. Estava meditando nos meios de arrancar?te do abismo
da escravidão, meu anjo, e elevar?te à posição
para que o céu te criou.

– Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz, que
não merece tais extremos, É inútil lutar contra o destino
irremediável que me persegue.

– Não fales assim, Isaura. Tens em bem pouca conta a minha proteção
e o meu amor!…

– Não sou digna de ouvir de sua boca essa doce palavra. Empregue
seu amor em outra mulher que dele seja merecedora, e esqueça?se da
pobre cativa, que tornou?se indigna até de sua compaixão ocultando?lhe
a sua condição, e fazendo?o passar pelo vergonhoso pesar de…

– Cala?te, Isaura… até quando pretendes lembrar?te desse maldito
incidente?… eu somente fui o culpado forçando?te a ir a esse baile,
e tinhas razão de sobra para não revelar?me a tua desgraça.
Esquece?te disso; eu te peço pelo nosso amor, Isaura.

– Não posso esquecer?me, porque os remorsos me avivam sempre n’alma
a lembrança dessa fraqueza. A desgraça é má conselheira,
e nos perturba e anuvia o espirito. Eu o amava, assim como o amo ainda, e
cada vez mais… perdoe?me esta declaração, que é sem
dúvida uma ousadia na boca de uma escrava.

– Fala, Isaura, fala sempre, que me amas. Pudesse eu ouvir de teus lábios
essa palavra por toda a eternidade.

– Era um triste amor na verdade, um amor de escrava, um amor sem sorriso
nem esperança. Mas a ventura de ser amada pelo senhor era uma idéia
tão consoladora para mim! Amando?me o senhor me nobilitava, a meus
próprios olhos, e quase me fazia esquecer a realidade de minha humilde
condição. Eu tremia ao pensar que descobrindo?lhe a verdade,
ia perder para sempre essa doce e única consolação que
me restava na vida. Perdoe, meu senhor, perdoe à escrava infeliz, que
teve a louca ousadia de amá?lo.

– Isaura, deixa?te de vãos escrúpulos, e dessas frases humildes,
que de modo nenhum podem caber em teus lábios angélicos. Se
me amas, eu também te amo, porque em tudo te julgo digna do meu amor;
que mais queres tu?… Se antes de conhecer a condição em que
nasceste, eu te amei subjugado por teus raros encantos, hoje que sei que a
tantos atrativos reúnes o prestigio do infortúnio e do martírio,
eu te adoro, eu te idolatro mais que nunca.

– Ama?me, e é essa idéia, que ainda mais me mortifica!…
de que nos serve esse amor, se nem ao menos posso ter a fortuna de ser sua
escrava, e devo sem remédio morrer entre as mãos de meu algoz..

– Nunca, Isaura! – exclamou Álvaro com exaltação: –
minha fortuna, minha tranquilidade, minha vida, tudo sacrificarei para libertar-te
do jugo desse vil tirano. Se a justiça da Terra não me auxilia
nesta nobre e generosa empresa, a justiça do céu se fará
cumprir por minhas maos.

– Oh! senhor Alvaro!… não vá sacrificar?se por uma pobre
escrava, que não merece tais excessos. Abandone?me à minha sina
fatal; já não é pouca felicidade para mim ter merecido
o amor de um cavalheiro tão nobre e tão amável, como
o senhor; esta lembrança me servirá de alento e consolação
em minha desgraça. Não posso, porém, consentir que o
senhor avilte o seu nome e a sua reputação, amando com tal extremo
a uma escrava.

– Por piedade, Isaura, não me martirizes mais com essa maldita palavra,
que constantemente tens nos lábios. Escrava tu!… não o és,
nunca o foste, e nunca o serás. Pode acaso a tirania de um homem ou
da sociedade inteira transformar em um ente vil, e votar à escravidão
aquela que das mãos de Deus saiu um anjo digno do respeito e adoração
de todos? Não, Isaura; eu saberei erguer?te ao nobre e honroso lugar
a que o céu te destinou, e conto com a proteção de um
Deus justo, porque protejo um dos seus anjos.

Alvaro, não obstante ficar sabendo, depois da noite do baile, que
Isaura era uma simples escrava, nem por isso deixou de tratá?la daí
em diante com o mesmo respeito, deferência e delicadeza, como a uma
donzela da mais distinta jerarquia social. Procedia assim de acordo com os
elevados principios que professava, e com os nobres e delicados sentimentos
do seu coração. O pudor, a inocência, o talento, a virtude
e o infortúnio, eram sempre para ele coisas respeitáveis e sagradas,
quer se achassem na pessoa de uma princesa, quer na de uma escrava. Sua afeição
era tão casta e pura como a pessoa que dela era objeto, e nunca de
leve lhe passara pelo pensamento abusar da precária e humilde posição
de sua amante, para profanar?lhe a candura imaculada.

Nunca de sua parte um gesto mais ousado, ou uma palavra menos casta haviam
feito assomar ao rosto da cativa o rubor do pejo, e nem tampouco os lábios
de Alvaro lhe haviam roçado o mais leve beijo pelas virginais e pudicas
faces. Apenas depois de instantes e repetidas súplicas de Isaura, havia
tomado a liberdade de tratá?la por tu, e isso mesmo quando se achavam
a sós.

Somente agora pela primeira vez, Álvaro, dominado pela mais suave
e veemente emoção, ao proferir as últimas palavras, enlaçando
o braço em torno ao colo de Isaura a cingia brandamente contra o coração.

Estavam ambos enlevados na doçura deste primeiro amplexo de amor,
quando o ruído de um carro, que parou à porta do jardim, e logo
após um forte e estrondoso – ó de casa! – os fizeram separar?se.

No mesmo momento entrava na sala o baleeiro de Álvaro, e anunciava?lhe
que novas pessoas o procuravam.

– Oh, meu Deus!… que será isto hoje!… serão ainda os malditos
esbirros?… – refletiu Álvaro, e depois dirigindo?se a Isaura: – É
prudente que te retires, minha amiga, – disse?lhe; ninguém sabe o que
será e não convém que te vejam.

– Ah! que eu não sirva senão para perturbar?lhe o sossego!
– murmurou Isaura retirando?se.

Um momento depois Alvaro viu entrar na sala um elegante e belo mancebo,
trajado com todo o primor, e afetando as mais polidas e aristocráticas
maneiras; mas apesar de sua beleza, tinha ele na fisionomia, como Lusbel,
um não seu quê de torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que incutia
pavor e repulsão.

– Este por certo não é um esbirro, – pensou Álvaro,
e indicando uma cadeira ao recém?chegado: – Queira sentar?se, – disse?lhe,
e – tenha a bondade de dizer o que pretende deste seu criado.

– Desculpe?me, – respondeu?lhe o cavalheiro, passeando um olhar escrutador
em roda da sala: – não é a V. S.ª que eu desejava falar,
mas sim ao morador desta casa ou à sua filha.

Álvaro estremeceu. Estava claro que aquele mancebo, se bem que nenhuma
aparência tivesse de um esbirro, andava à pista de Isaura.

Todavia no intuito de verificar se era fundada a sua apreensão, antes
de chamar os donos da casa quis sondar as intenções do visitante.

– Não obstante, – respondeu ele, como estou autorizado pelos donos
da casa a tratar de todos os seus negócios, pode V. S.ª dirigir?se
a mim, e dizer o que deles pretende.

– Sim, senhor; não ponho a menor dúvida, pois o que pretendo
não é nenhum mistério. Constando?me com certeza, que
aqui se acha acoutada uma escrava fugida, por nome Isaura, venho apreendê?la…

– Nesse caso deve entender?se comigo, que sou o depositário dessa
escrava.

– Ah!.. pelo que vejo, V. S.ª é o senhor Álvaro!…

– Um criado de V. S.ª.

– Bem; muito estimo encontrá?lo por aqui; pois saiba também
que eu sou Leôncio, o legítimo senhor dessa escrava.

Leôncio. … o senhor de Isaura! Álvaro ficou como esmagado
sob o peso desta fulminante e tremenda revelação. Mudo e atônito,
contemplou por alguns instantes aquele homem de sombria catadura, que se lhe
apresentava aos olhos, implacável e sinistro como Lúcifer, prestes
a empolgar a vítima, que deseja arrastar aos infernos. Suor frio porejou-lhe
pela testa, e a mais pungente angústia apertou?lhe o coração.

– É ele!… é o próprio algoz!… ai, pobre Isaura!…
– foi este o eco lúgubre, que remurmurou?lhe dentro d’alma enregelada
pelo desalento.

Capitulo 18

O leitor provavelmente não terá ficado menos atônito
do que ficou Álvaro, com o imprevisto aparecimento de Leôncio
no Recife, e indo bater certo na casa em que se achava refugiada a sua escrava.

É preciso, portanto, explicar?lhe como isso aconteceu, para que não
pense que foi por algum milagre.

Leôncio, depois de ter escrito e entregado no correio as duas cartas
que conhecemos, uma dirigida a Álvaro, outra a Martinho, nem por isso
ficou mais tranqüilo. Devorava?lhe a alma uma inquietação
mortal, um ciúme desesperador. A notícia de que Isaura se achava
em poder de um belo e rico mancebo, que a amava loucamente, era para ele um
suplício insuportável, um cancro, que lhe corroía as
entranhas, e o fazia estrebuchar em ânsias de desespero, avivando?lhe
cada vez mais a paixão furiosa que concebera por sua escrava. Achava?se
ele na corte, para onde, logo que teve notícias de Isaura, se dirigia
imediatamente, a fim de se achar em um centro, de onde pudesse tomar medidas
prontas e enérgicas para a captura da mesma.

