Livro das Donas e Donzelas

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Júlia Lopes de Almeida

Parte I

Minhas Amigas

Mês das cigarras e das flores de flamboyant, como diria Fradique Mendes
se tivesse de datar em Dezembro uma carta no Rio de Janeiro. Prescindo, como
ele, da enumeração do dia. Datas são algarismos sem forças
para fazer sentir o violento azul do nosso céu, nem os ramalhões
purpurinos das nossas árvores, nem este chiar incessante das cigarras
entontecidas de luz, anunciando o calor.

Este lindo mês, em que o ano morre engalanado de cores e de sons, obriga-nos
a volver o olhar para o passado, numa inquirição pensativa e
saudosa… e logo a querer sondar o futuro impenetrável com a frouxa
luz de uma esperança. Nada se descortina bem, visto de longe; e é
melhor assim…

O que torna a vida encantadora é o imprevisto; e a prova é
que ninguém desejaria recomeçá-la da mesma forma porque
a já viveu; nem creio mesmo que, se tal milagre se pudesse cumprir,
houvesse alguém, por mais venturosa que lhe houvesse corrido a curta
vida, que tivesse coragem de a recomeçar!

Cerre alguém os olhos, pense, siga o curso da sua existência,
e ficará convencido de que só alguns dias lhe mereceram o desejo
de serem revividos. Dias? Nada mais que momentos, de inolvidável doçura…

Para a gente moça o maior encanto da vida está no que há
de vir, no que se ignora; para que transpõe o cabo dos quarenta, está
no presente, que passa ligeiro, ligeiro, como a corrente de um rio caudaloso…

Minhas boas amigas, donas e donzelas, velhas e meninas, perdi o endereço
de algumas de vós; outras… rezemos-lhes por alma, estão mortas;
de sorte que esta carta, de incerta direção, pretende ir até
as portas do céu, na ondulação do acaso e da saudade.

Nós, as mulheres, não temos sempre facilidade de bem exprimir
os sentimentos por palavras; eles parecem-nos por demais sutis e complexos;
elas insuficientes e fraquíssimas. Dizem que há para todas as
coisas expressões precisas, de inquestionável exatidão;
a língua modula no som, e inalterada, a essência da mais rara
alegria ou do mais terrível desespero. Mas essa é a interpretação
dos fortes; a nossa dilui-se, numa gota incolor e inodora, que é como
um chuvisqueiro em uma rosa, se nasce da alegria; ou, se vem da dor, como
um floco de neve em uma brasa, que apaga a luz e deixa a nu o carvão.

Lembranças de amizade não são como lembranças
de amor, que pungem e deliciam; têm outra suavidade, um perfume indistinto,
e por isso são mais difíceis de descriminar nas meias tintas
do passado; todavia, quanta comoção elas nos trazem na sua nevoenta
aparição!

Minhas amigas de outros tempos, supondo que eu enfeixo as graças e
virtudes de vós todas em uma só figura, que podereis chamar
de Mocidade, ou de Primavera, como vos aprouver.

Para ser suprema a sua formosura ela terá os teus doces olhos azuis,
tão cedo fechados, Elvira; e o teu riso alegre, Maria Laura; e a tua
voz, Janan; e a tua bondade adorável, Marie; e as linhas do teu corpo,
Alice; e a doçura da tua tez, Carlota! Terá da negra Josefa,
tão triste por não ser branca, a branca inocência; e de
vós todas, com que topei na minha infância, a garrula alegria
e a trêfega imaginação.

Não sacudo a uma esfinge o meu lenço saudoso, mas a uma figura
tangível, feita de perfeições e que permanece, imutável
e risonha, no horizonte que me foge.

De algumas de vós não sei, amigas da meninice; outras vieram
depois, na idade das confidências, e ainda hoje eu sinto o calor de
simpatias moças que vem vindo como aves anunciadoras do bom tempo,
para me dizerem que floresce ainda na Terra a sagrada planta da amizade.

Entre todas, não sois vós, amigas desconhecidas e minhas leitoras,
cujo influxo tantas vezes me alento, a quem menos se lança o meu pensamento
de mulher, num desejo de felicidade perfeita…

Nesta noite, uma das últimas do fim do ano, que de lembranças
suaves me esvoaçam pelo espírito!

Crede, esta carta é um desabafo. Não só vós,
minhas queridas, voltejais na minha memória, como nas rondas do colégio;
há outros amigos adorados, invisíveis, de poderosa influência,
a que me lanço com significativa gratidão: – os autores. O primeiro
livro lido; as páginas mais vezes relidas; as músicas que melhor
interpretei; os versos que me fizeram estremecer ou sonhar; singulares sensibilidades,
acordadas por estranhos que amei como amo o sol que me aquece, ou a flor que
me inebria, – tudo renasce e passa pelo meu pensamento, numa irradiação
puríssima, de devaneio…

Nestas horas vertiginosas e perturbadoras reconheço todos os meus
sonhos e desejos antigos, roçando por mim as suas asas, com tanto arrojo
abertas e tão cedo enfraquecidas…

Mas isso que vos importa?

Valerá pena pensar no tempo que passou, bem ou mal?

O ano em que parte da nossa vida discorreu, acaba? Deixa-a acabar! O outro
que vier terá as mesmas quatro estações; o sol inflamará
a terra no verão, o vento fará cair as folhas no outono, as
neves caracterizarão o inverno, e as boninas esmaltarão os campos
na primavera…

Assim como o tempo, fosco ou luminoso, os homens serão maus ou serão
bons e a vida fará o seu giro imperturbável, desfazendo e criando
entre declínios e triunfos.

Para o mundo será assim, mas para nós, queridas?

Natal Brasileiro

Neste esfacelar de usos e tradições, poucas pessoas encontram
ainda encanto em seguir costumes de avós que se foram há muito
tempo, e de quem as caveiras, lá no fundo das covas, já não
guardam nem resquícios de pele!

A nossa vida agitada precisa de um esforço para relembrar os divertimentos
antigos, e não é senão por condescendência que
muita gente faz horas para ir à missa do galo ou que deixa o espetáculo
pela ceia caseira, obrigada a certos pratos que o desuso tornou para muitos
paladares simplesmente abomináveis.

Noites quentes, maravilhosas noites de verão, banhadas de luar, impregnadas
do aroma da magnólia e do jasmim-manga, convidando por certo muito
mais aos passeios pelos arredores da cidade, ouvindo cigarras e violas de
serenatas, do que a fecharmo-nos em uma sala, em frente a um prato de canja
fumegante, entre os globos de gás a toda a luz e uma toalha branca
onde a louçaria brilhe com o seu luzimento de esmalte.

Estas festas são doces às mamães, porque chamam para
o seu redil as ovelhas soltas por diversos pontos da cidade. Nestes dias,
como que se ouvem badaladas de sinos de ouro que, a cada repique, dizem assim:

– Vinde para casa! Vinde para casa! É aqui que vos amam!

E as ovelhas param, escutam, torcem caminho e voltam para o aprisco de onde
tinham partido.

A amante que espere, pensam os rapazes; que se estorça de raiva vendo-se
preferida. É preciso também contentar a mamãe, que sorri
acudindo a tudo e a todos com a mesma paciência de há trinta
anos, quando os filhos eram pequenos e não sabiam de nada na vida que
igualasse à sua companhia!

"Boa mamãe! dizem-lhe eles agora, perdoai os nossos desvarios
de rapazes! Nós cá estamos no teu regaço, olhando para
o teu rosto, beijando as nossas irmãs."

E a mamãe vai e vem, com os lábios risonhos e os olhos brilhantes.
E o sino de ouro da casa, cujas badaladas se ouvem ao longe, mal ela o sabe!
é o seu coração angustiado, pisado de sofrimentos, de
dúvidas, de saudades, mas que todo se enflora ainda de esperanças,
porque é de mãe!

Festas familiares, sois peregrinamente bondosas e dementes para os velhos!

Sim, é por condescendência que muita gente deixa a noitada ao
relento pela ceia caseira, em que se comem coisas suculentas, se ouvem valsas
marteladas ao piano, ou se conversam assuntos repisados.

Na roça é que estas festas do Natal e do Ano-Bom têm
uma cor mais brasileira. Aqui na cidade fazemo-las seguindo os costumes portugueses.
O frio do Natal europeu impele as famílias para o interior das suas
casas, para o calor dos fogões e das ceias fumegantes. O nosso Natal
é tão diverso! Em vez da neve temos o sol; em vez da ventania
áspera, que obriga as pobres criaturas a irem para à igreja
envoltas em capotes, salpicadas de lama e de chuva, temos noites estreladas,
cheirosas, em que moças e rapazes vão à meia-noite ouvir
a missa do galo, com trajes alegres, sem recear bronquites, podendo folgar
pelos caminhos à luz das estrelas palpitantes e coloridas. Na roça
é assim. A criançada come ao ar livre pinhões cozidos
e faz a algazarra que apraz. As moças dançam no terreiro com
os namorados, e os velhos, sentados sob o alpendre, contam anedotas, rememoram
visitas a presépios antigos, até que o sino os chame e eles
partam todos, aos magotes, para a capela tão sua conhecida, tão
sua amada!

Se fosse possível deveríamos inventar festas adequadas ao nosso
clima, estabelecê-las, fixá-las, torná-las nossas.

Os costumes europeus não podem, em absoluto, ser reproduzidos aqui.
Há no Brasil climas mais frios do que em alguns países da Europa;
no alto Paraná o gelo quebra os galhos das árvores e o aldeão
tirita lavrando terra. Mas de que vale isso, se as estações
são trocadas e o nosso Natal desabrocha em pleno verão! O nosso
Natal! Bem que ele precisa de outro emblema. O velho de longas barbas brancas,
nariz cor de morango maduro, capote espesso lanzudo e gorro de peles, é
filho das terras nevadas, cortadas pelos uivos do vento, tão cruel
para os pobres. O nosso Natal é moço, é risonho, é
caritativo; abriga os sem vintém, e as criancinhas nuas não
o temem, porque ele afaga-as o seu bafo cheiroso e veste-as com a sua luz
quente e doirada!

Conventos

A tarde agonizava em reflexos brancos de prata polida, que davam à
superfície do mar um tom de aço, espelhento. Num banco do convés
da barca, uma senhora afogada em lãs pretas, de luto, sussurrava queixas
das filhas que a queriam trocar por um convento. Era um desabafo, entre as
amigas, que todas se debruçavam para aquela angústia…

Pelos farrapos dos comentários percebi que as donzelas não
levariam ao claustro contingente que o exalçasse… Uma delas faria
versos místicos, a outra rezaria ladainhas, sem que das suas genuflexões
ou dos seus arroubos viesse benefício ao mundo.

A mãe não sabia explicar aquele fervor súbito. Supunha
que a mais velha, poetisa, procurasse na religião os ideais que não
via realizados na terra; mas a outra? Debatia-se ante o enigma da outra.

Optaram as amigas por uma paixão. Algum amor mal correspondido…

Pobre criança, pensava eu de mim para mim, o véu de freira
não tem por certo a magia que ela espera… Se o mal de que ela sofre
é esse que dizem, levá-lo-á consigo, que para a fatalidade
do amor não há amuletos nem cilícios que valham. O convento
excitará no principio a sua fantasia, vinculará a sua saudade,
sem lhe trazer a pacificação, a vida saborosa, que é
o preparo do Paraíso.

Houve tempo em que o convento tinha, com todos os rigores, certos atrativos,
como tudo que é forte e que domina. Tempos houve também em que
ele era menos um lugar de reclusão que de galanteio; então bilhetes
amorosos e versos dos torneios perpassavam por entre aquelas paredes severas,
como revoadas do mariposas tontas; e havia freiras, como a freira Serafina,
que, escrevendo a respeito da abadessa de Santo André, deixava transparecer
a convicção de que não é o amor divino, mas o
humano, a melhor e a maior preocupação de toda a gente, tanto
de lá de dentro como de cá de fora. Dizem mesmo crônicas
velhas e cronistas modernos que nem sempre os conventos foram santuários
de castidade. Fossem lá o que fossem, a verdade é que tinham
vida própria e o enorme prestígio que facilita e sugere os grandes
devotamentos. Depois, a mulher não tinha outros destinos; ou ele ou
o casamento. Hoje não é assim; o pulso paterno já não
tem o poder de aferrolhar filhas insubmissas, e a poesia, que naqueles tempos
o hábito pudesse ter, foi substituída no nosso tempo – por uma
fúnebre idéia de mortalha. Hoje os conventos parecem túmulos.

Imagino a melancolia desses casarões enormes. Que silêncio de
corredores, onde as sandálias já não batem de minuto
a minuto; que ar de mofo nas celas sem dono, fechadas há anos e em
que as aranhas tecem irreverentes a rede da sua prole; que abandono nos palcos,
onde as fontes choram, sem o consolo de ver as suas lágrimas suspensas
pelas mãos macias de umas freiras bonitas; que aspecto frio o do refeitório,
onde na imensa mesa conventual meia dúzia de freiras sorumbáticas
trocam receitas de pasteis e benzem distraidamente o pão, e o comem
depois sem alegria, a bela alegria, que a tão citada Santa Tereza de
Jesus aconselhava às freiras da sua comunidade, a par de trabalho ativo,
vassouradas, costuras, roupas limpas e polimento de metais! Essa feição
salutar da santa modificou a imundice do convento, mas não lhe tirou
a grandeza austera e a soturnidade doentia.

Dirão: os nossos conventos têm uma feição mais
modesta e mais acanhada; estão pintadinhos de fresco e assoalhados
de novo.

Tanto pior. Não haverá ao menos espaço para uma evocação.
Do lagedo largo e quebrado de um claustro, de onde surja um tufo de verdura;
de um nicho abandonado, ou de um pergaminho sujo pelo manusear de mil dedos
desconhecidos, pode nascer uma reflexão, uma curiosidade, um estudo
ou um devaneio. Mas uma parede caiada e um pátio semeado de fresco,
para as necessidades práticas da vida, que podem sugerir à freira
moça?

Talvez saudades da graça, do riso travesso e das confidências
das amigas abandonadas; seu quarto, em que a sua imagem se reproduzia faceira
e linda; das fitas, do vestido profano; de uma volta de valsa; de um aperto
de mão fugitivo; de um olhar, de um pensamento de amor com ou sem pecado,
em todo o caso sem medo de excomunhão; de coisas pueris e de coisas
divinas, que enfeitam a vida a intervalos, como as papoulas nos campos de
trigo.

A verdade, sempre repetida, é que quem tem fé melhor serve
a Deus nos lugares onde por ele se vive ou por ele se morre, que atrás
dos grossos ferrolhos de uma portaria. Esses lugares, a que a mulher com proveito
levara a doçura da sua crença e o ardor do seu sacrifício,
são as cidades empestadas, as ruas cheias de mendigos e de crianças;
as prisões, as ambulâncias, todo o sítio onde há
dor, fome ou rancores; são a escola onde ensina; a própria família,
que a sua influência alegra e pacifica; hospital, onde consola; o pedaço
de terra, onde planta a árvore, que dará sombra a quem vier
mais tarde e ramos para as ninhadas entoarem hinos ao Criador.

