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Prefácio
Herança africana legada à cultura brasileira, o jogo da Capoeira
significa valioso contributo à formação da nossa identidade
cultural.
Neste livro estabelecemos os caracteres delineadores da Capoeira, propiciando
uma oportunidade de iniciação à arte. Na leitura desse
tema ampliam-se as possibilidade de compreensão da nossa história,
onde se insere a Capoeira e que preservou a lembrança das lutas sociais
que forjaram a cidadania brasileira.
Esta obra é um passo para se promover o resgate das tradições
da Capoeira divulgando essa bela expressão nacional.
Kleber Adorno
I – O Caminho da Capoeira
“Em nome do Deus de todos os nomes Javé, Obatalá, Olorum,
Oió.
Em nome de Deus, que a todos os Homens nos faz da ternura e do pó.
Em nome do Povo que espera na graça da fé, à voz do
Xangô o Quilombo Páscoa que o libertará.
Em nome do Povo sempre deportado pelas brancas velas no exílio dos
mares marginalizados no cais, nas favelas e até nos altares.
Em nome do povo que fez seu Palmares, que ainda fará Palmares de
novo Palmares, Palmares, Palmares do Povo.” missa dos Quilombos
O QUE É A CAPOEIRA?
‘Os negros usavam a Capoeira para defender sua liberdade.’ Mestre Pastinha
Capoeira é luta, jogo e dança. Brincadeira de movimentos perigosos
executados com graça, malícia e muitos rituais. Dança
negra em que prevalece a agilidade da esquiva e a esperteza da fuga. Os pés
que deslizam sobre o chão podem desferir golpes fatais: de repente,
ante os olhos surpresos do adversário, o gesto rápido. O ataque
fulminante. Então, prostrado, o inimigo se dá conta de que foi
vítima da mandinga. Isto, se ainda tiver vida… Essa dança
– enquanto forma de expressão corporal – possui uma linguagem onde
cada gesto significa e representa idéias e sentimentos, emoções.
Sensações.
“No tempo em que o negro chegava/fechado em gaiola/Nasceu no Brasil/Quilombo
e quilombola/E todo dia/Negro fugia/ juntando a curriola/De estalo de açoite,
de ponta de faca/ e zunido de bala/Negro voltava p’ra argola/ no meio
da senzala/E ao som do tambor primitivo/ berimbau, maraca e viola/Negro gritava:
abre ala! Vai ter jogo de Angola” Mauro Duarte & Paulo Cesar Pinheiro,
Jogo de Angola O jogo da Capoeira é a síntese da dança.
A sua essência, disfarçada em brinquedo: vadiação;
distração de quem busca extravasar cada função
interior nos gestos exteriores. Nessa dança se manifesta a tradição
milenar da cultura negra de reverenciar as origens, cada vez que se repetem
gestos ancestrais,. renovados: o jogo da Capoeira é um vínculo
com antepassados que praticaram os mesmos atos. A habilidade, agilidade e
destreza do capoeira estão expressos com astúcia no balanço
dos braços, no arremesso oportuno dos pés, no meneio desconcertante
do tronco, na harmonia de todo o corpo em gestos circulares que não
perdem a continuidade – como se fora um ininterrupto perambular pelo círculo,
em estreita ligação com o solo.
A Capoeira consiste numa dança onde o emprego dos movimentos arriscados
– dado à circunstância de camuflar possível contenda –
envolve os participantes e contagia quem assiste. A natureza dúplice
de luta disfarçada em brincadeira dá forma a um jogo de movimentos
combinando objetividade e precisão no ataque com defesas velozes, originais,
em que o corpo é utilizado no limite dos recursos de elasticidade e
flexibilidade muscular, compondo assim uma bela plástica humana em
gestos despojados, naturais, numa estranha dança do perigo. É
ainda mais a dança da Capoeira: o contato com o chão, intenso
como o vínculo dos filhos com a mãe terra,. que envolve e protege,
gera e alimenta a vida, acolhendo a dança que é também
em seu louvor.
A postura respeitosa dos capoeiras uns com os outros, para com o jogo, o
“chão”, o berimbau e o atabaque, se explica no propósito
maior da dança: unir. Ligar estreitamente, como as mãos que
se apertam ao final de cada jogo, na saudação dos camarás.
O jogo da Capoeira é o corpo e a essência de 500 anos de luta
de resistência negra, constituindo-se na primeira e original manifestação
libertária da cultura brasileira; é o corpo e a força
dos ritos que preservam os mitos e os arquétipos da nossa gente. Participando
ativamente da resistência comum às variadas formas de dominação
física e cultural, desde o seu aparecimento nas terras brasileiras
a Capoeira insurge-se em defesa da construção de uma nova identidade
coletiva: esse jogo não foi somente um fermento revolucionário;
é realmente um instrumento de transformações firmado
nas mais antigas raízes culturais do povo brasileiro; instrumento e
voz de um povo na luta por um diálogo igualitário, respeitoso
e fraterno entre todas as pessoas.
“Dança guerreira/Corpo do negro é de mola Na Capoeira/
Negro embola e desembola/E a dança que era uma festa pro povo da terra/Virou
a principal defesa do negro na guerra/Pelo que se chamou libertação/E
por toda força, coragem e rebeldia/Louvado será todo dia/Que
esse povo cantar e lembrar o jogo de Angola/Da escravidão no Brasil”
Nas rodas do jogo a luta da Capoeira é um brinquedo guerreiro, uma
diversão entre camaradas unidos na mesma luta, irmãos no combate
da cidadania. Quando o jogo degenera em luta explícita, já não
ocorre a Capoeira. O objetivo da luta é tornar o capoeira senhor de
si mesmo e integrado ao grupo: é no recesso da comunidade que ocorre
o aprendizado e a prática do jogo, de forma coletiva e fraterna. E,
se às vezes isto não acontece, não se pode falar em Capoeira
na plenitude; quando muito em adestramento nos movimentos básicos,
de forma desvinculada dos objetivos e fundamentos da arte.
O ponto alto da luta sempre foi resistir: contra o preconceito, a discriminação
disfarçada; contra oportunistas e aproveitadores astuciosos que se
apropriam dos valores da nossa cultura e tentam adulterá-la, fazendo
isto de tal forma que ao negro é mesmo vedado o acesso à manifestação
que deram origem. O jogo da Capoeira é a luta de resistência
de um povo que sempre reagiu à dominação das elites que
detêm o poder: a luta da Capoeira é insubordinação,
é subversão, é reação, mais que nunca reafirmando
os principal valor do homem: liberdade.
“Capoeira vai lutar/já cantou e já dançou/não
pode mais esperar…/Não há mais o que falar/cada um dá
o que tem/Capoeira vai lutar…/Vem de longe, não tem pressa/mas tem
hora p’ra chegar/ já deixou de lado sonhos/dança, canto
e berimbau/abram alas, batam palmas poeira vai levantar/ quem sabe da vida
espera dia certo p’ra chegar/ Capoeira não tem pressa/mas na
hora vai lutar…” Geraldo Vandré, Hora de Lutar Luta negra.
Presente no cotidiano dos morros, terreiros, favelas, praças e ruas.
Companheira do trabalho e diversão das feiras e festas, acompanhando
o negro em qualquer ambiente social.
ITINERÁRIOS
“Fomos ao rio de Meca/ Pelejamos e roubamos/E muito risco passamos/
e vela./E árvore seca./(…) A renda que apanhais/O melhor que vós
podeis,/Nas igrejas não gastais/Aos pobres pouco dais/E não
sei o que lhe fazeis.” Gil Vicente, Exortação da Guerra
PORTUGAL, ÁFRICA E BRASIL: A AVENTURA TRANSOCEÂNICA O período
histórico onde se situa o descobrimento do Brasil e a conseqüente
formação da nossa cultura teve o valioso testemunho dos relatos
e narrativas deixadas por escritores portugueses da época.
A literatura lusa – constituída ainda no período medieval
– alcançou o apogeu com Gil Vicente, Camões e Fernão
Mendes Pinto, justamente na fase em que é completada a expansão
do povo português no mundo. O Brasil, portanto, é contemporâneo
dessa expansão, nela se inserindo tanto o fato primordial da sua descoberta
e colonização, quanto o dos belos trabalhos produzidos pela
talentosa literatura portuguesa terem por motivo inspirador os fatos decorrentes
da sua descoberta – além da conquista na África.
A língua portuguesa, instrumento dessa literatura e que com ela se
aprimorou, deriva do latim popular, que teria chegado à Península
Ibérica no século III antes de Cristo.
Na história literária – assim como na história geral
– encontramos divisões em épocas ou períodos, compreendendo
fases de tempo em evolução cronológica e englobando conjuntos
de obras literárias com características comuns. Nesse trabalho,
os historiadores da literatura consideram se as obras obedecem aproximadamente
à mesma ordem de valores estáticos, ao reuni-las com vistas
à exposição histórica.
Segundo o Prof. Fidelino Figueiredo, dividindo a literatura portuguesa em
eras, temos as seguintes: medieval (do século XII até 1502),
clássica (1502 a 1825) e romântica (de 1825 aos dias atuais).
O período medieval da literatura portuguesa se caracteriza pela poesia,
reunida em repositórios coletivos (os Cancioneiros), que são
os seguintes: o Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana, o Cancioneiro
Português Colocci-Brancuti e o Cancioneiro Português da Ajuda.
Esta fase medieval é geralmente considerada como finda no começo
do século XVI – quando é representada a primeira obra teatral
de Gil Vicente, o Monólogo do Vaqueiro, em 1502. Começa então
o período clássico (já contemporâneo do Brasil),
onde a literatura produz obras importantes para a compreensão da gente
que realizaria a colonização, evidenciando o seu caráter
e a perspectiva em que encaravam a nossa terra.
Na fase clássica encontramos os trabalhos literários que mais
diretamente se relacionam à nossa história, abordando as conquistas
na África, os costumes de Portugal, as viagens de descobrimento na
América e análises e observações importantes acerca
da sociedade da época.
Salientamos a importância da consulta às obras de Gil Vicente
(1460-1536), fundador do teatro português, autor das farsas Juiz da
Beira, Clérigo da Beira, Inês Pereira e Quem tem Farelos; dos
autos da Barca da Glória, da Barca do Inferno e da Barca do Purgatório.
Gil Vicente distinguiu-se ainda como poeta e cronista de costumes ao retratar
a vida portuguesa do seu tempo.
Outro vulto de destaque para a compreensão do que era a gente portuguesa
é Luis de Camões (1524-1580), não somente o grande poeta
lírico do período clássico mas o mais importante poeta
da língua portuguesa, como épico em Os Lusíadas, ou lírico,
com as Rimas. Dramaturgo, distinguiu-se com as comédias El-Rei Seleuco,
Anfitriões e Filodemo.
Muitos foram os poetas e romancistas deste período, cujo talento
não se ofusca ante o infausto brilho das conquistas na África
e no Brasil. Destacam-se: Bernardim Ribeiro (1475-1553), poeta e romancista,
autor famoso de Menina e Moça; Francisco de Sá Miranda (1495-1558),
poeta e teatrólogo: Antonio Ferreira (1528-1559), também poeta
e teatrólogo; João de Barros (1496-1570), autor das Décadas
da Ásia, prosador e historiador; Damião de Góis (1502-1574),
autor da Crônica do Príncipe D. João; Fernão Mendes
Pinto (1509-1580) viajante e prosador, autor do relato Peregrinação,
de suas viagens ao Oriente; e Diogo do Couto (1542-1616), continuador das
Décadas da Ásia, companheiro de Camões em Moçambique,
autor do Soldado Prático.
À época, destacaram-se como historiadores mais especificamente
do descobrimento e início da colonização do Brasil: Pero
de Magalhães Gandavo ( ? – 1576), autor da História da Província
de Santa Cruz e do Tratado da Terra do Brasil; Gabriel Soares de Sousa (1540-1592),
autor do Tratado Descritivo do Brasil; e Frei Luis de Sousa (1555-1632), autor
da Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires.
Dentre os escritores brasileiros, um dos primeiros historiadores foi o Frei
Vicente do Salvador (1564-1639), nascido na Bahia, o primeiro a fazer uso
da prosa literária em sua História do Brasil, que somente seria
publicada em 1889. Segundo o crítico José Veríssimo,
ao fazermos a lista dos nossos clássicos, com certeza Frei Vicente
do Salvador seria o primeiro.
Estes são alguns dos principais autores e trabalhos que nos permitem
uma introdução à história do Brasil e seus problemas,
com vistas a formarmos a nossa própria crítica do processo de
surgimento da civilização brasileira.
Aos amantes da leitura, fica a sugestão para pesquisa e estudo .AS
ORIGENS DA CAPOEIRA
‘São dois pra bater no negro/de pau, chicote e facão/p’ra
se safar tem o negro/só dois pés e duas mãos/é
a mão pelo pé/ é o pé pela mão bate na
cara/derruba no chão Sérgio Ricardo, Brincadeira de Angola
As origens do jogo da Capoeira se encontram no princípio da nação
brasileira, e seu desenvolvimento acompanhou o relacionamento de negros, brancos
e índios no continente americano. A terra descoberta aos olhos do colonizador
seria o berço de uma nova cultura – fruto das peculiaridades do ambiente
e da forma em que se processavam as relações entre os conquistadores
europeus; os ameríndios – primeiros senhores do continente; e os africanos
– trazidos à força para realizar todo o trabalho.
No entender do descobridor o novo mundo deveria ser explorado em todos os
aspectos, como fonte supridora da necessidade de riquezas fáceis sentida
na Europa. E nada mais natural que o emprego do trabalho escravo. De nativos
e africanos. Afinal, a nobreza que governava o mundo ocidental gozava do privilégio
de ser ociosa. Para as agruras de todos os serviços, somente seres
inferiores, aí incluídos todos que não tivessem a pele
branca.
A presença dos portugueses na África tem registro desde meados
de 1430. Lá, o europeu incentivava astuciosamente as diferenças
tribais, fomentando rivalidades entre grupos. Depois, adquiria os prisioneiros
feitos por ocasião dos conflitos, negociando com exploradores de toda
espécie a aquisição de seres humanos para o trabalho
forçado.
A chegada dos colonizadores significava destruição completa
para os nativos da África – o provável berço da humanidade,
segundo recentes estudos. Os africanos apresados eram obrigados a trabalhar
nas plantações canavieiras das ilhas do Atlântico. À
época da descoberta do Brasil, Portugal já vivia da exploração
de colônias na África, Ásia e no Atlântico. Seu
caráter já amolecera na aventura da escravidão. Luis
de Camões, que via muito bem com seu único olho, se lamentava
de ver sua pátria mergulhada “no gosto da cobiça e na
rudeza/de uma austera, apagada e vil tristeza”.
Em 1441, Antão Gonçalves levou a D. Henrique dez negros que
trocara por dez mouros colhidos na costa da África. Segundo Azorara,
que além de chefe de expedições portuguesas que praticaram
massacres nas terras africanas revelou pendores literários, manifestos
em crônicas aduladoras, D. Henrique mostrou-se “ledo” ao
ver os africanos. Não pelo número, acentuou o cronista, “mas
pella sperança dos outros que podya aver”. No ano de 1444 fundou-se
a Companhia de Lagos, cuja finalidade era intensificar o tráfico de
escravos. No fim do século, Portugal recebia em média 12.000
escravos por ano, provenientes a princípio de Guiné, São
Tomé, Príncipe e mais tarde, de Angola, Moçambique e
demais regiões africanas. A escravidão tornara-se a mais próspera
indústria do país.
O empreendimento desumano cresceu de tal forma que cerca de um século
após iniciado, o flamengo Nicolaus Cleynaerts, humanista que se encontrava
na corte portuguesa como preceptor dos filhos de D. João III, fez as
seguintes observações a respeito do reino ibérico: “Tudo
ali pulula de escravos, todos os trabalhos são executados por negros
e cativos, dos quais Portugal está tão cheio que, segundo creio,
existem em Lisboa mais escravos e escravas dessa espécie do que portugueses
livres.” Foi aí que entramos na história. Os interesses
econômicos e ideológicos dos portugueses – “a dilatação
da Fé e do Império” – segundo Camões -, não
estavam voltados exclusivamente para o Oriente fértil das ricas especiarias,
sedas, objetos de valor como tapetes, perfumes, produtos medicinais. Vasco
da Gama retornara da Índia com um carregamento de pimenta que permitiu
lucros de até 6.000%, quando vendido na Europa. Mas no seu Diário
de Viagem ele contava ter percebido sinais seguros da existência de
terras a oeste de sua rota. A Espanha já tinha descoberto novos mundos
na sua tentativa de chegar ao oriente navegando sempre para ocidente. E Portugal
já tinha assegurado para si uma parte desse território, com
a Capitulação da Partição do Mar Oceano, mais
conhecida como Tratado de Tordesilhas, assinado entre as duas potências
de então, em 1494.
Não é absurdo supor que Cabral recebera orientação
no sentido de afastar-se ao máximo da costa africana, podendo confirmar
a existência dessas terras e delas tomar posse. Essa seria outra tarefa
de sua expedição. O descobrimento do Brasil é apenas
um episódio da expansão marítima européia, no
momento da transição do feudalismo para o capitalismo. As práticas
mercantilistas e a predominância dos interesses econômicos sobre
os aspectos religiosos e ideológicos se refletem até no nome
definitivo que a terra ganha, provocando protestos do cronista João
de Barros: “Por artes diabólicas se mudava o nome de Santa Cruz,
tão pio e devoto, para o de um pau de tingir panos”.
O início da colonização das terras brasileiras se deu
sob o reinado de D. João III, conhecido como O Colonizador em razão
das expedições que organizou. Em 1530 uma nova esquadra veio
para o Brasil sob o comando de Martim Afonso de Sousa, com instruções
similares àquelas emitidas aos navegadores que o antecederam: as suas
cinco embarcações explorariam o litoral compreendido entre o
Maranhão e o Rio da Prata, capturando os contrabandistas encontrados
ao longo da Costa do Pau-Brasil. Entretanto, eram mais amplos os objetivos
específicos do Capitão: fundamentar a efetiva invasão
da terra, implantando núcleos de povoamento dos portugueses. Pero Lopes
de Sousa, irmão de Martim Afonso, relata como isso aconteceu, em seu
Diário: “A todos nos pareceu tão bem esta terra que o
capitão determinou de a povoar, e deu a todos os homens terras para
fazerem fazendas: e fez uma vila na ilha de São Vicente e outra nove
léguas a dentro pelo sertão, à borda de um rio que se
chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficinas,
e fez tudo em boa obra de justiça.” Em meados de 1532 foi introduzido
no Brasil o cultivo da cana-de-açúcar e no seu desenvolvimento
os colonos fixaram-se à terra, adquirindo glebas e se instalando com
plantações e engenhos. Surgiram as duas primeiras vilas brasileiras
no mesmo ano: São Vicente e Piratininga. Desobedecendo às ordens
reais as povoações não se localizavam na chamada Costa
do Pau-Brasil: revelava-se a prioridade dos portugueses – que era a busca
dos metais preciosos. A escolha do local para a fundação das
vilas facilitava a procura das minas do Peru e do Paraguai, à época
em conquista – a ferro e fogo! – pelos espanhóis chefiados por Francisco
Pizarro, que destruiriam o Império Inca.
A sede da riqueza dos metais levou os lusitanos a explorarem o estuário
platino, organizando entradas com destino ao interior, saindo de Cananéia
e Guanabara. A entrada que partiu de Cananéia foi dizimada pelas populações
indígenas da região do atual Paraná, mostrando que a
dominação das novas terras não seria uma tarefa fácil.
Quem era a gente portuguesa que se propunha a empreender uma tarefa que
não se apresentava como das mais fáceis? Àquela altura,
segundo Fernando Palha, Portugal importava tudo, desde o pão que comia
até a lã que fiava. Nenhum português queria fazer nada:
“A prática bissecular da pilhagem no seu próprio país
(os impostos escorchantes), a aventura oceânica e o tráfico negreiro,
tudo isso minou a resistência moral do povo, dando-lhe até repugnância
pelo trabalho.” Como o Brasil só era habitado por silvícolas,
ninguém queria vir para cá – além dos que seriam proprietários
das terras. Francisco de Sá Miranda, grande poeta português,
mas inegavelmente dominado pela ambição, refere-se ao fascínio
das especiarias da Ásia e da África – que o Brasil não
tinha – com estas palavras: “ao cheiro desta canela/o reino nos despovoa”.
Antonio Ferreira, poeta renascentista, retrata bem o espírito da época
em Portugal, a ambição do reino pelos metais preciosos: “tudo
obedece a este só Tirano/Esta é a idade que chamaram de ouro/Tanto
valho, Senhor, quanto entesouro”. Ainda sobre o caráter da nobreza
e do povo português ao tempo da descoberta e exploração,
fala melhor o holandês Cleynaerts. Diz ele que “se há povo
algum dado à preguiça, sem ser o português, então
não sei eu onde ele exista (…)”. Esse tal Cleynaerts foi ainda
mais direto em suas considerações: “em Portugal somos
todos nobres, e tem-se como uma grande desonra exercer uma profissão
qualquer”. Outro que também se queixou do caráter dos
compatriotas foi Diogo do Couto: “(é) muito antiga esta miséria
portuguesa de não saber dar lugar às virtudes nem engrandecer
honrosos pensamentos”. Quanto à moral da nobreza – a começar
pela família real, que tinha origem bastarda – era a pior possível.
Frei Luis de Sousa disse que nela “o vício era posto a cavalo”.
Revela Fernão Lopes que D. Pedro I (de Portugal) confessara um dia
a Nuno Freire que alguém lhe dissera ter ele um filho de nome João
que subiria muito alto, mas ele próprio não sabia qual fosse,
pois tinha vários filhos com o mesmo nome, inclusive um deles com a
bela Inês de Castro…
Apesar da ausência de ouro e prata, São Vicente adquire contornos
definitivos: a primeira unidade produtora de açúcar – o Engenho
do Senhor Governador – foi instalada em 1533. Passado um ano chegam as primeiras
cabeças de gado provenientes de Cabo Verde. Logo ficou evidente a insuficiência
dos núcleos isolados de povoamento para assegurar o domínio
português. A maior extensão do litoral brasileiro continuava
à mercê de incursões estrangeiras. É hora de D.
João III mais uma vez justificar o cognome de Colonizador: seguindo
conselhos de um descendente de colonos das ilhas do Atlântico, Cristóvão
Jacques, do reitor da Universidade de Bordéus e de outros destaques
da corte, resolve implementar a colonização. A tantos bons conselhos
se acrescentou a cobiça, objetivamente: manter o monopólio oriental
era muito dispendioso e a notícia da descoberta de ouro e prata na
América Espanhola valorizou ainda mais o novo mundo.
A ocupação e colonização do Brasil era um imenso
desafio para um reino de dois milhões de habitantes. A saída,
como no caso do extrativismo vegetal do Pau-Brasil, foi transferir a particulares
os encargos desse empreendimento. Baseando-se nas informações
emitidas por Martim Afonso, foi estabelecida a divisão do litoral brasileiro
em 14 faixas lineares – as Capitanias Hereditárias. Era a repetição
da experiência realizada nas ilhas de Açores, Cabo Verde, Madeira,
Porto Santo, São Tomé e Príncipe e no Território
de Angola, no continente africano. As capitanias foram entregues a 12 membros
da pequena nobreza – os donatários – dependentes do aparelho burocrático
do Estado. Alguns nem vieram ao Brasil. O pequeno interesse e a ausência
de significação econômica destes aventureiros evidencia
que a iniciativa privada não acreditava nas possibilidades da terra.
D. João III procurou incentivar os donatários concedendo-lhes
amplos poderes, utilizando a ideologia feudal de prestígio e poder
associados a extensos domínios territoriais: cada capitão era
um rei.
O embasamento jurídico da ocupação da terra era garantido
pela Carta de Doação e pelo Foral. A Carta cedia ao donatário
uma propriedade de 10 léguas de terra ao longo da costa, em quatro
ou cinco lotes, não sujeita a tributos, com exceção do
dízimo. Sobre o território total da capitania, apenas a posse.
Havia ainda os privilégios da montagem de engenhos, venda de 24 índios
por ano em Portugal, redízima das rendas pertencentes à coroa,
vintena do Pau-Brasil e dízima do quinto real sobre metais. O Foral
era uma espécie de código tributário, destinando os rendimentos
dos produtos da terra ao donatário e os da produção do
subsolo, mata e mar, cabendo à Coroa. Era ainda pelo Foral que o donatário
concedia sesmarias, que não podia retomar – direito privativo do rei.
Estabelecia ainda a liberdade de circulação de mantimentos e
munições na capitania, definindo a responsabilidade de defesa
da terra ao donatário e colonos.
Algumas das características desse processo de colonização
são medievais: extensas faixas territoriais entregues a senhores que
dispõem de poder absoluto sobre coisas e pessoas. Mas do feudalismo
só tivemos alguns traços na estrutura política e jurídica
do sistema das Hereditárias. A base econômica era a produção
escravista e exportadora, concentrada no mercado externo. O trabalho nunca
foi essencialmente servil nem a produção dominial, fechada.
E a estrutura de clãs não era propriamente feudal, parental:
limitava-se à existência dos laços familiares nobiliárquicos
e do enorme poder militar e político dos senhores de terras e escravos.
Genericamente, por intermédio do sistema de capitanias foram consolidados
os objetivos de colonização e posse da terra. É comum
a avaliação do pouco progresso da colônia neste período
responsabilizando os índios e seus ataques. Ora, a resistência
à dominação portuguesa era a simples defesa da terra
pelos seus legítimos proprietários. Isso além de disporem
os invasores de superioridade militar. O problema maior foi a falta de investimentos
e a total ausência de interesse em estabelecer relações
fraternas com os índios.
Para coordenar as iniciativas de povoamento – então muito isoladas
– D. João III criou o Governo Geral. Era sua função combater
tribos rebeldes (de preferência aliando-se a outras), promover entradas
à procura de riquezas, fomentar a construção naval (que
garantiria a defesa contra ataques externos), incentivar a catequese e organizar
os colonos na defesa do território, entre outros. Uma das promoções
do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, foi a vinda de jovens
órfãs que iriam constituir famílias católicas
com os colonos.
O verdadeiro poder político da época estava nas unidades produtoras
em mãos da classe proprietária. E a máquina governamental
atendia a seus interesses.
A classe dominante colonial estava voltada para suas fazendas. Seu poder
(e prestígio) estava evidente nas câmaras, milícias, no
clero. A civilização do mundo da cruz se impunha pelo arcabuz.
