Festa no Céu

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A Mãe dos Bichos, com surpresa geral da fauna, apareceu enfim corporificada na floresta. Até então ninguém a vira.

Ouviam-lhe apenas o canto e a fala. Mostrara-se linda e majestosa. Carregava o aspecto augusto de uma deusa e lembrava, no feitio, o ar soberano da ave do paraíso, se bem que as cores fossem outras. Alva, caudas em plumas frisadas, quando esta se arredondava num leque de arminho e ouro, dir-se-ia uma auréola que a envolvesse. Na cabeça alteava-se-lhe bizarra coroa de pérolas negras.

Tinha os pés verdes e o bico azul. Correspondia mesmo à divindade desencantada. Verdadeira jóia da natureza.

Garjeou primeiro uma ária estonteante e falou depois. Trazia, declarou a visão, uma incumbência da corte celeste, que a encarregava de convidar seus filhos para uma grande festa no Céu.

A clareira da selva em que a matriarca se manifestava regorgitava de animais. Amontoavam-se quadrúpedes, ofídios, sáurios, aves, caracóis, insetos, quadrúmanos.

O formoso pássaro, glória de Ornis amazônica, explicou, em linhas gerais, o que seria preciso para corresponder a tão alta distinção do Onipotente, pois a festa em vista, consistia em lhes ser mostrado um aparelho inconcebível e que se inauguraria na presença rústica de seus filhos: o rádio sideral, que ligava os mundos pelo infinito a fora.

Para que a embaixada terrena fosse brilhante, continuou a Bela Aparecida, tornava-se necessário organizar várias comissões. Uma, central, presidida pelo jabuti e composta da jararaca, da preguiça, da garça, do macaco, do tatu, da minhoca, da aranha, da ponhamesa, e outras menores adstritas à grande. Cada ser alado, pássaro, inseto ou peixe, obrigar-se-ia a conduzir para a Mansão Etérea, um animal sem asas.

Os excursionistas deviam levar ainda, escolhendo os menores músicos da mata, duas orquestras. Nas vésperas da festa, declarou, volveria afim de examinar os trabalhos.

Ruflou as asas harmoniosamente e sumiu-se no espaço.

Festa no CéuFesta no Céu

Foi uma chega e vira da nossa morte na fauna. Constituíram-se mais dois grupos dirigentes e destinados a concatenear a família dos assobiadores, dos cantadores, dos batedores, dos roncadores, dos trinadores, dos tocadores, dos zunidores, dos gritadores, dos estriduladores, dos sopradores, dos zabumbadores, dos ventriloquadores, dos flauteadores. Do primeiro ficou à testa o maestro carachué, arrebanhando para o seu lado o japiim, o bicudo, a patativa, o coleiro, o canário-da-terra, a maria-já-é-dia, o currupião, o tém-tém, o bem-te-vi, o curió, o urutaí, a matinta-pereira, a saracura.

O segundo grupo foi encabeçado pelo maestro irapurú, e se concretizava nos seguintes músicos: jacamim, juriti, aracuã, inhambu, macucáua, marrecão, gaivota, acauã, cutipurui, rasga-mortalha, saí, murucututu, araponga, ferreirinho, cigarra, cametáu, grilo, pomba, arara, papagaio, rola e periquito.

A lista do jabuti, aclamado chefe geral da embaixada, rezava assim a respeito dos foliões: a borboleta levaria a anta; a ponhamesa levaria o jacaré, o peixe-voador levaria a tartaruga; o gavião levaria a aranha; o bem-te-vi levaria a cobra-grande; a saracura levaria a piraíba; a cigarra levaria o uruá; o mutum levaria a centopéia; o cujubim levaria o boto; o mergulhão levaria o pirarucu; a rola levaria o peixe-boi; o papagaio levaria o caranguejo; a arara levaria o bacu; o periquito levaria o tamanduá-bandeira; o tucano levaria o poraquê; o pica-pau levaria a queixada; o quiriru levaria a preguiça; a matinta-pereira levaria o embuá; o beija-flor levaria o candiru; o urutaí levaria o matrinchão; o japim levaria o quati; a andorinha levaria o sapo cururu; a pipira levaria a paca; o tém-tém levaria a jibóia; o irapuru levaria o mussuã; a piaçoca levaria o camaleão; a graúna levaria o tambaqui; a pomba levaria a onça; a iraúna levaria a pescada; o carachué levaria o tracajá; o murucututu levaria o jandiá; o urubu levaria o jabuti; o gavião real levaria o tatu; o transporte dos outros animais anotara-se em listas secundárias.