Podemos ser úteis e ser religiosas sem fugir da sociedade; podemos
amar o Senhor, sem desprezar os irmãos, que mais ou menos carecem do
nosso amparo, ou da nossa presença.

Este egoísmo de esconder as feridas da paixão em lugar imperscrutável
ao olhar humano não é digno deste tempo, em que as almas se
desnudam para o combate, porque hoje não há santos, há
heróis; não há milagres, há virtudes.

Os eleitos de Deus são os eleitos da humanidade, somos nós,
as mães, que criamos os filhos para a glorificação do
mundo; são os homens, que cultivam a terra em paz abençoada,
ou morrem por uma idéia generosa.

A religião tem com certeza melhores serviços nos hospitais,
nos púlpitos, nas missões, em todas as suas formas de expansão,
que nos conventos mudos, abafados pelo rumor que os cerca…

A irmã de caridade tem ao menos a sublimidade, a abnegação
de viver para os outros. Essa é a sua doutrina. A freira para quem
vive?

A barca atracou à ponte, e a senhora de luto, puxando para o queixo
o véu do toucado, saiu, levando consigo o mistério daquele romance
apenas entrevisto…

O Vestuário Feminino

É uma esquisitice muito comum entre senhoras intelectuais, envergarem
paletó, colete e colarinho de homem, ao apresentarem-se em público,
procurando confundir-se, no aspecto físico, com os homens, como se
lhes não bastassem as aproximações igualitárias
do espírito.

Esse desdém da mulher pela mulher faz pensar que: ou as doutoras julgam,
como os homens, que a mentalidade da mulher é inferior, e que, sendo
elas exceção da grande regra, pertencem mais ao sexo forte,
do que do nosso, fragílimo; ou que isso revela apenas pretensão
de despretensão.

Seja o que for, nem a moral nem a estética ganham nada com isso. Ao
contrário; se uma mulher triunfa da má vontade dos homens e
das leis, dos preconceitos do meio e da raça, todas as vezes que for
chamada ao seu posto de trabalho, com tanta dor, tanta esperança, e
tanto susto adquirido, deve ufanar-se em apresentar-se como mulher. Seria
isso um desafio?

Não; naturalíssimo pareceria a toda a gente que uma mulher
se apresentasse em público como todas as outras.

Basta ver um jornal feminista para toparmos logo com muitos retratos de mulheres
célebres, cujos paletós, coletes e colarinhos de homem, parece
quererem mostrar ao mundo que esta ali dentro um caráter viril e um
espírito de atrevidos impulsos. Cabelos sacrificados à tesoura,
lapelas (sem flor!) de casacos escuros, saias esguias e murchas, afeiam corpos
que a natureza talhou para os altos destinos da graça e da beleza.

Os colarinhos engomados, as camisas de peito chato, dão às
mulheres uma linha pouco sinuosa, e contrafeita, porque é disfarçada.

Médicas, engenheiras, advogadas, farmacêuticas, escritoras,
pintoras, etc. por amarem e se devotarem às ciências e às
artes, porque hão de desdenhar em absoluto a elegância feminina
e procurar nos figurinos dos homens a expressão da sua individualidade?

Há certas mulheres, precisamos convir, que têm desculpa na adoção
dos murchos trajes masculinos, porque para elas isso não representa
uma questão de estética, mas de incontestável necessidade
– as exploradoras, por exemplo.

A essas, as saias impediriam as passadas e os saltos, no labirinto enredado
dos cipoais, entre todos os obstáculos das florestas eriçadas
de espinhos e cortadas de valos a transpor.

As calças grossas e as altas polainas são para elas, portanto,
não objeto de fantasia, mas de comodidade e salvamento. O pano flutuante
do vestido prendê-las-ia de instante a instante aos troncos e às
arestas do caminho, e, quando molhado, pesar-lhes-ia no corpo como chumbo.

Por exigências de comodidade no trabalho, também escultoras
e pintoras se sujeitam muitas vezes a vestirem-se assim e só quando
executam obras de grandes dimensões. As calças facilitam então
as subidas e as descidas de andaimes e de escadas.

Rosa Bonheur, conta-nos um seu biógrafo, surpreendida no atelier pela
notícia de que a imperatriz Eugênia entrava em sua casa para
oferecer-lhe a Legião de Honra, – viu-se atrapalhada para enfiar às
pressas os trajes do seu sexo e poder receber respeitosamente a soberana.

Só de portas a dentro ela abusava dessas entradas por seara alheia,
para usar com liberdade de todos os seus movimentos; mas desde que a artista
era procurada por estranhos, ela aparecia como mulher.

Nas cidades, sobre o asfalto das ruas ou o saibro das alamedas, não
sabe a gente verdadeiramente para que razão apelar, quando vê,
cingidas a corpos femininos, essas toilettes híbridas, compostas de
saias de mulher, coletes e paletós de homem… Nem tampouco é
fácil de perceber o motivo por que, em vez da fita macia, preferem
essas senhoras especar o pescoço num colarinho lustrado a ferro, e
duro como um papelão!

A Arte de Envelhecer

Não somos só nós, minhas amigas, que vemos com terror
brilhar por entre as nossas madeixas castanhas, louras ou pretas, o primeiro
fio de cabelo branco. As dolorosas apreensões desse momento eram-nos
só atribuídas a nós, como se não nascêramos
senão para a mocidade e o amor.

O homem envergonhado, e com receio de se confessar vaidoso, sem perceber
talvez que a primeira denúncia da velhice tem para nós amarguras
mais sutis que a do simples medo de ficarmos mais feias, teve sempre para
a nossa decepção um sorriso de inclemente ironia…

Poetas e contistas, valham-nos eles, e que Deus lhes prolongue a raça!
engrinaldaram de rimas e períodos suaves a dor desse momento sagrado,
em que as nossas esperanças fecham as asas, repentinamente murchas,
e a luz dos nossos sonhos esmorece…

Mas se eles adivinharam a delicadeza do nosso sentimento, não nos
contaram a espécie do seu, ao ver a luz pálida e fina de um
fio prateado coleando por entre as ondas negras da cabeleira, ou as pontas
castanhas do bigode.

Pensávamos que os primeiros sinais outoniços, que são
para as mulheres os mais terríveis, não os alarmassem a eles,
sempre embebidos em tão grandes ideais, que nem tivessem vagar para
perceber a ruína do próprio corpo. Enganamo-nos; o homem é
também sensível como nós às apreensões
que a vista primeiro cabelo branco sugere.

Um fio de cabelo, nada há mais frágil, nem mais quebradiço
nem mais leve, e entretanto vê-se que mundo de sensações
ele prende e arrasta! Até aqui, eram só as nossas, supúnhamos,
mas agora sabemos que são as de toda a gente!

Tenho diante dos olhos uma página de homem – A arte de envelhecer
– que se me afigura ter sido escrita diante de um espelho pérfido.
Essa página suave e bem feita analisa essa hora delicada e de difícil
interpretação, em que há em todos o mesmo estremecimento
de susto, e o mesmo estender de mãos para agarrar o que passou e que
não voltará jamais – a mocidade.

A mocidade! aos quarenta anos ainda a sentimos perto, aspiramo-lhes o aroma,
como que lhe sentimos o hálito quente; já ela nos deixou, já
ela se foi embora, e todavia recrudesce em nós, mulheres, toda a alacridade
vivaz da sua exuberância; há mais calor no nosso peito, mais
ardor na nossa paixão, mais firmeza na nossa vontade. É nesse
instante de supremo gáudio que um insignificante fio de cabelo branco
nos vem lembrar que o bem que gozamos, tão conscientemente como o gozáramos
até então com indiferença… há de acabar!

Supus, não sei porque, à força de ouvir dizer, talvez,
que essa hora para os homens chegasse mais tarde. Vejo que não. Sempre
é consolador ter bons companheiros na desgraça…

No arte de envelhecer, tema delicioso e que o autor poderia desenvolver em
um volume grosso, há uma pincelada jeitosa e leve na referência
à maneira por que sabemos disfarçar os estragos impiedosos do
tempo… O que as palavras não dizem, mas a insinuação
aponta, é que esse meio é o maquilage, o artifício, o
auxílio das cores sabiamente combinadas, a discrição
dos véus e o efeito artístico do penteado…

Saber compor a fisionomia, dar-lhe aparência agradável, torná-la
bonita quanto possível, é a mais comum das preocupações
femininas, para que não a confessemos.

Todavia, há uma revelação a fazer: é que raramente
se põe aqui ao serviço desse cuidado o uso das tintas, das pomadas
e dos vernizes.

A não ser a inglesa, protegida por um clima que lhe aveluda a tez,
não conheço mulher que menos recorra aos embustes do toucador
que a brasileira.

O pó de arroz, contra o qual antigamente alguns pais de família
se insurgiam, é o único auxílio de que lançamos
mão, mais ainda como um complemento de toilette, que o uso torna indispensável,
que mesmo como um elemento de garridice.

O pó de arroz não só atenua o luzidio da pele, afogueada
por uma temperatura quase sempre alta, como também suaviza, refresca
e aromatiza.

Positivamente, ele foi adotado por isto: não só embeleza como
sabe bem.

De tal maneira isto é certo, que ninguém o oculta, como a um
fator misterioso de formosura, que se quisesse guardar incógnito; ao
contrário, damo-lhes caixas vistosas de cristal lapidado onde a luz
incide em refrações irisadas.

A velhice material, grosseira, ainda não mereceu da maior e melhor
parte das mulheres brasileiras o sacrifício inútil da máscara
confeccionada em sessões longas, com pincelinhos, camurças,
óleos, tintas e esmaltes.

Mas A arte de envelhecer não teve por objetivo a arte de não
parecer velho; mas sim de padecer com resignada calma as gradações
da mudança. Isso depende, além da vontade, das circunstâncias
de cada um…

A felicidade está em envelhecer sem arte, com outras preocupações
mais elevadas e menos egoístas…

Desde os primeiros anos de escola que os mestres se esforçam por fazer
compreender às crianças que a beleza, sendo transitória,
menos vale do que a bondade, e que

On ne saít plus que devenir Lorsque l’on n’a su qu’être belle

O esforço para a perfeição material é sempre
improfícuo, e o para o aperfeiçoamento moral sempre bem coroado.

A arte de envelhecer é a de exercitar a alma nas doces práticas
do benefício e saber derramar em torno a si até à última
hora de consciência, a sombra que alivia ou o calor que reanima…

A Mulher Brasileira

O europeu tem a respeito da mulher brasileira uma noção falsíssima.
Para ele nós só nascemos para o amor e a idolatria dos homens,
sendo para tudo mais o protótipo da nulidade.

Dir-se-ia que a existência para nós desliza como um rio de rosas
sem espinhos e que recebemos do céu o dom escultural da formosura,
que impõe a adoração… Nem uma nem outra coisa. Nem
a mulher brasileira é bonita, se não nos curtos anos da primeira
mocidade, nem tão pouco a sociedade lhe alcatifa a vida de facilidades.
Ela é exatamente digna de observação elogiosa pelo seu
caráter independente, pela presteza com que se submete aos sacrifícios,
a bem dos seus, e pela sua virtude. A brasileira não se contenta com
o ser amada: ama; não se resigna a ser inútil: age, vibrando
à felicidade ou à dor, sem ofender os tristes com a sua alegria
e sabendo subjugar o sofrimento. Parecerá por isso indiferente ou sossegada,
a quem não a conhecer senão pelas exterioridades. Mas não
tivesse ela capacidade para a luta e ainda as portas das academias não
se lhe teriam aberto, nem teria conseguido lecionar em colégios superiores.
A esses lugares de responsabilidade ninguém vai por fantasia nem chega
sem sacrifícios e coragem. Apesar da antipatia do homem pela mulher
intelectual, que ele agride e ridiculariza, a brasileira de hoje procura enriquecer
a sua inteligência freqüentando cursos que lhe ilustrem o espírito
e lhe proporcionem um escudo para a vida, tão sujeita a mutabilidades….

Se o seu temperamento é cálido e voluptuoso, a sua índole
é honesta e ativa e o seu pensamento despido de preconceitos.

Se uma mulher brasileira, (se há excepções? há-as
de certo!) cai de uma posição ornamental em outra humilde, é
de rosto descoberto que dia procura trabalho então vai ser costureira,
mestra, tipógrafa, telegrafista, aia, qualquer coisa, conforme a educação
recebida, ou o ambiente em que vive…

Nessas ações, não há simplicidade, – há
estoicismo e uma compreensão perfeita da vida moderna: que é
a guerra das competências. A brasileira vive ociosa; é uma frase
injusta e que anda a correr mundo, infelizmente sem protesto. Porque?

Toda a gente sabe que no Brasil só não amamenta os filhos a
mulher doente, aquela que não tem leite ou que o sabe prejudicial em
vez de benéfico!

Ricas ou pobres, as mães só tem uma aspiração:
– aleitar, criar os seus filhos! Este exemplo devia ser citado, porque, à
proporção que esta virtude se acentua entre nós, parece
que nos países mais civilizados vai se tornando escassa!

A mulher brasileira ama com mais intensidade, talvez; dedica-se toda, sem
medo de estragar a sua beleza, às comoções da vida. Aí
vemos as pobres mulheres dos soldados, seguindo-os à guerra, acompanhando-os
nas batalhas, matando quem os fere, ferindo quem os ameaça, erguendo-lhes
das mãos moribundas a espingarda com que os vingam!

Estas energias não são filhas do acaso, vêm-nos da mistura
de sangues com que fomos geradas, vêm-nos desta natureza portentosa
e que por toda a parte nos ensina que a vida é uma grande fonte que
não deve secar inutilmente!

Nos países tropicais a precocidade é tamanha que a existência
da menina passa como um sopro e começam bem cedo as responsabilidades
da mulher. Por vezes o assalto é tão repentino que não
há tempo de preparar na criança o espírito da donzela.
Namorada de si mesma, no deslumbramento da mocidade, ela afigurasse-nos então
frívola e perigosa. Receia a gente pelo futuro da pobre criança,
estonteada pela vida como uma mariposa pela luz. Quanto mais melindrosa é
essa quadra, quanto mais vagares tem a imaginação, alvoroçada
pelos sentidos, de arquitetar castelos mentirosos! Felizes as donzelas pobres,
obrigadas pelas circunstâncias apertadas da vida a empregar a sua inteligência
e a sua atividade no trabalho e no estudo! São as mocinhas que, para
irem às aulas que freqüentam, engomam as suas saias ou cosem as
suas blusas, as mais habilitadas para a resistência das paixões
ruins. Decididamente, o trabalho é o melhor saneador de almas! E nós
precisamos da nossa muito sã, porque só a virtude da mulher
pode salvar os homens, seus filhos e seus irmãos, no descalabro das
sociedades arruinadas ou em deliqüescência… A nossa força
está na nossa bondade e no nosso critério, coisas que, quando
não são naturais, fazem-se pela vontade.