Autênticos caudilhos, os senhores de escravos e terras, os homens bons
é que conferiam vida às câmaras do período colonial,
o que perduraria durante a época imperial. O povo não participava
da administração nem dispunha de representação.
Foi nascendo um Brasil bem diferente daquele que sequer tinha esse nome.
Nascia também uma nova sociedade, de poucos senhores e muitos trabalhadores,
a maioria escravos. Surgiram pequenas vilas, grandes plantações,
casas grandes das fazendas e fortificações. Os primeiros donos
da terra se refugiaram no interior enquanto o litoral era transformado em
canaviais.
Isso tudo não acontecia por acaso. A explicação do
expansionismo europeu está no mercantilismo e suas práticas:
com o desenvolvimento das muitas formas de acumulação de capital,
foi acelerada a transição do feudalismo para o capitalismo.
A burguesia mercantil portuguesa (com apoio do Estado absolutista) se estabeleceu
na Ásia e África, montando feitorias para a guarda do marfim,
metais preciosos, especiarias, tecidos de luxo e homens escravizados. O negócio
era excelente – para os mercadores, claro. A venda de tudo isso na Europa
ou na colônia do novo mundo dava lucros fabulosos… E não precisava
produzir nada: apenas fazer circular as mercadorias.
A simples existência de feitorias não se mostrou satisfatória
na América. Para que as novas terras se tornassem um negócio
ainda mais lucrativo, aumentando a acumulação capitalista, era
imperioso produzir. E para isto, intensificar a colonização.
A agricultura comercial foi uma das soluções, baseada na produção
de gêneros tropicais, conforme as necessidades do mercado externo; o
comércio determinando o empreendimento produtivo. A economia central
(metropolitana) era complementada pela colônia.
Houve variações nas formas dos esforços colonizadores
nas Américas. Nas colônias tropicais de zona temperada se desenvolveram
as denominadas colônias de povoamento, recebendo o excedente demográfico
da Europa, como algumas colônias inglesas da América do Norte;
nos trópicos surgiram as colônias chamadas de exploração,
com uma composição social completamente original, como as colônias
portuguesas e espanholas na América do Sul. O traço mais original
é que a sociedade se baseava no latifúndio, na extensa propriedade
agro-exportadora, denominadas plantation ou hacienda. Nesta sociedade há
um terrível contraste entre a riqueza dos colonos branco-europeus,
mozambos (filhos de portugueses) ou criollos (filhos de espanhóis)
se contrapondo à extrema miséria das populações
a eles submetidas, nativas ou africanas. Enfim, a peculiaridade de uma sociedade
constituída essencialmente para benefício da metrópole.
Para exercitar a dominação política e econômica,
o monopólio é fundamental aos interesses da classe proprietária.
Segundo o Bispo Azeredo Coutinho, um dos teóricos do colonialismo português
do século XVIII, temos o seguinte enunciado para estabelecer as atividades
na colônia: ”(…) É necessário que as colônias,
de sua parte, sofram: 1) que só possam comerciar diretamente com a
metrópole, excluída toda e qualquer outra nação,
ainda que lhes faça um comércio mais vantajoso; 2) que não
possam ter fábricas, principalmente de algodão, linho e seda,
e que sejam obrigados a vestir-se das manufaturas e das indústrias
da metrópole. Desta sorte, os justos interesses e as relativas dependências
mutuamente serão ligadas.” A exclusividade da metrópole
e o total domínio das atividades pelos reinóis, comerciantes
portugueses, foi garantida com a criação das Companhias Privilegiadas
de Comércio. Limitações foram impostas à imprensa
e à circulação de livros. Como em todas as épocas,
este tipo de censura visava impedir que idéias novas sugerissem à
população que essa exploração não era justa
e nem resultava da vontade de Deus… São acrescidos impostos, taxas
e proibições, definindo que a função econômica
da colônia é suprir o que a metrópole não tem condições
de produzir – e não concorrer com ela. O lucro deve ser máximo:
outro indicativo de que o modelo escravista é a solução.
Contra o trabalho livre, o interesse dos proprietários em impedir que
os assalariados, com o tempo, se apropriassem de glebas e desenvolvessem atividades
de subsistência – já que havia abundância de terras. Ficava
assim impedida (por meio da escravidão) a incômoda presença
de trabalhadores livres.
Para as elites dominantes a escravidão no Brasil era duplamente lucrativa:
incrementava a circulação da mercadoria humana – possibilitando
à burguesia traficante a acumulação de lucros -, e garantia
elevados índices de produtividade com mão-de-obra escrava de
custo mínimo. Enquanto mercadoria o africano trazia altíssimos
lucros para os comerciantes da metrópole – o que não era o caso
da escravidão dos indígenas, apenas um “negócio
local”. Quanto aos lucros na produção, a exploração
da força do escravo garantia os recursos para a renovação
dos meios de trabalho, assalariamento dos poucos trabalhadores especializados
e a continuidade do tráfico. Aliás, a manutenção
do tráfico era fundamental, visto que o crescimento vegetativo da população
negra era insuficiente para atender à demanda. Essas razões
terminaram dominando os religiosos que vieram para o Brasil e não apenas
deram cobertura ideológica à escravidão, como a praticaram
em larga e proveitosa escala. O padre Vieira, a quem se deve tanta indignação
contra a exploração dos índios, colocado certa vez diante
do dilema de ficar ao lado dos escravistas do Maranhão ou do lado dos
silvícolas, não fugiu à conclusão de que era “fácil
conciliar a consciência com o interesse”. Foi assim que tivemos
desde o século XVI o Poder Temporal e o Poder Espiritual conciliando
a consciência com o interesse, a cruz com o arcabuz, a castidade com
o estupro, a fraternidade com a escravidão, o direito com a força.
NAVEGAR É PRECISO…
A expansão marítima teve como significado a escravização
dos africanos. Desde meados do século XV os negros foram submetidos
ao trabalho nas plantações do sul de Portugal (Algarve), nas
minas da Espanha e serviços domésticos em geral na França
e Inglaterra.
No decorrer do tempo e como resultado da valorização do tráfico
negreiro – uma atividade comercial altamente lucrativa – as formas de exploração
sobre o continente negro foram se sofisticando. Chefes de grupos tribais eram
corrompidos por mercadores europeus em troca de tecidos, jóias, metais
preciosos (como ouro e cobre), armas, tabaco, algodão, cachaça
e mesmo búzios – considerados objetos sagrados, e até funcionando
como moeda.
As incursões com o objetivo de apresar nativos foram se tornando
raras, já que os sobas, chefes locais, se encarregavam da apreensão
da mercadoria, inclusive organizando ataques a outras tribos. O comércio
começava a ser feito harmonicamente…
Ao serem embarcados nos portos da África os negros eram batizados
pelos padres encarregados de convertê-los ao cristianismo e marcados
com ferro quente. A marca servia também para distinguir os batizados
daqueles que ainda não haviam recebido os sacramentos… Viajando nos
porões dos navios negreiros, chamados tumbeiros, amontoados como coisas,
na mais completa promiscuidade, inúmeros africanos morriam em razão
dos maus tratos e doenças, dos ferimentos diversos e ainda sucumbindo
ante a condição desumana a que eram submetidos. A dor imensa
causada pela perda da liberdade, o afastamento de tudo que lhes era caro,
provocava o banzo – sentimento de revolta, dor, pesar e nostalgia. Depois,
vinha a morte. Rugendas fez o registro: “Tenha-se a imagem cruel do
negro em face da separação de tudo quanto lhe era caro e sejam
recordados os efeitos do mais profundo abatimento ou mais terrível
desespero de espírito, unido às privações do corpo
e às provações da viagem. Então não se
estranhará a baixa mortal de tantos, no alto-mar.” Na chegada
às terras brasileiras os negros eram leiloados. E as melhores peças
de imediato adquiridas por capatazes ou pelos próprios senhores, que
não raro se dedicavam à escolha cuidadosa dos cativos.
A vida rural predominava com características de exploração
que perduram até os dias atuais. Aliás, têm um forte sabor
de atualidade as observações feitas por frei Vicente do Salvador
a respeito dos hábitos extrativistas cultivados pelos colonizadores
europeus: “Não só os que de lá vieram, mas também
os que nasceram cá, não usam da terra como senhores, mas como
usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.”
Os africanos trabalhavam nas lavouras e tarefas domésticas nas casas
dos senhores. Viviam nas senzalas, quase sempre formadas de muitas construções
apertadas umas às outras. Na senzala e na casa grande, onde moravam
os donos dos engenhos, o proprietário era senhor absoluto. Os negros
eram submetidos aos trabalhos forçados e cabia aos feitores estabelecer
a disciplina e garantir a produtividade dos escravos.
Nos séculos XVI e XVII o Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram
os mais importantes centros receptores de negros sudaneses – como os iorubás,
geges, haussas e minas; de bantos – como os angolas e os cabindas; e de malês,
de idioma árabe e islamizados.
Um alto preço foi pago em razão da cruel valorização
mercantilista do homem negro, absurda fonte da riqueza dos que traficavam
e dos que o utilizavam, como afirma Herbert Aptheker: “Em quatro séculos,
do XV ao XIX, a África perdeu, entre escravizados e mortos, 65 a 75
milhões de pessoas e estas constituem uma parte selecionada da população,
uma vez que ninguém, intencionalmente, escraviza os velhos, os aleijados,
os doentes”.
Afonso Taunay estima que teriam entrado no Brasil, nos séculos XVI,
XVII e XVIII, respectivamente 100.000, 600.000 e 1.300.000 negros escravizados.
Arrancados à força da sua terra, uma vida de sacrifícios
os aguardava: trabalho árduo de sol a sol nas grandes fazendas-engenhos
de açúcar, por exemplo. Tão grande era o esforço
que um africano sobrevivia em média de sete a dez anos. Chegar ao Brasil
já era uma demonstração de incrível resistência:
cerca de 40% dos negros malungos, denominação para os aprisionados
e transportados, pereciam durante a viajem.
Charles Ribeyrolles discorreu longamente acerca dos trabalhos desenvolvidos
pelos negros no Brasil: “Quem cavou a terra, quem abriu as galerias,
desviou as correntes, lavou as areias, achou o ouro e os diamantes? Os negros.
As tribos dos índios foram escorraçadas pelos colonos proprietários,
de floresta em floresta ou de morro em morro. Mas quem arroteou os terrenos
e cultivou o solo, ou quem semeou, plantou e colheu? Os negros. Quem aprontou
os trabalhos do campo, tão rudes e penosos, em plena zona tórrida,
e quem se encontrava a mourejar nas usinas, moinhos, estaleiros e estradas?
Os negros.” Já foi dito que os escravos faziam de tudo. Eram
as mãos e pés do senhor de engenho. As riquezas produzidas no
Brasil dependiam desses trabalhadores. André João Antonil, jesuíta
que analisou nossa vida econômica e social em seu Cultura e Opulência
do Brasil por Suas Drogas e Minas, escrito no início do século
XVIII, noticia a necessidade da importação de trabalhadores
escravizados por serem indispensáveis. Afirmou Antonil: “(…)
É necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las
pelos partidos, roças, serrarias e barcas.” As tarefas mais especializadas
(de caldeireiro, carpinteiro, tacheiro e marinheiro) eram realizadas pelos
negros que se adaptavam mais rapidamente à nova situação.
Serviços brutais eram realizados por homens e mulheres que também
pegavam na foice e na enxada, nos canaviais, nas oficinas ou na casa grande;
e um número pequeno de trabalhadores livres, assalariados, desempenhando
funções de vigilância ou que exigiam conhecimento técnico
– como no caso do preparo do açúcar – aumentavam a enorme multidão
de explorados.
Formadas de roças e pomares, as grandes fazendas alcançavam
praticamente a auto-suficiência. Era comum os escravos terem um dia
na semana para plantarem para si; o básico em sua alimentação
era a mandioca. Havia ainda nos engenhos outros homens livres e expropriados,
que não foram integrados à produção mercantil.
Como trabalhavam nas roças de subsistência eram chamados roceiros.
Como pagamento do seu trabalho os escravos recebiam castigos: “pau, pano
e pão”. E reagiam. Em troca dos tormentos, assassinavam feitores,
suicidavam-se, evitavam a reprodução, eliminavam capitães-do-mato
e mesmo proprietários. A resistência se manifestava nos seus
cultos, onde a dominação era simbolicamente contestada. O candomblé
foi – e ainda é – um ritual de liberdade, protesto, reação
à crueldade e opressão do Deus dos brancos. Dançar, batucar,
rezar e cantar eram modos encontrados para alívio da asfixia da escravidão.
A dominação era contestada também ao nível do
real – na fuga das fazendas e na formação de quilombos, aldeias
de negros foragidos, onde tentavam reconstituir em matas brasileiras o modo
de vida que levavam na África.
Em seu esforço para estabelecer a verdade quanto ao autêntico
trabalho de construção do Brasil, informa Ribeyrolles: “Nas
chácaras, nas fazendas, nas moradas urbanas, nas ruas e nas praças
das grandes cidades, sobre quem recaíam os trabalhos servis e domésticos?
Nas fábricas e nas oficinas, quem girava as molas, acendia os fornos,
esfregava, suava, carregava e se incumbia, numa só palavra, dos mais
baixos misteres? Os negros, os negros, quase unicamente os negros. O trabalho
africano, em todas as coisas e todas as tarefas, foi o instrumento, a mão,
a roda e a ferramenta, intervindo em tudo como agente de produção,
dos transportes e das mudanças, vivendo para todos os serviços
e todos os encargos.” Os castigos corporais eram uma constante. Punições
inimagináveis aplicadas sem compaixão. O trabalho diário
constituía jornada estafante e muitos senhores estabeleciam que os
negros deviam prover o próprio sustento, através do cultivo,
fora das horas de trabalho – no que seria o período de descanso – das
lavouras para a subsistência. Com isto, não havia repouso suficiente
para a reposição de forças. Tudo acontecia sob os olhos
atentos dos prepostos dos senhores, vigilantes a qualquer sinal de rebeldia.
A grande maioria dos negros se situava entre a oposição aberta
à escravidão e a submissão conformada.
Pouco a pouco, os africanos passavam a ter conhecidas as características
de seu comportamento frente à escravidão. Os escravistas puderam
formar conceitos quanto à natureza de cada tipo; muitos jamais aceitaram
a dominação.
Quando esgotavam as possibilidades de barganhas e concessões partia-se
para a ruptura ? o confronto direto.
As fugas eram rotineiras e havia aqueles que se prestavam ao papel de tentar
recapturá-los, de preferência com vida, para retornarem ao cativeiro;
se fosse preciso, mortos – para servirem como exemplo e desencorajar novas
tentativas. O aprisionamento dos fugitivos competia aos capitães-do-mato,
que contavam com auxiliares e a colaboração oficial da Justiça
colonial.
O ambiente das senzalas era o que restava aos negros para tentar a preservação
das suas dimensões humanas, até que surgisse a oportunidade
propícia à fuga. Sob o disfarce de cantigas e danças
sobreviviam suas crenças e ritos, como a mais inocente forma de diversão.
Gravuras e desenhos feitos pelos primeiros estudiosos que visitaram as terras
americanas, registraram cenas da vida na sociedade colonial, onde se encontra
impressa a força das manifestações da cultura africana.
Ao som dos atabaques permanecia vivo o culto aos orixás e outras
danças das quais se perdeu a memória, mas de onde nasceria o
jogo da Capoeira: os movimentos de corpo dos africanos – gestos ancestrais
preservados em suas danças – serviram com base para a elaboração
de uma luta coletiva; afinal, os meneios de corpo, o jeito solto e ágil,
servem perfeitamente tanto ao fascínio da dança quanto à
magia da luta.
Sabe-se que os negros eram insuperáveis na luta corpo a corpo, também
numa conseqüência direta do vigor físico comprovado no estafante
trabalho muscular que exigia alta carga de força. Habituados aos rigores
da vida na África, as tarefas que antes se constituíam em atividade
necessária na terra natal eram instituídas como trabalho forçado
no Brasil. A aparente submissão era o modo dos cativos de costumes
e culturas diferentes ganharem o tempo necessário para criar – ou simplesmente
aproveitar – a oportunidade de fuga, dificultada pelo fato de sequer possuírem
uma língua comum.
A expressão corporal nos ensina há milênios uma linguagem
que permite a comunicação sem palavras, estabelecendo a fraternidade
nos gestos comuns: a dança revela os sentimentos e evidencia idéias,
na plástica e harmonia dos movimentos. Pois disto se serviram os negros:
protestando e se insurgindo, individual ou coletivamente, expressando a linguagem
do corpo na revolta, na insubordinação às regras do jogo
do sistema colonial: formando quilombos, promovendo fugas, e assassinando
senhores; mas sua luta passou especialmente pela afirmação de
sua cultura.
As fugas dos escravos se tornaram cada vez mais organizadas. É fácil
imaginar o negro desarmado, porém exímio no manejo do corpo,
a desfechar o golpe certeiro, no momento oportuno – para em seguida ganhar
a liberdade. Livre, o terreno de pouco mato era adequado à manutenção
da liberdade, permitindo o enfrentamento dos perseguidores. A vegetação
rasteira, denominada em língua tupy caá-puera iria dar nome
aos guerreiros e à sua luta: Capoeira.
A Capoeira é um bom exemplo de como os negros agiam com malícia
dissimulando sua verdadeira intenção ao enfrentar os senhores
e seus agentes. Para disfarçá-la, a ginga ? que fazia dela ao
mesmo tempo uma luta e uma dança! Cada negro recapturado trazia em
si a certeza da liberdade. Tudo apenas uma questão de tentar sempre.
Na próxima tentativa… E as fugas se sucediam.
Nas matas, os negros que conquistavam a liberdade formavam quilombos, onde
viviam segundo regras próprias. Estas comunidades foram numerosas desde
meados do século XVI, havendo-as em todas as capitanias e principalmente
na região de Pernambuco e Alagoas. Aí houve uma verdadeira nação,
conhecida como Palmares, que enfrentou bravamente os escravocratas.
A destruição de Palmares aconteceu depois de cerca de sessenta
anos de luta, por forças comandadas pelo paulista Domingos Jorge Velho
e o pernambucano Bernardo Vieira de Melo. Mas este fato não significou
derrota total. Cresceu daí a consciência da própria força
no povo negro e a certeza de que poderia encontrar a liberdade, nas terras
para onde veio trazido como escravo.
Palmares ficou como ponto de referência de uma gente espalhada por
todas as partes deste país, simbolizando uma luta secular de libertação
de um povo que se identifica não somente pela pigmentação
da pele, mas pela mesma herança cultural. A luta do povo de Palmares
está viva como ponto de partida para chegarmos a uma sociedade livre.
Desde a época da campanha dos escravistas contra o Quilombo de Palmares
ficou o registro da luta heróica em defesa da autonomia cultural.
A existência da Capoeira resulta da longa luta por reconhecimento
cultural travada ao longo dos quatro séculos de cativeiro. E o termo
capoeira, nome dos guerreiros das capoeiras e de sua estranha forma de luta,
que tornava homens desarmados capazes de enfrentar e vencer vários
adversários, corporifica ainda hoje nos jovens praticantes do século
XXI. Assim é que a luta dos africanos e seus descendentes afro-brasileiros
subsiste no jogo da Capoeira.
A respeito das origens remotas da Capoeira é interessante transcrever
Albano de Neves e Souza, que escreveu de Luanda, Angola, a Luis da Câmara
Cascudo, afirmando: “Entre os Mucope do sul de Angola, há uma
dança da zebra N’Golo, que ocorre durante a Efundula, festa da
puberdade das raparigas, quando essas deixam de ser muficuemas, meninas, e
passam à condição de mulheres, aptas ao casamento e à
procriação. O rapaz vencedor do N’Golo tem o direito de
escolher esposa entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalício.
O N’Golo é a Capoeira.” Em seguida, Albano de Neves e Souza
passa a expor sua teoria a respeito da evolução do N’Golo
no Brasil: “Os escravos das tribos do sul que foram através do
entreposto de Benguela levaram a tradição de luta de pés.
Com o tempo, o que era em princípio uma tradição tribal
foi-se transformando numa arma de ataque e defesa que os ajudou a subsistir
e a impor-se num meio hostil”. Neves de Souza acrescenta algumas informações
e conclui pela origem africana da Capoeira: “Os piores bandidos de Benguela
em geral são muxilengues, que na cidade usam os passos do N’Golo
como arma. (…) Outra das razões que me levam a atribuir a origem
da Capoeira ao N’Golo é que no Brasil é costume os malandros
tocarem um instrumento aí chamado de Berimbau e que nós chamamos
hungu ou m’bolumbumba, conforme os lugares, e que é tipicamente
pastoril, instrumento esse que segue os povos pastoris até a Swazilândia,
na costa oriental da África.” Estes relatos ilustram hipóteses
quanto às origens da Capoeira. Note-se que essas danças são
conhecidas no Brasil apenas através da literatura sobre o assunto.
A história da Capoeira aguarda pesquisa minuciosa em terras africanas
com o objetivo de constatar nessas danças os possíveis elementos
formadores da Capoeira. Danças com características de luta já
foram identificadas em Cuba, Martinica, na Venezuela e em outras localidades
das Américas, mas discute-se se teriam origens comuns à Capoeira.
Concretamente, temos a luta dos negros, elaborada a partir de gestos e movimentos
próprios dos africanos, cuja fonte primária é a terra
de onde vieram os guerreiros : a África. De lá veio o elemento
matriz no processo que culminou no jogo da Capoeira – o negro! – e os movimentos
corporais da capoeira atual são fragmentos atualizados da memória
negra afro-brasileira. Recriando a cultura africana nessa terra, os negros
não ficaram passivos diante de sua nova condição. Desterrados
e escravizados, combateram o poder escravista com uma rica produção
cultural, conquistando espaços e recriando sua autonomia e identidade
étnica em solo brasileiro. E acabou brasileira esse jogo-luta, como
testemunhou Charles Ribeyrolles, um francês que aproveitou o tempo vivido
em nossa terra – exilado por Napoleão III – para retratar os costumes
da nação que se formava: “No sábado à noite,
finda a última tarefa da semana, e nos dias santificados, que trazem
folga e descanso, concedem-se aos escravos uma ou duas horas para a dança.
Reúnem-se no terreiro, chamam-se, agrupam-se, incitam-se e a festa
principia. Aqui é a capoeira, espécie de dança pírrica,
de evoluções atrevidas e combativas, ao som do tambor do congo.”
A ORIGEM DO TERMO CAPOEIRA
É de aceitação geral a hipótese do jogo de agilidade
corporal ter sido o instrumento utilizado pelos escravos fugitivos na defesa
contra seus perseguidores, representados pela figura do capitão-do-mato.
E era no mato que se travava a luta decisiva. Pois foi desse tipo de mato
– a capoeira – onde os negros buscavam refúgio e ofereciam resistência
aos perseguidores, que surgiu também a polêmica que por longo
tempo consumiu em debates intermináveis inúmeros intelectuais.
Uma das teorias quanto à origem da expressão capoeira estabelece
a língua tupy como aquela de onde procederia a vernaculização:
caá-puêra (caá = mato; puêra = que já foi)
resultaria nos brasileirismos capuíra, capoêra e capoeira. Outros
estudiosos afirmam que a acepção capoeira designa um tipo especial
de cesto, usado no transporte de galinhas, que eram conduzidas por escravos
aos mercados. A esses escravos teria se estendido o emprego da denominação
primeiramente aplicada às gaiolas. Segundo os defensores dessa hipótese,
enquanto aguardavam a chegada dos comerciantes, os escravos se divertiam na
prática do brinquedo que também seria abrangido pelo nome capoeira.
Fora da discussão da origem do termo – assunto para filólogos,
como Plínio Ayrosa e Antenor Nascentes – temos concretamente o ‘jogo
da capoeira’ com definição única e universal. Resta ainda
a palavra capoeiragem, empregada para nomear a prática desse jogo e
utilizada no Código Penal de 1890 pelos juristas da época, que
puniam a prática do jogo, classificando-o como atividade criminosa.
ZUMBI: O MESTRE DA RESISTÊNCIA
“Zumbi, comandante-guerreiro/Ogum-iê, ferreiro mor, capitão/Da
capitania da minha cabeça/Mandai alforria pro meu coração”
Gilberto Gil & Walid Salomão, Zumbi, a felicidade guerreira
Na língua dos negros, ‘quilombo’ significava povoação,
capital, união; no Brasil, teve por significado local de refúgio.
Os quilombos eram divididos em aldeias de nome mocambo. Seus integrantes eram
chamados quilombolas, calhambolas, mocambeiros.
Zumbi nasceu no quilombo de Palmares por volta de 1655. Décadas antes
do seu nascimento este quilombo havia sido fundado por um grupo de escravos
fugidos de um engenho no sul de Pernambuco. Localizado bem no alto de uma
serra, onde estão hoje situadas partes dos Estados de Alagoas e Pernambuco,
de lá era possível a visão privilegiada das imediações.
Herói do povo afro-brasileiro, coube a Zumbi liderar a gente do quilombo
num momento decisivo da luta contra os escravistas, empenhados em sufocar
a semente da liberdade que teimava por crescer no solo brasileiro.
A história daquele que seria o Zumbi começa quando um grupo
de expedicionários liderados por um comandante chamado Brás
da Rocha ataca Palmares, no ano de 1655, levando um recém-nascido,
entre os adultos capturados. A criança foi entregue ao chefe da coluna
atacante, que por sua vez resolveu fazer um presente ao padre Melo, cura de
Porto Calvo. O religioso decidiu chamá-lo Francisco. O garoto aprendeu
a língua latina, o português e dando mostras da inteligência.
A grande batalha do chefe guerreiro Zumbi, zelando dia e noite pela segurança
do seu povo e lutando para que não fosse extinto o ideal de se formarem
comunidades onde conviviam negros, índios e brancos, começou
ao completar quinze anos, em 1670. Nesse ano Francisco fugiu do padre Melo
e voltou para Palmares. Livre desde que nasceu, deixou para trás uma
vida muito diferente daquela que iria levar.
Quando Francisco voltou a Palmares, o quilombo havia se transformado numa
fortaleza. Segundo estudos recentes, dez mil pessoas, aproximadamente, viviam
no local Eram negros fugidos, mulheres capturadas, além de índios
e brancos que se escondiam da justiça colonial portuguesa. Plantava-se
de tudo para o sustento da população quilombola: feijão,
milho, mandioca, cana-de-açúcar, batata. E muitos desses artigos
eram comercializados clandestinamente com as cidades vizinhas, pobres em gêneros
alimentícios porque se dedicavam a uma única cultura: o plantio
da cana-de-açúcar, base da economia de exportação
predominante nessa época.
