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José de Alencar
Ao Leitor
Este livro, como os dois que o precederam, não são da própria
lavra do escritor, a quem geralmente os atribuem.
A história é verdadeira; e a narração vem de
pessoa que recebeu diretamente, e em circunstâncias que ignoro, a confidência
dos principais atores deste drama curioso.
O suposto autor não passa rigorosamente de editor. É certo
que tomando a si o encargo de corrigir a forma e dar-lhe um lavor literário,
de algum modo apropria-se não a obra mas o livro.
Em todo o caso, encontram-se muitas vezes nestas páginas, exuberâncias
de linguagem e afoutezas de imaginação, a que já não
se lança a pena sóbria e refletida do escritor sem ilusões
e sem entusiasmos.
Tive tentações de apagar alguns desses quadros mais plásticos
ou pelo menos de sombrear as tintas vivas e cintilantes.
Mas devia eu sacrificar a alguns cabelos grisalhos esses caprichos artísticos
de estilo, que talvez sejam para os finos cultores da estética, o mais
delicado matiz do livro?
E será unicamente fantasia de colorista e adorno de forma, o relevo
daquelas cenas, ou antes de tudo serve de contraste ao fino quilate de um
caráter?
Há efetivamente um heroísmo de virtude na altivez dessa mulher,
que resiste a todas as seduções, aos impulsos da própria
paixão, como ao arrebatamento dos sentidos.
J. de AL.
PRIMEIRA PARTE
O PreÇo
I
Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro;
foi proclamada a rainha dos salões.
Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos
em disponibilidade.
Era rica e formosa.
Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro;
dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.
Quem não se recorda da Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento
da Corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento
que produzira o seu fulgor?
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não
a conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca
da grande novidade do dia.
Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos
a verdade, sem os comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros.
Aurélia era órfã; e tinha em sua companhia uma velha
parenta, viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na
sociedade.
Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender
com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não
tinha admitido ainda certa emancipação feminina.
Guardando com a viúva as deferências devidas à idade,
a moça não declinava um instante do firme propósito de
governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse.
Constava também que Aurélia tinha um tutor; mas essa entidade
desconhecida, a julgar pelo caráter da pupila, não devia exercer
maior influência em sua vontade, do que a velha parenta.
A convicção geral era que o futuro da moça dependia
exclusivamente de suas inclinações ou de seu capricho; e por
isso todas as adorações se iam prostrar aos próprios
pés do ídolo.
Assaltada por uma turba de pretendentes que a disputavam como o prêmio
da vitória, Aurélia, com sagacidade admirável em sua
idade, avaliou da situação difícil em que se achava,
e dos perigos que a ameaçavam.
Daí provinha talvez a expressão cheia de desdém e um
certo ar provocador, que eriçavam a sua beleza aliás tão
correta e cinzelada para a meiga e serena expansão d’alma.
Se o lindo semblante não se impregnasse constantemente, ainda nos
momentos de cisma e distração, dessa tinta de sarcasmo, ninguém
veria nela a verdadeira fisionomia de Aurélia, e sim a máscara
de alguma profunda decepção.
Como acreditar que a natureza houvesse traçado as linhas tão
puras e límpidas daquele perfil para quebrar-lhes a harmonia com o
riso de uma pungente ironia?
Os olhos grandes e rasgados, Deus não os aveludaria com a mais inefável
ternura, se os destinasse para vibrar chispas de escárnio.
Para que a perfeição estatuária do talhe de sílfide,
se em vez de arfar ao suave influxo do amor, ele devia ser agitado pelos assomos
do desprezo?
Na sala, cercada de adoradores, no meio das esplêndidas reverberações
de sua beleza, Aurélia bem longe de inebriar-se da adoração
produzida por sua formosura, e do culto que lhe rendiam; ao contrário
parecia unicamente possuída de indignação por essa turba
vil e abjeta.
Não era um triunfo que ela julgasse digno de si, a torpe humilhação
dessa gente ante sua riqueza. Era um desafio, que lançava ao mundo;
orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, como a um réptil venenoso.
E o mundo é assim feito; que foi o fulgor satânico da beleza
dessa mulher, a sua maior sedução. Na acerba veemência
da alma revolta, pressentiam-se abismos de paixão; e entrevia-se que
procelas de volúpia havia de ter o amor da virgem bacante.
Se o sinistro vislumbre se apagasse de súbito, deixando a formosa
estátua na penumbra suave da candura e inocência, o anjo casto
e puro que havia naquela, como há em todas as moças, talvez
passasse desapercebido pelo turbilhão.
As revoltas mais impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza
que lhe servia de trono, e sem a qual nunca por certo, apesar de suas prendas,
receberia como rainha desdenhosa, a vassalagem que lhe rendiam.
Por isso mesmo considerava ela o ouro, um vil metal que rebaixava os homens;
e no íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda
essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só
das bajulações que tributavam a cada um de seus mil contos de
réis.
Nunca da pena de algum Chatterton desconhecido saíram mais cruciantes
apóstrofes contra o dinheiro, do que vibrava muitas vezes o lábio
perfumado dessa feiticeira menina, no seio de sua opulência.
Um traço basta para desenhá-la sob esta face.
Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção
de um, a pretendiam unicamente pela riqueza, Aurélia reagia contra
essa afronta, aplicando a esses indivíduos o mesmo estalão.
Assim costumava ela indicar o merecimento de cada um dos pretendentes, dando-lhes
certo valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava
os seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado
matrimonial.
Uma noite, no Cassino, a Lísia Soares, que fazia-se íntima
com ela, e desejava ardentemente vê-la casada, dirigiu-lhe um gracejo
acerca do Alfredo Moreira, rapaz elegante que chegara recentemente da Europa:
– É um moço muito distinto, respondeu Aurélia sorrindo;
vale bem como noivo cem contos de réis; mas eu tenho dinheiro para
pagar um marido de maior preço, Lísia; não me contento
com esse.
Riam-se todos destes ditos de Aurélia, e os lançavam à
conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte
das senhoras, sobretudo aquelas que tinham filhas moças, não
cansavam de criticar desses modos desenvoltos, impróprios de meninas
bem-educadas.
Os adoradores de Aurélia sabiam, pois ela não fazia mistério,
do preço de sua cotação no rol da moça; e longe
de se agastarem com a franqueza, divertiam-se com o jogo que muitas vezes
resultava do ágio de suas ações naquela empresa nupcial.
Dava-se isto quando qualquer dos apaixonados tinha a felicidade de fazer
alguma cousa a contento da moça e satisfazer-lhe as fantasias; porque
nesse caso ela elevava-lhe a cotação, assim como abaixava a
daquele que a contrariava ou incorria em seu desagrado.
Muito devia a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los
a paixão, para não verem o frio escárnio com que Aurélia
os ludibriava nestes brincos ridículos, que eles tomavam por garridices
de menina, e não eram senão ímpetos de uma irritação
íntima e talvez mórbida.
A verdade é que todos porfiavam, às vezes colhidos por desânimo
passageiro, mas logo restaurados por uma esperança obstinada, nenhum
se resolvia a abandonar o campo; e muito menos o Alfredo Moreira que parecia
figurar a cabeça do rol.
Não acompanharei Aurélia em sua efêmera passagem pelos
salões da Corte, onde viu, jungido a seu carro de triunfo, tudo que
a nossa sociedade tinha de mais elevado e brilhante.
Proponho-me unicamente a referir o drama íntimo e estranho que decidiu
do destino dessa mulher singular.
II
Seriam nove horas do dia.
Um sol ardente de março esbate-se nas venezianas que vestem as sacadas
de uma sala, nas Laranjeiras.
A luz coada pelas verdes empanadas debuxa com a suavidade do nimbo o gracioso
busto de Aurélia sobre o aveludado escarlate do papel que forra o gabinete.
Reclinada na conversadeira com os olhos a vagar pelo crepúsculo do
aposento, a moça parece imersa em intensa cogitação.
O recolho apaga-lhe no semblante, como no porte, a reverberação
mordaz que de ordinário ela desfere de si, como a chama sulfúrea
de um relâmpago.
Mas a serenidade que se derrama por toda a sua pessoa, se de alguma sorte
desmaia a cintilação de sua beleza, a embebe de um fluido inefável
de meiguice e carinho, que a torna irresistível.
Seus olhos já não têm aqueles fulvos lampejos, que despedem
nos salões, e que, a igual do mormaço crestam. Nos lábios,
em vez do cáustico sorriso, borbulha agora a flor d’alma a rever
os íntimos enlevos.
Sombreia o formoso semblante uma tinta de melancolia que não lhe
é habitual desde certo tempo, e que não obstante se diria o
matiz mais próprio das feições delicadas. Há mulheres
assim, a quem um perfume de tristeza idealiza. As mais violentas paixões
são inspiradas por esses anjos de exílio.
Aurélia concentra-se de todo dentro de si; ninguém ao ver
essa gentil menina, na aparência tão calma e tranqüila,
acreditaria que nesse momento ela agita e resolve o problema de sua existência;
e prepara-se para sacrificar irremediavelmente todo o seu futuro.
Alguém que entrava no gabinete veio arrancar a formosa pensativa
à sua longa meditação. Era D. Firmina Mascarenhas, a
senhora que exercia junto de Aurélia o ofício de guarda-moça.
A viúva aproximou-se da conversadeira para estalar um beijo na face
da menina, que só nessa ocasião acordou da profunda distração
em que estava absorta.
Aurélia correu a vista surpresa pelo aposento; e interrogou uma miniatura
de relógio presa à cintura por uma cadeia de ouro fosco.
Entretanto D. Firmina, acomodando a sua gordura semi-secular em uma das
vastas cadeiras de braços que ficavam ao lado da conversadeira, dispunha-se
esperar pelo almoço.
– Está fatigada de ontem? perguntou a viúva com a expressão
de afetada ternura que exigia o seu cargo.
– Nem por isso; mas sinto-me lânguida; há de ser o calor –
respondeu a moça para dar uma razão qualquer de sua atitude
pensativa.
– Estes bailes que acabam tão tarde não podem ser bons para
a saúde; por isso é que no Rio de Janeiro há tanta moça
magra e amarela. Ora, ontem, quando serviram a ceia pouco faltava para tocar
matinas em Santa Teresa. Se a primeira quadrilha começou com o toque
do Aragão!… Havia muita confusão; o serviço não
esteve mau, mas andou tão atrapalhado!…
Firmina continuou por aí além a descrever suas impressões
do baile da véspera, sem tirar os olhos do semblante de Aurélia,
onde espiava o efeito de suas palavras, pronta a desdizer-se de qualquer observação,
ao menor indício de contrariedade.
Deixou-a a moça falar, desejosa de desprender-se de suas preocupações
e embalar-se ao rumor dessa voz que ouvia, sem compreender. Sabia que a viúva
conversava acerca do baile; mas não acompanhava o que ela dizia.
De repente, porém, interrompeu-a:
– Que tal achou a Amaralzinha, D. Firmina?
A velha fez semblante de recordar-se.
– A Amaralzinha?… É aquela moça toda de azul?
– Com espigas de prata nos cabelos e nos apanhados da saia; simples e de muito
bom gosto.
– Lembra-me. É uma menina bem galante! afirmou a viúva.
– E bem-educada. Dizem que toca piano perfeitamente, e que tem uma voz muito
agradável.
– Mas não costuma aparecer na sociedade. É a primeira vez
que a encontramos; não me lembro de a ter visto antes.
– Foi a primeira vez!
Pronunciando estas palavras, a moça parecia de novo sentir sua alma
refranger-se atraída imperiosamente por esse pensamento recôndito
que a absorvia.
Mas reagiu contra essa preocupação; e dirigiu-se à
viúva em tom vivo e instante:
– Diga-me uma cousa, D. Firmina!
– O que é, Aurélia?
– Mas há de ser franca. Promete-me?
– Franca? Mais do que eu sou, menina? Se é este o meu defeito!…
A moça hesitava.
– Experimente, Senhora!
– Quem acha a senhora mais bonita, a Amaralzinha ou eu? disse afinal Aurélia,
empalidecendo de leve.
– Ora, ora! acudiu a viúva a rir. Está zombando, Aurélia.
Pois, a Amaralzinha é para se comparar com você?
– Seja sincera!
– Outras muito mais bonitas que ela não chegam a seus pés.
A viúva citou quatro ou cinco nomes de moças que então
andavam no galarim e dos quais não me recordo agora.
– É tão elegante! disse Aurélia como se completasse
uma reflexão íntima.
– São gostos!
– Em todo o caso é mais bem-educada do que eu?
– Do que você, Aurélia? Há de ser difícil que se
encontre em todo o Rio de Janeiro outra moça que tenha sua educação.
Lá mesmo, por Paris, de que tanto se fala, duvido que haja.
– Obrigada! É esta a sua franqueza, D. Firmina?
– Sim, senhora; a minha franqueza está em dizer a verdade, e não
em escondê-la. Demais, isso é o que todos vêem e repetem.
Você toca piano como o Arnaud, canta como uma prima-dona, e conversa
na sala com os deputados e os diplomatas, que eles ficam todos enfeitiçados.
E como não há de ser assim? Quando você quer, Aurélia,
fala que parece uma novela.
– Já vejo que a senhora não é nada lisonjeira. Está
desmerecendo os meus dotes, acudiu a menina sublinhando a última palavra
com um fino sorriso de ironia. Então não sabe, D. Firmina, que
eu tenho um estilo de ouro, o mais sublime de todos os estilos, a cuja eloqüência
arrebatadora não se resiste? As que falam como uma novela, em vil prosa,
são essas moças românticas e pálidas que se andam
evaporando em suspiros; eu falo como um poema: sou a poesia que brilha e deslumbra!
– Entendo o que você quer dizer; o dinheiro faz do feio bonito, e dá
tudo, até saúde. Mas repare bem, os seus maiores admiradores
são justamente aqueles que não podem pretender sua riqueza;
uns casados, outros já velhos…
– Quando pela primeira vez fumaram perto da senhora, não sentiu alguma
cousa, um atordoamento?… Pois o ouro tem uma fumaça invisível,
que embriaga ainda mais do que a do charuto de Havana, e até mesmo
do que a desse nojento cigarro de papel, com que os rapazes de hoje se incensam.
Toda essa gente que rodeia um velho ricaço, ministros, senadores e
fidalgos, de certo que não espera casar-se com a burra do sujeito;
mas sofre a atração do dinheiro.
– Agora mesmo, Aurélia, está você me dando razão
e mostrando sua instrução. Quem há de dizer que uma menina
de sua idade sabe mais de que muitos homens que aprenderam nas academias?
E assim é bom; porque senão, com a riqueza que lhe deixou seu
avô, sozinha no mundo, por força que havia de ser enganada.
– Antes fosse! murmurou a moça recaindo em sua meditação.
D. Firmina ainda proferiu algumas palavras em continuação
da conversa; mas notou que a moça não lhe prestava a menor atenção,
antes parecia esquivar-se a qualquer impressão exterior, para mais
profundamente reconcentrar-se.
Então com o tacto dessas almas feitas para a domesticidade moral,
ergueu-se; e trocando alguns passos pela sala, disfarçou a reparar
nas estatuetas de alabastro e vasos de porcelana colocados no mármore
vermelho dos consolos.
Assim de costas para a conversadeira, mostrava-se desapercebida daquele
enlevo de Aurélia, a quem de certo havia de contrariar, quando voltasse
da distração à presença de uma pessoa a escrutar-lhe
nos gestos o segredo dos pensamentos.
Não teriam decorrido cinco minutos quando ouvia D. Firmina um som
trépido e cristalino, que ela bem conhecia por tê-lo muitas vezes
escutado. Voltou-se e viu Aurélia, cujos lábios de nácar
vibravam ainda com o harpejo daquele ríspido sorriso.
A gentil menina surgira de sua pensativa languidez, como uma estátua
de cera que transmutando-se em jaspe de repente, se erigisse altiva e desdenhosa,
desferindo de si os lívidos e fulvos reflexos do mármore polido.
Ela caminhou para as janelas, e com petulância nervosa suspendeu impetuosamente
as duas venezianas, que pareciam um peso excessivo para sua mão fina
e mimosa.
A torrente da luz precipitando-se pela abertura das janelas, encheu o aposento;
e a moça adiantou-se até a sacada, para banhar-se nessas cascatas
de sol, que lhe borbotavam sobre a régia fronte coroada do diadema
de cabelos castanhos, e desdobravam-se pelas formosas espáduas como
uma túnica de ouro.
Embebia-se de luz. Quem a visse nesse momento assim resplandecente, poderia
acreditar que sob as pregas do roupão de cambraia estava a ondular
voluptuosamente a ninfa das chamas, a lasciva salamandra, em que se transformara
de chofre a fada encantada.
Depois de saturar-se de sol como a alva papoula, que se cora aos beijos
de seu real amante, a moça dirigiu-se ao piano e estouvadamente o abriu.
Dos turbilhões da estrepitosa tempestade cromática, que revolvia
o teclado, desprendeu-se afinal a sublime imprecação da Norma,
quando rugindo ciúme, fulmina a perfídia de Polião.
Moderando os arrojos dessa instrumentação vertiginosa, para
fazer o acompanhamento, a moça começou a cantar; mas às
primeiras notas, sentindo-se tolhida pela posição, abandonou
o piano, e em pé, no meio da sala, roçagando a saia do roupão
como se fosse a cauda do pálio gaulês, ela reproduziu com a voz
e o gesto, aquela epopéia do coração traído, que
tantas vezes tinha visto representada por Lagrange.
A ferocidade da mulher enganada, sanha da leoa ferida, nunca teve para exprimi-la,
nem mesmo na exímia cantora, uma voz mais bramida, um gesto mais sublime.
As notas que desatavam-se dos lábios de Aurélia, possantes de
vigor e harmonia, deixavam após si um frêmito, que lembrava o
silvo da serpente, sobretudo quando este braço mimoso e torneado distendia-se
de repente com um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo.
D. Firmina, apesar de habituada desde muito ao caráter excêntrico
de Aurélia, contemplava-a com surpresa nesse momento; e desconfiava
que alguma cousa de extraordinário ocorrera na vida da moça,
que a tornara a princípio tão pensativa, e produzia agora esse
acesso sentimental.
Entretanto ela com a mesma volubilidade que a tomara ao erguer-se da conversadeira,
correu para D. Firmina, travou-lhe do pulso fazendo-a de Polião, e
deu imediatamente um jeito cômico à cena que terminou em risadas.
III
Era a hora do almoço. As duas senhoras puseram-se à mesa.
Aurélia distinguia-se pela sobriedade, que era nela a conseqüência
de temperamento e educação. Não quer isto dizer que fosse
dessa espécie de moças papilionáceas que se alimentam
do pólen das flores, e para quem o comer é um ato desgracioso
e prosaico.
Bem ao contrário, ela sabia que a nutrição d&aacutaacute;
a seiva de beleza, sem a qual as cores desmaiam nas faces e os sorrisos nos
lábios, como as efêmeras e pálidas florações
de uma roseira ética.
Assim não tinha vergonha de comer; e sem vaidade acreditava que o
esmalte de seus dentes não era menos gracioso quando eles se triscavam
como a crepitação de um colar de pérolas; nem o matiz
de seus lábios menos saboroso quando chupavam uma fruta, ou se entreabriam
para receber o alimento.
Nessa ocasião, a moça fez exceção a seus hábitos
de sobriedade; ela que não gostava de especiarias, e só de longe
em longe bebia algumas gotas de licor, quis experimentar quanto molho e condimento
picante havia em casa; e para remate bebeu um cálice de Xerez.
D. Firmina sem esquecer o almoço, continuava a observar de parte
a menina, cada vez mais convencida da existência de um acontecimento
importante que havia alterado a calma habitual da moça.
Esse acontecimento, na opinião da viúva, não podia
ser outro senão aquele que tamanha influência exerce nas meninas
de dezoito anos, sobretudo se não dependem de ninguém para dispor
de si.
D. Firmina tinha pois como certo que Aurélia, a desdenhosa, sentira
afinal uma inclinação; e estava ansiosa a viúva, para
conhecer o feliz que tivera o poder de cativar a altiva rainha dos salões,
tão adorada, quanto fria e indiferente.
Revolvia na mente as recordações da noite anterior para certificar-se
que não aparecera no baile nenhum moço desconhecido de quem
Aurélia se pudesse apaixonar de súbito. Devia ser pois qualquer
dos antigos adoradores, dos que ela escarnecia, que por alguma circunstância
inexplicável alcançara render-lhe enfim o coração.
Não se pôde conter a viúva; em risco de desagradar a
menina, dirigiu-lhe uma indireta com que se propunha a entabular a conversa,
e conforme a resposta dirigi-la para o ponto.
– Não sei que lhe acho hoje, Aurélia! Parece-me tão
contente, e até mais bonita, se é possível, do que de
costume!
– Deveras!
– Não é exageração, não. Olhe? As moças
quando se vestem para um baile onde esperam encontrar alguém, ficam
mais bonitas do que são. Mas você está hoje ainda mais
bonita do que nos bailes. Nunca lhe vi assim. Aqui anda volta de algum segredinho!
– Quer saber qual é? perguntou Aurélia com um sorriso.
– Não sou curiosa, replicou a viúva sentindo o pungir daquele
sorriso.
– Resolvi ser freira!
– Está bom!
– Mas o meu convento há de ser este mesmo mundo em que vivemos, que
nenhum outro teria mais penitências e mortificações para
mim.
Desmentindo logo após a gravidade destas palavras com uma risada
galhofeira, Aurélia deixou na sala de jantar D. Firmina, espantada
de que uma menina imensamente rica e formosa, desejada por todos, pudesse
ter semelhantes pensamentos, ainda mesmo por gracejo.
Aurélia que se dirigira ao seu toucador, sentou-se a uma escrivaninha
de araribá guarnecido de relevos de bronze dourado e escreveu uma carta
de poucas linhas.
A todos os pormenores dessa comezinha operação, no dobrar
a folha de papel, encerrá-la na capa, derreter o lacre e imprimir o
sinete, a moça deliberadamente aplicava a maior atenção
e esmero.
Ou essa carta era destinada a quem tudo lhe merecia, ou nesse apuro e cuidado
buscava Aurélia disfarçar a hesitação que a surpreendera
no momento de realizar uma idéia anteriormente assentada.
Depois de sobrescrita a carta, a moça tirou do segredo da secretária
um cofre de sândalo embutido de marfim.
Havia ali entre cartas e flores murchas um cartão de visita, já
amarelo, que ela escondeu no bolso do roupão, depois de guardado na
sua carteirinha de veludo.
Ao som do tímpano apareceu um criado. Aurélia entregou-lhe
a carta com um gesto vivo e a voz breve, como receosa de súbito arrependimento.
– Para o Sr. Lemos! Depressa!
Sentiu então Aurélia essa quietude que sucede às lutas
do coração. Ela tinha afinal resolvido o problema inextricável
de sua vida; e em vez de abandonar-se ao acaso e deixar-se levar pelo turbilhão
do mundo, achara em sua alma a força precisa para dirigir os acontecimentos
e dominar o futuro.
Daí provinha a calma de que revestia-se ao deixar o toucador e que
outra vez imprimia à sua beleza uma doce expressão de melancolia
e resignação.
D. Firmina como de costume, esperava que Aurélia dispusesse a maneira
por que passariam a manhã, pois a viúva não tinha outra
ocupação que não fosse agradar à menina, fazer-lhe
companhia e prestar-se a todas as suas vontades e caprichos.
Para isto recebia além do tratamento uma boa mesada que ia acumulando
para os tempos difíceis, como já os havia passado logo depois
da perda do marido.
– Você não sai hoje, Aurélia?
– Pode ser. Mas não se constranja por meu respeito.
– Há de ficar sozinha?
– Tenho em que empregar o tempo. Um negócio grave! tornou a menina
sorrindo.
– É já alguma penitenciazinha?
– Ainda não; é a profissão de noviça.
Nessa ocasião e no meio das risadas da menina, anunciaram o Sr. Lemos,
que foi imediatamente introduzido na sala.
– Recebi a sua carta em caminho; ia ao Botafogo: o José encontrou-me
no Largo do Machado. Estou às suas ordens, Aurélia.
Era o Sr. Lemos um velho de pequena estatura, não muito gordo, mas
rolho e bojudo como um vaso chinês. Apesar de seu corpo rechonchudo
tinha certa vivacidade buliçosa e saltitante que lhe dava petulância
de rapaz, e casava perfeitamente com os olhinhos de azougue.
Logo à primeira apresentação reconhecia-se o tipo desses
folgazões que trazem sempre um provimento de boas risadas com que se
festejam a si mesmos.
Quando o Lemos na qualidade de tio fora pelo juiz de órfãos
encarregado da tutela de Aurélia, deu-se um incidente que desde logo
determinou a natureza das relações entre o tutor e sua pupila.
Pretendia o velho levar a menina para a companhia de sua família.
Opôs-se formalmente Aurélia, e declarou que era sua intenção
viver em casa própria, na companhia de D. Firmina Mascarenhas.
– Mas atenda, minha menina, que ainda é menor.
– Tenho dezoito anos.
– Só aos vinte e um é que poderá viver sobre si e governar-se.
– É a sua opinião? Vou pedir ao juiz que me dê outro
tutor mais condescendente.
– Como diz?
– E tais argumentos lhe apresentarei, que ele há de atender-me.
À vista desse tom positivo, o Lemos refletiu, e julgou mais prudente
não contrariar a vontade da menina. Aquela idéia do pedido ao
juiz para remoção da tutela não lhe agradara. Pensava
ele que às mulheres ricas e bonitas não faltam protetores de
influência.
Logo depois dos cumprimentos, D. Firmina retirou-se para deixar a moça
em liberdade. Bem desejos tinha a viúva de assistir a essas conferências
que o Lemos costumava ter de vez em quando com a pupila acerca de contas da
tutela; mas neste ponto Aurélia era de extrema reserva e não
gostava que ninguém entendesse com o que ela chamava seus negócios.
– Faça favor, meu tio! disse a moça abrindo uma porta lateral.
Essa porta dava para um gabinete elegantemente mobiliado; o centro era ocupado
por uma banca oval, como o resto dos trastes de érable e coberta com
um pano azul de franjas escarlates. Sobre a mesa, em salva de prata, havia
o tinteiro e mais preparos de escrever.
No momento em que Aurélia, depois de passar o Lemos, ia por sua vez
entrar no gabinete, apareceu à porta da saleta a Bernardina, velha
a quem a menina protegia com esmolas. A sujeita parara com um modo tímido,
esperando permissão para adiantar-se.
Aurélia aproximou-se dela com um gesto de interrogação.
– Quis vir ontem, segredou a Bernardina; mas não pude, que atacou-me
o reumatismo. Era para dizer que ele chegou.
– Já sabia!
– Ah! quem lhe contou? Pois foi ontem, havia de ser mais de meio-dia.
– Entre!
Aurélia cortou o diálogo, indicando à velha o corredor
que levava para o interior; e passando ao gabinete cerrou a porta sobre si.
Não escapou este pormenor ao Lemos, que pela solenidade da conferência
avaliava de sua importância.
– Com que história virá ela hoje? dizia entre si o alegre
velhinho.
Aurélia sentou-se à mesa de érable, convidando o tutor
a ocupar a poltrona que lhe ficava defronte.
IV
Quem observasse Aurélia naquele momento, não deixaria de notar
a nova fisionomia que tomara o seu belo semblante e que influía em
toda a sua pessoa.
Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava
sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de
seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência.
Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher
abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no
cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.
Nessas ocasiões seu espírito adquiria tal lucidez que fazia
correr um calafrio pela medula do Lemos, apesar do lombo maciço de
que a natureza havia forrado no roliço velhinho o tronco do sistema
nervoso.
Era realmente para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor, a perspicácia
com que essa moça de dezoito anos apreciava as questões mais
complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos negócios, e a
facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer operação
aritmética por muito difícil e intrincada que fosse.
Não havia porém em Aurélia nem sombra do ridículo
pedantismo de certas moças que, tendo colhido em leituras superficiais
algumas noções vagas, se metem a tagarelar de tudo.
Bem ao contrário, ela recatava sua experiência, de que só
fazia uso, quando o exigiam seus próprios interesses. Fora daí
ninguém lhe ouvia falar de negócios e emitir opinião
acerca de cousas que não pertencessem à sua especialidade de
moça solteira.
O Lemos não estava a gosto; tinha perdido aquela jovialidade saltitante,
que lhe dava um gracioso ar de pipoca. Na gravidade desusada dessa conferência,
ele, homem experiente e sagaz, entrevia sérias complicações.
Assim era todo ouvidos, atento às palavras da moça.
– Tomei a liberdade de incomodá-lo, meu tio, para falar-lhe de objeto
muito importante para mim.
– Ah! muito importante?… repetiu o velho batendo a cabeça.
– De meu casamento! disse Aurélia com a maior frieza e serenidade.
O velhinho saltou na cadeira como um balão elástico. Para
disfarçar sua comoção esfregou as mãos rapidamente
uma na outra, gesto que indicava nele grande agitação.
– Não acha que já estou em idade de pensar nisso? perguntou
a moça.
– Certamente! Dezoito anos…
– Dezenove.
– Dezenove? Cuidei que ainda não os tinha feito!… Muitas casam-se
desta idade, e até mais moças; porém é quando
têm o paizinho ou a mãezinha para escolher um bom noivo e arredar
certos espertalhões. Uma menina órfã, inexperiente, eu
não lhe aconselharia que se casasse senão depois da maioridade,
quando conhecesse bem o mundo.
– Já o conheço demais, tornou a moça com o mesmo tom
sério.
– Então está decidida?
– Tão decidida que lhe pedi esta conferência.
– Já sei! Deseja que eu aponte alguém… Que eu lhe procure
um noivo nas condições precisas… Hã!… É difícil…
um sujeito no caso de pretender uma moça como você, Aurélia?
Enfim há de se fazer a diligência!
– Não precisa, meu tio. Já o achei!
Teve o Lemos outro sobressalto que o fez de novo pular na cadeira.
– Como?… Tem alguém de olho?
– Perdão, meu tio, não entendo sua linguagem figurada. Digo-lhe
que escolhi o homem com quem me hei de casar.
– Já compreendo. Mas bem vê!… Como tutor, tenho de dar a
minha aprovação.
– De certo, meu tutor; mas essa aprovação o senhor não
há de ser tão cruel que a negue. Se o fizer, o que eu não
espero, o juiz de órfãos a suprirá.
– O juiz?… Que histórias são essas que lhe andam metendo
na cabeça, Aurélia?
– Sr. Lemos, disse a moça pausadamente e traspassando com um olhar
frio a vista perplexa do velho, completei dezenove anos; posso requerer um
suplemento de idade mostrando que tenho capacidade para reger minha pessoa
e bens; com maioria de razão obterei do juiz de órfãos,
apesar de sua oposição, um alvará de licença para
casar-me com quem eu quiser. Se estes argumentos jurídicos não
lhe satisfazem, apresentar-lhe-ei um que me é pessoal.
– Vamos a ver! acudiu o velho para quebrar o silêncio.
– É a minha vontade. O senhor não sabe o que ela vale, mas
juro-lhe que para a levar a efeito não se me dará de sacrificar
a herança de meu avô.
– É próprio da idade! São idéias que somente
se têm aos dezenove anos; e isso mesmo já vai sendo raro.
– Esquece que desses dezenove anos, dezoito os vivi na extrema pobreza e
um no seio da riqueza para onde fui transportada de repente. Tenho as duas
grandes lições do mundo: a da miséria e a da opulência.
Conheci outrora o dinheiro como um tirano; hoje o conheço como um cativo
submisso. Por conseguinte devo ser mais velha do que o senhor que nunca foi
nem tão pobre, como eu fui, nem tão rico, como eu sou.
O Lemos olhava com pasmo essa moça que lhe falava com tão
profunda lição do mundo e uma filosofia para ele desconhecida.-
– Não valia a pena ter tanto dinheiro, continuou Aurélia, se
ele não servisse para casar-me a meu gosto; ainda que para isto seja
necessário gastar alguns miseráveis contos de réis.
– Aí é que está a dificuldade, acudiu o Lemos, que
desde muito espreitava uma objeção. Bem sabe Aurélia,
que eu como tutor não posso despender um vintém sem autorização
do juiz.
– O senhor não me quer entender, meu tutor, replicou a moça
com um tênue assomo de impaciência. Sei disso, e sei também
muitas cousas que ninguém imagina. Por exemplo: sei o dividendo das
apólices, a taxa do juro, as cotações da praça,
sei que faço uma conta de prêmios compostos com a justeza e exatidão
de uma tábua de câmbio.
O Lemos estava tonto.
– E por último sei que tenho uma relação de tudo quanto
possuía meu avô, escrita por seu próprio punho e que me
foi dada por ele mesmo.
Desta vez o purpurino velhinho empalideceu, sintoma assustador de tão
completa e maciça carnadura, como a que lhe acolchoava as calcinhas
emigradas e o fraque preto.
– Isto quer dizer que se eu tivesse um tutor que me contrariasse e caísse
em meu desagrado, ao chegar à minha maioridade não lhe daria
quitação, sem primeiro passar um exame nas contas de sua administração
para o que felizmente não careço de advogado nem de guarda-livros.
– Sim, senhora; está em seu direito, tornou o velho contrito.
– Cabendo-me porém a fortuna de ter um tutor meu amigo, que me faz
todas as vontades, como o senhor, meu tio…
– Lá isso é verdade!
– Neste caso, em vez de matar a paciência e aborrecer-me com autos e
contas, dou tudo por bem-feito. Ainda mais, sei que a tutela é gratuita,
mas assim não deve ser quando os órfãos têm de
sobra com que recompensar o trabalho que dão.
– Lá isso não, Aurélia. Este encargo é uma dívida
sagrada, que pago à memória de sua mãe, a minha boa e
sempre chorada irmã!…
O Lemos enxugou no canto do olho uma lágrima que ele conseguira espremer,
se é que não a tinha inventado como parece mais provável.
E a moça em tributo à memória de sua mãe evocada
pelo velho, ergueu-se um instante a pretexto de olhar pela janela.
Quando voltou a seu lugar, o Lemos estava de todo restabelecido dos choques
por que havia passado; e mostrava-se ao natural, fresco, titilante e risonho.
– Estamos entendidos? perguntou a menina com a sisudez que não deixara
em todo este diálogo.
– Você é uma feiticeirazinha, Aurélia; faz de mim o
que quer.
– Reflita bem, meu tio. Vou confiar-lhe meu segredo, um segredo que a ninguém
neste mundo foi revelado, e que só Deus sabe. Se depois de conhecê-lo,
o senhor não me quiser servir, ou não souber, eu jamais lhe
perdoarei.
– Pode confiar em mim sem susto o seu segredo, Aurélia, que mostrar-me-ei
digno dessa confiança.
– Creio, Sr. Lemos, e para tirar-lhe qualquer escrúpulo que por acaso
o assalte, lhe juro pela memória de minha mãe, que se há
para mim felicidade neste mundo, é somente esta que o senhor me pode
dar.
– Disponha de mim.
Aurélia parou um instante.
– Conhece o Amaral?
– Qual deles? perguntou o velho um tanto acanhado.
– Manuel Tavares do Amaral, empregado da alfândega; disse a moça
consultando sua carteirinha. Tenha a bondade de tomar nota. Não é
rico, mas possui alguma cousa; ajustou o casamento da filha Adelaide com um
moço que esteve ausente do Rio de Janeiro, e a quem ele ofereceu de
dote trinta contos de réis.
Ao proferir estas palavras sentiu-se um fugaz tremor na voz sempre tão
límpida da moça, que logo após tomou um timbre ríspido.
O Lemos ficara roxo de vermelho que já era; e para disfarçar
o seu vexame remexia a cabeça mui desinquieto, com o dedo a repuxar
e alargar o colarinho, como se este o sufocasse.
Aurélia demorou um instante o seu frio olhar no semblante do velho;
depois desviando com placidez a vista para fitá-la na página
aberta de sua carteirinha, deu tempo ao tio de reportar-se, o que foi breve.
O Lemos tinha o traquejo do mundo.
– Trinta contos?… observou ele. Já não é mau começo!
Aurélia continuou:
– É preciso quanto antes desmanchar este casamento. A Adelaide deve
casar com o Dr. Torquato Ribeiro de quem ela gosta. Ele é pobre; e
por isso o pai o tem rejeitado, mas se o senhor assegurasse ao Amaral que
esse moço tem de seu uns cinqüenta contos de réis, acha
que ele recusaria?
– Suponha que eu assegurasse isso. Donde sairia esse dinheiro?
– Eu o darei com o maior prazer.
– Mas, minha menina, para que nos vamos nós intrometer nos negócios
alheios?
– O senhor é bastante perspicaz para perceber aquilo que debalde lhe
procuraria ocultar. Prefiro confiar-me sem reservas à sua lealdade.
A moça fez um esforço.
– Esse moço, que está justo com a Adelaide Amaral, é
o homem a quem eu escolhi para meu marido. Já se vê que, não
podendo pertencer a duas, é necessário que eu o dispute.
– Conte comigo! acudiu o velho esfregando as mãos, como quem entrevia
os benefícios que essa paixão prometia a um tutor hábil.
– Esse moço…
– O nome? perguntou o velho molhando a pena.
Aurélia fez um aceno de espera.
– Este moço chegou ontem; é natural que trate agora dos preparativos
para o casamento que está justo há perto de um ano. O senhor
deve procurá-lo quanto antes.
– Hoje mesmo.
– E fazer-lhe sua proposta. Estes arranjos são muito comuns no Rio
de Janeiro.
– Estão-se fazendo todos os dias.
– O senhor sabe melhor do que eu como se aviam estas encomendas de noivos.
– Ora, ora!
– Previno-o de que meu nome não deve figurar em tudo isto.
– Ah! quer conservar o incógnito?
– Até o momento da apresentação. Entretanto pode dizer
quanto baste para que não suponham que se trata de alguma velha ou
aleijada.
– Percebo! exclamou o velho rindo. Um casamento romântico.
– Não, senhor; nada de exagerações. Só tem licença
para afirmar que a noiva não é velha nem feia.
– Quer preparar a surpresa?
– Talvez. Os termos da proposta…
– Com licença! Desde que deseja conservar o incógnito, não
devo aparecer?
Aurélia refletiu um instante:
– Não quero que isto passe do senhor. Caso ele o reconheça como
meu tio e tutor, não poderia o senhor convencê-lo que eu não
tenho nisso a mínima parte? que é um negócio da família
ou dos parentes?
– Bem lembrado! Eu cá me arranjo; não tenha cuidado.
– Os termos da proposta devem ser estes; atenda bem. A família da
tal moça misteriosa deseja casá-la com separação
de bens, dando ao noivo a quantia de cem contos de réis de dote. Se
não bastarem cem e ele exigir mais, será o dote de duzentos…
– Hão de bastar. Não tenha dúvida.
– Em todo o caso quero que o senhor compreenda bem o meu pensamento. Desejo,
como é natural, obter o que pretendo, o mais barato possível;
mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo,
não faço questão de preço. É a minha felicidade
que vou comprar.
Estas últimas palavras, a moça proferiu-as com uma indefinível
expressão.
– Não será caro?
– Oh! exclamou Aurélia, eu daria por ela toda a minha riqueza. Outras
a têm de graça, que lhes vem diretamente do céu. Mas não
me posso queixar, pois negando-me esse bem, Deus compadeceu-se de mim, e enviou-me
quando menos esperava tamanha herança para que eu possa realizar a
aspiração de minha vida. Não dizem que o dinheiro traz
todas as venturas?
– A maior ventura que dá o dinheiro é possuí-lo; as outras
são secundárias, disse o Lemos como entendido na matéria.