Nós, as brasileiras, perdemo-nos pelo excesso de sentimento. Ainda
não aprendemos a dominar o nosso coração, que se dá
em demasia, sem colher por isso grandes resultados…

O europeu, tratado com rigor pela mãe, não tem por ela menos
respeito (talvez tenha mais!) nem menos carinhos que os nossos filhos têm
por nós… que nos desfazemos por eles em sacrifícios e ternuras!
Parece que a blandície perene enfraquece a alma do indivíduo,
tornando-o um pouco indiferente…

Há muito quem afirme que no Brasil a mulher domina como soberana; e
já um escritor português disse dela, relatando as suas observações
em um livro de viagem:

"… A mulher deve ser, entre esta raça, superior a todas as
coisas. Vê-la passar na rua e compreender a comoção que
ela causa é ter reconhecido todo o alcance do seu prestígio.
Inspira devoção, tem um culto. Não é mulher companheira
do homem, sua irmã de trabalhos e de penas; é a mulher ídolo,
a mulher sacrário. Mãe, filha, esposa ou cortesã, ela
será neste país e para este povo a suprema instigadora, e a
sua vontade, como o seu capricho, terão o cunho autêntico de
leis, assim no lar como nas alcovas. Será ela quem predomine e da sua
boa ou má influência dependerá, talvez, o destino histórico
desta nacionalidade."

É possível que assim seja de futuro, visto que a brasileira
de hoje tem mais ampla noção da vida; a lição
passado, porém, desgraçadamente, é outra.

A verdade, que deve aparecer aqui, é que nos acontecimentos culminantes
da nossa história, aqueles que nos fatos da nacionalidade brasileira
iniciam períodos de renovação e de progresso – a independência,
a abolição, a república – a intervenção
da mulher, direta ou indiretamente considerada, quando não foi nula
foi hostil.

Entretanto, estes fatos, para só falar dos príncipes, tiveram
todos longa, persistente, tenacíssima propaganda, e realizaram-se sem
a mulher ou… apesar da mulher!

A sinceridade deste livro, exige este desabafo doloroso.

Cartas

"Minha querida.

Escrevo-te à noite, com a minha vaidade de dona de casa completamente
satisfeita. Vou dizer-te por quê.

Há tempos, entre as minhas fantasias de menagère figurou a
de mandar fazer um chemin de table de arame, que eu cobriria de flores naturais
para a minha mesa de jantar. Ideada a história, fez-se o desenho, e
no dia seguinte atirei-me para a Casa Flora, a indagar se aquilo seria coisa
de fácil execução.

Não era; o dono da loja mesmo louvou a idéia, mas duvidou do
êxito. Lá deixei o meu desenho e voltei desconsolada. Passadas
algumas semanas, quando eu já nem me lembrava de ter pensado um dia
num chemin de table de arame, eis que ele me entrou pela porta a dentro. Era
tal e qual um esqueleto, bem descarnado e extravagante. Franziu-me a boca
o clássico muxoxo da decepção. Senhor! como é
fácil à gente imaginar coisas bonitas, mas como é difícil
executá-las! Não valerá muito mais deixá-las para
sempre em sonho? Sim, mais valeria; mas, já agora, seria preciso cobrir
aquela nudez fria, cinzenta e desenxabida do arame, todo contorcido em voltas
e reviravoltas, e disfarçá-la sob um delicado manto de avencas
e de jasmins.

Pois nem jasmins nem avencas. Sé encontrei nessa tarde hastes de hera
e de silvina, cujo verde sombrio alegrei a espaços com rosas e margaridas.
O efeito não era positivamente encantador; registrei mais uma desilusão
na vida, e no dia seguinte mandei atirar com a causa dela para o fundo do
quarto das malas e badulaques.

Pendurado rente à parede, mais o desgraçado me fazia lembrar,
de novo despido da folhagem, a ossada de um peixe enorme e esquisitíssimo.

C’est de l’art nouveau! Tinha-me dito o dono da Casa Flora, ao observar o
desenho que eu lhe levara, com um ar de lisonjeiro agrado. Pois sim! estava
fresco o novo estilo! Naquele eriçamento das duras folhas de hera ficara
tão bem disfarçado que ninguém o percebera, e um amigo
mesmo zombara, com a sua fina graça, do meu amor às novidades
e do meu gosto pelas invenções…

Pois, minha adorada, fiquei com pena de que oito dias depois esse senhor
não tivesse voltado a jantar comigo, não já só
pelo prazer que a sua companhia me proporcionaria, como porque, dessa vez,
o meu invento não fez triste figura, antes pelo contrário…

E por ter dado à minha mesa modesta um encanto singular, determinei
revelar-te a maneira porque, querendo, te poderás servir com segurança
dessa espécie de adorno.

Por ser teimosa, e não desistir, logo à primeira dificuldade,
das intenções que tenho, mandei arriar da parede o tal aparelho
de arame (que deve ser feito segundo o gosto da dona da casa e o tamanho da
mesa) e com paciência (que é de todas as obrigações
que me imponho a mais terrível de cumprir) comecei a cobrir o arame
do chemin de table com uma flor delicada, cujas pétalas de seda e de
arminho parece terem-se reunido por um sopro de brisa. Esta florinha tem o
nome harmonioso de – Rodanthe.

Umas são brancas, de uma brancura pálida de edelweiss, e outras
de um róseo desmaiado e doce.

Vitória! vestido por elas, o desengraçadíssimo chemin
de table, desenhou sobre a toalha, em finas hastes ondeadas, uma renda de
flores delicadíssima.

Para dar-lhe mais vida e quebrar-lhe a uniformidade, coloquei, em uma volta
da moldura, à cabeceira, um ramo leve de orquídeas sulferinas
e de, à falta de crisântemos, margaridas cor de ouro. Flores
sem aroma, como convém para a mesa. O efeito dessa ornamentação
pareceu-me lindo e é por isso que t’o comunico; encantador, e foi por
isso que o aproveitei para assunto desta página…. doméstica.
O egoísmo tem a sua razão de ser em outra ordem de sentimentos;
nestas pequeninas vaidades de menagère parece-me, além de mau,
soberanamente tolo.

O meu interesse, por exemplo, não é tornar a minha pobre casa
melhor que a do meu vizinho, que é rico e que tem bom gosto; mas sim
torná-la tão boa quanto está nas minhas posses fazê-lo.
Assim, quando nesse esforço consigo alguma coisa que corresponda ou
ultrapasse a minha expectativa, apresso-me em comunicá-la às
amigas, para seu regalo e seu uso.

"Não é o temor do inferno o que me há de levar
ao céu" – disse o padre Antônio Vieira em uma das suas cartas,
não me lembra agora a quem.

Eu afirmo o mesmo, deixando à tua perspicácia adivinhar em
que se funda a minha esperança de gozo eterno.

Outra que bem merecem a bem-aventurança, és tu, pelas receitinhas
de bolos que me mandaste…

Um observador maligno disse-me um dia que quem prestar o ouvido ao cochichar
de duas brasileiras ouvirá falar de amor ou de receitas culinárias.

O dito não me incomodou, e fiz-lhe mesmo notar que, ainda é
por amor que tamanha atenção prestamos à mesa.

Não me lembro quem disse que um homem tudo perdoa, menos um mau jantar!

E repara que os homens são muito mais exigentes do que nós.
Fico tonta…

Variar! variar é bom de dizer. Há cerca de uns três dias
apeteceu-me comer perdiz. A minha cozinheira sacudiu a sua moleza por essas
ruas e voltou para casa como saíra: com as mãos a abanar. Nenhuma
perdizinha para a minha salvação. Disse-lhe eu então
que me enganasse com uma galinhola, o que ela fez assaz regularmente, mas
que eu mastiguei com tão pouca convicção, que me não
soube ao que pretendia!

Por estar enfronhada nestes embaraços domésticos é que
me rejubilo sempre que topo com uma novidade útil, e logo me expando
em descrevê-la às outras. Há ainda um motivo para esta
tagarelice: é ter um pretexto de te falar em flores.

Estas tais rodanthes, pequeninas e sedosas, são tão leves e
de tão bom auxílio para qualquer espécie de ornamento,
que devemos saudar o seu aparecimento no Rio com algumas palavras de simpatia.
Não saudamos também a crysanthème e o muguet? Esta agora,
pela sonoridade do nome, parece ressuscitada dos famosos tempos da cavalaria.
Deveria ser de rodanthes o ramo oferecido por D. Quixote à sua Dulcinéa.

Exatamente no momento em que escrevo, sorri na minha mesa de trabalho um
galho vermelho de umas flores do mato, cujo nome ainda ignoro. É tal
qual uma haste de coral, onde uma legião de avezinhas minúsculas,
de um vermelho ainda mais intenso, tivessem pousado com as azinhas de veludo
suspensas para o vôo.

Que divinas surpresas nos reservam as nossas florestas, tão pouco
exploradas na curiosidade da flor. Entretanto, nossas ou estrangeiras (filha,
flor não tem pátria!) aclimemo-las aqui com o maior carinho.
Olha, um dia destes, um amigo do Pará afirmou-nos ter obtido no seu
jardim, em Belém, camélias perfeitas, de uma alvura azulada.
Não será mais milagrosa essa maravilha, uma flor do frio desabrochando,
impassível, numa atmosfera de fogo?

Adeus, querida!

Tua, JULIETTA

Em Guarda

Quando, ao cair da noite, a mãe senta nos joelhos o filho amado e
o interroga sobre os feitos do seu dia, para censurá-lo ou aplaudi-lo,
como é feliz quando tem, para fortalecer a sua consciência, a
contar-lhe um fato heróico ou um sentimento sublime, documentados por
uma simples notícia de jornal ou uma audição de acaso!
A sua alma profética adivinha que coisa alguma comoverá mais
profunda e utilmente o seu rapazinho do que o saber que no seu tempo, na sua
cidade mesmo, à hora em que ele brincava com o seu pião, ou
escrevia os seus temas, ou dormia regaladamente o seu sono, havia um homem
da mesma raça, da mesma língua, seu semelhante em tudo, que
arriscava a sua vida para salvar a vida de um estranho, escalando janelas
incendiadas, atirando-se às ondas impetuosas, atrevendo-se, enfim,
aos perigos de uma morte horrível e quase inevitável!

São as melhores páginas para a alma, estas páginas vivas,
ainda quentes do calor do sangue, ou empapadas pela inundação
das lágrimas. Percebendo isso, não há mãe que
se não comova, quando, relatando-as ao filho, vê nas transparentes
pupilas dele despontar e dilatar-se a flor dourada da generosidade e do entusiasmo
precoce.

Sei que, ao contrário de tudo que é regido pelas leis naturais,
os heróis do passado, vistos através a distância dos tempos,
em vez de diminuírem crescem de estatura; mas a verdade também
é que essa lente mágica, agiganta-os até ao ponto de
os tornar como deuses, mais fáceis de admirar que de imitar.

O conhecimento dos grandes homens da antiguidade serve para a cultura do
espírito, mas não sei se terá o mesmo proveito para a
do sentimento.

Eles permanecem imóveis no seu tempo, em um meio que foge à
nossa perspicácia e em que se destacam como entes sobre-humanos para
o culto das gerações sucessivas. As crianças, lendo ou
ouvindo as suas façanhas, têm uma certa desconfiança da
sua autenticidade, ou o pressentimento de que nos tempos modernos elas seriam
absolutamente impossíveis.

De resto, o que está nas crônicas e nos livros pode ser ficção.
Quem viu? Quem relatou? homens que talvez tivessem mentido ou simplesmente
exagerado, e que dormem há muito o frio sono em túmulos dispersos
e ignorados.

Agora o que não é mentira, o que parece feito da carne quente
e não das cinzas frias, é um caso de altruísmo que o
nosso jornal nos contou esta manhã, com um comentário banal,
na frivolidade apressada de quem vê tudo do alto e quer seguir para
diante, em desempenho de outras atribuições. Este caso, passado
entre nós, atestado por pessoas nossas conhecidas, ainda tem uma palpitação
de vida e pode reproduzir-se nesta mesma hora, daqui a pouco, ou amanhã….

Que belo partido tiram as mães inteligentes dessas lições
do acaso! As vezes o fato parece tão insignificante que se some em
um canto do periódico, sem atrair a atenção de ninguém,
tal qual como uma mulher desconhecida e feia se some numa esquina. Passou,
viram-na, mas não houve quem lhe tirasse o chapéu ou sequer
a acompanhasse com a vista.

Por mais que bramem contra o egoísmo e a maldade destes tempos, olhem
que há por aí muitos exemplos de abnegação e de
bondade dignos de toda a nossa reverência. Lendo-os, na maior parte
das vezes, levantamos os ombros, não fazemos caso.

É que a notícia, feita sobre o joelho, vinha mal enroupada,
com falta do estilo que seduz e obriga à comoção. Refletindo,
porém, um bocadinho, a educadora perspicaz pesca, no lodo que as seções
policiais revolvem, pérolas de inapreciável valor! O resto depende
da habilidade dos seus dedos, quando as mostrem à clara luz para fazê-las
admirar.

Há quem proíba a meninas e rapazinhos a leitura dos jornais.
Por mim não me parece que haja nisso bom senso. O jornal é toda
a alma da cidade, com os seus vícios, as suas misérias e as
suas glórias, que fazem tremer de horror ou de entusiasmo, e que, melhor
que todos os livros de filosofia, ensina a conhecer o coração
de um povo.

Que descortinará o jornal mais indiscretamente do que descortina a
rua, onde a mocinha, incitada à faceirice por elogios sem termos, entrevê
os graves amigos do papai conversando com as cocottes, sentindo nas faces
puras o bafejo de todas as tentações, desde as do luxo das vitrines
até as do jogo, em bilhetes de loteria que flutuam diante dos seus
olhos, sacudidos por mãos teimosas e impertinentes?

Ah, o jogo! Por toda a parte se alastra a mania das rifas e das loterias;
algumas casas mesmo do comércio especulam com a sua sedução.
Há já sapatarias, alfaiatarias, casas de papel ou de jóias,
que oferecem coupons sujeitos a uma fortuna de acaso, que habilita uma pessoa
a alcançar, de graça, um terno novo, um par de botinas, ou meia
dúzia de lápis. Ora, estes coupons e bilhetinhos de azar entram
pelas portas e pelas janelas, como que trazidos pelo vento, e são sempre
as mãos curiosas dos rapazinhos que primeiro os agarram, os reviram
e os estudam!

Parece nada? pois nessa insinuação manhosa de economia caseira
está uma terrível ameaça de ruína.

Sei que há algumas mulheres que, sem cogitar em que o germe de uma
grande chaga é quase sempre um átomo invisível, acoroçoam
os filhos a espalhar entre os colegas de escola cartões em que flutuam
promessas, que, quando se cumprem pervertem, e quando se não cumprem
desesperam.