O quilombo de Palmares era uma pequena África onde os negros procuravam
resgatar suas raízes, inclusive abandonando os nomes recebidos dos
escravistas e trocando por outros de origem africana. À frente desse
povoado estava Ganga Zumba e nas pequenas aldeias lideravam chefes locais.
Ao retornar a Palmares, Francisco, com seus quinze anos, passou a ser Zumbi.
Vale lembrar que o Deus principal de Camarões e do Congo é chamado
Nzambi; em Angola denominavam Zambi o que morreu; e no Caribe, Zumbis são
mortos-vivos, criaturas que mesmo no além jamais descansam.
Em Palmares foi livremente constituída sua família – pai,
irmãos, tias e tios. O principal dentre seus parentes: Ganga Zumba.
Pouco depois de retornar ao quilombo, Zumbi já era chefe de um desses
mocambos e defendia a região com imensa habilidade.
Palmares sofreu diversas investidas durante quase cem anos. Quando os holandeses
invadiram o Brasil, por volta de 1624, esses ataques diminuíram muito:
os colonos lusitanos estavam mais preocupados em defender o território
das ameaças externas. Foi nessa época que o Quilombo mais se
desenvolveu. Entretanto, após a expulsão holandesa em 1654,
uma verdadeira campanha contra Palmares se fez surgir. Dezessete expedições
organizadas por vilas próximas, bem como pelo próprio governo
de Pernambuco, embrenharam-se pela mata para derrubar os palmarinos.
Em 1677, um tal Fernão Carrilho, exímio caçador de
negros entrou em ação. Marchando contra Palmares com seus combatentes,
Carrilho conseguiu derrubar alguns chefes de mocambos e matar vários
quilombolas. Neste ataque, Ganga Zumba foi ferido, mas ainda assim conseguiu
fugir. Em decorrência disso, foi levado a aceitar um tratado de paz
proposto pelo governador de Pernambuco em que se prometia liberdade apenas
aos nascidos no Quilombo.
Aos 23 anos, Zumbi rejeitou a paz dos escravistas, paz que garantia sua
liberdade – pois nascera em Palmares. Desmoralizado por aceitar a proposta,
Ganga Zumba viu-se diante de uma operação dos quilombolas organizados
para depô-lo, sob a liderança de Zumbi, que nesse contexto tornou-se
o líder maior do quilombo. Ganga Zumba desistiu de tudo, partiu para
Cacaú, ao sul de Pernambuco, onde viria a morrer envenenado pouco tempo
depois. Acredita-se que tenha sido morto por enviados de Zumbi.
Zumbi assumiu o posto de chefe maior e reorganizou toda a estrutura de Palmares.
Preparou seus homens para os combates que estavam por vir. Durante esse período,
o governador de Pernambuco e a própria Coroa procuraram negociar, garantindo
vida ao líder e a seus familiares, caso aceitasse a rendição.
Zumbi preferiu lutar a entregar seu povo: sua dignidade não tinha preço.
Os senhores de engenho não aceitavam as perdas de escravos, mercadorias
muito valiosas; o governo colonial não suportava mais tanta derrota.
Foi quando surgiu a idéia de contratar os bandeirantes paulistas, conhecidos
por serem grandes desbravadores e verdadeiros assassinos.
Na guerra contra Zumbi e o povo de Palmares o sistema escravista pretendia
varrer da memória coletiva até a lembrança da existência
de possibilidades reais das populações oprimidas construírem
uma alternativa à estrutura social baseada na exploração
do trabalho forçado. O combatente que representava os civilizados escravagistas:
Domingos Jorge Velho.
Sobre este paulista, encarregado de destruir Palmares, escreveu em 1697
um seu contemporâneo, o Bispo de Pernambuco: “Este homem é
um dos maiores selvagens com que tenho topado… tendo sido sua vida, desde
que teve razão – se é que teve, de sorte a perdeu tanto que
entendo não a achará com facilidade – até o presente,
andar pelos matos à caça dos índios, e de índias,
estas para o exercício das suas torpezas e aqueles para o granjeio
de seus interesses.” Após uma primeira derrota, Domingos Jorge
Velho iria travar a batalha definitiva no ano de 1694. Antes de completar
25 anos de vida, Zumbi se recusou a desistir de lutar pela liberdade sem adjetivos,
concessões ou condições: combateria até o fim.
Apesar de toda a violência e da selvageria dos prepostos do sistema
colonial, não foi possível derrotar o símbolo do heroísmo
do povo brasileiro. Após muitos anos de luta os escravistas não
conseguiram submeter a alma dos resistentes. Cada guerreiro morto em defesa
do direito à liberdade é um exemplo de que só existimos
na plenitude quando somos livres. E morrer nessa luta significa dar a vida
pela própria vida.
Símbolo da resistência à dominação, Zumbi
dos Palmares é referência legada tanto às gerações
africanas trazidas ao Brasil quanto aos seus descendentes afro-brasileiros.
Mestre na luta pela liberdade, seu vulto se confunde com o caminho para a
consciência do povo brasileiro.
“Minha espada espalha o sol da guerra Rompe mato, varre céus
e terra a felicidade do negro é uma felicidade guerreira Do maracatu,
do maculelê e do moleque bamba Minha espada espalha o sol da guerra
Meu quilombo incandescendo a serra Taliqual o leque, o sapateado do mestre-escola
de samba Tombo da ladeira, rabo de arraia, fogo de liamba…” Acompanhado
de um grupo considerável de combatentes fortemente armados, Domingos
Jorge Velho se lançou em direção à Cerca Real
do Macaco, onde se encontravam Zumbi e todo o seu exército. Grande
foi sua surpresa ao encontrar o esquema de defesa montado pelos quilombolas.
Muros gigantescos de pedra e madeira formavam três fileiras, seguidas
logo após por buracos camuflados com estacas pontiagudas em seu interior.
Em seguida, uma outra muralha mais comprida, contava com guaritas que abrigavam
atiradores.
Amedrontado, Jorge Velho mandou buscar canhões de Recife e construiu,
paralelamente à muralha de Zumbi, uma outra muralha. O ataque foi fatal.
O grande chefe dos quilombolas foi apanhado de surpresa pelo descuido de um
sentinela. Muitos morreram combatendo ou se suicidaram; outros tentaram fugir
pelo lado esquerdo da Cerca Real, onde havia enorme precipício. Zumbi
foi um dos que conseguiu sobreviver à matança, mas Palmares
foi inteiramente destruída.
Zumbi comandou seus guerreiros e venceu inúmeras batalhas empregando
com talento as técnicas da guerra de guerrilhas. No combate em posição
fixa encontrou o fracasso. Perdeu o domínio da Serra da Barriga, onde
se estabeleceram – entre disputas e conflitos pessoais – os vencedores: bandeirantes,
militares e “homens de bem” de Pernambuco e Alagoas. Só restava
uma alternativa: retornar à estratégia da guerra do mato. Eram
cerca de mil homens. Os guerreiros foram divididos em dois bandos e foi confiada
a chefia de um dos grupos a um companheiro chamado Antônio Soares, que
sofreu uma emboscada. Soares foi preso e enviado sob forte escolta para Recife.
Nesse trajeto a escolta se encontrou com uma bandeira, chefiada por André
Furtado. Soares foi seqüestrado e por longo tempo sofreu violentas torturas
aplicadas por seus captores: queriam que revelasse onde era o esconderijo
de Zumbi. Como não obtinha êxito, Furtado mudou de tática:
garantia sua vida e liberdade se cooperasse. Deu certo. Soares era da confiança
de Zumbi. Foram em sua procura, e quando Zumbi se preparava para abraçar
o companheiro, foi surpreendido: Soares cravou-lhe uma faca na barriga.
Nos olhos de Zumbi deve ter surgido então um outro brilho: de tristeza
e desencanto. Dos seis guerreiros que o acompanhavam, a fuzilaria que saía
do mato ao redor derrubou cinco, de imediato. Ferido e sozinho, lutou até
o último momento: matou um dos atacantes e feriu outros. Amanhecia
o dia 20 de novembro de 1695.
Zumbi foi esfaqueado, baleado e mutilado, tendo seu órgão
genital masculino decepado e enfiado em sua boca. Era um homem magro, pequeno
e coxo; muito diferente da imagem construída a seu respeito. Seu corpo
foi reconhecido pelo padre Antônio Melo, o mesmo que batizara o pequenino
Francisco. Segundo o padre, algumas vezes Zumbi desceu a Porto Calvo para
visitar seu antigo tutor e numa dessas visitas o guerreiro já estava
com a perna afetada por um ferimento sofrido em combate.
A violência contra Zumbi não parou aí: sua cabeça
foi cortada, mergulhada em sal e mandada para Recife, com a finalidade de
ser vista pelo povo que o considerava imortal. Mas isso de nada disso foi
suficiente para impedir que renascesse num mito: sua coragem, sua força
se tornaram eternas para os que continuaram resistindo contra a escravidão.
Assim é que nos muitos quilombos que se formaram pelo Brasil nos séculos
seguintes e para os que hoje relembram a sua história de luta, Zumbi
permanece vivo na lição de resistência.
De forma exemplar, Zumbi encarna os horrores do escravismo. Zumbi permanece
vivo na lição de resistência e é – para sempre!
– um cadáver insepulto, um morto vivo. Sua lembrança sobreviverá
aos tempos que nos obrigam a sonhar, à historiografia oficial que insiste
em ignorar sua real importância. Permanecerá como símbolo
das atrocidades infindáveis do poder ilimitado, arbitrário,
prepotente. Ficará, acima de tudo, como exemplo a todos que resistem
à opressão e lutam por liberdade e justiça.
“Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motim Em cada intervalo
de guerra sem fim Eu canto, eu canto, eu canto assim A felicidade do negro
é uma felicidade guerreira…
II – CAPOEIRA & CAPOEIRAS
“Meu chapéu de lado/tamanco arrastando lenço no pescoço/
navalha no bolso, eu passo gingando/ provoco desafio, eu tenho orgulho de
ser vadio.
Sei que eles falam desse meu proceder, eu vejo quem trabalha andar no miserê.
Eu sou vadio porque tive inclinação.
Quando era criança, tirava samba-canção.” Wilson
Batista, Lenço no Pescoço.
HISTÓRIAS DA CAPOEIRA
“Vou contar uma história/do tempo da escravidão/ vou
contar com muita dor/muita dor no coração”
Fornecendo elementos para a história do Brasil, jogo da Capoeira
se fez presente em todos os períodos, desde a colônia. Inúmeros
memorialistas e cronistas de costumes fixaram a imagem de capoeiras célebres
e suas peripécias, sendo possível flagrar a construção
da identidade brasileira através do acompanhamento da história
da capoeira.
Acredita-se que a existência da Capoeira remonte às senzalas,
às fugas dos negros e aos quilombos brasileiros da época colonial:
os escravos fugitivos, pare se defenderem, fazendo do próprio corpo
uma arma. As origens da Capoeira estão nesse ambiente, onde os negros
relembravam suas velhas danças e rituais da África. A maioria
dos golpes assemelha-se às defesas e ataques de animais: a marrada
do touro, o coice do cavalo, a fisgada do rabo de arraia. Ou então
guardam relação com instrumentos de trabalho cuja ação
é semelhante aos movimentos do corpo dos capoeiras: o martelo batendo,
a foice roçando o mato.
Não há indicações seguras de que a Capoeira,
conforme a conhecemos no Brasil ainda hoje, tenha se desenvolvido em qualquer
outra parte do mundo. Não existem pesquisas históricas a respeito
da capoeira nos séculos XVI a XVIII. Não é possível,
portanto, reconstruirmos o processo que levou ao deslocamento da capoeira
do campo à cidade. Esse processo deve ter ocorrido por volta do começo
do século XIX, considerando que datam desse período as primeiras
referências históricas (até agora conhecidas) referentes
aos capoeiras urbanos.
No século XIX, os três principais centros históricos
da capoeira eram as cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Destacava-se
a Capoeira carioca em virtude da presença maciça e organizada
das maltas de capoeiras, as quais distribuíam-se por todas as freguesias
da Corte.
À época do Brasil colonial, a presença da Capoeira
já se encontrava de tal forma sedimentada na sociedade que os capoeiras
passaram a formar uma classe. Premidos pelas circunstâncias, faziam
usos variados da habilidade que a arte lhes conferia. Com o emprego de diversos
instrumentos de ataque e defesa, passaram a prestar serviços aos membros
das classes dominantes, que deles se serviam para a execução
de crimes que garantiam a continuidade no poder.
As descrições do século passado revelam o emprego da
mandinga como estratégia eficiente de luta dos capoeiras.
O pintor Rugendas (1835), retratou a Capoeira na gravura intitulada Jogar
capoeira ou dança da guerra. Nela dois negros gingam ao som de um atabaque
– tocado por um negro sentado – diante de uma assistência composta por
nove negros (dentre os quais três mulheres). O cronista refere-se ao
que vê como uma “dança da guerra” ou um “folguedo
guerreiro”, onde há “campeões” e “adversários”
e como uma “briga” na qual as “facas” acabam com a
“brincadeira”.
Discorrendo sobre os “usos e costumes dos negros”, após
mencionar uma “espécie de dança militar” Rugendas
faz a seguinte descrição: “(…) um outro folguedo guerreiro,
muito mais violento, a ‘capoeira’: dois campeões se precipitam
um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário
que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente
hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais ou menos como
bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça,
o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as
facas entrem em jogo ensangüentando-a”.
O cronista Luiz Edmundo fez interessante registro do capoeira dessa época,
em ‘O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis’, retratando o “Capoeira
Carioca”: “De volta, pelo caminho que vai à vala, penetramos
a rua dos Ourives, das de maior concorrência na cidade.
‘À porta do estanco de tabaco está um homem diante de um frade
nédio e rubicundo. Mostra um vasto capote de mil dobras, onde a sua
figura escanifrada mergulha e desaparece deixando ver apenas, de fora, além
de dois canelos finos, de ave pernalta, uma vasta, uma hirsuta cabeleira,
onde naufraga em ondas tumultuosas alto feltro espanhol.
‘Fala forte. Gargalha. Cheira a aguardente e discute. É o capoeira.
‘Sem ter do negro a compleição atlética ou sequer o
ar rijo e sadio do reinol é, no entanto, um ser que toda a gente teme
e o próprio quadrilheiro da justiça, por cautela, o respeita.
‘Encarna o espírito da aventura, da malandragem e da fraude; é
sereno e arrojado e na hora da refrega ou da contenda, antes de pensar na
chupa ou na navalha, sempre ao manto cosida, vale-se de sua esplêndida
destreza, com ela confundindo e vencendo os mais armados e fortes contendores.
‘Nessa hora o homem franzino e leve transfigura-se. Atira longe o seu feltro
chamorro, seu manto de saragoça e aos saltos, como um símio,
como um gato, corre, recua, avança e rodopia, ágil, astuto,
cauto e decidido. Nesse manejo inopinado e célere, a criatura é
um ser que não se toca, ou não se pega, um fluido, o imponderável,
pensamento, relâmpago. Surge e desaparece.
‘Mostra-se de novo e logo se tresmalha. Toda sua força reside nessa
destreza elástica que assombra e diante da qual o tardo europeu vacila
atônito, o africano se trasteja.
‘Embora na hora da luta traga ele entre a dentuça podre o ferro da
hora extrema, é da cabeça, braço, mão e perna
ou pé que se vale para abater o êmulo minaz.
‘Com a cabeça em meio aos pulos em que anda, atira a cabeçada
sobre o ventre daquele com quem luta e o derruba. Com a perna lança
a trave, o calço. A mão joga a tapona e com o pé a rasteira,
o pião e ainda o rabo de arraia.
‘Tudo isso numa coreografia de gestos que confunde. Luta com dois, com três,
e até quatro ou cinco. E os vence a todos. Quando os quadrilheiros
chegam com suas armas e os seus gritos de justiça, sobre o campo de
luta nem traço mais se vê do capoeira feroz que se fez nuvem,
fumaça e desapareceu.
‘Na hora da paz ama a música, a doçura sensual do brejeiro
lundu, dança a fôfa, a chocaina e a sarambeque pelos lugares
onde haja vinho, jogo, fumo e mulatas. Freqüenta os pátios das
tabernas, os antros da maruja para os lados do Arsenal. Usa e abusa da moral
da ralé, moral oblíqua, reclamando pelourinho, degredo e às
vezes, forca.
‘Tem sempre por amigo do peito um falsário, por companheiro de enxerga
um matador profissional e por comparsa, na hora da taberna, um ladrão.
No fundo, ele é mau porque vive onde há o comércio do
vício e do crime. Socialmente, é um cisto, como poderia ser
uma flor. Não lhe faltam, a par dos instintos maus, gestos amáveis
e enternecedores. É cavalheiresco para com as mulheres. Defende os
fracos. Tem alma de Dom Quixote. E com muita religião. Muitíssima.
Pode faltar-lhe ao sair de casa o aço vingador, a ferramenta de matar,
até a própria coragem, mas não esquece do escapulário
sobre o peito e traz na boca, sempre, o nome de Maria ou de Jesus.
‘Por vezes, quando a sombra da madrugada ainda é um grande capuz
sobre a cidade, está ele de joelhos, compassivo e piedoso, batendo
no peito, beijando humildemente o chão, em prece, diante de um nicho
iluminado, numa esquina qualquer. Está rezando pela alma do que sumiu
do mundo, do que matou.
‘É de crer que, como sentimento, o capoeira é realmente um
tipo encantador…” Durante a primeira metade do século XIX,
a Capoeira parece ter se configurado como uma experiência essencialmente
escrava. Entretanto, a partir dos anos 1850, altera-se a composição
étnica e social de seus praticantes, com a incorporação
de libertos e livres, muitos dos quais brancos. Dentre esses últimos
havia alguns membros da elite e também inúmeros estrangeiros,
predominantemente portugueses. Tal ampliação introduz mudanças
na prática da capoeira como a disseminação do uso da
navalha, característico dos fadistas lusitanos.
Durante o segundo reinado, algumas maltas de capoeira tiveram intensa atuação
política, inclusive atuando junto aos partidos da época. A aproximação
com a política monárquica lhes acarretará uma implacável
perseguição por parte dos republicanos sendo que estes, ao assumirem
o poder, incluirão a prática da capoeira como um crime previsto
pelo Código Penal de 1890.
Já em 1872 levantavam-se as primeiras vozes pedindo a criminalização
da capoeira. Reconhecendo os esforços da polícia para reprimir
a “audácia” dos capoeiras, “terror da população
pacífica”, o chefe de polícia do Rio de Janeiro reclama,
em seu relato anual, da dificuldade de se reprimir a capoeira posto que esta
“não é um crime de acordo com o Código Criminal”
(Holloway,1989:669).
Seis anos depois, novamente se fala sobre o assunto, porém observa-se
uma diferença qualitativa na razão da perseguição
aos capoeiras. Se, até aqui, os capoeiras são perseguidos, principalmente,
porque oferecem algum tipo de ameaça física aos “pacíficos
cidadãos”, seja quando “cometem ferimentos” ou “provocam
desordens”, agora o argumento primordial é outro. Referindo-se
à capoeira como uma “doença moral” que prolifera
na “grande e civilizada cidade”, o chefe de policia da Corte ressalta
a necessidade de se formalizar a criminalização da capoeira,
sugerindo a deportação dos estrangeiros e o envio dos brasileiros
para colônias penais (op. cit. 1989:669).
Nesse período muda o motivo central da argumentação
policial: o discurso da repressão passa a coadunar-se com os pressupostos
evolucionistas vigentes àquela época. Esses conceitos, pautados
numa abordagem biológica do social, pressupunham a inferioridade racial
do negro. Assim, o temor do “contágio moral” da “barbárie
negra” orientava a ação das autoridades.
No entanto, a Capoeira, ao mesmo tempo em que sofre uma intensificação
da perseguição policial, começará também
a ser descrita por alguns literatos cariocas, não apenas pelo que “tem
de mau e bárbaro” mas também como uma “excellente
gymnastica”, a ser adotada inclusive nas escolas e quartéis,
surgindo aqui uma nova representação social para essa prática,
vista agora como “herança da mestiçagem no conflito das
raças” e, portanto, “nacional” (Moraes Filho,1893/1979:257).
Muitos dos nossos escritores empolgaram-se com a Capoeira e seus adeptos.
Joaquim Manuel de Macedo, em Memórias de Um Sargento de Milícias;
Aluízio de Azevedo, em O Cortiço, são alguns dos que
buscaram retratar cenas do período em que capoeiras pontificavam, nas
suas lutas.
Desde o Império (1822-1889) a presença da Capoeira na vida
brasileira foi acentuada. Consta que possuía D. Pedro I um capoeira
como guarda-costas, servindo-lhe de proteção em suas andanças
noturnas. E não eram poucos os nobres que dominavam recursos da Capoeira.
Os negros encarregados dos serviços domésticos muitas vezes
ensinavam aos sinhozinhos alguns de seus segredos. Cada vez mais a luta era
praticada, rompendo todas as barreiras.
O capoeira dessa época tinha por escola as praças, ruas e
corredores. Formavam bandos perigosos, que se davam a conhecer entre si pelas
características dos chapéus, lenços, roupas, fitas e
tantas convenções quanto era possível imaginar.
A criminalização da capoeira não foi consensual mas
significou a vitória política de uma determinada facção
da classe dirigente nacional.
Em 11 de outubro de 1890 foi promulgada a Lei nº 487, de autoria de
Sampaio Ferraz, proibia a prática da capoeira e previa punição
de 2 a 6 meses de trabalho forçado na ilha de Fernando de Noronha.
No artigo 402, que tratava “Dos vadios capoeira”, lia-se: ‘Fazer
nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e
destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar
em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão
corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou
incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena – prisão celular de
dois a seis meses. Parágrafo único: é considerada circunstância
agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças
se imporá a pena em dobro”.
Como não eram apenas os negros e mestiços que praticavam a
Capoeira, a lei acabou atingindo importantes pessoas da nobreza. Exemplo disso
foi o conhecido caso de José Elísio dos Reis. Seu pai era o
conde de Matosinhos, proprietário do jornal O País. Conhecido
de todos como praticante da Capoeira, Juca Reis, antes da aprovação
da lei estava em Portugal. Quando retornou ao Brasil foi preso por Sampaio
Ferraz. A sua liberdade foi conseguida graças à influência
de Quintino Bocaiúva, ministro das Relações Exteriores
no primeiro governo republicano brasileiro. Quintino ameaçou renunciar
ao cargo se Juca Reis não fosse liberto. O ministro teve seu pedido
aceito pelo marechal- presidente Deodoro: o capoeira Juca Reis foi solto e
retornou a Portugal.
Os capoeiras foram perseguidos por todo o século XIX. Se por um lado
a sua ação provocava verdadeiro pânico numa parcela da
população – especialmente nas elites! – que apoiava a repressão
policial, muita gente desconfiava dessa ação. O texto publicado
no jornal Diário de Notícias, da cidade do Rio de Janeiro, em
19 de janeiro de 1890, é uma amostra irônica da reação
popular à violenta campanha policial: “É polícia
das primeiras/É levadinha do diabo/Deu cabo dos capoeiras/Vai dos gatunos
dar cabo/Já da navalha afiada/A ninguém o medo aperta/Vai poder
a burguesada/Ressonar com a porta aberta A ir assim poderemos/Andar mui sossegadinhos/Nessa
terra viveremos/Como Deus com seus anjinhos/Ai! Assim continuando/A polícia
hemos de ver/As suas portas fechando/Por não ter mais que fazer”
Melo Moraes Filho, em Festas e Tradições Populares do Brasil
(1893), fala a respeito dos grupos que formavam – as maltas – e suas proezas
ao tempo do Império: “A categoria de chefe da malta só
atingia aquele cuja valentia o tornava inexcedível e de chefe dos chefes
o mais afoito entre estes, mais refletido e prudente.
‘Os capoeiras, até quarenta anos passados, prestavam juramento solene
e o lugar escolhido para isso eram as torres das igrejas. As questões
de freguesia ou de bairro não os desligavam, quando as circunstâncias
exigiam desagravo comum; por exemplo: um senhor, por motivo de capoeiragem,
vendia para as fazendas um escravo filiado a qualquer malta; eles reuniam-se
e designavam o que havia de vingá-lo.
‘No tempo em que os enterramentos faziam-se nas igrejas e que as festas
religiosas amiudavam-se, as torres enchiam-se de capoeiras, famosos sineiros
que montados na cabeça dos sinos acompanhavam toda a impulsão
dos dobres, abençoando das alturas o povo que os admirava, apinhado
nas praças ou nas ruas.” Em seguida, passa o memorialista a descrever
alguns movimentos da Capoeira, com riqueza de detalhes que nos leva a supor
não lhe serem desconhecidos os segredos dessa arte: “A capoeiragem
antiga e a moderna tem a sua gíria e sua maneira de expressão,
pela qual são compreendidos os lances do jogo. Deveras arriscados,
difíceis e dependendo de rapidez e hábito, não é
sem longa prática que conseguem tais contendores fazerem-se notáveis.
Para darmos uma pálida idéia da gíria e do jogo, ajustamos
por aquela algumas evoluções deste. Um dos preparativos mais
rudimentares do capoeira é o ‘rabo de arraia’. Consiste
ele na firmeza de um pé sobre o solo e na rotação instantânea
da perna livre, varrendo a horizontal, de sorte que a parte dorsal vá
bater no flanco do contendor, seguindo-se após a cabeçada ou
a rasteira, infalíveis corolários da iniciação
do combate.
‘Por ‘escorão’ entendem eles amparar inesperadamente
o pé de encontro ao ventre do adversário, o que é um
subterfúgio que difere do ‘pé de panzina’, que é
o mesmo resultado porém feito não como um recurso do jogo, mas
deixando à destreza tempo de varrê-lo.
‘O ‘passo a dois’ (gíria moderna) é um sapateado
rápido que antecede à cabeçada e a rasteira, da qual
o acometido se livra armando o ‘clube x’, que quer dizer o afastamento
completo das tíbias e união dos joelhos, que formando larga
base, estabelece equilíbrio, recebendo no embate o salto da botina,
que ainda ofende o adversário.