Aurélia, que um instante se deixara arrebatar pelo sentimento, voltava
ao tom frio e refletido com que havia discutido até ali a questão
de seu futuro.
– Falta-me ainda, meu tio, recomendar-lhe um ponto. A palavra, além
de esquecer, está sujeita a equívocos. Não seria possível
tratar este negócio por escrito?
– Passar o sujeito um papel?… Certamente, mas se ele roer a corda, não
há meio de obrigá-lo a casar.
– Não importa. Eu prefiro confiar-me à honra dessa pessoa,
antes do que aos tribunais. Com uma obrigação em que ele empenhe
sua palavra ficarei tranqüila.
– Há de se arranjar.
– Eis o que espero de sua amizade, meu tio.
O Lemos deixou passar a ironia que acentuara a palavra amizade, e esticou
a prumo diante dos olhos e contra a luz, a folha de papel em que tomara suas
notas.
– Vejamos!… Tavares do Amaral, empregado da alfândega… a filha
D. Adelaide, trinta contos de réis… O Dr. Torquato Ribeiro… garantir
cinqüenta… O outro… de cem até duzentos. Só me falta
o nome.
Aurélia tirou da carteirinha o bilhete de visita e apresentou-o ao
tutor. Como este se preparasse para repetir em alta voz o nome, ela o atalhou
com a palavra breve e imperativa que às vezes lhe crispava os lábios.
– Escreva!
O velhinho copiou as indicações que havia no cartão e
o restituiu.
– Nada mais?
– Nada, senão repetir-lhe ainda uma vez que entreguei em suas mãos
a única felicidade que Deus me reserva neste mundo.
A moça proferiu estas palavras com um tom de profunda convicção
que penetrou o bonacho ceticismo do velho.
– Há de ser muito feliz, eu lhe garanto.
– Dê-me esta felicidade, que eu tanto invejo; eu lhe darei da que
me sobra.
– Conte comigo, Aurélia.
O velhinho apertou a mão da moça, que lhe tocara o coração
com a última promessa e retirou-se.
Quando chegou a casa, ainda o Lemos não estava de todo restabelecido
do atordoamento que sofrera.
V
Havia à Rua do Hospício, próximo ao campo, uma casa
que desapareceu com as últimas reconstruções.
Tinha três janelas de peitoril na frente; duas pertenciam à
sala de visitas; a outra a um gabinete contíguo.
O aspecto da casa revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação.
A mobília da sala consistia em sofá, seis cadeiras e dois
consolos de jacarandá, que já não conservavam o menor
vestígio de verniz. O papel da parede de branco passara a amarelo e
percebia-se que em alguns pontos já havia sofrido hábeis remendos.
O gabinete oferecia a mesma aparência. O papel que fora primitivamente
azul tomara a cor de folha seca.
Havia no aposento uma cômoda de cedro que também servia de
toucador, um armário de vinhático, uma mesa de escrever, e finalmente
a marquesa, de ferro, como o lavatório, e vestida de mosquiteiro verde.
Tudo isto, se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era
como aqueles cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso
asseio. Não se via uma teia de aranha na parede, nem sinal de poeira
nos trastes. O soalho mostrava aqui e ali fendas na madeira; mas uma nódoa
sequer não manchava as tábuas areadas.
Outra singularidade apresentava essa parte da habitação: era
o frisante contraste que faziam com a pobreza carrança dos dois aposentos
certos objetos, aí colocados, e de uso do morador.
Assim no recosto de uma das velhas cadeiras de jacarandá via-se neste
momento uma casaca preta, que pela fazenda superior, mas sobretudo pelo corte
elegante e esmero do trabalho, conhecia-se ter o chique da casa do Raunier,
que já era naquele tempo o alfaiate da moda.
Ao lado da casaca estava o resto de um trajo de baile, que todo ele saíra
daquela mesma tesoura em voga; finíssimo chapéu claque do melhor
fabricante de Paris; luvas de Jouvin cor de palha; e um par de botinas como
o Campas só fazia para os seus fregueses prediletos.
Sobre um dos aparadores tinham posto uma caixa de charutos de Havana, da
marca mais estimada que então havia no mercado. Eram regalias como
talvez só saboreavam nesse tempo os dez mais puros fumistas do império.
No velho sofá de palha escura, havia uma almofada de cetim azul bordada
a froco e ouro. A mais suntuosa das salas do Rio de Janeiro não se
arreava por certo com uma obra de tapeçaria, nem mais delicada, nem
mais mimosa do que essa, trabalhada por mãos aristocráticas.
Passando à alcova, na mesquinha banca de escrever, coberta com um
pano desbotado e atravancada de rumas de livros, a maior parte romances, apareciam
sem ordem tinteiros de bronze dourado sem serventia; porta-charutos de vários
gostos, cinzeiros de feitios esquisitos e outros objetos de fantasia.
A tábua da cômoda era verdadeiro balcão de perfumista.
Aí achavam-se arranjados toda a casta de pentes e escovas, e outros
utensílios no toucador de um rapaz à moda, assim como as mais
finas essências francesas e inglesas, que o respectivo rótulo
indicava terem saído das casas do Bernardo e do Louis.
A um canto do aposento notava-se um sortimento de guarda-chuvas e bengalas,
algumas de muito preço. Parte destas naturalmente provinha de mimos,
como outras curiosidades artísticas, em bronze e jaspe, atiradas para
baixo da mesa, e cujo valor excedia de certo ao custo de toda a mobília
da casa.
Um observador reconheceria nesse disparate a prova material de completa
divergência entre a vida exterior e a vida doméstica da pessoa
que ocupava esta parte da casa.
Se o edifício e os móveis estacionários e de uso particular
denotavam escassez de meios, senão extrema pobreza, a roupa e objetos
de representação anunciavam um trato de sociedade, como só
tinham cavalheiros dos mais ricos e francos da Corte.
Esta feição característica do aposento repetia-se em
seu morador, o Seixas, derreado neste momento no sofá da sala, a ler
uma das folhas diárias, estendidas sobre os joelhos erguidos, que assim
lhe servem de cômoda estante.
É um moço que ainda não chegou aos trinta anos. Tem
uma fisionomia tão nobre, quanto sedutora; belos traços, tez
finíssima, cuja alvura realça a macia barba castanha. Os olhos
rasgados e luminosos, às vezes coalham-se em um enlevo de ternura,
mas natural e estreme de afetação, que há de torná-los
irresistíveis quando o amor os acende. A boca vestida por um bigode
elegante, mostra o seu molde gracioso, sem contudo perder a expressão
grave e sóbria, que deve ter o órgão da palavra viril.
Sua posição negligente não esconde de todo o garbo
do talhe, que se deixa ver nessa mesma retração do corpo. É
esbelto sem magreza, e de elevada estatura.
O pé pousado agora em uma chinela não é pequeno; mas
tem a palma estreita e o firme arqueado da forma aristocrática.
Vestido com um chambre de fustão que briga com as mimosas chinelas
de chamalote bordadas a matiz, vê-se que ele está ainda no desalinho
matutino de quem acaba de erguer-se da cama. Ainda o pente não alisou
os cabelos, que deixados a si tomam entretanto sua elegante ondulação.
Depois de lavar o rosto e enfiar o chambre viera à sala, buscar na
porta que dava para a escada os jornais do dia; pois era ele dos que se consideram
em jejum e ficam de cabeça oca, se ao acordarem não espreguiçam
o espírito por essas toalhas de papel com que a civilização
enxuga a cara ao público todas as manhãs.
Deitara-se então de bruços no sofá, para ler mais a
cômodo, e maquinalmente corria os olhos pelas rubricas dos artigos à
cata de algum escândalo que lhe aguçasse a curiosidade embotada
pela fadiga de uma prolongada vigília.
Apareceu à porta da escada uma pessoa, que deitou a cabeça
a espiar, dizendo:
– Mano, já acordou?
– Entra, Mariquinhas, respondeu o moço, do sofá.
A moça aproximou-se do sofá, reclinou-se para o irmão,
que sem mudar de posição cingiu-lhe o colo com o braço
esquerdo atraindo-a a jeito de pousar-lhe um beijo na face.
– Quer o seu café? perguntou Mariquinhas.
– Traze, menina.
Momentos depois voltou a moça com a xícara de café.
Enquanto o irmão, soerguendo o busto, sorvia aos goles a aromática
bebida dos poetas sibaritas, ela ia à alcova buscar um charuto de marca
pérola, e acendia um fósforo.
Todos estes pormenores praticava-os como quem tinha perfeito conhecimento
dos hábitos do irmão, e sabia por experiência que regalia
não era o charuto para fumar-se logo pela manhã, e depois do
café.
Aceitava o indolente estes serviços como um sultão os receberia
de sua almeia favorita; de tão acostumado que estava, já não
os agradecia, convencido que para a moça era uma fineza consentir que
lhos prestasse.
Depois que o irmão acendeu o charuto, Mariquinhas sentou-se perto
dele à beira do sofá.
– Divertiu-se muito, mano?
– Nem por isso.
– Acabou bastante tarde. Quando você entrou deviam ser três
horas.
– E não valeu a pena; perdi a noite quando podia recobrar-me das
péssimas que passei a bordo.
– É verdade; fez mal em ir a um baile no mesmo dia da chegada.
O moço acompanhou com os olhos a espiral de um alvo froco da fumaça
de seu havana até que de todo se desfez nos ares.
– Sabes quem lá estava? E era a rainha do baile?… A Aurélia!
– Aurélia… repetiu a moça buscando na memória recordação
desse nome.
– Não te lembras?… Olha!
E o irmão cruzando o pé esquerdo sobre o joelho direito, mostrou,
com um aceno da mão alva e delicada, a chinela de chamalote.
– Ah! já sei; exclamou a moça vivamente. Aquela que morava
na Lapa?
– Justamente.
– Você gostava bem dela, mano.
– Foi a maior paixão da minha vida, Mariquinhas!
– Mas você esqueceu-a pela Amaralzinha; observou a irmã com um
sorriso.
Seixas moveu a cabeça com um meneio lento e melancólico; depois
de uma pausa, em que a irmã contemplou, compassiva e arrependida de
ter evocado aquela saudade, ele continuou em tom vivo e animado:
– Ontem no Cassino, estava deslumbrante, Mariquinhas! Nem tu podes imaginar!…
Vocês mulheres têm isso de comum com as flores, que umas são
flores da sombra e abrem com a noite, e outras são filhas da luz e
carecem de sol. Aurélia é como estas; nasceu para a riqueza.
Eu bem o pressenti! Quando admirava a sua formosura naquela salinha térrea
de Santa Teresa, parecia-me que ela vivia ali exilada. Faltava o diadema,
o trono, as galas, a multidão submissa, mas a rainha ali estava em
todo o seu esplendor. Deus a destinara à opulência.
– Está rica então?
– Apareceu-lhe de repente uma herança…. Creio que dum avô.
Não me souberam bem explicar; o certo é que possui hoje, segundo
me disseram, cerca de mil contos.
– Ela também tinha muita paixão por você, mano! observou
a moça com uma intenção que não escapou a Seixas.
Tomou ele a mão da irmã.
– Aurélia está perdida para mim. Quantos a admiravam ontem
no Cassino, podem pretendê-la, embora se arrisquem a ser repelidos;
eu não tenho esse direito, sou o único.
– Por quê, mano? É por causa da Amaralzinha, com quem dizem
que você há de casar-se?
– Isto ainda não é cousa decidida, Mariquinhas, tu bem sabes.
A razão é outra.
– Qual é então?
– Depois… depois eu te direi.
Terceira voz interveio no diálogo com estas palavras:
– Pode dizer já, mano; eu me vou embora. Não quero surpreender
seus segredos.
A pessoa que falara era outra moça que pouco antes entrara na sala
e ouvira as últimas réplicas da conversa.
– Pois vem cá, Nicota, que eu te direi ao ouvido o meu segredo! retrucou-lhe
Seixas a rir-se do amuo da irmã.
– Não mereço; isto é bom para Mariquinhas! tornou a
Nicota de longe.
– Que é isto agora de Nicota? Porque eu estava conversando com Fernandinho?
Será algum crime?
– Não é por isso, voltou-lhe a irmã com os olhos a marejar.
Você enganou-me dizendo que ia engomar seu vestido e veio espiar se
o mano já tinha acordado para trazer-lhe o café.
– Pois fui mesmo engomar; porém ouvi o mano abrir a porta… E você,
por que se deixou ficar?
– Eu estava acabando a costura daquela senhora, que você bem sabe, que
devo dar hoje sem falta. Tinha pedido a mamãe para me chamar logo que
Fernandinho acordasse; e ela, não o ouvindo assoviar como costuma,
pensou que estivesse dormindo ainda com o cansaço da viagem e do baile.
Seixas acompanhava com um sorriso de remoque, mas repassado de ternura e
desvanecimento, a contestação das duas irmãs.
– Mas afinal que culpa tenho eu, Nicota, do que fez a senhora D. Mariquinhas?
Não me dirás, menina?
– Não lhe acuso, mano. Alguém tem culpa de querer mais bem a
uma pessoa do que a outra?
– Ciumenta! exclamou Seixas.
O moço ergueu-se e foi ao meio da sala buscar a Nicota, que por despeito
se conservara arredia encostada à última cadeira.
– É escusado te agastares comigo, que eu não admito estes
arrufos. Quanto mais franzires a testa, mais beijos te dou para desmanchar
estas rugas tão feias.
– É o que ela queria! observou Mariquinhas já com sua ponta
de ciúme.
– Ora vamos a saber, senhora ingrata, disse Seixas trazendo a Nicota para
o sofá e sentando-a junto a si. Em que mostrei eu querer mais bem a
Mariquinhas do que a ti? Não reparti meu coração em duas
fatias, bem iguaizinhas, das quais cada uma tem a sua?
– Mas você gosta mais de conversar com Mariquinhas, tanto que toda esta
manhã estiveram aqui em segredinhos…
– É este o ponto da queixa? Pois senhora D. Mariquinhas vá-se
embora que eu quero conversar outro tanto tempo com Nicota e com ela só.
Está satisfeita? Assim fica bem paga?
Nicota sorriu, ainda entre o arrufo, como raio de sol através da nuvem.
– E o café?
– Ah! também temos o café? pois, filha, vai buscar outra xícara
que eu receberei com muito prazer de tuas mãos. E também me
darás um charuto que eu fumarei até o meio em lugar desta ponta.
Ainda falta alguma cousa?
A jovialidade do Seixas e o seu carinho, não só desvaneceram
as queixas da Nicota, como restabeleceram a cordialidade entre as duas meninas,
que se queriam extremosamente com afeto, só estremecido pelo ciúme
desse irmão mimoso.
VI
Filho de um empregado público e órfão aos dezoito anos,
Seixas foi obrigado a abandonar seus estudos na Faculdade de São Paulo
pela impossibilidade em que se achou sua mãe de continuar-lhe a mesada.
Já estava no terceiro ano, e se a natureza que o ornara de excelentes
qualidades lhe desse alguma energia a força de vontade, conseguiria
ele vencendo pequenas dificuldades, concluir o curso; tanto mais quanto um
colega e amigo, o Torquato Ribeiro lhe oferecia hospitalidade até que
a viúva pudesse liquidar o espólio.
Mas Seixas era desses espíritos que preferem a trilha batida, e só
impelidos por alguma forte paixão, rompem com a rotina. Ora, a carta
de bacharel não tinha grande solução para sua bela inteligência
mais propensa à literatura e ao jornalismo.
Cedeu pois à instância dos amigos de seu pai que obtiveram
encartá-lo em uma secretaria como praticante. Assim começou
ele essa vegetação social, em que tantos homens de talento consomem
o melhor da existência numa tarefa inglória, ralados por contínuas
decepções.
Continuando a carreira de empregado público, que lhe impunha a necessidade,
Seixas buscou para seu espírito superior campo mais brilhante e encontrou-o
na imprensa.
Admitido à colaboração de uma das folhas diárias
da Corte em princípio como simples tradutor, depois como noticiarista,
veio com o tempo a ser um dos escritores mais elegantes do jornalismo fluminense.
Não diremos festejado, como agora é moda, porque nesta nossa
terra os cortejos e aplausos rastejam a mediocridade feliz.
O pai de Seixas deixara seu escasso patrimônio complicado com uma
hipoteca, além de várias dívidas miúdas. Depois
de uma difícil e morosa liquidação, com que a viúva
achou-se embaraçada, pôde-se apurar a soma de doze contos de
réis, afora uns quatro escravos.
Partilhados estes bens, D. Camila, a mãe de Seixas, por conselho
de amigos, pôs o dinheiro a render na Caixa Econômica, donde ia
tirando os juros semestrais, com que acudia aos gastos da casa, ajudada dos
aluguéis de dois escravos e também de algumas costuras dela
e das duas filhas.
Fernando quis concorrer com seu ordenado para a despesa mensal, mas tanto
a mãe, como as irmãs, recusaram. Sentiam elas ao contrário
não poder reservar alguma quantia para acrescentar aos mesquinhos vencimentos,
que mal chegavam para o vestuário e outras despesas do rapaz.
No geral conceito, esse único filho varão devia ser o amparo
da família, órfã de seu chefe natural. Não o entendiam
assim aquelas três criaturas, que se desviviam pelo ente querido. Seu
destino resumia-se em fazê-lo feliz; não que elas pensassem isto,
e fossem capaz de o exprimir; mas faziam-no.
Que um moço tão bonito e prendado como o seu Fernandinho se
vestisse no rigor da moda e com a maior elegância; que em vez de ficar
em casa aborrecido procurasse os divertimentos e a convivência dos camaradas;
que em suma fizesse sempre na sociedade a melhor figura; era para aquelas
senhoras não somente justo e natural, mas indispensável.
Durante que Fernandinho alardeava nas salas de espetáculos, elas
passavam o serão na sala de jantar, em volta do candeeiro, que alumiava
a tarefa noturna. O mais das vezes solitárias; outras acompanhadas
de alguma rara visita, que as freqüentava no seu modesto e recatado viver.
O tema da conversa era invariavelmente o ausente. Não cansavam nunca
os elogios. Cada uma comunicava sua conjetura sobre a realização
de certos desejos e esperanças; pois desde essa época se acostumara
Fernandinho a fazê-las confidentes de seus menores segredos.
Se aquela de quem tanto gostava o rapaz estaria no baile; se lhe concederia
a contradança predileta, a quarta, que se reserva para o escolhido,
pela razão não somente de ser a infalível, como de dançar-se
no momento da maior animação; se o Fernandinho conseguiria enfim
dar-lhe a entender sua paixão, e como receberia a moça essa
declaração; tais eram as graves preocupações dessas
três criaturas, que privadas de toda a distração, trabalhavam
à luz da candeia para ganhar uma parte do necessário.
Outras noites era o acolhimento que faria ao rapaz a mulher de certo figurão,
a quem ele devia ser apresentado. Contava Seixas granjear os favores da senhora,
com a mira de alcançar por seu empenho a proteção do
ministro para um acesso. A mãe e as irmãs, às quais ele
confiara o projeto, inquietas do resultado, rezavam para que fosse bem-sucedido,
não percebendo em sua ingenuidade a natureza dessa influência
feminina que devia malear o ministro.
Foi assim que Seixas insensivelmente afez-se à dupla existência,
que de dia em dia mais se destacava. Homem de família no interior da
casa, partilhando com a mãe e as irmãs a pobreza herdada, tinha
na sociedade, onde aparecia sobre si, a representação de um
moço rico.
Dessa vida faustosa, que ostentava na sociedade, trazia Seixas para a intimidade
da família não só as provas materiais, mas as confidências
e seduções. Era então muito moço; e não
pensou no perigo que havia, de acordar no coração virgem das
irmãs desejos, que podiam supliciá-las. Quando mais tarde a
razão devia adverti-lo, já o doce hábito das confidências
a havia adormecido. Felizmente D. Camila tinha dado a suas filhas a mesma
vigorosa educação brasileira, já bem rara em nossos dias,
que, se não fazia donzelas românticas, preparava a mulher para
as sublimes abnegações que protegem a família, e fazem
da humilde casa um santuário.
Mariquinhas, mais velha que Fernando, vira escoarem-se os anos da mocidade,
com serena resignação. Se alguém se lembrava de que o
outono, que é a estação nupcial, ia passando sem esperança
de casamento, não era ela, mas a mãe, D. Camila, que sentia
apertar-se-lhe o coração, quando lhe notava o desbote da mocidade.
Também Fernando algumas vezes a acompanhava nessa mágoa; mas
nele breve a apagava o bulício do mundo.
Nicota, mais moça e também mais linda, ainda estava na flor
da idade; mas já tocava aos vinte anos, e com a vida concentrada que
tinha a família, não era fácil que aparecessem pretendentes
à mão de uma menina pobre e sem proteções. Por
isso cresciam as inquietações e tristezas da boa mãe,
ao pensar que também esta filha estaria condenada à mesquinha
sorte do aleijão social, que se chama celibato.
Quando Fernando chegou à maioridade, D. Camila nele resignou a autoridade
que exercia na casa, e a administração do módico patrimônio
que ficara por morte do marido, e que embora partilhado nos autos, ainda estava
intacto e em comunhão.
O rendimento da caderneta da Caixa Econômica e dos escravos de aluguel
andava em 1:500$000 ou 125$000 mensais. Como, porém, a despesa da família
subia a 150$000; as três senhoras supriam o resto com seus trabalhos
de agulha e engomado, no que as ajudavam as duas pretas do serviço
doméstico.
Ao tomar a direção dos negócios da casa, Seixas fez
uma alteração nesse regulamento. Declarou que entraria por sua
parte com os 25$000 que minguavam, ficando as senhoras com todo o produto
de seu trabalho para as despesas particulares, no que ele ainda as auxiliaria
logo que pudesse.
Nessa época já ele era segundo oficial, com esperanças
de ser promovido a primeiro; e seus vencimentos acumulados à gratificação
que recebia pela colaboração assídua do jornal, montavam
acima de três contos de réis. Mais tarde subiram a sete em virtude
de uma comissão que lhe deu o ministro, por haver simpatizado com ele.
Assim tinha anualmente um rendimento de 8:500$000 do qual deduzindo 1:800$000,
quantia que dava à família em prestações de 150$000
cada mês, ficavam-lhe para seus gastos de representação
6:700$000, quantia que naquele tempo não gastavam com sua pessoa muitos
celibatários ricos, que faziam figura na sociedade.
Uma noite, Seixas sofreu uma decepção amorosa ao entrar no
baile, e retirou-se despeitado. Não tendo onde consumir as horas, e
aborrecido da sociedade, recolheu-se a casa. A desventura pungiu-lhe a musa,
que era de índole melancólica. Lembrou-se do seu Byron e das
imitações que havia feito de algumas das mais acerbas exprobrações
do bardo inglês.
Era extraordinário passar Fernando a noite em casa. Para evitar explicações
resolveu entrar inapercebido, e subiu as escadas de manso. Abriu a porta da
sala com a chave francesa que ele trazia na argola, assim como a da rua, para
não incomodar a família quando voltava a desoras, e ganhou sua
alcova.
D. Camila com as filhas estava ao chá; havia de visita uma família
da vizinhança. As moças conversavam alto; no meio dessa garrulice
ouviu Fernando que falavam da representação de uma ópera
que se dava então no Teatro Lírico.
As amigas tinham assistido ao último espetáculo, e referiam-
por miúdo às duas irmãs, encarecendo o divertimento com
muitos louvores.
– Ainda não viram? Pois não devem faltar; vale a pena. Peçam
a seu irmão.
Tomadas de surpresa pela interpelação direta, as duas irmãs
arrefeceram logo no interesse com que escutavam a descrição
do espetáculo.
Retraíram-se ambas silenciosas, mas insistindo as outras com alguma
malícia, a Mariquinhas, que era mais desembaraçada, respondeu:
– Fernandinho já nos convidou muitas vezes; mas tem havido sempre um
transtorno qualquer.
– É verdade! observou Nicota.
Pela primeira vez desenhou-se claramente no espírito de Seixas, um
contraste que aliás tinha diante de si todos os dias, a cada instante,
e do qual era ele próprio um dos termos.
Enquanto lhe minguavam as horas para os prazeres de que se fartava, aquelas
três senhoras ali desfiavam as compridas noites sem outro entretenimento
além da tarefa jornaleira ou daqueles ecos do mundo, que até
lá chegavam com alguma rara visita.
Consigo unicamente despendia ele mais do triplo da subsistência de
toda a família. Nessa mesma noite para ir a um baile de que saíra
apenas chegado, dissipara maior quantia da necessária para dar a suas
irmãs a satisfação de um espetáculo lírico.
Estas idéias apossaram-se de seu espírito. Em vez de riscar
o fósforo, já em mão para acender a lâmpada que
alumiasse-lhe a vigília poética, e o charuto que lhe opiasse
a musa, atirou-se à cama, fincou a cabeça no travesseiro, e
dormiu o sono do justo.
Na primeira noite de representação lírica, Fernando
levou ao teatro a família. Foi uma festa para as três senhoras;
D. Camila, apesar de sua lhaneza e modéstia, sentiu ao atravessar a
multidão pelo braço do filho um aroma de orgulho, mas desse
orgulho repassado de susto, que é antes a consciência da própria
humildade, do que desvanecimento de egoísmo. As filhas partilhavam
este sentimento; e acreditavam que todas as outras moças lhes invejavam
aquele irmão.
Quando Fernando depois de instalar a família no camarote saiu a percorrer
o salão, encontrou um camarada:
– Ó Seixas, não me dirás onde foste desencovar aquele
terno de roceiras? Aposto que andas com tenções sinistras. Uma
delas não é nenhuma asneira!… Que temível!
Fernando cortou este diálogo, a pretexto de cumprimentar um conhecido
que passava.
Ao sair de casa, com a pressa e à luz mortiça do candeeiro,
não tinha ele reparado no vestuário da mãe e irmãs.
No camarote, porém, ao clarão do gás, não escaparam
a seu olhar severo em pontos de elegância, os esquisitos do vestuário
das três senhoras, tão alheias às modas e usos da sociedade.
O resto da noite, que lhe pareceu interminável, esquivou-se do camarote,
e quando lá demorava-se, não chegava à frente.
Durante alguns dias andou Seixas sorumbático e preocupado com este
incidente. Chegou a pretextar um incômodo para ficar-se em casa, e fugir
dos divertimentos. É verdade que esta esquivança da sociedade
também servia ao despeito da noite do baile. Ao cabo, resultou dessa
crise um raciocínio que serenou o nosso jornalista.
Freqüentando assiduamente e com algum brilho a sociedade, adquirindo
relações, e cultivando a amizade de pessoas influentes que o
acolhiam com distinção, era natural que ele Seixas fizesse uma
bonita carreira. Poderia de um momento para outro arranjar um casamento vantajoso,
como tinham conseguido muitos que não estavam em tão favoráveis
condições. Não era difícil também que de
repente se lhe abrisse essa estrada real da ambição, que se
chama política.
Uma vez rico e ilustre, montaria sua casa com um estado correspondente à
sua posição.
Então sua família participaria não só dos gozos
materiais desse viver opulento, como do brilho e prestígio de seu nome.
O trato da sociedade lhes imprimiria o cunho de distinção de
que precisavam para bem se apresentarem. Casaria as duas irmãs vantajosamente;
e faria assim a felicidade de todos esses entes queridos confiados a seu desvelo.
Se ao contrário, ele Seixas se onerasse desde logo, no princípio
de sua carreira, com o peso da família, prendendo-se à vida
obscura de que não podia tirá-la ainda mesmo com sacrifício
de todos seus rendimentos, que outra cousa devia esperar senão vegetar
na penumbra da mediana e consumir esterilmente sua mocidade?
Firmou-se pois Seixas nesta convicção que o luxo era não
somente a porfia infalível de uma ambição nobre, como
o penhor único da felicidade de sua família. Assim dissiparam-se
os escrúpulos.
Seixas acabava de chegar de Pernambuco, onde se demorara oito meses; desembarcara
na véspera, a tempo de não perder o Cassino.
O motivo ostensivo dessa viagem fora uma comissão, creio que de secretário
da presidência. Dizia-se, porém, nas rodas políticas que
o nosso escritor fora lançar as bases de uma candidatura próxima.
Sem contestar o fato, acrescentavam os invejosos que o levara ao Norte o fulgor
dos belos olhos negros de uma moreninha pernambucana, que fora o astro da
última sazão parlamentar.
Todas estas circunstâncias influíram na resolução
de Seixas; mas a razão predominante que o moveu, a ele carioca da gema,
a ausentar-se da Corte por oito meses, a seu tempo a saberemos.
VII
Brincava Fernando com as irmãs, quando bateram palmas à escada.
As meninas fugiram pela alcova; o Seixas, sem mudar de posição,
disse em alta voz:
– Suba!
Este modo de receber tão sem-cerimônia, talvez cause reparo em
um moço de educação apurada, mas Seixas não era
procurado em casa senão por algum caixeiro, ou por gente de condição
inferior.
Borbotou, é o termo próprio, borbotou pela sala a dentro a
nédia e roliça figura do Sr. Lemos que de relance fez às
carreirinhas um ziguezague e atochou à queima-roupa no Seixas estático
três apertos de mão um sobre o outro, coroados das respectivas
cortesias.
– É ao Sr. Fernando Rodrigues de Seixas que tenho a honra de falar?
O nosso escritor ergueu-se de pronto. Compondo as abas do chambre com um gesto
rápido, tomou o ar de suprema distinção, que ninguém
revestia com tanta nobreza e tacto.
– Tenha a bondade de sentar-se; disse oferecendo ao Lemos o sofá;
e desculpar-me este desarranjo de quem acaba de chegar.
– Sei. Desembarcou ontem?
Seixas confirmou com a cabeça:
– A quem tenho a honra de receber?
Lemos tirou do bolso uma carta que apresentou ao moço, fitando nele
o olhar perspicaz.
– A pessoa que me fez a honra de apresentá-lo, Sr. -Ramos, merece-me
tudo. É para mim uma fortuna esta ocasião de provar-lhe minha
estima, pondo-me inteiramente às ordens de V. S.ª.
Quando Seixas pronunciou o nome Ramos, o velhinho desfez-se em mesuras corrigindo
Lemos, mas com uma presteza e no meio de tais afinados de garganta, que não
o percebeu o seu interlocutor.
Eis a explicação do equívoco. Ao chegar à sua
casa na Rua de São José, Lemos tinha traçado um plano,
como indicava este monólogo:
– O que não tem remédio, remediado está. Desengane-se,
meu Lemos: com a tal menina é escusado trapacear que ela corta-lhe
as vasas. Portanto o que de melhor pode fazer um espertalhão da sua
marca, é tirar partido da situação.
Saltando do tílburi, o velhinho subiu ao sobrado, donde voltou logo
munido de um par de óculos verdes, que usara outrora por causa dum
ameaço de oftalmia. Fez ao cocheiro sinal de acompanhá-lo, e
dobrou pela Rua da Quitanda.
Pouco adiante entrou em uma loja:
– Ó comendador, dá-me aí uma carta de apresentação
para o Seixas.
O negociante a quem estas palavras eram dirigidas puxou pela memória.
– Seixas… Não conheço!
– Hás de conhecer por força. Vamos, escreve lá. Em favor
do Sr. Antônio Joaquim Ramos.
Era esta a carta que o tutor de Aurélia acabava de apresentar ao
Seixas. Viera ele confiado nos dois disfarces, o dos óculos, e o do
nome do recomendado.
Se apesar disto o moço o reconhecesse, ele acharia meio de sair perfeitamente
da dificuldade.
– Desculpe-me, V. S.ª, se o procuro logo no dia seguinte ao de sua
chegada, quando ainda deve estar fatigado da viagem; mas o assunto que me
traz é de sua natureza urgentíssimo.
– Estou pronto a ouvi-lo com toda a atenção.
– É negócio importante que exige a maior reserva e discrição.
– Pode contar com ela.
O Lemos bamboleou-se na cadeira com sua frenética alacridade e prosseguiu:
– Trata-se de uma moça, sofrivelmente rica, bonitota, a quem a família
deseja casar quanto antes. Desconfiando desses peralvilhos que por aí
andam a farejar dotes, e receando que a menina possa de repente enfeitiçar-se
por algum dos tais bonifrates, assentou de procurar um moço sisudo,
de boa posição, embora seja pobre; porque são justamente
os pobres que sabem melhor o valor do dinheiro, e compreendem a necessidade
de poupá-lo, em vez de atirá-lo pela janela fora como fazem
os filhos dos ricaços.
Lemos fitou os olhinhos de azougue no semblante de Seixas.
– Fui encarregado por essa família que me honra com sua amizade de
procurar a pessoa que se deseja, e minha presença aqui, neste momento,
significa que tive a fortuna de encontrá-la.
– Sua escolha devia lisonjear-me o amor-próprio, se o tivesse, Sr.
Ramos; porém há de compreender que não posso aceder…
– Perdão; em negócio tenho o meu sistema. Faça a proposta
com lisura, sem omitir os encargos e as vantagens, porque não costumo
regatear. O outro pensa, e aceita se lhe convém.
– Já vejo que é um verdadeiro negócio que me propõe!
observou Fernando com ironia cortês.
– Sem dúvida! atestou o velho. Mas ainda não disse tudo. A
pequena é rica bastante e dota o marido com cem contos de réis
em moeda sonante.
Como Seixas se calasse:
– Agora V. S.a me dirá se posso levar uma boa decisão?
– Nenhuma!
– Como assim? Nem recusa, nem aceita?
– Sua proposição, Sr. Ramos, permita-me esta franqueza, não
é séria, disse o moço com a maior urbanidade.
– Por que razão?
– Antes de tudo cumpre-me declarar-lhe que estou de algum modo comprometido,
e embora não haja um ajuste formal, todavia não poderia dispor
livremente de mim.
– Os compromissos rompem-se dum momento para outro.
– É exato; às vezes ocorrem circunstâncias que desatam
as mais solenes obrigações. Mas entre as razões que movem
a consciência, não se conta o interesse; ele daria ao arrependimento
a feição de uma transação.
– E o que é a vida, no fim de contas, senão uma contínua
transação do homem com o mundo? exclamou Lemos.
– Não vejo ainda a vida por esse prisma. Compreendo que um homem
sacrifique-se por qualquer motivo nobre, para fazer a felicidade de uma mulher,
ou de entes que lhe são caros; mas se o fizer por um preço em
moeda, não é sacrifício, mas tráfico.
O Lemos insistiu com todos os recursos da dialética materialista
que ele manejava habilmente. Não conseguiu, porém, desvanecer
os escrúpulos do moço que o ouvia com afabilidade, mantendo-se
inflexível na negativa.
– Bem; resumiu o velho. Não são negócios que se resolvem
assim de palpite. O Sr. Seixas pensará, e se como eu espero decidir-se,
me fará o favor de prevenir. Vou deixar-lhe minha morada…
– Agradeço, mas para esse objeto é inútil, observou
Seixas.
– Ninguém sabe o que pode acontecer!
O velho escreveu a lápis a rua e o número de sua casa numa folha
da carteira que deixou sobre o consolo.
Meia hora depois, Seixas descia a Rua do Ouvidor em busca do hotel de Europa,
onde ia almoçar à fidalga, pela volta do meio-dia.
De caminho encontrava os camaradas e conhecidos que o festejavam, pedindo-lhe
novas da viagem e dando-lhe as mais frescas da Corte. Entre estas figurava
a aparição de Aurélia Camargo, que datava de meses, mas
era ainda o grande sucesso do mundo fluminense.
Havia nessa noite teatro lírico. Cantava Lagrange no Rigoletto. Seixas,
depois de um exílio de oito meses, não podia faltar ao espetáculo.
Às oito horas em ponto, com o fino binóculo de marfim na mão
esquerda calçada por macia luva de pelica cinzenta, e o elegante sobretudo
no braço, subia as escadas do lado do mar.
No patamar encontrou Alfredo Moreira com quem de véspera apenas falara
de relance no Cassino.
– Ontem não sei onde te meteste, Seixas, cansei de procurar-te!
– Pois andava bem perto de ti. É que estavas ontem muito encandeado;
respondeu Fernando a sorrir.
– É verdade! Que mulher, Seixas! Não imaginas. Olhas de longe
e vês um anjo de beleza, que te fascina e arrasta a seus pés,
ébrio de amor. Quando lhe tocas, não achas senão uma
moeda, sob aquele esplendor. Ela não fala; tine como o ouro. Era para
apresentar-te que eu te procurei. Ei-la que chega!
Esta última exclamação, Alfredo soltou-a avistando um
carro que nesse momento parara à porta. Efetivamente dele saltou Aurélia,
que se dirigiu acompanhada de D. Firmina a seu camarote na segunda ordem.
Envolvia-a desde a cabeça até aos pés um finíssimo
e amplo manto de alva caxemira, que apenas descobria-lhe o fino rosto à
sombra do capuz, e uma orla do vestido azul.
Era preciso ter a suprema elegância de Aurélia para dentre
esse envolto singelo e fofo, desatar o garbo de um talhe encantador.
Ela parou justo em frente dos dois moços, voltando-lhes as costas,
à espera de D. Firmina, que se demorara em descer do carro.
– Não é uma beleza? perguntou Moreira ao camarada, em tom
de ser ouvido.
– Deslumbrante! Respondeu Seixas; mas para mim é uma beleza de espectro!
– Não entendo!
– É a imagem de uma mulher a quem amei, e que morreu. Esta semelhança
me repele!
Aurélia ficou impassível. Moreira que se adiantara para cortejá-la
pensou que o amigo tinha razão. Efetivamente havia alguma cousa de
fantástico, naquela fronte lívida e cintilante.
D. Firmina se aproximara. A moça retribuindo com um afável
cortejo ao cumprimento do Alfredo, passou como se não se apercebesse
de Fernando, e subiu à segunda ordem.
VIII
Lemos voltara satisfeito com o resultado da sua exploração.
Era o velho um espírito otimista, mas à sua maneira, confiava
no instinto infalível de que a natureza dotou o bípede social
para farejar seu interesse e descobri-lo.
Tinha pois como impossível que um moço, em seu perfeito juízo,
dirigido por conselho de homem experiente, repelisse a fortuna que de repente
lhe entrava pela porta da casa, e casa da Rua do Hospício a sessenta
mil-réis mensais, para tomá-lo pelo braço e conduzi-lo
de carruagem, recostado em fofas almofadas, a um palácio nas Laranjeiras.
Sabia Lemos que os escritores para arranjarem lances dramáticos e
quadros de romance, caluniavam a espécie humana atribuindo-lhe estultices
desse jaez; mas na vida real não admitia a possibilidade de semelhantes
fatos.
– “Não se recusam cem contos de réis”, pensava ele,
sem uma razão sólida, uma razão prática. O Seixas
não a tem; pois não considero como tal essas palavras ocas de
tráfico e mercado, que não passam de um disparate. Queria que
me dissessem os senhores moralistas o que é esta vida senão
uma quitanda? Desde que nasce um pobre-diabo até que o leve a breca
não faz outra cousa senão comprar e vender? Para nascer é
preciso dinheiro, e para morrer ainda mais dinheiro. Os ricos alugam os seus
capitais; os pobres alugam-se a si, enquanto não se vendem de uma vez,
salvo o direito do estelionato.
Assim, convencido de que Seixas não tinha o que ele chamava uma razão
sólida para rejeitar o casamento proposto, não vira Lemos na
primeira recusa senão um disfarce, ou talvez o impulso dessa tímida
resistência, que os escrúpulos costumam opor à tentação.
Esperava, pois, pela salutar revolução que dentro de poucos
dias se devia operar nas idéias do mancebo.