Tendo escrito e entregue as cartas na véspera da partida do vapor
pela manhã, levou o resto do dia a cismar. A terrível ansiedade
em que se achava não lhe permitia esperar a resposta e o resultado
daquelas cartas, sendo muito mais morosas e espaçadas do que hoje as
viagens dos paquetes naquela época, em que apenas se havia inaugurado
a navegação a vapor pelas costas do Brasil. Demais, ocorria?lhe
freqüentemente ao espírito o anexim popular – quem quer vai, quem
não quer manda. – Não podia fiar?se na diligência e boa
vontade de pessoas desconhecidas, que talvez não pudessem lutar vantajosamente
contra a influência de Alvaro, o qual, segundo lho pintavam, era um
potentado em sua terra. O ciúme e a vingança não gostam
de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seus
desígnios.

– É indispensável que eu mesmo vá, – pensou Leôncio,
e firme nesta resolução foi ter com o ministro da justiça,
com quem cultivava relações de amizade, e pediu?lhe uma carta
de recomendação, – o que equivale a uma ordem, – ao chefe de
polícia de Pernambuco, para que o auxiliasse eficazmente para o descobrimento
e captura de uma escrava. Já de antemão Leôncio também
se havia munido de uma precatória e mandado de prisão contra
Miguel, a quem havia feito processar e pronunciar como ladrão e acoutador
de sua escrava. O sanhudo paxá de nada se esquecia para tornar completa
a sua vingança.

No outro dia Leôncio seguia para o Norte no mesmo vapor que conduzia
suas cartas.

Estas, porém, chegaram ao seu destino algumas horas antes que o seu
autor desembarcasse no Recife.

Leôncio, apenas pôs pé em terra, dirigiu?se ao chefe
de policia, e entregando?lhe a carta do ministro inteirou?o de sua pretensão.

Tenho a informar?lhe, senhor Leôncio, – respondeu?lhe o chefe – que
haverá talvez pouco mais de duas horas que daqui saiu uma pessoa autorizada
por V. S.a para o mesmo fim de apreender essa escrava, e ainda há pouco
aqui chegou de volta declarando que tinha-se enganado, e que acabava de reconhecer
que a pessoa, de quem desconfiava, não é e nem pode ser a escrava
que fugiu a V. S.a.

– Um certo Martinho, não, senhor doutor?…

– Justamente.

– Deveras!… que me diz, senhor doutor? – A verdade; ainda aí estão
à porta o oficial de justiça e os guardas, que o acompanharam.

– De maneira que terei perdido o meu tempo e a minha viagem!…

oh! não, não; isto não é possível. Creia?me,
senhor doutor, aqui há patranha… o tal senhor Álvaro dizem
que é muito rico…

– E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infâmias.

Tudo pode ser; mas a V. S.ª como interessado, compete averiguar essas
coisas.

– E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar
o negócio por meus próprios olhos, e já, se for possível.

– Quando quiser. Ali estão o oficial de justiça e os guardas,
que ainda agora de lá vieram, e ninguém melhor do que eles pode
guiar a V. S.ª e efetuar a captura, caso reconheça ser a sua própria
escrava.

– Também me é preciso que V. S.ª ponha o – cumpra?se
– nesta precatória – disse Leôncio apresentando a precatória
contra Miguel – é necessário punir o patife que teve a audácia
de desencaminhar e roubar?me a escrava.

O chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leôncio, que acompanhado
da pequena escolta, que fez subir ao seu carro, no mesmo momento se dirigiu
à casa de Isaura, onde o deixamos em face de Álvaro.

A situação deste não era só crítica;
era desesperada. O seu antagonista ali estava armado de seu incontestável
direito para humilhá?lo, esmagá?lo, e o que mais é, despedaçar?lhe
a alma, roubando?lhe a amante adorada, o ídolo de seu coração,
que ia?lhe ser arrancada dos braços para ser prostituída ao
amor brutal de um senhor devasso, se não sacrificada ao seu furor.
Não tinha remédio senão curvar?se sem murmurar ao golpe
do destino, e ver de braços cruzados metida em ferros, e entregue ao
azorrague do algoz a nobre e angélica criatura, que, única entre
tantas belezas, lhe fizera palpitar o coração em emoções
do mais extremoso e puro amor.

Deplorável contingência, a que somos arrastados em conseqüência
de uma instituição absurda e desumana! O devasso, o libertino,
o algoz, apresenta?se altivo e arrogante, tendo a seu favor a lei, e a autoridade,
o direito e a força, lança a garra sobre a presa, que é
objeto de sua cobiça ou de seu ódio, e pode frui?la ou esmagá?la
a seu talante, enquanto o homem de nobre coração, de impulsos
generosos, inerme perante a lei, aí fica suplantado, tolhido, manietado
sem poder estender o braço em socorro da inocente e nobre vítima,
que deseja proteger. Assim, por uma estranha aberração, vemos
a lei armando o vício, e decepando os braços à virtude.

Estava pois Álvaro em presença de Leôncio como o condenado
em presença do algoz. A mão da fatalidade o socalcava com todo
o seu peso esmagador, sem lhe deixar livre o mínimo movimento.

Vinha Leôncio ardendo em fúrias de raiva e de ciúme,
e prevalecendo?se de sua vantajosa posição, aproveitou a ocasião
para vingar?se de seu rival, não com a nobreza de cavalheiro, mas procurando
humilhá?lo à força de impropérios.

– Sei que há muito tempo, – disse Leôncio, continuando o diálogo
que deixamos interrompido no capítulo antecedente, – V. S.ª retêm
essa escrava em seu poder contra toda a justiça, iludindo as autoridades
com falsas alegações, que nunca poderá provar. Porém
agora venho eu mesmo reclamá?la e burlar os seus planos, e artifícios.

– Artifícios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma
escrava contra as violências de um senhor, que quer tornar?se seu algoz;
eis aí tudo.

– Ah!… agora é que sei que qualquer aí pode subtrair um
escravo ao domínio de seu senhor a pretexto de protegê?lo, e
que cada qual tem o direito de velar sobre o modo por que são tratados
os escravos alheios.

– V. S.a. está de disposição a escarnecer, e eu declaro?lhe
que nenhuma vontade tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido.

Confesso?lhe que desejo muito a liberdade dessa escrava, tanto quanto desejo
a minha felicidade, e estou disposto a fazer todos os sacrifícios possíveis
para consegui?la. Já lhe ofereci dinheiro, e ainda ofereço.

Dou?lhe o que pedir… dou?lhe uma fortuna por essa escrava. Abra preço…

– Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque
não quero vendê?la.

– Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade…

-Seja capricho da qualidade que V. S.ª quiser; porventura não
posso ter eu os meus caprichos, contanto que não ofenda direitos de
ninguém?… porventura V. S.ª não tem também o seu
capricho de querê?la para si?… mas o seu capricho ofende os meus direitos,
e eis aí o que não posso tolerar.

– Mas o meu capricho é nobre e benfazejo, e o seu é uma tirania,
para não dizer uma vilania. V. S.ª mancha a sua vida com uma nódoa
indelével conservando na escravidão essa mulher; cospe o desrespeito
e a injúria sobre o túmulo de sua santa mãe, que criou
com tanta delicadeza, educou com tanto esmero essa escrava, para torná?la
digna da liberdade que pretendia dar?lhe, e não para satisfazer aos
caprichos de V. S.a. Ela por certo lá do céu, onde está,
o amaldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição
ao homem que retém no mais infamante cativeiro uma criatura cheia de
virtudes, prendas e beleza.

– Basta, senhor!.. agora fico também sabendo, que uma escrava, só
pelo fato de ser bonita e prendada, tem direitos à liberdade. Pique
também V. S.ª sabendo, que se minha mãe não criou
essa rapariga para satisfazer aos meus caprichos, muito menos para satisfazer
aos de V. S.ª a quem nunca conheceu nesta vida. Senhor Álvaro,
se deseja ter alguma linda escrava para sua amásia procure outra, compre?a,
que a respeito desta, pode perder toda a esperança.

– Senhor Leôncio, V. S.ª decerto esquece?se do lugar onde está,
e da pessoa com quem fala, e julga que se acha em sua fazenda falando aos
seus feitores ou a seus escravos. Advirto?lhe, para que mude de linguagem.

– Basta, senhor; deixemo?nos de vás disputas, e nem eu vim aqui para
ser catequizado por V. S.ª. O que quero é a entrega da escrava
e nada mais. Não me obrigue a usar do meu direito levando?a à
força.

Álvaro, desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações,
perdeu de todo a prudência e sangue?frio.

Entendeu que para sair?se bem na terrivel conjuntura em que se achava, só
havia um caminho, – matar o seu antagonista ou morrer?lhe às mãos,
– e cedendo a essas sugestões da cólera e do desespero, saltou
da cadeira em que estava, agarrou Leôncio pela gola e sacudindo?o com
força: – Algoz! – bradou espumando de raiva, – ai tens a tua escrava!
mas antes de levá?la, hás de responder pelos insultos que me
tens dirigido, ouviste?… ou acaso pensas que eu também sou teu escravo?..

– Está louco, homem! – disse Leôncio amedrontado. – As leis
do nosso país não permitem o duelo.

– Que me importam as leis!… para o homem de brio a honra é superior
às leis, e se não és um covarde, como penso…

Socorro, que querem assassinar?me, – bradou Leôncio desembaraçando?se
das mãos de Álvaro, e correndo para a porta.

– Infame! – rugiu Álvaro, cruzando os braços e rangendo os
dentes num sorrir de cólera e desdém…

No mesmo momento, atraídos pelo barulho, entravam na sala de um lado
Isaura e Miguel, do outro o oficial de justiça e os guardas.

Isaura estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa ouvira
e compreendera tudo.

Viu que tudo estava perdido, e correu a atalhar o desatino, que por amor
dela Álvaro ia cometer.

– Aqui estou, senhor! – foram as únicas palavras que pronunciou apresentando?se
de braços cruzados diante de seu senhor.

– Ei?los ai; são estes! – exclamou Leôncio indicando aos guardas
Isaura e Miguel. Prendam?os!.. prendam?os!…

Vai?te, Isaura, vai?te, – murmurou Álvaro com voz trêmula e
sumida, achegando?se da cativa. – Não desanimes; eu não te abandonarei.

Confia em Deus e em meu amor.