‘O ‘tombo da ladeira’ é tocar no ar, com o pé,
o indivíduo que pula; a ‘rasteira a caçador’ é
o meio ginástico de que servem-se para – deixando-se cair sobre as
costas, ao mesmo tempo que firmam-se sobre as mãos – derrubarem o contrário
imprimindo-lhe com o pé violenta pancada na articulação
tíbio tersianal.” Melo Moraes traça um retrato de fatos
sociais do Rio de Janeiro e da intensa repressão policial à
Capoeira, associada à criminalidade.
“As escolas de capoeiragem multiplicavam nesta cidade, pertencendo
cada turma de discípulos a esta ou aquela freguesia.
‘Desde a dos caxinguelês, meninos que iam à frente das maltas
provocar inimigos, até a dos mestres que serviam para exercícios
preparatórios, esses cursos regulares funcionavam sendo os mais freqüentados
o da Praia do Flamengo, o do morro da Conceição, o da Praia
de Santa Luzia, não falando nas torres das igrejas – ninhos atroados
de capoeiras de profissão.
‘Alistados nos batalhões da guarda nacional os capoeiras exerciam
poderosa influência nos pleitos eleitorais, decidiam das votações,
porque ninguém melhor do que eles arregimentavam votos, emprenhavam
urnas, afugentavam votantes, etc.
‘Muitos dos comandantes dos corpos e grande parte dos aficionados entendia
do jogo, ou eram habilíssimos na arte.
‘Os desafios entre as freguesias transmitiam-se por meio de pancadas de
sino convencionais e em horas determinadas. Os combates davam-se nas praças,
nas ruas, em sítios mais ou menos distantes e desertos.
‘Às vezes, interrompendo a marcha de uma procissão, o desfilar
de um cortejo, ouvia-se, aos gritos das senhoras correndo espavoridas, dos
negros levando senhores moços ao colo, dos pais de família pondo
no abrigo a mulher e os filhos, o horroroso ‘Fecha! Fecha!’. Os
caxinguelês voavam na frente, a capoeiragem disparava indômita,
seguindo-se aos distúrbios cabeças quebradas, lampiões
apedrejados, facadas, mortes, etc…
‘A polícia, amedrontada e sem força, fazia constar que perseguia
os desordeiros, acontecendo raríssimas vezes ser preso este ou aquele
que respondia a processo.
‘Pertencendo à segunda fase da capoeiragem no Rio de Janeiro, essas
cenas tiveram lugar durante a administração policial de Eusébio
de Queiroz e de seus sucessores, desaparecendo totalmente com a guerra do
Paraguai, que não acabou somente com os capoeiras, porém assinalou
o termo do patriotismo brasileiro.” Em seguida o cronista passa a reportar-se
às personalidades eminentes da época que se notabilizaram também
pelos conhecimentos do jogo da Capoeira.
“É geralmente sabido pela tradição que no Senado,
na Câmara dos Deputados, no Exército, na Marinha, no funcionalismo
público, na cena dramática e mesmo nos claustros, havia capoeiras
de fama, cujos nomes nos são conhecidos.
‘Nas garrafadas de março, um dos nossos mais eloqüentes oradores
sacros fez prodígios nesse jogo, livrando-se de seus agressores; recordamo-nos
de um frade do Carmo que por ocasião de uma procissão de enterro,
debandou a cabeçadas e rasteiras um grupo de indivíduos imprudentes
que o provocaram.
‘Pergunte-se por aí qual o ator cuja valentia e destreza como capoeira
eram respeitados, e acreditai que a popularidade precisaria muito para atingir-lhe
o pedestal.
‘Quando estudamos no Colégio de Pedro II foi nosso lente de francês
o bacharel Gonçalves, bom professor e melhor capoeira.
‘O Dr. D. M., jurisconsulto eminente e deslumbrante glória da tribuna
criminal, cultivou em sua mocidade essa luta nacional, entusiasticamente levada
a excessos pelo povo baixo, que a afogou nas desordens, em correrias reprováveis,
em homicídios horrorosos.
‘Pode-se dizer que de 1870 para cá os capoeiras não existem
e se um ou outro, verdadeiramente digno desse nome pela lealdade antiga, pela
confiança própria e pelo conhecimento da arte resta por aí,
veio daquele tempo em que a capoeiragem tinha disciplina e dirigia-se a seus
fins.
‘Navalhar à traição, deixar-se prender por dois ou
três soldados e espancar a um pobre velho, ser vagabundo e ratoneiro,
nunca constituíram os espantosos feitos das maltas do passado, que
brigavam freguesia com freguesia, disputavam eleições arriscadas,
levavam à distância cavalaria e soldados de permanentes quando
intervinham em conflitos de suscetibilidade comum.
‘O capoeira isolado, naqueles tempos, trabalhava, constituía família,
a vadiagem lhe era proibida, não era gatuno, afrontava a força
pública e só se entregava morto ou quase morto.
‘Como fizemos ver em princípio, as turmas militantes condensavam
as classe operárias e os escravos, expressão nítida da
capoeiragem de rua.” Em outro momento da sua narrativa, Melo Moraes
fala da presença de portugueses e demais cidadãos no meio da
Capoeira, à época assimilada como costume popular.
“Não sendo estranhos ao jogo, portugueses havia que se aliavam
às maltas avulsas, distinguindo-se entre eles homens de inaudita coragem
e espantosa agilidade.
‘Luzidas companhias de batalhões da guarda nacional, de que tinham
orgulho briosos comandantes, reuniam magnífica rapaziada, de onde eram
tirados praças para diligências perigosas, servindo igualmente
para as campanhas eleitorais.
‘A prova de que a capoeiragem entrava nos nossos costumes está em
que não havia menino que não botasse o boné à
banda e soubesse gingar, nem escolas que se não desafiassem para brigar,
sendo de data recente as lutas entre os famosos colégios Sabino, Pardal
e Vitorio.” Mello Moraes Filho dá uma idéia precisa da
simulação e dissimulação da intenção
durante o jogo de capoeira: “O capoeira, colocado em frente a seu contendor,
investe, salta, esgueira-se, pinoteia, simula, deita-se, levanta-se e, em
um só instante, serve-se dos pés, da cabeça, das mãos,
da faca, da navalha, e não é raro que um apenas leve de vencida
dez ou vinte homens” .
Ao encerrar a reportagem da Capoeira no começo do século XIX,
traça Melo Moraes o perfil do famoso capoeira Manduca da Praia.
“O Manduca da Praia era um pardo claro, alto, reforçado, gibento
e quando o vimos usava barba crescida em ponta, grisalha e cor de cobre.
‘De chapéu de castor branco ou de palha ao alto da cabeça,
de olhos injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura
tinha alguma coisa que infundia temor e confiança.
‘Trajando com decência, nunca dispensava o casaco grosso comprido,
grande corrente de ouro que prendia o relógio, sapatos de bico revirado,
gravata de cor com anel corrediço, trazendo somente como arma uma bengala
fina de cana da Índia.
‘O Manduca tinha uma banca de peixe na praça do Mercado, era liso
em seus negócios, ganhava bastante e trabalhava com regalo.
‘Constante morador da Cidade Nova, não recebia influências
da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte,
sendo capoeira por sua conta e risco.
‘Destro como uma sombra, foi no curro da rua do Lavradio, canto da do Senado,
onde é hoje uma cocheira de andorinhas, que ele iniciou a sua carreira
de rapaz destemido e valentão, agredindo touros bravios sobre os quais
saltava, livrando-se.
‘Nas eleições de S. José dava cartas, pintava o diabo
com as cédulas.
‘Nos esfaqueamentos e sarilhos próprios do momento ninguém
lhe disputava a competência.
‘Um dia, na festa da Penha, o Manduca da Praia bateu-se com tanta vantagem
contra um grupo de romeiros armados de pau, que alguns ficaram estendidos
e os mais inutilizados na luta.
‘O fato que mais o celebrizou nesta cidade remonta à chegada do deputado
Sant’ana, cavalheiro distintíssimo e invencível jogador
de pau, dotado de uma força muscular prodigiosa.
‘Sant’ana, que gostava de brigas e não recuava diante de quem
quer que fosse, tendo notícia do Manduca, procurou-o.
‘Encontrando-se os dois, houve o desafio, acontecendo àquele saltar
aos ares ao primeiro canelo do nosso capoeira, depois do que beberam champagne
ambos e continuaram amigos.” Outro capoeira famoso no começo
do século XX foi Prata Preta, um dos principais líderes populares
da Revolta da Vacina (1904), que se notabilizou por seus confrontos com a
policia durante o conflito. Sobre essa época é interessante
a leitura do relato de Lima Campos, em artigo intitulado “A Capoeira”,
publicado em 1906 na Revista Kosmos. trazendo o registro de um flagrante testemunhado
pelo jornalista: “A alma do capoeira é o olhar; uma esgrima sutil,
ágil, firme, atenta, em que a retina é o florete flexível,
penetrante, indo quase devassar a intenção ainda oculta, o desejo
apenas pensado, voltada sempre para o adversário, apanhando-lhe todos
os movimentos, surpreendendo-lhe os mais insignificantes ameaços, para
desviá-los, em tempo, com a destreza defensiva dos braços em
rebates lépidos ou evitá-los com os desvios laterais e os recuos
saltados do corpo, leve, sobre ponta de pés, até facultar e
perceber a aberta e entrar, ‘para ver como é, para contar como foi’,
segundo o calão próprio.
‘O capoeira não inutiliza unicamente o adversário pelos seus
golpes; inutiliza-o também, e pior, pelo ridículo.
‘Não lutava em silêncio, proferia sempre termos grosseiros
visando exasperar, ridicularizar o contendor. Na churumela (cabeçada),
por exemplo, que eles denominavam ‘levar a torre do pensamento ao aparelho
mastigante do poeta’, o adversário era atingido com a cabeça
num golpe vigoroso, desfechado embaixo do queixo, projetado no espaço
e finalmente, esborrachava-se de ventre no chão, ou em cambalhotas
com pernas para cima”.
O jornalista e escritor Coelho Neto (1864-1934), professor de Literatura
e Teatro, formado pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco,
autor de mais de cem obras literárias e um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras (cadeira nº 2), também praticou a Capoeira.
Em ‘O Nosso Jogo’, um dos capítulos do seu livro Bazar, também
registra suas impressões sobre as características da arte no
seu tempo: “O que matou a capoeiragem entre nós foi… a navalha.
Essa arma, entretanto, sutil e covarde, raramente aparecia na mão de
um chefe de malta, de um verdadeiro capoeira, que se teria por desonrado se,
para derrotar um adversário, se houvesse de servir do ferro”.
Em outra passagem Coelho Neto esclarece que a arma era descartada pelo capoeira
que sabia aplicar com eficiência os golpes, tirando de ação
o adversário: “O capoeira digno não usava navalha: timbrava
em mostrar as mãos limpas quando saía de um turumbamba (briga,
desordem). Generoso, se trambolhava (aplicava queda violenta) o adversário,
esperava que ele se levantasse para continuar a luta porque “não
batia em homem deitado”; outros diziam, com mais desprezo, “em defunto”.
É interessante observar os contornos do perfil do capoeira carioca
descrito por Coelho Neto: ‘O capoeira que se prezava tinha ofício ou
emprego, vestia com apuro e, se defendia uma causa, como aconteceu com a do
Abolicionismo, não o fazia como mercenário.
‘Quanto às provas de superioridade da capoeiragem sobre os demais
esportes de agilidade e força são tantas que seria prolixa a
enumeração.
‘Além dos feitos dos contemporâneos de Boca Queimada e Manduca
da Praia, heróis do período áureo do nosso desestimado
esporte, citarei, entre outros, a derrota de famoso jogador de pau, guapo
rapagão minhoto, que Augusto Mello duas vezes atirou de catrambias
(desprezo) no pomar da sua chacarinha em Vila Isabel onde, depois da luta
e dos abraços de cordialidade, foi servida vasta feijoada.
‘Outro: a tunda infligida por Zé Caetano e dois cabras destorcidos
a grupo de marinheiros franceses, de uma corveta Palas. A maruja não
esteve com muita delonga e, vendo que a coisa não lhe cheirava bem
em terra, atirou-se ao mar, salvando-se a nado, da agilidade dos três
turunas, que a não deixavam tomar pé”.
O escritor Manoel Querino, no Jornal de Notícias, da cidade de Salvador,
na Bahia, do dia 2 de junho de 1914, em depoimento intitulado ‘A Combuca Eleitoral’
trata das disputas entre liberais e conservadores e do papel dos capoeiras
a soldo dos partidos, na ocasião em que se realizavam as eleições.
“O capoeira fora sempre figura indispensável nos pleitos eleitorais,
fazendo respeitar a opinião de correligionários, provocando
a desordem, sempre que se fazia necessário; espancando o adversário
e contribuindo desse modo para a formação da Câmara dos
Fagundes.” Prosseguindo em sua narrativa Manoel Querino descreve o dia
do pleito eleitoral: “Chegado que fosse o dia da eleição,
estavam as hostes preparadas para a luta, cada partido arregimentava o seu
pessoal, composto de votantes, turbulentos, capoeiras e aderentes. Todos a
postos, começava a chamada, no campo da matriz da paróquia.
Na ocasião aprazada, dava-se um conflito, era o meio de perturbar a
eleição. Chamava-se um cidadão para votar; o grupo político
que dispunha de maior número de desordeiros, gritava: – É fósforo!
– É! – Não é!… E fechava-se o tempo… Gritos, protestos,
doestos, uma vozeria ensurdecedora, e, por fim, recorriam ao argumento decisivo
– o cacete; e o sangue dos partidários ensopava as lajes do templo,
sendo alguma vez interdito pela autoridade diocesana.
‘Aproveitando a confusão do momento, o votante mais sagaz introduzia
na urna um maço de chapas. Chamava-se esta ação – emprenhar
a urna. De modo que a vitória das urnas estava na razão de quem
dispunha dos maiores elementos de desordem, fossem paisanos ou militares.”
O mesmo sistema que gerava a miséria provocava as turbulências
no contexto social: fabricava aquele estado de coisas. Os capoeiras faziam
uso da violência, indistintamente, contra membros de uma sociedade que
sobrevivia às custas da escravidão, a violência institucionalizada
sempre gerando mais violência. Enquanto isso, a Capoeira fazia mais
adeptos, em todas os segmentos sociais. Segundo Francisco Pereira da Silva,
o escritor Coelho Neto era exímio na arte: “Ágil na pena
quanto destro na rasteira, duas vezes publicamente se valeu do ensino da capoeiragem
recebido nos tempos de rapaz. Josué Montello refere-se a um destes
episódios, precisando a data de 6 de agosto de 1886, quando à
noite em meeting de abolicionistas no Teatro Politeama do Rio de Janeiro,
discursava Quintino Bocaiúva. A certa altura, capoeiristas a soldo
dos escravocratas irrompem das galerias e armam tremendo salseiro. Luzes apagadas,
vem Coelho Neto e realiza a incrível proeza de desarmar o chefe do
bando, que outro não era senão Benjamim – o mais temível
capoeira carioca.” De outra feita, o mesmo romancista Coelho Neto, em
episódio também narrado por Josué Montello e aqui transcrito
de Pereira da Silva, demonstrou seus atributos de destreza e valentia: “Na
Academia Brasileira de Letras, fizera o tribuno maranhense referência
em desfavor de um colega de imortalidade. Dias depois lhe apareceu um filho
do suposto ofendido exigindo satisfação. Gravemente desentenderam-se
e o jovem, que era atleta, não retardou seu golpe de jiu-jitsu. Instantaneamente
e com agilidade felina, partiu Coelho Neto para o rabo de arraia levando o
insolente a beijar o pó da calçada e a sumir no oco do mundo…”
Do capoeira da Bahia, no século passado, traçou Manoel Querino
um perfil da sua figura inconfundível, que em muito se assemelhava
à do seu contemporâneo capoeira do Rio de Janeiro: “Era
um indivíduo desconfiado e sempre prevenido. Andando nos passeios,
ao aproximar-se de uma esquina tomava imediatamente a direção
do meio da rua; em viagem se uma pessoa fazia o gesto de cortejar a alguém,
o capoeira, de súbito, saltava longe, com a intenção
de desviar uma agressão, embora imaginária.
‘Eram conhecidos à primeira vista pela atitude singular do corpo,
pelo andar arrevesado, pelas calças de boca larga, ou pantalona, cobrindo
toda a parte anterior do pé, pela argolinha de ouro na orelha, como
insígnia de força e valentia, e o nunca esquecido chapéu
à banda.” Muitos foram os capoeiras que deixaram seus nomes e
feitos inscritos nas páginas dos cronistas da história, deixando
evidente a aptidão para feitos de coragem e bravura. Exemplo disso
são as páginas do jornalista e escritor Monteiro Lobato, cronista
e romancista, criador do Sítio do Pica-pau Amarelo e seus personagens,
obra que o imortalizaria como maior nome da literatura infantil brasileira.
O seu testemunho sobre o 22 do Marajó foi transcrito por João
Lyra Filho, em Introdução à Sociologia dos Desportos:
“Trata-se de um marinheiro, mestre em desordens, habituado a revirar
de pernas para o ar quiosques portugueses; imperava na Saúde, onde
suas proezas de capoeira exímio andavam de boca em boca. Tantas fez
que o governo o mandou para o Norte, onde foi servir no Alto Amazonas. Ali
aclimado, tornou-se rapaz sereno. Com boa pinta, ferrou namoro com a mulher
de um ship-chandler, tornando-se seu amante. Mas o trio teve pouca duração;
o marido enganado morreu. O marujo casou-se com a viúva, herdeira de
bons pacotes, pediu baixa e seguiu para a Europa. No velho mundo, permaneceu
dois anos, ao cabo dos quais veio morar no Rio de Janeiro.
‘O marinheiro já era outro; transformado em perfeito cavalheiro,
embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas de gala,
as luvas de pelica e a cartola café-com-leite. Ninguém sabia
quem ele era, embora parecesse um fidalgo. Impávido, petroneando de
monóculo, olhava de cima. De hábitos certos, todos os dias passava
pelo largo São Francisco, assim como paca pelo carreiro. O logradouro
era ponto de encontro preferido por alguns rapazes grã-finos, fortemente
despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido. Este passou
a ser visto como um rival, sobretudo no jogo lúdico do namoro com as
donzelas. Os rapazes decidiram quebrar a proa do novo êmulo. Certa vez
em que este passava, mais imponente do que nunca, coincidiu aproximar-se da
roda um capoeira ‘mordedor’, que se gabava de ser um mestre em
soltas. ‘Solta’ era uma cabeçada desferida no adversário,
sem encosto da mão.
‘Veio a hora da ‘mordida’ e com ela a hora da forra. Os rapazes
selaram o trato: o capoeira embolsaria cinco mil réis, desde que sapecasse
uma solta naquele freguês de monóculo. ‘É pra já’,
disse o valentão, já indo ao encontro do rival. Postou-se perto,
na calçada por onde caminhava o ‘22’, desperdiçando
passos de lorde e esticado dentro do croisô confeccionado em Londres
Um, dois, três. Quando o antigo marujo o defrontou, o capoeira avançou
e despejou-lhe primorosa cabeçada. Mas o adversário, surpreendido,
quebrou o corpo e mandou a cabeçada do agressor beijar a parede. Ao
mesmo tempo, com um pé bem manobrado, plantou-o no chão com
uma rasteira de placa. O ‘mordedor’ ergueu-se, tonto e confuso,
para desabar, novamente, com outra rasteira de estilo. De agressor passara
a agredido; desnorteado, deu sebo às canelas e foi amansar o galo da
cabeça a cem passos adiante.
‘O Petrônio ficou por ali mesmo, onde estava, dando-se ao conserto
do laço da gravata. Mas não perdeu o ímpeto transformado
no desprezo dirigido aos rapazes grã-finos e mofinos da roda elegante:
‘- Só uma besta desta dá soltas sem negaça. Já
o Cincinato Quebra-Louça dizia que soltas sem negaça só
em lampião de esquina; se grampeasse, vá lá. O Trinca-Espinha,
o Estrepolia e o Zé da Gamboa admitem soltas neste caso. Mas, assim
mesmo, só quando o semovente não é firme de letra.’
E, num giro de bengala entre os dedos, rematou com um suspiro de saudade:
‘- Já gostei desse divertimento. Hoje, minha posição
social não me permite cultivá-lo. Mas vejo, com tristeza, que
a arte está decaindo.’ E lá se foi, imperturbável
e superior, monologando. ‘Soltas sem negaça…Forte besta!’
‘Mas os rapazes não se deram por vencidos. Recuperados após
o estupor, uma nova tentativa de desforra cresceu no ânimo deles. A
desforra deveria ser contundente. Já então, a surra deveria
ser mediante contrato: adjudicaram a empresa ao famoso Dente de Ouro, da Saúde,
que haveria de romper o baluarte e quebrar de vez a proa ao estranho figurão.
Tudo bem assentado, foram colocar-se no momento aprazado junto ao carreiro,
com o rompe-e-rasga à frente. ‘É aquele lá’
– apressaram-se em dizer, assim que ao longe repontou a cartola café-com-leite
do sobranceiro lutador. Dente de Ouro avançou para o desconhecido;
ao defrontá-lo, entreparou e abriu-se num grande riso palerma: ‘Ei
22! Você por aqui?’ E a resposta: ‘- Cala o bico, moleque,
e tome lá para o cigarro. Afasta-te que hoje sou gente; não
ando em más companhias.’ E o 22 do Marajó seguiu caminho
honesto, depois de meter uma pelega de dez na mão do Dente de Ouro.
Este, alisando a nota, voltou ao grupo dos grã-finos. ‘Então?’
– um dos rapazes interrogou-o, desnorteado com o imprevisto desfecho. – ‘Cês
tão besta? Aquele é o 22 do Marajó, tem corpo fechado
para sardinha e pé que nunca melou saque!’ ” Em A Alma
Encantada das Ruas, João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto,
jornalista, romancista, cronista, teatrólogo e contista, autor de Dentro
da Noite, A mulher e Os Espelhos, e dos livros de reportagens As Religiões
do Rio e Movimento Literário, nascido em 1880 e que veio a falecer
em 1921, na crônica Presepes, aborda um grupo carnavalesco formado por
negros da Bahia, que tem sua sede na praia Formosa, o Rei de Ouros. Descrevendo
suas conversas com Dudú, um dos integrantes do grupo, quanto à
composição do Presepes, indagou: “- Mas porque, continuo
eu curioso, põem vocês junto do rei Baltazar aquele boneco de
cacete? – Aquele é o rei da capoeiragem. Está perto do rei Baltazar
porque deve estar. Rei preto também viu a estrela. Deus não
esqueceu a gente. Ora, não sei se V.S. conhece que Baltazar é
pai da raça preta. Os negros de Angola quando vieram para a Bahia trouxeram
uma dança cungú, em que se ensinava a brigar. Cungú com
o tempo virou mandinga e S. Bento.
– Mas o que tem tudo isso? – Isso, gente, são nomes antigos da capoeiragem.
Jogar capoeira é o mesmo que jogar mandinga. Rei da capoeiragem tem
seu lugar junto de Baltazar. Capoeiragem tem sua religião.
Abri os olhos pasmados. O negro riu.
– V.S, não conhece a arte? Hoje está por baixo. Valente de
verdade só há mesmo uns dez: João da Sé, Tito
da Praia, Chico Bolivar, Marinho da Silva, Manoel Piquira, Ludgero da Praia,
Manoel Tolo, Moisés, Mariano da Piedade, Cândido Baianinho e
outros… Esses cabras sabiam jogar mandingas como homens…
– Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as
presepadas.
– Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um nome.
É mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V.S. pelas pernas e viro:
– V.S. virou balão e eu entrei de baixo. Se eu cair virei boi. Se eu
lançar uma tesoura eu sou um porco, porque tesoura não se usa
mais. Mas posso arrestar-lhe uma tarrafa mestra.
– Tarrafa? – É uma rasteira com força. Ou esperar o dégas
de galho, assim duro, com os braços para o ar e se for rapaz da luta,
passar-lhe o tronco na queda, ou, se for arara, arrumar-lhe mesmo o baú,
pontapé na pança. Ah! V.S. não imagina que porção
de nomes tem o jogo. Só rasteira, quando é deitada, chama-se
banda, quando com força, tarrafa, quando no ar, para bater na cara
do cabra, meia lua…
– Mas é um jogo bonito!, fiz para contentá-lo.
– Vai até o auê, salto mortal, que se inventou na Bahia.
‘Para aquela lição intempestiva, já se havia formado
um grupo de temperamentos bélicos. Um rapazola falou: – E a encruzilhada?
– É verdade, não disseste nada da encruzilhada? ‘E a discussão
cresceu. Parecia que iam brigar…
‘Fora, a chuva jorrava torrencial. Um relógio pôs-se a bater
preguiçosamente meia-noite. As mulatinhas cantavam tristes: ‘Meu
rei de Ouros quem te matou?/Foi um pobre caçadô’ ‘Mas Dudú
saltou para o meio da sala. Houve um choque de palmas. E diante do quarto,
onde se confundia o mundo em adoração a Deus, o negro cantou
acompanhado pelo coro: ‘Já deu meia noite/O sol está pendente
Um quilo de carne/ Para tanta gente!’ ‘Oh! Suave ironia dos malandros!
Na baiúca havia alegria, parati, álcool, fantasia, talvez o
amor nascido de todas aquelas danças e do insuportável cheiro
do éter floral…
‘Não havia, porém, com que comer. Diante de Jesus, que só
lhes dera o dia de amanhã, a queixa se desfazia num quase riso. Um
quilo de carne para tanta gente! ‘Talvez nem isso! Saí, deixei o último
presepe.
‘De longe, a casinhola com as suas iluminações tinha um ar
de sonho sob a chuva, um ar de milagre, o milagre da crença, sempre
eterna e vivaz, saudando o natal de Deus, através da ingenuidade dos
pobres. Como seria bom dar-lhes de comer, ó Deus Poderoso! ‘Como lhes
daria eu um farto jantar se, como eles, não tivesse apenas a esperança
de amanhã obter um quilo de carne só para mim!” João
Moniz, poeta nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia,
deixou nas páginas do jornal A Tarde um relato das suas impressões
acerca do famoso capoeira Besouro, personagem que até os dias de hoje
é cantado nas rodas do jogo. Com palavras de evidente admiração,
afirmou o poeta: “Besouro foi a maior atração de minha
infância. Seus combates simulados com Doze Homens, Ioiô, Nicori
e outros capoeiristas seus amigos, ao som do berimbau e do pandeiro, eram
espetáculos magníficos de força, agilidade e delicadeza,
em que os suarentos e leais contendores se aplicavam, mutuamente, os perigosos
preceitos de ataque e defesa, cuidadosos de se não machucarem, por
que não saíssem mal-avindos do brinquedo. E Besouro, então,
primava por essas atitudes de nobreza, ele que era respeitado como o primus
inter pares, no recôncavo e no costeiro baianos, da luta, que lhe levaria
o nome, em situação privilegiada, ao nosso folclore.