Ao sair da casa de Seixas, Lemos dirigiu-se à casa do Amaral, onde
entabulou uma negociação que devia assegurar o êxito da
primeira.
Desenganado o moço da Adelaide e dos trinta contos, não tinha
remédio senão aceitar a consolação dos cem; consolação
que levaria o pico de uma vingançazinha.
Não sei como pensarão da fisiologia social de Lemos; a verdade
é que o velhinho não mostrou grande surpresa quando uma bela
manhã veio dizer-lhe seu agente que o procurava um moço de nome
Seixas.
Esse agente chamava-se Antônio Joaquim Ramos, e era o mesmo de quem
o velho tomara emprestado o nome. Estava prevenido pelo patrão desta
circunstância que não o surpreendia, pois era jubilado em tais
alicantinas.
– Que espere! gritou o velho.
Tinha Lemos na loja da casa de morada uma cousa chamada escritório
de agências.
Era um corredor que dava porta para a rua e estendia-se até à
área do fundo, onde o velho trabalhava dentro de uma espécie
de gaiola, feita de tabique de madeira com balaústres.
Fora daí que respondera. Era seu costume sempre que ia tratar de
negócio importante, ruminá-lo de antemão para não
ser tomado de improviso. Foi o que fez nesse momento.
– De que disposições virá o sujeito? Quererá
sondar-me a respeito da noiva, desconfiado de que lhe pretendo impingir alguma
carcaça? Ah! ah! por este lado não há perigo. Terá
intenção de regatear? A menina não se importa de chegar
até aos duzentos e aposto que se for preciso vai por aí fora,
que isso de mulher, o dinheiro faz-lhe cócegas. Mas eu é que
não estou pelos autos! Seguro-me nos cem, que daí não
me arrancam. Quando muito uns vinte de quebra, para o enxoval e nem mais um
real!
Tendo feito seus cálculos, Lemos chegou à porta do cubículo
e gritou para a frente do armazém:
– Mande entrar!
Quando Seixas chegou ao escritório, já Lemos estava de novo
trepado no mocho, e debruçado à carteira continuava a despachar
seus negócios. Sem erguer a cabeça fez com a mão esquerda
um gesto ao moço indicando-lhe o sofá.
– Queira sentar-se; já lhe falo.
Terminada a carta, e enxuta com o mata-borrão, Lemos fechou-a na
competente capa; pôs-lhe sobrescrito, e só então girando
sobre o mocho, como uma figurinha de catavento, apresentou a frente ao moço.
– O senhor deseja falar-me? perguntou.
– Já se não recorda de mim? perguntou Seixas inquieto.
– Tenho uma lembrança vaga. O senhor não me é de todo
estranho!
– Não há três dias estivemos juntos, tornou Seixas; é
verdade que pela primeira vez.
– Há três dias?…
E Lemos fez semblante de recordar-se.
Desde que entrara, Seixas mostrara em sua fisionomia, como em suas maneiras,
um constrangimento que não era natural ao seu caráter. Parecia
lutar contra uma força interior que o demovia da resolução
tomada; mas se não podia subtrair-se a esses rebates, dominava-se bastante
para subjugá-los à necessidade.
O esquecimento de Lemos porém veio abalar aquela firmeza momentânea;
no semblante do moço pintou-se imediatamente a vacilação
do espírito. Não escapou essa alteração ao velho
que, recostando-se na cadeira a jeito de olhar o seu interlocutor de meio
perfil, se desfez em exclamações de surpresa:
– Ora!… O Sr. Seixas!… O meu amigo desculpe!… Isto de negociantes…
O senhor deve saber!… Temos a memória na carteira ou no borrador.
São tantas as cousas de que nos ocupamos, que realmente só uma
cabeça de duzentas folhas, como esta, pode chegar para tanto!
O velho soltou uma risadinha cacofônica e apontou para um livro mercantil
colocado sobre a carteira.
– Aqui está a minha, rubricada pelo tribunal do comércio e
competentemente selada, com todas as formalidades legais. Ah! ah! ah!… Então,
meu amigo, que manda a seu serviço?
– O Sr. Ramos mantém a proposta que me fez anteontem em minha casa?
perguntou Seixas.
Lemos fingiu que refletia.
– Um dote de cem contos no ato do casamento, é isto?
– Resta-me conhecer a pessoa.
– Ah! Este ponto, parece-me que deixei-o bem claro. Não tenho autorização
para declarar, senão depois de fechado nosso contrato.
– O senhor nada me disse a este respeito.
– Estava subentendido.
– Qual a razão deste mistério? Faz suspeitar algum defeito;
observou Fernando.
– Garanto-lhe que não; se o enganar, o senhor está desobrigado.
– Ao menos pode dar-me algumas informações?
– Todas.
Seixas dirigiu ao velho uma série de interrogações
acerca da idade, educação, nascimento e outras circunstâncias
que lhe interessavam. As respostas não podiam ser mais favoráveis.
– Aceito, concluiu o moço.
– Muito bem.
– Aceito; mas com uma condição.
– Sendo razoável.
– Preciso de vinte contos até amanhã sem falta.
O velho saltou na cadeira. Este caso o apanhava de surpresa:
– Meu amigo, se dependesse de mim… Mas o senhor sabe que neste negócio
eu sou apenas um procurador oficioso. Não tenho ordem para adiantar
a menor quantia. Quanto ao dote, depois de realizado o casamento, este sim,
garanto.
– Não pode emprestar-me sobre essa garantia?
Ao Lemos escapou uma careta que ele procurou disfarçar.
– Tem razão; observou Seixas sem alterar-se. V. S.ª não
me conhece, Sr. Ramos; e a posição em que me coloquei dando
este passo, não é própria decerto para inspirar confiança.
– Não é isso, homem, acudiu o velho ainda um tanto atrapalhado;
mas é que há viver e morrer.
– Desculpe-me o incômodo que lhe dei, tornou o moço fazendo
um cumprimento de despedida.
O negociante estava tão atarantado e perplexo que não correspondeu
à cortesia de Seixas, e o viu sair do escritório, indeciso sobre
o que havia de fazer.
– Para que diabo quererá este marreco os vinte contos? Aposto que
anda aqui volta do Alcazar. O rapaz está caído por alguma das
tais francesinhas; e elas que são umas jibóias!… Finas como
um alhambre, mas capazes de engolir um homem!… Que dirá a isso a
senhora minha pupila? Estará disposta a correr todos os riscos e perigos
da transação?
Neste ponto de seu monólogo, o velho recobrando sua petulante agilidade,
deu uma corrida à porta do armazém, onde ainda chegou a tempo
de avistar o moço, que afastava-se a passos lentos, pensativo e de
cabeça baixa.
– Oh! Sr. Seixas!… Faz favor!
O negociante adiantara-se alguns passos na rua para ir ao encontro do moço.
– É só uma pergunta! foi logo dizendo o velho para não
incutir vã esperança. Se recebesse os vintes contos, ficava
fechado de uma vez o nosso ajuste?
– Sem dúvida! Já o declarei.
– Não tínhamos mais objeção de qualquer espécie,
nem essas patranhas de honra e dignidade com que andam por aí uns certos
sujeitos a embaçar os outros. Negócio decidido, sem olhar à
fazenda, quero dizer, à pequena?
– Sendo ela como o senhor assegurou…
– Está visto! Escute, não prometo nada; mas espere-me amanhã
em sua casa, que eu lá estarei por volta das nove.
Lemos aviou uns negocinhos; muniu-se de uma folha de papel selado de vinte
mil-réis; e depois de jantar deu um pulo às Laranjeiras.
Aurélia estava lendo na sala de conversa; mas o estilo de George
Sand não conseguia nesse momento cativar-lhe o espírito que
às vezes batia as asas, e lá se ia borboleteando pelo azul de
uma sesta amena.
Quando lhe anunciaram o Lemos, ela sobressaltou-se; e o tremor que agitou
as róseas asas da narina, revelou a comoção interior:
– Uma pequena dificuldade que ocorreu naquele nosso negócio, é
o que me traz.
– Qual foi?
– O Seixas…
– Já lhe pedi que não pronuncie este nome; disse a moça
com um modo austero.
– É verdade! Desculpe-me, Aurélia, a precipitação…
Ele exige vinte contos de réis à vista, até amanhã,
sem o que não aceita.
– Pague-os!
A moça proferiu esta palavra com aquele timbre sibilante que em certas
ocasiões tomava sua voz, e que parecia o ranger do diamante no vidro.
Cobrira-se-lhe o semblante de uma palidez mortal; e por momentos parecia
que a vida tinha abandonado aquele formoso vulto, congelado em uma estátua
de mármore.
Não percebeu Lemos esse profundo confrangimento, atrapalhado como
estava a tirar do bolso uma das folhas de papel selado que estendeu sobre
a mesa, alisando-a com as palmas das mãos. Depois, molhando a pena,
apresentou-a à moça:
– Uma ordenzinha!
Aurélia sentou-se à mesa e traçou com uma letra miúda
de talhe oblíquo algumas linhas.
– Para que pede ele este dinheiro? perguntou a menina enquanto escrevia.
– Não me quis dizer; mas eu suspeito; e tratando-se de uma união,
de que depende o seu futuro, Aurélia, não devo ocultar cousa
alguma.
– É um favor, que lhe agradeço.
– Não tenho certeza; mas desconfio que é uma rapaziada. O
nosso José Clemente fez um palácio para guardar os doudos; mas
vieram os meus francesinhos e inventaram o tal Alcazar, que é uma casa
de fazer doudos; de modo que já eles não cabem na Praia Vermelha.
Aurélia mordia a extremidade da caneta, cujo marfim escurecia entre
os dois rocais de seus dentes de pérola.
– Não importa?
E assinou a ordem.
No dia seguinte à hora aprazada estava o Lemos em casa de Seixas.
– O senhor é um rapaz feliz. Aqui lhe trago a bolada.
O negociante tirou do bolso a segunda folha de papel selado.
– Temos que passar primeiro um recibozinho.
– Em que termos?
Depois de uma pequena discussão em que os escrúpulos de Seixas
relutaram contra a imposição da necessidade, assinou o moço
contrariado esta declaração:
“Recebi do Ilmo. Sr. Antônio Joaquim Ramos a quantia de vinte contos
de réis como avanço do dote de cem contos pelo qual me obrigo
a casar no prazo de três meses com a senhora que me for indicada pelo
mesmo Sr. Ramos; e para garantia empenho minha pessoa e minha honra.”
Depois de verificar que o recibo estava em regra, Lemos contou com a destreza
de um cambista o maço de notas que trazia e o entregou ao moço
recolhendo uma das cédulas:
– Dezenove contos novecentos e oitenta mil-réis… com vinte de selo…
Seixas recebeu o dinheiro com tristeza.
– Maganão feliz!…
Soltando a sua implicante risadinha, Lemos fez duas piruetas, deu três
saltinhos, beliscou a coxa de seu interlocutor e desceu a escada como uma
bola de borracha aos ricochetes.
IX
Seixas era homem honesto; mas ao atrito da secretaria e ao calor das salas,
sua honestidade havia tomado essa têmpera flexível de cera que
se molda às fantasias da vaidade e aos reclamos da ambição.
Era incapaz de apropriar-se do alheio, ou de praticar um abuso de confiança;
mas professava a moral fácil e cômoda, tão cultivada atualmente
em nossa sociedade.
Segundo essa doutrina, tudo é permitido em matéria de amor;
e o interesse próprio tem plena liberdade, desde que transija com a
lei e evite o escândalo.
No dia seguinte à visita de Lemos, logo pela manhã, D. Camila
procurou um pretexto para ir à alcova do filho.
– Venho falar-te de um negócio de família, Fernandinho. Há
um moço, aqui mesmo desta rua, que tem paixão pela Nicota. Está
começando sua vida; mas já é dono de uma lojinha. Não
quis decidir nada antes de tua chegada.
D. Camila contou então ao filho os pormenores do inocente namoro;
Fernando concordou com prazer no casamento.
– Já era tempo, disse a boa senhora suspirando. Estava com tanto
medo que a Nicota também fosse ficando para o canto, como minha pobre
Mariquinhas!
– Coitada! Mas eu ainda tenho esperança de arranjar-lhe um bom partido,
minha mãe.
– Deus te ouça. Ah! ia-me esquecendo. Então há de ser
preciso tirar algum dinheiro da Caixa Econômica por conta do que ela
tem para cuidar do enxoval.
– Já?… O moço ainda não a pediu.
– Só espera licença de Nicota, e ela não quis dar,
sem primeiro saber se era de teu gosto e meu. Hoje mesmo…
– Está bem. Logo que eu possa, irei tirar o dinheiro; mas se precisa
já de algum, tenho aqui.
– Não; melhor é comprar tudo de uma vez.
Fernando saiu contrariado. Com a vida que tinha, avultava sua despesa. O
dinheiro que recebia mensalmente gastava-o com o hotel, o teatro, a galanteria,
o jogo, as gorjetas, e mil outras verbas próprias de rapaz que luxa.
No fim do ano, quando chegava a ocasião de saldar a conta do alfaiate,
sapateiro, perfumista e da cocheira; não havia sobras.
Recorreu ao dinheiro da Caixa Econômica; e não teve escrúpulo
de o fazer, e desde que pontualmente continuou a entregar à mãe
a mesada de 150$000, esperando uma aragem da fortuna para restituir ao pecúlio
o que desfalcara. Mas em vez da restituição, foi entrando por
ele de modo que muito havia se esgotara.
Onde pois ia ele buscar o dinheiro que a mãe lhe pedira para o enxoval;
e mais tarde o resto do quinhão da Nicota?
Assinou Fernando o ponto na repartição, e como de costume, saiu
para almoçar; depois do que dirigiu-se à casa do correspondente
a quem ele incumbira de na sua ausência pagar a mensalidade a D. Camila,
e enviar-lhe algumas encomendas.
Contava com um saldo das remessas que havia feito de Pernambuco, e dos atrasados
que deixara a cobrar. Esbarrou-se porém com um alcance superior a dois
contos de réis; ao qual o correspondente começava a contar um
juro de 12%. Seixas compreendeu a eloqüência dessa taxa, que significava
uma intimação de imediato pagamento.
Ao escurecer, tornando a casa para trajar-se pois tinha de ir a uma partida,
achou três cartas, que haviam trazido em sua ausência.
Uma era do Amaral. Enchia duas laudas; dizia muito, mas nada concluía;
verdadeiro logogrifo epistolar, cuja decifração o autor deixava
à perspicácia do Seixas. Em suma o pai de Adelaide escrevera
uma folha de papel para preparar o pretendente a um próximo arrependimento
da promessa.
Quem estivesse traquejado no trato do Lemos, conheceria naquela prosa o
seu estilo, pintalegrete, como o seu físico.
As duas outras cartas eram simplesmente umas contas avulsas, mas não
insignificantes, que Seixas deixara ao partir para Pernambuco, e de que já
não tinha a menor idéia. Elas se faziam lembrar com o laconismo
brutal desta verba: – Importância de sua conta entregue o ano passado
– Rs. etc.
Fernando amassou as três missivas em uma pelota que arremessou ao
canto. A ruptura do ajuste de casamento, que em outra circunstância
porventura o contentaria com a restituição da liberdade e responderia
a um oculto desejo, naquele instante o acabrunhou. Viu nesse fato a prova
esmagadora da ruína que ia tragá-lo e de que eram documentos
as contas não pagas e as dívidas acumuladas.
Na reunião, onde foi passar a noite, esperava-o a última decepção.
Aceitando a comissão em Pernambuco, Seixas alcançara a promessa
de na volta continuar com a sinecura da recopilação das leis;
mas nessa manhã apresentando-se na secretaria surgiram certas dúvidas.
Confiou em seus protetores.
Apenas chegado o ministro, que era um dos convidados, despachou-lhe Fernando,
um após outro, seus melhores empenhos dos dois sexos. Caso inaudito;
o excelentíssimo foi inflexível; por força que andava
aí volta de alguma intriga.
Era um desfalque de conto e seiscentos nos rendimentos, e quando as urgências
mais avultavam. Decididamente a mão do destino pesava sobre ele e o
punia severamente dos pecadilhos da mocidade.
Quando Seixas achava-se ainda sob o império desta nova contrariedade,
apareceu na sala a Aurélia Camargo, que chegara naquele instante. Sua
entrada foi como sempre um deslumbramento; todos os olhos voltaram-se para
ela; pela numerosa e brilhante sociedade ali reunida passou o frêmito
das fortes sensações. Parecia que o baile se ajoelhava para
recebê-la com o fervor da adoração.
Seixas afastou-se. Essa mulher humilhava-o. Desde a noite de sua chegada
que sofrera a desagradável impressão. Refugiava-se na indiferença,
esforçava-se por combater com o desdém a funesta influência,
mas não o conseguia.
A presença de Aurélia, sua esplêndida beleza, era uma
obsessão que o oprimia. Quando, como agora, a tirava da vista fugindo-lhe,
não podia arrancá-la da lembrança, nem escapar à
admiração que ela causava e que o perseguia nos elogios proferidos
a cada passo em torno de si.
No Cassino, Seixas tivera um reduto onde abrigar-se dessa cruel fascinação.
Ocupara-se de Adelaide, que então ainda o tratava como noivo; e desfizera-se
em atenções e reqüestos, para não deixar presa à
preocupação.
Nessa noite, porém, obrigado a afastar-se da moça, com quem
estavam rotas suas relações, ele não sabia o que fizesse,
e pensava em retirar-se aterrado com a idéia de tornar-se o ludíbrio
daquela mulher fatal, quando ouviu uma voz que o agitou.
Ao voltar-se tinha diante de si Aurélia pelo braço de Torquato
Ribeiro; e Adelaide conduzida por Alfredo Moreira. Seixas quis retirar-se;
mas estava em uma estreita saleta, e um grupo de senhoras impedia-lhe a passagem.
– Proponho-lhe uma troca, D. Adelaide.
– Qual é, D. Aurélia?
– Troquemos os pares. Aceita?
Adelaide corou observando timidamente:
– Podem ofender-se.
– Não tenha susto.
Aurélia deixou o braço de Torquato e tomou o do Moreira que
exultou como se imagina.
– Esta troca é paga da outra que fizemos, ou que fizeram por nós;
ouviu, D. Adelaide?
Soltando estas palavras com um riso argentino, Aurélia perpassou pelo
semblante de Seixas o olhar sarcástico e imperioso.
Fernando saiu desesperado. Compreendera que Aurélia escarnecia da
repulsa que ele sofrera, e triunfava com seu infortúnio. Esta irrisão
depois dos transtornos econômicos fez-lhe o efeito de um cautério
aplicado ao talho.
Lembrou-se da moça dos quinhentos contos, que lhe haviam proposto
na véspera. Para ostentar sua riqueza nos salões, diante dessa
mulher enfatuada de seu ouro, valia a pena casar-se, ainda mesmo com uma sujeita
feia e talvez roceira. A roça é o viveiro de noivas ricas onde
se provê a mocidade elegante da Corte; daí vinha a suposição
de Seixas.
No outro dia, depois de uma insônia atribulada, Fernando recapitulando
as contrariedades com que o recebera a sua corte predileta, depois de uma
ausência prolongada, chegou a esta dolorosa conclusão: que estava
arruinado. Pobre, desacreditado, reduzido à vida de expedientes, com
a sua carreira cortada, que futuro era o seu? Não lhe restava senão
resignar-se à vegetação de emprego público com
a ridícula esperança de alforria lá para os cinqüenta
anos, sob a forma da mesquinha aposentadoria.
Esta perspectiva o horrorizava. Entretanto sua posição nada
tinha de assustadora. Com um pouco de resolução para confessar
à mãe suas faltas, e algumas perseveranças em repará-las,
podia ao cabo de dois anos de uma vida modesta e poupada restabelecer a antiga
abastança.
Mas essa coragem é que não tinha Seixas. Deixar de freqüentar
a sociedade; não fazer figura entre a gente do tom; não ter
mais por alfaiate o Raunier, por sapateiro o Campas, por camiseira a Cretten,
por perfumista o Bernardo? Não ser de todos os divertimentos? Não
andar ao rigor da moda?
Eis o que ele não concebia. Sentia-se com ânimo para matar-se;
mas para tal degradação reconhecia-se pusilânime.
Este pânico da pobreza apoderou-se de Seixas, e depois de trabalhá-lo
o dia inteiro, levou-o na manhã seguinte à casa do Lemos, onde
efetuou-se a transação, que ele próprio havia qualificado,
não pensando que tão cedo havia de tornar-se réu dessa
indignidade.
A uma justiça, porém, tem ele direito. Se previsse os transes
por que ia passar durante a realização do mercado, e especialmente
no ato de assinar o recibo, talvez se arrependesse. Mas arrastado de concessão
em concessão, a dignidade abatida já não podia reagir.
Três dias depois daquele em que recebera os vinte contos de réis,
achou Seixas ao recolher-se um recado do tal Ramos nestes termos:
“Prepare-se, que amanhã às 7 da noite vou buscá-lo
para a apresentação.”
No dia seguinte, à hora marcada, com pontualidade mercantil, parava
à porta do sobradinho da Rua do Hospício um carro, no qual poucos
momentos depois seguia o Lemos caminho das Laranjeiras com o noivo que ele
havia negociado para sua pupila.
Durante o rápido trajeto, o velho divertiu-se em meter sustos no
rapaz acerca da noiva, a quem sorrateiramente ia emprestando certos senões,
a pretexto de os desculpar. Ora dava a entender que a moça tinha um
olho de vidro; ora inculcava que era uma perfeita roceira, a qual o marido
devia logo depois do casamento mandar para o colégio.
Tão depressa inventava o negociante suas pilhérias, como as
destruía com o costumado repique de riso, batendo três palmadinhas
na perna de seu companheiro.
– Ficou passado, hein, maganão!… Qual roceira! Esteja descansado!
Não precisa de colégio; se ela já é uma academia!
Tome meu conselho; trate de estudar, senão o senhor faz má figura!
Eh! eh! eh!…
Seixas não prestava atenção às facécias
do velho; seu espírito estava nesse momento oprimido pela dolorosa
convicção que tinha do abatimento e vergonha de sua posição.
Agora sobretudo, ao começar a realização do mercado,
que ele havia feito de sua pessoa, quando ia encontrar-se com a mulher a quem
se alienara sem a conhecer, e em troca de um dote; agora é que toda
a humilhação desse procedimento se lhe desenhava com as cores
mais carregadas.
O carro acabava de parar. O velhinho saltando ágil e lépido
bateu no chão com os pés a fim de consertar as calças
que haviam subido pelos canos das botas.
– Escuso preveni-lo, observou Lemos, de que a pequena nada sabe, nem suspeita.
Por enquanto não dê a perceber.
X
O portão ficava a uns trinta passos da casa que se erguia no centro
de vasto jardim inglês.
Todas as janelas do primeiro pavimento estavam abertas e despejavam cortinas
de luz, que tremulavam nas águas do tanque e na folhagem verde agitada
pela brisa.
As visitas foram conduzidas pelo criado ao salão, onde apenas se
achava D. Firmina Mascarenhas, e o Torquato Ribeiro, com quem o velho trocou
algumas palavras no vão de uma janela, enquanto Seixas sentado junto
ao sofá aguardava o terrível momento.
Ouviu-se um frolido de sedas, e Aurélia assomou na porta do salão.
Trazia nessa noite um vestido de nobreza opala, que assentava-lhe admiravelmente,
debuxando como uma luva o formoso busto. Com as rutilações da
seda que ondeava ao reflexo das luzes, tornavam-se ainda mais suaves as inflexões
harmoniosas do talhe sedutor.
Como que banhava-se essa estátua voluptuosa, em um gás de
leite e fragrância.
Seus opulentos cabelos colhidos na nuca por um diadema de opalas, borbotavam
em cascatas sobre as alvas espáduas bombeadas, com uma elegante simplicidade
e garbo original que a arte não pode dar, ainda que o imite, e que
só a própria natureza incute.
Via-se bem que essa altiva e gentil cabeça não carregava um
fardo, talvez o espólio de um crânio morto, jogo cruel que a
moda impõe às moças vaidosas. O que ela ostentava era
a coma abundante de que a toucara a natureza, como às árvores
frondosas; era a juba soberba de que a galanteria moderna coroou a mulher
como emblema de sua realeza.
Cingia o braço torneado, que a manga arregaçada descobria
até a curva, uma pulseira também de opalas, como eram o frouxo
colar e os brincos de longos pingentes que tremulavam na ponta das orelhas
de nácar.
Com o andar crepitavam as pedras das pulseiras e dos brincos, formando um
trilo argentino, música do riso mavioso que essa graciosa criatura
desprendia de si e ia deixando em sua passagem, como os harpejos de uma lira.
Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no lago sereno, e que
era o passo das deusas. No meio das ondulações da seda parecia
não ser ela quem avançava; mas os outros que vinham a seu encontro,
e o espaço que ia-se dobrando humilde a seus pés, para evitar-lhe
a fadiga de o percorrer.
Se Aurélia contava com o efeito de sua entrada sobre o espírito
de Seixas, frustrara-se essa esperança; porque os olhos do mancebo,
nublados por um súbito deslumbramento, não viram mais do que
um vulto de mulher atravessar o salão e sentar-se no sofá.
A moça porém não carecia dessas ilusões cênicas.
Aquela aparição esplêndida era em sua existência
um fato de todos os dias, como o orto dos astros. Se sua beleza surgia sempre
brilhante no oriente dos salões, assim conservava-se toda a noite,
no apogeu de sua graça.
O Lemos, vendo entrar sua pupila, foi-lhe ao encontro e acompanhou-a até
ao sofá:
– Aurélia, tenho a honra de apresentar-lhe o Sr. Seixas.
A moça correspondeu com uma leve inclinação da fronte
à cortesia de Seixas, a quem estendeu a mão, que ele apenas
tocou. Ainda neste momento o moço não conseguiu de si fitar
a pessoa que tinha em face.
Esse rosto desconhecido incutia-lhe indizível pavor: porque era a
fisionomia de sua humilhação.
Aurélia para romper o enleio da apresentação começara
com o tio uma dessas conversas de sala, que suprem o piano e o canto; e que
não passam, como eles, de um rumor sonoro para entender o ouvido.
A extrema volubilidade com que a palavra lhe brincava nos lábios,
fazia contraste com a rispidez do gesto sempre harmonioso, e com um refrangimento
que por assim dizer congelava-lhe o lado do perfil voltado para Seixas.
Entretanto dissipou-se a grande comoção que percutira profundamente
o organismo desse homem, desde o momento da entrada de Aurélia no salão,
e lhe havia embotado os sentidos. Uma voz melodiosa penetrou-lhe n’alma,
acordando ecos dali adormecidos. Pela primeira vez pôs os olhos no semblante
da moça e imagine-se qual seria o seu pasmo reconhecendo Aurélia
Camargo.
Por algum tempo julgou-se vítima de uma alucinação.
Custava-lhe a convencer-se que tivesse realmente diante de si a mulher de
quem se julgava eternamente separado. A comoção foi tão
forte que desvaneceu quase de seu espírito a lembrança do motivo
que o trouxera àquela casa, e a posição falsa em que
se achava. Uma satisfação íntima o absorveu completamente,
e não deixou presa às amargas preocupações que
pouco antes o dominavam.
Também Aurélia de sua parte havia recobrado a calma, pois
voltou-se sem o mínimo acanhamento para o moço e perguntou-lhe:
– Esteve ultimamente no Norte, Sr. Seixas?
– Sim, minha senhora. Cheguei a semana passada de Pernambuco.
– Onde desempenhou uma comissão importante, acrescentou Lemos.
– O Recife é realmente tão bonito como dizem?
– Creio que poucas cidades do mundo lhe poderão disputar em encantos
de perspectiva e beleza de situação.
– Nem o nosso Rio de Janeiro? perguntou Aurélia com um sorriso.
– O Rio de Janeiro é sem dúvida superior na majestade da natureza;
o Recife porém prima pela graça e louçania. A nossa Corte
parece uma rainha altiva em seu trono de montanhas; a capital de Pernambuco
será a princesa gentil que se debruça sobre as ondas dentre
as moitas de seus jardins.
– É por isso que a chamam Veneza brasileira.
– Não conheço Veneza; mas pelo que sei dela, não posso
compreender que se compare um acervo de mármore levantado sobre o lodo
das restingas, com as lindas várzeas do Capiberibe, toucadas de seus
verdes coqueirais, a cuja sombra a campina e o mar se abraçam carinhosamente.
– Já vejo que o senhor encontrou a musa no Recife, observou Aurélia
gracejando.
– Acha-me poético? Não fiz senão repetir o que provavelmente
já disse algum vate pernambucano. Quanto à minha musa… ficou
anjinho: morreu de sete dias e jaz enterrada na poeira da secretária!
respondeu Seixas no mesmo tom.
Tinham entrado várias visitas, cuja chegada interrompeu este diálogo.
Aurélia ergueu-se para receber as senhoras, enquanto os cavalheiros
se derramavam pela sala esperando o momento de apresentar suas homenagens
à dona da casa.
Notava-se a completa ausência dos pretendentes declarados de Aurélia;
se algum conseguira ser convidado, devia o favor à circunstância
de não ter revelado ainda suas intenções.
Fatigada das adorações de que era alvo nos bailes e que se
transformavam em verdadeira perseguição, Aurélia fizera
dessas reuniões em família um como remanso onde se abrigava
da obsessão do mundo.
Aproveitando a confusão, Lemos levou Seixas à janela:
– Então enganei-o?
– Ao contrário; nunca eu poderia supor que fosse ela.
– Pois agora que a conhece, é tempo de saber que sou eu o feliz tutor
deste amorzinho; e que chamo-me Lemos e não Ramos. Diferença
de duas letras apenas. Enquanto não se fechava o negócio, era
preciso guardar o segredo. Compreende? Hein? Maganão!…
E Lemos beliscou o braço de Seixas, o que era uma das mais significativas
demonstrações de sua amizade.
Por meio da noite, a moça ao atravessar a sala quando voltava de
despedir-se de uma senhora, viu Seixas recostado a uma janela, pela parte
de fora.
A pretexto de fumar, o moço tinha saído ao jardim; e para
de todo não seqüestrar-se da sociedade, tomara aquela posição
da qual parecia acompanhar com a vista o que se fazia na sala; mas era como
se ali não estivesse pela preocupação que nesse momento
o reconcentrava.
Essa primeira pausa que lhe deixavam os deveres da sociedade depois da entrada
de Aurélia na sala, seu pensamento a aproveitou para bem compenetrar-se
dos fatos que se acabavam de passar e aos quais buscava uma causa ou uma explicação.
A moça a pretexto de olhar para o céu veio debruçar-se
à mesma janela:
– Está tão retirado! Também cultiva as estrelas?
– Quais? As do céu?
– Pois há outras?
– Nunca lho disseram?
– Talvez alguém se lembrasse disso; mas ainda não achei quem
me fizesse acreditar, respondeu a moça com um sorriso.
Seixas calou-se. Seu espírito além de pouco propenso a esses
torneios da palavra, estava cativo de uma idéia importuna.
– Quem sabe se vim perturbar alguma visão encantadora? insistiu Aurélia.
– Não a tenho. Estava pensando nos caprichos da fortuna que me trouxe
esta noite à sua casa. É isto uma graça ou uma ironia
da sorte? A senhora é quem poderá dizer-me.
Aurélia desatou a rir:
– Era preciso que eu estivesse na intimidade dessa senhora, para conhecer-lhe
as intenções; e apesar de muita gente considerar-me uma de suas
prediletas, acredite que no fundo não nos gostamos.
Isto disse-o a moça galanteando; mas logo ficou séria e prosseguiu:
– O que eu compreendo dessas palavras é que o Sr. Seixas arrependeu-se
de não haver empregado melhor seu tempo.
– E tenho eu o direito de arrepender-me! disse o moço em voz baixa,
como temendo que o ouvissem.
– Como está misterioso, meu Deus! Não fala senão por
enigmas. Confesso que não o entendo. Carece alguém de direito
para arrepender-se de uma cousa tão simples como uma visita!
– Tem razão, D. Aurélia. Desculpe; ainda não me recobrei
da surpresa. Vindo a esta casa, não esperava encontrá-la. Estava
longe de pensar…
– Tanto lhe desagradou o encontro? perguntou Aurélia sorrindo.
– Se eu ainda acreditasse na felicidade, diria que ela me tinha sorrido.
– E por que descreu?
Seixas fitou um olhar melancólico no semblante da moça:
– Que interesse lhe pode isso inspirar?… Questão de gênio;
a alguns nunca a esperança os abandona, a outros falta de todo a fé,
e desanimam com a menor decepção. E a senhora, D. Aurélia?
Há pouco ouvi-lhe uma alusão; foi de certo gracejo! Diga-me,
é feliz?
– Creio que sim; pelo menos todos o afirmam, e eu não posso ter a presunção
de conhecer melhor o mundo do que tantas pessoas mais sabedoras e experientes
que a minha cabecinha-de-vento. Assim, para não desmentir a opinião
geral, considero-me a mais ditosa moça do Rio de Janeiro. Todos os
meus caprichos são logo satisfeitos; não formo um desejo que
não o veja realizado. Por toda a parte cercam-me de adorações
e louvores que eu não mereço, e que por isso mesmo se tornam
mais lisonjeiros.
– Nada lhe falta portanto.
– Diz meu tutor que me falta um marido; e ele incumbiu-se de o escolher.
– Qualquer?… É-lhe isto indiferente? perguntou Seixas sorrindo.
– Está entendido que só aceitarei o que me agradar; mas não
quero ter o aborrecimento de ocupar-me com semelhante assunto.
– Tão pouco lhe interessa!
– Ao contrário; tanto receio tenho de comprometer eu mesma o meu futuro,
que o confio à sorte. Deus proverá.
Seixas interrogava o semblante risonho da moça para descobrir laivos
de ironia sob aquela graciosa volubilidade.
– E no seio de sua opulência, nos raros instantes de repouso que permitem
os prazeres de sua vida elegante, não lhe acode alguma recordação
de outros tempos?…
– Não falemos do passado! exclamou a moça com um modo ríspido.
Meigo sorriso, porém, apagou logo a veemência do gesto e a
cintilação do olhar:
– Nosso conhecimento data de hoje, Sr. Seixas. Os mortos, deixemo-los dormir
em paz.
Vertendo então n’alma do moço os eflúvios de
seu inefável sorriso, Aurélia retirou-se da janela.
XI
Desde então Seixas encontrou-se quase todas as noites com Aurélia,
ou em casa desta, ou na sociedade.
A maneira afável por que a moça o tratava tinha, se não
desvanecido completamente, ao menos embotado, as suscetibilidades de sua consciência
acerca do ajuste que fizera com Lemos. Não que se absolvesse da culpa;
mas esperava remi-la pelo amor.
Suas conversas com Aurélia versavam ordinariamente sobre temas de
sala. Às vezes, porém, ele aproveitava um pretexto para falar-lhe
nesse estilo terno e mavioso, que é como o canto do amor, e por isso
não carece da idéia, mas somente do vocábulo sonoro,
para embalar o coração aos suaves harpejos dessa música.
Então Aurélia pendia a fronte, e escutava com recolhimento
o lirismo da palavra inspirada pelo moço; todavia, nunca em seu rosto
ou em sua pessoa transpareceu o menor sinal de retribuição a
esse afeto. Ela abria a alma ao amor; porém o amor que filtrava nas
meigas falas de Seixas evaporava-se como uma fragrância que a envolvia
um instante, sem penetrar-lhe os seios d’alma.
Houve ocasião em que escapou a Seixas outra alusão ao passado.
Como da primeira vez ela o atalhou:
– Esse tempo não existe para mim. Nasci há um ano.
Encontrando-se uma tarde com Lemos, Seixas o interpelou:
– Tenho um favor a pedir-lhe.
– Dois que sejam.
– Diga-me com franqueza, qual o motivo por que o senhor escolheu-me de preferência
para marido de sua pupila, quando nem me conhecia?
O velho debulhou uma risadinha que lhe era peculiar.
– Hã! hã!… Então quer saber? Pois lá vai;
não faço mistério, não me convinha que a pequena
se deixasse iludir pelas lábias de um desses bigodinhos que lhe andam
ao faro do dote. Então soube que ela outrora gostara do senhor, e como
pelas informações que tinha, me quadrava, fui procurá-lo.
Agora o resto é por sua conta, maganão.
Esta explicação mais serenou o espírito do moço,
e dissipou uns últimos rebates que ainda o assaltavam às vezes.
Pensando bem, o modo por que ajustara seu casamento não era nenhuma
novidade; todos os dias se estavam fazendo dessas alianças de conveniência,
em termos idênticos; se não mais positivos.
Além disso a sorte, por uma feliz coincidência, fizera que
desse projeto de casamento de razão surtisse um enlace de amor; de
modo que o coração absolvia e santificava quanto se havia feito
para realização de seus votos.
Continuou pois Seixas com os seus doces madrigais e os maviosos noturnos
ao canto da sala.
Depois da noite da apresentação deixara Lemos a seu protegido,
como o chamava, o cuidado de arranjar seus negócios. Apareceu-lhe porém
uma manhã:
– Meu amigo, se não tem que fazer agora, vamos concluir o negócio.
Isto de casamento é como a sopa; não se deixa esfriar.
Seixas também tinha pressa de sair da situação em que
se achava; temia a cada instante ver dissipada a doce ilusão com que
sua alma disfarçava a transação por ele aceita. A idéia
de aparecer ante a moça sob o aspecto de um especulador, era-lhe suplício.
Acedeu prontamente ao convite do negociante, e acompanhou-o à casa
de Aurélia, em trajo de cerimônia.
A moça prevenida da visita os esperava no salão, onde foram
logo introduzidos; depois dos cumprimentos e de uma conversa frouxa e distraída,
Lemos, formalizando-se, tomou a palavra:
– D. Aurélia, o Sr. Seixas a quem já conhece por suas excelentes
qualidades, pessoa digna de toda a estima, pediu-me sua mão. Por minha
parte eu não podia fazer melhor escolha, em todos os sentidos; mas
tudo isto nada vale, se não tiver a fortuna de merecer o seu agrado.
Aurélia fitou em seu pretendente um olhar que desmentia o sorriso
em flor de seus lábios.
– Não lhe assustam meus caprichos e excentricidades?
– Se eu os adoro! respondeu Seixas galanteando.
– Não lhe parece difícil fazer a felicidade de um coração
desabusado como este meu, e tão afligido pela dúvida?
– Tenho fé no meu amor; com ele vencerei o impossível.
Apagou-se nos lábios de Aurélia o sorriso; e a expressão
de um ardente anelo, ressumbrando do mais profundo de sua alma, imergiu-lhe
o semblante.
– Aqui tem a minha mão; e tudo quanto posso dar-lhe. A mulher que
ama e que sonhou, essa não a possuo. Mas se o senhor tiver o poder
de a realizar, ela lhe pertencerá absolutamente como sua criatura.
Acredite que esta é a esperança de minha vida, eu a confio de
sua afeição.
A moça com um gesto de sublime abandono oferecera sua mão
acetinada a Seixas, que a beijou murmurando as efusões de seu júbilo
e gratidão.
O Lemos que se apartara discretamente para não acanhar os noivos,
tornou à conversação, que reassumiu o tom ligeiro das
banalidades do costume.
A notícia do próximo casamento de Aurélia produziu
na sociedade fluminense grande assombro.
Ninguém podia capacitar-se de que essa moça, pretendida pelo
creme dos noivos fluminenses, podendo escolher à vontade, entre os
seus inúmeros adoradores, maridos de toda a espécie, tivesse
o mau gosto de enxovalhar-se com um escrevinhador de folhetins.
O Alfredo Moreira, quando a encontrou depois da novidade, não pôde
esconder o despeito:
– Então casa-se?