Uma hora depois Álvaro recebia em casa a visita de Martinho. Vinha
este mui ancho e lampeiro dar conta de sua comissão, e sôfrego
por embolsar a soma convencionada.

– Dez contos!… oh! – vinha ele pensando. – uma fortuna! agora sim, posso
eu viver independente!… Adeus, surrados bancos de Academia!… adeus, livros
sebosos, que tanto tempo andei folheando à toa!… vou atirar?vos pela
janela a fora; não preciso mais de vós: meu futuro está
feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, comendador, barão, e
verão para quanto presto!…

E à força de multiplicar cálculos de usura e agiotagem,
já Martinho havia centuplicado aquela soma em sua imaginação.

– Meu caro senhor Álvaro, – veio logo dizendo sem mais preâmbulos,
– está tudo arranjado à medida de nossos desejos. Pode V. S.ª
viver tranqüilo em companhia da gentil fugitiva, que daqui em diante
ninguém mais o importunará.

De feito o procedimento de V. S.ª nesta questão tem sido muito
belo e digno de elogios; é próprio de um coração
grande e generoso como o de V. S.ª. Não se dá maiar desaforo!
no cativeiro uma menina tão mimosa e tão prendada!…

Agora aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãozinho.
Prego?lhe meia dúzia de carapetões, que o hão de desorientar
completamente.

Assim falando, Martinho desdobrou a carta, e já começava a
lê?la, quando Álvaro impacientado o interrompeu.

– Basta, senhor Martinho, – disse?lhe com mau humor; – o negócio
está arranjado; não preciso mais de seus serviços.

Arranjado!… como?…

– A escrava está em poder de seu senhor.

– De Leôncio!… impossível! – Entretanto, é a pura
verdade; se quiser saber mais vá à polícia, e indague.

– E os meus dez contos?…

– Creio que não lhos devo mais.

Martinho soltou um urro de desespero, e saiu da casa de Álvaro com
tal precipitação, que parecia ir rolando pelas escadas abaixo.

Descrever o mísero estado em que ficou aquela pobre alma, é
empresa em que não me meto; os leitores que façam idéia.

O cão faminto, iludido pela sombra, largou a carne que tinha entre
os dentes, e ficou sem uma nem outra.

Capítulo 19

– Olha como arranjas isso, Rosa; esta rapariga é mesmo uma estouvada;
não tem jeito para nada. Bem mostras que não nasceste para a
sala; o teu lugar é na cozinha.

– Ora vejam lá a figura de quem quer me dar regras!… quem te chamou
aqui, intrometido? O teu lugar também não é aqui, é
lá na estrebaria. Vai lá governar os teus cavalos, André,
e não te intrometas no que não te importa.

– Cala?te dai, toleirona; – replicou André mudando de lugar algumas
cadeiras. – O que sabes é só tagarelar. Não é
aqui o lugar destas cadeiras… Olha como estão estes jarros!… ainda
nem alimpaste os espelhos!… forte desajeitada e preguiçosa que és!…
No tempo de Isaura andava tudo isto aqui que era um mimo; fazia gosto entrar?se
nesta sala. Agora, é isto. Está claro que não és
para estas coisas.

– Essa agora é bem lembrada! – retorquiu Rosa, altamente despeitada.
– Se tens saudades do tempo de Isaura, vai lá tirá?la do quarto
escuro do tronco, onde ela está morando. Esse decerto ela não
há de ter gosto para enfeitá?lo de flores.

– Cala a boca, Rosa; olha que tu também lá podes ir parar.

– Eu não, que não sou fujona.

– Por que não achas quem te carregue, se não fugirias até
com o diabo. Coitada da Isaura! uma rapariga tão boa e tão mimosa,
tratada como uma negra da cozinha! e não tens pena dela, Rosa? – Pena
por que, agora?… quem mandou ela fazer das suas? – Pois olha, Rosa, eu estava
pronto a agüentar a metade do castigo que ela está sofrendo, mas
na companhia dela, está entendido.

– Isso pouco custa, André; é fazer o que ela fez. Vai, como
ela, tomar ares em Pernambuco, que infalivelmente vais para a companhia de
Isaura.

– Quem dera!… se soubesse que me prendiam com ela, isso é que era
um fugir. Mas o diabo é que a pobre Isaura agora vai deixar a nós
todos para sempre. Que falta não vai fazer nesta casa!…

– Deixar como? – Você verá.

– Foi vendida?…

– Qual vendida! – Alheada? – Nem isso – Está forra?…

– Que abelhuda!… Espera, Rosa; tem paciência um pouco, que hoje
mesmo talvez você venha a saber tudo.

– Ora ponha?se com mistérios… então o que você sabe
os outros não podem saber?…

– Não é mistério, Rosa; é desconfiança
minha. Aqui em casa não tarda a haver novidade grossa; vai escutando.

– Ah! ah! – respondeu Rosa galhofando. – Você mesmo está com
cara de novidade.

– Psiu!… bico calado, Rosa!… ai vem nhonhô.

Pelo diálogo acima o leitor bem vê, que nos achamos de novo
na fazenda de Leôncio, no município de Campos, e na mesma sala,
em que no começo desta história encontramos Isaura entoando
sua canção favorita.

Cerca de dois meses são decorridos depois que Leôncio fora
ao Recife apreender sua escrava. Leôncio e Malvina tinham?se reconciliado,
e vindos da corte tinham chegado à fazenda na véspera. Alguns
escravos, entre os quais se acham Rosa e André, estão asseando
o soalho, arranjando e espanando os móveis daquele rico salão,
testemunha impassível dos mistérios da família, de tantas
cenas ora tocantes e enlevadoras, ora vergonhosas e sinistras, e que durante
a ausência de Malvina se conservara sempre fechado.

Qual é, porém, a sorte de Isaura e de Miguel, desde que deixaram
Pernambuco? que destino deu Leôncio ou pretende dar àquela?…
por que maneira se reconciliou com sua mulher? Eis o que passamos a explicar
ao leitor, antes de prosseguirmos nesta narrativa.

Leôncio, tendo trazido Isaura para sua fazenda, a conservara na mais
completa e rigorosa reclusão. Não era isto só com o fim
de castigá?la ou de cevar sua feroz vingança sobre a infeliz
cativa. Sabia quanto era ardente e capaz de extremos o amor que o jovem pernambucano
concebera por Isaura; tinha ouvido as últimas palavras que Álvaro
lhe dirigia – confia em Deus, e em meu amor; eu não te abandonarei.

– Era uma ameaça, e Álvaro, rico e audacioso como era, dispunha
de grandes meios para pó?la em execução, quer por alguma
violência, quer por meio de astúcias e insídias. Leôncio,
portanto, não só encarcerava com todo o rigor a sua escrava,
como também armou todos os seus escravos, que daí em diante
distraídos quase completamente dos trabalhos da lavoura, viviam em
alerta dia e noite como soldados de guarnição a uma fortaleza.

Mas a alma ardente e feroz do jovem fazendeiro não desistia nunca
de seu louco amor, e nem perdia a esperança de vencer a isenção
de Isaura.

E já não era só o amor ou a sensualidade que o arrastava;
era um capricho tirânico, um desejo feroz e satânico de vingar?se
dela e do rival preferido. Queria gozá?la, fosse embora por um só
dia, e depois de profanada e poluída, entregá?la desdenhosamente
ao seu antagonista, dizendo?lhe: – Venha comprar a sua amante; agora estou
disposto a vendê?la, e barato.

Encetou pois contra ela nova campanha de promessas, seduções
e protestos, seguidos de ameaças, rigores e tiranias. Leôncio
só recuou diante da tortura e da violência brutal, não
porque lhe faltasse ferocidade para tanto, mas porque conhecendo a têmpera
heróica da virtude de Isaura, compreendeu que com tais meios só
conseguiria matá?la, e a morte de Isaura não satisfazia o seu
sensualismo, e nem tampouco a sua vingança. Portanto tratou de meditar
novos planos, não só para recalcar debaixo dos pés o
que ele chamava o orgulho da escrava, como de frustrar e escarnecer completamente
as vistas generosas de Álvaro, tomando assim de ambos a mais cabal
vingança.

Além de tudo, Leôncio via?se na absoluta necessidade de reconciliar?se
com Malvina, não que o pundonor, a moral, e muito menos a afeição
conjugal a isso o induzissem, mas por motivos de interesse, que em breve o
leitor ficará sabendo. Com esse fim pois, Leôncio foi à
corte e procurou Malvina.

Além de todas as más qualidades que possuía, a mentira,
a calúnia, o embuste eram armas que manejava com a habilidade do mais
refinado hipócrita. Mostrou?se envergonhado e arrependido do modo por
que a havia tratado, e jurou apagar com o seu futuro comportamento até
a lembrança de seus passados desvarios. Confessou, com uma sinceridade
e candura de anjo, que por algum tempo se deixara enlevar pelos atrativos
de Isaura, mas que isso não passara de passageiro desvario, que nenhuma
impressão lhe deixara na alma.

Além disso assacou mil aleives e calúnias por conta da pobre
Isaura. Alegou que ela, como refinada loureira que era, empregara os mais
sutis e ardilosos artifícios para seduzi?lo e provocá?lo, no
intuito de obter a liberdade em troco de seus favores. Inventou mil outras
coisas, e por fim fez Malvina acreditar que Isaura fugira de casa seduzida
por um galã, que há muito tempo a reqüestava, sem que eles
o soubessem; que fora este quem fornecera ao pai dela os meios de alforriá?la,
e que, não o podendo conseguir, combinaram de mãos dadas e efetuaram
o plano de rapto; que chegando ao Recife, um moço que tanto tinha de
rico, como de extravagante e desmiolado, enamorando?se dela a tomara a seu
primeiro amante; que Isaura com seus artifícios, dando?se por uma senhora
livre o tinha enleado e iludido por tal forma, que o pobre moço estava
a ponto de casar?se com ela, e mesmo depois de saber que era cativa não
queria largá?la, e praticando mil escândalos e disparates estava
disposto a tudo para alforriá?la. Fora das mãos desse moço
que ele a fora tomar no Recife.