‘Conheci Besouro na pujança dos seus vinte e poucos anos. Era amável,
brincalhão, amigo das crianças e ‘respeitador dos brancos’.
De uma coragem pessoal que parecia loucura, gostava de ‘buli’
com a polícia. E não raro explodia um turundundum dos diabos
em frente à cadeia velha, sua terra natal. Era Besouro, que, noite
velha, havia acordado o destacamento para um ‘brinquedo’, que
se prolongava em correrias e tiros, e de que ele saía ileso e sempre
sorrindo, como entrava.
‘Às vezes, no calor da luta, tirava um pouco de ‘tinta’
nos praças, mas nunca matou ninguém. Tinha tanto horror a palavra
assassino quanto adorava o termo valente, que lhe cabia a rigor.” A
respeito de uma versão – até hoje bastante acreditada – da morte
de Besouro, onde este teria sido “morto traiçoeiramente pela
polícia, por ter abatido oito praças com a capoeira, de uma
só vez”, versão esta que foi publicada em reportagem assinada
por Cláudio Tuiuty Tavares, em O Cruzeiro, afirmou João Moniz
em sua crônica: “Aquele particípio – abatido – empregado
pelo repórter, deixa entender que Besouro matou oito soldados e por
isso foi morto. Não, já deixei dito que Besouro nunca matou
ninguém, e posso afirmar, com absoluta segurança, que não
foi morto pela polícia.
‘Contam-se duas versões da morte de Besouro. Uma, inverídica,
resultante de perfídia política, e a outra, verdadeira, em que
Besouro, embriagado, fora ferido a punhal, traiçoeiramente, por um
rapazelho subestimado por ele à vista de outros, quando bebiam numa
venda. E não morreu propriamente do golpe, mas, de mau trato, que o
deixaram no chão por mais de um dia, o intestino à mostra, antes
que o trouxessem para a Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro,
onde fechou os olhos para a vida, cercado de amigos, admiradores e curiosos.”
Além do famoso Besouro, muitos capoeiras se notabilizaram, sendo que
alguns se tornaram conhecidos mundialmente, como é o caso do pescador
Samuel Querido de Deus, de Salvador, numa fase em que havia cessado a repressão
ao jogo da Capoeira e sua prática já não era mais proibida.
Jorge Amado, em Bahia de Todos os Santos, traçou o perfil do Querido
de Deus, no ano de 1944, quando o pescador ainda vivia, sob o título
O Capoeira: “Já começaram os fios de cabelo branco na
carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua cor é indefinida. Mulato,
com certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado pelo sangue indígena
ou com traços de italiano no rosto anguloso? Quem sabe? Os ventos do
mar nas pescarias deram ao rosto do Querido de Deus essa cor que não
é igual a nenhuma cor conhecida, nova para todos os pintores. Ele parte
com seu barco para os mares do sul do estado onde é farto o peixe.
Quantos anos terá? É impossível saber nesse cais da Bahia,
pois de há muitos anos que o saveiro de Samuel atravessa o quebra-mar
para voltar, dias depois, com peixe para a banca do mercado Modelo. Mas o
velhos canoeiros poderão informar que mais de sessenta invernos já
se passaram desde que Samuel nasceu. Pois sua cabeça já não
tem fios brancos na carapinha que parece eternamente molhada de água
do mar? ‘Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém ainda assim, não
há melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da Conceição
da Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido de Deus. Que venha
Juvenal, jovem de vinte anos, que venha o mais ágil, o mais técnico,
que venha qualquer um, e Samuel, o Querido de Deus, mostra que ainda é
o rei da capoeira da Bahia de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos
e ainda olham espantados quando ele se atira no rabo-de-arraia, porque elegância
assim nunca se viu… E já sua carapinha tem cabelos brancos…
‘Existem muitas histórias a respeito de Samuel Querido de Deus. Muitas
histórias que são contadas no Mercado e no cais. Americanos
do norte já vieram para vê-lo lutar. E pagaram muito caro por
uma exibição do velho lutador.
‘Certa vez seu amigo escritor foi procurá-lo. Dois cinematografistas
queriam filmar uma luta de capoeira. Samuel chegara da pescaria, dez dias
no mar e trazia ainda nos olhos um resto de vento sul. Prontificou-se. Fomos
em busca de Juvenal. E, com as máquinas de som e de filmagem, dirigimo-nos
todos para a Feira de Água dos Meninos. A luta começou e foi
soberba. Os cinematografistas rodavam suas máquinas. Quando tudo terminou,
Juvenal estendido na areia, Samuel sorrindo, o mais velho dos operadores perguntou
quanto era. Samuel disse uma soma absurda na sua língua atrapalhada.
Fora quanto os americanos haviam pago para vê-lo lutar. O escritor explicou
então que aqueles eram cinematografistas brasileiros, gente pobre.
Samuel Querido de Deus abriu os dentes num sorriso compreensivo. Disse que
não era nada e convidou todo mundo para comer sarapatel no botequim
em frente.
‘Podeis vê-lo de quando em quando no cais. De volta de uma pescaria
com seu saveiro. Mas com certeza o vereis na festa da Conceição
da Praia, derrotando os capoeiras, pois ele é o maior de todos. Seu
nome é Samuel Querido de Deus.” Os principais estudiosos da cultura
brasileira, no passado recente, imortalizaram o jogo da Capoeira em páginas
magistrais. É este o caso de Eunice Catunda, que concorreu com suas
observações para fixar análise do jogo e das suas tradições,
em artigo intitulado Capoeira no Terreiro de Mestre Waldemar, publicado em
Fundamentos – Revista de Cultura Moderna, no ano de 1952, em São Paulo.
“Todo artista que não acredita no fato de que só o povo
é o eterno criador, que só dele nos pode vir a força
e a verdadeira possibilidade de expressão artística, deveria
assistir a uma capoeira baiana. Ali a força criadora se evidencia,
vigorosa, livre dos preconceitos mesquinhos do academismo, tendo como lei
primordial e soberana a própria vida que se expressa em gestos, em
música, em poesia. Ali se exprime a vida magnífica e bela, em
nada prejudicada pela capacidade limitada dos instrumentos musicais primitivos,
aos quais se adapta sem ser por eles diminuída.
‘O senso de realização coletiva, própria essência
da arte, se revela no tríplice aspecto da capoeira, que é uma
fusão de três artes: música, poesia e coreografia.”
Em seguida, Eunice Catunda acrescenta sua opinião quanto ao lugar ocupado
pela Capoeira no contexto das artes, abalizada por sua formação
musical erudita: “A dança da capoeira, na Bahia, é o que
jamais deixou de ser a verdadeira arte: não um divertimento, mas uma
necessidade. Aliás, é esse um dos fatores a que se deve a força
mil vezes mais viva da arte popular quando a comparamos à música
erudita: esse caráter funcional, esse aspecto de necessidade imperiosa
que tem toda arte que o povo cultua. Ao passo que a música erudita
soa cada vez mais falsa, se revela sempre mais um simples gozo de sibaritas,
sem função, desnecessária.
‘Na Bahia, a arte da capoeira é atividade domingueira, tão
normal e querida quanto o nosso grande esporte nacional, o futebol. E quem
a exerce é, na maioria, o povo trabalhador: operários da construção
civil, carregadores do mercado, gente de profissão definida, que passa
a semana inteira no duro batente, lutando para garantir o pão de cada
dia, para si e para sua família.” Na apreciação
da Capoeira e suas características, a cronista prossegue registrando
a função do mestre-capoeira e seu papel junto aos praticantes,
guardando uma tradição que continua no correr dos anos: “O
ritual, a tradição a que obedecem os participantes da capoeira,
são muito rígidos. O mestre é o conhecedor da tradição.
Daí ser ele, também a autoridade máxima. Supervisiona
o conjunto todo, determinando a música, o andamento, tirando ou indicando
os cantos ou indicando a pessoa que o faça.
‘Os concorrentes novatos dançam entre si. Mas quando algum bailarino
se destaca, o mestre dança com ele, apontando-o, por meio dessa distinção
à atenção dos veteranos, novatos e assistentes. Essa
autoridade do Mestre é uma das coisas mais admiráveis e comoventes
que tenho visto. O respeito a ele demonstrado pela coletividade, o carinho
com que o cercam, fariam inveja a muito regente de música erudita.
Prova isto que o espírito de disciplina é mais vivo no povo
rude e inculto da nossa terra, quando este se organiza, que entre as camadas
superiores, já mais habituados à organização conseqüente
da própria instrução e do exercício de atividades
culturais e que, por isso mesmo, teriam maior obrigação de compreender
a necessidade e a importância da disciplina na coletividade. Acontece
porém que o mestre nunca abusa de seus direitos. Não se atribui
poderes ditatoriais. Sabe que sua autoridade emana da própria coletividade
e comporta-se como parte integrante desta.” Ao entrar na descrição
do terreiro onde aprecia a Capoeira, as anotações descrevem
as condições de vida da gente anônima e humilde que resiste
com a luta: “O terreiro de mestre Waldemar localiza-se no célebre
bairro proletário da Liberdade. Bairro de grande densidade de população,
sem pretensões, esquecido da Prefeitura que se preocupa em embelezar
e cuidar só daqueles trechos da Cidade do Salvador que se encontram
à vista do turista. Quanto ao bairro da Liberdade, não é
para ‘gringo’ ver. Como todo bairro operário, não
tem calçamento, é cheio de valas onde, em tempo de chuva, as
águas parecem envoltas em nuvens de mosquitos; seus incontáveis
casebres mal se têm de pé, e se o fazem é por pura teimosia.
Abundam as vendolas onde se compra desde o jabá até a caninha.
É um bairro repleto de vida e de movimento, corajoso e revoltado.”
A descrição da Capoeira praticada à época evidencia
a beleza do jogo tradicional, na perícia e habilidade no manejo do
corpo, sem resvalar para o confronto aberto.
“Quando chegamos ao terreiro a capoeira já começara.
Dois dançarinos coleavam rentes ao chão, enquanto dois berimbaus
e três pandeiros acompanhavam com estranhos ritmos e sons aquela dança
magnífica e arrebatadora, de gente combativa e forte. Os dançarinos
do momento eram um carregador do mercado de Água dos Meninos e um operário
da construção civil. O operário estava todo de branco,
sapatos brilhando, camisa alvejando. Era um dos melhores dançarinos.
É costume da fina-flor dos capoeiristas o dançar assim, ‘de
ponto branco’ como se costuma dizer, para demonstrar sua perícia.
Chegam ao cúmulo da dançar de chapéu e os bailarinos
hábeis se gabam de sair da dança sem uma só mancha de
terra na roupa, limpos e bem arrumados como se ainda não houvessem
entrado em função.
‘A dança da capoeira é a representação simbólica
de antigas lutas autênticas. Na Capoeira de Angola, os dançarinos
volteiam quase rentes ao chão, realizando paradas de braço,
em posição horizontal, girando, escorregando como enguias e
escapulindo por sob o corpo do adversário. Os golpes são constatados
por mesuras e pelas exclamações dos assistentes. Aliás,
não fora a precisão daqueles movimentos, muitos dos golpes seriam
mortais. Esse é o caso das célebres cabeçadas assestadas
contra o peito e cujo impulso é sustado só no derradeiríssimo
momento, quando a cabeça de um dos bailarinos já aflorou o corpo
do outro. A violência latente nunca se desencadeia e esse extraordinário
domínio de paixões mantêm a assistência numa incrível
tensão de nervos, empolgando a todos numa espécie de hipnotismo
coletivo quase indescritível. Só aqueles que assistiram a uma
demonstração de Capoeira de Angola poderão compreender
a monstruosa força e controle exigidos para que realize cada um daqueles
movimentos, sem que se dê lugar a qualquer agressão, sem que
se perca a elegância e a graça felina de cada gesto, absolutamente
medido, calculado por uma espécie de instinto, já que os elementos
atuantes se acham inteiramente entregues a aquela arte aparentemente tão
impulsiva e espontânea.
‘Apesar da violência latente, não sobrevêm a hostilidade.
Há no meio daquilo tudo imensa fraternidade e júbilo. Verificam-se
passes espirituosos de bailarinos brincalhões e sorridentes, a realizar
difíceis e perigosíssimos passos e golpes. E entre os assistentes
estouram sonoras risadas… Jamais vi, em danças de conjunto, nacionais
ou estrangeiras, tão arrebatadora beleza, aliada a tal rapidez, precisão
e força reprimida, dominada por uma inteira disciplina e lucidez.
‘Tivemos ocasião de admirar um menino de sete anos que dançou
com o próprio mestre Waldemar, de quem é aluno, e com aquele
operário exímio de quem já falei. Não se pode
imaginar quanto era comovente acompanhar a frágil figurinha infantil,
hábil, compenetrada, a competir com o homem mais velho, em cujo rosto
se iluminava um sorriso afetuoso, porém nada complacente. Concentrado,
o menino aplicava cabeçadas e rasteiras, escapulindo matreira e agilmente
das rasteiras e cabeçadas do mestre, cônscio de sua dignidade
de futuro capoeirista, de futuro artista popular, imperturbável, sob
os olhares e exclamações dos espectadores.
‘A voz masculina, pura e profunda, se elevava acima do pulsar do conjunto
instrumental, suave e intensa, muitas vezes modal, para só dar lugar
ao côro, verdadeiro canto recitativo. Depois a voz continuava, fazendo
floreios sobre a mesma base, sem nunca repetir, impossível quase de
anotar com exatidão por meios não mecânicos.
‘Os solistas se alternavam, dando à melodia a característica
própria de seu temperamento humano. Umas eram mais vivas, mais espirituosas,
enquanto outras eram sonhadoras, singelas. Mas todos os textos profundamente
poéticos.
‘Lembro-me bem de uma voz que se elevou para cantar a beleza dos saveiros
de velas enfunadas, louvando o mar generoso e o vento que os conduz. Descreveu
o vento a acumular nuvens para depois dissolvê-las em gotinhas de chuva,
sobre a branca vela dos saveiros que embalou. Era a poesia popular que se
fazia presente no esplendor típico da arte única que é
a Capoeira de Angola. E a tudo isso o côro continuava a responder pela
boca de todos os assistentes e participantes: ‘Eh! Paraná, eh!
Paraná, camará…’ enquanto os dançarinos voltejando,
girando, desviando os corpos das cabeçadas, rindo alto, aos saltos,
elásticos como gatos.”
VICENTE FERREIRA PASTINHA – O MESTRE DA CAPOEIRA ANGOLA Capoeira eu sou Angola/valha-me
Deus, senhor São Bento/tanto jogo para cima/ como jogo para o chão…’
Vicente Ferreira Pastinha, nascido em 1889, dizia não ter aprendido
a Capoeira em escola, mas “com a sorte”: foi o destino o responsável
pela iniciação do pequeno Pastinha no jogo, ainda garoto.
Em depoimento prestado no ano de 1967, no Museu da Imagem e do Som, mestre
Pastinha relatou a história da sua vida: “Quando eu tinha uns
dez anos – eu era franzininho – um outro menino mais taludo do que eu tornou-se
meu rival. Era só eu sair para a rua – ir na venda fazer compra, por
exemplo – e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando
dele, sempre. Então eu ia chorar escondido de vergonha e de tristeza
(…)” A vida iria dar ao moleque Pastinha a oportunidade de um aprendizado
que marcaria todos os anos da sua longa existência.
“Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga
da gente. ‘Vem cá, meu filho’, ele me disse, vendo que
eu chorava de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele,
sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde
empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita
valia. Foi isso que o velho me disse e eu fui (…)” Começou
então a formação do mestre que dedicaria sua vida à
transferência do legado da cultura africana a muitas gerações.
Segundo ele, a partir deste momento, o aprendizado se dava a cada dia, até
que aprendeu tudo. Além das técnicas, muito mais lhe foi ensinado
por Benedito, o africano seu professor.
“Ele costumava dizer: não provoque, menino, vai botando devagarzinho
ele sabedor do que você sabe (…). Na última vez que o menino
me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se
meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração
e respeito (…).
‘Aos doze anos, em 1902, eu fui para a Escola de Aprendiz de Marinheiro.
Lá ensinei Capoeira para os colegas. Todos me chamavam de 110. Saí
da Marinha com 20 anos (…). Vida dura, difícil. Por causa de coisas
de gente moça e pobre, tive algumas vezes a Polícia em cima
de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu lembrava de
mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava Capoeira, então
queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso, bati alguma vez em polícia
desabusado, mas por defesa de minha moral e de meu corpo(…). Naquele tempo,
de 1910 a 1920, o jogo era livre.
‘Passei a tomar conta de uma casa de jogo. Para manter a ordem. Mas, mesmo
sendo capoeirista, eu não me descuidava de um facãozinho de
doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia comigo. Jogador profissional
daquele tempo andava sempre armado. Assim, quem estava no meio deles sem nenhuma
arma bancava o besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não
gosto de contar casos de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando
minha arte negava sustento. Além do jogo trabalhei de engraxate, vendia
gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro,
sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista (…).”
O ritmo da sua vida foi alterado quando um ex-aluno o levou para apresentar
aos mestres que faziam uma roda de Capoeira tradicional, na Ladeira da Pedra,
no bairro da Gingibirra, em Salvador, no ano de 1941.
“Na roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era Amorzinho,
um guarda civil. No apertar da mão me ofereceu tomar conta de uma academia.
Eu dei uma negativa, mas os mestres todos insistiram. Confirmavam que eu era
o melhor para dirigir a Academia e conservar pelo tempo a Capoeira de Angola.”
Foi na atividade do ensino da Capoeira que Pastinha se distinguiu. Ao longo
dos anos, a competência maior foi demonstrada no seu talento como pensador
sobre o jogo da Capoeira e na capacidade de comunicar-se.
“Mas tem muita história sobre o começo da Capoeira que
ninguém sabe se é verdadeira ou não. A do jogo da zebra
é uma. Diz que em Angola, há muito tempo, séculos mesmo,
fazia-se uma festa todo ano em homenagem às meninas que ficavam moças.
Primeiros elas eram operadas pelos sacerdotes, ficando igual, assim, com as
mulheres casadas. Depois, enquanto o povo cantava, os homens lutavam do jeito
que fazem as zebras, dando marradas e coices. Os vencedores tinham como prêmio
escolher as moças mais bonitas (…). Bem, mas de uma coisa ninguém
duvida: foram os negros trazidos de Angola que ensinaram Capoeira pra nós.
Pode ser até que fosse bem diferente dessa luta que esses dois homens
estão mostrando agora. Me contaram que tem coisa escrita provando isso.
Acredito. Tudo muda. Mas a que a gente chama da Capoeira de Angola, a que
aprendi, não deixei mudar aqui na Academia. Essa tem pelo menos 78
anos. E vai passar dos 100, porque meus discípulos zelam por mim. Os
olhos deles agora são os meus. Eles sabem que devem continuar. Sabem
que a luta serve para defender o homem (…). Saem daqui sabendo tudo, sabendo
que a luta é muito maliciosa e cheia de manhas. Que a gente tem de
ser calmo. Que não é uma luta atacante, ela espera. Capoeirista
bom tem obrigação de chorar no pé do seu agressor. Está
chorando, mas os olhos e o espírito estão ativos. Capoeirista
não gosta de abraço e aperto de mão. Melhor desconfiar
sempre das delicadezas. Capoeirista não dobra uma esquina de peito
aberto. Tem de tomar dois ou três passos à esquerda ou à
direita para observar o inimigo. Não entra pela porta de uma casa onde
tem corredor escuro. Ou tem com o que alumiar os esconderijos da sombra ou
não entra. Se está na rua e vê que está sendo olhado,
disfarça, se volta rasteiro e repara de novo no camarada. Bem, se está
olhando ainda, é inimigo e o capoeirista se prepara para o que der
e vier (…).” Os conceitos do mestre Pastinha formaram seguidores em
todo o país. A originalidade do método de ensino, a prática
do jogo enquanto expressão artística formaram uma escola que
privilegia o trabalho físico e mental para que o talento se expanda
em criatividade.
“Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar
a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres
e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito mas no jeito
deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um (…).
Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo mestre.
Ensina pelo som. Dá vibração e ginga ao corpo da gente.
O conjunto da percussão com o berimbau não é arranjo
moderno não, é coisa dos princípios. Bom capoeirista,
além de jogar, deve saber tocar berimbau e cantar. E jogar precisa
ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar no chão com o corpo. Quando
eu jogo, até pensam que o velho está bêbado, porque fico
todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém
ainda me botou no chão, nem vai botar (…)” Vicente Ferreira
Pastinha se calou no ano de 1981. Durante décadas dedicou-se ao ensino
da Capoeira. Mesmo completamente cego, não deixava seus discípulos.
E continua vivo nos capoeiras, nas rodas, nas cantigas, no jogo.
“Tudo o que eu penso da Capoeira, um dia escrevi naquele quadro que
está na porta da Academia. Em cima, só estas três palavras:
Angola, capoeira, mãe. E embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo
em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método
e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”.
MANOEL DOS REIS MACHADO: O MESTRE BIMBA
“Chora capoeira/capoeira chora/chora capoeira/ mestre Bimba foi embora…”
No dia 23 de novembro de 1899 nasceu no bairro de Engenho Velho, freguesia
de Brotas, cidade de Salvador, Bahia, Manoel dos Reis Machado. Teve como pai
Luis Cândido Machado, caboclo de Feira de Santana. Sua mãe, Maria
Martinha do Bonfim, era uma crioula de Cachoeira.
Logo ao nascer o garoto ganhou um nome que se tornaria símbolo e
sinônimo da Capoeira. Isso graças a uma frase dita à hora
do parto: – olha a bimbinha dele! Esta exclamação definiu o
resultado de uma aposta entre a mãe da criança – que imaginava
uma menina – e a parteira, que previra um menino. Ninguém seria capaz
de pensar, naquele momento, que Bimba passaria a ser um nome destinado a acompanhar
o futuro capoeira em sua entrada na história do jogo.
O aprendizado de lutas se iniciou com o pai, à época famoso
lutador de batuque – uma antiga forma de luta negra. Aos 12 anos começou
a aprender Capoeira com o africano Bentinho, capitão da Cia. de Navegação
Bahiana. Segundo suas palavras, o sistema de aulas à época era
bastante violento. As rodas eram formadas na Estrada das Boiadas (atual bairro
da Liberdade), em Salvador, num ritmo bravio ao som do berimbau. Mestre Bimba
costumava recordar um golpe formidável aplicado por Bentinho, que o
acertara na cabeça, provocando um desmaio até o dia seguinte…
Seu trabalho como mestre-capoeira iria distinguir-se pela divulgação
do jogo em todos os recantos do país e a elaboração de
um sistema próprio de treinamento e transmissão dos conhecimentos
e técnicas do jogo: a Capoeira Regional Bahiana.
Graças aos seus esforços foi aberta a primeira Academia de
Capoeira com autorização oficial. Esta seria a forma adotada
por inúmeros mestres para obter e legalizar um espaço, onde
a prática do jogo não sofreria o perigo de perseguições.
Afinal, era o ano de 1937 e o país vivia sob uma ditadura – período
que sempre se destaca pela generalização das arbitrariedade
e cometimento de toda sorte de violências pelos detentores do poder.
E o que era tolerado em um dia poderia ser reprimido no outro.
Em sua vida Bimba foi trapicheiro, doqueiro, carroceiro, carpinteiro. Mas
acima de qualquer coisa e por todo o tempo, mestre-capoeira. Um dos maiores
nomes deste ofício.
Ninguém melhor que um contemporâneo de Bimba para descrevê-lo
brincando a Capoeira. Ramagem Badaró – de conhecida família
bahiana da zona de cultivo do cacau, que foi enfocada por Jorge Amado em Terras
do Sem Fim -, jornalista, advogado e escritor, autor do romance O Sol, deixou
interessante relato acerca do mestre, no artigo intitulado ‘Os negros lutam
suas lutas misteriosas; Bimba é o grande rei negro do misterioso rito
africano’, publicado em Saga – magazine das Américas, no ano de 1944,
em Salvador.
“Tinha uma difícil missão a cumprir. Encontrar um assunto
para uma reportagem que não fosse sobre guerras, suicídios ou
crime. Um assunto diferente que não proviesse da fonte comum de todas
as reportagens da cidade. Das delegacias de polícia, do Necrotério
ou da Assistência. Porque os casos de delegacia são sempre os
mesmos: roubo, crime e sedução. Os de Necrotério são
anacrônicos e os de Assistência, banalíssimos.
‘Estava nesse dilema, quando passou um negro de andar gingante de capoeira.
Tinha resolvido o problema. Lembrei-me de mestre Bimba e da velha Roça
do Lobo. Fui até o bairro elegante dos Barris, em cujos flancos se
derramam em desordem as casas de taipa da vala do Dique. Presépios
de palha da miséria sem esperança dos homens do povo. Quando
comecei a descer pela picada aberta na ladeira pelos pés descalços
e calosos daquela gente que nasce com o atavismo dos párias e a herança
do infortúnio, já os sons dos berimbaus traziam aos meus ouvidos
o cartão de boas vindas do terreiro de mestre Bimba. Continuei descendo,
até que de repente o caminho se alargou e se confundiu com o terreiro
onde os homens lutavam Capoeira. O povo formava um círculo ao redor
dos dois homens lutando. Jogando Capoeira no centro do círculo.
‘O berimbau batia compassadamente, tin-tin-tin… tin-tin-tin… tin-tin-tin…
enquanto os homens pulavam, caíam, levantavam-se num salto e deixavam-se
cair outra vez, se golpeando mutuamente. O povo batia palmas acompanhando
a música dos berimbaus e cantando o estribilho da Capoeira: Zum, zum,
zum, zum/ Capoeira mata um Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um…
Caí também no meio da turma e comecei a bater palmas e a tentar
cantar o zum, zum da Capoeira (…).” Badaró narra o instante
que precede a entrada do mestre Bimba no jogo e a emoção que
tomou conta dos espectadores.