– É verdade.
– Afinal achou; cotação muito alta sem dúvida? replicou
o elegante com ironia.
– Não, tornou-lhe a moça no mesmo tom. Ficou-me por uma ninharia.
– Ah! estimo muito. Que preço?
– Quer saber o preço?
– Estou curioso.
– Foi o seu.
O Moreira mordeu os beiços e riu-se. Apesar de tudo não perdera
a derradeira esperança. O projetado casamento podia desfazer-se por
qualquer motivo, e não era difícil que a moça de um momento
para outro se arrependesse da escolha com a mesma volubilidade com que a tinha
feito de repente e por um capricho.
Assim pensava o malogrado pretendente; enquanto que todos os indícios
pareciam revelar da parte de Aurélia a firme intenção
de persistir na primeira resolução, que ela não tomara,
senão depois de muito refletida.
Desde que anunciou-se o casamento, começou a moça a aparecer
mais raramente na sociedade, até que de todo retirou-se; limitando-se
ao pequeno círculo que freqüentava sua casa, e no qual ela por
assim dizer espanejava sua alma de um certo entorpecimento que lhe deixavam
as ternas confidências e devaneios namorados do noivo.
Seixas pelas palavras que Aurélia havia proferido tão d’alma,
na ocasião de dar-lhe a mão de esposa, julgara compreender o
segredo das estranhezas e oscilações do caráter da moça.
Ela duvida que eu a ame; pensou consigo. Suspeita que tenho a mira em sua
riqueza. É preciso que a convença da sinceridade de minha afeição.
Se ela soubesse! Um desgraçado pode sacrificar sua liberdade; mas a
alma não se vende!
Imbuído dessa idéia, não é de estranhar que Seixas
tivesse em suas expansões uma exuberância que descaía
em exageração. Muitas vezes fatigada, se não opressa,
dessas demonstrações apaixonadas, Aurélia que debalde
tentara adormecer com elas as desconfianças de sua alma, exclamava
entre fagueira e irônica:
– Ah! deixe-me respirar! Nunca fui amada, nem pensei que o seria com tamanha
paixão. Careço de habituar-me aos poucos.
A residência de Laranjeiras fora recentemente preparada com luxo correspondente
às avultadas posses da herdeira, e já na previsão do
próximo consórcio. Poucos eram os preparativos a fazer, para
a celebração do casamento, e esses, apressou-os o dinheiro,
que é o primeiro e mais eloqüente dos improvisadores.
Tratou-se pois de marcar o dia. O Lemos pôs em discussão a
questão dos padrinhos. Já ele tinha cogitado sobre o assunto,
e segundo a moda de nossa sociedade julgava indispensável pelo menos
uma baronesa para madrinha e dois figurões, cousa entre senador e ministro,
para padrinhos.
Não tinha ele amizade com gente dessa plaina, mas entendia que um
simples conhecimento de chapéu, e até mesmo a carta de recomendação
eram títulos suficientes para solicitar semelhantes favores, com que
a vaidade dos grandes se lisonjeia e a presunção dos pequenos
se exalta.
Grande foi portanto o embaraço de Lemos quando Aurélia declarou
que um dos seus padrinhos havia de ser o Dr. Torquato Ribeiro.
– Que lembrança! disse Fernando involuntariamente.
– Desagrada-lhe?
Na fisionomia da moça perpassou um súbito lampejo. Podia-se
tomar esse brilho pela chispa do solitário de seu anel que a luz feria,
quando a mão corrigia um crespo do cabelo desprendido do toucado.
– Podia escolher outra pessoa, Aurélia.
– Não é seu amigo? Ah! cuidava!…
– Não tem posição.
– Decerto! acudiu Lemos. A posição é essencial.
Um simples bacharel não correspondia por modo algum à noção
aristocrática que o velho tinha do paraninfo de uma herdeira milionária.
Além de que transtornava-lhe o plano, pois os altos personagens convidados
declinariam infalivelmente de ombrear com um rapazola que nem comendador era.
Aurélia porém não cedeu.
No dia seguinte assinou-se a escritura nupcial de separação
de bens que assegurava a Seixas um dote de cem contos de réis.
A moça que sempre esquivara-se à mínima interferência
em assuntos pecuniários, deixando esse cuidado ao tutor e conservando-se
de todo estranha a semelhantes arranjos, ainda desta vez soube evitar qualquer
inteligência com seu noivo acerca de interesses materiais.
Lemos levou Seixas ao cartório do Fialho, dizendo-lhe que era isso
uma exigência do juiz de órfãos, no que não faltou
à verdade, embora fosse antes a vontade da herdeira quem determinara
essa condição, que facilmente se ilude no foro.
Só mais tarde assinou Aurélia, para o que levou-lhe o tabelião
o livro à casa. Nenhuma palavra porém trocou-se entre ela e
o noivo a tal respeito.
XII
Reunira-se na casa das Laranjeiras, a convite de Aurélia, uma sociedade
escolhida e não muito numerosa para assistir ao casamento.
A moça não aceitou a idéia de dar um baile por esse
motivo; mas entendeu que devia cercar o ato da solenidade precisa, para tornar
bem notória a espontaneidade de sua escolha e o prazer que sentia com
esse enlace.
Não faltaram amigos e conhecidos, que sugerissem a Aurélia
a lembrança de fazer o casamento à moda européia, com
o romantismo da viagem logo depois da cerimônia, a lua-de-mel campestre,
e o baile de estrondo na volta à Corte.
Ela, porém, recusou todos esses alvitres; resolveu casar-se ao costume
da terra, à noite, em oratório particular, na presença
de algumas senhoras e cavalheiros, que lhe fariam, a ela órfã
e só no mundo, as vezes da família que não tinha.
Celebrara-se a cerimônia às oito horas. Lemos conseguira um
barão para servir de contrapeso ao Ribeiro e um monsenhor para oficiar.
Quanto à madrinha, Aurélia escolhera D. Margarida Ferreira,
respeitável senhora, que lhe mostrara desinteressada amizade, desde
a primeira vez que a encontrou na sociedade.
No momento de ajoelhar aos pés do celebrante, e de pronunciar o voto
perpétuo que a ligava ao destino do homem por ela escolhido, Aurélia
com o decoro que revestia seus menores gestos e movimentos, curvara a fronte,
envolvendo-se pudicamente nas sombras diáfanas dos cândidos véus
de noiva.
Mau grado seu, porém, o contentamento que lhe enchia o coração
e estava a borbotar nos olhos cintilantes e nos lábios aljofrados de
sorriso, erigia-lhe aquela fronte gentil, cingida nesse instante por uma auréola
de júbilo.
No altivo realce da cabeça e no enlevo das feições
cuja formosura se toucava de lumes esplêndidos, estava-se debuxando
a soberba expressão do triunfo, que exalta a mulher quando consegue
a realidade de um desejo férvido e longamente ansiado.
Os convidados, que antes lhe admiravam a graça peregrina, essa noite
a achavam deslumbrante, e compreendiam que o amor tinha colorido com as tintas
de sua palheta inimitável, a já tão feiticeira beleza,
envolvendo-a de irresistível fascinação.
– Como ela é feliz! diziam os homens.
– E tem razão! acrescentaram as senhoras volvendo os olhos ao noivo.
Também a fisionomia de Seixas se iluminava com o sorriso da felicidade.
O orgulho de ser o escolhido daquela encantadora mulher ainda mais lhe ornava
o aspecto já de si nobre e gentil.
Efetivamente, no marido de Aurélia podia-se apreciar essa fina flor
da suprema distinção, que não se anda assoalhando nos
gestos pretensiosos e nos ademanes artísticos; mas reverte do íntimo
com uma fragrância que a modéstia busca recatar, e não
obstante exala-se dos seios d’alma.
Depois da cerimônia começaram os parabéns que é
de estilo dirigir aos noivos e a seus parentes.
Só então reparou-se na presença de uma senhora de idade,
que ali estava desde o princípio da noite. Era D. Camila, mãe
de Seixas, que saíra de sua obscuridade para assistir ao casamento
do seu Fernando, e sentindo-se deslocada no meio daquela sociedade, retirou-se
com as filhas logo depois de concluído o ato.
Para animar a reunião as moças improvisaram quadrilhas, no
intervalo das quais um insigne pianista, que fora mestre de Aurélia,
executava os melhores trechos de óperas então em voga.
Por volta das dez horas despediram-se as famílias convidadas.
Encaminhou-se então Lemos com Seixas para aquela parte da casa onde
ficavam os aposentos, que Aurélia destinara a seu marido, os quais
estavam preparados com muito luxo, e sobretudo com uma novidade de muito gosto.
– Meu amigo, o senhor está casado, pelo que já lhe dei os
meus parabéns; falta-me porém cumprir um dever, que me cabe
como tutor que fui de sua mulher, e a quem nesta noite ainda faço as
vezes de pai.
– Também eu esperava este momento para agradecer-lhe os cuidados
e desvelos que dispensou a Aurélia, e assegurar-lhe minha sincera amizade.
– Não fiz mais do que pagar uma dívida à minha boa
irmã. Estimo esta pequena como se fosse minha filha; vi-a nascer.
Tirando do bolso uma argola de chaves, o velho passou a abrir os diversos
móveis de érable, que ia deixando às escancaras. Enquanto
expedia-se nessa tarefa, ia falando:
– Vou ter a satisfação de o instalar em seus novos aposentos.
Aqui está o seu gabinete de trabalho; ali é o toucador; deste
lado do jardim fica um quarto de banho, e uma saleta de fumar com entrada
independente para receber seus amigos. Tudo isto é um brinco.
– Bem reconheço a mão de Aurélia; estou sentindo em
todos estes objetos o aroma que exala de sua beleza, disse Seixas inebriado
de felicidade.
– Foi ela, sim senhor, que se incumbiu disso; mas ainda não viu tudo.
Olhe o enxoval.
Lemos mostrou então as gavetas e prateleiras dos guarda-roupas e
cômodas atopetados das várias peças de vestuário,
feito de superior fazenda e com maior apuro. Nada faltava do que pode desejar
um homem habituado a todas as comodidades da moda.
No toucador, se o tabuleiro de mármore ostentava toda a casta de
perfumarias, as gavetas continham cópias de jóias próprias
de um cavalheiro elegante. Algumas havia de grande preço, como o anel
de rubim, e uma abotoadura completa de brilhantes.
– Tudo isto lhe pertence, disse o velho terminando o inventário.
É cousa lá da pequena; não entrou em nosso ajuste.
Seixas experimentou sensação igual à do homem que no
meio de um sonho aprazível fosse arremessado a um pântano e acordasse
chafurdado na torpe realidade. A palavra ajuste, ali naquele instante, quando
acabava de santificar pelo juramento o eterno amor que votava a sua esposa;
quando estava-se revendo em sua lembrança, de que a moça deixara
impregnada a cada passo o luxo e elegância daqueles aposentos; essa
palavra proferida sem intenção pelo velho, infligiu-lhe a mais
acerba das humilhações.
Entretanto Lemos fechava as portas e gavetas que tinha aberto; e terminou
apresentando a Seixas a argola de chaves.
– Aqui tem, meu caro. Só uma chave não lhe posso eu dar; é
dali.
O velho indicou na extrema de um breve corredor uma porta oculta por um
reposteiro de seda azul com flecha dourada.
– Quando aquela porta abrir-se, não haverá em todo este Rio
um maganão mais feliz!
E o velho repicando a sua fustigante risadinha de falsete, tornou ao salão,
onde encontrou cinco negociantes, velhos camaradas, que a seu pedido se haviam
demorado, e achavam-se um tanto embrulhados com a história.
– Ó Lemos, não dirás que fazemos nós ainda a
esta hora aqui? Olhe, que para trapalhão temos conversado.
– Querem ver que o brejeiro pretende fazer o negócio com toda a solenidade!
Vocês não viram o aquele… o tabelião?
– É verdade; chamaram-no agora mesmo. E nós seremos as testemunhas.
Aqui desafogaram-se os sujeitos em boas risadas.
– Quase que adivinharam vocês; disse o Lemos; venham cá e verão
o que é.
Na saleta, onde Lemos introduziu seus amigos, estava sentado à mesa
do centro um tabelião, que assistira à cerimônia como
convidado e parecia agora em atitude de exercer algum ato do ofício.
Pela porta fronteira acabava de entrar Aurélia, em companhia de D.
Firmina. A moça trazia nos ombros uma peliça de caxemira cinzenta,
que disfarçava seu traje de noiva, cingindo-lhe a cabeça com
o frouxo capuz.
A auréola de júbilo, que resplandecia-lhe a beleza quando
ajoelhada aos pés do altar e ao lado do noivo, não se ofuscara;
mas ia empalidecendo. Às vezes, súbito erriçamento estremecia-lhe
o talhe delicado; percebia-se nesses momentos um eclipse da luz íntima,
como o vágado de uma lâmpada a apagar-se.
Ela sentou-se defronte do tabelião; aos lados da mesa tomaram lugar
Lemos e os outros negociantes.
– Peço aos senhores que me desculpem este incômodo; e aceitem
meu reconhecimento por sua bondade em acompanhar-me neste capricho.
Houve uns protestos murmurados.
– É minha última excentricidade! tornou Aurélia com
adorável sorriso. Ainda estou me despedindo da vida de moça;
por isso mereço alguma indulgência. Demais, pensando bem, não
é tão extravagante o que faço agora, pois o testamento
também faz parte da confissão. Quero aproveitar este momento
em que ainda sou senhora de mim e das minhas vontades, para declarar a última,
que foi também a primeira de minha vida.
Apesar da garridice com que proferiu a moça estas palavras, e da
graça jovial que o seu mago sorriso espargia sempre em torno de si,
um sentimento de vaga e indefinível tristeza pungiu as pessoas presentes;
especialmente quando Aurélia entregou ao tabelião o testamento
por ela escrito em uma folha perfumada de papel cetim, a gume dourado, com
o monograma A.C. em relevo escarlate.
A associação de dois atos tão opostos, a aurora da
existência e sua despedida; a idéia da morte a entrelaçar-se
naquela mocidade tão rica de todas as prendas; a grinalda de noiva
cingindo uma fronte a desfalecer; esse contraste era para deixar funda impressão
no ânimo.
Aviou o tabelião o termo de aprovação com as fórmulas
consagradas; e no meio do mais profundo silêncio restituiu à
moça o testamento já cerrado com um torçal de seda e
pingos de lacre dourado, cujo perfume derramou-se pela sala.
Nunca a abstrusa e rançosa algaravia de cartório se vira tão
catita. O papel, com ser testamento, não desdizia da linda mão
que traçara o contexto, e d’alma gentil que talvez nele havia
encerrado, com sua última vontade, o perfume de lágrimas ignotas.
Ao despedir-se da pupila, Lemos apertou-lhe a mão:
– Desejo-lhe que seja muito e muito feliz.
– Se o não for, será minha e minha só a culpa, respondeu
a moça agradecendo-lhe.
D. Firmina quis acompanhar a moça ao toucador, para prestar-lhe os
serviços de camareira de honra, que são de costume e privilégio
da mãe, e na falta desta, da mais próxima parenta.
Recusou Aurélia; abraçando a velha senhora, disse-lhe comovida:
– Reze por mim!
Ficando só, a moça fechou à chave a porta da saleta e
murmurou:
– Enfim!
Em todo aquele lado da casa não havia senão ela e seu marido.
XIII
Afastemos indiscretamente uma dobra do reposteiro que recata a câmara
nupcial.
É uma sala em quadro, toda ela de uma alvura deslumbrante, que realça
o azul-celeste do tapete de riço recamado de estrelas e a bela cor
de ouro das cortinas e do estofo dos móveis.
A um lado, duas estatuetas de bronze dourado representando o amor e a castidade
sustentam uma cúpula oval de forma ligeira, donde se desdobram até
o pavimento, bambolins de cassa finíssima.
Por entre a diáfana limpidez dessas nuvens de linho, percebe-se o
molde elegante de uma cama de pau-cetim, pudicamente envolta em seus véus
nupciais, e forrada por uma colcha de chamalote também cor de ouro.
Do outro lado, há uma lareira, não de fogo, que o dispensa
nosso ameno clima fluminense, ainda na maior força do inverno. Essa
chaminé de mármore cor-de-rosa é meramente pretexto para
o cantinho de conversação, pois que não podemos chamá-lo
como os franceses o coin du feu.
A bem dizer a lareira não passa de uma jardineira que esparze o aroma
de suas flores, em vez do brando calor do lume, por aquele círculo,
onde estão dispostas algumas poltronas baixas e derreadas, transição
entre a cadeira e o leito.
O aposento é iluminado por uma grande lâmpada de gás,
cujo globo de cristal opaco filtra uma claridade serena e doce, que derrama-se
sobre os objetos e os envolve como de um creme de luz.
Correu-se uma cortina, e Aurélia entrou na câmara nupcial.
Seu passo deslizou pela alcatifa de veludo azul marchetado de alcachofras
de ouro, como o andar com que as deusas perlustravam no céu a galáxia
quando subiam ao Olimpo.
A formosa moça trocara seu vestuário de noiva por esse outro
que bem se podia chamar trajo de esposa; pois os suaves emblemas da pureza
imaculada, de que a virgem se reveste quando caminha para o altar, já
se desfolhavam como as pétalas da flor no outono, deixando entrever
as castas primícias do santo amor conjugal.
Trazia Aurélia uma túnica de cetim verde, colhida à
cintura por um cordão de torçal de ouro, cujas borlas tremiam
com seu passo modulado. Pelos golpeados deste simples roupão borbulhavam
os frocos de transparente cambraia, que envolviam as formas sedutoras da jovem
mulher.
As mangas amplas e esvasadas eram apanhadas, na covinha do braço
e sobre a espádua, por um broche onde também prendia a ombreira,
mostrando o braço mimoso, cuja tez roseava a camisa de cambraia abotoada
no punho por uma pérola.
Os lindos cabelos negros refluíam-lhe pelos ombros presos apenas
com o aro de ouro, que cingia-lhe a opulenta madeixa; o pé escondia-se
em um pantufo de cetim que às vezes beliscava a orla da anágua,
como um travesso beija-flor.
O casto vestuário da moça recatava-lhe as graças do
talhe; entretanto quando ela andava, e que seu corpo airoso nadava nas ondas
de seda e cambraia, sentia-se mais n’alma do que nos olhos o debuxo
da estátua palpitante de emoção. A cada movimento que
imprimia-lhe o passo onduloso, acreditava-se que o broche da ombreira partira-se
e que os véus zelosos se abatiam de repente aos pés dessa mulher
sublime, desvendando uma criação divina, mas de beleza imaterial,
e vestida de esplendores celestes.
Aurélia atravessou o aposento, e chegando à porta que ficava
fronteira àquela por onde entrara, curvou de leve a cabeça recolhendo-se
para escutar; mas não ouviu senão o arfar do seio, que ofegava.
Afastou-se rapidamente, e foi atirar-se a uma das poltronas, em um gesto
de desânimo, cruzando as mãos e erguendo-as ao céu com
um olhar repassado de angústia.
– Meu Deus, por que não me fizeste como as outras? Por que me deste
este coração exigente, soberbo e egoísta? Posso ser feliz
como são tantas mulheres neste mundo, e beber na taça do amor,
em que talvez nunca mais toquem estes lábios. Não é o
néctar divino que eu sonhei, não; mas dizem que embriaga a alma,
e faz esquecer!…
O espírito de Aurélia rastreou a idéia que despontava,
e por algum tempo como que embalou-se num sonho:
– Não! exclamou arrebatadamente. Seria a profanação deste
santo amor que foi e será toda a minha vida!
Ergueu-se; deu algumas voltas pela câmara nupcial acariciando com os
olhos todos estes móveis e adereços, que ela escolhera para
ornarem o regaço de sua felicidade, e nos quais tinha como que esculpido
suas mais queridas esperanças.
Depois que assim repassou-se das reminiscências que lhe acordavam
esses objetos, foi rever-se no espelho, e enviou à sua feiticeira imagem
reproduzida no cristal, um sorriso de indefinível expressão.
Dirigiu-se então à porta, onde pouco antes escutara; deu volta
à chave, e afastou uma das bandas. Pouco depois, Seixas roçagou
a cortina, e cingindo o talhe de sua mulher, foi sentá-la em uma das
cadeiras.
– Como tardaste, Aurélia! disse ele queixoso.
– Tinha um voto a cumprir; quis emancipar-me logo de uma vez para pertencer
toda a meu único senhor; respondeu a moça galanteando.
– Não me mates de felicidade, Aurélia! Que posso eu mais desejar
neste mundo do que viver a teus pés, adorando-te, pois que és
a minha divindade na terra.
Seixas ajoelhou aos pés da noiva; tomou-lhe as mãos que ela
não retirava; e modulou o seu canto de amor, essa ode sublime do coração,
que só as mulheres entendem, como somente as mães percebem o
balbuciar do filho.
A moça com o talhe languidamente recostado no espaldar da cadeira,
a fronte reclinada, os olhos coalhados em uma ternura maviosa, escutava as
falas de seu marido; toda ela se embebia dos eflúvios de amor, de que
ele a repassava com a palavra ardente, o olhar rendido, e o gesto apaixonado.
– É então verdade que me ama?
– Pois duvida, Aurélia?
– E amou-me sempre, desde o primeiro dia que nos vimos?
– Não lho disse já?
– Então nunca amou a outra?
– Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios nunca tocaram a face de
outra mulher, que não fosse minha mãe. O meu primeiro beijo
de amor, guardei-o para minha esposa, para ti…
Soerguendo-se para alcançar-lhe a face, não viu Seixas a súbita
mutação que se havia operado na fisionomia de sua noiva.
Aurélia estava lívida, e a sua beleza, radiante há
pouco, se marmorizara.
– Ou de outra mais rica!… disse ela retraindo-se para fugir ao beijo do
marido, e afastando-o com a ponta dos dedos.
A voz da moça tomara o timbre cristalino, eco da rispidez e aspereza
do sentimento que lhe sublevava o seio, e que parecia ringir-lhe nos lábios
como aço.
– Aurélia! Que significa isto?
– Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel
com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores
não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel
mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor.
Entremos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao
que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.
– Vendido! exclamou Seixas ferido dentro d’alma.
– Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica; sou milionária;
precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas.
O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis,
foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha
riqueza por este momento.
Aurélia proferiu estas palavras desdobrando um papel, no qual Seixas
reconheceu a obrigação por ele passada ao Lemos.
Não se pode exprimir o sarcasmo que salpicava dos lábios da
moça; nem a indignação que vazava dessa alma profundamente
revolta, no olhar implácavel com que ela flagelava o semblante do marido.
Seixas, trespassado pelo cruel insulto, arremessado do êxtase da felicidade
a esse abismo de humilhação, a princípio ficara atônito.
Depois quando os assomos da irritação vinham sublevando-lhe
a alma, recalcou-os esse poderoso sentimento do respeito à mulher,
que raro abandona o homem de fina educação.
Penetrado da impossibilidade de retribuir o ultraje à senhora a quem
havia amado, escutava imóvel, cogitando no que lhe cumpria fazer; se
matá-la a ela, matar-se a si, ou matar a ambos.
Aurélia como se lhe adivinhasse o pensamento, esteve por algum tempo
afrontando-o com inexorável desprezo.
– Agora, meu marido, se quer saber a razão por que o comprei de preferência
a qualquer outro, vou dizê-la; e peço-lhe que me não interrompa.
Deixe-me vazar o que tenho dentro desta alma, e que há um ano a está
amargurando e consumindo.
A moça apontou a Seixas uma cadeira próxima.
– Sente-se, meu marido.
Com que tom acerbo e excruciante lançou a moça esta frase
meu marido, que nos seus lábios ríspidos acerava-se como um
dardo ervado de cáustica ironia!
Seixas sentou-se.
Dominava-o a estranha fascinação dessa mulher, e ainda mais
a situação incrível a que fora arrastado.
SEGUNDA PARTE
QuitaÇÃo
I
Dois anos antes deste singular casamento, residia à Rua de Santa
Teresa uma senhora pobre e enferma.
Era conhecida por D. Emília Camargo; tinha em sua companhia uma filha
já moça, a que se reduzia toda a sua família.
Passava por viúva, embora não faltassem malévolos para
quem essa viuvez não era mais do que manto decente a vendar o abandono
de algum amante.
Havia uns laivos de verdade nessa injusta suspeita.
Quando moça, D. Emília Lemos teve inclinação
por um estudante de medicina, que dela se apaixonara. Certo de que seu afeto
era retribuído, Pedro de Sousa Camargo, o estudante, animou-se a pedi-la
em casamento.
Vivia Emília na companhia do Sr. Manuel José Correia Lemos,
seu irmão mais velho e chefe da família. Tratou este de colher
informações acerca do moço. Veio ao conhecimento de que
era filho natural de um fazendeiro abastado, que o mandara estudar e tratava-o
à grande. Não o tinha porém reconhecido, o que era de
suma importância, pois além de existir a mãe do fazendeiro
lá para as bandas de Minas, o sujeito ainda estava robusto e podia
bem casar-se e ter filhos legítimos.
À vista destas informações entendeu Lemos que não
se podia prescindir de certas formalidades, dispensáveis no caso de
ser o rapaz herdeiro necessário. O irmão de Emília era
apenas remediado, e já custava-lhe bem agüentar com o peso de
doze pessoas que tinha às costas, para arriscar-se ainda ao contrapeso
de mais esta nova família em projeto.
– Por nossa parte, não há dúvida, meu camaradinha.
Arranje a licença do papai, ou o reconhecimento por escritura pública;
o resto fica por minha conta.
Era uma recusa formal, porquanto Pedro Camargo jamais se animaria a confessar
o seu amor ao pai, que lhe inspirava desde a infância, pela rudeza e
severidade da índole, um supersticioso terror.
– Sua família me repele, Emília, porque sou pobre e não
posso contar com a herança de meu pai, disse o estudante a primeira
vez que encontrou-se com a namorada.
A irmã de Lemos sabia pelas explicações dos parentes,
que efetivamente era aquele o motivo da recusa.
– Ela o repele porque é pobre, Senhor Camargo; mas eu o aceito por
essa mesma razão.
– Quer ser minha mulher ainda, Emília? Apesar da oposição
de seus parentes? Apesar de não ser eu mais do que um estudante sem
fortuna?
– Desde que o motivo da oposição de meus parentes, não
é outro senão sua pobreza, sinto-me com forças de resistir.
Que maior- felicidade posso eu desejar do que partilhar sua sorte, boa ou
má?
– Eu não me animava a pedir-lhe esta prova de seu amor, Emília.
Você é um anjo!
Quinze dias depois, Pedro Camargo parava à porta de Lemos em um carro.
Era a hora do chá; estavam todos na sala de jantar. Emília que
se recolhera a pretexto de incômodo, desceu a escada sem que a percebessem.
No dia seguinte pela manhã, Lemos, de jornal aberto, tomava nota
dos anúncios, tarefa habitual com que estreava o dia, quando lhe entregaram
uma carta. A capa era de relevos, e o conteúdo um quarto de papel cetim
com estas palavras:
“Pedro de Sousa Camargo
e D. Emília Lemos Camargo
têm a honra de participar a V. S.a o seu casamento.
Rio de Janeiro, etc.”
Na casa de Lemos ninguém acreditou em semelhante casamento. Para a
família, a moça não era senão a amante de Pedro
Camargo; e por conseguinte uma mulher perdida.
Entretanto o casamento fora celebrado na Matriz do Engenho Velho, em segredo,
mas com todas as formalidades; pois os noivos eram maiores, e haviam requerido
as dispensas necessárias.
Por esse tempo o fazendeiro Lourenço de Sousa Camargo recebeu o aviso
de que o filho vivia com uma rapariga que tirara de casa da família.
Acrescentava o oficioso amigo que o estudante já se inculcava de casado;
portanto não seria de espantar se coroasse a primeira extravagância
com a loucura de semelhante união.
Despachou imediatamente o velho um de seus camaradas, o mais decidido, com
intimação ao filho para recolher-se à fazenda no prazo
de uma semana. O emissário trazia ordem terminante de conduzi-lo à
força, caso não obedecesse.
Pedro Camargo arrancou-se aos braços de sua Emília, prometendo-lhe
voltar breve para não mais separarem-se. Passados os primeiros assomos
da irritação do velho, aproveitaria qualquer ocasião
para confessar-lhe tudo. O pai, que o amava, não lhe negaria o perdão
de uma falta irremediável e santificada pela religião.
Faltou, porém, ao moço a coragem para afrontar novamente as
iras do fazendeiro com a revelação do seu casamento. Preparava-se,
fazia firme tenção; mas no momento propício fugia-lhe
a resolução.
Assim correram os dias, e prolongou-se a ausência de Pedro Camargo.
Escrevia ele à sua Emília longas cartas cheias de ternuras e
protestos, nas quais prometia-lhe partir dentro em poucos dias para levá-la
à fazenda.
Ao mesmo tempo e por intermédio de um amigo remetia à mulher
os meios de prover à sua subsistência, enquanto não podia
chamá-la para sua companhia; o que se realizaria logo que revelasse
ao pai o segredo do casamento.
Emília muito sofreu com essa ausência; não tanto pela
posição falsa em que ficara, mas sobretudo pelo amor que tinha
ao marido. Era porém feita para as abnegações; em suas
cartas a Pedro, nunca lhe escapou a menor queixa. Longe de exprobrar-lhe os
receios, que a mantinham na incerteza de sua sorte; ao contrário o
consolava do remordimento que sentia de sua própria timidez.
Ao cabo de um ano, desvanecidas se não dissipadas as suspeitas do
velho fazendeiro, consentiu ele que o filho viesse à Corte de passagem.
Reviram-se os dois esposos depois de tão longa ausência, e
amaram-se nesses poucos dias por todo o tempo da separação.
Encontrou Pedro Camargo já com dois meses o seu primeiro filho, a
que deu o nome de Emílio, apesar das instâncias da mãe,
que instava por Pedro.
Não, Pedro não; é o nome de um infeliz, respondia o
marido com os olhos cheios de lágrimas.
Continuou este singular teor da vida dos dois esposos que passavam juntos
em sua casinha da Rua de Santa Teresa algumas semanas intercaladas por muitos
meses de separação.
Essas ausências acrisolavam o amor, e lhe davam uma exuberância
que mais tarde expandia-se com ignoto fervor. Os dias que Pedro Camargo demorava-se
na Corte era uma bem-aventurança para dois corações que
se reproduziam um no outro.
Emília se resignou à sorte que lhe reservara a Providência;
ainda assim julgava-se bem feliz com a afeição e ternura do
homem a quem escolhera.
Refletira que sabendo de seu casamento talvez se irritasse o velho fazendeiro,
e destruísse de repente essa ventura que lhe coubera em partilha, a
ela e seu marido.
Além de que Pedro Camargo era filho natural ainda não reconhecido;
seu futuro dependia exclusivamente da vontade do pai, que podia abandoná-lo
como a um estranho, deixando-o reduzido à indigência. Esta circunstância
influiu muito no espírito de Emília; não por si, que
não tinha ambição: mas era esposa e mãe.
A esse tempo já lhe havia nascido também uma filha que chamou-se
Aurélia, por ter sido este o nome da mãe de Pedro Camargo, infeliz
rapariga, que morrera da vergonha de seu erro.
Convencida do perigo de revelar o segredo de seu casamento, Emília
condenou-se a uma existência não somente obscura, mas suspeita.
Bem custava à sua virtude o desprezo injusto que a envolvia, e o escárnio
a pungia; mas era por seu marido e por seus filhos que sofria. Refugiava-se
no isolamento; confortava-se com a esperança da reparação.
Cresceram os dois filhos de Camargo; ambos eles receberam excelente educação.
As liberalidades do velho fazendeiro permitiam que Pedro tratasse a família
com decência e abastança; tanto mais quanto não tinha
ele cousa com que distraísse dinheiro daquele honesto emprego, a não
ser o seu modesto vestuário.
Haviam decorrido doze anos depois do casamento de Pedro Camargo e estava
ele com trinta e seis, quando seu caráter fraco e irresoluto foi submetido
a uma prova cruel.
Por diversas vezes mostrara o fazendeiro ao filho desejos de vê-lo
casado; mas essas veleidades sem alvo determinado passavam, e as labutações
da vida rural distraíam o velho das preocupações domésticas.
Pedro Camargo quitava-se deste perigo com um pequeno susto.
Afinal, porém, o pai exigiu formalmente dele que se casasse, e indigitou-lhe
a pessoa já escolhida. Era a filha de um rico fazendeiro da vizinhança.
Tinha ela completado os quinze anos; antes que a notícia deste dote
sedutor chegasse à Corte, tratou o velho Camargo de arranjá-lo
para o filho.
Pedro opôs à vontade do pai a resistência passiva. Nunca
se animou a dizer não; mas também não se moveu para cumprir
as recomendações ou antes ordens que lhe dava o fazendeiro.
Este esbravejava; ele abaixava a cabeça, e passada a tormenta, caía
outra vez na inércia.
Quando o fazendeiro viu que apesar dos seus ralhos e gritos o filho não
se decidia a visitar a moça, irou-se por modo que ameaçou expulsá-lo
de casa, se não montasse a cavalo naquele mesmo instante para ir à
fazenda vizinha ver a noiva e reiterar ao pai o pedido feito em seu nome.
Pedro Camargo não disse palavra. Desceu à estrebaria; selou
o animal; pôs a garupa sua maleta; e partiu, mas não para a fazenda
vizinha. Foi ter a um rancho, onde contava demorar-se o tempo preciso para
dar alguma direção à sua vida.
Durante esta provança tinha continuado a escrever à mulher;
mas ocultou-lhe o transe por que estava passando, para não afligi-la.
A resistência à vontade do pai, a quem acatava profundamente,
e as sublevações de sua consciência contra o receio de
confessar a verdade, abalaram violentamente o robusto organismo desse homem
forte para os trabalhos físicos, mas não feito para essas convulsões
morais.
Pedro Camargo foi acometido de uma febre cerebral, e sucumbiu no rancho
aonde procurara um abrigo, longe dos socorros e quase ao desamparo. Apenas
teve para acompanhá-lo em seus últimos instantes um tropeiro
que vinha para a Corte.
Trazia o infeliz consigo cerca de três contos de réis, que
desde certo tempo começara a juntar com intenção de estabelecer-se
nalguma modesta rocinha, onde pudesse viver tranqüilo com a família.
A sorte não o consentiu. Confiou ele o dinheiro ao tropeiro pedindo-lhe
que o entregasse de sua parte à sua mulher. Recomendou-lhe porém
que não contasse o desamparo em que o vira, para não acabrunhá-la
ainda mais.
Cumpriu o tropeiro o encargo com uma probidade, de que ainda se encontram
exemplos freqüentes nas classes rudes, especialmente do interior.
Emília cobriu-se do luto que não despiu senão para
trocá-lo pela mortalha. Mais negro porém e mais triste do que
o vestido era o dó de sua alma, onde jamais brotou um sorriso.
II
A viuvez tornou ainda mais isolada e recolhida a existência de Emília,
acrescentando-lhe a indiferença e desapego do mundo.
O único elo que a prendia à terra eram seus filhos; mas tinha
o pressentimento de que não permaneceria muito tempo com eles. O marido
a chamava; abandonou-se àquela atração que a aproximava
do ente a quem mais amara, e a desprendia aos poucos do espólio que
ainda a retinha neste vale de lágrimas.
Só uma inquietação a afligia, ao pensar no próximo
termo de seu infortúnio; era a lembrança do desamparo em que
ia ficar sua filha Aurélia, já nesse tempo moça, na flor
dos dezesseis anos.
De sua família, não podia Emília esperar arrimo para
a órfã. As relações, cortadas por ocasião
de seu casamento, nunca mais se haviam reatado. Os parentes continuavam a
considerá-la mulher perdida; e evitavam o contágio de sua reputação.
Do sogro, também já recebera a pobre viúva o desengano.
Depois do falecimento do marido e logo que a dor lhe permitiu outros cuidados,
escrevera ao Lourenço de Sousa Camargo, revelando-lhe o segredo do
casamento, e implorando sua proteção para os filhos de seu filho.
O fazendeiro, da mesma forma que os parentes de Emília, não
acreditou na realidade de um casamento oculto até àquela época,
e do qual não aparecia documento ou outra prova.
A carta da viúva só lhe revelou a continuação
de relações que ele supunha deste muito extintas.
Atinando que fora a influência dessa mulher a causa da desobediência
do filho, lançava-lhe a culpa da desgraça que sobreveio, esquecido
de que ninguém sofrera tanto como ela pois além da viuvez, a
morte do marido deixava-lhe a pobreza e a desonra.
Ainda assim, nessa disposição de ânimo, foi generoso
o Camargo. Mandou entregar a Emília um conto de réis; dinheiro
cru e seco sem uma palavra de consolo ou de esperança. A pessoa que
o levou à viúva, fez-lhe sentir que tão avultada esmola
devia livrar o fazendeiro de futuras importunações.
O Emílio, que podia ser o amparo natural da irmã, quando viesse
a faltar-lhe a mãe, não estava infelizmente nas condições
de receber o difícil encargo. Ao caráter irresoluto do pai,
juntava ele um espírito curto e tardio. Apesar de haver freqüentado
os melhores colégios, achava-se aos dezoito anos tão atrasado
como um menino de regular inteligência e aplicação aos
doze anos.
Reconhecendo sua inaptidão para alguma das carreiras literárias,
Emília lembrara-se de encaminhá-lo à vida mercantil.
Por intermédio do correspondente do marido e pouco tempo depois da
morte deste, fora o rapaz admitido como caixeiro de um corretor de fundos.
Por mais esforços que fizesse o pobre Emílio, não lograva
destrinçar as efemérides financeiras do movimento dos fundos
públicos e oscilações do mercado monetário. Isto
que aí qualquer filhote de zangão, a quem não desponta
ainda o bigode, avia em duas palhetadas, era para Emílio ciência
mais abstrusa do que a astronomia.
Chegava a casa com a sua tábua de câmbios, o preço corrente,-
a cotação da praça e as notas que lhe havia dado o corretor.
Sentava-se à mesa; preparava o tinteiro e o papel, mas não havia
meio de começar. Seu espírito embrulhava-se por modo na tal
meiada, que não atava nem desatava. Ao cabo chorava de raiva.
Corria então Aurélia a consolá-lo. Sabia ela já
a causa daquele pranto, cuja explicação uma vez lhe arrancara
à força de carinho e meiguice. Tirava-o do desespero, animava-o
a tentar a operação, e para suster-lhe os esforços ia
auxiliando-lhe a memória e dirigindo o cálculo.
A natureza dotara Aurélia com a inteligência viva e brilhante
da mulher de talento, que se não atinge ao vigoroso raciocínio
do homem, tem a preciosa ductilidade de prestar-se a todos os assuntos, por
mais diversos que sejam. O que o irmão não conseguira em meses
de prática, foi para ela estudo de uma semana.
Desde então, o caixeiro que ia à praça receber as ordens
do patrão e levar-lhe os recados, era o Emílio, mas o corretor
que fazia todos os cálculos e operações, ou arranjava
o preço corrente, era Aurélia. Assim poupava a menina um desgosto
ao irmão, e o mantinha no emprego a tanto custo arranjado.
Bem se vê, pois, que Emílio longe de prometer um amparo à
irmã, ao contrário tinha de ser, se já não era,
um oneroso sacrifício para a menina, obrigada a consumir com ele o
tempo e os poucos recursos, fruto de seu trabalho.
Nestas circunstâncias, a mãe só via para a filha o natural
e eficaz apoio de um marido. Por isso não cessava de tocar a Aurélia
neste ponto, e a propósito de qualquer assunto.