Uma vez, descia eu a praia de Botafogo, ao calor brando de um dia sem sol,
quando ouvi, com o frou-frou de uma saia de seda, a voz de um menino dizer
a uma moça que ia ao seu lado:

– Olhe, mamãe, já passei cinco coupons da chapelaria e ainda
não tirei nenhum chapéu.

Aquele lamento, respondeu ela, com a sua linda voz bem timbrada:

– Continua, que há de chegar a tua vez

Passaram ligeiros, ela arrepanhando a sua linda saia de seda cor de gravanço,
ele impertigado na sua farda de colegial. Ficou um rastro de aroma no ar…

Estremeci. Mãe e filho! ele queixava-se da má sorte do jogo,
ela incitava-o a continuar.

Então, não é verdade que a rua tem revelações
extraordinárias, confidências imprevistas e absurdas?

Em quatro palavras apanhadas no ar, vi toda nua a alma daquela mulher perfumada
e ligeira, que já se sumia na primeira esquina, sob a umbela rendada
e rósea do guarda-sol, que era como uma flor de que ela fosse a haste…

Ora, se aos filhos dos ricos, que têm meias finas e roupas caras, interessa
o bafejo da sorte que lhes conceda um chapéu vulgaríssimo ou
umas botinas ordinárias, imagine que anseios de coração
terão os seus colegas pobres, para quem esse chapéu representaria
um luxo a que estão pouco acostumados!

Com igual razão, se a mãe rica condescende com um: – continua
-, a mãe pobre, sabendo que o filho tem no bolso papéis que
o habilitem a ter, sem gastar um vintém, um terno novo, uma carteira
ou um relógio de ouro, suplicar-lhe-á que se avie na aquisição
ainda de outros bilhetes, tanto mais que a flanela do seu casaco já
está puída, ameaçando fim próximo.

Oh! estes terríveis papeizinhos que o vento espalha pela cidade e
faz entrar pelas janelas e portas das casas de família onde há
rapazes, como se para mão ensinamento e perdição deles
não fosse de sobra a rua, onde,

du soir au matin, roule le grand peut-étre,
Le hasard, noir flambeau de ces siécles d’ennui.

como disse o adorável Musset!

Quantas e quantas vezes, o próprio chefe da família se gaba
distraída e imprudentemente, diante dos seus filhos, de ter ganho nesta
ou naquela espécie de jogo! No que ele não repara, arrastado
pela sua influência, é como as crianças arregalam os olhos
de espanto, seduzidas por aquele triunfo que ainda desconhecem, mas cuja meia
percepção os enleia e os atrai.

O trabalho que as mães têm, para destruir pela raiz aquele desejo
de imitação, que tão depressa nasce e se avigora, é
tremendo! A luta é surda, feita minuto a minuto, com uma vigilância
extenuadora, visto que o inimigo as cerca de todos os lados. Mas também,
quando a noite o sono e o cansaço cerram as pálpebras dos filhos,
e elas se acercam dos seus leitos, sentem que a sua mão que abençoa
procura em um esforço, talvez vão mas sempre puro e bem intencionado,
levar aquelas almas para um largo futuro de paz e de ventura.

Por Quê ?

Matou-se, por quê? O amor, esse eterno revolucionário, encheu-lhe
o coração com o seu amargo licor de dúvidas e de desenganos?

Não…

A miséria bateu-lhe à porta, mostrando-lhe os membros nus,
o colo murcho e sugado, as roupas em farrapos imundos e o rosto desconsolado?
Foi essa visão que a fez varar o corpo com uma bala de garrucha?

Não…

Teve ciúmes do esposo, medo de que a sua beleza fosse suplantada pela
de outra mulher, e que o seu espírito e a sua bondade, mais o seu amor,
não bastassem para prender toda a atenção daquele a quem
se dedicava de corpo e alma?

N&aatilde;o.

Perderia algum ente amado, um filho, por exemplo, em quem depositasse todas
as floridas esperanças de melhor futuro, e de quem as saudades fossem
tamanhas que lhe tornassem insuportável a existência?

Não.

Teria sido atingida por uma dessas moléstias incuráveis e nauseantes,
que todos os extremos justificam?

Não.

Adultério?

Não.

Loucura?

Não.

Que hipótese formular então que explique o motivo por quê
uma senhora honesta, casada, em boa paz com o marido, mãe de uma única
filha, pega em uma arma carregada e manda com uma bala a sua pobre alma ao
inferno (que é o lugar em que se purgam tais pecados negros), para
os martírios do fogo e as águas enlodadas e amargosas do Acheronte?

Por quê? Se não adivinhais é que não sois donas
de casa, e se o não sabeis é porque não lestes, ou ouvistes
ler, num grande jornal do Rio, uma notícia simples, sem comentários,
do suicídio de uma senhora, a qual notícia dizia assim:

"No lugar denominado – Areal – do município de Itaguaí,
suicidou-se D. Amanda Augusta Fernandes, esposa do cidadão Júlio
Augusto Fernandes. A arma de que se serviu a inditosa senhora foi uma garrucha
de dois canos e a bala atravessou o pulmão, saindo pelas costas.

"A autoridade policial tomou conhecimento do fato, encontrando próximo
do cadáver um bilhete concebido nos seguintes termos:

"Morro porque não posso suportar empregados. O meu maior desgosto
é morrer sem ver meu marido e minha filha. Só peço perdão
para esta que não devia ter vindo ao mundo." Não estava
assinada, mas foi reconhecida a letra como a do próprio punho da suicida.

Que o exemplo não tenha imitadoras. Este triste desfecho, ai de nós!
faz rir. E o ridículo na morte é a coisa mais lúgubre
e mais terrível que até aqui tenho visto.

Ah, no Brasil as criadas fariam tremer de raiva as próprias santas
de cera, se com elas tivessem de lidar; mas nem assim se compreende o desatino
dessa infeliz criatura, cuja paciência arrebentou, à forca de
esticada. Mas arrebentou por mau lado, a sua cólera deveria explodir
por outro modo menos ruinoso…

Não seria de mulheres este livro, donas e donzelas, se não
houvesse nele um cantinho para falar das criadas… E a pobre suicida oferece-nos
um ensejo magnífico para tal fim. Eu sou das que têm mais pena
e mais simpatia pela gente de serviço, do que ressentimento ou queixa,
na convicção de que nem sempre servir seja mais agradável
do que ser servida… Todavia não posso deixar de sorrir, ouvindo uma
amiga, que, lendo sobre o meu ombro as palavras que escrevo, exclama atrapalhando-me:
"Pena? simpatia?! não és sincera! aqui ter uma criada é
fazer jus a um cantinho do céu; ter duas, a um lugar nos degraus do
trono em que fiquem, com o eterno sorriso, os eleitos entre os eleitos.

A dona de casa no Brasil é a mártir mais digna de comiseração
entre todas as citadas pela história. Viver embaixo das mesmas telhas
com uma inimiga que faz tudo o que pode para atormentar as nossas horas, pagar-lhe
os serviços e ainda fazê-los de parceria, assumindo a responsabilidade
dos maus jantares que ela faz e da maneira desleixada por que arrasta a vassoura
pela casa; ordenar e ser desobedecida; pedir e obter más respostas;
falar com doçura e ouvir resmungar com aspereza; advertir com justiça
e ouvir responder com agressão e brutalidade; recomendar limpeza, economia,
ordem e calma, e ver só desperdícios, porcaria, desordem e violência,
confesso que é coisa de fazer abalar em vibrações dolorosas
os nervos os mais modestos, mais tranqüilos e mais saudavelmente pacatos
do mundo!

Na Europa não é preciso que uma família tenha fortuna
para receber em sua casa meia dúzia de amigos sem receio de que os
copos venham pouco cristalinos à sala ou que a sopa esteja desenxabida,
caso dona do ménage não vá à copa ver os cristais
ou à cozinha cheirar as panelas…

Aqui, a coisa chega a ser cômica, mas de um cômico que obriga
à careta em que não entra a simpatia do riso. Dirás:
mas hoje as nossas criadas vêm de lá! Parece-me que sim; mas
julgo que só emigram das aldeias esfomeadas e de povoações
do interior bandos de criaturas só habituadas ao plantio das vinhas
ou à colheita do trigo.

As das cidades, já desbastadas da crosta nativa e mais ou menos educadas
essas deixam se ficar gozando nos poucos intervalos da sua vida trabalhosa,
os gozos das capitais. Porque lá da se esta anomalia: Quem trabalha
não é a dona da casa, é a criada!

A praga chegou até ao lugar do Areal, e com tamanha fúria que
a pobre da D. Amanda, a quem atiras o teu punhadinho de ironias, apesar de
esposa afetuosa e mãe apaixonada, preferiu um tiro de garrucha a suportar
por mais tempo os seus criados!

Não cuides tu que se rirão dessa morte desesperada e que não
haja por aí muita gente boa que, revoltada pela estupidez, ignorância,
preguiça ou má vontade dos fâmulos, não tenha muitas
vezes desejo de fugir desta vida para a outra, onde não seja preciso
comer feijão queimado, absolutamente cru, e onde o furto e a incúria
não tenham o mesmo impudor nem os mesmos assomos.

A sombra de D. Amanda, que a estas horas se recosta, plácida e aliviada
das penas da Terra, a uma borda da barca de Charonte, sairá contente,
porque foi compreendida!

Como o morrer é fácil para algumas pessoas!

Formalidades

As formalidades mundanas transformam-se com a moda, pouco mais ou menos como
os vestidos.

Uma pessoa rigorista não pode estar tranqüila.

A maneira de calçar a luva, tirar o chapéu, dobrar uma carta,
fazer um convite, receber uma visita, comer a uma mesa, ir a um enterro ou
a uma festa, andar, sorrir, etc., varia como as estações!

Nestes cuidados, aparentemente fúteis, existe um trabalho complicadíssimo,
porque enfim, mudar de hábitos de ano em ano sempre é mais difícil
do que mudar de gravata todos os dias.

Que dolorosas raivinhas sentirá uma criatura, mesmo bondosa e plácida,
mas com apuros de exterioridade, ao verificar que pôs um selo num sobrescrito
no lugar designado pela moda antiga ou que dobrou a ponta do bilhete de visita
à moda antiga, ou que distraidamente apertou a mão de alguém
na rua à moda antiga!

É para enlouquecer… Não digo que se não acatem com
afã certas modificações; apraz-me comer os espargos à
moderna, com garfo e faca, o que desobriga de sujar os dedos e fazer uma ginástica
de cabeça por vezes embaraçosa; mas aceitar todas as reformas
de etiquetas e costumes, parece-me excesso de fantasia, que pode acarretar
prejuízos…

Estas minúcias delicadas são as meias tintas, que fazem realçar
a educação do indivíduo; para que elas sejam naturais
devem ser cultivadas desde a infância, nesse uso que as faz parecer
uma segunda natureza. O doce preceito antigo de que o que se aprende no berço
dura até à morte, fica abalado com esse contínuo fazer
e desmanchar de regras com que as civilizações se entretêm.
O que era lindo e correto há alguns anos passou a ser caricato à
vista da moda tirânica dos dias que vão passando.

Têm razão os velhos em sorrir, com benigno escárnio,
das alucinações desta mocidade trêfega.

No seu tempo os costumes eram de uma cortesia mais repinicada, mas muito
mais igual.

A arte de bem viver na sociedade aprendia-se de uma vez só e ficava
para o uso da vida inteira. Aqueles hábitos amaneirados impregnavam-se
nas pessoas como um perfume na pele e passavam por isso a ser – essência
própria.

Hoje os hábitos são movediços como as turbas. Tão
depressa é de praxe que seja o homem o primeiro a cumprimentar uma
senhora, como é o uma senhora cumprimentar primeiramente um homem;
ora estabelecem que devem ser as damas idosas que ofereçam a face para
o beijo das novas, ora que sejam as novas que entreguem a face para o beijo
das velhas, etc..

Para quem não estiver bem firme na maneira por que se deve conduzir,
estes renovamentos só podem criar indecisões e aflição.

Este embaraço não é só nosso.

Na velha sociedade da França, civilizada e primorosa, ainda é
preciso que de vez em quando surja um livro ensinando regras, o que e indispensável,
visto as transformações, ou se espalhem artigos em revistas
e jornais, cheios de preceitos de civilidade.

É sempre com uma solenidade dogmática que esses autores ensinam
a comer ameixas em calda, disfarçando a queda dos caroços no
prato: a chupar uvas sem engolir as grainhas; a pedir a mão de uma
moça; a por o pé no estribo, a descer do carro, a pegar na aba
do chapéu para um cumprimento e até a apertar a mão dos
amigos!

Este ato tão simples de polidez e de simpatia é motivo grave
de preocupações. O gesto expressivo de se estender a mão
aos outros, com naturalidade, pode, na opinião dos formalistas, ser
tão ridículo como uma cartola velha num sujeito elegante, ou
uns óculos de tartaruga num rostinho de quinze anos… Assim, ora decretam
que se levante o cotovelo até à altura da orelha, que o pulso
penda com moleza e que seja nessa atitude de animal de feira, que as mãos
amigas se encontrem, num simples roçar de dedos, ora que seja o aperto
de mão à altura do queixo, acoimando de brutal o shake-hands,
com que as mãos fortes esmagam as mãozinhas moles e débeis.

Usos, costumes e convenções surgem todos os dias no código
mundano, como cogumelos na terra úmida. É prudente não
aceitar todos sem exame. Há cogumelos que matam, há convenções
risíveis. O ridículo destas, eqüivale ao veneno daqueles…

Para a Morte !

Dizem que não há na mesma árvore duas folhas iguais
e que as próprias flores, bem comparadas, divergem entre si, ou na
forma, ou no colorido, ou no aroma.

É uma diferença quase imperceptível e só apreendida
pela vista e o olfato argutos de um botânico estudioso e observador.

Quer isto dizer que no fundo da sua natureza misteriosa, a própria
planta tem também os seus desacordos impenetráveis…

Como as folhas da mesma árvore, irmãs! somos todas dissemelhantes,
e como as folhas somos levadas ou pela aragem doce que nos atira para a veludosa
alfombra aos pés da própria árvore; ou pela lufada do
temporal, que nos impele para a terra em torvelinho ou para as águas
torrenciais!

Que culpa temos nós de ficarmos aqui ou irmos para além, se
somos levadas pelo vento?

Nos tempos antigos, a mulher era calma, submissa, pacífica e retraída;
mas seria tudo isso por ter mais bom senso, mais felicidade e menos ambição?
Não me parece. O motivo devia ser outro; o motivo devia de estar na
atmosfera que a envolvia e em que não existia nenhum elemento agitador.
Não somos nós que mudamos os dias, são os dias que nos
mudam a nós.

Tudo se transforma, tudo acaba, tudo recomeça, criado pelo mesmo princípio,
destinado para o mesmo fim. Nascemos, morremos e no intervalo de uma e outra
ação, vivemos a vida que o nosso tempo nos impõe.