Nas vésperas da partida, a Mãe dos Bichos veio examinar o que se havia feito, achando tudo em ordem. No dia aprazado alçaram-se, numa aleluia de asas, em busca do Empíreo.

A terra ficou sobre um velário de plumas e penas. Voaram, voaram, voaram. Mas o céu era longe. Afinal chegaram a mansão do Sonho, azul como anil. São Pedro, sorridente e afável, abriu a porta de bronze e a bicharada entrou meio desconfiada olhando para os lados, espantada com o luxo. Autênticos matutos, tropeçavam nos tapetes, davam de encontro nos espelhos, abalroavam os móveis, apalpavam os panos de Arraz, os vitrais, os mármores, as cortinas.

Os anjos, que vigiavam a roceirada, só faltava rebentar de riso. Oh, bichos burros! Verdadeira pândega. Ao passarem na sala das onze mil Virgens, o macaco buliu na corda duma harpa. Ouviu-se um som. Praquê?

Assustaram-se de tal forma os animais que houve pânico. O corre-corre não foi desta vida. Pulavam, saltavam, voavam, voavam. O arcanjo São Gabriel, que ia passando, riu-se tanto que deixou cair a espada de fogo.

Oh, canalha frouxa! Arriscou. Nunca tinha visto medrosos deste calibre. São valentes apenas no prato.

E meteu o cinturão numa cotia que já estava roendo a quilha da barca de São Pedro.

Daí passaram os turistas à sala dos santos. Mais de mil representantes do Flos Sanctorum, em trabalho fremente, recebiam e transmitiam ordens do Todo Poderoso, invisível aos visitantes.

Súbito lampejo anunciou o Sol. De acordo com o regulamento celeste, ia buscar ordens para as vinte e quatro horas futuras. Chegou depois a Lua com o mesmo desígnio. As Estrelas – só de mil em mil anos. Os santos, numa verdadeira lufa-lufa, atendiam e determinavam o programa solar; luz forte no Maranhão, luz fraca no Rio Grande do Sul, meia luz em Minas, suma-se nos pólos.

Momentos depois aportou o vento com o mesmo objetivo, solicitar ordens.

As respostas dos celículas surgiam em cima da bucha: “assobie apenas na Amazônia; devaste o golfo do México; vire ciclone na América do Norte e furacão no centro do Atlântico; torne-se tempestade no Báltico e tufão no Pacífico”.

Qualquer turma de sindicância para regiões distantes, em que se gastavam anos e anos de viagem, embarcava em cometa para a travessia do infinito. As expedições ligeiras, aos satélites do sol e da terra, faziam-se em Aerólitos num vou ali já volto. Não tardou levaram os bichos à seção de eletricidade, na qual o assunto astronômico e meteorológico mantinha-se regulado e preciso.

Desse departamento emanavam ordens para a tabela diária: relâmpagos na Austrália, coriscos em Fernando de Noronha, trovões na Alemanha, fogo- santelmo na Inglaterra.

Mas a grande novidade, aquilo em suma que constituía a festa no Céu, e para qual os animais teriam sido convidados, era o rádio sideral, descoberta de Santa Bárbara e São Jerônimo, por meio desse aparelho fantástico sabia-se do que ocorria nos astros, nas estrelas, nos planetas.

De repente lá vinha: terremotos em Castor e Pólux, quatro vulcões na Ursa Maior; incêndio na Papa-Ceia; inundação em Saturno.

As notícias de tais sinistros e catástrofes eram respondidas com urgentes providências. Enviaram-se turma de engenheiros, de maquinistas, de médicos, de enfermeiros e ambulâncias destinadas a concertos, a restaurações, a socorros aos flagelados.

Os bichos estavam apalermados. Mas sem saber como, pois ali não havia bebida, São Pedro notou que a maioria dos excursionistas se achava embriagada, num porre tremendo.

O apóstolo aí zangou-se e mandou encostar a taca nos viciados. Foi lapada de todo tamanho.

Além disso, o assoalho do Céu estava em petição de miséria: cuspido, escarrado, vomitado, sujo de pontas de cigarros, fósforos, cascas de frutas. Mais zangado ficou o santo.

Ordenou de novo uma boa tunda naquela corja. Houve o respectivo salve-se quem puder. A bicharada abriu o pano. Uns levavam os instrumentos dos outros.

Animais que tinham vindo com este iam com aquele. O urubu, tonto, tonto, deixou cair o jabuti que rebentou ao cair em terra. Quem lhe remendou o casco foi a Mãe dos Bichos.

Quando os animais falam nessa festa é para recordar a pancadaria que levaram no Céu por serem porcos e cachaceiros.

Fonte: ifolclore.vilabol.uol.com.br

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