Malvina, moça ingênua e crédula, com um coração
sempre propenso à ternura e ao perdão, deu pleno crédito
a tudo quanto aprouve a Leôncio inventar não só para justificar
suas faltas passadas, como para predispor o comportamento que dai em diante
pretendia seguir.

Na qualidade de esposa ofendida irritara?se outrora contra Isaura, quando
surpreendera seu marido dirigindo?lhe falas amorosas; mas o seu rancor ia?se
amainando, e se desvaneceria de todo, se Leôncio não viesse com
falsas e aleivosas informações atribuir?lhe os mais torpes procedimentos.
Malvina começou a sentir por Isaura desde esse momento, não
ódio, mas certo afastamento e desprezo, mesclado de compaixão,
tal qual sentiria por outra qualquer escrava atrevida e mal comportada.

Era quanto bastava a Leôncio para associá?la ao plano de castigo
e vingança, que projetava contra a desditosa escrava. Bem sabia que
Malvina com a sua alma branda e compassiva jamais consentiria em castigos
cruéis; o que meditava, porém, nada tinha de bárbaro
na aparência, se bem que fosse o mais humilhante e doloroso flagício
imposto ao coração de uma mulher, que tinha consciência
de sua beleza, e da nobreza e elevação de seu espírito.

– E o que pretendes fazer de Isaura? perguntou Malvina.

– Dar?lhe um marido e carta de liberdade.

– E já achaste esse marido? – Pois faltam maridos?… para achá?lo
não precisei sair de casa.

– Algum escravo, Leôncio?… oh!… isso não.

– E que tinha isso, uma vez que eu também forrasse o marido? era
cré com cré, lé com lé. Bem me lembrei do André,
que bebe os ares por ela; mas por isso mesmo não a quero dar àquele
maroto.

Tenho para ela peça muito melhor.

– Quem, Leôncio? – Ora quem!… o Belchior.

– O Belchior!… exclamou Malvina rindo?se muito. Estás caçoando;
fala sério, quem é?…

– O Belchior, senhora; falo sério.

– Mas esperas acaso, que Isaura queira casar?se com aquele monstrengo? –
Se não quiser, pior para ela; não lhe dou a liberdade, e há
de passar a vida enclausurada e em ferros.

– Oh!… mas isso é demasiada crueldade, Leôncio. De que serve
dar?lhe a liberdade em tudo, se não lhe deixas a de escolher um marido?…

Dá?lhe a liberdade, Leôncio, e deixa ela casar?se com quem
quiser.

– Ela não se casará com ninguém: irá voando
direitinho para Pernambuco, e lá ficará muito lampeira nos braços
de seu insolente taful, escarnecendo de mim…

– E que te importa isso, Leôncio? – perguntou Malvina com certo ar
desconfiado.

– Que tenho!… – replicou Leôncio um pouco perturbado com a pergunta.
– Ora que tenho!… é o mesmo que perguntar?me se tenho brio nas faces.
Se soubesses como aquele papalvo provocou?me atirando?me insultos atrozes!…
Como desafiou?me com mil bravatas e ameaças, protestando que havia
de arrancar Isaura ao meu poder…

Se não fosse por tua causa, e também por satisfazer os votos
de minha mãe, eu nunca daria a liberdade a essa escrava, embora nenhum
serviço me prestasse, e tivesse de tratá?la como uma princesa,
só para quebrar a proa e castigar a audácia e petulância
desse impudente rufião.

– Pois bem, Leôncio; mas eu entendo que Isaura mais facilmente se
deixará queimar viva, do que casar?se com Belchior.

– Não te dê isso cuidado, minha querida; havemos de catequizá?la
convenientemente. Tenho cá forjado o meu plano, com o qual espero reduzi?la
a casar?se com ele de muito boa vontade.

– Se ela consentir, não tenho motivo para me opor a esse arranjo.

Leôncio de feito havia habilmente preparado o seu plano atroz.

Tendo trazido do Recife a Miguel debaixo de prisão, juntamente com
Isaura, ao chegar em Campos fê?lo encerrar na cadeia, e condenar a pagar
todas as despesas e prejuízos que tivera com a fuga de Isaura, as quais
fizera orçar em uma soma exorbitante. Ficou, portanto, o pobre homem
exausto dos últimos recursos que lhe restavam, e ainda por sobrecarga
devendo uma soma enorme, que só longos anos de trabalho poderiam pagar.
Como Leôncio era rico, amigo dos ministros e tinha grande influência
no lugar, as autoridades locais prestaram?se de boa mente a todas estas perseguições.

Depois que Leôncio, desanimado de poder vencer a obstinada relutância
de Isaura, mudou o seu plano de vingança, foi ele em pessoa procurar
a Miguel.

– Senhor Miguel, – disse?lhe em tom formalizado, – tenho comiseração
do senhor e de sua filha, apesar dos incômodos e prejuízos que
me têm dado, e venho propor?lhe um meio de acabarmos de uma vez para
sempre com as desordens, intrigas e transtornos com que sua filha tem perturbado
minha casa e o sossego de minha vida.

– Estou pronto para qualquer arranjo, senhor Leóncio, – respondeu
respeitosamente Miguel, – uma vez que seja justo e honesto.

– Nada mais honesto, nem mais justo. Quero casar sua filha com um homem
de bem, e dar?lhe a liberdade; porém para esse fim preciso muito de
sua coadjuvação.

– Pois diga em que lhe posso servir.

– Sei que Isaura há de sentir alguma repugnância em casar?se
com a pessoa que lhe destino, em razão de tola e extravagante paixão,
que parece ainda ter por aquele infame peralvilho de Pernambuco, que meteu?lhe
mil caraminholas na cabeça, e encheu?a de idéias extravagantes
e loucas esperanças.

– Creio que ela não deve lembrar?se desse moço senão
por grati? dão…

– Qual gratidão!… pensa vossemecê que ele está fazendo
muito caso dela?… tanto como do primeiro sapato que calçou. Aquilo
foi um capricho de cabeça estonteada, uma fantasia de fidalgote endinheirado,
e a prova aqui está; leia esta carta… O patife tem a sem?cerimônia
de escrever?me, como se entre nós nada houvesse, assim com ares de
amigo velho, participando?me que se acha casado!… que tal lhe parece esta?…
que tenho eu com seu casamento!… Mas isto ainda não é tudo;
aproveitando a ocasião, pede?me com todo o desfaçamento que
em todo e qualquer tempo, que eu me resolva a dispor de Isaura, nunca o faça
sem participar?lhe, porque muito deseja tê?la para mucama de sua senhora!
até onde pode chegar o cinismo e a impudência!…

– Com efeito, senhor!… isto da parte do senhor Álvaro é
custoso de acreditar! – Pois capacite?se com seus próprios olhos; leia;
não conhece esta letra?…

E dizendo isto Leôncio apresentou a Miguel uma carta, cuja letra imitava
perfeitamente a de Álvaro.

– A letra é dele; não resta dúvida, – disse Miguel
pasmado do que acabava de ler. – Há neste mundo infâmias que
custa?se a compreender.

– E também lições cruéis, que é preciso
não desprezar, não é assim, senhor Miguel?… Pois bem;
guarde essa carta para mostrar à sua filha; é bom que ela saiba
de tudo para não contar mais com esse homem, e varrer do espírito
as fumaças que porventura ainda lhe toldam o juízo. Faça
também vossemecê o que estiver em seu possível a fim de
predispor sua filha para esse casamento, que é de muita vantagem, e
eu não só lhe perdoarei tudo quanto me fica devendo, como lhe
restituo o que já me deu, para vossemecê abrir um negócio
aqui em Campos e viver tranqüilamente o resto de seus dias, em companhia
de sua filha e de seu genro.

– Mas quem é esse genro? V. S.ª me não disse ainda.

– É verdade… esquecia?me. É o Belchior, o meu jardineiro;
não conhece?…

– Muito!… oh! senhor!… com que miserável figura quer casar minha
filha!… pobre Isaura!… duvido muito que ela queira.

– Que importa a figura, se tem uma boa alma, e é honesto e trabalhador?…
Lá isso é verdade; o ponto é ela querer.

– Estou certo que aconselhada e bem catequizada por vossemece há
de se resolver.

– Farei o que puder; mas tenho poucas esperanças.

– E se não quiser, pior para ela e para vossemecê: o dito por
não dito; fica tudo como estava, – disse terminantemente Leôncio.

Miguel não era homem de têmpera a lutar contra a adversidade.
O cativeiro e reclusão perene de sua filha, a miséria que se
lhe antolhava acompanhada de mil angústias, eram para ele fantasmas
hediondos, cujo aspecto não podia encarar sem sentir mortal pavor e
abatimento.

Não achou muito oneroso o preço pelo qual o desumano senhor,
livrando?o da miséria, concedia liberdade à sua filha, e aceitou
o convênio.

Capítulo 20

Enquanto Rosa e André espanejavam os móveis do salão,
tagarelando alegremente, uma cena bem triste e compungente se passava em um
escuro aposento atinente às senzalas, onde Isaura sentada sobre um
cepo, com um dos alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada à
parede, há dois meses se achava encarcerada.

Miguel ai tinha sido introduzido por ordem de Leôncio, para dar parte
à filha do projeto de seu senhor, e exortá?la a aceitar o partido
que lhes propunha. Era pungente e desolador o quadro que apresentavam aquelas
duas míseras criaturas, pálidas, extenuadas e abatidas pelo
infortúnio, encerrados em uma estreita e lôbrega espelunca. Ao
se encontrarem depois de dois longos meses, mais oprimidos e desgraçados
que nunca, a primeira linguagem com que se saudaram não foi mais do
que um coro de lágrimas e soluços de indizível angústia,
que abraçados por largo tempo estiveram entornando no seio um do outro.

………………………………………………….

– Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício,
que é desgraçadamente o único recurso que nos deixam.
É com esta condição que venho abrir?te as portas desta
triste prisão, em que há dois meses vives encerrada. É,
sem dúvida, um cruel sacrifício para teu coração;
mas é sem comparação mais suportável do que esse
duro cativeiro, com que pretendem matar?te.

