24 de Fevereiro – Rui Barbosa

Rui Barbosa

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Todas as constituições, em seus aniversários, triunfam nas salvas dos canhões e na retórica dos oradores oficiais. Parece-nos que a imprensa, porém, não está adstrita à pragmática do cortejo, não tem que entrar na parada. Válvula da consciência popular, deve praticar, nestas datas, alguma coisa do seu exame, da sua introspecção, da sua sinceridade. Não seja, se quiserem, desmancha-prazeres. Mas também não se porte como cortesã.

Passaram todas as constituições necessariamente por um período de acomodação, tanto mais dilatado, quanto mais revolucionário foi o seu nascimento, quanto maior a distância entre os novos regimens e os regímens destruídos. Sob os contratempos e desenganos, a que a da República se tem visto submetida entre nós, não esquecem os seus amigos essa verdade histórica, essa lei inevitável, dando-se pressa em recordar aos desanimados os oito ou nove anos de decepções e desalentos, que atravessou, na América do Norte, a organização federal.

Infelizmente as situações não são as mesmas, nem se explicam do mesmo modo, sob a analogia superficial dos fenômenos aparentes, os perigos iniciais daquela república e os da nossa. Ali consistia a dificuldade essencial na formação de um povo americano, que propriamente não existia, que o sistema fracionário da colonização inglesa, não permitira criar, e na capitulação das autonomias existentes ante o princípio da unidade nacional. Aqui tínhamos a unidade nacional e o organismo de um povo constituído, que as tendências da transformação nos parece ameaçarem com o risco de uma ação cada vez mais dissolvente.

Se há males, que as formas constitucionais não encerram a virtude intrínseca de prevenir, como há bens que elas não possuem o talismã ingênito de estabelecer, na hipótese brasileira a desagregação, de que sofremos, não está na ordem das fatalidades políticas superiores à previsão e ao engenho do homem. Ela deriva, quanto a nós, dos elementos dispersivos, que a exageração sistemática e a preocupação das soberanias locais introduziram no pacto de 1891.

Certamente há criações, que não se imitam, que se não transportam. Não basta a vontade e a ciência, para obter, noutro país, a reprodução de um Senado como o americano. Não vale a inteligência do modelo, nem a arte da adaptação, para transplantar dos Estados Unidos o seu Supremo Tribunal Federal. Instituições destas não se alcançam pela habilidade plástica dos legisladores. Dependem eminentemente da idoneidade dos povos, como do caráter das raças. E sem elas bem duvidoso é que a nossa Constituição tenha o direito de pretender à afinidade, que supõe, com a obra de Washington e seus colaboradores.

Fazendo, porém, por esse lado, como fez, quanto estava ao alcance da sua insuficiência, cumpria, ao menos, que, na linha dos resultados praticamente realizáveis, os constituintes de 1890 houvessem acudido aos dois problemas do regímen, que visavam: o autogoverno dos estados e a existência da União.

Ora, uma vez do governo dos estados por si mesmos, ganhamos a tiranização dos estados pelos governadores: a emancipação absoluta destes, com a absoluta sujeição daqueles a um mecanismo de pressão incomparavelmente mais duro que o da centralização antiga sobre as províncias de outrora. Dir-se-á que desta inversão nos produtos de molde federativo toca a responsabilidade à nossa ausência de liberdade eleitoral. Mas já não aproveita a mesma escusa à Constituição republicana, pelo que respeita ao outro interesse fundamental, ao máximo entre os dois interesses fundamentais do seu plano: a vitalidade, a independência, a soberania da União.

Nesta parte, o artefato da assembléia de 1890 se mostra deplorável. Não se tratou de constituir a União, e preservá-la, mas de a extenuar, de a inanir, de a impossibilitar. Imaginou-se que uma aliança ostensiva de interesses centrífugos, sem uma poderosa lei centrípeta, que os domine, poderia representar e manter a nacionalidade. Os frutos aí estão, rápidos e mortais, na impotência governativa e na miséria orgânica da federação.

Ao nosso modo de ver, contra essa moléstia dos centros vitais o único remédio, dentro do sistema, estará no revisionismo, enquanto for tempo. A resistência a ele, sob o pretexto de conservação da república, será o que tem sido, em toda parte, para todos os regimens, a resistência às reformas oportunas. Na espécie tanto pior, quanto o que nos urge, é talvez mais do que salvar uma forma de governo.

De outra sorte (permita Deus que nos enganemos) dia a dia irá crescendo esse esmorecimento, que já começou a invadir os próprios republicanos, a muitos dos mais responsáveis, a muitos dos mais confiantes, e a data de hoje continuará a alvorecer cada vez mais pálida nas esperanças dos melhores adeptos das instituições atuais.

 

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