Se vinha a falar-se de sua moléstia que fazia rápidos progressos,
dizia Emília à filha:
– O que me aflige é não ver-te casada. Mais nada.
Quando lembravam-se que o dinheiro deixado por Pedro Camargo e a esmola
do fazendeiro haviam de acabar-se um dia, ficando elas na indigência,
acudia a viúva:
– Ah! se eu te visse casada!
Aurélia é quem suportava todo o peso da casa. Sua mãe,
abatida pela desgraça e tolhida pela moléstia, muito fazia,
evitando por todos os modos tornar-se pesada e incômoda à filha.
Envolvera-se ainda em vida em uma mortalha de resignação, que
lhe dispensava o médico, a enfermeira e a botica.
Os arranjos domésticos, mais escassos na casa do pobre, porém
de outro lado mais difíceis, o cuidado da roupa, a conta das compras
diárias, as contas do Emílio e outros misteres, tomavam-lhe
uma parte do dia; a outra parte ia-se em trabalhos de costura.
Não lhe sobrava tempo para chegar à janela; à exceção
de algum domingo em que a mãe podia arrastar-se até à
igreja à hora da missa e de alguma volta à noite acompanhada
pelo irmão, não saía de casa.
Esta reclusão afligia a viúva, que muitas vezes lhe dizia:
– Vai para a janela, Aurélia.
– Não gosto! respondia a menina.
Outras vezes, ante a insistência da mãe, buscava uma desculpa:
– Estou acabando este vestido.
Emília calava-se, contrariada. Uma tarde porém manifestou
todo o seu pensamento.
– Tu és tão bonita, Aurélia que muitos moços
se te conhecessem haviam de apaixonar-se. Poderias então escolher algum
que te agradasse.
– Casamento e mortalha no céu se talham, minha mãe, respondia
a menina rindo-se para encobrir o rubor.
O coração de Aurélia não desabrochara ainda;
mas virgem para o amor, ela tinha não obstante a vaga intuição
do pujante afeto, que funde em uma só existência o destino de
duas criaturas, e completando-as uma pela outra, forma a família.
Como todas as mulheres de imaginação e sentimento, ela achava
dentro em si, nas cismas do pensamento, essa aurora d’alma que se chama
o ideal, e que doura ao longe com sua doce luz os horizontes da vida.
O casamento, quando acontecia pensar nele alguma vez, apresentava-se a seu
espírito como uma cousa confusa e obscura;- uma espécie de enigma,
do seio do qual se desdobrava de repente um céu esplêndido que
a envolvia, inundando-a de felicidade.
Em sua ingenuidade não compreendia Aurélia a idéia
do casamento refletido e preparado. Mas a insistência de sua mãe,
inquieta pelo futuro, fez que ela se ocupasse com esta face da vida real.
Reconheceu que não tinha direito de sacrificar a um sonho de imaginação,
que talvez nunca se realizasse, o sossego de sua mãe primeiro, e depois
seu próprio destino, pois que sorte a esperava, se tivesse a desgraça
de ficar só no mundo?
O golpe que sofreu por esse tempo, ainda mais a dispôs ao sacrifício
de suas aspirações.
Emílio, recolhendo-se muito fatigado, uma tarde de excessivo calor,
cometeu a imprudência de tomar um banho frio. A conseqüência
foi uma febre de mau caráter que o levou em poucos dias.
Aurélia não deixou a cabeceira do leito desse irmão,
a quem ela amava com desvelo maternal. Os cuidados incessantes e os extremos
de que o cercou, bem como a necessidade de acudir a tudo, foi talvez o que
a salvou de ser fulminada por essa desgraça.
A viúva que mal resistira ao golpe da perda do filho, ainda mais
se aterrava agora com o isolamento em que ia deixar Aurélia. Se Emílio
não prometia à irmã um arrimo, em todo o caso era uma
companhia, e podia dar-lhe ao menos a proteção material, quando
não fosse senão de sua presença.
Redobraram pois as insistências da pobre viúva, e Aurélia
ainda coberta do luto pesado que trazia pelo irmão, condescendeu com
a vontade da mãe, pondo-se à janela todas as tardes.
Foi para a menina um suplício cruel essa exposição
de sua beleza com a mira no casamento. Venceu a repugnância que lhe
inspirava semelhante amostra do balcão, e submeteu-se à humilhação
por amor daquela que lhe dera o ser e cujo único pensamento era sua
felicidade.
III
Não tardou que a notícia da menina bonita de Santa Teresa
se divulgasse entre certa roda de moços que não se contentam
com as rosas e margaridas dos salões, e cultivam também com
ardor as violetas e cravinas das rótulas.
A solitária e plácida rua animou-se com um trânsito
desusado de tílburis e passeadores a pé, atraídos pela
graça da flor modesta e rasteira, que uns ambicionavam colher para
a transplantar ao turbilhão do mundo; outros apenas se contentariam
de crestar-lhe a pureza, abandonando-a depois à miséria.
Os olhares ardentes e cúpidos dessa multidão de pretendentes,
os sorrisos contrafeitos dos tímidos, os gestos fátuos e as
palavras insinuantes dos mais afoutos, quebravam-se na fria impassibilidade
de Aurélia. Não era a moça que ali estava à janela;
mas uma estátua, ou com mais propriedade, a figura de cera do mostrador
de um cabeleireiro da moda.
A menina cumpria estritamente a obrigação que se tinha imposto,
mostrava-se para ser cobiçada e atrair um noivo. Mas, além dessa
tarefa de exibir sua beleza, não passava. Os artifícios de galanteio
com que muitas realçam seus encantos; a tática de ratear os
sorrisos e carinhos, ou negaceá-los para irritar o desejo, nem os sabia
Aurélia, nem teria coragem para usá-los.
Depois de uma hora de estação à janela, recolhia-se
para começar o serão da costura; e de todos aqueles homens que
haviam passado diante dela com a esperança de cativar-lhe a atenção,
não lhe ficava na lembrança uma fisionomia, uma palavra, uma
circunstância qualquer.
No primeiro mês a investida dos pretendentes não passou de
uma escaramuça. Rondas pela calçada, cortejos de chapéus,
suspiros ao passar, gestos simbólicos de lenço, algum elogio
à meia voz, e presentes de flores que a menina rejeitava; tais eram
os meios de ataque.
Breve, porém, começou o assalto em regra; e quem abriu o exemplo
foi pessoa já muito nossa conhecida, e da qual não se podia
esperar semelhante desembaraço.
O Lemos, que andava sempre metido na roda dos rapazes, veio a saber do aparecimento
da bisca da Rua de Santa Teresa. Entendeu o árdego velhinho, que em
sua qualidade de tio, cabia-lhe um certo direito de primazia sobre esse bem
de família.
Entrou na fieira, e à tarde fazia volta pela Rua de Santa Teresa
para conversar um instante com a sobrinha, a quem desde o primeiro dia se
dera a conhecer.
Aurélia teve grande contentamento por ver o tio. A afabilidade com
que lhe falara ele, encheu-a da esperança de uma próxima reconciliação
com a família.
Temendo a oposição do pundonor ofendido de sua mãe,
ocultou dela a ocorrência.
Nos dias seguintes medrou a esperança da menina. A estada à
janela deixara de ser-lhe intolerável; já havia um interesse
que a demorava ali, a espiar o momento em que apontasse o tio no princípio
da rua.
Ela que não tinha para os mais elegantes cavalheiros um pálido
sorriso, achou de repente em si para seduzir o velhinho, o segredo da gentileza
e faceirice, que é como a fragrância da mulher formosa.
O restabelecimento das relações entre D. Emília e o
irmão interessava Aurélia mui intimamente. Assegurando-lhe um
arrimo para o futuro, essa conciliação não só
restituiria o sossego à mãe, como lhe pouparia a ela essa espera
ao casamento, que era para a pobre menina uma humilhação.
Foi para a turba dos apaixonados arruadores grande assombro e maior escândalo,
esse de verem todas as tardes, recostado insolentemente à janela de
Aurélia, o rolho velhinho, conversando e brincando na maior intimidade
com a menina. Ignorantes do parentesco, atribuíam essas liberdades
a uma preferência inexplicável; pois o Lemos, notoriamente pobre,
se não arrebentado, carecia do condão, que dispensa todas as
virtudes, o dinheiro.
O sagaz do velhinho tratou de aproveitar a disposição de ânimo
da sobrinha, antes que alguma circunstância fortuita viesse perturbar
essas relações íntimas, por ele tecidas com habilidade.
Uma tarde, depois de ter borboleteado com Aurélia, como de costume,
fazendo-a rir com suas facécias, despediu-se deixando entre as mãos
da sobrinha uma carta, faceira, de capa floreada, com emblema de miosótis
no fecho.
Recebeu-a Aurélia ao de leve surpresa; mas logo acudindo-lhe uma
idéia, guardou-a no seio palpitante de esperança, que enchia-lhe
a alma. Essa carta devia ser a mensageira da conciliação por
ela tão ardentemente desejada. Ao fechar da noite correu à alcova
para a ler.
Às primeiras palavras foi-lhe congelando nos lábios o sorriso
que os floria, até que se crispou em um ofego de ânsia. Quando
terminou, jaspeava-lhe a fisionomia essa lividez marmórea, que tantas
vezes depois a empanava, como um eclipse de sua alma esplêndida.
Dobrou friamente o papel, que fechou em seu cofrezinho de buxo, e foi ajoelhar-se
à beira da cama, diante do crucifixo suspenso à cabeceira.
Como a andorinha, que não consente lhe manche as penas a poeira levantada
pelo vento, e revoando molha constantemente as asas na onda do lago, assim
a alma de Aurélia sentiu a necessidade de banhar-se na oração,
e purificar-se do contacto em que se achara com essa voragem de torpeza e
infâmia.
A carta do Lemos era escrita no estilo banal do namoro realista, em que
o vocabulário comezinho da paixão tem um sentido figurado, e
exprime à maneira de gíria, não os impulsos do sentimento,
mas as seduções do interesse.
O velho acreditou que a sobrinha, como tantas infelizes arrebatadas pelo
turbilhão, estava à espera do primeiro desabusado, que tivesse
a coragem de arrancá-la da obscuridade onde a consumiam os desejos
famintos, e transportá-la ao seio do luxo e do escândalo. Apresentou-se
pois francamente como o empresário dessa metamorfose, lucrativa para
ambos; e acreditou que Aurélia tinha bastante juízo para compreendê-lo.
Quando, no dia seguinte à entrega da carta, notou que a rótula
fechava-se obstinadamente à sua passagem, conheceu o Lemos que tinha
errado o primeiro tiro; mas nem por isso desacoroçoou do projeto.
– Ainda não chegou a ocasião! pensou ele.
O velho rapaz arranjara para seu uso, como todos os homens positivos, uma
filosofia prática de extrema simplicidade. Tudo para ele tinha um momento
fatal, a ocasião; a grande ciência da vida portanto resumia-se
nisto: espiar a ocasião e aproveitá-la.
Entendeu lá para si que o moral da sobrinha não se achava
preparado para a resolução que devia decidir de seu destino.
Esse coração de mulher ainda estava passarinho implume; quando
lhe acabassem de crescer as asas, tomaria o vôo e remontaria aos ares.
O que lhe cumpria, a ele Lemos, era espreitá-la durante a transformação,
para intervir oportunamente; e dessa vez tinha certeza de que não falharia
o alvo.
O exemplo do velho estimulou os mais animosos. Um deles, confiando na audácia,
pôs em sítio a rótula, especialmente à noite, quando
Aurélia cosia à claridade do lampião, junto ao aparador.
Pelas grades ia o conquistador insinuando súplicas e protestos de
amor, com que perseguia a moça, insistindo para que lhe acudisse à
rótula ou lhe recebesse mimos e cartinhas. Após este seguiam-se
outros.
Conservava-se Aurélia impassível, e tão alheia a essas
competências, que parecia nem ao menos aperceber-se delas. Algumas vezes
assim era. Distraía-se com suas preocupações de modo
que ficava estranha aos rumores da rua.
Todavia aquelas importunações a incomodavam, e sobretudo a
insultavam; como não cessassem, acabaram por inspirar-lhe uma resolução
em que já se revelavam os impulsos do seu caráter.
Certa noite, em que um dos mais assíduos namorados a impacientou,
ergueu-se Aurélia mui senhora de si e dirigiu-se à rótula,
que abriu, convidando o conquistador a entrar. Este, tomado de surpresa e
indeciso, não sabia o que fizesse, mas acabou por aceder ao oferecimento
da moça.
– Tenha a bondade de sentar-se, disse Aurélia mostrando-lhe o velho
sofá encostado à parede do fundo. Eu vou chamar minha mãe.
O leão quis impedi-la, e não o conseguindo, começava
a deliberar sobre a conveniência de eclipsar-se, quando voltou Aurélia
com a mãe.
A moça tornou à sua costura, e D. Emília sentando-se
no sofá travou conversa com sua visita.
As palavras singelas e modestas da viúva deixaram no conquistador,
apesar da película de ceticismo que forra essa casca de bípedes,
a convicção da inutilidade de seus esforços. A beleza
de Aurélia só era acessível aos simplórios, que
ainda usam do meio trivial e anacrônico do casamento.
Este incidente foi o sinal de uma deserção que operou-se em
menos de um mês. Toda aquela turba de namoradores debandou em roda batida,
desde que pressentiu os perigos e escândalos de uma paixão matrimonial.
Assim recobrou Aurélia sua tranqüilidade, livrando-se do suplício,
que lhe infligiam aquelas homenagens insultantes.
Agora, quando ficava na janela para satisfazer aos desejos de sua mãe,
já não lhe custava essa condescendência tão amargo
sacrifício. Sua natural esquivança era bastante para afastar
as veleidades dos refratários. Esses ainda não se tinham desquitado
ao todo da esperança de inspirar alguma paixão irresistível,
das que domam a mais austera virtude.
IV
Seixas ouvira falar da menina de Santa Teresa, mas ocupado nesta ocasião
com uns galanteios aristocráticos, não o moveu a curiosidade
de conhecer desde logo a nova beldade fluminense.
Aconteceu porém jantar na vizinhança em casa de um amigo,
e em companhia de camaradas. Veio a falar-se de Aurélia, que era ainda
o tema das conversas; contaram-se anedotas, fizeram-se comentos de toda a
sorte.
Depois do jantar, no fim da tarde, saíram os amigos a pé,
com o pretexto de dar uma volta de passeio; mas efetivamente para mostrar
a Seixas a falada menina, e convencê-lo de que era realmente um primor
de formosura.
Seixas era uma natureza aristocrática, embora acerca da política
tivesse a balda de alardear uns ouropéis de liberalismo. Admitia a
beleza rústica e plebéia, como uma convenção artística;
mas a verdadeira formosura, a suprema graça feminina, a humanação
do amor, essa, ele só a compreendia na mulher a quem cingia a auréola
da elegância.
Em frente da casa de D. Emília, pararam os amigos formando grupo,
e Seixas pôde contemplar a gosto o busto da moça. A princípio
examinou-a friamente como um artista que estuda o seu modelo. Viu-a através
da expressão de altiva e triste indiferença de que ela vestia-se
como de um véu para recatar sua beleza aos olhares insolentes.
Quando, porém, Aurélia enrubescendo volveu o rosto, e seus
grandes olhos nublaram-se de uma névoa diáfana ao encontrar
a vista escrutadora que lhe estava cinzelando o perfil; não se pôde
conter Fernando que não exclamasse:
– Realmente…
Atalhando, porém, esse primeiro entusiasmo, corrigiu:
– Não nego; é bonita.
Nessa noite, Aurélia, quando trabalhava na tarefa da costura, quis
lembrar-se da figura desse moço que a estivera olhando por algum tempo
à tarde; não o conseguiu. Vira-o apenas um instante; não
conservara o menor traço de sua fisionomia.
Mas cousa singular. Se recolhia-se no íntimo, aí o achava,
e via-lhe a imagem, como a tivera diante dos olhos à tarde. Era um
vulto, quase uma sombra; mas ela o conhecia; e não o confundiria com
qualquer outro homem.
Dois dias depois Seixas tornou a passar pela Rua de Santa Teresa, mas só,
desta vez. De longe seus olhos encontraram os de Aurélia, que fugiram
para voltar tímidos e submissos. Ao passar, o moço cortejou-a;
ela respondeu com uma leve inclinação da cabeça.
Decorreu uma semana. Seixas não passara à tarde como costumava;
era noite, Aurélia ia recolher-se triste e desconsolada. Ao fechar
a rótula distinguiu um vulto, e esperou. Era Fernando. O moço
apertou-lhe a mão; declarou-lhe seu amor. Aurélia ouviu-o palpitante
de comoção; e ficou absorta em sua felicidade.
– E a senhora, D. Aurélia? interrogou Seixas. Ama-me?
– Eu?
A moça pronunciou este monossílabo com expressão de profunda
surpresa. Pensava ela que Fernando devia ter consciência da posse que
tomara de sua alma, com o primeiro olhar.
– Não sei, respondeu sorrindo. O senhor é quem pode saber.
Não compreendeu Seixas o sublime destas palavras singelas e modestas
da moça. O galanteio dos salões embotara-lhe o coração,
cegando o tacto delicado que podia sentir as tímidas vibrações
daquela alma virgem.
Fernando freqüentou assiduamente a modesta casa de Santa Teresa, onde
passava as primeiras horas da noite, que de ordinário ia acabar no
baile ou no espetáculo lírico. Quando saía da sala humilde,
onde a paixão o retinha preso dos olhos de sua amada, sentia o elegante
moço algum acanhamento. Parecia-lhe que derrogava de seus hábitos
aristocráticos, e inquietava-o a idéia de macular o primor de
sua fina distinção.
Um mês durante, Aurélia inebriou-se da suprema felicidade de
viver amante e amada. As horas que Seixas passava junto de si eram de enlevo
para ela que embebia-se d’alma do amigo. Esta provisão de afeto
chegava-lhe para encher de sonhos e devaneios o tempo da ausência. Seria
difícil conhecer a quem mais vivia, se do homem que a visitava todos
os dias ao cair da tarde, se do ideal que sua imaginação copiara
daquele modelo.
Como Pigmalião ela tinha cinzelado uma estátua, e talvez,
como o artista mitológico, se apaixonasse por sua criatura, de que
o homem não fora senão o grosseiro esboço. E não
é esta a eterna legenda do amor, nas almas iluminadas pelo fogo sagrado?
Entre os apaixonados de Aurélia, contava-se Eduardo Abreu, rapaz de
vinte e cinco anos, de excelente família, rico e nomeado entre os mais
distintos da Corte.
Apesar de sisudo e não propenso a aventuras, Abreu foi tentado pela
fascinação do amor fácil e efêmero. Alistou-se
à já numerosa legião dos conquistadores de Aurélia,
mas andara sempre na retaguarda, entre os mais tímidos.
Quando os namoradores de profissão debandaram, ele perseverou, sem
apartar-se todavia de seu modo reservado e esquivo. Um velho sapateiro que
tomara a si o registro dessa barreira, continuou a ver todas as tardes o rapaz
que passava em seu cavalo do Cabo.
A impressão que Aurélia deixara no espírito do moço
tornou-se mais profunda, à proporção que se foi manifestando
a pureza da menina. Vendo afinal quebrar-se de encontro à sua virtude,
a audácia dos mais perigosos sedutores do Rio de Janeiro, a afeição
de Abreu repassou-se de admiração e respeito.
É natural que esse moço, em condições de aspirar
às melhores alianças na sociedade fluminense, vacilasse muito,
antes da resolução que tomou. Mas uma vez decidido, não
hesitou em realizar seu intento. Dirigiu-se a D. Emília e pediu-lhe
a mão da filha.
A viúva, ainda abalada do inesperado lance da fortuna, falou a Aurélia.
– Deus ouviu minha súplica. Agora posso morrer descansada.
A moça escutara, sem interrompê-la, a exposição
que D. Emília lhe fez das vantagens de um casamento com Abreu. Nas
palavras de sua boa mãe, não somente sentiu os extremos de uma
ternura ardente; reconheceu também o conselho da prudência.
Não obstante, sua resposta foi uma recusa formal.
– Tinha resolvido aceitar o primeiro casamento que minha mãe julgasse
conveniente, para sossegar seu espírito e desvanecer o susto que tanto
a consome. Meus sonhos de moça, que bem mesquinhos eram, sacrificava-os
de bom grado para vê-la contente. Agora tudo mudou. Não posso
dar o que não me pertence. Amo outro.
– Sei, o Seixas. E tens certeza de que ele se case contigo?
– Nunca lhe perguntei, minha mãe.
– Pois é preciso saber.
– Eu não lhe falo nisso.
– Pois falarei eu.
Efetivamente, essa noite, quando Fernando chegou, D. Emília dirigiu
a conversa para o ponto melindroso. No primeiro ensejo interrogou o moço
acerca de suas intenções. Fez valer o argumento formidável
da sombra que um galanteio ostensivo projeta sobre a reputação
de uma menina, quando não o perfuma os botões de laranjeira
a abrir em flor. Lembrou também que a preferência exclusiva afugentava
os pretendentes, sem garantia do futuro.
Seixas perturbou-se. Por mais preparado que esteja um homem de sociedade
para essa colisão deve comovê-lo a necessidade de escolher entre
a afeição e as conveniências. Ainda mais, quando para
furtar-se ao dilema, esse homem delineou uma vereda sinuosa, por onde se arraste
como o réptil, serpeando entre o amor e o interesse.
– Assevero-lhe, D. Emília, que minhas intenções são
as mais puras. Se ainda não as tinha manifestado, era por aguardar
a ocasião em que possa realizá-las de pronto, como convém
em semelhante assunto. Minha carreira depende de acontecimentos que devem
efetuar-se neste ano próximo. Então poderei oferecer a Aurélia
um futuro digno dela, e que lhe invejem as mais elegantes senhoras da Corte.
Antes disso não me animarei a associá-la a uma sorte precária,
que talvez se torne mesquinha. Amo sinceramente sua filha, minha senhora;
e esse amor dá-me forças para resistir ao egoísmo da
paixão. Prefiro perdê-la a sacrificá-la.
– Este procedimento de sua parte é muito nobre, Sr. Seixas. Não
podia com efeito dar maior prova de estima a Aurélia, do que renunciar
a ela para não servir de obstáculo a um enlace, que há
de fazê-la feliz.
Ditas estas palavras, a valetudinária senhora a quem a conversa havia
fatigado em extremo recolheu-se ao interior. Fernando ficou na sala aturdido
com a conclusão que tivera a conversa, tão outra da que ele
havia esperado.
De feito acreditara que D. Emília, embalada na esperança do
futuro brilhante por ele dourado com palavras maviosas, e comovida pelos acentos
de sua paixão, o deixaria cultivar docemente o amor-perfeito, aí,
no canteiro dessa pobre salinha, mal alumiada por um lampião mortiço.
Erguendo-se afinal, o moço dirigiu-se ao canto da sala, onde Aurélia
trabalhava inteiramente absorta em suas reflexões, e alheia à
cena que se acabava de passar, da qual entretanto era ela o assunto, e quem
sabe se a vítima.
Que motivo tinha a inexplicável indiferença da moça
naquele momento? Talvez ela própria não o soubesse manifestar.
É possível que as conseqüências da conversa preocupassem
mais seu espírito, do que as palavras trocadas entre sua mãe
e Seixas.
– Que significa isto, Aurélia? perguntou o moço.
– Ela é mãe, Fernando, e tem o direito de inquietar-se pelo
futuro de sua filha. Quanto a mim, sabe que amo sem condições,
e nunca lhe perguntei onde me leva esse amor. Sei que ele é minha felicidade,
e isto me basta.
No dia seguinte D. Emília comunicou à filha o resultado da
conversa que tivera com Seixas, e reiterou os seus conselhos com as razões
do costume.
– Se eu tivesse a desgraça de perdê-la, minha mãe, sua
filha já não ficaria só. Teria para ampará-la
além de sua lembrança, um amor que não a abandonará
nunca.
A viúva deixou escapar um gesto de dúvida.
– Creia, minha mãe; o desejo de conservar-me digna do homem a quem
amo, me protegeria melhor do que um marido do acaso.
D. Emília não insistiu mais. Lembrou-se que ela também
sacrificara-se por um amor igual, e não podia exigir da filha mais
coragem do que ela tivera para resistir ao impulso do coração.
Seixas que a noite anterior deixara Aurélia, comovido pela cândida
abnegação da menina, quando soube que ela havia rejeitado sem
ostentação um partido por que suspiravam muitas das mais fidalgas
moças da Corte, não pôde conter os impulsos da alma generosa.
Apresentou-se em casa de D. Emília e pediu a mão de Aurélia,
que lhe foi concedida.
V
Ao saber que estava justo o casamento da sobrinha, considerou-se o Lemos
derrotado em seus planos. Como, porém, era homem que não abandonava
facilmente uma boa idéia, cogitou no modo de não perder a partida.
A única idéia que lhe ocorreu foi de expediente banal; mas
acontece que são estes precisamente os que surtem melhor efeito quando
se trata de assuntos que se resolvem pelas conveniências sociais.
Em sua passagem para a casa de Aurélia, via Seixas à janela,
na Rua das Mangueiras, uma menina, apontada entre as elegantes da Corte. Para
o nosso jornalista fora inqualificável grosseria, encontrar-se com
uma senhora bela e distinta, sem enviar-lhe no olhar e no sorriso a homenagem
de sua admiração.
Seixas pertencia a essa classe de homens, criados pela sociedade moderna,
e para a qual o amor deixou de ser um sentimento e tornou-se uma fineza obrigada
entre os cavalheiros e as damas de bom-tom.
A moça pertencia à mesma escola. Também ela era noiva,
como o Seixas; e não obstante recebia com prazer o cortejo galante.
Se por acaso os dois se encontrassem em alguma sala, ausentes daqueles com
quem estavam prometidos, teceriam sem o menor escrúpulo um inocente
idílio para divertir a noite.
Nessa casa da Rua das Mangueiras morava o Tavares do Amaral, empregado da
alfândega. Lemos que freqüentava um velho camarada da vizinhança,
talvez já na intenção de manter um ponto de observação,
notou aquela mútua correspondência de Fernando com Adelaide.
A primeira vez que encontrou ao Amaral na Rua do Ouvidor, o velho insinuou-se
em sua intimidade; a título de felicitação encareceu-lhe
ao último ponto as vantagens do casamento da filha com Seixas.
– Com jeito, o melro está seguro! concluiu ao despedir-se.
Amaral não via de boa sombra a intimidade de sua filha Adelaide com
o Dr. Torquato Ribeiro, que além de pobre, estava desarranjado. A idéia
do Lemos sorriu-lhe. Achou modos de introduzir em casa Seixas, para quem este
novo conhecimento veio a ser um tônico poderoso.
Desvanecidas as primeiras efusões do puro e íntimo contentamento,
que lhe deixou o generoso impulso de pedir a mão de Aurélia,
começara Fernando a considerar praticamente a influência que
devia exercer em sua vida esse casamento.
Calculou os encargos materiais que ia sujeitar-se para montar casa, e mantê-la
com decência. Lembrou-se quanto avulta a despesa com o vestuário
duma senhora que freqüenta a sociedade; e reconheceu que suas posses
não lhe permitiam por enquanto o casamento com uma moça bonita
e elegante, naturalmente inclinada ao luxo, que é a flor dessas borboletas
de asas de seda e tule.
Encerrar-se no obscuro, mas doce conchego doméstico; viver das afeições
plácidas e íntimas; dedicar-se a formar uma família,
onde se revivam e multipliquem as almas que uniu o amor conjugal; essa felicidade
suprema não a compreendia Seixas. O casamento, visto por este prisma,
aparecia-lhe como um degredo, que inspirava-lhe indefinível terror.
Jamais poderia viver longe da sociedade, retirado desse mundo elegante que
era sua pátria, e o berço de sua alma. As naturezas superiores
obedecem a uma força recôndita. É a predestinação.
Uns a têm para a glória, outros para o dinheiro; a dele era essa,
a galanteria.
Algumas vezes, Seixas, receando pela saúde exposta sem repouso à
ação de hábitos pouco higiênicos, sob a influência
de um clima enervador, ia à fazenda de um amigo em Campos com tenção
de passar por lá dois meses, em completa vegetação, acordando-se
com o sol e recolhendo-se com ele.
Se era na estação da festa e haviam lá pela roça
bailes e partidas, que arremedavam a vida da Corte, demorava-se uns quinze-
dias: o tempo de compor com alguma espirituosa fazendeirinha um gentil romance
pastoril que terminava com umas estâncias, gênero Lamartine.
Quando, porém, a fazenda estava sossegada e na doce monotonia dos
labores rurais, Fernando entregava-se ao que ele chamava a vida campestre,
com um ardor infatigável. Erguia-se ao romper da alva, ia ao banho,
corria as plantações, e voltava para o almoço com um
feixe de parasitas, orquídeas e bromélias. Na força da
soalheira andava pelas fábricas a ver despolpar o café, ou fazer
o fubá.
Durava este entusiasmo campesino três dias. No quarto Fernando achava
um pretexto qualquer para a volta precipitada, e antes de uma semana estava
restituído à Corte. A primeira noite de baile ou partida, era
uma ressurreição.
De um homem assim organizado com a molécula do luxo e do galanteio,
não se podia esperar o sacrifício enorme de renunciar à
vida elegante. Excedia isso a suas forças; era uma aberração
de sua natureza. Mais fácil fora renunciar à vida na flor da
mocidade, quando tudo lhe sorria, do que sujeitar-se a esse suicídio
moral, a esse aniquilamento do eu.
Quando Seixas convenceu-se que não podia casar com Aurélia,
revoltou-se contra si próprio. Não se perdoava a imprudência
de apaixonar-se por uma moça pobre e quase órfã, imprudência
a que pusera remate o pedido do casamento. O rompimento deste enlace irrefletido
era para ele uma cousa irremediável, fatal; mas o seu procedimento
o indignava.
Havia nessa contradição da consciência de Seixas com
a sua vontade uma anomalia psicológica, da qual não são
raros os exemplos na sociedade atual. O falseamento de certos princípios
da moral, dissimulado pela educação e conveniências sociais,
vai criando esses aleijões de homens de bem.
Quem não conhece o livro em que Otávio Feuillet glorificou
sob o título de honra, as últimas hesitações de
uma alma profundamente corrompida.
Seixas estava muito longe de ser um Camors; mas já nele começava
o embotamento do senso moral, que o influxo de uma civilização
adiantada, e no seio de uma sociedade corroída como a de Paris, acaba
por abortar aqueles monstros.
Para o leão fluminense, mentir a uma senhora, insinuar-lhe uma esperança
de casamento, trair um amigo, seduzir-lhe a mulher, eram passes de um jogo
social, permitidos pelo código da vida elegante. A moral inventada
para uso dos colégios nada tinha que ver com as distrações
da gente do tom.
Faltar porém à palavra dada; retirar sem motivo uma promessa
formal de casamento, era no conceito de Seixas ato que desairava um cavalheiro.
No caso especial em que se achava, essa quebra de palavra tornava-se mais
grave.
Aurélia não tinha outro arrimo senão a mãe,
consumida pela enfermidade que pouco tempo de vida lhe deixava. Faltanto D.
Emília, ficaria a filha órfã, sem abrigo, ao desamparo.
Abandonar nessas tristes condições uma pobre moça, tida
por sua noiva, seria dar escândalo.
Independente da reprovação que o fato receberia de seu círculo,
a própria consciência lhe advertia da irregularidade desse proceder,
que ele não julgava qualificar severamente tachando-o de desleal.
Estas apreensões abateram o ânimo igual e prazenteiro de Seixas.
Não perdeu o semblante a expressão afável, que era como
a flor da nobre e inteligente fisionomia; nem apagou-se nos lábios
o sorriso que parecia o molde da palavra persuasiva; mas sob essa jovialidade
de aparato flutuava a sombra de uma tristeza, que devia ser profunda, pois
se fixara nessa natureza volúvel e descuidosa.
Aurélia percebeu imediatamente a mudança que se havia operado
em seu noivo, e inquiriu do motivo. Fernando disfarçou; a moça
não insistiu; e até pareceu esquecer a sua observação.
Uma noite porém, que Seixas se mostrara mais preocupado, na despedida
ela disse-lhe:
– A sua promessa de casamento o está afligindo, Fernando; eu lha restituo.
A mim basta-me o seu amor, já lho disse uma vez, desde que mo deu,
não lhe pedi nada mais.
Fernando opôs às palavras de Aurélia frouxa negativa,
e formulou uma pergunta cuja intenção a moça não
alcançou:
– Julga você, Aurélia, que uma moça pode amar a um homem,
a quem não espera unir-se?
– A prova é que o amo, respondeu a moça com candura.
– E o mundo? proferiu Seixas com reticências no olhar.
– O mundo tem o direito de exigir de mim a dignidade da mulher; e esta ninguém
melhor do que o senhor sabe como a respeito. Quanto a meu amor não
devo contas senão a Deus que me deu uma alma, e ao senhor a quem a
entreguei.
Fernando retirou-se ainda mais descontente e aborrecido. Essa afeição
ardente, profunda, sublime de abnegação, ao passo que lisonjeava-lhe
o amor-próprio, ainda mais o prendia a essa formosa menina, de quem
o arredavam fatalmente seus instintos aristocráticos e o terror pânico
da mediania laboriosa.
Quando propusera a Aurélia a questão de sua posição
equívoca, esperava acordar escrúpulos, que lhe dariam pretextos
para de todo cortar essas tão doces, quanto perigosas relações.
A resposta da menina o desconcertou.
Foi nestas circunstâncias que Seixas recebeu o oferecimento do Amaral,
e cedendo às suas instâncias amáveis, começou a
freqüentar-lhe a casa.
Sem este incidente, ficaria a debater-se na terrível colisão,
a que o haviam trazido os acontecimentos, esperando do tempo uma solução,
que seu ânimo indolente não se animaria a precipitar.
Aquele pequeno desvio porém o lançara fora do torvelinho,
submetendo-o a uma nova corrente que ia apoderar-se dele e conduzi-lo para
longe.
O Torquato Ribeiro amava sinceramente a Adelaide. A volubilidade da moça
ofendeu-o, e ele retirou-se da casa deixando o campo livre a seu adversário,
que não carecia dessa vantagem. Amaral, dócil aos conselhos
do Lemos, tratou como dizia o velho de bater o ferro quente.
Seixas convidado a jantar um domingo em casa do empregado, fumava um delicioso
havana ao levantar-se da mesa coberta de finas iguarias, e debuxava com um
olhar lânguido os graciosos contornos do talhe de Adelaide, que lhe
sorria do piano, embalando-o em um noturno suavíssimo.
Amaral sentou-se ao lado; sem preâmbulos, nem rodeios, à queima-roupa,
ofereceu-lhe a filha com um dote de trinta contos de réis.
Seixas aceitou. Esse projeto de casamento naquele instante era a prelibação
das delícias com que sonhava sua fantasia, excitada menos pelo champanhe,
do que pela sedução de Adelaide.
A principal razão que moveu Seixas foi outra porém. Fez como
os devedores, que se liberam dos compromissos, quebrando.
Receoso de sua coragem para recuperar a isenção, penhorou-se
a outros, que o reclamassem e o defendessem como cousa sua.
VI
Aurélia passava agora as noites solitária.
Raras vezes aparecia Fernando, que arranjava uma desculpa qualquer para
justificar sua ausência. A menina que não pensava em interrogá-lo,
também não contestava esses fúteis inventos. Ao contrário
buscava afastar da conversa o tema desagradável.
Conhecia a moça que Seixas retirava-lhe seu amor; mas a altivez de
coração não lhe consentia queixar-se. Além de
que, ela tinha sobre o amor idéias singulares, talvez inspiradas pela
posição especial em que se achara ao fazer-se moça.
Pensava ela que não tinha nenhum direito a ser amada por Seixas;
e pois toda a afeição que lhe tivesse, muita ou pouca, era graça
que dele recebia. Quando se lembrava que esse amor a poupara à degradação
de um casamento de conveniência, nome com que se decora o mercado matrimonial,
tinha impulsos de adorar a Seixas, como seu Deus e redentor.
Parecerá estranha essa paixão veemente, rica de heróica
dedicação, que entretanto assiste calma, quase impassível,
ao declínio do afeto com que lhe retribuía o homem amado, e
se deixa abandonar, sem proferir um queixume, nem fazer um esforço
para reter a ventura que foge.
Esse fenômeno devia ter uma razão psicológica, de cuja
investigação nos abstemos; porque o coração, e
ainda mais o da mulher que é toda ela, representa o caos do mundo moral.
Ninguém sabe que maravilhas ou que monstros vão surgir desses
limbos.
Suspeito eu, porém, que a explicação dessa singularidade
já ficou assinalada. Aurélia amava mais seu amor do que seu
amante; era mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao homem.
Quem não compreender a força desta razão, pergunte
a si mesmo por que uns admiram as estrelas com os pés no chão,
e outros alevantados às grimpas curvam-se para apanhar as moedas no
tapete.
Desde que se comprometeu com Amaral, pensou Fernando em cortar de uma vez
o fio que ainda o prendia a Aurélia; nessa disposição
repetiu suas visitas.
Em princípio a menina cuidou que Seixas lhe voltava, e encheu-se
de júbilo; mas não durou a ilusão. Logo percebeu que
não era o desejo de vê-la e estar com ela, o que levava o moço
à sua casa, pois os poucos instantes de demora passava-os inteiramente
distraído e como perplexo.
– O senhor quer dizer-me alguma cousa, mas receia afligir-me, observou a
menina uma noite com angélica resignação.
Fernando aproveitou a ocasião para resolver a crise.
– Meu voto mais ardente, Aurélia, sonho dourado de minha vida, era
conquistar uma posição brilhante para depô-la aos pés
da única mulher que amei neste mundo. Mas a fatalidade que pesa sobre
mim aniquilou todas as minhas esperanças; e eu seria um egoísta,
se prevalecendo-me de sua afeição, a associas-se a uma existência
obscura e atribulada. A santidade de meu amor deu-me a força para resistir
a seus próprios impulsos. Disse uma vez à sua mãe, pressentindo
com sua situação: Sou menos infeliz renunciando à sua
mão, do que seria aceitando-a para fazê-la desgraçada,
e condená-la às humilhações da pobreza.
– Essas já as conheço, respondeu Aurélia com tênue
ironia, e não me aterram; nasci com elas, e têm sido as companheiras
de minha vida.
– Não me compreendeu, Aurélia; referia-me a um partido vantajoso
que decerto aparecerá, logo que esteja livre.
– Pensa então que basta uma palavra sua para restituir-me a liberdade?
perguntou a moça com um sorriso.
– Sei que a fatalidade que nos separa não pode romper o elo que prende
nossas almas, e que há de reuni-las em mundo melhor. Mas Deus nos deu
uma missão neste mundo, e temos de cumpri-la.
– A minha é amá-lo. A promessa que o aflige, o senhor pode
retirá-la tão espontaneamente como a fez. Nunca lhe pedi, nem
mesmo simples indulgência, para esta afeição; não
lhe pedirei neste momento em que ela o importuna.
– Atenda, Aurélia! Lembre-se de sua reputação. Que
não diriam se recebesse a corte de um homem, sem esperança de
ligar-se a ele pelo casamento?
– Diriam talvez que eu sacrificava a um amor desdenhado, um partido brilhante,
o que é uma…
A moça cortou a ironia, retraindo-se:
– Mas não; faltariam à verdade. Não sacrifiquei nenhum
partido; o sacrifício é a renúncia de um bem; o que eu
fiz foi defender a minha afeição. Sejamos francos: o senhor
já não me ama; não o culpo, e nem me queixo.