– É verdade, meu pai; o meu carrasco dá?me a escolha entre
dois jugos; mas eu ainda não sei qual dos dois será mais odioso
e insuportável.

Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspiraram?me uma
alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor e da dignidade da mulher;
sou uma escrava, que faz muita moça formosa morder?se de inveja; tenho
dotes incomparáveis do corpo e do espírito; e tudo isto para
quê, meu Deus!?… para ser dada de mimo a um mísero idiota!…
Pode?se dar mais cruel e pungente escárnio?!…

E uma risada convulsiva e sinistra desprendeu?se dos lábios descorados
de Isaura, e reboou pelo lúgubre aposento, como o estrídulo
ulular do mocho entre os sepulcros.

– Não é tanto como se te afigura na imaginação
abalada pelos sofrimentos. O tempo pode muito, e com paciência e resignação
hás de te acostumar a esse novo viver, sem dúvida muito mais
suave do que este inferno de martírios, e poderemos ainda gozar dias
se não felizes, ao menos mais tranqüilos e serenos.

– Para mim a tranqüilidade não pode existir senão na
sepultura, meu pai. Entre os dois suplícios que me deixam escolher,
eu vejo ainda alguma coisa, que me sorri como uma idéia consoladora,
um recurso extremo, que Deus reserva para os desgraçados, cujos males
são sem remédio.

– É da resignação sem dúvida, que queres falar,
não é, minha filha?… Ah! meu pai, quando a resignação
não é possível, só a morte…

– Cala?te, filha!… não digas blasfêmias e palavras loucas.
Eu quero, eu preciso, que tu vivas. Terás ânimo de deixar teu
pai neste mundo sozinho, velho e entregue à miséria e ao desamparo?
Se me faltares, o que será de mim nas tristes conjunturas em que me
deixas?…

– Perdoe?me, meu bom, meu querido pai; só em um caso extremo eu me
lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meu pai, e é isso que
eu quero; mas para isso será preciso que eu me case com um disforme?…
oh! isto é escárnio e opróbrio demais! Tenham?me debaixo
do mais rigoroso cativeiro, ponham?me na roça de enxada na mão,
descalça e vestida de algodão, castiguem?me, tratem?me enfim
como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem?me este ignominioso
sacrifício!…

– Belchior não é tão disforme como te parece; e demais
o tempo e o costume te farão familiarizar com ele. Há muito
tempo não o vês; com a idade ele vai?se endireitando, que é
ele ainda muito criança.

Agora o desconhecerás; já não tem aquele exterior tão
grosseiro e desagradável, e tem tomado outras maneiras menos toscas.
Toma ânimo, minha filha; quando saíres deste triste calabouço,
o ar da liberdade te restituirá a alegria e a tranqüilidade, e
mesmo com o marido que te dão poderás viver feliz…

– Feliz! – exclamou Isaura com amargo sorriso: – nao me fale em felicidade,
meu pai. Se ao menos eu tivesse o coraçáo livre como outrora…
se não amasse a ninguém. Oh!… não era preciso que ele
me amasse, não; bastava que me quisesse para escrava, aquele anjo de
bondade, que em vão empregou seus generosos esforços para arrancar?me
deste abismo. Quanto eu seria mais feliz do que sendo mulher desse pobre homem,
com quem me querem casar! Mas ai de mim! devo eu pensar mais nele? pode ele,
nobre e rico cavalheiro, lembrar?se ainda da pobre e infeliz cativa!…

– Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tua idéia
esse amor tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.

– Por que, meu pai?… como poderei ser ingrata a esse moço?…

– Mas não deves contar mais com ele, e muito menos com o seu amor.

– Por que motivo? porventura se terá ele esquecido de mim?…

– Tua humilde condição não permite que olhes com amor
para tão alto personagem; um abismo te separa dele. O amor que lhe
inspiraste, não passou de um capricho de momento, de uma fantasia de
fidalgo. Bem me pesa dizer?te isto, Isaura; mas é a pura verdade.

– Ah! meu pai! que está dizendo!… se soubesse que mal me fazem
essas terríveis palavras!… deixe?me ao menos a consolação
de acreditar que ele me amava, que me ama ainda. Que interesse tinha ele em
iludir uma pobre escrava?…

– Eu bem quisera poupar?te ainda este desgosto; mas é preciso que
saibas tudo. Esse moço… ah! minha filha, prepara teu coração
para mais um golpe bem cruel.

– Que tem esse moço?… perguntou Isaura trêmula e agitada.
Fale, meu pai; acaso morreu?…

– Não, minha filha, mas… está casado.

– Casado!… Álvaro casado!… oh! não; não é
possível!… quem lhe disse, meu pai?…

– Ele mesmo, Isaura; lê esta carta.

Isaura tomou a carta com mão trêmula e convulsa, e a percorreu
com olhos desvairados. Lida a carta, não articulou uma queixa, não
soltou um soluço, não derramou uma lágrima, e ela, pálida
como um cadáver, os olhos estatelados, a boca entreaberta, muda, imóvel,
hirta, ali ficou por largo tempo na mesma posição; dir?se?ia
que fora petrificada como a mulher de Ló, ao encarar as chamas em que
ardia a cidade maldita.

Enfim por um movimento rápido e convulso atirou?se ao seio de seu
pai, e inundou?o de uma torrente de lágrimas.

Este pranto copioso aliviou?a; ergueu a cabeça, enxugou as lágrimas,
e pareceu ter recobrado a tranqüilidade, mas uma tranqüilidade gélida,
sinistra, sepulcral. Parecia que sua alma se tinha aniquilado sob a violência
daquele golpe esmagador, e que de Isaura só restava o fantasma.

– Estou morta, meu pai!… não sou mais que um cadáver…
façam de mim o que quiserem…

Foram estas as últimas palavras que com voz fúnebre e sumida
proferiu naquele lôbrego recinto.

– Vamos, minha filha, disse Miguel beijando?a na fronte. Não te entregues
assim ao desalento; tenho esperança de que hás de viver e ser
feliz.

Miguel, espírito acanhado e rasteiro, coração bom e
sensível, mas inteiramente estranho às grandes paixões,
não podia compreender todo o alcance do sacrifício que impunha
à sua filha. Encarando a felicidade mais pelo lado dos interesses da
vida positiva e material, não pelos gozos e exigências do coração,
ousava conceber sinceras esperanças de mais felizes e tranqüilos
dias para sua filha, e não via que, sujeitando?a a semelhante opróbrio,
aviltando?lhe a alma, ia esmagar?lhe o coração. Queria que ela
vivesse, e não via que aquele ignominioso consórcio, depois
de tantas e tão acerbas torturas por que passara, era o golpe de compaixão,
que, terminando?lhe a existência, vinha abreviar?lhe os sofrimentos.

Malvina achava?se no salão, e ali esperava o resultado da conferência
que Miguel fora ter com sua filha. Rosa e André, de braços cruzados
junto à porta da entrada, também ali se achavam às suas
ordens.

Malvina sentiu um doloroso aperto de coração ao ver assomar
na porta o vulto de Isaura, arrimada ao braço de Miguel, lívida
e desfigurada como enferma em agonia, os cabelos em desalinho, e com passos
mal seguros penetrar, como um duende evocado do sepulcro, naquele salão,
onde não há muito tempo a vira tão radiante de beleza
e mocidade, naquele salão, que parecia ainda repetir os últimos
acentos de sua voz suave e melodiosa.

Mesmo assim ainda era bela a mísera cativa. A magreza fazendo sobressaírem
os contornos e ângulos faciais, realçava a pureza ideal e a severa
energia daquele tipo antigo.

Os grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancólica
eram como cirios funéreos sob a arcada sombria de uma capela tumular.
Os cabelos entornados em volta do colo, faziam ondular por eles leves sombras
de maravilhoso efeito, como festões de hera a se debruçarem
pelo mármore vetusto de estátua empalidecida pelo tempo. Naquela
miseranda situação, Isaura oferecia ao escultor um formoso modelo
da Níobe antiga.

– Aquela é Isaura!… oh!… meu Deus! coitada! – murmurou Malvina
ao vê?la, e foi?lhe mister enxugar duas lágrimas, que a seu pesar
umedeceram?lhe as pálpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemência
a seu esposo em favor da pobrezinha, mas lembrou?se das perversas inclinações
e mau comportamento, que Leôncio aleivosamente atribuíra a Isaura,
e assentou de revestir?se de toda a impassibilidade que lhe fosse possível.

– Então, Isaura, – disse Malvina com brandura, – já tomaste
a tua resolução?… estás decidida a casar com o marido
que te queremos dar? Isaura por única resposta abaixou a cabeça
e fitou os olhos no chão.

– Sim, senhora, – respondeu Miguel por ela – Isaura está resolvida
a se conformar com a vontade de V. S.a.

– Faz muito bem. Não é possível que ela esteja a sofrer
por mais tempo esse cruel tratamento, em que não posso consentir enquanto
estiver nesta casa. Não foi para esse fim que sua defunta senhora criou?a
com tanto mimo, e deu?lhe tão boa educação. Isaura, apesar
de tua descaída, quero?te bem ainda, e não tolerarei mais semelhante
escândalo. Vamos dar?te ao mesmo tempo a liberdade e um excelente marido.

– Excelente!… meu Deus! Que escárnio! – refleliu Isaura.

– Belchior é muito bom moço, inofensivo, pacífico e
trabalhador; creio que hás de dar?te otimamente com ele. Demais para
obter a liberdade nenhum sacrifício é grande, não é
assim, Isaura? – Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer,
sujeito?me humildemente ao meu destino. Arrancam?me da masmorra – (continuou
Isaura em seu pensamento), – para levarem?me ao suplício.

– Muito bem, Isaura; mostras que és uma rapariga dócil e de
juízo.