“De súbito, o tin-tin nervoso dos berimbaus sumiu, calou-se,
parou. Os berimbaus deixaram de tocar. Os homens que estavam lutando também
pararam. Com as roupas molhadas de suor desenhando nas dobras do corpo os
músculos possantes. Os assistentes aplaudiram os homens que tinham
acabado de lutar. E eles cantaram um corrido, agradecendo os aplausos.
Ai-ai de lelô/ Iem-ien de lalá Adeus meus irmãos/ Nós
vamos rezar ‘Nesse momento gritaram: – Mestre Bimba vai lutar! ‘Todo mundo
se voltou para trás, batendo palmas e gritando: – Mestre Bimba… mestre…
viva… viva… vivôôôôôô.
‘Um preto agigantado entrou no círculo formado pelo povo. Sorrindo.
A multidão aplaudiu com mais força. O sol bateu-lhe de rijo
no rosto escuro, iluminando-lhe as feições. Era de fato, alto.
O rosto oval. Os olhos fundos escondidos numa testa saliente. Nariz chato.
Carapinha rala quase careca. E um bigode pequeno, ralo, em forma de triângulo
sobre os lábios grossos. Mas no conjunto era simpático.
O jornalista narra a forma como Bimba se prepara para jogar, enfatizando
a aura de respeito que envolvia o famoso mestre. Uma disputa de versos antecede
o confronto na roda de Capoeira.
“Quando Bimba entrou no círculo os berimbaus começaram
a ensaiar uns toques. E a multidão que enchia o terreiro aplaudia freneticamente
o seu ídolo. Nisso, um crioulo possante entrou no círculo, aceitando
o desafio. E o povo comentou a coragem daquele homem que ia lutar com Bimba.
Porque entrar numa luta com Bimba sem ser convidado por ele é procurar
encrenca. Mesmo sendo mera demonstração. Porque ele é
o rei da Capoeira. Os berimbaus ensaiaram um toque e um dos homens perguntou:
– Qual é o toque? – São Bento Grande Repicado, Santa Maria,
Ave Maria, Benguela, Cavalaria, Calambolô, Tira-de-lá-bota-cá,
Idalina, ou Conceição da Praia? ‘Bimba pensou rapidamente e
disse: – Toque Amazonas e depois Benguela.
‘Os berimbaus começaram a tocar. O crioulo aproximou-se e mestre
Bimba apertou-lhe a mão. E o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin
dos berimbaus, batendo palmas. Bimba balanceou o corpo e cantou: No dia que
eu amanheço/ Dentro de Itabaianinha Homem não monta cavalo/
Nem mulher deita galinha As freiras que estão rezando/ Se esquecem
da ladainha ‘Mas o crioulo não ficou atrás e cantou, negaceando
o corpo no compasso dos berimbaus.
A iúna é mandingueira/ Quando está no bebedor Foi sabida
e é ligeira/Mas capoeira matou ‘Palmas festejaram o repente do crioulo.
Porém, Bimba não deu tréguas à vitória
do outro. E respondeu: Oração de braço forte/ Oração
de São Mateus Pro cemitério vão os ossos/ Os seus ossos,
não os meus ‘Novamente o povo aplaudiu e cantou o estribilho da Capoeira:
Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata um Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica
um ‘O crioulo, entretanto, não deixou cair a quadra de mestre Bimba
e replicou: E eu nasci no sábado/No domingo me criei E na segunda-feira/
A Capoeira joguei ‘A multidão deu vivas e bateu palmas para os dois
lutadores no centro do círculo. Uma preta comentou: – Bom menino! Se
é bom na briga como é no canto, boa parada para Bimba.
Começa então a disputa na roda e Ramagem Badaró conta
com detalhes o momento final: “Os dois lutadores negaceavam os corpos
ao som da música dos berimbaus. Um defronte do outro. Olhando-se dentro
dos olhos, se estudando mutuamente. O crioulo foi o primeiro a começar.
Fazendo algumas fintas, procurando descobrir as partes fracas do adversário.
E mestre Bimba aparentemente deixava-se cair nas ciladas do outro. O crioulo
foi começando a tomar gosto e abrindo mais a própria guarda,
concentrado no ataque. A multidão no terreiro da Roça do Lobo,
continuava acompanhando com as mãos o tin-tin-tin dos berimbaus. E
a cantar em coro o estribilho da Capoeira: Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata
um Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um ‘Enquanto isso os lutadores continuavam
negaceando os corpos, procurando descobrir os pontos fracos do adversário.
‘De repente, pararam de súbito. E ficaram mudos de atenção,
apreciando o ataque. O crioulo avançou rápido, levantou uma
perna e deu uma meia-lua-armada pela direita de Bimba. Porém, não
deu resultado, porque Bimba foi mais rápido. Deixou-se cair na guarda,
enquanto tentava puxar o adversário numa rasteira. Mas, o crioulo também
era ligeiro e livrou-se do golpe com um aú pela esquerda. Bimba insistiu,
tornando a atacá-lo. Tentando pegá-lo numa cabeçada presa.
Porém o crioulo contra-atacou com uma calcanheira violentíssima.
Entretanto Bimba livrou-se agilmente com um formidável pulo mortal.
‘Os berimbaus tocavam com mais frenesi. Demonstrando a excitação
nervosa dos tocadores. Também as palmas de acompanhamento diminuíram
muito, quase cessando.
‘Enquanto isso a assistência completamente em suspenso, apreciava
a luta nos seus mínimos detalhes.
‘Bimba notou que tinha bom adversário. O crioulo era bom de verdade.
Manhoso, ágil e corajoso. O crioulo começou a se afastar de
Bimba como se fosse dar-lhe as costas numa fuga. Bimba percebeu de relance
o truque do adversário e ficou em guarda. Os músculos completamente
controlados, prontos para aproveitar aquela oportunidade. Como ele esperava,
o crioulo deu-lhe completamente as costas, como se fugisse da luta.
Esperando que ele caísse no velho truque da Capoeira e mergulhasse
num arpão de cabeça, dando-lhe a oportunidade de contra-atacar
com um mortífero arpão de joelho. Mestre Bimba, que já
previra o golpe, defendeu-se com uma negativa. Puxando ao mesmo tempo a única
perna do crioulo apoiada no chão, com uma violenta rasteira. Pegado
de surpresa, o crioulo perdeu o equilíbrio, subiu e desabou no terreiro.
Uma gritaria retumbante festejou a sagacidade de Bimba. Todo mundo ficou excitado,
menos mestre Bimba.
‘O capoeirista caído, levantou-se com a mesma rapidez com que caíra.
Porém, estava raivoso, com o sangue fervendo nas veias. Danado de raiva
e meio descontrolado. E afastou-se de Bimba, sempre negaceando o corpo, procurando
desanuviar a cabeça.
A assistência gritava e batia palmas acompanhando o tin-tin-tin nervoso
da orquestra dos berimbaus e o xique-xique dos chocalhos de vime, cantando
sempre o estribilho da capoeira: Zum, zum, zum, zum/Capoeira mata um Zum,
zum, zum, zum/No terreiro fica um ‘Nesse instante o crioulo voltou novamente
para o centro do círculo. E avançou para Bimba tentando pegá-lo
numa vingativa pela esquerda. Não acertou e tomou uma vaia.
O crioulo se descontrolou e avançou louco de raiva. Tentou apanhar
Bimba com um golpe de cotovelo e um sopapo galopante. Mas Bimba não
se deixava alcançar. Continuava negaceando o corpo, sempre fintando,
por meio de rápidas escapadas. A multidão delirava. Isso, entretanto,
lhe distraiu a atenção. Fazendo com que relaxasse a vigilância
da sua guarda. E o crioulo soube tirar partido desse descuido.
Aproximou-se veloz, levantou a perna e deu-lhe uma bênção
em pleno peito. Mestre Bimba pressentiu o golpe e tentou livrar-se. Foi ligeiro.
Mas não o suficiente para se livrar completamente do golpe. O peito
lhe doeu e a sua vaidade também. Porque as palmas do público
festejavam o crioulo.
‘Bimba não deu tréguas à vitória do outro. Avançou
para o crioulo fingindo ir dar um balão açoitado. Depois, ensaiou
uma palma e levantou a perna como se fosse dar uma bênção.
O crioulo ficou todo confuso com a rapidez e a sucessão dos golpes.
Pensou que aquele último golpe era o verdadeiro ataque que Bimba queria
fazer e procurou defender-se caindo numa rasteira. Viu o seu erro e tentou
derrubar Bimba com uma encruzilhada. Também errou e mestre Bimba dominou-o
com um tronco de pescoço, antes que ele pudesse livrar-se num balão.
Tinha vencido a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo o rei da Capoeira.
Bimba abraçou o adversário. E o crioulo mostrou que era homem
mesmo. Cantou: Santo Antônio pequenino/Amansador de burro brabo Amansai-me
em Capoeira/com setenta mil diabos ‘Bimba gostou do elogio e retribuiu, cantando:
Conheci um camarada/Quando nós andarmos juntos Não vai haver
cemitérios/P’ra caber tantos defuntos ‘A multidão tornou
a aplaudir e mestre Bimba abraçou o crioulo (…).” Com sua incursão
no terreiro de mestre Bimba, Ramagem Badaró conseguiu sua reportagem
e escreveu bonita página sobre a Capoeira desse tempo, mostrando-nos
mais uma vez o quanto é solidária a autêntica manifestação
da luta, nessa arte.
Mestre Bimba dedicou-se ao jogo até o final dos seus dias. Em seus
últimos anos de vida, deixou a Bahia e veio para Goiás, atraído
pela possibilidade de encontrar o reconhecimento a que fazia jus. No ano de
1974 mestre Bimba deixou definitivamente o convívio da família,
amigos e discípulos e passou a ocupar lugar de destaque na memória
da Capoeira.
II – Na Roda da Capoeira
‘Ritmo na luz/ ritmo na cor/ ritmo no movimento ritmo nas gretas sangrentas
dos pés descalços ritmo nas unhas descarnadas/Mas ritmo/ ritmo.
Ó vozes dolorosas de África! Agostinho Neto, Fogo e ritmo.
A MÚSICA DA CAPOEIRA
Berimbau já fez chamada/é hora de lutar essa dança Capoeira,
oi sinhá/ é de matar…’
Como as primeiras manifestações musicais não deixaram
vestígios seguros, é impossível precisar como e quando
surgiu a música. A maior parte dos estudiosos sequer se arrisca a fazer
especulações; outros abordam hipóteses com base no que
se sabe sobre a vida humana pré-histórica e preenchem as lacunas
óbvias com forte dose de imaginação. Entretanto, nenhuma
teoria afirma com certeza o momento em que os primitivos começaram
a fazer arte por meio de sons.
Ao que tudo indica, o homem das cavernas conferia à sua música
um sentido religioso, considerando-a um presente dos deuses e atribuindo-lhe
funções mágicas. Associada à dança, a música
assumia um caráter ritual, por meio do qual era possível reverenciar
o Desconhecido, agradecendo-lhe a fertilidade da terra, a abundância
da caça. Com o ritmo saído de movimentos elementares – batendo
as mãos e os pés – talvez eles buscassem também celebrar
fatos da sua realidade: vitórias nas guerras, descobertas surpreendentes.
Com o passar do tempo, além do uso das batidas de mãos e pés,
suas danças passaram a ser ritmadas com pancadas na madeira, a princípio
de forma simples e depois mais trabalhadas, para soarem de modo diferente.
Pode ter surgido daí o instrumento de percussão.
Não é difícil imaginar o quanto os barulhos da natureza
deviam fascinar o homem daqueles tempos, inspirando-lhe a vontade de imitar
o ruído das águas, o sopro do vento, os sons dos demais animais.
Como para isso o ritmo não era suficiente e o artesanato ainda não
possibilitava a invenção de instrumentos melódicos, estranhos
sons emitidos pela garganta devem ter constituído as formas rudimentares
de canto. Isto junto com o ritmo resultou numa mistura de palmas, gritos e
batidas. Era tudo ao alcance do homem primitivo. E certamente terá
sido um estilo que resistiu por muito tempo.
Segundo os conceitos atuais de música, essas tentativas de expressão
foram demasiado pobres para se enquadrarem na categoria de arte musical. Do
ponto de vista histórico, entretanto, tiveram uma importância
enorme, pois a rítmica elementar então desenvolvida acompanhou
o homem em sua caminhada, se espalhando sobre a terra, preponderantes na elaboração
de culturas e civilizações. E continuou evoluindo com ele, acumulando
todas as transformações vividas pela humanidade até os
dias atuais, sendo que muitas de suas antigas descobertas permanecem em pleno
uso, com pequenas modificações
NA RODA DO BERIMBAU
A roda se enche de sons. É uma festa de ritmos e cantos bravios,
onde a sensibilidade se manifesta livremente. E acontece a dança e
o canto em meio à luta.
Na Capoeira a musicalidade é fundamental. Raiz e corpo da arte, a
melodia flui de toda parte. Berimbaus, atabaques, ganzás, agogôs,
pandeiros, tudo é som e movimento.
As cantigas estão presentes no jogo desde quando se forma o círculo.
E o primeiro canto – geralmente conduzido pelo capoeira mais antigo presente
à roda – pode ser um improviso.
Se o berimbau toca Angola, o canto inicial é um solo denominado ladainha.
Neste momento, enquanto é ouvida a cantiga, não há jogo.
A atenção de todos está no conteúdo da música.
Pode estar sendo transmitida uma mensagem onde o capoeira dá expressão
à sua vivência na roda ou às experiências adquiridas
ao longo da vida. Pode ser ainda que a ladainha rememore fatos passados, trazidos
à lembrança como aviso aos jovens, enquanto perpetua um pouco
da história do jogo e dos capoeiras.
A música é um dos instrumentos de preservação
da memória, transmitindo as tradições de diferentes épocas
do passado da Capoeira. O canto às vezes exprime tristeza pela ausência
de um camarada que já morreu, encerrando ainda uma advertência
ou observação, um exemplo prático, uma lição
para a vida. Ao encerrar a ladainha é iniciado pelo solista um refrão,
sinal para a entrada do coro formado pelos capoeiras.
À medida em que o jogo tenha seu desenvolvimento, as cantigas irão
acompanhar e descrever – numa linguagem peculiar – as situações
que acontecem na roda, quando não ocorre do canto determinar, de forma
sutil, o desenvolvimento das ações.
A poesia pode significar uma provocação a alguém ou
uma brincadeira com qualquer dos capoeiras; pode traduzir uma advertência
à forma muita das vezes perigosa em que transcorre o jogo; pode ser
ainda a reverência a um orixá. De qualquer forma, as cantigas
trazem uma característica comum – a linguagem figurada e de compreensão
restrita aos jogadores.
A sonoridade vibrante dos berimbaus é magnética. Agora tocam
a Iúna. Dizem os antigos que neste toque ressoa o canto da ave Inhuma
(ou Anhuma) e conta a lenda que ela é portadora de uma força
mágica. Encantada, dos seus pios de desprende a magia dos deuses…
Ouçamos o toque. Num dado momento se destacam os sons agudos de um
berimbau para no instante seguinte serem suplantados por outro, que vibra
com profunda gravidade. É o diálogo das Iúnas. Como se
dois seres mitológicos, tomados de profunda paixão, tornassem
audível seu canto de amor. Que às vezes ecoa aparentando entendimento,
para subitamente transfigurar-se no embate inarmônico de apaixonado
desencontro.
Ao final prevalece a compreensão entre berimbaus gunga e viola –
de timbres grave e agudo, respectivamente – mas fica a nítida impressão
que de repente começará tudo mais um vez.
O atabaque traz evocações que transportam ao mundo da magia.
O ritmo misterioso descobre – à visão da mente – um cenário
de realismo fantástico. A força dos sons invade o capoeira,
arrastando o pensamento, que se perde num turbilhão de emoções
e pode levar à trilha do sobrenatural: empolgação e fascínio
se traduzem em agilidade e força. E se descortina a África viva
em cada um de nós. Misteriosa, como a exaltação que brota
bem de dentro, aos jorros, atinge a superfície da pele e transborda,
em gestos de força e beleza. Até que sobrevenha a calma e sossego,
como numa estranha dança.
Os tons do agogô se destacam num claro contraponto entre a marcação
discreta e a dissonância que fere os sentidos, despertando-os. Essa
é sua função, e à medida em que esses sons se
fazem ouvir, se perde a noção do tempo e espaço, na excitação
que atordoa: tudo se torna encanto.
Ao fundo o ganzá impõe o balanço do som capaz de prender
– no seu movimento compassado – o fluxo da vontade, arrastando-a e somente
liberando o capoeira após conquistada sua alma. Só aí
ele retorna, entre surpreso e extasiado, ao confronto com a realidade. Talvez
uma serpente mítica tenha sacudido os guizos, em meio ao torvelinho
dos sentidos livres, e tenha capturado sua presa, tornando-a semelhante, dando-lhe
suas características de contida agressividade e determinação.
O troar constante do reco-reco pode impelir o ouvinte a quedar-se surpreso.
A atenção é desviada para o soar imprevisível,
que causa a sensação de uma chibata imaginária, provocando
estalos que ressoam dentro do capoeira, os açoites despertando arrepios
de coragem e repercutindo na luta.
Noutro momento o berimbau toca Angola. Está prestes a acontecer o
jogo de maior importância, que define o espírito da Capoeira.
A voz do mestre se levanta, com um acento de tristeza e lamento, entoando
um canto de forte sabor nostálgico. O berimbau gunga acompanha gravemente
as modulações da voz, repicando de forma compassada e realçando
cada verso da cantiga. E talvez resida nisto a grande musicalidade das ladainhas,
todas de extrema simplicidade.
Enquanto o gunga se ajusta à voz que puxa a cantoria, formando um
dueto, o berimbau viola acrescenta ao conjunto o timbre agudo, despontando
em improvisos que se sucedem numa riqueza de variações impressionante.
Cada instrumento acrescenta à música colorido especial, dando
vida à Capoeira. Africanos pela origem, nascidos do sangue e natureza
do negro, construíram a brasilidade. Graças a eles, cantores
nativistas são capazes de encontrar elementos para a composição
de uma expressão musical brasileira, representativa dos sentimentos
comuns à nossa gente. O som vai prosseguir por horas a fio, fazendo
a delícia dos jogadores entregues à arte, embevecendo os que
assistem à roda e ensinando um caminho para a redescoberta de outras
formas de comunicação.
AS ORIGENS DO BERIMBAU Talvez desde a pré-história o arco musical
se constitui numa das formas de instrumento encontradas pelo homem, na busca
da expressão sonora que lhe permitisse exteriorizar o íntimo.
E o acompanhou no decorrer da sua evolução, presente em diversas
culturas até os dias atuais.
Acreditam alguns pesquisadores que o arco musical resultaria do desenvolvimento
do arco de caça – cuja invenção pode ter ocorrido em
algum momento entre cerca de 20.000 a 15.000 anos passados, no norte da África.
Outros já supuseram exatamente o contrário: o arco de caça
é que teria se originado do arco musical… E para aumentar o elenco
de possibilidades, existem opiniões que discordam das anteriores: o
arco musical e o arco de caça tiveram origem e desenvolvimento completamente
independentes um do outro…
Dentre a diversidade de teorias a respeito do arco musical predomina certa
concordância, ao ser fixado o período por volta de 15.000 a.C.
como época em que possivelmente ocorreria o seu uso pelo homem primitivo.
Pinturas localizadas em uma caverna (Les Trois Fréres) na região
sudeste da França, feitas nesse período da pré-história,
retratam um homem que se veste com peles de bisão, trazendo seguro
um objeto que se parece com o arco, mantido próximo do rosto. O pesquisador
Abbé Breuil identificou o desenho como de um homem tocando um arco
musical.
De todo modo, relatos mais recentes de exploradores e viajantes, particularmente
do século XIX, trazem outras evidências do arco musical na África
Central, do Sul, Patagônia, Novo México, Brasil…
Existem formas diversas de classificação do arco musical.
Assim, tanto pode ser incluído na categoria de cítaras, quanto
algumas formas se encaixam com maior facilidade na classe das harpas. Mais
uma vez, qualquer que seja a opinião seguida, o arco musical se fez
presente nas antigas culturas egípcia, assíria, caldéia,
fenícia, persa, indú. Na África, muitas espécies
de arco musical podem ser encontradas entre tribos de Uganda, pigmeus do Congo,
em Angola e noutras regiões.
Como não foram efetuadas pesquisas em profundidade no Brasil e continente
africano antes do final do século passado, não existem informações
documentais quanto à presença e uso do arco musical, na forma
por nós conhecida como berimbau, antes dessa época. Com certeza
existiam – já que são utilizados tradicionalmente – há
muito tempo no continente africano. O que não podemos é precisar
desde quando.
Informações importantes foram prestadas por inúmeros
exploradores, viajantes e pesquisadores do período final do século
passado e alguns mais recentes, que apesar de fazerem narrativas um tanto
superficiais e sem detalhes, nos permitem estabelecer a presença do
nosso berimbau na África, originando sua presença também
no Brasil, pois além das formas idênticas, são iguais
em construção e tocados do mesmo modo. Resumindo, registram
o mesmo instrumento, seja qual for a denominação dada em cada
lugar.
O mais antigo desenho desse instrumento é dos exploradores Capelo
e Ivens, que fizeram o desenho de um arco musical em tudo semelhante ao berimbau
em ‘De Benguela às terras de Iaca’, Lisboa, 1881. O texto, porém,
não traz nenhum comentário a respeito do instrumento.
Ladislau Batalha, no livro Angola, editado no ano de 1889, em Lisboa fez
a seguinte descrição do berimbau: “O humbo é o
tipo dos instrumentos de corda. Consta geralmente de metade de uma cabaça,
oca e bem seca. Furam-na no centro, em dois pontos próximos. À
parte, fazem um arco como de flecha, com a competente corda.
Amarram a extremidade do arco, com uma cordinha do mato, à cabaça,
por via dos dois orifícios; então, encostando o instrumento
à pele do peito que serve neste caso de caixa sonora, fazem vibrar
a corda do arco, por meio de uma palhinha.” A descrição
não deixa dúvidas. Em que pese a ausência de detalhes
mais específicos, o humbo é realmente nosso velho e conhecido
berimbau.
O mesmo Ladislau Batalha torna a referir-se a ele em Costumes Angolenses,
de 1890, também publicado em Lisboa: “Um negralhão toca
no seu humbo, espécie de guitarra de uma só corda a que o corpo
nu do artista serve de caixa sonora.” No mesmo ano de 1890, ainda em
Lisboa, Henrique Augusto Dias de Carvalho, em sua Etnografia e História
Tradicional dos Povos da Lunda, desenhou o mesmo instrumento, sozinho e com
outros, incluindo a denominação rucumbo e a descrição
seguinte: “O rucumbo, constituído de uma corda distendida em
arco de madeira flexível, que tem numa das extremidades uma pequena
cabaça a servir de caixa de ressonância; o arco fica entalado
entre o corpo e o braço esquerdo, indo a mão correspondente
segurar nele a certa altura, e os sons são obtidos com a mão
direita, por intermédio de uma pequena varinha que tange a corda em
diferentes alturas.” O major Dias de Carvalho afirma ainda que “os
lundas chamam-lhe violôm. Tocam-no quando passeiam e também quando
estão deitados nas cubatas”. Diz ainda que o instrumento era
“muito cômodo e portátil”.
Do Álbum Etnográfico de José Redinha, Luanda, s.d.,
consta um desenho de instrumento com a descrição a seguir: “Um
monocórdio, lucungo, com caixa de ressonância, constituída
por um copo de cabaça.” Outra informação da existência
africana do berimbau decorre de Albano de Neves e Souza, consultado por Luis
da Câmara Cascudo, e que afirmou: “(…) um instrumento aí
chamado de Berimbau e que nós chamamos hungu ou m’bolumbumba,
conforme os lugares e que é tipicamente pastoril, instrumento esse
que segue os povos pastoris até a Swazilândia, na costa oriental
da África.”
No Brasil, um dos primeiros a fazer o registro da presença do berimbau
foi Henry Koster, que descreveu o instrumento da seguinte forma: “(…)
um grande arco com uma corda tendo uma meia quenga de coco no meio, ou uma
pequena cabaça amarrada. Colocam-na contra o abdome e tocam a corda
com o dedo ou com um pedacinho de pau.” Jean Baptiste Debret, em Viagem
Pitoresca e Histórica ao Brasil, deixou-nos o desenho de um tocador
de berimbau e uma descrição do instrumento, ao qual denomina
urucungo: “E finalmente o urucungo, aqui representado. Este instrumento
se compõe da metade de uma cabaça aderente a um arco formado
por uma varinha curva com um fio de latão, sobre o qual se bate ligeiramente.
Pode-se ao mesmo tempo estudar o instinto musical do tocador que apoia a mão
sobre a frente descoberta da cabaça, a fim de obter pela vibração
um som mais grave e harmonioso. Este efeito, quando feliz, só pode
ser comparado ao som de uma corda e tímpano, pois é obtido batendo-se
ligeiramente sobre a corda com uma pequena vareta que se segura entre o indicador
e o dedo médio da mão direita.” Outra descrição
acompanha a gravura que reproduz um instrumento em tudo idêntico ao
berimbau, colocado à mão de um vendedor e que nos foi deixada
por Johhan Emmanuel Pohl, em Viagem no Interior do Brasil, de 1832, onde afirma:
“Os negros gostam muito de música. Consta da gritaria monótona
de um entoador, como estribilho e seguido por todo o coro de maneira igualmente
monótona, ou, quando instrumental, do sonido de uma corda retesada
num pequeno arco, num simples instrumento que descansa sobre uma cabaça
esvaziada que dá, no máximo, três tons…” Estas
são as descrições e referências mais antigas ao
berimbau conhecidas até o momento. Apesar de ligeiras discordâncias
quanto à denominação e detalhes menores, de há
muito o berimbau se faz presente ao lado do negro, garantindo-lhe a presença
da música no momento desejado.
A CONSTRUÇÃO DO BERIMBAU
O primeiro passo para o fabrico do berimbau é a obtenção
de uma madeira flexível e resistente, que suporte arqueamento e pressão
sem ceder demasiado. Escolhe-se uma vara sem muitos nós ou grandes
curvas, que bem pode ser “biriba” (a preferida pela maioria dos
capoeiras ) ou guatambú (mais facilmente encontrada). O guatambú
se apresenta como a madeira indicada – ao lado da taipoca e outras espécies
nativas – na construção do berimbau, por se tornarem suas varas
muito leves, após secas, sendo comuns longas hastes muito regulares,
apresentando grossura mais ou menos uniforme de uma extremidade a outra. Tirada
a vara, que não seja demasiado grossa ou muito fina. O tamanho ideal
é de aproximadamente 1.20 m.
