Moral Judaico-Cristã em Nietzsche

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Neste texto temos a intenção de compreendermos a crítica que o filósofo de Sils Maria endereça à moral judaico-cristã. Para Nietzsche, o triunfo dessa moral se deu pela imposição do sentimento de culpa fazendo com que a humanidade devedora adquirisse consciência de sua dívida para com o suposto “redentor”, “salvador” do mundo. Conduzindo a humanidade à verdadeira doença da qual, segundo ele, somente o declínio da fé poderia “sarar”, paulatinamente, tal consciência culpada.

Contudo, ainda que a morte de Deus seja uma esperança, a total decadência do cristianismo não ocorreu. “O sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante o milênio”. Imersos nessa fragilidade nefrálgica tornam-se cordeiros diante de qualquer lobo que lhes traga alguma solução, seja ela qual for.

E aqui encontramos, talvez, a origem para toda devoção, submissão religiosa: o sentimento de medo, fragilidade, opressão e desconhecimento quanto ao que lhes espera no outro plano pós-morte, se é que existe. Essa internalização da culpa gera o ressentimento, tornando o escravo submisso.

Todavia, dotado da vontade de poder, germina nesse escravo o desejo de tornar-se senhor. Essa vontade o impele a sair do seu estado submisso para reivindicar aos dominantes e, portanto, senhores, que eles não são os únicos possuidores de potência. Nesse estádio, ocorre a denominada “rebelião escrava na mora”; fazendo com que o escravo acredite na sua potencialidade de um dia ocupar o trono senhorial.

Moral Judaico-Cristã em Nietzsche

Rebelião Escrava na Moral

A rebelião escrava na moral, origina-se, segundo Nietzsche, nos judeus, escravos por natureza, que dotados dos sentimentos de impotência, vingança e mais tenro ódio, inverteram a equação dos valores aristocráticos. Dessa forma, os bem-aventurados são não mais os de elevada estirpe, mas os excluídos, encarcerados, sofredores e impotentes. Os judeus realizaram uma radical tresvaloração, segundo a qual, “o forte é livre para ser fraco” e “a ave de rapina, livre para ser ovelha”.

Entretanto, na interpretação nietzschiana, tais asserções não passam de falácias dissimuladoras da impotência, que deturpam tais tipos e distanciam as forças das suas efetivas potencialidades. A partir da inversão valorativa, a cultura judaico-cristã faz do ressentimento criador e postulador de valores dando origem à denominada rebelião escrava na moral.

Nada obstante, Nietzsche satiriza tal tresvaloração da seguinte maneira: da árvore da vingança, do ódio surgiu o mais sublime amor. Contudo, esse não nega aquela, apenas reluz, aprofunda, torna mais viva e sedutora. Nesse ponto, chegamos à crítica que Nietzsche faz à moral judaico-cristã.

Na primeira dissertação de Para a Genealogia da Moral Nietzsche expõe a sua incisiva crítica à moral judaico-cristã. Os judeus, sacerdotes por excelência, dotados do mais tenro ódio, rancor, vingança e ressentimento, tresvaloraram a equação dos valores aristocráticos. Essa constatação nietzschiana fica clara na passagem bíblica do Sermão da Montanha.

Na perspectiva nietzschiana, n’As bem-aventuranças, a moral judaico-cristã sintetiza todo um projeto de tresvaloração da moral aristocrática. Antes, os bons eram os ricos, poderosos, bem nascidos e virtuosos.

Contudo, com a vinda do suposto “Messias”, e a consolidação do modo de valorar judaico-cristão, essa equação dos valores é invertida e os bem-aventurados passam a ser medidos não mais sob o prisma dos juízos de valor cavalheiresco-aristocráticos, mas pela equação dos valores judaico-cristãos que privilegia todos os desprezados pela antiga moralidade, e estabelece, segundo Nietzsche, que “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são os bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança”. Enquanto que os nobres, poderosos, “vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados.

Com isso, vemos a suspeita de Nietzsche quanto uma possível razão que facilitara a tresvaloração judaico-cristã. Não seria o Nazareno a mais sublime sedução, oriunda do epílogo martirológico, que visava nada mais do que a adesão em massa ao novo modo transvalorado de valorar? Nesse sentido, supondo que a resposta a esse questionamento fosse verdadeira, o ato de suprema compaixão, amor e abnegação tornar-se-ia infundado, ilógico e, portanto, falacioso.

Esse epílogo martirológico acabou por impor à comunidade a consciência de que as realizações atuais são frutos do labor e sacrifício de suas estirpes, agora divinizadas. Daíos viventes internalizarem o sentimento de obrigação para com seus antecessores, dando origem à consciência teológica endividada e, posteriormente, culposa.

Exemplo dessa consciência endividada encontra-se na famigerada crença cristã, segundo a qual: o “redentor”, é crucificado. É nessa situação que, segundo Nietzsche, ocorre o triunfo da moral judaico-cristã segundo a qual o Deus-credor, num ato de extrema compaixão aos seus devedores, entrega-se ao truculento martírio sanguinolento para absolver as dívidas de seu povo.

Todavia, percebe Giacóia, essa autoflagelação, aparentemente ingênua, reinterpreta as figuras do credor e do devedor: torna esse culpado pelo acionamento de seus instintos de semianimal selvagem e imprime-lhe a consciência dum débito irresgatável e a premente necessidade duma eterna expiação do pecatum originale. Enquanto o credor é idealizado, tornado soberano, absolutizado, juricizado e divinizado (GIACOIA, In. PASCHOAL, FREZZATTI Jr. Org., 2008, p. 222). Destarte, a fictícia libertação transfigurou-se em manipulação, pois as dívidas passadas foram liquidadas, porém novas foram adquiridas, intensificando-se o sentimento de culpa.

O golpe de gênio aplicado pelo cristianismo à humanidade torna-se verdadeira falácia, pois tanto as premissas quanto a conclusão podem ser questionáveis devido às suas fragilidades.

Para Nietzsche, o devedor jamais seria amado pelo seu credor e sim ultrajado, pois, “através da ‘punição’ ao devedor, o credor participa do direito de senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como ‘inferior’”.

O que de antemão inviabiliza a tese do credor sacrificar-se por amor ao seu devedor, pois nesse estágio, o infrator adquiriu do credor o mais terrível ódio. Como sublinha Nietzsche, “para erigir um santuário, é preciso antes destruir um santuário: esta é a lei”. Se o ódio não foi destruído, o amor, sob hipótese alguma poderá ressurgir. O que corrobora a tese nietzschiana da impossibilidade de o credor amar seu devedor ao ponto de entregar-se em martírio.

Fábio Guimarães de Castro

Referências Bibliográficas

AZEREDO, Vânia. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso Editorial & Unijuí, 2003.

GIACOIA Jr., Oswaldo. Moralidade e memória: dramas do destino da alma. In: PASCHOAL; FREZZATTI Jr. (org.). 120 anos de para a genealogia da moral. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008. p. 188-241.

NIETZSCHE, F. Nietzsche. Obras Incompletas. Coleção “Os Pensadores”. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César Souza, São Paulo: Brasiliense, 1987.

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