André, vai chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter o gosto
de anunciar?lhe que vai enfim realizar o seu sonho querido de tantos anos.
Creio que o senhor Miguel também não ficará mal satisfeito
com o arranjo que damos a sua filha; sempre é alguma coisa sair do
cativeiro e casar?se com um homem branco e livre. Antes assim do que fugir,
e andar foragida por esse mundo. Isaura, para prova de quanto desejo o teu
bem, quero ser madrinha neste casamento, que vai pôr termo a teus sofrimentos,
e restabelecer nesta casa a paz e o contentamento, que há muito tempo
dela andavam arredados.

Ditas estas palavras, Malvina abriu um cofre de jóias, que estava
sobre uma mesa, e dele tirou um rico colar de ouro, que foi colocar no pescoço
de Isaura.

– Aceita isto, Isaura, – disse ela, – é o meu presente de noivado.

– Agradecida, minha boa senhora, – disse Isaura, e acrescentou em seu coração:
– é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço da
vítima.

Neste momento vem entrando Belchior acompanhado por André.

Eis?me aqui, senhora minha, – diz ele, – o que deseja deste seu menor criado?
– Dar?lhe os parabéns, senhor Belchior, – respondeu Malvina.

– Parabéns!… mas eu não sei por quê!…

– Pois eu lhe digo; fique sabendo que Isaura vai ser livre, e…

adivinhe o resto.

– E vai?se embora decerto… oh!… é uma desgraça! – Já
vejo que não é bom adivinhador. Isaura está resolvida
a casar?se com o senhor.

– Que me diz, patroa!… perdão, não posso acreditar. Vossemecê
está zombando comigo.

Digo?lhe a verdade; ai está ela, que não me deixará
mentir.

Apronte?se, senhor Belchior, e quanto antes, que amanhã mesmo há
de se fazer o casamento aqui mesmo em casa.

– Oh! senhora minha! divindade da Terra! – exclamou Belchior indo?se atirar
aos pés de Malvina e procurando beijá?los, – deixe?me beijar
esses pés…

– Levante?se daí, senhor Belchior; não é a mim, é
a Isaura que deve agradecer.

Belchior levanta?se e corre a prostrar?se aos pés de Isaura.

– Oh! princesa de meu coração! – exclamou ele atracando?se
ás pernas da pobre escrava, que fraca como estava, quase foi à
terra com a força daquela furiosa e entusiástica atracação.
Era para fazer rebentar de riso, a quem não soubesse quanto havia de
trágico e doloroso no fundo daquela ímpia e ignóbil farsa.

– Isaura!… não olhas para mim? aqui tens a teus pés este
teu menor cativo, Belchior!… olha para ele, para este teu adorador, que
hoje é mais do que um príncipe.., dá cá essa mãozinha,
deixa?me comê?la de beijos…

– Meu Deus! que farsa hedionda obrigam?me a representar! – murmurou Isaura
consigo, e voltando a face abandonou a mão a Belchior, que colando
a ela a boca no transporte do entusiasmo, desatou a chorar como uma criança.

– Olha que palerma! – disse André para Rosa, que observava de parte
aquela cena tragicômica. – E venham cá dizer?me que não
é o mel para a boca do asno! – Eu antes queria que me casassem com
um jacaré.

– Este meu sinhô moço tem idéias do diabo! quem havia
de lembrar?se de casar uma sereia com um boto? – Invejoso!… você é
que queria ser o boto, por isso está aí a torcer o nariz. Toma!…
bem feito!… agora o que faltava era que o nhonhô te desse de dote
à Isaura.

– Isso queria eu!… aposto que Isaura não vai casar de livre vontade!
e depois… nós cá nos arranjaríamos… havia de enfiar
o boto pelo fundo de uma agulha.

– Sai daí, tolo!… pensa que Isaura faz caso de você?…

– Não te arrebites, minha Rosa; já agora não há
remédio senão contentar?me contigo, que em fim de contas também
és bem bonitinha, e… tudo que cai no jequi, é peixe.

– É baixo!… agüente a sua tábua, e vá consolar?se
com quem quiser, menos comigo.

Capítulo 21

– Então, Leôncio, – dizia Malvina a seu esposo no outro dia
pela manhã, – deste as providências necessárias para arranjar?se
esse negócio hoje mesmo? – Creio que é a centésima vez
que me fazes essa pergunta, Malvina, – respondeu Leôncio sorrindo?se.
– Todavia pela centésima vez te responderei também, que as providências
que estão da minha parte, já foram todas dadas. Ontem mesmo
mandei um próprio a Campos, e não tardarão a chegar por
aí o tabelião para passar escritura de liberdade a Isaura com
toda a solenidade, e também o padre para celebrar o casamento. Bem
vês que de nada me esqueci. Tratem de estar todos prontos; e tu, Malvina,
manda já preparar a capela para se efetuar esse casamento, que pareces
desejar com mais ardor, – acrescentou sorrindo, – do que desejaste o teu próprio.

Malvina saiu do salão, deixando Leôncio em companhia de um
terceiro personagem, que também ali se achava, por nome Jorge, a quem
o leitor ainda não conhece. Dizendo que era um parasita, ainda não
temos dito tudo.

Este gênero contém muitas variedades, e mesmo cada individuo
tem sua cor e feição particular. Era um homem bem apessoado,
espirituoso serviçal, cheio de cortesia e amabilidade, condições
indispensáveis a um bom parasita. Jorge não vivia da seiva e
da sombra de uma só árvore; saltava de uma a outra, e assim
peregrinava por longas distâncias, o que era da sua parte um excelente
cálculo, pois proporcionava?lhe uma vida mais variada e recreativa,
ao mesmo tempo que tornava sua companhia menos incômoda e fatigante
aos seus numerosos amigos. Conhecia e entretinha relações de
amizade com todos os fazendeiros das margens do Paraíba desde São
João da Barra até São Fidélis. A crer no que dizia,
andava sempre cheio de afazeres e dando andamento a mil negócios importantes,
mas estava sempre pronto a prescindir deles a convite de qualquer desses amigos
para passar uns oito ou quinze dias em sua companhia.

Na solidão em que Leôncio se achou depois de seu rompimento
com Malvina, Jorge foi para ele um excelente recurso quando se achava na fazenda.
Servia?lhe de companheiro não só à mesa, como ao jogo
e à caça: entretinha?o a contar?lhe anedotas divertidas e escandalosas,
aplaudia?lhe os desvarios e extravagâncias, e lisonjeava?lhe as ruins
paixões, enquanto Leôncio, que o acreditava realmente um amigo,
fazia dele o seu confidente, e comunicava?lhe os seus mais íntimos
pensamentos, os seus planos de perversidade, e os mais secretos negócios
de família.

Para melhor entrarmos no mistério dos planos atrozes e ignóbeis,
das satânicas maquinações de Leôncio, ouçamos
a conversação íntima, que vão tratar estes dois
entes dignos um do outro.

– Até que por fim, Jorge, achei um meio engenhoso e seguro de aplanar
todas as dificuldades. Desta maneira espero que tudo se vai arranjar ás
mil maravilhas.

– Seguramente, e já de antemão te dou os parabéns pelos
teus triunfos, e aplaudo?te pela feliz combinação de teus planos.

– Mas escuta ainda para melhor poderes compreendê?los. Com este casamento
ficam satisfeitos os desejos de minha mulher, sem que Isaura escape de todo
ao meu poder. Como o pai dela está debaixo de minha restrita dependência,
eu saberei reter junto de mim esse estúpido jardineiro com quem caso?a,
e depois… tu bem sabes, o tempo e a perseverança amansam as feras
mais bravias. Entretanto a atrevida escrava receberá o castigo que
merece sua inqualificável rebeldia. Era?me absolutamente necessário
dar este passo, porque minha mulher recusa?se obstinadamente a reconciliar?se
comigo, enquanto eu conservar Isaura cativa em meu poder, capricho de mulher,
com que bem pouco me importaria, se não fosse… – isto aqui entre
nós, meu amigo; confio em tua discrição.

– Podes falar sem susto, que meu coração é como um
túmulo para o segredo da amizade.

– Bem; dizia?te eu, que bem pouco me importaria com os arrufos e caprichos
de minha mulher, se não fosse o completo desarranjo em que desgraçadamente
vão os meus negócios. Em conseqüência de uma infinidade
de circunstâncias, que é escusado agora explicar?te, a minha
fortuna está ameaçada de levar um baque horrendo, do qual não
sei se me será possível levantá?la sem auxilio estranho.
Ora meu sogro é o único que com o auxilio de seu dinheiro ou
de seu crédito pode ainda escorar o edifício de minha fortuna
prestes a desabar.

– Em verdade procedes com tino e prudência consumada. Oh! teu sogro!…
conheço?o muito; é uma fortuna sólida, e uma das casas
mais fortes do Rio de Janeiro; teu sogro não te deixará ficar
mal. Quer extremosamente à filha, e não quererá ver arruinado
o marido dela.

– Disso estou eu certo. Mas isto ainda não é tudo; escuta
ainda, Jorge. O meu rival, esse tal senhor Álvaro, que tanto cobiçou
a minha Isaura para sua amizade, que não teve pejo de seduzi?la, acoutá?la
e protegê?la pública e escandalosamente no Recife, esse grotesco
campeão da liberdade das escravas alheias, que protestou me disputar
Isaura a todo o risco, ficará de uma vez para sempre desenganado de
sua estulta pretensão. Vê pois, Jorge, quantos interesses e vantagens
se conciliam no simples fato desse casamento.

– Plano admirável na verdade, Leôncio! – exclamou Jorge enfaticamente.

– Tens um tino superior, e uma inteligência sutil e fértil
em recursos!., se te desses á política, asseguro?te que farias
um papel eminente; serias um estadista consumado. Esse Dom Quixote de nova
espécie, amparo da liberdade das escravas alheias, quando são
bonitas, não achará senão moinhos de vento a combater.
Muito havemos de nos rir de seu desapontamento, se lhe der na cabeça
continuar sua burlesca aventura.

– Creio que nessa não cairá ele; mas se por cá aparecesse,
muito tínhamos que debicá?lo.