Seixas balbuciou umas desculpas e despediu-se.
Aurélia demorou-se um instante na rótula, como costumava,
para acompanhar ao amante com a vista até o fim da rua. Se Fernando
não estivesse tão entregue à satisfação
de haver readquirido sua liberdade, teria ouvido no dobrar da esquina o eco
de um soluço.
No dia seguinte D. Emília recebeu de Seixas uma dessas cartas que
nada explicam, mas que em sua calculada ambigüidade exprimem tudo. Compreendeu
a viúva ao terminar a leitura do logogrifo epistolar, que estava roto
o projetado casamento, e estimou o resultado. A boa mãe nutria ainda
a esperança de persuadir a filha a aceitar a mão de Abreu.
Por esse tempo entrou Torquato Ribeiro a freqüentar a casa de D. Emília.
Soubera ele do procedimento que Seixas tivera com a viúva; e a conformidade
de infortúnio o atraiu. Referiu a Aurélia a inconstância
de Adelaide, que atribuiu à sua pobreza.
A moça o ouvia com meiguice, e o consolava; mas apesar da intimidade
que se estabeleceu entre ambos, nunca lhe falou de seus próprios sentimentos.
Tinha o pudor de sua tristeza, que não lhe consentia confidências.
Seria altivez, mas ela a vestia de um recato modesto e lhano.
As exprobrações de Ribeiro contra a infidelidade de que fora
vítima haviam lançado no espírito de Aurélia uma
suspeita acerba. Seria a abastança do Amaral que atraíra Fernando,
e não o amor de Adelaide?
A moça repeliu constantemente essa idéia, que lhe imbuíram
os ressentimentos de Ribeiro; mas chegou o momento em que lhe arrancaram a
dúvida consoladora.
Recebeu uma carta anônima. Comunicavam-lhe que Seixas a tinha abandonado
por um dote de trinta contos de réis. Acabando de ler estas palavras
levou a mão ao seio, para suster o coração que se lhe
esvaía.
Nunca sentira dor como esta. Sofrera com resignação e indiferença
o desdém e o abandono; mas o rebaixamento do homem, a quem amava, era
um suplício infindo, de que só podem fazer idéia os que
já sentiram apagarem-se os lumes d’alma, ficando-lhes a inanidade.
Debalde, Aurélia refugiou-se nos primeiros sonhos de seu amor. A
degradação de Seixas repercutia no ideal que a menina criara
em sua imaginação, e imprimia-lhe o estigma. Tudo ela perdoou
a seu volúvel amante; menos o tornar-se indigno do seu amor.
Que pungente colisão! Ou expelir do coração esse amor
que tinha decaído, e deixar a vida para sempre erma de um afeto; ou
humilhar-se adorando um ente que se aviltara, e associando-se à sua
vergonha.
A notícia do procedimento atribuído a Seixas não passava
de uma denúncia anônima, que podia ser inspirada pela malignidade.
Não obstante, Aurélia não hesitou em acreditá-la;
uma voz interior dizia-lhe que era aquela a verdade.
Poucas horas depois aproximando-se da rótula para abri-la à
criada, viu por entre as grades passar o Lemos, que olhava para a casa com
ares garotos.
Atravessou-lhe pelo espírito a idéia de que era o autor da
carta; e confirmou-se nela quando notou os manejos com que o velho nos dias
subseq&uuuuml;entes tentou inutilmente apanhá-la à janela.
Como esperava D. Emília, Eduardo Abreu voltou apenas soube da retirada
de Seixas. Aurélia recebeu-o cheia de reconhecimento pela afeição
que havia inspirado a esse moço e de admiração por seu
nobre caráter.
– Não me pertenço, Senhor Abreu; se algum dia pudesse arrancar-me
a este amor fatal, e recuperar a posse de mim mesma, creia que teria orgulho
em partilhar a sua sorte.
Três dias depois partia um vapor para Europa. Abreu tomou passagem,
e foi aturdir-se em Paris, onde lhe ficaram as ilusões da mocidade,
e algumas dezenas de contos de réis, mas não a lembrança
de Aurélia.
Entretanto Seixas começava a sentir o peso do novo jugo a que se
havia submetido.
O casamento, desde que não lhe trouxesse posição brilhante
e riqueza, era para ele nada menos que um desastre.
As despesas de ostentação com sua pessoa unicamente absorviam-lhe
todo o rendimento anual, além dos créditos suplementares. Que
seria dele quando além do seu, tivesse de prover também ao luxo
de uma mulher elegante, que ela só come em sedas mais do necessário
ao alimento de uma numerosíssima família? Isto sem falar da
casa, que se em solteiro ele conseguira reduzir ao estado de mito, adquiria
para o marido de uma senhora à moda uma evidência cara.
A promessa feita ao pai de Adelaide era explícita e formal. Em caso
algum Seixas se animaria a negá-la e faltar desgarradamente à
sua palavra; mas como não se obrigara a realizar o casamento em prazo
fixo, esperava do tempo, que é grande resolvente, uma emergência
feliz que o libertasse.
Por essa época predispuseram-se as cousas para a candidatura que
o nosso escritor sonhava desde muito tempo; e coincidindo elas com a partida
da tal estrela nortista, lembrou-se Fernando de fazer uma excursão
ero-política por Pernambuco, a expensas do Estado.
Nunca porém se resolveria a esse desterro de ano, se não esperasse
com esse adiamento esgotar a paciência de Adelaide.
Tanto a moça, como o pai instaram para efetuar o casamento antes
da partida, mas Fernando, que do seu tirocínio de oficial de gabinete
aprendera todas as manhas de ministro, e se preparava para copiá-las
em um futuro não muito remoto, apôs à pretensão
da noiva a razão de Estado.
Recebera ordem do governo para partir imediatamente; se não obedecesse,
arriscava-se a uma demissão.
VII
Um dia, por manhã, bateram à porta de D. Emília.
Quando a viúva e a filha vieram à sala, acharam sentado no
sofá um velho alto e robusto, cujo traje denotava provinciano ou homem
do interior. Tinha o rosto sangüíneo e os traços duros
e salientes.
Cravou ele o olhar pesado no semblante de Aurélia, sem erguer-se
à chegada das senhoras. Depois de ter assim examinado a menina, com
insistência desusada, volveu a vista para a viúva; reparou no
vestido preto desbotado que ela trazia por casa, e tornou a descarregar os
olhos torvos sobre a moça.
D. Emília, assustada com estes modos, trocou um sinal de inteligência
com a filha. Ambas receavam achar-se em presença de algum louco ou
ébrio; julgando-se expostas a um desacato, não sabiam que fazer.
Entretanto as lágrimas saltavam aos molhos das pálpebras do
velho, que erguendo-se de supetão correu a Aurélia, e suspendeu
a moça nos braços antes que ela se pudesse esquivar.
– Que é isto, senhor? Está louco? disse D. Emília levantando-se
para defender a filha.
Às palavras da viúva e ao grito que soltara Aurélia,
o velho recuou e quis falar; mas o soluço embargava-lhe a voz:
– Não me conhece, minha filha? Sou o pai de seu marido!
– O Sr. Lourenço Camargo?
– Ele mesmo. Não consente que abrace minha neta?
Foi Aurélia quem se lançou nos braços do velho, e este
depois que a teve cerrada ao peito por algum tempo, desviou-se bruscamente,
e foi sentar-se no sofá, enxugando o rosto com o grande lenço
de seda enrolado em uma bola.
– É o retrato de meu Pedro. Pobre rapaz! murmurou o velho.
Depois de algumas perguntas acerca do nome e idade de Aurélia; explicou
o fazendeiro a razão de ali achar-se naquele momento, reconciliado
com sua nora, e pesaroso do modo por que se portara com ela.
Na estalagem ou rancho em que falecera, deixou Pedro Camargo sua maleta.
Guardou-a o dono da casa com tenção de levá-la à
fazenda ou mandá-la pelo primeiro portador. Por lá ficou anos
até que pairou aí por acaso um formigueiro, nome que dão
ao indivíduo perito em destruir o inseto daninho que devora as roças.
Esse de que se trata ia à fazenda do Camargo oferecer os seus serviços,
e incumbiu-se de levar a mala. Ao recebê-la, avivaram-se ao fazendeiro
as saudades do filho; enxugou os olhos, e mandou acender uma fogueira no terreiro
para queimar os objetos que haviam pertencido ao morto.
Enquanto se cumpria sua ordem, abriu ele próprio a maleta, e tirou
uma por uma as peças enxovalhadas, um pequeno estojo de toucador, e
outras cousas de uso comum. No fundo havia um volume envolto em papel e atado
com uma fita preta.
Continha as fotografias de Pedro Camargo, da mulher e dos dois filhos; a
certidão de casamento e as de batismo dos dois meninos, e finalmente
uma carta sem sobrescrito dirigida ao fazendeiro.
Essa carta de data muito anterior ao falecimento indicava que Pedro Camargo
tinha a princípio pensado em suicidar-se, e se preparara para levar
a efeito esse desígnio, escrevendo ao pai a fim de implorar-lhe o perdão
de sua falta.
Depois de fazer a confissão do casamento que havia ocultado só
pelo receio de afligir ao pai, suplicava-lhe que protegesse sua viúva
e aqueles órfãos inocentes, que eram seus netos, e que o haviam
de substituir, a ele Pedro, no amor e na veneração.
Lendo essa carta, Lourenço Camargo afigurou-se receber as últimas
palavras do filho; e lembrou-se quanto fora injusto duvidando da realidade
desse casamento de que ali tinha a prova irrecusável.
Era uma alma rude, mas direita.
Nessa mesma noite partiu para a Corte. Por intermédio do correspondente
mandou colher informações na vizinhança e soube que a
viúva ainda morava na mesma casa.
Depois destas explicações, que arrancaram lágrimas
às duas senhoras, sobretudo quando leram a carta de Pedro Camargo,
o velho deu um giro pela sala e tomando o chapéu disse:
– Chorem a seu gosto; eu voltarei depois.
De feito voltou todos os dias enquanto se demorou na Corte. Por seu gosto
teria enchido de presentes a Aurélia e à mãe; porém
as duas senhoras acanharam-se com a excessiva liberalidade, pelo que amuou-se
o velho fazendeiro:
– Pois bem, não lhes darei mais nada. Quando precisarem peçam.
Dois dias depois deste incidente apresentou-se o velho com um maço
de papel lacrado. Ao tirá-lo do bolso do jaleco, refranziu jocosamente
a cara para Aurélia:
– Não vá pensando que é presente, não, senhora
dona! Fique descansada. Quero que me guarde aqui este papel, até à
volta.
– Se tem dinheiro, acho melhor… ia dizendo Aurélia.
– Qual dinheiro! Você parece que tem nojo dos meus cobres!
– Não é por isso, meu avô. Bem vê que duas mulheres
numa casa como esta oferecem pouca segurança.
– Pois saiba que isto é um papel… uma escritura que passei, e para
não a perder na viagem, deixo em sua mão.
Na capa do maço estavam escritas em bastardinho estas palavras. “Para
minha neta Aurélia guardar, até eu, seu avô, lhe pedir.
L. S. Camargo.”
Partiu o velho para a fazenda, tendo mandado adiante de si pedreiros, carapinas
e pintores a fim de quanto antes transformar o velho e sujo casebre em uma
habitação digna de receber a família de Pedro Camargo,
com certo aparato que o fazendeiro considerava indispensável, como
reparação de sua anterior indiferença.
Além do material do edifício, havia também no regime
da casa certos hábitos inveterados, que se estabelecem em algumas fazendas,
sobretudo quando são os donos solteirões. Camargo carecia pelo
menos de um mês para coibir umas familiaridades antes toleradas, e abolir
certa moda de saia ou tanga que dava às crioulas uns ares de dançarinas,
menos a calça de meia e os frocos de gaze.
Compreendia o Camargo, que estas minudências, inocentes para um velho
barbaçudo como ele, deviam arrepiar os escrúpulos da Corte.
Mas quando essa idéia não lhe acudisse, bastava-lhe ter visto
Aurélia, e respirado a atmosfera de altiva castidade que envolvia a
formosa menina, para não ousar profaná-la com o contágio
daquelas indecências.
Logo após a partida de Camargo, D. Emília teve um dos costumados
acessos da moléstia crônica; porém tão forte, que
inspirou sérios receios ao médico. O paroxismo cedeu à
aplicação de remédios enérgicos; mas a viúva
não se levantou mais do leito, onde agonizou cerca de dois meses.
Foi este o período mais difícil da vida de Aurélia;
porque às mágoas acerbas de seu amor ludibriado, acresceu a
dor dos sofrimentos de sua mãe. E como se não bastasse esse
golpe para acabrunhá-la, veio agravar esta situação a
miséria com seu cortejo.
Quando apareceu o Camargo enviado pela Providência para reconhecer
a nora e a neta, a existência das duas senhoras já era bastante
penosa. Consumido o dinheiro que lhes entregara o tropeiro, viviam das costuras
de Aurélia, e do preço de algumas jóias, ainda presentes
de Pedro.
Não chegavam porém estes escassos recursos; e teriam passado
inclemências se não fosse o crédito obtido na loja e venda
em que se supriam.
Com algum dinheiro que o fazendeiro deixara à viúva, pagara
ela essas dívidas, e o resto entregara à filha para as despesas.
Enquanto durou essa quantia, pôde Aurélia fazer face às
despesas; mas estas avultaram com a moléstia da mãe; e breve
não houve com que mandar ao mercado comprar um frango para o caldo
da enferma.
Foi só nessa ocasião que Aurélia cedeu às instâncias
do Dr. Torquato Ribeiro, e recebeu dele emprestados cinqüenta mil-réis.
Até então rejeitara sempre o seu oferecimento, e esforçava-se
por ocultar-lhe a penúria em que se achava.
É verdade que Aurélia esperava receber a cada instante os
socorros que pedira ao avô. Escrevera-lhe logo que a moléstia
da mãe agravou-se; e admirava-se de não receber resposta, nem
ter notícias da fazenda.
A razão só depois a soube. De volta à fazenda achou
Lourenço Camargo uma caterva de peraltas, que se diziam seus sobrinhos,
e com eles as respectivas mulheres, e a récua dos marmanjos e sirigaitas,
que formavam a ninhada dessa parentela.
O Camargo não os podia suportar; para ver-se livre deles deixava-se
fintar uma vez no ano, mas não consentia se demorassem em sua casa
mais do que uma noite, se fazia mau tempo.
Imagine-se pois como ficou o velho, quando aí achou-os todos de uma
vez, com os seus apêndices, e muito a gosto.
Mas o furor de Camargo não teve limites, quando os intrusos tiveram
o desfaçamento de confessar o motivo que ali os reunia.
Constara-lhes de fonte certa que o velho tinha feito testamento na Corte,
e segundo as suas conjeturas deixava todos os bens a uma rapariga, filha de
certa mulher perdida, antiga amásia de Pedro Camargo.
À vista disto haviam-se reunido e ali estavam para declarar ao tio
que não consentiriam jamais em semelhante espoliação.
Se, como esperavam, ele não reparasse o seu erro, para o que já
traziam o escrivão de paz, o preveniam desde logo que anulariam esse
testamento pela instituição de pessoa indigna. Neste ponto apoiavam-se
no voto de um rábula, de que por cautela se tinham acompanhado.
O velho Camargo conteve-se durante esta exposição; mas como
se contém a torrente que sobe para romper o dique, e a tempestade que
se condensa até desabar.
Quando o rábula, aberta a caixa de rapé, fechou a chave dos
dois dedos tabaquistas para agarrar a pitada que devia destilar-lhe no nariz
o monco e a eloqüência, não achou presa. A boceta de tartaruga
voara pelos ares a um murro do Camargo, que apanhando uns arreios de mula
cargueira, suspensos à varanda, caiu na parentela, e dispersou-a a
lambadas de couro e ferro.
Homens, mulheres e meninos, tudo foi escovado. Ao mesmo tempo o fazendeiro
gritava pela negraria, e armando-a de peias e manguais, enxotava de casa a
praga que a tinha invadido. Só depois que a deixou na estrada com as
trouxas e malas de bagagem, voltou o velho.
Mas o corpo robusto, que apesar dos setenta anos desenvolveu aquele prodigioso
esforço físico, não pôde resistir à explosão
da cólera estupenda que subverteu-lhe a alma. Quando não teve
mais em quem descarregar a indignação, esta subiu-lhe ao cérebro
e fulminou-o.
O ataque paralisou-o completamente; a vitalidade de sua organização
lutou cerca de dois meses, nesse corpo morto, até que afinal extinguiu-se.
Em todo esse tempo não deu acordo de si. As cartas de Aurélia
ficaram na gaveta, onde as guardara o administrador.
Com diferença de dias veio a falecer também D. Emília,
deixando Aurélia em completa orfandade. Nesse transe cruel, o Dr. Torquato
Ribeiro não abandonou a moça, e foi a rogos dele que D. Firmina
Mascarenhas levou a órfã para sua casa.
À exceção dessa parenta afastada, nenhuma outra pessoa
da família apareceu ou mandou à casa de Aurélia, durante
a enfermidade da mãe, e depois do passamento. O Lemos e sua gente não
deram sinal de si.
VIII
Aceitando a companhia de D. Firmina, não era intenção
de Aurélia tornar-se pesada à sua parenta.
Passados os oito dias de nojo, enviou pelo Dr. Torquato Ribeiro um anúncio
ao jornal, oferecendo mediante condições razoáveis seus
serviços como professora de colégio, ou mestra em casa de família.
Estava porém disposta a descer até o mister mais modesto de
costureira, ou mesmo de aia de alguma senhora idosa. Decorreu mais de mês,
sem que aparecesse cousa séria. Apenas- se apresentaram alguns desses
farejadores de aventuras baratas, a cem réis por linha. D. Firmina
porém percebeu-lhes a manha, e despediu-os da escada, sem consentir
que vissem a moça.
Pensava Aurélia em mandar outro anúncio, quando a procurou
um negociante, que andara à cata de sua nova morada. Era o correspondente
do falecido Camargo, que vinha comunicar à moça o falecimento
do fazendeiro.
– A senhora tem em seu poder um papel, que o meu amigo lhe deu a guardar,
recomendando-me que no caso de acontecer-lhe alguma cousa, lhe avisasse para
abri-lo. Parece que tinha um pressentimento.
O papel continha o testamento em que Lourenço de Sousa Camargo reconhecia
e legitimava como seu filho a Pedro Camargo, que fora casado com D. Emília
Lemos, declarando que à sua neta D. Aurélia Camargo, nascida
de um legítimo matrimônio, instituía sua única
e universal herdeira.
Ao testamento juntara o velho uma relação detalhada de todo
o seu possuído, escrita do próprio punho, com várias
explicações relativas a alguns pequenos negócios pendentes,
e conselhos acerca da futura direção das fazendas.
Calculava-se o cabedal de Camargo em mil contos ou cerca. Apenas divulgou-se
a notícia de ter Aurélia herdado tamanha riqueza, acudiram-lhe
à casa todos os parentes, e à frente deles o Lemos com seu rancho.
Enquanto a mulher e as filhas sufocavam de interesseiros agrados e bajulações
a órfã, a quem tinham faltado quando pobre com a mais trivial
caridade, o Lemos, expedito em negócios, arranjava do juiz de órfãos
a nomeação de tutor da sobrinha.
De primeiro impulso, Aurélia pensou em revoltar-se contra essa nomeação,
mostrando ao juiz a infame carta que lhe escrevera o tio; mas além
de repugnar-lhe o escândalo, sorriu-lhe a idéia de ter um tutor
a quem dominasse.
Aceitou pois o tio, mas com a condição que já sabemos,
de morar em casa sua, e não ter relações com uma família
cuja presença lhe recordava a injúria feita à sua mãe.
Isso mesmo disse-o à tia e primas, quando estas se esforçavam
por cobri-la de carícias.
A riqueza, que lhe sobreveio inesperada, erguendo-a subitamente da indigência
ao fastígio, operou em Aurélia rápida transformação;
não foi, porém no caráter, nem nos sentimentos que se
deu a revolução; estes eram inalteráveis, tinham a fina
têmpera de seu coração. A mudança consumou-se apenas
na atitude, se assim nos podemos exprimir, dessa alma perante a sociedade.
Com uma existência calma e um amor feliz, Aurélia teria sido
meiga esposa e mãe extremosa. Atravessaria o mundo como tantas outras
mulheres envolta nesse cândido enlevo das ilusões, que são
a alva pura do anjo, peregrino na terra.
Mas a flor de sua juventude, ela a viu desabrochar na atmosfera impura das
torpes seduções que a perseguiam. Sem o nativo orgulho que protegia
sua castidade, talvez que o torpe hálito do vício lhe maculasse
o seio. Mas teve força para cerrar-se, como o cacto à calma
abrasadora, e viveu de seus próprios sonhos.
Cotejando o seu formoso ideal com o aspecto sórdido que lhe apresentava
a sociedade, era natural entrasse a desprezá-la, e a olhar o mundo
como um desses charcos pútridos, mas cobertos por folhagem estrelada
de flores brilhantes, que não se podem colher sem atravessar o lodo.
Daí o terror que sentia ao ver-se próxima desse abismo de
abjeções, e o afastamento a que se desejava condenar. Bem vezes
revoltavam-lhe a alma as indignidades de que era vítima, e até
mesmo as vilanias cujo eco chegava a seu obscuro retiro. Mas que podia ela,
frágil menina, em véspera de orfandade e abandono, contra a
formidável besta de mil cabeças?
Quando a riqueza veio surpreendê-la, a ela que não tinha mais
com quem a partilhar, seu primeiro pensamento foi que era uma arma. Deus lhe
enviava para dar combate a essa sociedade corrompida, e vingar os sentimentos
nobres escarnecidos pela turba dos agiotas.
Preparou-se pois para a luta, à qual talvez a impelisse principalmente
a idéia do casamento que veio a realizar mais tarde. Quem sabe, se
não era o aviltamento de Fernando Seixas que ela punia com o escárnio
e a humilhação de todos os seus adoradores?
Logo nos primeiros dias que seguiram-se à abertura do testamento, Aurélia
tratou de pagar as dívidas de sua mãe e recompensar os serviços
que lhe haviam prestado durante a enfermidade de D. Emília, várias
pessoas pobres da vizinhança. Nessa ocupação a ajudava
o Dr. Torquato Ribeiro, com quem ela se aconselhava, sobretudo acerca dos
negócios da tutela. O bacharel não advogava, mas consultava
aos colegas para satisfazer a menina e dirigi-la com acerto.
– Também temos uma dívida a saldar entre nós dois,
disse Aurélia; mas essa fica para depois. Não lhe pago agora.
– Uma bagatela! tornou-lhe Ribeiro.
– Oh! não sabia que era tão rico.
– Sou pobre, bem sabe, D.Aurélia.
– Sei; se fosse rico, nunca seria sua devedora. A despesa que fez com o
enterro de minha mãe deve fazer-lhe falta.
– Perdão, não fui eu.
– Quem foi então? perguntou Aurélia no auge da surpresa.
Ribeiro tirou a carteira.
– Nunca lhe falei nisso com receio de afligi-la. No dia do falecimento de
D. Emília, saí, como sabe, para tratar do enterro; já
tinha dado muitas voltas inúteis quando recebi esta carta sem assinatura.
Aceitei, porque não havia outro recurso; eu não tinha de meu
vinte mil-réis.
A carta continha estas palavras apenas: “Previne-se ao Sr. Dr. Torquato
da Costa Ribeiro que o enterro da Sra. D. Emília Camargo já
foi encomendado e pago por uma parenta da mesma senhora.”
Aurélia leu a carta cuja letra lhe era desconhecida e guardou-a.
– Então devo-lhe somente cinqüenta mil-réis, que pagarei
quando for maior. Agora peço-lhe que receba esta lembrança.
A lembrança era o retrato da moça em um quadro de ouro maciço,
cravejado de brilhantes, cujo valor bruto, desprezado o feitio, valia um conto
de réis.
O bacharel compreendeu a intenção da moça, que era
dar-lhe por aquela forma delicadíssima um auxílio pecuniário
de que ele bem carecia.
Refletiu um instante, e resolveu aceitar com franqueza e sem falsa modéstia.
– Agradeço-lhe seu mimo, D. Aurélia. Acima de tudo, mais ainda
do que o próprio retrato, aprecio nele o que a senhora ocultou. Suas
feições são apenas a cópia da beleza; a intenção
é o reflexo da alma que Deus lhe deu.
Foi depois de passados os seis meses de luto, que Aurélia apareceu
na sociedade.
Tinha-se ela ensaiado para seu papel. Desde o primeiro momento em que apresentou-se
nos salões, firmou neles seu império, e tomou posse dessa turba
avassalada, cujo destino é bajular as reputações que
se impõem.
Encontramo-la deslumbrando a multidão com sua beleza, e açulando
a fome do ouro nos cavalheiros do lansquenete matrimonial. Regozijava-se em
arrastar após si, rojando-os pelo pó, e fustigando-os com o
sarcasmo, a esses sócios e êmulos de Fernando Seixas, ansiosos
de venderem-se como ele, ainda que por maior preço.
Por isso os tinha reduzido à mercadoria ou traste, fazendo-lhes a
cotação, como se usava outrora com os lotes de escravos.
Aquele marido de maior preço a que ela se referia não era
outro senão seu antigo amante, que a desprezara por ser pobre.
No meio desta acrimônia que lhe inspirava a sociedade, não
perdera porém Aurélia de todo a crença na nobreza d’alma,
sabia respeitá-la onde quer que a descobria.
Assim, quando algum homem honesto, sinceramente seduzido pelos dotes de
sua pessoa, e não pelo brilho da riqueza, lhe fazia a corte, ela portava-se
com ele de modo inteiramente diverso. Acolhia-o com afabilidade e distinção;
mas aproveitava o primeiro momento para desvanecer-lhe toda a esperança.
Só com os caçadores de dotes era loureira, se tal nome pode-se
aplicar ao constante ludíbrio e humilhação a que submetia
seus apaixonados.
Encontrou Aurélia uma vez na sociedade Eduardo Abreu, já de
volta da Europa. Soube que tinha dissipado a legítima, e ficara reduzido
à pobreza. Como se esquivasse de falar-lhe, a moça dirigiu-se
a ele e insistiu para que freqüentasse sua casa.
Abreu fez-lhe uma visita de cerimônia. A moça inventou um pretexto
qualquer para uma carta urgente e mandou buscar o tinteiro. De repente voltou-se
para o moço e pediu-lhe que escrevesse um recado a certa loja.
Aurélia examinou a letra e murmurou consigo:
– Eu tinha adivinhado!
Não disse uma palavra a Abreu sobre isto. Por aqueles dias houve quem
pagasse as contas que o moço tinha em várias casas da Rua do
Ouvidor, que já não lhe queriam fiar.
A primeira vez que a moça encontrou-se com Abreu depois do incidente
perguntou-lhe:
– Ainda me ama?
Ele corou.
– Já não tenho esse direito.
– Lembre-se do que lhe disse uma vez. Se eu remir-me de meu cativeiro, minha
mão lhe pertence. Não a querendo o senhor, ninguém mais
a terá neste mundo.
O Dr. Torquato Ribeiro não pôde resistir à paixão
que nutria pela Adelaide Amaral. Com o tempo e ausência do rival foi-se
desvanecendo o primeiro ressentimento; e como o procedimento de Seixas já
causava estranheza, não se demorou a reconciliação.
Aurélia percebeu que o bacharel estava cada vez mais apaixonado.
Era uma verdadeira recaída. A princípio admirou-se dessa indulgência:
– E eu? Não amo um homem que não somente me esqueceu por outra,
mas que se rebaixou?
Pensou então em favorecer esse amor do Ribeiro, o que obteve, concorrendo
para a realização do projeto que afagava, e a cuja realização
assistimos.
Estes foram os acontecimentos que ocorreram antes de encontrarmos pela primeira
vez nos salões a Aurélia Camargo.
IX
Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena
do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo.
Os dois atores ainda conservam a mesma posição em que os deixamos.
Fernando Seixas obedecendo automaticamente a Aurélia, sentara-se, e
fitava na moça um olhar estupefato. A moça arrastou uma cadeira
e colocou-se em face do marido, cujas faces crestava o seu hálito abrasado.
– Não careço dizer-lhe que amor foi o meu, e que adoração
lhe votou minha alma desde o primeiro momento em que o encontrei. Sabe o senhor,
e se o ignora, sua presença aqui nesta ocasião já lhe
revelou. Para que uma mulher sacrifique assim todo seu futuro, como eu fiz,
é preciso que a existência se tornasse para ela um deserto, onde
não resta senão o cadáver do homem que a assolou para
sempre.
Aurélia calcou a mão sobre o seio para comprimir a emoção
que a ia dominando.
– O senhor não retribuiu meu amor e nem o compreendeu. Supôs
que eu lhe dava apenas a preferência entre outros namorados, e o escolhia
para herói dos meus romances, até aparecer algum casamento,
que o senhor, moço honesto, estimaria para colher à sombra o
fruto de suas flores poéticas. Bem vê que eu o distingo dos outros,
que ofereciam brutalmente, mas com franqueza e sem rebuço, a perdição
e a vergonha.
Seixas abaixou a cabeça.
– Conheci que não amava-me, como eu desejava e merecia ser amada.
Mas não era sua a culpa e só minha que não soube inspirar-lhe
a paixão, que eu sentia. Mais tarde, o senhor retirou-me essa mesma
afeição com que me consolava e transportou-a para outra, em
quem não podia encontrar o que eu lhe dera, um coração
virgem e cheio de paixão com que o adorava. Entretanto, ainda tive
forças para perdoar-lhe e amá-lo.
A moça agitou então a fronte com uma vibração
altiva:
– Mas o senhor não me abandonou pelo amor de Adelaide e sim por seu
dote, um mesquinho dote de trinta contos! Eis o que não tinha o direito
de fazer, e que jamais lhe podia perdoar! Desprezasse-me embora, mas não
descesse da altura em que o havia colocado dentro de minha alma. Eu tinha
um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal, e atirou-o no pó.
Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime;
a sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para
ele. Não se assassina assim um coração que Deus criou
para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio.
Seixas, que tinha curvado a fronte, ergueu-a de novo, e fitou os olhos na
moça. Conservava ainda as feições contraídas,
e gotas de suor borbulhavam na raiz de seus belos cabelos negros.
– A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos permitiu-me
o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas. Quando a recebi,
já conhecia o mundo e suas misérias; já sabia que a moça
rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa
riqueza servirá para dar-me a única satisfação
que ainda posso ter neste mundo. Mostrar a esse homem que não me soube
compreender, que mulher o amava, e que alma perdeu. Entretanto ainda eu afagava
uma esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu irei
lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe-ei que aceite a minha riqueza,
que a dissipe se quiser; consinta-me que eu o ame. Essa última consolação,
o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o cadáver ao
homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o coração,
era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. Mas não
desespere, o suplício não pode ser longo: este constante martírio
a que estamos condenados acabará por extinguir-me o último alento;
o senhor ficará livre e rico.
Proferidas as últimas palavras com um acento de indefinível
irrisão, a moça tirou o papel que trazia passado à cinta,
e abriu-o diante dos olhos de Seixas. Era um cheque de oitenta contos sobre
o Banco do Brasil.
– É tempo de concluir o mercado. Dos cem contos de réis, em
que o senhor avaliou-se já recebeu vinte; aqui tem os oitenta que faltavam.
Estamos quites, e posso chamá-lo meu; meu marido, pois é este
o nome de convenção.
A moça estendeu o papel que sua mão crispada amarrotava convulsamente.
Seixas permaneceu imóvel como uma estátua; apenas duas plicas
profundas sulcaram-lhe as faces desde o canto dos olhos até à
comissura dos lábios.
Afinal o papel escapou-se dos dedos trêmulos da moça e caiu
sobre o tapete aos pés de Fernando.
Seguiu-se um momento de silêncio ou antes de estupor. Aurélia
irritava-se contra a invencível mudez de Seixas, e talvez a atribuía
a uma cínica insensibilidade moral. Pensava exacerbar os nobres estímulos
de um homem ainda capaz de reabilitar-se da fragilidade a que fora arrastado,
e achava um indivíduo tão embotado já em seu pudor que
não se revoltava contra a maior das humilhações.
Aurélia soltou dos lábios um estrídulo, antes do que
um sorriso.
– Agora podemos continuar a nossa comédia, para divertir-nos. É
melhor do que estarmos aqui mudos em face um do outro. Tome a sua posição,
meu marido; ajoelhe-se aqui a meus pés, e venha dar-me seu primeiro
beijo de amor… Porque o senhor ama-me, não é verdade, e nunca
amou outra mulher senão a mim?…
Seixas ergueu-se; sua voz afinal desprendeu-se dos lábios calma,
porém fremente:
– Não; não a amo.
– Ah!
– É verdade que a amei; mas a senhora acaba de esmagar a seus pés
esse amor; aí fica ele para sempre sepultado na abjeção
a que o arremessou. Eu só a amaria agora, se a quisesse insultar; pois
que maior afronta pode fazer a uma senhora um miserável, do que marcando-a
com o estigma de sua paixão. Mas fique tranqüila; ainda quando
me dominasse a cólera, que não sinto, há uma vingança
que não teria forças para exercer; é essa de amá-la.
Aurélia ergueu-se impetuosamente.
– Então enganei-me? exclamou a moça com estranho arrebatamento.
O senhor ama-me sinceramente e não se casou comigo por interesse?
Seixas demorou um instante o olhar no semblante da moça, que estava
suspensa de seus lábios, para beber-lhe as palavras:
– Não, senhora, não enganou-se, disse afinal com o mesmo tom
frio e inflexível. Vendi-me; pertenço-lhe. A senhora teve o
mau gosto de comprar um marido aviltado; aqui o tem como o desejou. Podia
ter feito de um caráter, talvez gasto pela educação,
um homem de bem, que se enobrecesse com sua afeição; preferiu
um escravo branco; estava em seu direito, pagava com seu dinheiro, e pagava
generosamente. Esse escravo aqui o tem; é seu marido, porém
nada mais do que seu marido!
O rubor afogueou as faces de Aurélia, ouvindo essa palavra acentuada
pelo sarcasmo de Seixas.
– Ajustei-me por cem contos de réis; continuou Fernando; foi pouco,
mas o mercado está concluído. Recebi como sinal da compra vinte
contos de réis; falta-me arrecadar o resto do preço, que a senhora
acaba de pagar-me.
O moço curvou-se para apanhar o cheque. Leu com atenção
o algarismo, e dobrando lentamente o papel, guardou-o no bolso do rico chambre
de gorgorão azul.
– Quer que lhe passe um recibo?… Não; confia na minha palavra.
Não é seguro. Enfim estou pago. O escravo entra em serviço.
Soltando estas palavras com pasmosa volubilidade, que parecia indicar o
requinte da impudência, Fernando sentou-se outra vez defronte da mulher.
– Espero suas ordens.
Aurélia, que até esse momento escutara com ansiedade, perscrutando
sôfrega no semblante do marido e através de suas palavras um
sintoma de indignação, disfarçada por aquele desgarro,
cobriu com as mãos o rosto abrasado de vergonha.
– Meu Deus!
A moça tragou o soluço que lhe sublevava o seio, e refugiando-se
no outro canto do sofá, como se receasse o contágio do homem
a quem se unira pela eternidade, abismou-se na voragem de sua consciência
revolta.
Após longo trato, Aurélia, como se despertasse de um pesadelo,
ergueu os olhos e encontrando de novo o semblante de Seixas que a observava
com um sossego escarninho, teve um enérgico assomo de repulsão,
ou antes de asco.
– Minha presença a está incomodando? Porque assim o quer.
Não é, senhora? Não tem direito de mandar? Ordene, que
eu me retiro.
– Oh! sim, deixe-me! exclamou Aurélia. O senhor me causa horror.
– Devia examinar o objeto que comprava, para não arrepender-se!
Seixas atravessou a câmara nupcial, e desapareceu por essa porta que
uma hora antes ele entrara cheio de vida e de felicidade, palpitante de júbilo
e emoção, e que repassava levando a morte na alma.
Quando Aurélia ouviu o som dos seus passos que afastavam-se pelo
corredor, precipitou-se com um arremesso de terror e deu volta à chave.
Depois quis fugir, mas arrastou uns passos trôpegos, e caiu sem sentidos
sobre o tapete.
TERCEIRA PARTE
Posse
I
Chegando a seu aposento Seixas nem teve tempo de sentar-se.
Arrimou-se como um ébrio à cômoda que estava próxima
ao corredor, e ali ficou no estupor da alma, violentamente subvertida pela
crise tremenda. Parecia uma criatura fulminada, na qual arqueja apenas um
último sopro. Sua respiração angustiada sibilava-lhe
nos lábios, como as vascas do moribundo. E era este o único
sinal de vida, nessa organização jovem e rica de seiva.
De repente saiu daquele torpor, mas foi preciso um esforço supremo
para arrancar-se à insânia que o invadia. Em seu rosto desenhou-se
o pavor que dele se havia apoderado com a idéia de que a vida o abandonava,
ou pelo menos de que a luz da alma ia apagar-se.
– Deus! Não me tires a vida neste momento. Agora mais do que nunca
preciso de minha razão.
Seixas arrojou-se pelo aposento a passos precípites, esbarrando-se
nos trastes, batendo de encontro às paredes; alucinado e ao mesmo tempo
impelido pelo desejo de arrebatar-se à obsessão que o aniquilara.
Correu pela casa um olhar ansiado, buscando algum objeto a que seu espírito
se agarrasse, como o náufrago que trava do menor fragmento no meio
das ondas em que se debate. O rico toucador, esclarecido por duas arandelas
de cristal com velas cor-de-rosa, ostentava os primores do luxo.
Então nessa alma sucumbida, luziu uma centelha. Foi o instinto da
elegância, por certo a corda mais vivaz dessa índole poética
e fidalga.
Seixas aproximou-se do toucador, levado por indefinível impulso;
e entrou a contemplar minuciosamente os objetos colocados em cima da mesa
de mármore; lavores de marfim, vasos e grupos de porcelana fosca, taças
de cristal lapidado, jóias do mais apurado gosto.
À proporção que se absorvia nesse exame, ia como ressurgindo
à sua existência anterior, a que vivera até o momento
do cataclismo que o submergira. Sentia-se renascer para esse fino e delicado
materialismo, que tinha para seu espírito aristocrático tão
poderosa sedução e tão meiga voluptuosidade.
Todos esses mimos da arte pareciam-lhe estranhos, e despertavam nele ignotas
emoções; tal era o abismo que o separava do recente passado.
Era com uma sofreguidão pueril que os examinava um por um, não
sabendo em qual se fixar. Fazia cintilar os brilhantes aos raios de luz; e
aspirava a fragrância que se exalava dos frascos de perfumaria com um
inefável prazer.
Nessa fútil ocupação demorou-se tempo esquecido. Porventura
sua memória, atraída pelas reminiscências que suscitavam
objetos idênticos a esses, remontava o curso de sua existência,
e descendo-o, depois o trazia àquela noite fatal em que se achava,
e à pungente realidade desse momento.
Recuou com um gesto de repulsão. Esses primores de arte que pouco
antes lhe acariciavam a imaginação, agora inspiravam-lhe nojo.
Apartou-se do toucador, e chegou à janela.
A noite estava plácida e serena. No céu recamado de estrelas,
a brisa cariciava uns frocos de nuvens alvas como a penugem das garças.
Uma onda trépida garrulava na bacia de mármore coberta de nenúfares,
que alçavam os grandes e níveos cálices, aljofrados de
orvalhos. O arvoredo, que recortava-se bizarramente no horizonte luminoso
como um relevo gótico, estremecia com o doce arrepio da aragem, que
esparzia os aromas das rosas e das magnólias.