O que ele impõe hodiernamente à mulher é o desprendimento
dos preconceitos, a meta, sempre dolorosa pela existência, o assalto
às culminâncias em que os homens dominam e de onde a repelem.

Mas, seja qual for a guerra que lhe façam, o feminismo vencerá,
por que não nasceu da vaidade, mas da necessidade que obriga a triunfar.

A vida é cada vez mais exigente, absorve todas as aptidões;
quem a pode servir, serve-a, e com isso só se enobrece, porque o trabalho
nunca aviltou ninguém. Desde as classes inferiores, em que as mulheres
queimam as mãos nas barrelas e carregam fardos, ou passam noites dobradas
sobre as costuras. estragando os olhos e os pulmões, até às
professoras, as médicas, as negociantes, qual não terá
a consciência de sacrificar ao dever a sua alegria, o seu corpo, a sua
mocidade?

Eu só não posso reprimir um movimento de estupefação
diante da mulher que liga o seu nome a uma propaganda de extermínio
e de sangue. Quando há tempos li o de Emma Galdman, acusada de instigar
a morte de Mac Kinley senti uma revolta n’alma e a suspeita de que cometiam
uma injustiça. Se em vez desse, viesse no mesmo lugar um nome de homem
eu não vibraria ao mesmo estremecimento.

Não leio todos os dias notícias de mortes, de assassinatos
e de crimes com igual direito à minha compaixão? E tremo por
isso? E atordôo com ela os ouvidos do meu vizinho?

Absolutamente!

A intenção de Emma, de bem fazer às classes oprimidas
e de só abater os grandes para mais livremente fazer circular os pequenos;
a sua fé divina em um futuro de pacificação e de harmonia,
em que a fraternidade dos homens não seja uma palavra vã, toda
a generosidade do sonho em que ela afoga a sua alma de alucinada, não
lograram, ai de mim! convencer-me de que há desculpa para uma mulher
que só por via do mal procure fazer o bem.

Nem creio que ela o propagasse assim. O papel mais difícil é
e será sempre o da conciliação, e é esse que todas
as mulheres, mesmo as mais extremadas nos seus ideais, deveriam desempenhar.
O mundo está farto de sangue e de ódios, e à espera de
um bem, que tarda, e que o pacifique sem que para isso se amontoem cadáveres
nem se acrescente o número dos encarcerados.

Oh! se para o triunfo do sonho anarquista, os fanáticos não
quisessem a destruição; se a sua obra libertadora não
exigisse o dilúvio do sangue e a devastação das cidades,
como ele seria sedutor e desejado!

Como todas as revolucionárias, Emma esgotava-se em escritos e em conferências,
levando de terra em terra a chama da sua palavra incendiada; pregando as suas
doutrinas pelas cidades e vilas da União, perturbando os cérebros
espessos de operários, sujeitos, até ao dia nefasto de a ouvirem,
com maior ou menor resignação, às privações
da sua dura sorte. Entretanto, ela, querendo iluminá-los, plantava-lhes
n’alma o descontentamento e a dor. A infelicidade que se ignora, não
é infelicidade.

No dia em que foi executado o assassino de Mac Kinley alguma mulher o chorou
como mulher; e Emma sem consolar essa desconhecida, mãe, amante ou
irmã do homem que perdeu, sentiu naturalmente subir às suas
pupilas ressequidas pela febre das vigílias e do trabalho, uma lágrima
de inexprimível inquietação.

A sua alma de mulher pressentiu a outra mulher, aquela que não sabe
ser no mundo outra coisa, e que da vida só tem uma noção
– a do amor!

A escritora anarquista compreendeu que é bem espinhoso e duro o caminho
por onde ela busca a felicidade; mas acharia tarde para voltar, sentindo medo
do caminho percorrido. Assim, haja o que houver e sinta o que sentir, ela
continuará…

Continuará, lavada em lágrimas, ao sopro erradio do seu destino,
com a folha ao vento espalhando o seu aroma venenoso pelos caminhos das fábricas
e os carreadouros dos campos de lavoura. Ela continuará pregando e
profetizando um bem irrealizável.

Ela continuará, e outros correrão a ouvi-la, e morrerão
por cumprirem os seus mandamentos, e serão chorados por mulheres que
ainda não saibam ser outra coisa no mundo… e na face serena da terra
a inundação do sangue e das lágrimas não mudará
nunca a essência das coisas nem a dos seres!

Sim, a culpa é do tempo; é ele que obriga as mulheres a olharem
para a vida com uma atenção tão rude e tão penosa.
Sentem-se muito sós, precisam trabalhar, para elas e para as que nascem
delas, porque a onda da miséria cresce, e mesmo as que não se
afogam nela, sentem-lhe os respingos amargos e a sua sombra pavorosa.

Oh, certamente que não foi por mera e caprichosa fantasia que a mulher
se despojou das suas atribuições de ornamento para endurecer
a alma e calejar as mãos na lufa-lufa do trabalho angustioso e viril.

Elas protestam, porque vão para ele de rastos, obrigadas pela necessidade
urgente ou atraídas pela corrente que puxa as demais para a mesma voragem
dolorosa.

De resto, bem sabem que nessa lida perdem a formosura a que renunciam, não
sem tristeza, porque o enleio da formosura é sedutor, mas com altiva
resignação. Pois bem, que tudo se arruine e se perca no mundo,
menos a bondade da mulher, o seu acoroçoamento para o bem e as suas
expressões materiais e pacificadoras!

De que nos serve, febril Emma Galdman, aturdir-nos e criar-nos infinitas
visões de futuros impossíveis, se no fim de qualquer caminho
por onde o destino vário nos leve, vamos todos bater à mesma
porta negra?

Parte II

Folhas de uma Velha Carteira

Disse-me um dia um velho amigo:

– Há certos livros de educação e de higiene que acho
indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão
pelo amor o que os homens estragam por desídia.

Ponho nelas toda a minha esperança. Aos espíritos banais essas
leituras parecerão fastidiosas; mas de vemos crer que as mães,
empenhadas pela saúde e bem estar dos filhos, achem grande interesse
em folhear páginas sérias de educadores modernos. É um
erro pensar que, hoje, o ensino deve ser ministrado como há cinqüenta
anos e entregar os nossos rapazes aos nossos colégios atrofiadores.
Há tempos enviei um livro a minha filha : L’Education nouvelle, de
Edmond Demoulins. Pois os meus netos já lucraram alguma coisa com a
leitura da mãe. O livro é uma exposição claríssima
da Escola moderna, prática, que trata de aperfeiçoar ao mesmo
tempo o corpo e o espírito dos rapazes. "L’École doit developper
à la fois chez l’enfant la largeur de l’intelligence et la largeur
de la poitrine."

Minha filha leu esse livro com muito carinho, e, na impossibilidade de executar
em casa todo o programa do colégio, iniciou alguns dos seus exercícios
com proveito, graças à instrução que recebeu…
Os meus netos vivem no campo, onde têm bom teatro para os seus estudos
de história natural. Um deles freqüenta uma oficina de carpintaria,
o outro uma de ferreiro… A mãe preside às suas leituras, livros
escolhidos, na boa língua portuguesa, e ensina-lhes desenho e música.
O pai dá-lhes uma hora de matemáticas e geografia e contrataram
um professor francês para a língua francesa e um inglês
para a língua inglesa, obedecendo à ordem da Escola moderna
de que nunca uma língua deve ser ensinada senão pelos da sua
nacionalidade. Os pequenos nadam como peixes e correm como gamos. Não
têm as mãos acetinadas, está claro… imagine um ferreiro!
um marceneiro! Por enquanto não barafustaram pelos labirintos da gramática,
mas escrevem cartas muito limpas e já movem a lima e o malho com algum
desembaraço…

Intercalando os estudos clássicos com trabalhos materiais e ocupações
artísticas, eles vão-se tornando homens completos, tanto à
vontade num salão como em uma oficina… Em uma das suas cartas diz-me
a mãe:

"João e Luiz têm o andar firme e olham para toda a gente
de rosto, com a cabeça alta, já demonstrando consciência
de homens!"

E em outra carta:

"João está hoje trabalhando no jardim e Luiz na horta,
a meu mandado. As quintas e sábados vem um homem guiá-los nesse
serviço, depois da hora das oficinas. Cada qual me faz mais lindas
promessas; se dias se realizarem, ninguém terá nem tão
lindas rosas nem tão magníficos repolhos."

Ainda noutra carta:

"João tocou hoje a sua primeira sonatina para alguns amigos ouvirem,
e Luiz ofereceu ao mestre de inglês um desenho razoável. Embora
eu disfarce o meu entusiasmo, eles percebem que estou contente."

Esta mãe que assim cultiva nos filhos todas as boas qualidades de
corpo e de inteligência, a que deve essa satisfação? Ao
seu amor? Não só ao seu amor, pelo qual os filhos nada lhe devem,
porque todos os animais amam os filhos; mas a ter estudado como um homem ciências
naturais e línguas vivas. Ela sabe logo dia pode transmitir, e os seus
filhos são assim duplamente – suas criaturas.

Os russos, quando querem ser bons e simples, dizem coisas enternecedoras.
Aqui estão palavras de um romance russo:

"Repara no cavalo, esse grande animal, e no boi, o robusto trabalhador
que te alimenta: vê que fisionomias sonhadoras! que submissão,
que fina timidez! que devotamento por quem tantas vezes os castiga sem dó!
É enternecedor o pensarmos que tais entes são sem pecado, porque
tudo é perfeito, tudo é sem pecado, menos o homem."

Menos o homem; e para que este seja também puro quantas lágrimas
de arrependimento e de contrição terá que verter! Mas
para se ser perfeito não basta amar a humanidade; é preciso
que o nosso olhar abranja toda a natureza e confunda na sua harmonia, com
igual carinho, todos os seres que sofrem e que se submetem.

No meu bairro, às vezes tenho de encostar-me a um paredão da
estrada para deixar passar uma carroçada de pedras puxada por uma ou
duas juntas de bois. Eles vão cobertos de suor sob o peso da canga
num esforço valente e com ar humilde, e ainda o bruto do carroceiro
os espicaça com o seu pampilho! Na cara do homem não se lê
senão a fúria bestial da impaciência, enquanto que os
robustos trabalhadores, vergados e submissos, olham para a estrada adiante,
com uma expressão de bondade sonhadora…

Caminho então para casa, pensando que realmente nós tratamos
muito mal os animais. Só os vemos embaixo do trabalho pesado.

Nessas lindas tardes de setembro, em que vagavam no ar pipilos de aves e
penugens brancas de paineiras, porque não passaria pelas lindas estradas
de Santa Tereza uma ou outra amazona em cavalo bem tratado?

Passado o instante do elétrico os folhudos galhos das árvores
que se debruçam sobre as estradas nuas, só vem passar cavalos
magros, lanhados de chicote, ou os fortes bois submissos e sonhadores…

{{separador}]

Há na comédia Blanchette, de Brieux, uma frase que sintetiza,
com delicadeza e exatidão, o amor ufano com que as mulheres servem
a sua casa. São palavras simples, sem literatura, sempre as mais sinceras,
que nascem da alma e definem com clareza uma idéia ou um sentimento.

Lembram-se? Blanchette, deslocada em casa pela educação recebida
no colégio, abandonara o lar em uma rebentina, ouvindo as maldições
do pai a apontar-lhe a porta da rua com a mão nodosa de vendeiro avaro.
Blanchette, que se recusara a atar à cintura os atilhos do avental,
para servir os fregueses do pai, volta pela segunda vez ao ninho paterno,
mas agora como um cão batido, magra, morta de fome, coberta de humilhações.

Tivera de servir de criada para viver. O mundo ensinara-a.

Vendo-a, a mãe acolhe-a, aquecendo-a de encontro à sua carne
martirizada e submissa… O pai, teimoso, lá chega ao seu momento de
ceder e ela, enfim restituída à sua casa e à sua família,
exclama radiante:

– "Como é bom pôr a gente um avental em sua casa!"

E com que alegria os seus dedos ágeis amarram então na cintura
os atilhos do avental! É que os aventais que as patroas lá fora
lhe haviam atirado à cara tinham bem diversa significação.
A independência do nosso canto, a felicidade do sacrifício feito
pelo nosso lar e por os que amamos, estão bem dentro dessas palavras
que direis escritas por uma mulher, tão impregnadas estão de
sentimento feminino!

E aí está como um pedaço de pano incolor pode ter tão
alta significação moral…

O lenço desempenha na vida um papel bem variado!

Mesmo os lenços de luxo que com renda e tudo não medem mais
que uns vinte e cinco centímetros, mera futilidade incapaz de descer
às necessidades prosaicas, até esses têm o destino clemente
de enxugar lágrimas e disfarçar ironias.

Quando pertença a uma senhora, – que o do homem é obrigado
a um exercício ativo – o lenço branco, de meio metro quadrado,
paternalmente carinhoso nos defluxos e nas bronquites, não sai do recato
da gaveta, bem guardadinho para as urgências de ocasião, dobrado
em quatro entre sachets ou raízes de capim cheiroso.

No fundo da sua consciência (suponhamos que os lenços também
têm disso), eles sentirão a satisfação do dever
cumprido, tão apregoado pelos que o não cumprem, e esperarão
que os chamem ao serviço interino de um nariz precisado do seu socorro
e da sua abnegação.

Mesmo os lenços de chita, tão caricatos e nojosos, salvam-se
quando, bem lavadinhos, são postos em cruz sobre o peito farto de uma
camponesa bonita. Então não cheiram a tabaco; cheiram a trevo
e alecrim; não têm nódoas de rapé, têm a
sombra da cruz redentora ou dos bentinhos que a dona traz pendurados no pescoço;
não representam a torpeza de um vício que desmoraliza o nariz,
mas sim o recato que poetisa o seio.

De mais, são alegres com as suas cores turbulentas e ramagens vistosas,
que despertam a idéia de campos de papoulas, onde bata o sol.

Não sei precisar se são só de minha cabeça, ou
sugestão de alguma leitura fugitiva, estes reparos que por escrúpulo
vão entre aspas:

"É no lenço que nós impregnamos com mais intensidade
o nosso perfume favorito, a essência que faz parte da nossa individualidade
e nos denuncia ao olfato dos amigos. É o lenço que seca as nossas
lágrimas, que se mistura aos nossos sorrisos, que ajuda a mímica,
abafa os gemidos, dissimula a careta e guarda amarguras do coração:
triste pranto secreto e que ninguém adivinha. Recurso de aflições,
ele, impassível e mudo, deixa que o crispemos, que o mordamos, que
o estraçalhemos, nos movimentos de ódio e de despeito, quando
não possamos com a palavra repelir a má intenção
de um olhar ou de um gesto que ofenda! Vítima das nossas agonias, ele
é então o salvador da nossa dignidade.

É ainda o lenço que, comparticipando da expressão do
nosso sentimento, se agita no ar numa saudação de aplauso ou
na saudade de uma despedida.