– Meu senhor, – disse André entrando na sala, – aí estão
na porta uns cavalheiros, que pedem licença para apear e entrar.

– Ah! já sei, – disse Leôncio, – são eles, são
as pessoas que mandei chamar; o vigário, o tabelião e mais outros…
bom! já não nos falta tudo. Vieram mais depressa do que eu esperava.
Manda?os apear e entrar, André.

André sai, Leôncio toca uma campainha, e aparece Rosa.

– Rosa, diz?lhe ele, – vai já chamar sinhá Malvina e Isaura,
e o senhor Miguel e Belchior. Já devem estar prontos; precisa?se aqui
já da presença de todos eles.

– Estou aflito por ver o fim a esta farsa, – disse Leôncio a seu amigo,
– mas quero que ela se represente com certo aparato e solenidade, para inculcar
que tenho grande prazer em satisfazer o capricho de Malvina e melhor iludir
a sua credulidade; mas – fique isto aqui entre nós, – este casamento
não passa de uma burla. Tenho toda a certeza de que Isaura despreza
do fundo d’alma esse miserável idiota, que só em nome será
seu marido. Entretanto ficarei me aguardando para melhores tempos, e espero
que o meu plano surtirá o desejado efeito.

– Cá por mim não tenho a menor dúvida a respeito do
resultado de um plano tão maravilhosamente combinado.

Mal Jorge acabava de pronunciar estas palavras, apareceu à porta
do salão um belo e jovem cavalheiro, em elegantes trajos de viagem,
acompanhado de mais três ou quatro pessoas. Lêoncio, que já
ia pressuroso recebê?los e cumprimentá?los, estacou de repente.

-Oh!… não são quem eu esperava!… murmurou consigo. – Se
me não engano… é Álvaro!…

– Senhor Leôncio! – disse o cavalheiro cumprimentando?o.

– Senhor Álvaro, – respondeu Leôncio, – pois creio que é
a esse senhor, que tenho a honra de receber em minha casa.

– É ele mesmo, senhor; um seu criado.

– Ah! muito estimo… não o esperava… queira sentar?se… quis
então vir dar um passeio cá pelas nossas províncias do
Sul?…

Estas e outras frases banais dizia Leôncio, procurando refazer?se
da perturbação em que o lançara a súbita e inesperada
aparição de Álvaro naquele momento crítico e solene.

No mesmo momento entravam no salão por uma porta interior Malvina,
Isaura, Miguel e Belchior. Vinham já preparados com os competentes
trajos para a cerimônia do casamento.

– Meu Deus!… o que estou vendo!… – murmurou Isaura, sacudindo vivamente
o braço de Miguel: – estarei enganada?… não… é ele.

– É ele mesmo… Deus!… como é possível? – Oh! –
exclamou Isaura; e nesta simples interjeição, que exalou como
um suspiro, expressava o desafogo de um pego de angústias, que lhe
pesava sobre o coração. Quem de perto a olhasse com atenção
veria um leve rubor naquele rosto, que a dor e os sofrimentos pareciam ter
condenado a uma eterna e marmórea palidez; era a aurora da esperança,
cujo primeiro e tímido arrebol assomava nas faces daquela, cuja existência
naquele momento ia sepultar?se nas sombras de um lúgubre ocaso.

– Não esperava pela honra de recebê?lo hoje nesta sua casa,
– continuou Leôncio recobrando gradualmente o seu sangue?frio e seu
ar arrogante. – Entretanto há de permitir que me felicite a mim e ao
senhor por tão oportuna visita. A chegada de V. S.a. hoje nesta casa
parece um acontecimento auspicioso, e até providencial.

– Sim?!… muito folgo com isso..,.mas não terá V. S.a. a
bondade de dizer por quê?…

– Com muito gosto. Saiba que aquela sua protegida, aquela escrava, por quem
fez tantos extremos em Pernambuco, vai ser hoje mesmo libertada e casada com
um homem de bem. Chegou V. S.a.

mesmo a ponto de presenciar com os seus próprios olhos a realização
dos filantrópicos desejos, que tinha a respeito da dita escrava, e
eu da minha parte muito folgarei se V. S.a. quiser assistir a esse ato, que
ainda mais solene se tornará com a sua presença.

– E quem a liberta? – perguntou Álvaro sorrindo?se sardonicamente.

– Quem mais senão eu, que sou seu legitimo senhor? – respondeu Leôncio
com altiva seguridade.

– Pois declaro?lhe, que o não pode fazer, senhor: – disse Álvaro
com firmeza. – Essa escrava não lhe pertence mais.

– Não me pertence!… – bradou Leôncio levantando?se de um
salto, – o senhor delira ou está escarnecendo?…

– Nem uma, nem outra coisa, – respondeu Álvaro com toda a calma:
– repito?lhe; essa escrava não lhe pertence mais.

– E quem se atreve a esbulhar?me do direito que tenho sobre ela? – Os seus
credores, senhor, – replicou Álvaro, sempre com a mesma firmeza e sangue?frio.
– Esta fazenda com todos os escravos, esta casa com seus ricos móveis,
e sua baixela, nada disto lhe pertence mais; de hoje em diante o senhor não
pode dispor aqui nem do mais insignificante objeto. Veja, – continuou mostrando?lhe
um maço de papéis, – aqui tenho em minhas mãos toda a
sua fortuna. O seu passivo excede extraordinariamente a todos os seus haveres;
sua ruína é completa e irremediável, e a execução
de todos os seus bens vai lhe ser imediatamente intimada.

A um aceno de Álvaro, o escrivão que o acompanhava apresentou
a Leôncio o mandado de seqüestro e execução de seus
bens. Leôncio, arrebatando o papel com mão trêmula, passeou
rapidamente por ele os olhos faiscantes de cólera.

– Pois quê! – exclamou ele, – é assim violenta e atropeladamente
que se fazem estas coisas! porventura não posso obter alguma moratória,
e salvar minha honra e meus bens por outro qualquer meio?…

– Seus credores já usaram para com o senhor de todas as condescendências
e contemporizações possíveis. Saiba ainda demais, que
hoje sou eu o principal, se não o único credor seu; pertencem?me,
e estão em minhas mãos quase todos os seus títulos de
dívida, e eu não estou de ânimo a admitir transações
nem protelações de natureza alguma.

Dar seus bens a inventário eis o que lhe cumpre fazer; toda e qualquer
evasiva que tentar será inútil.

– Maldição! – bradou Leôncio, batendo com o pé
no chão e arrancando os cabelos.

– Meu Deus!… meu Deus!… que desgraça!… e que… vergonha!…

exclamou Malvina, soluçando.

Capítulo 22

Deixemos por um momento suspensa a cena do capítulo antecedente,
e interrompido o diálogo entre os dois mancebos. Eles ai ficam em face
um do outro, como o leão altivo e magnânimo tendo subjugado o
tigre daninho e traiçoeiro, que rosna em vão debaixo das possantes
garras de seu antagonista. É?nos preciso explicar por que série
de circunstâncias Álvaro veio aparecer em casa do senhor de Isaura,
a ponto de vir burlar os seus planos atrozes, mesmo no momento em que iam
ter final execução.

Depois que Isaura lhe fora arrebatada, Álvaro caiu na mais acerba
prostração de ânimo.

Ferido em seu orgulho, esbulhado do objeto de seu amor, escarnecido e vilipendiado
pela arrogância de um insolente escravocrata, entregou?se ao mais sombrio
desespero. Mal soube o seu revés, o Dr. Geraldo correu em socorro daquela
nobre alma tão cruelmente golpeada pelo destino. Graças aos
cuidados e conselhos daquele tão solícito quão inteligente
amigo, a dor de Álvaro foi?se tornando mais calma e resignada. Por
suas exortações Álvaro chegou mesmo a convencer?se que
o melhor partido que lhe ficava a tomar nas difíceis conjunturas em
que se achava, era procurar esquecer?se de Isaura.

Todo o esforço que fizeres, – dizia?lhe o amigo, – em favor da liberdade
de Isaura, será rematada loucura, que não terá outro
resultado senão envolver?te em novas dificuldades, cobrindo?te de ridículo
e de humilhação. Já passaste por duas decepções
bem cruéis, a do baile, e esta última ainda mais triste e humilhante.
Quase te fizeste réu de polícia, querendo disputar uma escrava
a seu legítimo senhor. Pois bem; as seguintes serão ainda piores,
eu te asseguro, e te farão ir rolando de abismo em abismo até
tua completa perdição.

Atendendo a estas e mil outras considerações de Geraldo, Àlvaro
procurou firmar o espírito e a vontade no propósito de renunciar
ao seu amor, e a todas as suas pretensões filantrópicas sobre
Isaura. Foi debalde.

Depois de um mês de luta consigo mesmo, de sempre frustradas veleidades
de revolta contra os impulsos do coração, Álvaro sentiu?se
fraco, e compreendeu que semelhante tentativa era uma luta insensata contra
a força onipotente do destino. Embalde procurou, já nas graves
ocupações do espírito, já nas distrações
frívolas da sociedade, um meio de apagar da lembrança a imagem
da gentil cativa. Ela lhe estava sempre presente em todos os sonhos d’alma,
ora resplendente de beleza e graça, donosa e sedutora como na noite
do baile, ora pálida e abatida, vergada ao peso de seu infortúnio,
com os pulsos algemados, cravando nele os olhos suplicantes como que a dizer?lhe:
– Vem, não me abandones; só tu podes quebrar estes ferros que
me oprimem.

O espírito de Álvaro firmou?se por fim na íntima e
inabalável convicção de que o céu, pondo em contato
o seu destino com o daquela encantadora e infeliz escrava, tivera um desígnio
providencial, e o escolhera para instrumento da nobre e generosa missão
de arrebatá?la à escravidão, e dar?lhe na sociedade o
elevado lugar que por sua beleza, virtudes e talentos, lhe competia.

Resolveu?se portanto, fosse qual fosse o resultado, a prosseguir nessa generosa
tentativa, com a cegueira do fanatismo, senão com o arrastamento de
uma inspiração providencial.