Seixas parou um instante a contemplar a doce placidez da natureza. Essa
calma suave da noite penetrou-o. Relaxaram-se-lhe as fibras da alma.
Apoiando a fronte à ombreira da janela deixou cair as lágrimas
que lhe assoberbavam o seio.
Depois desse pranto que o desafogou, Seixas aproximou-se da elegante escrivaninha
de mirapininga, e a abriu. Ainda chegou a puxar a pasta de chamalote escarlate.
Na aba superior, dentro de um florão branco, aparecia bordado em debuxo
de ouro o seu monograma, F.R.S., entrelaçados.
Esteve a olhar maquinalmente essas letras que se lhe afigura-vam um enigma.
Como na fábula antiga, a esfinge o estu-pi-di-fi-cava. Que significação
tinha isso depois do desenlace que momentos antes o havia arremessado à
maior abjeção?
Afinal tomou a resolução que o levara à mesa. Estendeu
sobre a pasta uma folha de papel e preparou-se para escrever uma carta.
Mas a pena estacou ao penetrar no bocal do tinteiro. Seixas retirou-a com
vivacidade e examinou inquieto os bicos. Vendo-os intactos, ergueu-se precipitadamente
e percorreu o aposento.
Ao cabo de algum tempo voltou ao toucador, com um modo decidido. Mudara
de resolução.
Abriu as gavetas, e guardou nelas cuidadosamente todos os objetos de preço
que ali havia. Concluída a tarefa, trancou o móvel e o mesmo
fez a todos os outros de que poucas horas antes o Lemos lhe fizera exibição.
Apesar da recomendação do tutor de Aurélia, Seixas
tinha pela manhã enviado uma secretária em cujas gavetas inferiores
acomodara a melhor roupa de seu uso, branca e exterior.
Procurou esse traste e achando-o em um quarto próximo onde o tinham
colocado, verificou se com efeito ali estava a roupa; e teve ao achá-la
grande satisfação. Tirou de si o rico chambre de seda, as chinelas
de veludo; e vestiu-se com um trajo mais modesto, dos que trouxera.
Na secretária havia charutos. Acendeu um e sentou-se à janela.
Sentiu-se com forças de encarar a situação a que fora
arrastado, e a crise em que se achava sua existência.
No meio das reflexões acerbas que lhe despertara a recordação
da cena recente, das revoltas por muito tempo contidas de sua dignidade contra
o orgulho da mulher que o humilhava, flutuava um sentimento que afinal desprendeu-se
do turbilhão de seus pensamentos e o dominou.
Esse sentimento era a intensa admiração que lhe inspirava
a energia e veemência do amor de Aurélia. Havia nessa paixão
que o acabava de insultar uma beleza fera, que incutia-lhe entusiasmo cheio
de espanto.
– Não compreendi esse amor… E como podia eu compreendê-lo?…
Se alguém me referisse o que se acaba de passar comigo, eu receberia
semelhante conto com um sorriso de incredulidade. Que outrora, quando a família
seqüestrava a mulher da sociedade, a paixão subisse a esse auge,
e absorvesse uma existência inteira…
“Então não havia tempo de amar-se mais de uma vez, e
o amor deixava a alma exausta. Mas atualmente que a mulher vive cercada de
adoradores, e que todas as distinções se ajoelham ante sua beleza,
o amor não é mais do que um capricho, uma doce preferência,
um terno devaneio, até que se transforme na amizade conjugal. Assim
o imaginei sempre, assim o senti e me foi retribuído. Quando Aurélia
me falava de sua afeição, estava bem longe de pensar que ela
nutrisse uma paixão capaz de tais ímpetos. Pensava que eram
romantismos. Não os tinha eu também? Não jurei tantas
vezes um amor eterno, que no dia seguinte desfolhava no turbilhão de
uma valsa? Esse amor que eu supunha uma ilusão de poeta, um sonho da
imaginação, aí está em sua realidade esplêndida.
Suas asas de fogo roçaram por minha alma e a crestaram para sempre!…”
Seixas ficou um momento como extático ante a imagem que se lhe debuxava
no pensamento representando a figura de Aurélia, quando soberba de
cólera e indignação, o cobria de acerbas exprobrações.
– Uma paixão como a sua tinha direito de ser implacável!…
E essa mulher que se deu a mim com a mais sublime abnegação,
essa mulher a quem a sorte ligou-me eternamente, essa mulher única,
eu a admiro, e não posso amá-la nunca mais! Encontrei-a em meu
caminho, e perdi-a para sempre! Também não amarei outra. Depois
de a ter conhecido, não profanarei minha alma com a afeição
de mulher alguma.
Os arrebóis da manhã já se arraiavam no horizonte.
Uma brisa mais fresca derramava-se no espaço, e os primeiros atitos
das aves misturavam-se com os rumores confusos da cidade, que ia acordando
por detrás dos muros da chácara.
Seixas desceu ao jardim, e percorreu os passeios sinuosos do prado artificial
coberto de fina grama, e recortado à inglesa. Os tabuleiros de margaridas
e boninas, abertas ao primeiro raio de sol, recamavam com suas coroas matizadas
a verde alcatifa de relva. Fúcsias e begônias lastravam pelas
grades das latadas compondo graciosos bambolins com os tirsos de flores caprichosas.
Os botões das camélias e magnólias cheios de seiva
haurida com a frescura da noite, esperavam o calor do dia para desabrochar,
enquanto as flores da véspera que tinham cerrado o seio à tarde,
abriam-no de novo, mais pálido e langue, para despedir-se do sol, que
lhe tinha dado a vida, e a crestara, como o caprichoso artista.
Seixas, como homem de sociedade que era, conhecia a natureza de tradição
apenas, ou quando muito de vista. As árvores, as flores, as perspectivas,
eram para ele ornatos, que se confundiam com os tapetes, cortinas, trastes,
dourados e toda a casta de adereços inventados pelo luxo.
À força de viverem em um mundo de convenção,
esses homens de sociedade tornam-se artificiais. A natureza para eles não
é a verdadeira, mas essa fictícia, que o hábito lhes
embutiu, e que alguns trazem do berço, pois aí os espera a moda
para fazer neles presa, transformando-lhes a mãe, em uma simples produtora
de filhos.
Freqüentemente, em seus versos, Seixas falava de estrelas, flores e
brisas, de que tirava imagens para exprimir a graça da mulher, e as
emoções do amor. Pura imitação: como em geral
os poetas da civilização, ele não recebia da realidade
essas impressões, e sim de uma variada leitura. Originais somente são
aqueles engenhos que se infundem na natureza, musa inexaurível porque
é divina. Para isso é preciso, ou nascer nas idades primitivas,
ou desprezar a sociedade e refugiar-se na solidão.
Naquele momento porém, assistindo ao romper do dia, ali no meio do
jardim, Seixas sentia que além das cores brilhantes, das formas graciosas
e dos perfumes agrestes, havia alguma cousa de imaterial que palpitava no
seio desse ermo, e que infundia-se em seu ser. Era a alma da criação
que o envolvia, e comungava com sua alma a inefável serenidade da límpida
e fresca manhã.
Com a calma que derramou-se em seu espírito, ainda mais robusteceu-se
a resolução tomada pouco antes. Encheu-se dessa fria resignação,
que imprime à alma uma têmpera inflexível.
Tirou-o de suas cogitações um rumor, que levantava-se ali
perto. Voltou-se, e reconheceu que estava próximo à grade exterior,
oculta nesse lugar pela folhagem do arvoredo. Afastou os ramos e aproximou-se
para conhecer a causa do ruído. Talvez receasse que o estivessem espreitando,
e talvez fosse movido por essa curiosidade fútil que se apodera do
homem, a quem um abalo violento arrancou às preocupações
habituais.
Um mascate de quinquilharias arreara na calçada a caixa que trazia
a tiracolo, e sentado no chão, com as costas apoiadas ao muro, fazia
suas contas e dava balanço à mercadoria. Ou madrugara com intenção
de estender o giro, ou apanhado pela noite longe da casa, a passara em alguma
estalagem, e ia agora recolhendo-se, o que parecia mais provável.
Na tampa emborcada da caixa, viam-se presos de cadarços, pregados
vários objetos, que atraíram especialmente a atenção
de Seixas.
Fez ele um movimento para diante, como se quisesse chamar o mascate. Retraiu-se
porém com certo vexame; dir-se-ia que estivera a praticar uma leviandade,
da qual o advertira em tempo sua razão.
Como quer que fosse, ao cabo de alguma hesitação, venceu a
primeira repugnância, mas não ao pejo do ato que ia praticar.
Lançou pelos arredores um olhar perscrutador e verificando que a rua
estava deserta, estendeu o braço fora da grade e bateu no ombro do
mascate:
– Chi va… exclamou o mascate voltando-se.
Não viu as feições de Seixas que se afastara da grade,
e escondia-se por trás da folhagem; mas percebeu uma nota de dois mil-réis
que flutuava acima da cabeça, e tinha para ele decerto mais encanto
do que a fisionomia do freguês.
– Um pente e uma escova de dentes, disse Seixas em tom rápido. Depressa!
– Questo? perguntou o mascate tirando da tampa um pente de búfalo.
– Sim, qualquer. Não posso esperar.
O mascate passou os objetos, arrecadou a nota e querendo apresentar o troco
percebeu que o freguês havia desaparecido.
– Che birbone!
Entendeu o mascate que um dinheiro assim atirado fora com tanto desamor, era
furtado; e por cautela foi arrumando a trouxa e fazendo-se ao largo, antes
que lhe surgisse alguma complicação.
Entretanto Seixas ganhava seus aposentos com receio de que o descobrissem
no jardim àquela hora matinal, e suspeitassem do que ocorrera. A casa
porém não dava o menor sinal da labutação diária.
Todos decerto dormiam ainda sob a influência da festa nupcial.
Fazendo esta observação, lembrou-se Fernando da posição
em que deixara Aurélia na véspera, e de si mesmo inquiriu que
teria ela feito nessa longa noite de agonia. Naturalmente passara-a, extasiando-se
no júbilo da humilhação que lhe infligira, e afinal saciada
dessa vingança brutal, adormecera na febre de seu orgulho.
Se ao atravessar o jardim ele examinasse disfarçadamente as janelas
desse lado de casa, talvez satisfizesse em parte sua curiosidade. Uma das
alvas e diáfanas cortinas de cassa estendidas por detrás da
vidraça, tinha-se esfumado de uma sombra interior que desenhava o contorno
delicado de um busto.
Já era sol alto quando Seixas ouviu mexer na maçaneta da porta,
que de seus aposentos comunicava para o interior da casa. Era sem dúvida
o criado que vinha preparar-lhe o toucador para o asseio da manhã.
Achando a porta fechada e pensando que era escusado bater àquela hora,
retirou-se.
Havia água no jarro de porcelana de Sèvres, que ornava o rico
lavatório de pau-cetim. Seixas esteve em dúvida algum tempo;
mas pensando que a louça não perdia o seu verniz de novidade
por ser molhada uma vez, resolveu-se a lavar o rosto no serviço luxuoso.
Usou porém no resto de seu adereço, do pente e escova que havia
comprado.
Terminando, enxugou com uma toalha de seu próprio enxoval a bacia
e o lavatório; trancou em sua secretária os objetos que o podiam
denunciar; e abrindo a porta de comunicação, sentou-se, já
vestido e pronto com seu costumado apuro, na otomana, à espera… Nem
ele sabia de quê. Depois da decepção que o precipitara
do cúmulo da felicidade àquela incrível situação,
podia ele conhecer que peripécias ainda lhe reservava o drama em que
se agitava sua existência?
Com pouco apareceu o criado.
– O senhor já está pronto? Eu vim preparar o toucador, mas
achei a porta fechada.
– Nada faltou, respondeu Seixas.
– O senhor ordena que lhe traga os jornais a seu gabinete, para os ler logo
ao acordar, ou quer que fiquem na saleta?
– Onde ficavam até agora?
– Na saleta…
– É melhor assim.
– É como o senhor mandar. Foi a ordem que recebi.
O criado lançava um olhar pelo aposento, muito admirado da ordem
em que encontrava todo os objetos, inclusive os adereços do lavatório.
– O cocheiro pergunta se o senhor quer sair antes do almoço? De carro
ou a cavalo?
– Não, obrigado.
– A Diana já está selada. Mas em um momento pode-se mudar
a sela para o Nélson, ou aprontar-se a vitória.
– É escusado.
– A que horas o senhor deseja almoçar?
– À hora do costume. Não há necessidade de alterar.
– Então às dez.
O criado retirou-se para voltar uma hora depois:
– O almoço está na mesa.
– Quem mandou chamar?
– A senhora.
Seixas fez um aceno de cabeça, e deixou-se conduzir pelo criado.
II
No centro da sala estava a mesa onde os mais finos cristais irisavam-se
aos raios da luz, cambiando o esmalte da fina porcelana e as cores das frutas
apinhadas em corbelhas de prata.
O almoço era um banquete, não pela quantidade, o que seria
de mau gosto; mas pela variedade e delicadeza das iguarias.
Pelas janelas abertas sobre o jardim entravam, com a brisa da manhã
e a claridade de um formoso dia de verão, a fragrância das flores
e o trinado dos canários de um elegante viveiro.
Achavam-se na sala Aurélia e D. Firmina.
A moça recostara-se em uma cadeira de balanço no claro de
uma janela, de modo que seu gracioso vulto imergia-se na plena luz. Ao vê-la
radiante de beleza e risos, se acreditava que ela de propósito afrontava
o esplendor do dia, para ostentar a pureza imaculada de seu rosto, e sua graça
inalterável.
Trajava um roupão de linho de alvura deslumbrante; eram azuis as
fitas do cabelo e do cinto, bem como o cetim de um sapato raso, que lhe calçava
o pé como o engaste de uma pérola.
Fernando parou um instante ao entrar na sala; depois do que, firmando-se
na resolução tomada, dirigiu-se a sua mulher para saudá-la.
Todavia não calculava ele de que modo se desempenharia desse dever.
Aurélia viu o movimento. A saudação matinal do marido
ia despertar suspeitas em D. Firmina.
Seixas adiantava-se. A moça ergueu-se estendendo-lhe a mão,
e inclinando a cabeça sobre a espádua com uma ligeira inflexão,
apresentou-lhe a face, para receber o casto beijo da esposa.
Aquela mão porém estava gelada e hirta, como se fora de jaspe.
A face, pouco antes risonha e faceira, contraíra-se de repente em uma
expressão indefinível de indignação e desprezo.
Fernando só reparou nessa mutação quando seus lábios
roçavam a fria cútis, cuja pubescência erriçava-se
como o pêlo áspero do feltro. Retraiu-se involuntariamente, embora
naquela circunstância a carícia dessa mulher, de quem era marido,
o humilhasse mais do que sua repulsa.
– Vamos almoçar! disse a moça dirigindo-se à mesa e
acenando ao marido e a D. Firmina que se aproximassem.
Já não se via em seu belo semblante o menor traço do
sarcasmo que o demudara; nem se conceberia que essa esplêndida formosura
pudesse transformar-se na satânica imagem que Fernando vira pouco antes.
Aurélia tomou a cabeceira da mesa. Fernando ficou à sua direita,
em frente a D. Firmina.
A princípio a moça ocupou-se unicamente em servir, depois
trincando nos alvos dentes a polpa vermelha de uma lagosta, animou a conversação
com uma palavra viva e cintilante.
Nunca ela tinha revelado como nessa manhã, a graça de seu
espírito e o brilho de sua imaginação. Também
nunca o sorriso borbulhara de seus lábios tão florido; nem sua
beleza se repassara daquelas efusões de contentamento.
Seixas se distraíra a ouvi-la. Por tal modo embebeu-se ele no enlevo
da gentil garrulice, que chegou a esquecer por momentos a triste posição
em que o colocara a fatalidade junto dessa mulher.
Nas folgas que o apetite deixava à reflexão, D. Firmina admirava-se
do desembaraço que mostrava a noiva da véspera, na qual melhor
diria um casto enleio.
Mas já habituada à inversão que têm sofrido nossos
costumes com a invasão das modas estrangeiras, assentou a viúva
que o último chique de Paris devia ser esse de trocarem os noivos o
papel, ficando ao fraque o recato feminino, enquanto a saia alardeava o desplante
do leão.
– Efeitos da emancipação das mulheres! pensava consigo.
– Quer que lhe sirva desta salada, ou daquela empada de caça? perguntou
Aurélia notando que Seixas estava parado.
– Nada mais, obrigado.
Seixas tinha comido um bife com uma naca de pão; e bebera meio cálice
do vinho que lhe ficava mais próximo, sem olhar o rótulo.
– Não almoçou! tornou a moça.
– A felicidade tira o apetite, observou Fernando a sorrir.
– Nesse caso eu devia jejuar, retorquiu Aurélia gracejando. É
que em mim produz o efeito contrário; estava com uma fome devoradora.
– Nem por isso tem comido muito, acudiu D. Firmina.
– Prove desta lagosta. Está deliciosa, insistiu Aurélia.
– Ordena? perguntou Fernando prazenteiro, mas com uma inflexão particular
na voz.
Aurélia trinou uma risada.
– Não sabia que as mulheres tinham direito de dar ordens aos maridos.
Em todo o caso eu não usaria do meu poder para cousas tão insignificantes.
– Mostra que é generosa.
– As aparências enganam.
O torneio deste diálogo não desdizia do tom de nascente familiaridade,
próprio de dois noivos felizes; haviam entonações e relances
d’olhos, que os estranhos não percebiam, e que eles sentiam pungir
como alfinetes escondidos entre os rofos de cetim.
Da sala de jantar Fernando, acabado o almoço, passou à saleta
de conversa, onde com pouca demora o acompanhou Aurélia. D. Firmina
para não perturbar o mavioso a sós dos noivos, saiu a pretexto
de encomendas.
Seixas tinha aberto maquinalmente um dos jornais do dia, que estavam em
uma bandeja de charão com pés de bronze dourado, junto ao sofá.
Quando Aurélia entrou, ele ofereceu-lhe a folha que tinha em mão
e as outras, à escolha.
– Agradeço, disse Aurélia sentando-se no sofá.
O criado apresentava a Seixas com um porta-charutos de araribá-rosa
tauxiado de prata e guarnecido de legítimos havanas, uma lâmpada
também de prata, em cujo bico cintilava a flama azulada do espírito
de vinho.
– Obrigado, tenho os meus, disse Fernando recusando com um gesto os charutos
oferecidos, e tirando a carteira do bolso.
– E estes de quem são? perguntou vivamente Aurélia, designando
os havanas apresentados pelo criado.
Seixas fez um movimento para responder; lembrando-se que não estavam
sós, retraiu-se:
– Referia-me aos que trouxe comigo, disse frisando as últimas palavras.
– São melhores talvez.
– Ao contrário; mas estou habituado com eles. Não lhe incomoda
a fumaça?
– Faria prova de mau gosto a senhora que atualmente mostrasse repugnâncias
dessa ordem; além de que preciso de conformar-me aos hábitos
de meu marido.
– Por este motivo, não. Como seu marido não tenho hábitos,
e somente deveres.
Aurélia cortou o fio a este diálogo, perguntando com indiferença:
– Que trazem de novo os jornais?
– Ainda não os li. Que mais lhe interessa? Naturalmente a parte noticiosa,
o folhetim…
Ao mesmo tempo abria Seixas as folhas uma após outra, e percorrendo-as
com os olhos, lia em voz alta para Aurélia, o que encontrava de mais
interessante. A moça fingia ouvi-lo; mas seu espírito repassava
interiormente os últimos acontecimentos de sua vida, e interrogava
as incertezas do futuro, que ela mesma em parte se havia traçado.
Todavia a presença do criado fez-lhe reparar que Seixas ainda tinha
por acender o charuto.
– Não fuma? perguntou ao marido.
– Permite?
– Já lhe disse que não me incomoda! retorquiu a moça
com um assomo de impaciência.
– Desculpe-me; não tendo recebido um consentimento formal, receei
contrariá-la.
– Há receios que mais parecem desejos! observou a moça com
ironia.
– O tempo a convencerá de minha sinceridade.
– O tempo!… Ah! se realizasse tudo quanto dele se espera! exclamou Aurélia
com acerba irrisão.
Subtraindo-se a esse ímpeto de sarcasmo, que sublevou-lhe a alma
dorida, a moça refugiou-se numa banalidade.
– O melhor é não confiar nele e viver do presente. O verdadeiro
livro é o jornal com a crônica da véspera e os anúncios
do dia.
Seixas continuou a percorrer os jornais, como se acedesse ao gosto de Aurélia.
Nesse rápido exame ia lendo as epígrafes, a ver se alguma tinha
a virtude de excitar a curiosidade da moça.
– Como são interessantes estas folhas! disse Aurélia que buscava
um pretexto para expandir a irritação íntima. Quando
me lembro de abri-las, o que faço raras vezes porque não tenho
braços que cheguem para essa difícil empresa, sucede-me sempre
julgar que estou lendo um jornal do ano anterior.
– A culpa não é do jornal, mas da cidade em que se publica,
e da qual deve ser, como disse há pouco, o livro diário, ou
a história da véspera.
– Perdão, não me lembrava que também foi jornalista.
Como Aurélia se calasse, e as folhas não fornecessem mais
assunto à conversação, Seixas aproveitou a censura freqüentemente
dirigida à imprensa periódica em nosso país, para fazer
sobre o tema algumas variações, com que enchesse o tempo.
Está entendido que tratou a questão sob um ponto de vista
ameno, que pudesse conciliar a atenção de uma senhora; Aurélia
escutou-o alguns momentos com atenção; mas observando que o
marido falava com o tom monófono e a pausa calculada de quem desempenha
uma tarefa, e longe de dar franca expansão ao pensamento, ao contrário
solicita o espírito rebelde, a moça interrompeu essa dissertação
erguendo-se do sofá.
Deu algumas voltas pela saleta; percorreu com os olhos o aposento, reparando
no papel, nos móveis e adereços, como se nunca os tivesse examinado,
ou indagasse se nada faltava. Passou depois a observar atentamente as figurinhas
de porcelana e outras quinquilharias que havia sobre os consolos, tirando-as
de seu lugar e mudando-lhes a posição.
Daí encaminhou-se ao piano, que é para as senhoras como o
charuto para os homens, um amigo de todas as horas, um companheiro dócil,
e um confidente sempre atento. Ao abrir o instrumento, lembrou-se que não
era próprio a uma noiva de véspera entregar-se a esse passatempo,
quando vizinhos e criados, todos deviam supô-la àquela hora engolfada
na felicidade de amar e ser amada.
Ah! ela não conhecia essa aurora mística do amor conjugal,
que se lhe transformara em vigília de angústia e desespero.
Mas adivinhava qual devia ser a transfusão mútua de duas almas,
e compreendia que, ávidas uma da outra, não se podiam alhear
em estranho passatempo.
Abandonando o piano, disfarçou em percorrer os livros de música,
arrumados sobre o móvel apropriado, uma espécie de estante baixa
de prateleiras verticais. Aí esteve a folhear apenas, solfejando à
meia voz os trechos favoritos, e quiçá buscando um que respondesse
aos recônditos pensamentos, ou antes que traduzisse o indefinível
sentimento de sua alma naquele instante.
Parece que achou afinal essa nota simpática, pois sua voz desprendia-se
num alegro de bravura, quando lembrou-se que não estava só.
Volveu um olhar para o sofá, onde havia deixado o marido, que porventura
a estaria observando, surpreso de sua mímica.
Seixas, ao apartar-se a moça, tomara de cima da mesa um álbum
de fotografias, e entretinha-se em ver as figuras.
– Está vendo celebridades? perguntou a moça, que viera de
novo sentar-se ao sofá.
Fernando compreendeu que a pergunta não era senão malha para
travar a conversa, e dispôs-se a satisfazer o desejo da mulher.
– É verdade, celebridades européias, pois ainda não
as temos brasileiras; isto é, em fotografia, que no mais sobram. Admira
que nesta terra tão propensa à especulação e ao
charlatanismo, ainda ninguém se lembrasse de arranjar uns álbuns
de celebridades nacionais. Pois havia de ganhar muito dinheiro; não
só na venda de álbuns, mas sobretudo na admissão dos
pretendentes à lista das celebridades.
– Diga antes ao rol.
– É com efeito mais expressivo.
– O que isso prova, observou Aurélia, é que a literatura tem
feito maiores progressos em nosso país do que a arte; pois se não
me engano já há por aí, dentro e fora do país,
empresas montadas para exploração da biografia.
– Tem razão.
– Escapou de casar-se com uma contemporânea ilustre, acrescentou Aurélia
grifando as últimas palavras com o mais fino sorriso.
– Ah! não sabia! Lamento profundamente não ter de acumular
essas tantas honras que recebi.
– Pois estivesse ameaçada de andar por aí em não sei
que revista ou gazeta, na qualidade de brasileira notável. Creio eu
que o meu título à celebridade era a herança de meu avô.
Foi-me preciso tomar umas dez assinaturas para defender-me da conspiração
armada contra a minha obscuridade, e livrar-me da glória que esses
senhores pretendiam infligir-me.
Nesta conversa e na revista dos retratos consumiram os dois muito tempo.
A pêndula acabava de soar uma hora. O criado abriu com estrépito
a porta da sala da jantar, como para advertir de sua entrada; e disse aportuguesando
o termo inglês luncheon segundo o costume geral:
– O lanche está pronto.
– Vamos? perguntou a moça erguendo-se.
Seixas fechou o álbum e acompanhou a mulher.
O criado, que vira os dois noivos inclinados sobre o álbum, sorriu
com ar brejeiro.
Fernando percebeu o sorriso e corou.
III
Frutas da estação: abacaxis, figos e laranjas seletas, rivalizando
com as maçãs, peras e uvas de importação, ornavam
principalmente a refeição meridiana que os costumes estrangeiros
substituíram à nossa brasileira merenda da tarde, usada pelos
bons avós.
Havia também profusão de massas ligeiras, como empadinhas,
camarões e ostras recheadas; além de queijos de vários
países e doces de calda ou cristalizados. Os melhores vinhos de sobremesa
desde o Xerez até o Moscatel de Setúbal, desde o Champanhe até
o Constança, estavam ali tentando o paladar, uns com seu rótulo
eloqüente, outros com o topázio que brilhava através das
facetas do cristal lapidado.
– Não tenho a menor disposição! disse Fernando obedecendo
ao gesto de Aurélia e sentando-se à mesa.
– Ora! disse a moça com volubilidade. Para provar frutas e doces
não é preciso ter fome; faça como os passarinhos. O que
prefere? Um figo, uma pêra, ou o abacaxi?
– É preciso que eu tome alguma cousa? perguntou Fernando com seriedade.
– É indipensável.
– Nesse caso tomarei um figo.
– Aqui tem; um figo e uma pêra; é apenas um casal.
Seixas inclinou a cabeça; colocou o prato diante de si, e comeu as
duas frutas, pausada e friamente, como um homem que exerce uma ação
mecânica. Nada em sua fisionomia revelava a sensação agradável
do paladar.
Aurélia que esmagava entre os lábios purpurinos bagos de uva
moscatel, seguia com os olhos os movimentos automáticos de Fernando,
e se não adivinhava, confusamente pressentia o motivo que atuava sobre
seu marido.
Ergueu-se então da mesa, e saindo fora, à beirada da casa,
onde já fazia sombra, divertiu-se em dar de comer aos canários
e sabiás, que festejaram sua chegada com uma brilhante abertura de
trinados e gorjeios.
Pensava Aurélia que sua presença porventura acanhava ao marido;
e buscava aquele pretexto para arredar-se um instante e deixá-lo mais
livre de cerimônias. Desvaneceu-se porém essa idéia do
seu espírito, quando espiando pela fresta da janela, viu Seixas imóvel,
com os olhos fitos na parede fronteira, e completamente absorto.
Depois do lanche, Aurélia convidou o marido para darem uma volta
pelo jardim; mas havia senhoras nas janelas da vizinhança, e a moça
não quis expor-se aos olhares curiosos. Ela não era a noiva
feliz e amada; mas as outras a supunham, e tanto bastava para que seu pudor
a recatasse às vistas dos estranhos.
Voltaram pois à saleta.
Aí andaram a borboletear de um a outro assunto, mas apesar do desejo
que tinham, de prolongar a conversação, ou talvez por essa mesma
preocupação que os distraía, não encontraram tema
para divagar.
Afinal recaíram nas fotografias. Desta vez foi o álbum dos
conhecidos que forneceu matéria. Em um dos primeiros cartões
figurava o Lemos, cuja aparição coincidiu com esta observação
de Aurélia:
– O álbum das pessoas de minha amizade, eu o guardo comigo. Estes são
álbuns de sala, tabuletas semelhantes às que têm os fotógrafos
na porta.
– Mas não apresentam de certo as antíteses curiosas das tabuletas.
Os tais senhores parece que o fazem de propósito; não há
mais perfeita democracia.
Seixas, emérito conhecedor da Rua do Ouvidor, começou a especificar
alguns dos contrastes de que se recordava; abstemo-nos porém de reproduzir
suas observações, que ressentiam-se de singular mordacidade.
Esse tom cáustico não era natural ao mancebo, cuja índole
benévola e afável nunca passava de uns toques de fria ironia.
Ele próprio já notara em si essa alteração de
seu caráter, e achava um sainete especial em saturar-se do fel que
tinha no coração.
Ao cabo de algum tempo notou Fernando que Aurélia erguia freqüentemente
os olhos para a pêndula, e disfarçou, porque ele também
interrogava a miúdo e furtivamente o mostrador, ansioso de ver escoar-se
o dia.
Uma vez os olhos de ambos encontraram-se, quando buscavam a pêndula.
Aurélia corou de leve:
– Cuidei que fosse mais cedo! disse ela.
– Como passa rapidamente o tempo! exclamou Fernando. Quase três horas.
– Ainda falta muito. São apenas duas e um quarto.
– Ah! É verdade.
– Talvez esteja atrasado! observou Aurélia. Consulte seu relógio.
Havia uma diferença de minuto e meio entre o relógio de Seixas
e a pêndula da sala. Foi o pretexto para consumir o resto do tempo.
Aurélia quis acertar a pêndula; aproveitou a ocasião para
dar-lhe corda; depois do que veio uma discussão cerca da conveniência
de mudá-la para outro consolo.
– Já três horas! exclamou afinal a moça. É tempo
de vestir-nos para o jantar. Até logo!
Aurélia fez um gracioso aceno de fronte ao marido e desapareceu pela
porta, que dava para o seu toucador.
Quando ela entrou nesse aposento e fechou a porta sobre si, não teve
tempo de desatacar o corpinho do vestido; meteu as mãos pelos ilhoses
e magoando os dedos mimosos nos colchetes, despedaçou a ourela para
não sufocar. O coração que ela recalcara por tanto tempo
sublevava-se afinal, e estalava nos soluços que lhe dilaceravam o seio.
De seu lado Fernando, ao ficar só, respirava, como um homem que repousa
de uma tarefa laboriosa e fatigante. Ele desejaria sair daquele teto, perder
de vista a casa, ir bem longe daí para gozar desses momentos de solidão
e recuperar durante uma hora sua liberdade. Mas um passeio, e ainda mais solitário,
não era conveniente no dia seguinte ao de um casamento de amor.
O criado pediu licença para entrar.
– O senhor não precisa de mim?
– Não, obrigado. A que horas janta-se?
– Às cinco, se o senhor não der outra ordem.
– Bem.
– O senhor sai a passeio depois de jantar? De carro ou a cavalo?
– Não.
– Sei que não é próprio logo nos primeiros dias do
casamento, mas foram as ordens que recebi; que nada faltasse ao senhor.
– Quem as deu?
– A senhora.
Este cuidado que em outra circunstância lhe causaria íntimo
prazer, em sua posição humilhava-o. Sentia a influência
da tutela que pesava sobre ele, e o reduzia à condição
de um pupilo nupcial, se não cousa pior. Mas estava resignado às
duras provações da situação, a que seu erro o
submetera.
Ainda nessa ocasião, Seixas revelou uma nova alteração
em sua índole, ou pelo menos em seus hábitos.
Ele tinha essa flor da ingênua elegância, que não se
alimenta da vaidade de ser admirada, mas da satisfação íntima.
Vestir-se era para ele outrora um prazer; o contato de um novo trajo causava-lhe
uma sensação deliciosa, como a de um banho frio em hora de calma.
Nesse dia, porém, quando os guarda-roupas e cômodas regurgitavam,
limitou-se ele apenas a reparar algum leve desarranjo; e dar ao trajo da manhã
uma feição de novidade pela mudança de uma gravata. Quando
entrou na saleta de conversa, já ali estava D. Firmina, e Aurélia
não se demorou.
A moça trajava de verde. Ela tinha dessas audácias só
permitidas às mulheres realmente belas, de afrontar a monotonia de
uma cor. Seu lindo rosto, o colo harmonioso e os braços torneados,
desabrochavam dessa folhagem de seda, como lírios d’água
levemente rosados pelos rubores da manhã.
Quando a porta abriu-se para dar-lhe passagem, Seixas cuidou que assistia
à metamorfose da ninfa transformada em loto. Mas logo depois admirando
a graça que se desprendia dessa peregrina gentileza como a irradiação
de um astro, pareceu-lhe antes que a flor tomava as formas da mulher e animava-se
ao sopro divino.
D. Firmina trouxera da rua muitas novidades.
Recomendações de umas amigas de Aurélia; mil inquirições
de outras acerca do casamento; elogios dos noivos; e toda a outra bagagem
de agradáveis banalidades, que na máxima parte compõem
a vida nas grandes cidades.
Com esta provisão encarregou-se ela de preencher a meia hora que
faltava para o jantar.
– É voz geral, que não se podia escolher um par mais perfeito,
disse a viúva a modo de resumo.
– Já vê que nos casamos por unânime aclamação
dos povos, observou Aurélia sorrindo-se para o marido. Nada nos falta
para sermos felizes.
– Mais do que eu sou, não é possível, tornou Seixas.
– Esta primazia me pertence, e não lhe cederei!
D. Firmina aplaudiu essa contestação que revelava os extremos
de amor dos noivos um pelo outro.
O jantar correu como o almoço. Aurélia, isenta do enleio,
ou antes opressão, que a tolhia quando se achava só com o marido,
recobrava na presença de D. Firmina e dos criados a sua feiticeira
volubilidade, na qual um observador calmo notaria certa irritabilidade nervosa,
habilmente encoberta com a galanteria do gesto e a graça do sorriso.
Seixas não se demoveu da sobriedade que havia guardado pela manhã,
senão para aceder aos desejos da mulher, a qual por mais de uma vez
exerceu essa tirania feminina, que à semelhança de certas realezas,
compraz-se com as minúcias.
Ao levantarem-se da mesa, Fernando dirigiu-se à porta do jardim,
e esperava divagando os olhos pelo arvoredo, que dessem destino ao resto da
tarde. Aurélia aproximou-se enquanto D. Firmina estava ocupada em arranjar
a cauda de seu vestido nesgado, moda a que ainda se não pudera habituar.
– Que bela tarde! exclamou a moça ao lado do marido.
Logo sombreando a voz disse-lhe quase ao ouvido, com tom rápido e
incisivo:
– Ofereça-me o braço!
Depois prolongando a exclamação, continuou mostrando no horizonte
uns arrebóis encantadores, em que os mais finos matizes se cambiavam
sobre a nívea polpa de um grande cirro que de repente incendiou-se
como um rosicler de fogo.
– Veja; até o céu está festejando a nossa ventura.
Quem já teve desses fogos de artifícios, que o sol preparou
para obsequiar-nos?
– É pena que não possamos… que eu não possa gozar da
festa mais de perto, para melhor apreciá-la.
Aurélia voltou-se rapidamente para fitar no semblante do marido um
frio olhar de interrogação; mas Fernando contemplava as gradações
da luz no ocaso, e só voltou-se para oferecer o braço à
mulher, conforme a recomendação que recebera.
Fê-lo porém, mais com o gesto, pois as palavras apenas murmuradas,
mal se ouviram.
– Acenda seu charuto, disse a moça vendo que ele esquecia-se desse
pormenor, apesar de lhe ter o criado oferecido fogo.
Aurélia conduziu o marido a um caramanchão que havia no meio
da chácara, e cuja espessa ramada os escondia às vistas de D.
Fimina, e do jardineiro e hortelão que andavam na lida costumada.
Seixas tinha umas tinturas de orquídeas e parasitas que havia colhido
um verão em Petrópolis, no tempo em que a cultura e o estudo
desses dois gêneros de plantas esteve na moda, e para alguns degenerou
em mania. Como um dos leões fluminenses, estava ele na obrigação
de sujeitar-se a esse novo capricho da soberana; e cumpria-lhe habilitar-se
para em uma reunião nomear por sua designação científica
a flor da moda que ornava uma gruta de jardim ou um vaso de sala.
Justamente embaixo do caramanchão havia uma bela coleção
de orquídeas, que o jardineiro ali guardava do sol. Fernando aproveitou-se
do tema, para fazer mostra dos seus conhecimentos botânicos.
Aurélia ouviu-o com atenção; só quando o marido
parecia ter esgotado o assunto, foi que ela encartou uma reflexão.
– Como todo o mundo, eu sempre fui muito apaixonada de flores; mas houve
um tempo em que não as pude suportar. Foi quando se lembraram de ensinar-me
botânica.
– Quer isto dizer que tive a infelicidade de aborrecê-la com a minha
conversa?
– Eis o que é a prevenção! Conseguiu reconciliar-me com
a botânica. Não há melhor calmante.
Já estava escuro quando Aurélia se recolheu do jardim pelo
braço do marido. D. Firmina os esperava da saleta já esclarecida
com um doce crepúsculo artificial coado pelo cristal fosco dos globos.
A viúva sentara-se à mesa do centro para devorar os folhetins
dos jornais; e teve a discrição de voltar as costas para o sofá
onde se tinham acomodado os noivos.
Aurélia, fatigada da comédia que representara durante o dia,
recostara-se à almofada, e cerrando as pálpebras engolfou-se
em seus pensamentos. Fernando respeitou essa meditação: tanto
mais quanto seu espírito cedia também a uma irresistível
preocupação.
A noite causara-lhe um indefinível desassossego, que mais crescia
agora com a aproximação da hora de recolher. Não sabia
de que se receava; era uma cousa vaga, informe, ignota, que o enchia de pavor.
Assim, cada um em seu canto de sofá, separados ainda mais pela completa
alheação do que pelo espaço que entre ambos medeava,
ela absorta, ele agitado, passaram esse primeiro serão de sua vida
conjugal.
D. Firmina, às vezes, nalgum ponto menos interessante do folhetim,
aplicava o ouvido; e aquele silêncio suspeito a fazia sorrir pensando
nos abraços e beijos furtivos que surpreenderia, se de repente se voltasse
para o sofá.
Com discreta malícia, a pretexto de procurar o lenço fazia
menção de voltar-se para gozar do prazer de assustar os dois
pombinhos. Então percebia um leve rumor; cuidando que eles se afastavam,
quando ao contrário fingiam ocupar-se um do outro, para não
traírem sua mútua indiferença.
Pelo meio da noite Aurélia saiu da sala. Depois de uma pequena ausência
durante a qual ouviu-se dentro algum rumor, ela voltou a ocupar seu lugar
no canto do sofá.
Afinal a pêndula marcou dez horas. D. Firmina dobrou seus jornais
e despediu-se.
Aurélia acompanhou-a lentamente como para certificar-se de que se
afastava; depois do que cerrou a porta, deu duas voltas pela sala, e caminhou
para o marido.
Seixas viu-a aproximar-se assombrado pela estranha expressão que
animava o rosto da moça.