Quem não viu, ao menos uma vez na vida, esse aceno branco, repetindo
em silêncio a palavra que já não pode ser ouvida? Onde
a voz já não chega, chega ainda o adeus do lenço, batendo-se
no ar como uma asa na agonia.

Imagine se a amada do poeta teria lido nunca estes versos:

Este teu lenço que eu possuo e aperto
De encontro ao peito quando durmo, creio
Que hei de um dia mandar-to, pois roubei-o
E foi meu crime em breve descoberto"

(Versos de um simples – Guimarães Passos)

se ela o não usasse e o não tivesse deixado roubar, já
naturalmente com o propósito, muito humano, de o reaver, quando

"Pando, enfunado, côncavo de beijos!"

Esse trapinho, que se embebe de lágrimas que secam, de beijos que
se não vêm, que fala nos apartamentos e nas aclamações,
que designa para o amor de um rei a mulher preferida, que abafa os soluços,
guia as pesquisas das cartomantes e das feiticeiras, dá sinais aos
namorados, protege os espirros e recende aos aromas mais capitosos: que é
muitas vezes cúmplice em intrigas, fingindo secar olhos enxutos e escondendo
caretas que desejem parecer sorrisos, tem ainda uma missão misericordiosa:
a de encobrir a face feia e fria dos cadáveres. E na hora extrema do
cadafalso, vendam-se com o lenço os olhos dos supliciados, para não
verem a morte!

Have you not sometimes seen a handkerchief Spoted with strawberries in your
wife’s hand?

Quantas vezes o notara Otelo; se era dádiva sua!

Pois foi com esse lencinho salpicado de morangos que o honesto Iago assanhou
no seu senhor o monstro de olhos verdes, o negregado ciúme, que fez
morrer a pálida Desdemona.

Na ação como na intriga os lenços representam muitas
vezes no teatro extraordinárias ficções!

São almas que se dilaceram entre os dedos apaixonados de Margarida,
ou os dentinhos terríveis de Frou-frou; são como pedacinhos
de pele amada de encontro aos lábios de Romeu e quando não exaltem
paixões nem enxuguem o suor da agonia, são ainda um magnifico
pretexto para que a mão desocupada vá e venha, cortando a monotonia
da inércia.

Quem inventou o lenço bordado e circundado de rendas foi a imperatriz
Josefina, que por ter maus dentes escondia com ele continuamente a boca. Graças
o essa cárie irreverente o lencinho fino tornou-se objeto de luxo e
entrou na atividade dos passeios, das procissões, dos minuetos, onde
ele era o sucedâneo do leque, dobrado em ponta entre os dedos carregadinhos
de anéis, de benjoim e de verbena. Era talvez a parte mais expressiva
da toilette, o seu complemento precioso, com o nome da dona sublinhado a rendas
caras.

Rendas…

Há no Brasil, em terras do norte, umas rendeiras cujos dedos conhecem
segredos de fadas. Rendas de lenços, fazem-nas tão bonitas e
tão finas que se nos afigura impossível terem sido tecidas por
gente inculta, sem noção de desenho.

Quando se lê o apreço que em certos países dão,
e agora mais que nunca, às rendas feitas à mão, e como
neles cultivam essa prenda delicada, agremiando camponesas, dando-lhes mestres,
fomentando uma indústria que é ao mesmo tempo uma arte, receia
a gente que as rendeiras do Norte, já velhinhas, deixem cair os bilros
dos dedos engelhados, sem que outras mãos, mais lépidas, os
apanhem para continuar a tarefa interrompida…

Íamos pela rua do Senador Furtado. O dia estava lindo, cheirava a murta.
Subitamente começamos a ouvir gemidos, arrancados de uma grande aflição.
Mais alguns metros, e vimos agachada numa soleira de portão, com o
busto caído sobre os joelhos pontudos, uma negra cadavérica,
que a tosse sacudia como o vento sacode um trapo. Sentindo gente, ela levantou
a cabeça, revirando os olhos pálidos para o céu iluminado.
A aragem brincava-lhe com um farrapo de xale, que dia franzia no peito com
as mãos magríssimas e amareladas. Paramos, e a voz dela explicou
entre uivos: – Foi o cock… foi carvão de cock que me matou!

As palavras, interrompidas pelas guinadas da tosse, repetiram a queixa no
mesmo estribilho recriminativo: – Foi o carvão de cock que me matou!

Veio gente de dentro. Levaram-na em braços.

Ouviram bem? O cock é um assassino de mulheres. Mata pelo excesso
de calor que desprende. Nunca me esquecerei daquela triste queixa irremediável…

Não é raro esbarrarmos na rua com uma menina, nessa idade indecisa,
como diz o mestre:

Que não é dia claro e é já alvorecer Entre-aberto
botão, entre-fechada rosa, Um pouco de menina e um pouco de mulher
.

(Falenas – Machado de Assis)

E a impressão que se sente é sempre agradável, se essa
criatura tem a condizer com o resto de meninice, que vai desaparecendo, e
o começo da mocidade, que vem apontando, uma graça ingênua
e um modo desartificioso de andar e de vestir-se.

Ah, mas quando, ela passa empapada de essências raras, de passo estudado
e muito espartilhada, com meneios grosseiros e rosto empoado, vem a quem a
olha um desejo absurdo de sacudir pelos ombros a mamãe inconsciente;
e de lhe gritar aos ouvidos que a doce criatura que o céu lhe confiou,
e cujos passos ela segue como má pastora, vai carregadinha de ridículo…

O artificio do pó de arroz é o véu benévolo para
os postos de quarenta anos. A pele moça não precisa disso. A
beleza das donzelas está na sua candura, na sua alegria natural, e
sobretudo na sua simplicidade…

Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois
dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado
de rugas, tive vontade de beijá-la.

A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária
junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que
lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono
e ouriços para o foguinho do inverno.

Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus;
e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis
que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo,
atalho para a vila, por onde o rapazio de uma aldeia próxima passava
para a escola.

A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou
os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.

Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem
vintém, se abalançassem a mandar os filhos todos os dias à
escola, com prejuízo do seu trabalho?

Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força
para mover a enxada ou guiar os bois… Com que duros sacrifícios a
mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!

Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta
anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria.
A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o
alimento e o agasalho?

Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte
ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola.

Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha;
outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela
condiscípula de rosto franzido e cabelo nevado.

No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha
aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que
vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava
ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias
com a sua própria letra.

As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas;
nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente…

De vez em quando noticiam os jornais: "… Perdeu-se uma criança…
Achou-se uma criança…"

E são sustos, lágrimas, aflições! Para prevenir
es confusões bastaria atar ao pescoço dos anjinhos na medalha
com seus nomes e moradas. Tal e qual como aos cãezinhos. Sim, porque
as pobres crianças com as suas línguas de trapos, tão
musicais e incompreensíveis, esforça-se em vão, muitas
vezes por explicar a um desconhecido, que as encontra chorosas na calçada,
de onde vêm ou para onde vão. Há só uma palavra
nítida no meio daquele embaralhado fuso de sílabas entrecortadas
de soluços: – mamãe! Querem a mamãe, cuja mão
deixaram sem saber como, nem onde, nem quando, olhando tontas para a direita
ou para a esquerda, sem noção do sítio, aflitas, trêmulas,
sondando com olhar ávido todas as portas, erguendo os queixinhos rosados
para todas as janelas.

Estas cenas, aliás freqüentes, sempre enternecem, e a cada pergunta
que um transeunte comovido faz, no sentido de auxiliar e bem conduzir a pobre
criaturinha, ouve sempre a mesma resposta – mamãe!…

– Em que rua mora? – Mamãe!

– Para onde ia? – Mamãe!…

– Como se chama ela, a sua mãe? Mamãe, mamãe, mamãe!

Por seu lado, a mãe volve à loja de onde saiu, julgando encontrar
o filhinho embasbacado diante da mesma boneca; já não o encontra,
sai trêmula, – que o não pise um carro! – e, enquanto alucinada
sobe para a direita, interrogando toda a gente, olhando como louca para todas
as lojas e todas as esquinas, ele desce para a esquerda, engrolando termos,
segurando-se a todas as saias, contemplando com avidez e susto todas as mulheres.

E nós, que nada vimos, comovemo-nos no dia seguinte ao ler nas gazetas:
"… Perdeu-se uma criança…"

Um dia encontrei em uma esquina o velho Dr. Serra, que, apesar dos seus setenta
anos, gosta de observar as moças que passam. Disse-me ele:

Estou convencido de que o simples movimento de levantar o vestido exige uma
graça muito particular. Há senhoras que erguem a saia de um
lado e vão com ela a rastos do outro, descrevendo uma linha diagonal,
como se caminhassem de esguelha. Outras, não levantam coisa nenhuma,
varrem as ruas com desassombro; outras, levantam demais o vestido, mostrando
as saias de baixo, que só devem ter o mérito de se deixar adivinhar:
outras, arrepanham as duas saias ao mesmo tempo, para mostrarem a toda gente
os tacões das botinas; e é raro ver-se uma que, reunindo as
pregas da saia à mesma distância da cintura, colha a fazenda
sem distrações nem indiscrições, deixando apenas
entrever o que se deve não mostrar. Eu já atinei com a arte.
A mão que segura o vestido não deve estar nem muito alta, nem
muito baixa, nem muito para diante, nem muito para trás; de maneira
que o braço caia naturalmente e não desenhe esses feios ângulos
agudos, que nos obrigam também a andar fazendo curvas. Realmente, as
senhoras do meu tempo…

Pedi ao meu amigo que olhasse para outro lado e aproveitei a ocasião
para fugir-lhe, não sem a preocupação de que ele se voltasse
e me visse os tacões, ou a saia de esguelha…

Os homens são terríveis!

Quiromancia

Uma bela tarde, a minha amiga Rafaela entrou arrebatadamente na minha saleta
de trabalho e deixou-se cair num tamborete, a meus pés.

– Que tens? perguntei-lhe assustada, percebendo-lhe o terror no rosto, ordinariamente
repousado.

Por única resposta ela estendeu-me a mão espaldada e nua, e
arregalou para mim os seus olhos claros, cor de violeta.

– Não percebo o teu gesto… roubaram-te o anel que ele te deu?…
Não abranges a oitava no piano e desistes de o estudar? Terás
reumatismo nos dedos ? Bem; se não queres responder, vai-te embora,
mas arranja primeiro o chapéu, que está torto, e modifica esse
ar de quem foge de alguém que o persegue na rua…

– Ninguém me seguiu na rua… o anel que ele me deu está na
outra mão…

E, como orvalho em violetas, borbulharam lágrimas nos olhos da pobre
Rafaela.

– Se pudesses explicar-te…

– Escuta venho da casa da Noêmia Saldanha; havia lá gente de
fora, uns homens de quem já não me lembro do nome e um certo
rapaz que lia nas mãos das senhoras a buena dicha, ou que melhor nome
tenha. Quando eu entrei, a Saldanha disse alto, com o seus guinchinhos de
macaca: "Olhem quem vem aí!" e puxou-me com violência
para a roda, que se abriu muito amável para me receber. O tal rapaz
continuou nos seus prognósticos, que faziam rir a todos. Lia na mão
da Sinhá Mendes coisas muito bonitas: que ela se haveria de casar com
um moço que a adora… que há de ir à Europa, que há
de ter três filhos gordos. mansos, fortes e bonitos; que herdará
uma grande fortuna de um parente afastado de quem não terá saudades;
que terá lindos vestidos, bons carros, assinaturas no lírico
e que morrerá de velha, sem sentir, de uma síncope…

Todos riam; a Sinhá estava radiante! Com aquele exemplo, eu fui insensivelmente
desabotoando a luva e estendendo também a minha mão.

O rapaz tornou-se sombrio, à proporção que a observava.
Como eu instasse para que dissesse a verdade, fosse ela qual fosse, ele, muito
constrangido, declarou tudo.

Disse que não me casarei, que terei bexigas, apesar vacinada duas
vezes, e que ficarei marcada como um crivo; disse que a minha família
me abandonará e que morrerei ainda moça, de um ataque, na rua!
Vida tão feia não merece melhor desfecho!

– Um ataque na rua! Que ignominia! Vê tu!

– E depois?

– Depois… que sou muito nervosa – e isto é verdade! – que tenho
uma grande paixão… também é certo… que tenho excelentes
qualidades de coração, o que não me impedirá de
morrer como um cão sem dono, na calçada…

– Que mais?

– Ainda querias mais?!

– Que respondeste?

– Fingi heroicidade, que é sempre o nosso costume mas sabe Deus o
que se passava cá dentro! Quando pude fugir, fugi. Os guinchos da Noêmia
perseguiam-me; a alegria da Sinhá irritava-me. A felicidade dos outros
agrava o nosso infortúnio. Só hoje compreendi isto. Por mais
que eu olhe para a mão, para estes caminhos que parecem traçados
na palma pela ponta finíssima de um alfinete e por onde marcham os
nossos instintos, os nossos segredos e até o nosso futuro se esclarece,
por mais que eu observe toda esta rede complicadíssima, não
consigo descobrir nada! Se ele se tivesse enganado?! Mas não; vi que
falou com toda a convicção, disse a verdade. Eu agora já
sei; abandono-me, aceito o meu destino, o meu feio destino de ser medonha,
não ser amada e morrer numa calçada, à vista de quem
passar na ocasião!

– Não vês, minha tontinha, que te meteram num enredo? Vou apostar
eu como o tal rapaz entende tanto de quiromancia como eu.

– Ah, a quiromancia é uma arte!

– E nas salas uma armadilha maliciosa à ingenuidade de certas moças…
Quando tiveres algum segredo que não queiras ver profanado, nem pela
mais leve suspeita, abotoa bem as tuas luvas ao entrar em certas salas. Entretanto,
fica certa de que não será nas linhas da mão que ele
se mostre todo, mas no rubor das tuas faces ou no pestanejar dos teus olhos,
que serão consultados à proporção que se faça
a leitura fatídica. Quanto ao resto, o rapaz, se não foi absolutamente
delicado, não deixou de ter uma pontinha de espírito. Sinhá
é feia, tu és bonita; ela roça pelos trinta anos, tu
ainda não tens vinte, ele quis igualar-vos momentaneamente, vestindo-te
de desapontamento e iluminando a outra de alegria. Na tua idade os segredos
são leves e fáceis de adivinhar; em todo caso guarda-os contigo,
ou só para a confidencia amiga. O recato do sentimento, fortifica-o
e enobrece-o. E o coração de uma donzela não se deve
devassar a todas as curiosidades… Ele é, como disse o poeta Vigny:
un vase sacré tout rempli de secrets.