Álvaro partiu para o Rio de Janeiro. Ia ao acaso, sem plano nenhum
formado, sem bem saber o que devia fazer para chegar aos seus fins; mas tinha
como uma intuição vaga de que o céu lhe depararia ocasião
e meios de levar a cabo a sua empresa. O que queria em primeiro lugar era
colocar?se nas vizinhanças de Leôncio, a fim de poder colher
informações e investigar se porventura algum recurso haveria
para obrigar o senhor de Isaura a manumiti?la.

Desembarcou na corte com o fim de dirigir?se brevemente para Campos. Antes
porém de partir para seu destino, procurou colher entre as pessoas
do comércio algumas informações a respeito de Leôncio.

– Oh! conheço muito esse sujeito, – disse logo o primeiro negociante,
a quem Álvaro se dirigiu. – Esse moço está falido, e
em completa ruína. Se V. S.ª também é credor dele,
pode pôr as suas barbas de molho, porque as dos vizinhos estão
a arder. Essa casa bem liquida, mal dará para um rateio, em que toque
cinquenta por cento a cada credor.

Esta revelação foi para Álvaro como um relâmpago
que se abre aos olhos do viandante extraviado em noite tormentosa, mostrando?lhe
de repente e bem ao perto o albergue hospitaleiro que demanda.

– E V. S.ª porventura é também credor desse fazendeiro?
– perguntou Álvaro.

– Infelizmente, e um dos principais…

– E a quanto montará a fortuna do tal Leôncio? – A menos de
nada, presentemente, pois como já lhe disse, o seu passivo excede talvez
em mais do dobro a todos os seus bens.

– Mas esse passivo mesmo, em que soma é calculado pouco mais ou menos?
– Calcula?se aproximadamente em quatrocentos e tantos a quinhentos contos,
enquanto que a fazenda de Campos, com escravos e todos os mais acessórios,
não excederá talvez a duzentos. Já temos tido com esse
fazendeiro todas as atenções possíveis, e lhe temos dado
mais moratórias do que a lei concede; não somos obrigados a
mais, e agora estamos resolvidos a cair?lhe em cima com a execução.

– E quais são os outros credores? V. S.ª quererá indicar?mos?
– E por que não? – respondeu o negociante, e passou a indicar a Álvaro
os nomes e moradas dos demais credores.

De feito, a casa de Leôncio, já desde os últimos anos
da vida de seu pai, ia em contínuo regresso e desmantelamento. O velho
comendador, entregando?se no último quartel da vida a excessos e devassidões,
que nem na mocidade são desculpáveis, vivendo quase sempre na
corte, e deixando quase em completo abandono a administração
da fazenda, havia já esbanjado não pequena porção
de sua fortuna.

Por efeito da má administração, não só
as safras começaram a escassear consideravelmente, como também
o número de escravos foi?se reduzindo pela morte e pelas freqüentes
fugas, sem que tanto o comendador como seu filho deixassem de substituí?los
por outros novos, que iam comprando a prazo, tornando cada vez mais pesado
o ônus das dívidas.

Depois da morte do comendador, as coisas foram de mal a pior.

Leôncio, com a educação e a índole que lhe conhecemos,
era o homem menos próprio possível para dirigir e explorar um
grande estabelecimento agrícola.

Seus desvarios e extravagâncias, e por último sua nefasta e
insensata paixão por Isaura, fizeram?no perder de todo a cabeça,
arrojando?se em um plano inclinado de despesas ruinosas, sem cálculo
nem previsão alguma. Com os enormes dispêndios que teve de fazer
em conseqüência da fuga de Isaura, mandando procurá?la por
todos os cantos do império, acabou de cavar o abismo de sua ruína.
Em pouco tempo o jovem fazendeiro estava de todo insolvável, sem um
real em caixa, e com uma multidão de letras protestadas na carteira
de seus credores. Quando estes acordaram e se lembraram de lhe abrir a falência
e executar os seus bens, compreenderam que mal poderiam embolsar?se da metade
do que lhes era devido, e, portanto, trataram com sofreguidão de promover
os meios executivos, antes que o mal fosse a mais.

Depois de conferenciar com os credores de Leôncio, propôs?lhes
a compra de todos os seus créditos pela metade do seu valor. Para evitar
qualquer odiosidade, que semelhante procedimento pudesse acarretar sobre sua
pessoa, declarou?lhes que nenhuma intenção tinha de vexar nem
oprimir o infeliz fazendeiro, que pelo contrário era seu intuito protegê?lo
e livrá?lo do vexame de uma rigorosa execução judicial,
e deixá?lo ao abrigo da miséria. E realmente, a despeito da
aversão e desprezo que Leôncio lhe merecia, Álvaro não
pretendia levar ao último extremo os meios de vingança, que
por um acaso as circunstâncias tinham posto em suas mãos. Era
ele dez vezes mais rico do que o seu adversário, e de muito bom grado,
se não houvesse outro recurso, por um contrato amigável daria
uma soma igual a toda a fortuna deste, pela liberdade de Isaura.

Agora, que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna
desse adversário caprichoso, arrogante e desalmado, Álvaro,
sempre generoso, nem por isso desejava vê?lo reduzido à miséria.

Os credores não hesitaram um momento em aceitar a proposta.

Com razão preferiram saldar suas contas por um modo fácil
e expedito, em dinheiro contado, recebendo a metade, do que sujeitando?se
às despesas, delongas e dificuldades de uma execução
em escravos e bens de raiz, quando nenhuma probabilidade havia de que no rateio
pudessem obter mais de metade.

Senhor de todos os títulos de divida de Leôncio, isto é,
de toda a sua fortuna, Álvaro partiu para Campos a fim de promover
por sua conta a execução dos bens do mesmo, e munido de todos
os papéis e documentos, acompanhado de um escrivão e dois oficiais
de justiça, apresentou?se em pessoa em casa de Leôncio para intimar?lhe
em pessoa a sentença de sua perdição.

– Oh! maldição! – exclamara Leôncio, arrancando os cabelos
em desespero, depois que ouvira dos lábios de Álvaro aquele
arresto esmagador.

Atordoado e quase louco com a violência do golpe, ia sair correndo
pela porta a fora.

– Espere ainda, senhor, – disse Álvaro detendo?o pelo braço.
– Agora quanto à escrava de que há pouco se falava, o que pretendia
fazer dela? – Libertá?la, já lhe disse, – respondeu Leôncio
com rudeza.

– E mais alguma coisa; creio que também me disse que ia casá?la;
e, desculpe?me a pergunta, haveria para isso consentimento da parte dela?
– Oh! não! não!… eu era arrastada, senhor! – exclamou Isaura
resolutamente.

– É verdade, senhor Álvaro, – atalhou Miguel, ela ia casar?se,
por assim dizer, forçada. O senhor Leôncio, como condição
da liberdade dela obrigava?a a casar?se com aquele pobre homem que V. S.ª
ali vê.

– Com aquele homem?! – exclamou Álvaro cheio de pasmo e indignação,
olhando para o homúnculo que Miguel lhe indicava com o dedo.

– Sim, senhor, – continuou Miguel, – e se ela não se sujeitasse a
esse casamento, teria de passar o resto da vida presa em um quarto escuro,
incomunicável, com o pé enfiado em uma grossa corrente, como
tem vivido desde que veio do Recife até o dia de hoje…

– Verdugo! – bradou Álvaro, não podendo mais sopear sua indignação.
– A mão da justiça divina pesa enfim sobre ti para punir tuas
monstruosas atrocidades! – O que vergonha!.., que opróbrio, meu Deus!
– exclamou Malvina, debruçando? se a uma mesa, e escondendo o rosto
entre as mãos.

– Pobre Isaura! – disse Álvaro com voz comovida, estendendo os braços
à cativa. – Chega? te a mim… Eu protestei no fundo de minha alma
e por minha honra desafrontar? te do jugo opressor e aviltante, que te esmagava,
porque via em ti a pureza de um anjo, e a nobre e altiva resignação
da mártir. Foi uma missão santa, que julgo ter recebido do céu,
e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo resultado.

Deus enfim, por minhas mãos vinga a inocência e a virtude oprimida,
e esmaga o algoz.

– Deixe? se de blasonar, senhor! – gritou Leôncio agitando? se em
gesticulações de furor: – isto não passa de uma infâmia,
uma traição, e ladroeira…

– Isaura! – continuou Álvaro com voz sempre firme e grave: – se esse
algoz ainda há pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a
tua vida, e não tas cedia senão com a condição
de desposares um ente disforme e desprezível, agora tens nas tuas a
sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas. Isaura,
tu és hoje a senhora, e ele o escravo; se não quiser mendigar
o pão, há de recorrer à nossa generosidade.

– Senhor! – exclamou Isaura correndo a lançar?se aos pés de
Álvaro; – oh! quanto sois bom e generoso para com esta infeliz escrava!…
mas em nome dessa mesma generosidade, de joelhos eu vos peço, perdão!
perdão para eles…

– Levanta? te, mulher generosa e sublime! – disse Álvaro estendo?lhe
as mãos para levantar? se. – Levanta?te, Isaura; não é
a meus pés, mas sim em meus braços, aqui bem perto do meu coração,
que te deves lançar, pois a despeito de todos os preconceitos do mundo,
eu me julgo o mais feliz dos mortais em poder oferecer? te a mão de
esposo!…

– Senhor, – bradou Leôncio com os lábios espumantes e os olhos
desvairados, – aí tendes tudo quanto possuo; pode saciar sua vingança,
mas eu lhe juro, nunca há de ter o prazer de ver?me implorar a sua
generosidade.

E dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova contígua à
sala.

– Leôncio! Leôncio!… onde vais! – exclamou Malvina precipitando?se
para ele; mal, porém, havia ela chegado à porta, ouviu?se a
explosão atroadora de um tiro.

– Ai!… – gritou Malvina, e caiu redondamente em terra.

Leôncio tinha?se rebentado o crânio com um tiro de pistola.

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