Quando a madeira ainda está verde, caso não seja perfeitamente
reta, basta passá-la sobre o calor do fogo, ainda com casca, para que
sejam corrigidas eventuais curvas, dando-lhe a forma reta necessária.
A casca do guatambú sai com facilidade, passando uma faca de lâmina
afiada de ponta a ponta da vara, removendo longas tiras.
Passamos, a seguir, à confecção propriamente dita do
berimbau. Esculpe-se uma pequena ponta na extremidade mais grossa da vara,
que irá servir como conexão para se ajustar o arame do berimbau.
A outra ponta deve ser bem acertada, pois irá receber um pequeno pedaço
de sola de couro, que impedirá o arame de rachar a madeira.
O arame – que cumprirá o papel de corda do instrumento – é
um fio de aço com um comprimento maior que a vara cerca de 20 cm e
recebe em sua extremidade um laço de diâmetro adequado para se
encaixar na ponta esculpida na madeira – que será o pé do instrumento
– enquanto que no outro extremo recebe uma laçada menor, onde será
amarrado o cordão que irá prendê-lo à madeira.
Após esta primeira fase, o berimbau é vergado – ou “armado”
para o ajuste da corda, formando o arco – com o emprego de um pé flexionando
a madeira, enquanto uma das mãos apoia a extremidade superior da vara
e a outra amarra o arame. Pronto o berimbau, já se tornou comum acrescentar-lhe
discreta pintura, manchas de fogo e verniz, com a finalidade de embelezá-lo.
Esta pintura às vezes possui um significado especial para o tocador,
quando é este que confecciona o instrumento.
O próximo passo é a elaboração da caixa de ressonância,
indispensável ao arco do berimbau. Para isto, utiliza-se uma cabaça
que serve à perfeição ao nosso propósito. De preferência,
que a cabaça se encontre já bem seca e não tenha sido
colhida madura. Que a casca não seja demasiado grossa ou muito fina.
O tamanho ideal terá um circunferência de aproximadamente 18
cm – quando se pretenda fazer um berimbau gunga, de timbre grave; caso se
pretenda um berimbau viola, de timbre agudo, o tamanho deverá ser menor,
com cerca de 11 cm.
Escolhida a cabaça, primeiramente façamos uma abertura tal
que seja possível a saída de um som claro. Esta abertura será
proporcional ao diâmetro máximo alcançado pela cabaça
e feita na extremidade oposta à que se prende a haste, quando ainda
no pé. Concluída a abertura – feita com uma serra fina – se
a cabaça for demasiado grossa é conveniente que coloquemos água
em seu interior e deixar por 48h, para depois raspá-lo até que
a casca se torne da espessura desejada. Isso para que a ressonância
obtida seja de boa qualidade. Depois, com o emprego de uma lixa, daremos à
abertura da cabaça o acabamento necessário.
Terminado este preparo, a cabaça receberá no seu fundo dois
furos paralelos em uma distância de aproximadamente 3 cm um do outro,
por onde irá passar o cordão que a manterá fixa ao arco.
O tamanho deste cordão irá depender do grau de curvatura obtido
pelo arco, para que a cabaça fique presa de forma tal que aperte o
arame e proporcione ao tocador a necessária firmeza para segurar o
instrumento, apoiando-o sobre o dedo mínimo através deste cordão.
Servirá ainda para afinar o instrumento, conforme a pressão
exercida sobre a corda.
Na escolha da vareta a ser utilizada na percussão do arame são
preferidas pequenas varas tiradas de pedaços de bambu, da grossura
aproximada de um lápis e comprimento de mais ou menos 30 cm. Outra
espécie de vareta muito apreciada é de bambu fino, do tipo das
varas de pesca, obedecendo às dimensões citadas. A vareta será
usada segura entre os dedos indicador e polegar, apoiada sobre o dedo médio
de uma mão, enquanto a outra sustenta o instrumento e prende o dobrão.
A percussão da corda se dá numa altura pouco superior ao ponto
onde o dobrão pressiona o arame. As batidas devem ser firmes.
O dobrão – denominação popular das antigas moedas de
40 réis – é empregado com a finalidade de pressionar o arame
quando se pretende obter uma nota aguda, já que o berimbau emite dois
tons básicos (grave e agudo) e outros efeitos. É por seu intermédio
que o tocador estica ainda mais a corda do instrumento, provocando em conseqüência
a modificação do tom grave para o agudo ou um chiado característico.
Muitos capoeiras preferem o uso de pedras lisas e resistentes no lugar das
moedas de cobre, por considerarem o som obtido mais agradável, além
da escolha das pedras possibilitar o emprego daquela de formato mais conveniente
para o manuseio do tocador.
O CAXIXI
Na execução do berimbau, um outro instrumento constitui acessório
indispensável: o caxixi, que é usado como chocalho.
Caxixi é o nome que se dá ao pequeno cesto de alças,
feito com tiras de junco trançadas, contendo em seu interior contas
de lágrimas, pequenas conchas marinhas ou búzios. O seu fundo
é feito de pedaços de cabaça.
Além do seu emprego como complemento ao berimbau, Edison Carneiro
nos informa em Candomblés da Bahia acerca de outros usos do caxixi.
“Caxixi, s.m. Saquinho de palha trançada que contém
sementes de bananeira-do-mato, usado pelos pais dos candomblés de Angola
para acompanhar certos cânticos, especialmente a ingorôssi. (…)
Ingorôssi, s.m. Reza da nação Angola. O tata, agitando
um caxixi, fica no meio das filhas, que sentadas em esteiras, batem com a
mão espalmada sobre a boca, respondendo ao solo. (…) O chefe do candomblé
acrescenta à orquestra, quando Nagô ou Jeje, o som do adjá,
uma ou duas campânulas compridas que, sacudidas ao movimento da filha,
ajudam a manifestação do orixá, e quando Angola ou Congo,
o som do caxixi, um saquinho de palha trançada cheio de sementes. (…)
Os candomblés de Angola e do Congo saúdam conjuntamente os inkices
com um cantochão lúgubre, o ingorôssi, que se compõe
de mais de trinta cantigas diferentes. As muzenzas se sentam em esteiras,
em volta do tata, que, com um caxixi na mão, faz o solo, respondido
por um coro de gritos entrecortados por pequenas pancadas na boca.”
No acompanhamento do berimbau o caxixi é usado prendendo-se a sua alça
entre os dedos anular e médio da mão que segura a vareta. Tem
destaque especial na marcação rítmica dos toques.
A RODA DE CAPOEIRA
“Chibata na mão/Capoeira no pé/pega esse negro que é
de Nazaré..”
As cantigas estão presentes no jogo desde o momento em que se forma
a roda. O canto inicial – em geral conduzido pelo mestre, ou capoeira mais
antigo – pode constituir-se na apresentação da roda, do lugar
onde é feito o jogo.
Quando um capoeira visita uma roda formada por grupo que não freqüente
habitualmente, o canto de abertura pode ser seu, o que demonstrará
deferência e homenagem ao visitante.
O toque do berimbau agrupa os capoeiras em círculo. A princípio,
somente se ouve o som do gunga; em seguida entram no ritmo os demais berimbaus.
O viola e o violinha, com seu timbre ainda mais agudo. Agora é a vez
do atabaque, com sua marcação forte, pesada. Um a um se apresentam
para a roda o agogô, reco-reco, pandeiro, ganzá.
Os capoeiras acompanham com palmas o som dos instrumentos. Todos permanecem
de pé. O toque inicial é Angola, e o canto – um solo: a ladainha
– pode ser costumeiro àquela roda ou improvisado, como esta cantiga
de autoria do mestre Canjiquinha: .
‘Meu Deus o que eu faço/para viver nesse mundo/se ando limpo, sou
malandro/se ando sujo, sou imundo/oh que mundo véio grande/oh que mundo
enganadô/se eu não brigo, sou covarde/se mato sou assassino/se
eu não falo, sou calado/se falo, sou faladô/eu digo dessa maneira/meu
mestre que me ensinô…’ Durante a ladainha não há jogo.
Os capoeiras ouvem atentamente o canto. Neste momento o mestre-capoeira transmite
uma mensagem à roda ou a determinado capoeira. É na cantiga
que o capoeira expressa sua vivência no jogo.
‘Quando eu tinha dinheiro/levei a vida a vadiar/ comi na mesa de ioiô/deitei
na cama de iaiá/ o dinheiro acabou/me mandaram trabalhar…
Às vezes a ladainha traz à lembrança fatos passados,
relembrados como aviso aos jovens, e assim o capoeira guarda até hoje
a história do jogo e dos jogadores, instrumento de preservação
da memória e transmissão das tradições de cada
época e da sua arte.
‘Tava lá em casa/sem pensar, nem ‘maginar/quando ouvi
bater na porta/mandaram me chamar/para ajudar a vencer/a guerra do Paraguai/eu
que nunca fui de luta/nem pretendia lutar/botei a arma na mão/era tempo
de brigar/era hora de lutar…’ Pode acontecer ainda de estar mesclada à
alegria da brincadeira a tristeza pela ausência do capoeira que já
morreu e o canto busca exprimir estes sentimentos.
‘Adeus Bahia, zum, zum, zum/Cordão de Ouro eu vou partir/porque mataram
o meu Besouro…’ Os que ouvem procuram estar atentos ao conteúdo do
canto, que pode conter uma advertência ou observação,
um exemplo prático, uma lição para a vida.
‘Mataram o capoeira/dentro da delegacia delegado me chamou/p’ra prestar
depoimento daquilo que eu não sabia…’ Ao terminar a ladainha o mestre
inicia um refrão, que é o sinal para a entrada do coro, acompanhando
o canto.
‘Iê, viva meu Deus/viva meu mestre/galo cantou/é hora, é
hora/da volta ao mundo/que o mundo deu/que o mundo dá/camará’
Antes de iniciar o jogo, entrando na roda, os capoeiras executam um movimento
de reverência, de saudação à Capoeira, ao berimbau,
à roda, de respeito aos camaradas presentes. É uma demonstração
de obediência ao jogo e às suas regras.
Os capoeiras firmam o corpo sobre as mãos apoiadas ao solo, braços
flexionados – um sob o corpo, o outro em posição paralela. A
perna que corresponde ao braço utilizado em apoio permanece acima do
solo, flexionada; a outra se coloca em posição ainda mais alta,
estirada.
Deste modo, em uma demonstração de habilidade, domínio
do corpo e equilíbrio, os capoeiras anunciam sua disposição
dentro da roda: a brincadeira, a disputa baseada no respeito aos fundamentos
da arte.
Feita a saudação, os capoeiras se cumprimentam e entram na
roda. À medida em que o jogo se desenvolve, o canto acompanha as situações
que acontecem na roda, quando não as provoca, como ocorre quando um
jogador procura demonstrar sua superioridade ao outro.
‘Pega esse negro/derruba no chão esse negro é valente/esse
negro é o cão..’.
Quando há intenção de provocar alguém, da assistência
ou dentro da roda, o capoeira que conduz o canto pode entoar: E é tu
que é moleque/moleque é tu/mas é tu que é moleque/moleque
é tu/moleque te pego/te jogo no chão/castiga o moleque/conforme
a razão…
O canto pode servir para brincar com uma mulher que entra na roda: Se essa
mulher fosse minha/eu ensinava a viver dava mamão com farinha/de noite
e de dia p’ra ela aprender…
A brincadeira do canto pode envolver uma advertência velada aos jogadores,
se um deles é atingido ou provocado de forma perigosa. Noutras vezes
a cantiga também narra acontecimentos ocorridos dentro do jogo, de
significação própria: Siri botou/gameleira no chão
botou, botou/gameleira no chão…
Pode ser que a música sirva de consolo a um capoeira que não
se dê bem no jogo, em linguagem peculiar: A canoa virou/marinheiro no
fundo do mar/tem dinheiro…
É comum ainda o canto em que há referência a determinado
orixá, da devoção do jogador; outros mencionam o nome
de um capoeira, em sua homenagem.
As letras trazem uma característica comum: a linguagem, em geral,
é figurada, sendo sua compreensão restrita aos capoeiras. Com
isto, para os que ignoram sua função, são apenas cantigas…
Os capoeiras prosseguem no jogo, nos seus gestos de enorme beleza. Sem se
tocarem, na comunicação dos movimentos imprevistos e súbitos.
O bom capoeira jamais explicita seus golpes. Age sorrateiramente e só
atacando quando o adversário está vulnerável. Parece
milagre que as pernas percorram o mesmo espaço sem se chocarem. Ninguém
é ferido, não há agressão. A luta existe no esforço
de suplantar o adversário pela habilidade na execução
do jogo.
A roda pode durar horas, prendendo os espectadores na agilidade e alegria
dos cantos e movimentos, na sucessão de cenas emocionantes, onde um
minuto de desatenção pode levar um dos capoeiras ao solo. Mas
não se deixem enganar…a dança pode ser um jogo camuflando
a luta e a brincadeira pode ter um final inesperado: São Salvador,
Bahia/A tarde morria devagar E berimbau se ouvia/ Gente na rua a passar Alguém
no desejo da briga/Fazia cantiga de provocar São Salvador, Bahia/ Um
homem passando escutou/ Isso é comigo! e falou:/Se quer jogar vamos
lá/ Eu ia pra lá mas não vou/E dizendo se ajoelhou/ Dois
homens fizeram oração/Começaram jogando no chão/
Jogaram Angola, Santa Maria/ São Bento Pequeno/ Cavalaria/ E o povo
assistia/ tremendo/Capoeira pra matar/ Faca de ponta/ Rabo de arraia Na dança
da morte do lugar/ São Salvador, Bahia Quando a polícia chegou/
Um corpo no chão havia Em volta o silêncio dizendo/ Seu moço,
essa briga acabou/ São Salvador, Bahia/ Bahia de São Salvador”
O JOGO DA CAPOEIRA
“Capoeira é luta de bailarinos. É dança de gladiadores.
É duelo de camaradas. É jogo, é bailado, é disputa
– simbiose perfeita de força e ritmo, poesia e agilidade. Única
em que os movimentos são comandados pela música e pelo canto.
A submissão da força ao ritmo. Da violência à melodia.
A sublimação dos antagonismos.
Na Capoeira, os contendores não são adversários, são
‘camaradas’. Não lutam, fingem lutar. Procuram – genialmente
– dar a visão artística de um combate. Acima do espírito
de competição, há neles um sentido de beleza. O capoeira
é um artista e um atleta, um jogador e um poeta.” Dias Gomes
Para compreender esse jogo é preciso primeiramente entender o propósito
dos capoeiras ao entrarem na roda. A leitura gestual do jogo de Capoeira desvenda-o
como um modo particular de fazer política: as estratégias baseada
sobretudo no enfrentamento indireto.
A luta-dança-jogo expressa o modo como os negros inverteram, a seu
favor, a força visível e explícita dos poderosos, fugindo
do enfrentamento direto a partir de regras que não foram definidas
por eles.
A aparente oposição entre a rebeldia passiva e a rebeldia
ativa determina a dubiedade do jogo de Capoeira: os seus movimentos corporais
indicam uma negociação, mais do que rebelião. Durante
o confronto os corpos negociam e a ginga significa a possibilidade da barganha,
atuando no sentido de moderar o conflito. Ao menor sinal de distração
do oponente, quando “as chances de falhar são mínimas”
(como ensinava mestre Pastinha), explode o contra-ataque, como um relâmpago,
deflagrando-se então o conflito.
Esse é um jogo de considerável complexidade – apesar da aparência
simples -, onde há objetividade em todos os gestos e uma filosofia
intrínseca determinando o sentido da movimentação. A
disputa às vezes transcorre de forma tão sutil que muitos não
se apercebem da sua existência, ou não conseguem entendê-la.
O capoeira pretende suplantar o oponente: só que é dada ênfase
especial à malícia na movimentação; a inteligência
é privilegiada na execução dos golpes, em detrimento
da aplicação de movimentos de força e potência.
Predomina particularmente a astúcia nos contra-ataques irresistíveis.
Não há o objetivo de superar o adversário na base do
vale-tudo. Os gestos são naturalmente estudados, permitindo a observação
detida de um camarada pelo outro. Se um movimento é executado de forma
irrefletida, seu autor não perde por esperar… De pronto está
criada a oportunidade de uma sucessão de ataques e contra-ataques.
Cada gesto é executado com muita atenção em todos os
detalhes. A hora exata de empregá-lo é aquela que diminua as
possibilidades de deixar uma brecha para a defesa. É imprescindível
estar atento às reações do oponente, procurar iludi-lo,
chamá-lo para a armadilha. Tudo de forma calculada, treinada, assimilada
durante horas de exercício e prática.
Este é o princípio fundamental do jogo de Capoeira: nada de
explosões de violência. Não se trata de uma briga, mas
de um entretenimento. Deve prevalecer a aceitação das regras.
Malícia, manha, astúcia, esperteza, são sinônimos
do jogo. Não se pretende a demonstração ou exibição
de nada que não seja a competência na disputa.
A movimentação do jogo acontece basicamente no chão.
Isto não quer dizer que não podem ser executados movimentos
altos; significa que o capoeira busca explorar as facilidades de locomoção
pelo solo, fazendo uso de todos os recursos colocados ao seu dispor graças
aos treinos, destinados a habilitar o praticante a gestos aparentemente inofensivos.
Se um capoeira interrompe um movimento já iniciado, por encontrar-se
o adversário demasiado longe, é bem provável que o outro
capoeira reaja de forma insólita: se aproximando do oponente aos saltos,
como se fosse um símio, para desferir potente cabeçada. Pode
ser ainda que o seu parceiro escapula do ataque correndo pelo solo, como se
fosse um gato.
No jogo da Capoeira se desconfia de imediato do capoeira que afivela um
sorriso fixo ao rosto, como se tudo não passasse de uma grande piada.
Essa pode ser a forma encontrada para criar-se um clima descontraído,
onde as defesas ficarão abertas, permitindo o ataque desconcertante.
Em razão do espírito bem-humorado e descontraído do
jogo de gestos soltos e naturais, tanto faz se o capoeira é um garotão
bem nutrido, cheio de músculos e espelhando vigor, ou se é um
velho mestre. O que importa é a vivência, a experiência,
a sabedoria, a prática: vale mais o conhecimento dos fundamentos da
Capoeira.
As oportunidades de atingir o adversário não são procuradas
com a ferocidade típica do combate entre irracionais. O capoeira sabe
– simplesmente ao encostar o pé no adversário – que seus movimentos
podem ser fatais. Então, para que atirar o adversário à
distância, nocauteado, talvez inutilizado? A essência da Capoeira
é compreender o jogo como uma brincadeira entre amigos, que se respeitam
e vêem na luta uma diversão amistosa. Nesse brinquedo vale mais
um movimento desnorteante que um chute arrasador. É preciso malícia,
manha, para suplantar o oponente. Saber esperar sem perder o espírito
malandreado do jogo. Na hora certa surgirá a oportunidade; basta ter
calma. A própria circularidade do jogo e de seus movimentos assegura
ao capoeira que eventualmente se encontre em desvantagem, a oportunidade ideal
para recuperar terreno.
O capoeira busca o jogo no chão por saber que ali os recursos físicos
se igualam: a vantagem só poderá ser encontrada com muita da
habilidade. Cada gesto envolve grande margem de risco, em razão de
detalhes aparentemente insignificantes. Um movimento executado de forma que
deixe parte do tronco ou da cabeça desprotegidos é de imediato
aproveitado pelo contendor, que logo procura atacar a região desguarnecida.
No momento seguinte o capoeira que levou vantagem se afasta sorridente – e
quando ninguém estiver esperando, inicia o contra-ataque, tirando proveito
de cada brecha na defesa do adversário. As iniciativas de ataque e
defesa se sucedem, uma após a outra, exigindo total concentração
dos jogadores As oportunidades de superar o adversário não são
forçadas. O clima de brincadeira entre companheiros não é
quebrado por cenas de violência banal. A superioridade de um capoeira
em relação a outro – ou mesmo o equilíbrio entre ambos
– se manifesta tanto na oportunidade bem aproveitada para evidenciar esperteza,
quanto no modo educado de reconhecer o momento de vacilação.
A tradição do jogo não admite que o capoeira em desvantagem
busque a desforra ou o revide a qualquer custo. O capoeira sabe que se no
passado o aspecto de brinquedo e diversão do jogo representava sobretudo
uma estratégia política para ocultar o aspecto combativo, proeminente
na capoeira da sociedade escravista, até hoje essa natureza dúplice
(brincadeira e combate) está presente e contamina todos os elementos
do sistema cultural da Capoeira.
As táticas dos capoeiras no jogo se baseiam no disfarce e na camuflagem
dos verdadeiros objetivos. Exemplo disso é o berimbau: é um
instrumento musical mas ao mesmo tempo pode ser uma arma: e fala-se em “armar”
o berimbau para poder tocá-lo; montar o instrumento e afiná-lo,
esticando-se o arame, prendendo-o a uma das extremidades da madeira envergada
e depois ajustando a cabaça na outra extremidade – e em “desarmar”
o berimbau, ao final de uma roda No jogo da Capoeira há movimentos
corporais cujos nomes nos remetem ao terreno das brincadeiras de infância
(pião, balão) e há aqueles que supõem o combate
(armada, arpôo de cabeça, asfixiante); e existe a chamada de
Angola, que é um momento de ruptura na roda de capoeira, quando os
dois jogadores se movimentam emparelhados para a frente e para trás
até que um, subitamente, “desarma” a chamada, isto é,
aplica um golpe qualquer sobre o adversário, reiniciando assim o jogo.
A combinação das ações do jogo (tais como golpes
e floreios, avanços e recuos, ataques e esquivas) é dúbia
como as próprias cantigas de Capoeira, que falam do jogo que “todos
podem aprender, general até doutor”, ao mesmo tempo em que avisam
do perigo da brincadeira: “Capoeira é ligeira, ela é brasileira,
ela é de matar”.
Luta coletiva que incorpora séculos de resistência cultural,
expressando corporalmente a linguagem de um povo que tradicionalmente resistiu
à dominação, a Capoeira é fundamentalmente um
jogo de contrapoder. Atuando nos vazios do adversário, aproveitando-se
das lacunas provocadas pelos movimentos do próprio atacante, o importante
para o capoeira é saber aproveitar o espaço vazio deixado pelo
outro; só quando há oportunidade de êxito o capoeira parte
para o embate direto. Percebe-se, então, que o mesmo corpo que aparentemente
conformara-se, na ocasião oportuna insurge-se e ataca: inesperado,
surpreendente, invertendo as regras do jogo que garantem a dominação;
e aquele que já se acostumava ao aparente domínio da situação
poderá, num instante, ‘levar uma rasteira’ e tornar-se, ele próprio,
o dominado.
A surpresa é o elemento essencial nas estratégias de ação
e reação da Capoeira, subvertendo e invertendo as regras do
jogo da dominação: a principal intenção é
sempre a de desequilibrar o outro, o qual, por sua vez, deve evitar cair.
Afinal, cair é ficar em desvantagem: perder o domínio, o poder.
Todos os movimentos da luta da Capoeira se encaixam nesse mesmo propósito:
derrubar o outro. E para que isso ocorra, mais do que força física
o capoeira deve ter fundamentalmente mandinga, malícia. Essa regra
do jogo garante há séculos a unidade da Capoeira como prática
de camaradas. Mesmo que um deles acabe derrubado, no chão. Afinal…
‘Capoeira que é bom/ não cai E se um dia ele cai/ cai bem…’
Vinícius de Moraes & Baden Powell, Berimbau
A PREPARAÇÃO DO CAPOEIRA Quando se afirma ser a Capoeira luta,
dança, arte, mandinga, fica implícita a diversidade das técnicas
e processos existentes em sua aprendizagem. A mandinga, a astúcia e
a agilidade se sobrepõem à força física, posto
que o mais forte não é aquele fisicamente mais avantajado mas
o mais malicioso, o mais mandingueiro.
A metodologia utilizada com este objetivo exige o emprego de instrumental
adequado ao que se propõe: fazer um capoeira, para que este possa jogá-la,
corporificá-la. Estabelecido este propósito, cabe ao mestre
verificar individualmente a medida na qual o iniciante possui alguns requisitos
básicos: ritmo, flexibilidade articular, elasticidade e força
muscular, etc.
Esta observação ocorre quando o iniciante demonstra facilidade
– ou não – na execução dos movimentos voltados à
educação e condicionamento corporal.
O primeiro passo pode consistir em andar engatinhando, ou seja, o corpo
apoiado nas mãos, braços e pernas mantidos flexionados, deslocando
lentamente pelo solo.
Este treinamento possui finalidades essenciais para o jogador, sob os aspectos
do desenvolvimento físico e de retomar-se a intimidade homem-terra.
A locomoção executada desta forma exige força muscular
diretamente proporcional ao corpo, perfeita coordenação entre
os movimentos dos membros inferiores e superiores, mantidos sob intenso trabalho
aeróbico.
Outra posição indispensável na preparação
do capoeira é a denominada parada, ou parada de mãos, em que
o corpo fica imóvel na postura vertical, com a cabeça para baixo,
sustentado pelos braços estirados e as mãos abertas apoiadas
ao solo.
Tendo o praticante desenvolvido suficiente força e equilíbrio,
o exercício seguinte é andar com as mãos, usando a mesma
posição vertical da parada, agora com as pernas flexionadas
nos joelhos.
Os músculos do tronco e membros superiores, muito solicitados no
jogo, são trabalhados especificamente com a prática de flexões
dos braços, na postura descrita acima. Nestes exercícios o corpo
permanece na vertical, cabeça para baixo. As pernas se encontram dobradas
nos joelhos, a coluna vertebral com pequena arqueação, os pés
auxiliando o equilíbrio, deslizando sobre uma superfície vertical
(que pode ser uma parede), paralela ao corpo.
OS MOVIMENTOS
“Olha a armada/meia lua e cabeçada a rasteira e a queixada/
p’ra matar…”
A GINGA
A ginga é a movimentação corporal essencial da capoeira.
Passo de dança, passo de luta. Primeiro, para aprender-se o jogo. Cadência,
movimentação oscilante, meneio do corpo, que desconcerta e engana,
no jeito bamboleante, na dança de todo o corpo.
A sua característica principal é permitir a descontração,
a entrega aos ritmos da Capoeira. Funciona como armação para
outros movimentos, permitindo deslocações constantes.