Arte Culinária

Para saber comer, é preciso não ter fome. Quem tem fome não
saboreia, engole. Ora, desde que o enfarruscador ofício de temperar
panelas se enfeitou com o nome de arte culinária, temos uma certa obrigação
de cortesia para com ele. E concordemos que é uma arte pródiga
e fértil. Cada dia surge um pratinho novo com mil composições
extravagantes, que espantam as menagères pobres e deleitam os cozinheiros
da raça! Dão-se nomes literários, designações
delicadas, procuradas com esforço, para condizer com a raridade do
acepipe. Os temperos banais, das velhas cozinhas burguesas, vão-se
perdendo na sombra dos tempos. Falar em alhos, salsa, vinagre, cebola verde,
hortelã ou coentro, arrepia a cabeluda epiderme dos mestres dos fogões
atuais. Agora em todas as despensas devem brilhar rótulos estrangeiros
de conservas assassinas, e alcaparras, trutas, manteiga dinamarquesa (o toucinho
passou a ser ignominioso), vinho Madeira para adubo do filet, enfim tudo o
que houver de mais apurado, cheiroso e… caro!

As exigências crescem, ameaçam-nos e, sem paradoxo, somos comidos
pelo que comemos. Isto vem à propósito de uma exposição
de arte culinária que se fez, há pouco tempo, em Paris. Imaginem
como aquilo deve ser encantador e apetitoso!

Quem já viu as vitrines das charcuteries, das crémeries, das
confeitarias, etc., e que sabe com quanto mimo e elegância são
expostos os queijos, os paios e os pastéis, entre bouquets de lilases
e fofos caixões de papéis de seda bem combinados, crespos e
leves como plumas, imagina que de novidades graciosas se juntarão no
Palácio da Indústria.

Naturalmente, cada expositor é um arquiteto e um artista na combinação
das cores. Fazem-se castelos de biscoitos, torres engenhosas de chocolate,
de creme, de morangos, onde tremulem, em cristalizações policromas,
as gelatinas de frutas ou de aves, refletindo luzes entre lacinhos de fita
e flores frescas, porque o francês tem a preocupação gentilíssima
de deleitar sempre os olhos alheios.

Abençoada mania!

O que eu invejo não são as trutas, nem os champignons, nem
o seu foie-gras, porque tudo isso temos nós aqui e mais muitas coisas
que eles lá desconhecem. O que eu invejo é aquela facilidade,
aquela graça das exposições que se sucedem e se multiplicam
e que não podem deixar de ser úteis, porque abrem a curiosidade
e ensinam muito.

A cozinha francesa tem-se intrometido em toda a parte.

A Inglaterra opõe-lhe forte resistência com as suas batatas
cozidas e presunto cru; mas a nossa, por exemplo, está muito modificada
por ela. Entretanto, temos pratos característicos, só nossos
e que eu teimo em achar gostosos. Infelizmente falta-lhes o chic, o lado onde
se possa atar a tal fitinha ou colocar o bouquet de violetas do inverno ou
do muquet da primavera. O feijão preto com o respectivo e lutuoso acompanhamento
não se presta por certo para a coquetterie de um adorno mimoso, mas
nem por isso deixa de ser da primeira linha. Depois temos os pratos baianos,
o afamado vatapá e outros, quentes e lúbricos, e o churrasco
do Rio Grande, e o cuscuz de S. Paulo, e tantos que eu ignoro e que descobrem,
demonstram, por assim dizer, as tendências, o temperamento do povo.

Um país como o Brasil tão vasto e variado não teria
proporções mais curiosas para realizar uma exposição
neste gênero?

Só de frutas, que, tratando-se da mesa, tem todo o lugar, e de doces…
imaginem: faríamos um figurão! geralmente caluniam-se as frutas
brasileiras e parece-me tempo de lhes irmos dando a merecida importância.
Não há nenhum brasileiro que conheça todas as frutas
do seu país. O europeu desdenha-nos nesse sentido; esquece-se de que
em muitos lugares do Paraná, Minas e Rio Grande, desenvolvem-se pêras
magníficas, damascos, cerejas, nozes, etc. E as frutas e as hortaliças
indígenas? Inumeráveis! O que falta à nossa gourmandise
é poder agrupá-las, poder escolher, na mesma terra, estas ou
aquelas, e isso só se poderá fazer se houver aqui, algum dia,
como agora em Paris, quem dê importância à mesa, e procure,
por meio de exposições, facilitar esse ramo de comércio,
educar o povo, e dar-lhe um elemento novo de prazer e de saúde.

A exposição parisiense tem ainda um fito, e é a sua
principal recomendação e a mais elevada, – é o de ensinar,
por meio do exemplo, a cozinhar bem. Um dos seus cantos é ocupado por
M. Charles Driessens, que segundo leio, luta há dez anos com desesperada
energia para fazer entrar o ensino da cozinha no programa do Estado. Este
tal M. Driessens tem várias escolas de cozinha, e ali trabalham umas
cinqüenta discípulas, mostrando a toda a gente como se deve fazer
um creme, estender uma massa, temperar uma salada, grelhar um bife ou enfeitar
uns pezinhos de carneiro com papelotes e rosetas.

As senhoras não nasceram para falar em camarões, carne ou palmito,
em público; mas, senhores românticos, lembrai-vos de que nem
sempre nos bastam o brilho das estrelas nem o murmulho das ondas para conversar
com as amigas!

Amuletos

Foi numa das sextas-feiras da Matilde Abranches, que o seu médico,
rapaz aliás simpático, afirmou que os homens são maus
por culpa das mulheres…

Os dedos de Cecília desfolhavam as notas levíssimas de Ma barque
légère e a meu lado Lídia sorvia o aroma de um botão
de rosa. Bem comparado, fez-me lembrar um quadro ideal de Diana Cid; Lídia
também estava de azul, como a formosa do "Perfume".

– Por culpa das mulheres?! perguntou a voz empapada de uma mãe de
família, que tem por hábito tomar a sério todas as conversas.

– Como desde o princípio do mundo. Agora então a influência
da mulher é nefasta. A nossa sociedade cai rapidamente da sua modesta
franqueza, que a fazia encantadora, para um snobismo que a torna ridícula.
A preocupação do chic estraga tudo. As portas já se não
abrem como antigamente, e procuramos termos para as conversas mais simples!

Não há naturalidade nem há simplicidade. A virtude das
mulheres, que era para as nossas culpas, como um tronco profundamente enraizado
é para as lianas frágeis – um sustentáculo que as eleva
e ampara, sente-se abalada e já não nos inspira a confiança
de outrora.

Como para Bruto, para mim a Virtude não é mais que uma palavra.
Bebemos todos do veneno. Agora só o dilúvio.

– Que mal lhe teriam feito as mulheres, sempre gostaria de saber…

– Estragam tudo com a sua imprudência, a sua coquetterie e o seu fanatismo.
Basta olhar para uma mulherzinha moderna para a gente perceber que se preocupa
com feitiços e é supersticiosa. A quantidade de figas e de amuletos
que traz ao pescoço, bem o prova. Em vez de nos ensinarem a sermos
simples e cordatos, tornam a vida cada vez mais complexa e difícil.

– Exemplo?

– Nas mínimas coisas ele aparece. Vá o exemplo: convidam-nos
para um jantar familiar e dão-nos um banquete em que vagueiam perfumes
de flores caras e cheiros de molhos complicados. Aquilo não é
o trivial: logo, aquele não é o jantar familiar. Quem ordenou
e determinou o menu, não foi certamente o dono, mas a dona da casa.
Portanto a atmosfera de falsidade que se respira naquela casa amiga, foi criada
pela mulher.

– Ora aí está ! São os nossos maridos que trazem dos
hotéis e das festas a que assistem a exigência desses molhos
complicados, dessas floreiras odoríferas. do champagne ruinoso e dos
cristais variegados das mesas ricas. São eles que nos sugerem novidades
de serviço; e vêm os senhores depois pôr a ridículo
a nossa pretensão! Geralmente não somos nós que compramos
a prataria e as porcelanas. Que sabemos nós, as mulheres?

– O que adivinham. Oh! e o que as mulheres adivinham! Conheço uma
que, sem ter ouvido uma única confidência, sabe que uma certa
pessoa evita encontrá-la, porque é vê-la e logo nessa
noite perder ao jogo!

– Esse alguém é o senhor. Vê? são os homens que
jogam, que ficam amáveis se ganham ou mal humorados se perdem, que
tem estragado a nossa alegria. Mas sempre quero agora que me explique: o senhor,
que se ri das quatro folhas de trevo e dos corcundinhas de coral que trazemos
ao peito, porque foge de cumprimentar uma senhora amiga só pelo receio
de que esse encontro fortuito e rápido lhe traga o azar da fortuna?

– Males de raça, minha senhora, coisas que ficam da infância.
De algum modo precisamos mostrar que já fomos crianças. Creia
que eu até adoro essa senhora!

– Adora-a e evita-a!

– Mas se ela tem jetattura!

– Use então de um expediente:

Quando a vir, pegue em qualquer objeto de ferro. Uma chave, por exemplo.
Não traz uma chave consigo?

– É bom?

– É magnífico!

– Não sabia!

A conversa embarafustava por um terreno amável.

D. Matilde confessou que deixara de se vestir de azul, porque essa cor lhe
trazia infelicidade.

D. Joana citou uma amiga que usava uma liga de cada cor, como porte-bonheur.

Quase todos os presentes tinham a sua mania… voltou-se então alguém
para o velho e sério dr. Braga e perguntou com um rizinho de dúvida:

– O senhor também usa dessas coisas?

Ele tirou do bolso um caquinho de vidro azulado e disse com seriedade:

– Isto. Podem examinar.

O pedacinho de vidro andou de mão em mão; olharam todos por
ele para a luz e concordaram em que não seria fácil encontrar
outro tão ordinário!

Dr. Braga explicou:

– Pois, minhas senhoras e senhores, isto não é um simples amuleto,
mas um talismã.

– Ainda há disso?!

– Há. Este chama-se o olho da tolerância. Infelizmente, para
se ver bem por ele é preciso ter-se passado dos quarenta anos, ter-se
gasto o bestunto em muitas observações e curvado a cabeça
a duras exigências da sorte… O olho da tolerância, antes de
censurar ou de punir a culpa, penetra-lhe a causa, mais disposto a absolvê-la
que a castigá-la… Tem a consciência da fragilidade da alma.
Antigamente eu sentia como um romancista filósofo que disse: "plus
j’aime l’humanité, plus je déteste l’individu." Hoje não;
o indivíduo delinqüente é para mim um irmão fraco
que devo amar de preferência, porque todas as suas impurezas são
conseqüentes de males, de cuja origem não é só ele
o responsável. O olho da tolerância acalma o sistema nervoso
e exercita o coração na prática do bem. Quando me sinto
arrastar pela indignação ou a cólera contra alguém,
respiro com força, saco deste caquinho, domino-me, e, para abater o
ímpeto, olho através do vidro, reflito, e uma grande piedade
vem substituir o meu primeiro movimento de fúria. Ah! minhas senhoras,
é que não há nada como a tolerância para dar repouso
à inquietação das almas!

Os Beijos

Falam os senhores médicos contra os beijos condenando-os como transmissores
de micróbios assassinos. Misérias do sangue ou feias doenças
incubadas passam invisível e perfidamente de uma para outra criatura,
no mais rápido ou sutil dos ósculos.

– Não se beijem! é uma das fórmulas modernas dos higienistas;
resta-nos duvidar que eles, para exemplo, se submetam a essas leis de esquivança
que apregoam… Porque, em verdade, quem haverá por todo este mundo
vasto, por mais emurchecidos que tenha os lábios ou por mais seca que
tenha a alma, que não sinta florir no peito, com maior ou menor viço,
o desejo imperioso de unir a sua boca a outra boca amada ou de refrescá-la
nas faces acetinadas de uma criança?

Fagulhas das labaredas em que nos consumimos, os beijos crepitarão
por toda a larga face da terra, embora a ciência contra eles asseste
a ducha gelada dos seus decretos proibitivos.

Não há em língua humana palavra que, como o beijo, exprima,
por mais silencioso que ele seja, a ternura e o amor.

A boca de um mudo diz tudo quanto há de mais elevado e de mais veemente,
quando beija; no beijo está o único triunfo da sua alma encarcerada!

Bem prega Frei Thomaz… Não se beijem! dentro do beijo, como dentro
do cálice de uma flor de aroma capitoso, está muitas vezes escondido
o veneno que nos leva ao último sono. Cuidado… Quando tais palavras
escrevem, esses senhores que só olham para a vida através das
lentes dos microscópios, deverão sentir em si próprios
o rugido da natureza ofendida a clamar contra essa impiedosa verdade da ciência.

A vida sem beijos! a vida sem beijos é como um jardim sem flores,
um pomar sem frutos, ou (que escorregue ainda mais esta velha comparação)
um deserto sem oásis. Não valeria a pena prolongar a existência
à custa de tamanho sacrifício. Por assim entender é que
a humanidade faz e fará sempre ouvidos surdos à teoria da supressão
do beijo. Para ela, ele não é tal o veículo da peçonha,
a ameaça constante dos fantasmas terríficos de doenças
asquerosas e tristes, coisa desvirtuada e maléfica, mas sim, e por
todos os séculos dos séculos, o que dele disse um poeta meu
amigo:

"… o selo da amizade
E do amor! Ele só nos dá felicidade.
Dois corações que o tédio ou o cansaço importune,
Só um beijo de amor os levanta e reúne.
O beijo é vida, o beijo é luz, o beijo é glória!
Observai bem: vereis que o beijo é toda a história
Da humanidade. Foi o beijo primitivo
Que na terra o primeiro homem tornou cativo
Da primeira mulher; depois, ardente ou brando,
Veio o beijo de amor as raças perpetuando,
Unindo gerações a gerações, e unindo
O passado ao futuro insondável e infindo.
O beijo é a transfusão das almas; ele encerra
Tudo que possa haver de divino na terra."

Não é só o beijo perpetuador das raças que derrama
na alma o clarão mirífico da felicidade. Quando uma mãe
beija um filho, como que sente o seu coração maior que o mundo
e mais vitorioso que todos os hinos do universo! Saberá alguém
de coisa mais doce nem mais pura, que o beijo da amizade?

Infelizmente, nem todos os beijos são:

"Tudo que possa haver de divino na terra!"

Como diz o poeta.

É que Filinto de Almeida desconhece o horror dos beijos convencionais,
que só os lábios femininos trocam entre si.

Para esses o rigor das leis científicas deveria ser bem aceito…
Que se beijem duas amigas que se estimam, sim! Que por um enlevo de simpatia,
uma mulher beije a outra em um primeiro dia de encontro, como um pacto de
futura amizade, sim! Mas, que, sem espontaneidade de afeto ou sem velha estima,
só por cortesia e obediência ao hábito, duas criaturas
indiferentes, e que às vezes até se desestimam, troquem beijinhos
cada vez que se encontram… por Deus, nem é decente nem agradável!

Por mais que a gente queira esquivar-se, não pode, sem incorrer em
falta grave, furtar-se ao impulso com que certas damas atraem as outras para
o cumprimento da praxe. Que desastres, às vezes, nesse movimento! abas
de chapéus que se chocam, véus que se arrepanham, corpos que
se contrafazem, e no fim: um chapéu torto, uma face babada, e no íntimo
uns ressaibos de mel avinagrado.