Como se fora uma dança – nem por isto obrigada a ter propósitos
inofensivos – estabelece harmonia entre a Capoeira e a própria natureza
do jogador: versátil, dinâmica, criativa.
Permitindo que a um só tempo o corpo lute aparentando dançar,
a ginga camufla o potencial letal dos movimentos. É a ginga que predispõe
o jogador a um jogo situado entre a brincadeira e o combate. A ginga não
é unicamente uma base para o arremesso de golpes. E os movimentos da
Capoeira não são somente golpes.
Existe um princípio de movimentação em equilíbrio,
com as ações circulares típicas do jogo, que determina
uma forma de ginga para cada jogador, atendendo a suas características
e preferências. Afinal, não podemos esquecer as peculiaridades
do jogo.
As padronizações – ou estilizações – levam à
diminuição do espaço reservado à arte, aos improvisos
de cada jogador, empobrecendo e descaracterizando o jogo, invertendo suas
finalidades.
As tentativas de estabelecer-se um estilo único de ginga, geralmente
são o resultado das iniciativas de alguns professores, que buscam ajustá-la
às razões pelas quais praticam a Capoeira, sejam a promoção
de shows ou o ensino de pugilato. Isso contraria o fundamental: a arte se
presta à luta e pode ser vista como demonstração, mas
sua natureza vai muito além destas meras possibilidades.
Qualquer comparação que implique em limitação,
exclusão de componentes do seu conteúdo, provoca deturpações.
Principalmente se referentes a modalidades pugilísticas, por relacionarem
a Capoeira com manifestações inseridas em outro contexto cultural.
Não serão menos equivocadas comparações com
outras danças, entendidas conforme os conceitos geralmente adotados
para sua compreensão. Isso importaria em excluir a possibilidade do
emprego ofensivo-defensivo, existente desde o surgimento do jogo, de forma
implícita ou explícita.
É importante observar a ginga, notando o intenso magnetismo a desprender-se
do capoeira dançando com todo o corpo, balançando os braços,
sorridente frente ao adversário que por força quer atingi-lo.
Os braços se posicionam sempre de forma tal que fica garantida proteção
à cabeça, quando se faça necessário, para – na
ocasião apropriada – prepararem um ataque. As pernas alternam passos
que permitem a execução de outros movimentos. Na mobilidade
dos quadris se encontra uma das causas da agilidade com que os capoeiras se
esquivam ante ataques, sendo recurso auxiliar no arremesso de movimentos com
os pés, mãos ou cabeça.
Além de incluir uma sucessão de posições de
guarda do capoeira, a ginga possibilita o início e velocidade nos ataques
e defesas. Esta premissa estabelece, portanto, a necessidade do pleno conhecimento
da sua mecânica. À medida que o jogador se entrega ao ritmo de
forma descontraída, deve personalizá-la, ajustando-a sempre
conforme seu temperamento e intenções.
Ao gingar o capoeira se permite improvisos e inovações, considerando
o essencial: defender um lado do corpo enquanto o outro se prepara (ou executa)
um ataque. Deve ser considerada imprescindível a manutenção
do equilíbrio do corpo. Nestas condições, o emprego de
figurações e gestos destinados a desviar a atenção
do adversário, camuflando o propósito de ataques e defesas,
acontece de acordo com a criatividade de cada um. O desenvolvimento da maneira
própria de gingar depende de imaginação e prática
constante.
É importante o treinamento da ginga pelo capoeira defronte a um camarada,
executando apenas gestos destinados a desviar a atenção do adversário,
aplicando diversas formas de truques ao seu alcance, para enganar o oponente,
assim como a execução intensiva individual.
AÚ
Movimento de locomoção do capoeira na roda, permite aproximar-se
ou afastar-se do oponente, armando ataques e executando uma defesa.
NEGATIVA
Aqui o capoeira desce sobre uma perna, que flexionará sob o peso
do corpo, ao abaixar-se. Com isto, temos o corpo sobre uma perna, apoiado
no calcanhar, enquanto a ponta do pé (flexionada) firma a base no chão.
A outra perna é lançada à frente, esticada, o calcanhar
tocando o solo. O braço deste lado apoia a mão ao solo, garantindo
ao capoeira três pontos de apoio e uma posição que permite
locomoção rápida.
Geralmente os capoeiras aperfeiçoam a execução da negativa
treinando a troca de negativas, que consiste em alternar sucessivamente os
pontos de apoio do corpo, de um lado e de outro, em rápidos movimentos
RESISTÊNCIA É uma defesa onde o capoeira se abaixa sobre as pernas
flexionadas, colocando o peso do corpo sobre uma perna. O braço correspondente
a esta perna mantêm a mão apoiada no solo, enquanto o tronco
é ligeiramente curvado, a outra mão à frente da cabeça.
Ao treinar a resistência o capoeira se prepara para outros movimentos,
sendo comum conjugar sua execução com o aú.
MEIA-LUA DE FRENTE
Ao fazer este movimento o capoeira descreve uma meia-lua com uma perna estirada,
arremessada com o pé passando à altura do adversário
e completando um semicírculo, para então voltar com o pé
ao ponto inicial, retornando à ginga.
BÊNÇÃO
O capoeira ao aplicar a Bênção levanta a perna que se
encontra atrás na ginga, puxa-a em direção a si e – num
movimento rápido – empurra-a contra o peito do adversário, buscando
atingi-lo com o calcanhar.
ESQUIVA
Neste movimento o capoeira se desloca sem recuar o corpo, porém evitando
a trajetória de um gesto contrário, se abaixando lateralmente.
CABEÇADA
Em uma posição semelhante à da esquiva, o capoeira
projeta seu tronco para a frente, sobre uma perna flexionada servindo como
base, buscando atingir o adversário com a cabeça.
RASTEIRA Na execução da rasteira o capoeira cai sobre uma
das pernas, que se flexiona sob o peso do corpo.
Se a perna flexionada for a esquerda, tendo por pontos de apoio o pé
desta perna e as duas mãos sobre o solo, o capoeira traça um
semicírculo à sua frente, com a perna direita, o pé desta
perna passando rente ao solo, buscando varrer o adversário. O movimento
prossegue até que se complete o círculo, quando o capoeira se
levanta já defronte ao oponente.
MARTELO BAIXO
O capoeira desce ao solo, apoiando-se às mãos, executando
um giro sobre o pé da perna que se encontra à frente, arremessando
a perna de trás, até voltar à posição inicial.
CHAPÉU DE COURO
Na execução do chapéu de couro, o capoeira principia
uma rasteira e interrompe a certa altura, para voltar com a mesma perna em
direção contrária à inicial, desferindo um movimento
idêntico ao anterior.
QUEIXADA Aqui o capoeira se posiciona defronte ao adversário, dá
um passo lateral e em seguida, numa torção do tronco, arremessa
a perna da frente, desferindo um movimento semicircular à altura da
cabeça do adversário.
O golpe prossegue até a descida da perna até o solo.
ARMADA
O capoeira executa um giro de todo o corpo, aparentemente dando as costas
ao adversário, posicionando-se sobre a perna que se encontra à
frente, arremessando a outra perna, em um movimento que completa o giro do
corpo, tendo como objetivo a cabeça do oponente.
MEIA-LUA DE COMPASSO Neste movimento o capoeira se abaixa até o solo,
apoiando as duas mãos ao solo e desferindo um giro com a perna de trás,
arremessando-a à altura do tronco do adversário. O giro é
executado sobre a perna base, como se fosse um compasso. Durante todo o movimento
a cabeça se encontra entre os braços, os olhos atentos ao adversário.
No treinamento básico, é útil a execução
em seguida à resistência, exigindo um maior controle da meia-lua
e mantendo o corpo bem próximo ao solo durante toda a movimentação.
Ao treinar contra-ataques à meia-lua, um movimento pouco convencional,
porém de certa utilidade, é o de puxar a perna de apoio de quem
arremessa o golpe, com a mão, provocando a interrupção
e queda do capoeira.
CHAPA LATERAL Este movimento é executado de forma semelhante à
Bênção. A perna é puxada pelo capoeira (joelho
flexionado) e distendida em um gesto súbito, procurando atingir o oponente
com a parte inferior do pé.
CHAPA DE COSTAS
Neste movimento o capoeira se abaixa até o solo, numa posição
próxima à da meia lua de compasso, quando então desfere
um golpe idêntico à chapa lateral, agora contando com o apoio
das duas mãos ao solo e se aproveitando do fato de estar de costas
para o adversário.
CHAPA-PÉ RODADO Ao executar este chute o capoeira faz um giro de
todo o corpo sobre uma perna base que se encontra à frente, dando as
costas ao adversário. Neste momento, aproveitando o impulso do movimento
de rotação do corpo, desfere vigoroso chute na posição
da chapa lateral, em direção ao tronco do adversário.
TESOURA DE COSTAS Na tesoura o capoeira parte de um aú ou de posição
idêntica àquela inicial da meia-lua de compasso. Em um rápido
salto, deve buscar prender entre suas pernas as do adversário, mantendo
a frente do corpo para o solo, apoiando-se sobre as mãos.
Em seguida, encaixado o movimento, um dos braços é levantado
do solo para fazer um gesto no sentido de rotação do tronco,
servindo o outro como base para o corpo ser girado de lado, tesourando a base
de apoio do adversário e arremessando-o ao solo.
PONTE
Movimento usado como fuga de um ataque, onde o capoeira – saindo de uma
posição igual à da resistência – executa uma curvatura
do tronco e coluna, apoiando as mãos ao solo, para levantar-se com
o apoio dos braços.
COICE Como se percebe pelo nome, o coice é um movimento onde o capoeira
se apoia sobre os braços e desfere um potente chute duplo.
As pernas são encolhidas e depois arremessadas contra o adversário.
RABO DE ARRAIA No rabo de arraia o capoeira se aproxima do adversário
e se atira ao solo, apoiado às mãos, lançando um dos
pés em direção ao rosto do oponente, enquanto a outra
perna dá equilíbrio ao movimento.
VÔO DO MORCEGO
Na execução deste movimento o capoeira pula em direção
ao adversário, com as pernas e braços encolhidos. No ar, as
pernas são distendidas e os pés empurrados com força
contra o oponente. Ao cair no solo, o capoeira amortece a queda com as mãos.
PARAFUSO O capoeira executa um giro em tudo semelhante ao da armada. Quando
a perna começa a efetuar o semicírculo, o capoeira dá
um salto e desfere um pontapé lateral com a outra perna, girando no
ar, graças ao impulso obtido durante toda a movimentação.
MEIA-LUA SOLTA
Na execução do giro, o calcanhar da perna que descreve a meia-lua
procura passar à altura da cabeça do oponente.
Neste movimento o capoeira faz um giro de tronco, preparando-se para executar
a meia-lua solta. Em seguida arremessa o corpo num giro sobre uma perna flexionada,
no ar, como se fizesse uma meia-lua de compasso acima do chão.
VARIAÇÕES DO AÚ Em geral os movimentos da Capoeira
são executados pelo jogador de forma pessoal, cada um acrescentando
características que os tornem mais adequados a um momento particular
do jogo. O aú é um dos movimentos que já tem consagrado
o uso da maior quantidade de variantes. Temos assim o aú aberto, o
aú fechado, o aú com martelo, em que o capoeira na posição
do aú desfere um pontapé no adversário, o aú com
rolê, quando o capoeira conclui o movimento na posição
de negativa, aú compasso, executado sobre uma das mãos, procurando
cair com uma perna esticada atingindo o oponente com o calcanhar, aú
com queda de rins e aú camaleão.
A CAPOEIRA NO SÉCULO XX
Não é karatê e não é kung-fu maculelê,
maracatu…’
A Capoeira permaneceu na ilegalidade até os anos 30 e 40 deste século,
quando foram abertas em Salvador, Bahia, as primeiras “academias”
com licença oficial para o ensino da capoeira como uma prática
esportiva.
Neste empreendimento destacaram-se dois mestres baianos negros e originários
das camadas pobres da cidade, Bimba e Pastinha, considerados pelos capoeiras
atuais como os “heróis culturais” desta luta.
Para viabilizar seu projeto regional e étnico, estabeleceram duas
estratégias diferentes.
O criador da capoeira Regional Baiana, mestre Bimba, não viu nenhum
inconveniente em “mestiçar” essa luta, incorporando à
mesma movimentos de lutas ocidentais e orientais (tais como box, catch, savate,
jiu-jitsu e luta greco-romana).
Por outro lado, o mestre Pastinha, outro nome famoso da capoeira baiana,
contemporâneo de Bimba e igualmente empenhado na legitimação
da prática do jogo, reagindo àquela “mestiçagem”
da capoeira, afirmou a “pureza africana” da lute, difundindo o
estilo da capoeira Angola e procurando distingui-lo da Regional.
Diferentemente do século XIX, quando a prática da Capoeira,
tolerada como contravenção ou criminalizada, empurrava os negros
pare fora da sociedade brasileira, com a capoeira esporte os negros foram
absorvidos: estão do lado de dentro, “no jogo”.
Bimba e Pastinha serviram-se de táticas distintas, defendendo maneiras
diferentes de inserção social. Suas escolas propuseram por intermédio
da Capoeira, estratégias simbólicas e políticas diferenciadas
que visavam, em última instancia, ampliar o espaço político
dos negros na sociedade brasileira, indicando dois caminhos possíveis.
De um lado foi organizado o estilo Regional, que embora incorpore elementos
de lutas ocidentais, guarda elementos que reafirmam a identidade étnica
negra nas músicas, nos toques do berimbau e nos próprios movimentos
que, conforme depoimento de mestre Bimba, são provenientes também
do batuque e do maculelê.
A Capoeira Regional coloca em contato sistemas de valores distintos e, portanto,
construções corporais distintas (movimentos corporais de brancos
e negros), operando uma mediação, criando um campo simbólico
ambíguo e ambivalente.
Sob esse aspecto a Capoeira Regional oferece uma afirmação
de identidade mais ampla que a da Capoeira Angola afirmando a presença
do negro enquanto parte da sociedade brasileira e, finalmente, enquanto símbolo
da nação como um todo. A Regional admite por exemplo, a incorporação
de elementos de outras formas de luta e novos conceitos quanto à maximização
dos efeitos dos golpes; e permite a construção de uma nova presença
negra no cenário nacional. Um preço foi pago por isso, no plano
político: renunciar à afirmação de uma diferença
na identidade negra.
A Capoeira que se quer pura, representada pelo estilo Angola é uma
forma inequívoca de afirmação da identidade étnica:
em sua própria designação os praticantes reafirmam sua
origem e ao conservar a pureza da construção corporal negra,
demarcam uma forma culturalmente distinta de jogar capoeira. Os defensores
da Capoeira Angola consideram que existindo como resistência no momento
de inclusão do negro na sociedade brasileira, ela só é
revalorizada como reafirmação dessa mesma resistência
em função da recuperação de uma identidade negra
específica, no bojo da construção política de
uma consciência negra. A construção dessa identidade é
possível a partir de uma postura conservadora, que reinventa a tradição
e só se mantém com a recuperação simultânea
dos outros elementos que, no plano simbólico, organizam essa visão
de mundo negra. Exemplo disso é a afirmação da origem
africana da capoeira a partir do ritual de iniciação denominado
dança da zebra ou N’Golo.
A oposição Capoeira Angola versus Capoeira Regional é
matizada: o estilo Regional preserva as características ambíguas
e mantém elementos que assinalam as fronteiras culturais e étnicas
dos negros, mesmo com a incorporação de movimentos corporais
de lutas brancas.
A prática da Capoeira Angola não é tão somente
voltar ao passado, mas buscar na Capoeira uma visão do mundo que questionou,
desde o princípio, diversos conceitos e padrões da cultura ocidental.
Afinal, quando surgiu a Regional, já existia uma tradição
consolidada na Capoeira, principalmente nas rodas de rua do Rio de Janeiro
e da Bahia Depoimentos obtidos junto aos velhos mestres de Capoeira da Bahia
lembram personagens importantíssimos na história da luta no
século XX, tais como Traíra, Cobrinha Verde, Onça Preta,
Pivô, Nagé, Samuel Preto, Geraldo Chapeleiro, Daniel Noronha,
Totonho de Maré, Juvenal, Canário Pardo, Aberrê, Livino,
Bilusca, Cabelo Bom e outros. Inúmeras cantigas lembram os nomes e
as proezas destes capoeiras, mantendo-os vivos na memória coletiva
da Capoeira.
Destacou-se entre os que defendiam a escola tradicional o mestre Waldemar,
do bairro da Liberdade, em Salvador, falecido em 1990. Desde 1940 conduzindo
a roda de Capoeira que viria a ser o mais importante ponto de encontro dos
capoeiras da capital bahiana, infelizmente mestre Waldemar não teve
na velhice o reconhecimento que merecia. Não foram muitos os capoeiras
mais jovens que tiveram a honra de conhecê-lo e ouvi-lo contar suas
histórias. Lamentavelmente, morreu na pobreza, como os mestres Pastinha,
Bimba e muitos outros.
Alguns mestres-capoeiras, antigos freqüentadores das famosas rodas
de Capoeira tradicional de Salvador, apesar da idade avançada ainda
dão sua contribuição ao desenvolvimento do jogo, ministrando
cursos, palestras e mesmo ensinando regularmente em instituições
no Brasil e em outros países.
Com a boa aceitação obtida pela escola de mestre Bimba, dividiu-se
o universo da Capoeira em tendências divergentes: alguns se voltaram
para a preservação das tradições e outros procuraram
desenvolver um estilo mais direcionado para o combate, à feição
das lutas marciais. Conforme ensinam os velhos mestres da Capoeira baiana,
a expressão ‘Capoeira Angola’ ou ‘Capoeira de Angola’ somente surgiu
após a criação da ‘Regional’, com o objetivo de estabelecer-se
uma designação diferente entre esta e a Capoeira tradicional,
já amplamente difundida. Até então não se fazia
necessária a diferenciação e o jogo se chamava simplesmente
Capoeira.
Se o trabalho desenvolvido por mestre Bimba mudou os rumos da Capoeira,
muitos capoeiras se preocuparam em mostrar que a Angola não precisaria
sofrer modificações, pois já continha elementos para
uma eficaz defesa pessoal. A cisão ficou mais intensa, levando a uma
autêntica polarização, a partir da fundação,
em 1941, do Centro Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador, sob a liderança
do mestre Pastinha, reconhecido como o mais importante representante dessa
escola.
A ampla expansão da Regional, principalmente como uma modalidade
de luta, contribuiu para difundir a falsa idéia de que a Angola não
dispunha de recursos para o enfrentamento, afirmando-se ainda que as antigas
rodas de Capoeira, anteriores a mestre Bimba, não apresentavam situações
reais de com ate. Entretanto, os velhos mestres fazem questão de dizer
que estes ocorriam de uma forma diferente da atual, em que os jogadores se
valiam mais da agilidade e da malícia, da mandinga, do que da força
propriamente dita.
No seu livro Capoeira Angola, mestre Pastinha afirma que “sem dúvida,
a Capoeira Angola se assemelha a uma graciosa dança onde a ginga maliciosa
mostra a extraordinária flexibilidade dos capoeiras. Mas, Capoeira
Angola é, antes de tudo, luta e luta violenta”.
Prática comum no cotidiano das primeiras décadas do século
XX, a Capoeira não exigia de seus praticantes nenhuma indumentária
especial. O capoeira entrava no jogo calçado com a roupa do dia-a-dia.
Nas rodas mais tradicionais, aos domingos, alguns dos capoeiras mais destacados
faziam questão de se apresentar trajando refinados ternos de linho
branco, como era comum até meados desse século.
O ensino da antiga Capoeira Angola ocorria de forma espontânea. Os
mais novos aprendiam com os mais experimentados, diretamente, com a participação
na roda. O aprendizado informal nas ruas e praças das cidades brasileiras
predominou até 1960.
Expressivo número de capoeiras se refere atualmente à Angola
como uma das formas de jogo, não propriamente como um estilo metodizado
de Capoeira.
Lembramos, como já foi dito neste livro, que a velocidade e outras
características do jogo da Capoeira estão diretamente relacionados
com o tipo de ‘toque’ executado pelo berimbau. Entre outros, existe aquele
denominado toque de Angola, que tem a característica de ser lento e
compassado. Jogar Angola consiste, na maioria dos casos, em jogar Capoeira
ao som do toque de Angola.
A compreensão do autêntico significado da Capoeira Angola vem
mudando com o enorme trabalho das escolas tradicionais, que realizam um sério
e valioso trabalho de divulgação e difusão dos fundamentos
dessa modalidade.
No meio da Capoeira, durante décadas os discípulos de mestre
Bimba e de mestre Pastinha alimentaram divergências. A Angola, desvalorizada
durante as décadas de 60 e 70, momento do auge da Regional – que procurava
conquistar o mercado então aberto às chamadas artes marciais
– seria, ao longo da década de 80 e desde o início dos anos
90, revalorizada como depositária da tradição, no bojo
da valorização da negritude e do crescimento da consciência
negra.
A grande parte das academias, escolas e associações de Capoeira
dedicam algum tempo ao jogo de Angola quando realizam suas rodas, que nem
sempre corresponde àquilo que os antigos capoeiristas denominavam Capoeira
Angola. E o jogo acaba resumindo-se à constante utilização
das mãos como apoio no chão e execução de movimentos
de pouca eficiência combativa, golpes mais baixos e lentos, realizados
visando maior efeito estético com a exploração do equilíbrio
e da flexibilidade do capoeira.
Evidentemente, seria tarefa dificílima reproduzir detalhadamente
antigas movimentações e rituais da Capoeira. Afinal, como qualquer
manifestação dinâmica, o jogo tem sofrido modificações
ao longo de sua história. O esforço dos capoeiras dedicados
ao ensino da arte que viveram uma intensa preocupação de recuperar
o saber ancestral da Capoeira, mediante o contato com os velhos mestres, demonstra
uma saudável preocupação com a preservação
das suas raízes históricas, recuperando informações
junto aos antigos capoeiras, que vivenciaram inúmeras situações
interessantes, acumulando experiência valiosa ao longo de muitos anos
de prática e ensino.
Graças a essa proveitoso intercâmbio podem ser encontradas
na maioria dos capoeiras algumas das mais relevantes características
da Angola, como a continuidade do jogo, quando os jogadores procuram explorar
ao máximo a movimentação evitando interrupções
na dinâmica do jogo; as esquivas, fundamentais na Angola, em que o capoeira
evita ao máximo o bloqueio dos movimentos do adversário, procurando
trabalhar dentro dos golpes, aproveitando-se dos desequilíbrios e falhas
na guarda do outro; a improvisação, típica dos jogadores
de capoeira ambientados nas “rodas de rua” e que pela experiência
diante de situações de enfrentamento real sabem que os golpes
e outras técnicas treinadas no dia-a-dia são um ponto de partida
para a luta, mas precisam ser moldadas rápida e criativamente à
situação de momento.
A maioria das escolas não adotam a denominação de Angola
ou Regional para a Capoeira que ensinam. E entre as que se identificam como
Regional, poucas demonstram relação direta com o trabalho de
mestre Bimba: na imensa maioria, os mestres afirmam jogar e ensinar uma forma
mista, conciliando elementos tradicionais com as inovações introduzidas
por mestre Bimba.
Os fundamentos da luta tradicional ensinados às novas gerações
pelos velhos mestres da Bahia, como Waldemar, Caiçara, Canjiquinha,
João Grande, João Pequeno, Paulo dos Anjos, Ferreirinha e Curió,
entre outros, contribuíram decisivamente para o avanço na organização
dos grupos e na retomada das antigas tradições.
Nas últimas décadas do século XX a tendência
constatada na grande maioria das escolas foi de que a Capoeira incorpore as
características das duas escolas. Importante, portanto, que os capoeiras
conheçam a sua história, praticando sua luta de forma consciente.
Angola e Regional possuem valioso conteúdo histórico e não
se excluem: completam-se
Indiscutivelmente, o jogo da Capoeira é uma das mais significativas
contribuições dos africanos e seus descendentes para a formação
da nossa identidade cultural, inserindo-se na nossa história e preservando
a lembrança das lutas sociais que forjaram a cidadania brasileira.
Promover o resgate das tradições da Capoeira significa recuperar
a consciência da identidade brasileira. Divulgando essa belíssima
linguagem corporal estamos expressando a voz de uma nacionalidade construída
na luta de resistência à dominação cultural. Lutar
pela recuperação da memória brasileira é lembrando
dos heróis saídos do seio do povo. Não nos esqueçamos
do exemplo recente de Pastinha, Bimba, Querido de Deus, Besouro e tantos dos
nossos irmãos que corporificam a cultura brasileira.
A ação desses mestres permitiu a preservação
da Capoeira enquanto luta e arte, jogo e dança, aspectos essenciais
numa manifestação cultural cujo valor depende dessa complexa
dubiedade. Vale ressaltar a importância do trabalho desenvolvido pelos
mestres e capoeiras espalhados por todo o mundo, que têm desenvolvido
esforços proveitosos pela continuidade dessa luta, única e original.
A sobrevivência da Capoeira estará assegurada pela ação
dos inúmeros praticantes que compreendam a importância dessa
forma exclusiva e magnífica de expressão corporal, cultivando
a graça e leveza dos movimentos, as possibilidades técnicas
e plásticas de traduzir fisicamente elasticidade, flexibilidade e controle.
Tudo isso temperado com muita malícia. E o que é mais importante,
sem esquecer a finalidade da luta: a liberdade – que resume o objetivo a ser
alcançado e o caminho a percorrer.
Fortalecido pelas tradições ricas em caracteres e componentes,
os negros construíram a unidade da sua resistência em torno dos
seus valores, determinando assim as ações da sua resistência
social e cultural. Mesmo assumindo uma língua que não era a
deles, adotando uma forma de comunicação totalmente estranha
aos seus costumes – a escrita -, o negro preservou no corpo a memória
da sua identidade. Essa memória corporal constitui-se na fonte de saber,
no banco de dados que dá suporte à memória dos usos,
costumes e tradições. tem na Capoeira o mais importante discurso
de liberdade e autonomia memorizado no corpo. E é a partir dessa significativa
interferência não-verbal que os negros participaram da definição
da nossa cultura: sentindo na pele a emergência dos problemas políticos
e sociais, resgataram da sua memória corporal a luta de resistência
da Capoeira.
O jogo da capoeira é um dos caminhos para a grande aventura da redescoberta:
a construção da cidadania brasileira Por que não tentar?
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