A graça esquisita dessa insistência está muitas vezes
em que a senhora que imprime à outra o puxão para o beijo, dá-lhe
logo a face a beijar, face em que não raro desabotoam espinhas e quase
sempre o cold cream se alastra.

E não há resistência capaz de livrar uma criatura de
tais assaltos; quer queira quer não queira, ela há de beijar
e há de ser beijada em plena rua, em plena luz, por pessoas a quem
não a prende nenhum laço de afeto, ou mesmo de simpatia muito
forte.

Sei que me atiro para dentro de uma casa de maribondos falando assim; pouco
importa.

De resto, esta impressão não é só minha. Nenhuma
mulher deixará de sentir revolver-se no seu coração um
sentimento de desagrado, ao unir a sua boca a outra boca de que tenham saído
por ventura epigramas que a firam ou indiretas que a molestem.

O beijo é uma coisa muito nobre para ser esbanjada assim, sem significação,
em encontros de acaso, em qualquer canto de rua…

Para que ele seja suave e doce, deve ser dado com a consciência da
amizade; do contrário, quando não é perverso, é
ridículo.

Não se diga que foi a nossa índole meiga e expansiva que inventou
tal costume; ele foi importado, mas creio que já caiu em desuso nas
terras de que proveio. Pelo menos, as estrangeiras não se beijam entre
si com tamanha efusão. Elas desconfiam, talvez, de que perdem o valor
os beijos de uma criatura que os dispensa a toda a gente, e por isso só
os gastam em família e pouco mais… Aqui, ao contrário, o furor
do beijo a esmo tem aumentado; toda a gente se julga com direito a ele e o
reclama num gesto imperioso que não admite recusa…

Em resumo, a minha opinião neste assunto melindroso e terrível
é esta: não compreendo a vida sem o beijo, como não compreendo
o beijo sem o afeto.

Como, enquanto houver mundo, há de haver o amor, o beijo triunfará
de todas as perseguições que lhe fizerem os senhores bacteriologistas.

Eles mesmos, depois de horas e horas passadas no interior dos seus gabinetes
e dos seus laboratórios, ao levantarem os olhos, cansados das páginas
dos livros ou das lentes dos microscópios, sentirão, para refrigério
das suas almas entontecidas pela vertigem de tantas misérias humanas,
o desejo de as suavizarem num beijo, em que os seus lábios impuros
de homens encontrem a fresca inocência da face de uma criança…
E estou certa de que apressarão os passos, para irem beijar em casa
os filhos pequeninos…

Parte III

Harmonias

Tudo é música na natureza, até as ostras cantam!

Cada dia que passa nos traz uma surpresa magnifica. Esta, que talvez não
tivesse comovido ninguém mais, fez-me cair das mãos estupefatas
o Jornal do Comércio, em que ela veio fixada, como afirmação
de um sábio professor, cuja palavra não pode ser posta em dúvida.

Mal haja quem fizer ouvidos surdos a uma tão bela revelação
da poesia universal. Esse será de um materialismo indigno deste século,
que há de ser todo cheio de sublimes divulgações. Digam
embora que tudo é velho e revelho no mundo inteiro. Mentira; ali está
a prova: as ostras têm voz, em que expandem as queixas da sua alma com
"gritinhos agudos, seguidos de murmúrio suave mas expressivo".

É assim que diz a noticia. Ora, onde há expressão há
sentimento, logo esses gelatinosos moluscos, feios e informes, tão
repugnantes e tão saborosos, dão para a divina harmonia dos
dias e das noites o seu contingente ignorado de soluço ou de riso!

Não bastava à ostra ser mãe da pérola. Tal glória
não a elevou nunca no pasmado conceito das multidões. Essa preciosa
concreção calcária que as mulheres adoram e os ourives
exploram, é, bem como o aljôfar, o nácar e a madrepérola,
de tamanha impassibilidade, que nunca suspeitamos, por via dela, que na concavidade
das conchas em que a ostra se espapa, mole e gomosa, ressoasse a voz do gozo
ou do sofrimento

Foi preciso que a orelha, naturalmente cabeluda, de um grave e sábio
professor se inclinasse para as anfractuosidades de um rochedo, para que o
divino mistério da alma ignorada do molusco se revelasse ao mundo.

Se as palavras que esse fato denunciaram, em vez de terem sido pronunciadas
solenemente em um – congresso de pesca – por um homem cogitador e insuspeito,
tivessem saltado da língua da Sirineta, que foi feita per contare solamente
as belezas do mar, de que é o espírito, a gente levantaria os
ombros com o sorriso com que acolhe as mais lindas fantasias e iria continuando
a comer ao almoço, sem remorso e com apetite, as famosas ostras cruas.

Mas daqui em diante já virá uma pontinha de desgosto amargar
esse prazer maldoso. A gota de limão que contrair o molusco ainda vivo,
nos dará a sensação de que estamos a espremer torturas
sobre um ser digno da nossa veneração, porque sabe conhecer
o sacrifício!

Antes de a meter na boca é preciso aproximar do ouvido a ostra que
temos de deglutir.

Foi esta a nova preocupação que inventou o tal senhor sábio,
como se já não tivéssemos tantas! mas, não faz
mal! ficamos assim sabendo que não há na criação
nada que seja absolutamente mudo.

Quantas e quantas vezes a literatura alude ao decantado rumor do silêncio,
que nos traz da solidão dos campos ou da vastidão das águas
murmúrios frauduleiros de ignota magia? Foi talvez num desses instantes
em que a orquestra universal toca em surdina, que o sábio investigador,
deitando-se sobre a areia fofa de uma praia, junto a uma velha rocha ostreira,
percebeu a tênue voz dos moluscos através as camadas das conchas
sotopostas.

Vamos, que a surpresa não devia ter sido pequena, nem tampouco desagradável.
Não tardará muito que alguém nos venha dizer o diapasão
em que cantam essas pobres enclausuradas, cujo estilo trará à
mente, já presumo! a forma de um hino sacro… O passo rude está
dado; ciência e acaso, de mãos dadas, descobriram o segredo das
ostras; elas cantam, e um homem, naturalmente barbado e muito sério,
como convém a um sábio e grande professor, cuja palavra não
pode ser posta em dúvida, teve a coragem de o declarar em uma sessão
de congresso. O principal está feito; o resto virá depois.

Virá depois, mas levará seu tempo. A interpretação
da música e a sua definição estou vendo que não
é coisa fácil!

Ainda há pouco, uma pessoa que estimo e cuja opinião em música
acato como a melhor, me disse que a opera Saldunes tem muita beleza e larga
inspiração. Alegrei-me; mas a par desta, quantas me disseram
que não a tinham entendido?

Não entender! Mas a música não é uma língua
estranha, que se precise traduzir com dicionários! Ai dela, se assim
fosse; deixaria então de ser arte divina para ser fria ciência;
deixaria de ser a grande pacificadora, tão necessária ao atribulado
coração humano, para ser uma coisa impenetrável e rígida,
a que só com esforço as multidões chegariam.

A maioria do público que vai ao teatro ouvir uma opera, não
trata, por incompetente, de averiguar se ela é feita desta ou daquela
maneira, se a sua instrumentação obedece a todos os primores
de uma orquestração opulenta, se a sua tessitura é perfeita,
e as suas harmonias bem combinadas.

O que ele vai buscar lá é a emoção, o sentimento
que transbordara e se evolará da música com a espontaneidade
perturbadora com que o perfume sai de uma flor!

Parece-me que a arte, a não ser para os artistas, não é
coisa que se entenda, mas que se sinta. Que importa à maioria que os
processos por que tal partitura é feita, sejam complicados e ela dolorosamente
trabalhada, se do seu conjunto espinhento e bravio não voou nem uma
frase que lhe fizesse vibrar os nervos impassíveis?

Em verdade é muito freqüente ouvir-se dizer: eu não gostei
desta ou daquela opera, porque não a entendi.

Essa modesta confissão de incompetência, que, aliás,
só é feita em relação à música,
visto que para as outras artes toda a gente se julga habilitada e com direito
a uma crítica definitiva, deve, até certo ponto, consolar os
maestros…

Ah, diante das harmonias da natureza é que não há tanto
embaraço: elas entram-nos pela alma a dentro sem que para isso tenham
de forçar o entendimento. Quem compreenderá jamais a contextura
dessa grande opera em que tomam parte desde o asqueroso sapo dos brejos, até
à sentimental patativa dos laranjais?

Ninguém; e todavia todos a sentem e a adoram. É por isso que,
por sobre as areias movediças ou as asperezas agrestes dos rochedos
mudos, roçam na avidez de uma curiosidade insaciável as cabeludas
orelhas dos sábios naturalistas.

Certos de que neste velho mundo tudo é novo, os seus ouvidos esperam
ainda, esperarão sempre, surpreender no próprio seio das coisas
mudas, vozes ignoradas e perfeitas.

Esta, que o grave professor do Congresso de Pescaria descobriu nas ostras,
é deveras extraordinária! Como os cisnes, o viscoso molusco
desprende na hora extrema, após um grito agudo, um canto suavíssimo…

Haverá quem, depois disto saber, ingira sem comoção
e sem remorsos as saborosas ostras cruas, cruas e vivas?! Não!

Um Testamento

É o nome de Rotschild que aos olhos do mundo se incarna a idéia
da riqueza. A lâmpada de Alam, de que cada um de nós tem na imaginação
uma cópia, arranca-lhe de cada sílaba uma chispa de pedra preciosa.
Ele é o dístico de um tesouro acumulado com avidez judaica através
dos tempos e de que só desabam catadupas de ouro quando solicitadas
pela volúpia do negócio. Ele é a glória da raça,
a ventosa terrível sugando energias de hebreus e submissões
de cristãos, e é o senhor do ouro que, como o mar, recebe de
todas as nascentes, e de água turva com água límpida
faz a mesma onda que estrondeia em espumaradas de prata.

Rotschild não é uma entidade, é um símbolo –
o dinheiro. Ele faz tremer as nações, vê a seus pés
os mais nobres governos e finca no mundo as suas garras formidáveis,
enterrando-lhas até ao âmago, bem como o abutre enterra as suas
na carne tenra de um cordeiro.

Como o frágil animal, o mundo sangra, – na agonia do proletário,
do faminto, do sem vintém, para cujos olhos o capital é o roubo,
e que aí estão rugindo mais alto que o balir trêmulo do
cordeirinho na aflição da morte…

Rotschild! Pode ser amado este nome luminoso e que retine com uma tão
ampla sonoridade de ouro? Diria não, se a leitura de um testamento
me não viesse provar que ele não quer dizer unicamente: metal,
negócio, lucro. É pois certo que Rotschild é nome de
homem!

Tenho observado, talvez mal, que o egoísmo humano em nenhuma formula
tão bem se evidencia, como na testamentária. Pessoas riquíssimas
e cuja fortuna ao serviço de um coração generoso se podia
expandir num largo círculo, fazem testamentos em que concentram todos
os haveres nos seus herdeiros da lei ou em pouquíssimos mais. Assim,
ninguém que as não tivesse conhecido em vida as diria capazes
de matar com um bocado de pão duro, a fome de qualquer mendigo que
lhes batesse à porta.

Toda aquela fortuna parece ter sido passada a outrem a contragosto, de olhos
fechados, num mergulho inevitável.

É bem difícil fazer-se um testamento, visto que é tão
raro aparecer algum em que a justiça, a ternura e a humanidade transpareçam.

Entretanto, nenhum ato pode ser mais consolador nem mais belo para um homem
de grande fortuna e largo espírito, do que esse de espalhar, após
o seu completo desaparecimento da Terra, o bem estar e a alegria por um punhado
de gente que sofre e que trabalha.

É ainda a maneira que os ricos têm de se fazerem perdoados de
bens, adquiridos muitas vezes pelo seu próprio esforço, mas
que nem por isso deixam de ser mal vistos pelos que nada alcançam…

Rotschild! é de Adolfo Rotschild o testamento glorioso, que li em
um jornal e onde há legados comovedores.

Se houve culpas nos seus antepassados, este homem de bem redime-as todas
nestas páginas de clemência. Sem apagar um único beneficio
que o coração decretara no primeiro impulso, ele quarenta e
quatro vezes alterou o seu testamento, para desenvolver, acrescentar os socorros
que a observação da vida lhe ia sugerindo.

Sem falar nos asilos, hospitais, escolas e museus, para os quais deixou montões
e montões de dinheiro, milhares e milhares de contos; sem comentar
a abundância das verbas destinadas à manutenção
dos institutos, onde a raiva e o croup encontram lenitivo e remédio,
destacarei os legados, que me pareceram mais reveladores de um coração
raro. Este, por exemplo: determinou uma quantia para auxílio de moças
pobres que vivam do seu trabalho. Isto não tem o valor banal da caridade,
atirando dinheiro aos pobres como migalhas aos peixes; encerra uma idéia
de acoroçoamento, de estímulo, de aplauso, é como um
carinho fraternal, que não será recebido sem lágrimas.

O grande argentário pensou na operária sacrificada, na laboriosa
filha do povo, para quem só têm olhos a concupiscência
e a perdição, e atirou-lhe um adeus de amigo, que tão
raramente o homem dá à mulher, e que seria sempre o mais suave
esteio para as suas fraquezas…

Não é menos encantador, na sua simplicidade, o benefício
aos animais em geral, cuja sorte triste procurou minorar. Assim, os cavalos
que tenham trabalhado, chegado o instante inevitável da decadência
ou da ruma, não serão aproveitados em misteres brutais, em que
o seu pobre corpo esfalfado vergue ainda no interesse do dono egoísta.

Chegamos ao último legado, que eu não classificarei, porque
toda a sua filosofia adorável fala por si. É simples:

Adolfo Rotschild, deixou a uns tantos sacerdotes velhos, de qualquer religião,
soma que lhes permita exercerem tranqüilamente em França o seu
ministério.

Esta lembrança abre-se aos meus olhos como uma flor até hoje
desconhecida. Nem a cor, nem a forma, nem o aroma denunciam a semente que
lhe deu origem; tão sabido é que a tolerância absoluta
raro germina na Terra.

Cada um de nós pensa que da nossa religião é que há
de vir a felicidade ao mundo, porque só ela é perfeita e é
verdadeira. Bálsamos que outras derramem, que nos importam, se nem
elas são justas, nem os seus filhos nossos irmãos?

Guerreêmo-nos, matemo-nos em nome da nossa Fé, que será
um dia a de todos que nós tivermos vencido ou que vierem ao nosso chamamento.
A esta idéia turbulenta, desorientadora e triste, responde a voz serena
daquele parágrafo, em que um judeu oferece amparo a velhos sacerdotes
pobres, católicos, israelitas ou protestantes, para a sua manutenção,
aconselhando ao mesmo tempo aos seus descendentes, que lhe sigam o exemplo
de tolerância e de liberdade religiosa.

Fonte: pt.wikisource.org

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