Era um sarcasmo cruel e lascivo o que transluzia com fulgor satânico
da fisionomia e gesto dessa mulher.
Só faltava-lhe a coroa de pâmpanos sobre as tranças
esparsas, e o tirso na destra.
Em face do marido porém essa febre aplacou-se como por encanto; e
surgiu outra vez do corpo da bacante em delírio a virgem casta e melindrosa.
Aurélia tinha na mão dois objetos semelhantes, envoltos um
em papel branco, outro em papel de cor. Ofereceu o primeiro a Seixas; mas
retraiu-se substituindo aquele pelo outro.
– Esta é minha, disse guardando o invólucro de papel branco.
Enquanto Seixas olhava o objeto que recebera, sem compreender o que isto
significava, Aurélia fez-lhe com a cabeça uma saudação:
– Boa noite.
E retirou-se.
IV
Fernando dirigiu-se a seu aposento com tanta precipitação,
que esqueceu-lhe o objeto fechado em sua mão; só deu por ele
no toucador, ao cair-lhe no chão.
Abriu então o papel. Havia dentro uma chave; e presa à argola
uma tira de papel com as seguintes palavras escritas por Aurélia: chave
de seu quarto de dormir.
Ao ler estas palavras Seixas tornou-se lívido; e lançou um
olhar esvairado para o reposteiro da câmara, e em que ele que entrara
na véspera palpitante de amor e que não poderia nunca mais penetrar,
senão ébrio de vergonha e marcado com o ferrete da infâmia.
Com o movimento que fez descobriu uma modificação que sofrera
o aposento. Fora arredado o guarda-roupa, que ocultava uma porta agora patente,
e apenas coberta por uma cortina também de seda azul.
A chave servia nessa porta que dava para uma alcova elegante, mobiliada
com uma cama estreita de érable e outros acessórios. Era o mais
casquilho dormitório de rapaz solteiro que se podia imaginar.
Seixas adivinhou pela onda de fragrância derramada no aposento, que
Aurélia ali estivera pouco antes. Talvez saíra ao ouvir o rumor
da chave na fechadura.
– Meu Deus! exclamou o mancebo comprimindo o crânio entre as palmas
das mãos. Que me quer esta mulher? Não me acha ainda bastante
humilhado e abatido? Está se saciando de vingança! Oh! ela tem
o instinto da perversidade. Sabe que a ofensa grosseira ou caleja a alma,
se é infame, ou a indigna se ainda resta algum brio. Mas esse insulto
cortês cheio de atenção e delicadezas, que são
outros tantos escárnios; essa ostentação de generosidade
com que a todo o momento se está cevando o mais soberano desprezo;
flagelação cruel infligida no meio dos sorrisos e com distinção
que o mundo inveja; como este, é que não há outro suplício
para a alma que se não perdeu de todo. Por que não sou eu o
que ela pensa, um mísero abandonado da honra, e dos nobres estímulos
do homem de bem? Acharia então com quem lutar!
Seixas vergou a cabeça ao peso dessa reflexão.
– A força da resignação, essa porém hei de tê-la.
Não me abandonará, por mais cruel que seja a provação.
Os dias seguintes, essa fase nascente da lua-de-mel, passaram como o primeiro.
Entraram então os noivos na outra fase, em que o enlevo de se possuírem
já permite, sobretudo ao homem, tornar às ocupações
habituais.
No quinto dia Seixas apresentou-se na repartição, onde foi
muito festejado por suas prosperidades. Tomaram os companheiros aquele pronto
comparecimento por mera visita. Se quando pobre, sua freqüência
somente se fazia sentir no livro do ponto, agora que estava rico ou quase
milionário, com certeza deixaria o emprego ou quando muito o conservaria
honorariamente, como certos enxertos das secretarias.
Grande foi pois a surpresa que produziu a assiduidade de Seixas na repartição.
Entrava pontualmente às 9 horas da manhã e saía às
3 da tarde; todo esse tempo dedicava-o ao trabalho: apesar das contínuas
tentações dos companheiros, não consumia como costumava
outrora a maior parte dele na palestra e no fumatório.
– Olha, Seixas, que isto é meio de vida e não de morte! dizia-lhe
um camarada repetindo pela vigésima vez esta banalidade.
– Vivi muitos anos à custa do Estado, meu amigo; é justo que
também ele viva um tanto à minha custa.
Outra mudança notava-se em Seixas. Era a gravidade que sem desvanecer
a afabilidade de suas maneiras sempre distintas, imprimia-lhes mais nobreza
e elevação. Ainda seus lábios se ornavam de um sorriso
freqüente; mas esse trazia o reflexo da meditação e não
era como dantes um sestro de galanteria.
O casamento é geralmente considerado como a iniciação
do mancebo na realidade da vida. Ele prepara a família, a maior e mais
séria de todas as responsabilidades. Atualmente esse ato solene tem
perdido muito de sua importância; indivíduo há que se
casa com a mesma consciência e serenidade, com que o viajante aposenta-se
em uma hospedaria.
Por isso estranhavam os colegas de Seixas aqueles modos tão diversos
dos que tinha antes, em solteiro; e não concebendo que o casamento
mudasse repentinamente a natureza do homem, atribuíam a transformação
à riqueza; e à modéstia chamaram impostura.
Para chegar em tempo à repartição, tinha Seixas de
almoçar mais cedo e só, o que poupava-lhe, e também a
Aurélia, cerca de meia hora de suplício, que ambos se infligiam
um ao outro com sua presença.
– Está muito assíduo agora à repartição!
disse um dia a moça ao marido. Pretende algum acesso?
Seixas deixou cair o remoque e respondeu francamente:
– É verdade, há uma vaga, e desejo obter a preferência.
– Que ordenado tem esse emprego?
– Quatro contos e oitocentos.
– E precisa disso?
– Preciso.
Aurélia soltou uma risada argentina, quanto má e venenosa.
– Pois então seja antes meu empregado; asseguro-lhe o acesso.
– Já sou seu marido, respondeu Seixas com uma calma heróica.
A moça continuou a gorjear o seu riso sarcástico; mas voltou
as costas ao marido e afastou-se.
Seixas ia a pé tomar em caminho a gôndola, cujo ponto ficava
distante da repartição. Uma vez a mulher o interpelou acerca
disso:
– Por que não serve-se do carro, quando sai?
– Prefiro o exercício a pé. É mais higiênico; faz-me
bem ao corpo e ao espírito.
– É pena que não tivesse feito seus estudos de higiene quando
solteiro.
– Não imagina quanto o lamento. Mas sempre é tempo de aprender,
e nestes poucos dias tenho aproveitado muito.
– A mim me parece que desaprendeu. Naquele tempo sabia que eu era rica,
muito rica; hoje tem-me na conta de uma mulher, cujo marido anda de gôndola.
Fernando mordeu os beiços.
– A riqueza também tem sua decência. Casou-se com uma milionária,
é preciso sujeitar-se aos ônus da posição. Os pobres
pensam que só temos gozos e delícias; e mal sabem a servidão
que nos impõe esta gleba dourada. Incomoda-lhe andar de carro? E a
mim não me tortura este luxo que me cerca? Há cilício
de crina que se compare a estes cíclicos de tule e seda que eu sou
obrigada a trazer sobre as carnes, e que me estão rebaixando- a todo
o instante, porque me lembra que aos olhos deste mundo, eu, a minha pessoa,
a minha alma, vale menos do que esses trapos?
As últimas palavras pareciam escapar-se dos lábios da moça
rorejadas de lágrimas. Seixas esquecendo a pungente alusão que
sofrera pouco antes, fitou-a com olhos compassivos; mas ela recobrara já
o tom de agressiva ironia:
– Assim o mundo achará em mim a sua criatura; a mulher, que festeja
e enche de adorações. Eu serei para ele o que ele me fez.
Esse mundo, Fernando compreendeu que era o pronome de sua infelicidade e
ambição. Restituído à realidade de sua posição
de que o ia arrancando súbita comoção, disse:
– Pensa então que a decência de sua casa exige que seu marido
ande de carro?
– Penso que me casei com um cavalheiro distinto, que sabe usar de sua fortuna,
e não com um homem vulgar.
– Tem razão. Reclama o que lhe pertence, e eu seria um velhaco se
lhe recusasse o que adquiriu com tão bom direito.
A chegada de D. Firmina interrompeu este diálogo.
De volta da repartição, encontrava Seixas a mulher na saleta;
se ela estava só, cortejavam-se apenas, trocavam algumas palavras a
esmo, depois do que recolhiam-se cada um a seu aposento e preparavam-se para
o jantar. Se havia alguém com Aurélia, Seixas passava-lhe a
mão pela cintura e roçava um beijo hirto por aquela face aveludada
que se crispava ao seu hálito frio. Depois do jantar vinha o passeio
ao jardim. Era nessa ocasião, quando escondidos pela folhagem, os supunham
na troca de ternuras, que Aurélia crivava o marido de epigramas e motejos.
De ordinário Seixas opunha a esse fogo rolante uma paciente indiferença
que acabava por fatigar a moça.
Alguma vez, porém, acontecia retribuir Seixas o sarcasmo, o que irritava
o ânimo já acerbo de Aurélia, cuja palavra tornava-se
então de uma causticidade implacável.
À noite havendo visitas passavam no salão; quando estavam
sós, ficavam na saleta; Seixas abria um livro; Aurélia fingia
escutar os trechos que o marido lia em voz alta. Outras noites improvisava-se
um jogo, em que tomava parte D. Firmina, e cuja fútil monotonia matava
as horas.
Tinham perto de um mês de casados; durante esse tempo, vendo-se e
falando-se todos os dias, não acontecera uma só vez pronunciarem
o nome um do outro. Usavam do verbo na terceira pessoa; respeitavam entre
si esse anônimo tácito, sublinhando a palavra com o gesto.
Uma ocasião, estava a sala cheia de gente. Aurélia dirigiu-se
ao marido quando este de pé, a pequena distância, conversava
com várias pessoas. Não respondeu Seixas; ela quis aproximar-se
para chamar-lhe a atenção, mas cercavam-no os amigos.
– Fernando! disse então, fazendo um supremo esforço.
Seixas voltou-se atônito; encontrou nos lábios da mulher um
sorriso que saturava de fel a doçura daquela voz.
– Chamou-me?
– Para acompanhar D. Margarida que se retira.
A mudança que se havia operado na pessoa de Seixas depois de seu
casamento, fez-se igualmente sentir em sua elegância. Não mareou-se
a fina distinção de suas maneiras e o apuro do trajo; mas a
faceirice que outrora cintilava nele, essa desvanecera-se.
Sua roupa tinha o mesmo corte irrepreensível, mas já não
afetava os requintes da moda; a fazenda era superior, porém de cores
modestas. Já não se viam em seu vestuário os vivos matizes
e a artística combinação de cores.
Aurélia notou não só essa alteração que
dava um tom varonil à elegância de Seixas, como outra particularidade,
que ainda mais excitou-lhe a observação. Dos objetos que faziam
parte do enxoval por ela oferecido, não se lembrava de ter visto um
só usado pelo marido.
Ao mesmo tempo a chocalhice dos escravos a advertiu de uma circunstância
ignorada por ela e que se prendia à outra.
Ordenava ela à mucama que distribuísse pelas outras uns enfeites
e vestidos já usados.
– Sinhá é muito esperdiçada! observou a mucama com
a liberdade que as escravas prediletas costumam tomar. Não sabe poupar
como senhor que traz tudo fechado, até o sabonete!
– Não tens que ver, nem tu nem as outras, com o que faz teu senhor!
atalhou Aurélia com severidade.
Bem ímpetos sentiu a moça de interrogar a mucama; mas resistiu
a esse desejo veemente para conservar o decoro de sua posição
e não abaixar-se até à familiaridade com a criadagem.
Despediu a rapariga; mas resolveu verificar por si o que teria valido a
Seixas essa reputação de avaro, que lhe conferia a opinião
pública da cozinha e da cocheira.
V
No dia seguinte, depois do almoço, lembrou-se Aurélia de sua
resolução da véspera.
Àquela hora o marido estava na repartição, e já
o criado devia ter acabado de fazer o serviço dos quartos; por conseguinte
podia sem despertar a atenção realizar seu intento.
Deu volta à chave da porta que um mês antes fechara-se entre
ela e seu marido; abriu de leve o reposteiro de seda azul para certificar-se
de que ninguém havia no aposento; e trêmula, agitada por uma
comoção que lhe parecia infantil, entrou naquela parte da casa,
onde não tornara depois de seu casamento.
Que horas encantadoras passara ela ali nos dias que precederam a cerimônia,
quando ocupava-se com o preparo e adereço desses aposentos, destinados
ao homem a quem ia unir-se para sempre, embora para dele separar-se por um
divórcio moral, que talvez fosse eterno!
O sentimento que possuía Aurélia e a dominava naquele tempo,
ela própria não o poderia definir tão singulares eram
os afetos que se produziam em sua alma.
Ao passo que ela acariciava com um acerbo requinte a desafronta de seu amor
ludibriado, e prelibava o cáustico prazer da humilhação
desse homem, que a traficava, vinham momentos em que alheava-se completamente
dessa preocupação da vingança, para entregar-se às
fagueiras ilusões.
Tinha sede de amor; e como não o encontrava na realidade, ia bebê-lo
a longos haustos na taça de ouro, que lhe apresentava a fantasia. Essas
horas via-as com seu ideal; e eram horas inebriantes e deliciosas.
Nelas foi que a jovem mulher se esmerou em ornar estas salas e gabinetes.
Sonhava que iam ser habitados pelo único homem a quem amara, e que
lhe retribuía com igual paixão. Queria que esse ente querido
achasse como que entranhada na elegância dos aposentos, sua alma palpitante,
que o envolvesse e encerrasse dentro em si.
Ao rever o lugar e objetos, que tinham sido companheiros daquelas cismas
e ardentes emoções, Aurélia cedeu um instante à
mágica influência de recordos, os quais se desdobravam como as
névoas aljofradas, que empanam a luz do sol e mitigam-lhe a calma.
Arrancando-se afinal a esse enlevo de um passado, que nem ao menos era real,
e só existira como uma doce quimera, a moça percorreu então
o aposento, e volveu um olhar perscrutador.
Notou o que aliás era bem visível. O toucador estava completamente
despido de todas as galanterias, de que ela o havia adornado com sua própria
mão. Parecia um móvel chegado naquele instante da loja. Os guarda-roupas,
cômodas, secretárias, tudo fechado, e na mesma nudez, que denunciava
falta de uso.
– É por isso!… murmurou a moça consigo. O criado não
suspeita o motivo, e atribui à mesquinheza.
Uma das mais tocantes puerilidades de Aurélia, quando sonhava o casamento
com o homem amado, fora a igualdade das fechaduras de todas as partes e móveis
do uso especial de cada um. Duas almas que se unem, pensava ela em sua terna
abnegação, não têm segredos e devem possuir-se
uma à outra completamente.
Quando reuniu em argolas de ouro, as duas séries de chaves ao todo
iguais, sorriu-se e imaginou que na noite do casamento, quando seu marido
se lhe ajoelhasse aos pés, ela o ergueria em seus braços para
dizer-lhe:
– Aqui estão as chaves de minha alma e de minha vida. Eu te pertenço;
fiz-te meu senhor; e só te peço a felicidade de ser tua sempre!
Em que abismo de dor e vergonha se tinham submergido essas visões maviosas,
já o sabemos. Ninguém suspeitou jamais nem ela revelou nunca,
a voragem de desespero oculta sob aquele formoso colo, que parecia arfar unicamente
com as brandas emoções do amor e do prazer.
Aurélia abriu com suas chaves os móveis; e confirmou-se em
uma conjetura. Tudo, jóias, perfumarias, utensílios de toucador,
roupa, tudo ali estava guardado em folha, como viera da loja.
– Que significação tem isto? murmurou a moça interrogando
atentamente seu espírito. Parece desinteresse… Mas não! Não
pode ser. Em todo caso há um plano, uma idéia fixa. Outro dia
o carro; agora isto!…
Refletiu algum tempo mais, e concluiu:
– Não compreendo.
Aurélia tinha razão. Se com essa obstinação,
Seixas queria mostrar desapego à riqueza adquirida pelo casamento,
fazia um ridículo papel; pois o enxoval não era senão
um insignificante acessório do dote em troca do qual tinha negociado
sua liberdade.
A porta do quarto de dormir estava fechada. Aurélia abriu-a com a
chave parelha que havia em sua argola.
Ali achou a escrivaninha, que servia de toucador provisório a Seixas,
e uns pentes e escovas de ínfimo preço.
– Agora entendo. Quer mortificar-me.
Depois do jantar, passeavam no jardim; Aurélia tendo colhido uma
rosa, afagava com as pétalas macias o cetim de suas faces, mais puro
que o matiz da flor.
– Hoje estive em seu toucador, disse ela com simulada indiferença.
– Ah! fez-me esta honra?
– Uma dona-de-casa, bem sabe, tem obrigação de ver tudo.
– A obrigação e o direito.
– O direito aqui seria da mulher, e não só este como outros
mais.
– Eu os reconheço, disse Fernando.
– Ainda bem. Vejo que nos havemos de entender.
Este diálogo, quem o ouvisse de parte, não lhe descobriria
a menor expressão hostil ou agressiva. Os dois atores deste drama singular
já se tinham por tal forma habituado a vestir sua ironia de afabilidade
e galanteria, que vendavam completamente a intenção.
Muitas vezes D. Firmina aproximava-se no meio de uma dessas escaramuças
de espírito e supunha ao ouvi-los que estavam arrulando finezas e ternuras,
quando eles se crivavam de alusões pungentes.
A moça hesitou um instante; mas fitando de chofre o olhar no semblante
do marido, perguntou-lhe:
– Que fez dos objetos que estavam no toucador?
Seixas conteve um assomo de nobre ressentimento e sorriu-se com desdém:
– Não tenha susto; estão fechados nas gavetas, intactos como
os deixou. Pensava talvez que parassem em alguma casa de penhor?
– Estes objetos lhe pertencem, pode dispor deles como lhe aprouver, sem dar
contas disso a ninguém. Era a resposta que supunha receber e eu não
teria que replicar-lhe, pois reconheço o seu direito e o respeito.
– Penhora-me com tamanha generosidade, disse Seixas sentindo o dardo da
alusão.
– Não se apresse em agradecer. Se respeito o seu direito de dispor
livremente do que é seu, também por minha parte reclamo a garantia
do que adquiri com o sacrifício de minha felicidade. Casei-me com o
Sr. Fernando Rodrigues de Seixas, cavalheiro distinto, franco e liberal; e
não com um avarento, pois é este o conceito em que o têm
os criados, e brevemente toda a vizinhança, se não for a cidade
inteira.
Seixas escutara com uma calma forçada estas palavras da mulher, e
replicou-lhe vivamente:
– Há dias, a propósito do carro, agitou-se entre nós
esta questão; volta agora o caso do toucador; e pode renovar-se a cada
momento. O melhor pois é liquidá-la de uma vez.
– Liquidemos.
– Dê-me o braço, que ali vem D. Firmina.
Aurélia passou a mão pelo braço de Seixas. Passeando
ao longo de uns painéis de fúcsias de várias espécies
e admirando as flores, tiveram eles esta conferência, que de certo nunca
houve entre marido e mulher.
– A senhora comprou um marido; tem pois o direito de exigir dele o respeito,
a fidelidade, a convivência, todas as atenções e homenagens,
que um homem deve à sua esposa. Até hoje…
– Faltou-lhe mencionar uma, talvez por insignificante, o amor, atalhou Aurélia
brincando com um cacho de fúcsias.
– Estava subentendido. Há apenas uma reserva a fazer acerca da espécie
desse produto. Suponha que a senhora não possuísse esta bela
e opulenta madeixa, suntuoso diadema como não o tem nenhuma rainha,
e que fizesse como as outras moças, que compram os coques, as tranças
e os cachos. Não teria de certo a pretensão de que esses cabelos
comprados lhe nascessem na cabeça, nem exigiria razoavelmente senão
uns postiços. O amor que se vende é da mesma natureza desses
postiços: frocos de lã, ou despojo alheio.
– Oh! ninguém o sabe melhor do que eu, que espécie de amor
é esse, que se usa na sociedade e que se compra e vende por uma transação
mercantil, chamada casamento!.. O outro, aquele que eu sonhei outrora, esse
bem sei que não o dá todo o ouro do mundo! Por ele, por um dia,
por uma hora dessa bem-aventurança, sacrificaria não só
a riqueza, que nada vale, porém minha vida, e creio que minha alma!
Aurélia, no afogo destas palavras que lhe brotavam do seio agitado,
retirara a mão do braço de Seixas; ao terminar voltara-se rapidamente
para esconder a veemência do afeto que lhe incendiara o olhar e as faces.
Seixas acompanhou este movimento com um gesto de profunda mágoa,
que um instante confrangeu-lhe o semblante, mas logo passou; já ele
estava ocupado em entrançar nos losangos do gradil verde alguns pâmpanos
mais longos de madressilva, quando Aurélia aproximou-se.
– Não faça caso destas puerilidades. São os últimos
arrancos do passado. Cuidei que já estava morto de todo; ainda respira;
mas em poucos dias nós o teremos enterrado. Talvez que então
eu consiga ser a mulher que lhe convinha, uma de tantas que o mundo festeja
e admira.
– A senhora será o que lhe aprouver; de qualquer modo deve convir-me
desde que não empobreça.
Este sarcasmo chamou Aurélia à realidade de sua posição.
– É verdade, esqueci-me que entre nós só há
um vínculo.
– Posso continuar?
– Estou ouvindo-o.
– As obrigações e respeitos que lhe devo como seu marido,
ainda não me eximi de cumpri-los; e não me eximirei, qualquer
que seja a humilhação, que eles me imponham.
Aurélia sentiu uma estranha repulsão ao ouvir estas palavras;
o rubor queimou-lhe as faces.
– A senhora pretende também que não comprou um marido qualquer,
e sim um marido elegante, de boa sociedade e maneiras distintas. Fazendo violência
à minha modéstia, concordo. Tudo quanto for preciso para pavonear
essa vaidade de mulher rica, eu o farei e o tenho feito. Salvas algumas modificações
ligeiras, que a idade vai trazendo, sou o mesmo que era quando recebi sua
proposta por intermédio de Lemos. Estarei enganado?
Aurélia respondeu com um gesto de suprema indiferença.
– Já vê que sou exato e escrupuloso na execução
do contrato. Conceda-me ao menos este mérito. Vendi-lhe um marido;
tem-no à sua disposição, como dona e senhora que é.
O que porém não lhe vendi foi minha alma, meu caráter,
a minha individualidade; porque essa não é dado ao homem alheá-la
de si, e a senhora sabia perfeitamente que não podia jamais adquiri-la
a preço d’ouro.
– A preço de que então?
– A nenhum preço, está visto, desde que o dinheiro não
bastava. Se me der o capricho para fingir-me sóbrio, econômico,
trabalhador, estou em meu pleno direito; ninguém pode proibir-me esta
hipocrisia, nem impor-me certas prendas sociais, e obrigar-me a ser à
força um glutão, um dissipador e um indolente.
– Prendas que possuía quando solteiro.
– Justamente, e que me granjearam a honra de ser distinguido pela senhora.
– É por isso que desejo revivê-las.
– Neste ponto sou livre, e a senhora não tem sobre mim o menor poder.
O fausto de sua casa exige que tenha um palácio, mesa lauta, carros
e cavalos de preço, que viva no meio do luxo e da grandeza. Não
a contrario no mínimo detalhe; moro nessa casa, sento-me a essa mesa,
entrarei nesses carros para acompanhá-la; não serei nos esplêndidos
salões um traste indigno de emparelhar com os outros móveis.
Quanto ao mais, ter por exemplo, apetite para suas iguarias e prazer para
suas festas, eis ao que não me obriguei. E porventura será defeito
que rebaixe o homem de sua posição social, de seus méritos,
o fastio ou o hábito de andar a pé?
– Porventura, pergunto-lhe eu, será agradável a alguma senhora
ter um marido que serve de tema à risota dos criados, e passa por trancar
o sabonete? E veja quanto se desmandam, que já chegaram a meus ouvidos
os chascos dessa gente.
– Compreendo que se ofenda com isso o seu orgulho. Mas há um remédio;
deixar que roubem esses objetos, ou dá-los sob qualquer pretexto, contanto
que eu não me sirva deles.
Aurélia fez um gesto de impaciência.
– Não contesto-lhe o direito que pretende haver sobre o que chama
sua alma e seu caráter. Ideou este meio engenhoso de contrariar-me;
não lhe roubarei o prazer; mas se deseja saber o que penso…
– Tenho até o maior empenho. Sua opinião é para mim
como um farol; indica-me o parcel.
– O que não impediu seu naufrágio. Mas não gastemos
o tempo em epigramas. Que necessidades temos nós destes trocadilhos
de palavras, quando somos a sátira viva um do outro? Há neste
mundo certos pecadores que depois de obtidos os meios de gozar da vida, arranjam
umas duas virtudes de aparato, com que negociam a absolvição
e se dispensam assim de restituir a alma de Deus.
O aspecto de Seixas denunciava a cólera que sublevava-se em sua alma
e não tardava a prorromper. Mas desta vez ainda conseguiu domar a revolta
de seus brios.
– Acabe.
– Já tinha acabado. Mas, para satisfazê-lo, aí vai o
ponto do i; sua economia e sobriedade são do número daquelas
virtudes oficiais dos pecadores timoratos.
– A senhora tem uma sagacidade prodigiosa! Bem mostra que é sobrinha
do Sr. Lemos.
Aurélia que seguira adiante voltou-se como se uma víbora a
tivesse picado no calcanhar. Tão eloqüente foi o assomo de dignidade
ofendida que vibrou a fronte da formosa moça, e tal o império
de seu olhar de rainha, que Seixas arrependeu-se.
– Desculpe!… disse ele com brandura. Sua ironia às vezes é
implacável!
Aurélia não respondeu. Adiantando-se, entrou em casa e recolheu-se
ao toucador.
Era a primeira noite depois de casados, que ela não voltava do jardim
na companhia e pelo braço do marido.
VI
Fazia um luar magnífico.
Seixas conversava com D. Firmina na calçada de mármore de
frente, que a folhagem das árvores cobria de sombra.
À direita do marido estava Aurélia reclinada em uma cadeira
mais baixa de encosto derreado, cômodo preguiceiro para o corpo e o
espírito que deseja cismar.
Desde a tarde da explicação relativa ao toucador, as relações
dos dois companheiros dessa grilheta matrimonial se tinham modificado.
Como se houvessem naquela ocasião exaurido toda a dose de fel e acrimônia,
acumulada nesse primeiro mês de casados; desde o dia seguinte suas palavras
correspondendo à amenidade e apuro das maneiras, perderam a ponta de
ironia, de que anteriormente vinham sempre armadas, como as vespas de seu
dardo sutil e virulento.
Conversaram menos de si, falando sobre cousas indiferentes ou banais, acontecia-lhes
durante muitas horas esquecerem-se da fatalidade que os tinha unido em uma
eterna colisão para se dilacerarem mutuamente a alma.
Seixas descrevia naquele momento a D. Firmina o lindo poema de Byron, Parisina.
O tema da conversa fora trazido por um trecho da ópera que Aurélia
tocara antes de vir sentar-se na calçada.
Depois do poema ocupou-se Fernando com o poeta. Ele tinha saudade dessas
brilhantes fantasias, que outrora haviam embalado os sonhos mais queridos
de sua juventude. A imaginação, como a borboleta que o frio
entorpeceu e desfralda as asas ao primeiro raio do Sol, doudejava por essas
flores d’alma.
Não falava para D. Firmina, que talvez não o compreendia,
nem para Aurélia que certamente não o escutava. Era para si
mesmo que expandia as abundâncias do espírito; o ouvinte não
passava de um pretexto para esse monólogo.
Às vezes repetia as traduções que havia feito das poesias
soltas do bardo inglês; essas jóias literárias, vestidas
com esmero, tomavam maior realce na doce língua fluminense, e nos lábios
de Seixas que as recitava como um trovador.
Aurélia a princípio entregara-se ao encanto daquela noite
brasileira, que lhe parecia um sonho de sua alma pintado no azul diáfano
do céu.
Umas vezes ela refugiava-se no mais espesso da sombra, como se receasse
que os raios indiscretos da Lua viessem espiar em seus olhos os recônditos
pensamentos. Daí, da escuridão em que se embuçava, entretinha-se
a ver as árvores e os edifícios flutuando na claridade que os
inundava como um lago sereno.
Outras vezes inclinava a medo e lentamente a cabeça até encontrar
a faixa de luar que passava entre duas folhas de palmeira, e vinha esbater-se
na parede. Então essa veia de luz caía-lhe sobre a fronte e
banhava-a de um cândido esplendor.
Ficava um instante nessa posição com os olhos engolfados no
luar, e os lábios entreabertos para beberem os eflúvios celestes.
Depois, saciada de luz, recolhia-se outra vez à sombra; e como a árvore
que desabrocha em flores aos raios de sol, sua alma transformava os fulgores
da noite em sonhos.
Ali perto recendiam os corimbos de resedá, balouçados pela
brisa, e foi através desse enlevo de luz e fragrância, que a
voz sonora de Seixas penetrou nas cismas de Aurélia e enleou-se nelas,
de modo que a moça imaginava escutar não a conversa do marido,
mas uma fala de seu sonho.
Para ouvir apoiara-se ao braço da cadeira e insensivelmente a cabeça
descaindo reclinou sobre a espádua de Seixas com um movimento de graciosa
languidez.
– Um dos mais lindos poemetos de Byron é o Corsário; dizia
Seixas.
– Conte! murmurou-lhe ao ouvido a moça com a voz que teriam sílfides
se falassem.
Fernando cedia nesse instante a uma suavíssima influência,
contra a qual desejava reagir, mas faltava-lhe o ânimo. A pressão
dessa formosa cabeça produzia nele o efeito do toque mágico
de uma fada; presa do encanto não se lembrou mais quem era e onde estava.
A palavra fluía-lhe dos lábios trêmula de emoção,
mas rica, inspirada, colorida. Não contou o poema do bardo inglês;
bordou outro poema sobre a mesma teia, e quem o ouvisse naquele instante,
acharia frio e pálido o original, ante o plágio eloqüente.
É que neste havia uma alma a palpitar, enquanto que no outro apenas
restam os cantos mudos do gênio que passou.
– O senhor deve traduzir este poema. É tão bonito! disse D.
Firmina.
– Já não tenho tempo, respondeu Seixas; nem gosto. Sou empregado
público e nada mais.
– Agora não precisa do emprego; está rico.
– Nem tanto como pensa.
Aurélia levantou-se tão arrebatadamente, que pareceu repelir
o braço do marido, no qual pouco antes se apoiava.
– Tem razão; não traduza Byron, não. O poeta da dúvida
e do cepticismo, só o podem compreender aqueles que sofrem dessa enfermidade
cruel, verdadeiro marasmo do coração. Para nós, os felizes,
é um insípido visionário.
Depois de ter lançado envoltas em um riso sardônico estas palavras
a Seixas, a moça afastou-se da calçada. Mal entrou na zona de
luz que prateava a fina areia, teve um calafrio. Esse esplêndido luar,
onda suave, em que ela banhava-se voluptuosamente momentos antes, a transpassara
como um lençol de gelo.
Voltou precipitadamente e entrou na sala, onde apenas havia a frouxa claridade
de dois bicos de gás em lamparina. Fora ela mesma quem dispusera assim,
para que a luz artificial não perturbasse a festa da natureza. Agora
batia o tímpano, chamando o criado para fazer inteiramente o contrário.
Os lustres acesos entornaram as torrentes deslumbrantes do gás, que
expeliram da sala os níveos reflexos do luar.
– Pretendem ficar aí toda noite? perguntou Aurélia.
– Estávamos gozando do luar, disse D. Firmina entrando com Seixas.
– Há quem admire as noites de luar! Eu acho-as insuportáveis.
O espírito afoga-se nesse mar de azul, como o infeliz que se debate
no oceano. Para mim não há céu, nem campo, que valha
estas noites de sala, cheias de conforto, de calor e de luz em que nos sentimos
viver. Aqui não há risco de afogar-se o pensamento.
– Não; mas asfixia-se! observou Fernando.
– Antes isso.
Aurélia sentou-se à mesa de mosaico, voltando as costas ao
jardim para não ver a formosa noite que lhe caíra no desagrado.
Como porém no espelho fronteiro reproduzia-se com a cintilação
do cristal uma nesga do jardim, onde a claridade argentina da Lua parecia
coalhar-se nos lírios e cactos, a moça chamou novamente o criado
e ordenou-lhe que fechasse a janela pela qual entrava aquele importuno bosquejo
do soberbo painel da noite.
Havia em cima da mesa uma caixa de jogo, donde Aurélia tirou um baralho,
com que se entreteve a fazer sortes.
– Vamos jogar? disse dirigindo-se ao marido.
Este tomou lugar na mesa em frente a Aurélia, que entregou-lhe o
baralho e tirou outro da caixa.
– O écarté.
Seixas fez um gesto de assentimento ou obediência, preparadas as cartas
para o jogo e tocando-lhe começar deu o baralho a partir.
– Dez mil-réis a partida! disse Aurélia vibrando o tímpano.
Seixas procurou com os olhos D. Firmina, que se recostara à janela
e não prestava atenção ao jogo. A esse tempo entrou o
criado.
– Luísa que traga minha carteira. Podemos continuar.
– Perdão, contestou Seixas a meia voz. Eu não jogo a dinheiro.
– Por quê?
– Não gosto.
– Tem medo de perder?
– É uma das razões.
– Eu lhe empresto.
– Também já perdi este mau costume de contar com o dinheiro
alheio, tornou Seixas sorrindo e frisando as palavras. Depois que sou rico,
só gasto do meu.
– Não lhe mereço esta fineza? retorquiu Aurélia acerando
também o sorriso. Seja ao menos esta noite jogador e perdulário
para satisfazer o meu capricho.
A moça recebeu a carteira da mucama; e tirou dela uma libra esterlina,
que deitou sobre a mesa.
– Não se tenta?
– É muito pouco! tornou Seixas com um riso amargurado.
Este riso incomodou Aurélia, que ocultou a moeda e a carteira. Ainda
esteve algum tempo baralhando as cartas distraída; então escaparam-lhe
palavras soltas que pareciam de um monólogo.
– Dizem que a água no vinho faz de duas bebidas excelentes uma péssima.
O mesmo acontece à mistura da virtude com o vício. Torna o homem
um ente híbrido. Nem bom, nem mau. Nem digno de ser amado; nem tão
vil, que se lhe evite o contágio. Compreendo o que deve sentir uma
mulher… o que sentiu uma amiga minha, quando conheceu que amava um desses
homens equívocos, produtos da sociedade moderna.
– Essa amiga sua, que suponho conhecer, talvez preferisse que o marido fosse
em vez de algum desses equívocos, pura e simplesmente um galé?
perguntou Seixas.
– De certo. Se o marido fosse um galé, ela quebraria imediatamente
a grilheta que a prendesse a ele, e se afastaria com a morte n’alma.
Mas eu…
– A senhora? Interrompeu o marido vendo-a hesitar.
As pálpebras franjadas de Aurélia ergueram-se desvendando
os grandes olhos pardos que deslumbraram Seixas. Seu colo se distendera com
o movimento que fez para aproximar-se, e a voz soou vibrante e profunda.
– Eu?… Não me importaria que ele fosse Lúcifer, contanto
que tivesse o poder de iludir-me até o fim, e convencer-me de sua paixão
e inebriar-me dela. Mas adorar um ídolo para vê-lo a todo o instante
transformar-se em uma cousa que nos escarnece e nos repele… É um
suplício de Tântalo, mais cruel do que o da sede e da fome.
Aurélia, proferidas estas palavras, ergueu-se e atravessando a sala
entrou em seu aposento.
– Onde está Aurélia? perguntou D. Firmina quando saiu da janela.
– Já recolheu-se. A noite estava fresca. O sereno fez-lhe mal. Boa
noite.
O outro dia foi um domingo.
Ao jantar Aurélia disse ao marido:
– Há mais de um mês que estamos casados. Carecemos pagar nossas
visitas.
– Quando quiser.
– Começaremos amanhã. Ao meio-dia: não é boa
hora?
– Não seria melhor à tarde? consultou o marido.
– Causa-lhe transtorno de manhã?
– Não desejo faltar à repartição.
– Pois então há de ser mesmo de manhã; retorquiu a
moça a sorrir. Não consinto nessa falta de galanteria. Não
acha, D. Firmina? Preferir o emprego à minha companhia?
– Decerto! confirmou a viúva.
Seixas nada opôs. Era seu dever acompanhar a mulher quando esta quisesse
sair, e ele estava resolvido a cumprir escrupulosamente todas as obrigações.
VII
Seixas escreveu a seu chefe uma carta justificando sua ausência com
um motivo grave, e remetendo-lhe alguns papéis que havia despachado
na véspera.
Ao entrar na saleta, encontrou Aurélia que examinava o tempo.
– Está um dia tão quente!… O melhor talvez fosse adiar nossas
visitas. Que diz?
– Decida, porque ainda tenho tempo de ir à secretaria.
– Vamos almoçar. Resolverei depois.
Quando se ergueram da mesa, ainda Aurélia não tinha decidido.
Seixas compreendeu que a intenção da mulher era contrariá-lo,
no que ela achava um prazer especial, e resignou-se a perder o dia.
À uma hora, a moça chegou-se a ele:
– Jantaremos hoje mais cedo e sairemos às cinco horas. Não lhe
convém assim?
– Convém-me qualquer hora que escolher; respondeu Seixas.
– Talvez não goste de sair de tarde. Então ficará para
amanhã às onze horas.
– Pois seja amanhã.
– Faltará outra vez à repartição?
– Sendo preciso.
– Não; sairemos esta tarde.
– Aurélia chamou o criado e deu suas ordens. Como havia determinado,
apressou-se o jantar; e às cinco horas descia ela a escadaria de seu
palacete em cujo pórtico a esperava a elegante vitória tirada
por uma parelha de cavalos do Cabo.
A moça trajava um vestido de gorgorão azul entretecido de
fios de prata, que dava à sua tez pura tons suaves e diáfanos.
O movimento com que, apoiando sutilmente a ponta da botina no estribo, ergueu-se
do chão para reclinar-se no acolchoado amarelo da carruagem, lembrava
o surto da borboleta, que agita as grandes asas e se aninha no cálix
de uma flor.
O vestido de Aurélia encheu a carruagem e submergiu o marido; o que
ainda lhe aparecia do semblante e do busto ficava inteiramente ofuscado pela
deslumbrante beleza da moça. Ninguém o via; todos os cumprimentos,
todos os olhares, eram para a rainha, que surgia depois de seu passageiro
retiro.
O carro parou em diversas casas, indicadas na nota que o cocheiro recebera.
Seixas oferecia a mão à mulher para ajudá-la a apear-se,
e a conduzia pelo braço à escada, que ela subia só, pois
precisava de ambas as mãos para nadar nesse dilúvio de sedas,
rendas e jóias, que atualmente compõe o mundus da mulher.
Aí como na rua, todas as atenções eram para Aurélia,
que as senhoras rodeavam pressurosas, e os homens fascinados por sua graça.
Seixas apenas recebia um pálido reflexo dessa consideração,
quanto exigia a estrita urbanidade. Houve casa, onde no afã de acolher
a mulher, o deixaram atrás, desapercebido como um criado.
Em outras circunstâncias, aquela anulação de sua individualidade,
bem pode ser que não o incomodasse. Talvez se reparasse nela, fosse
para desvanecer-se de ser o preferido dessa formosa mulher, cercada da admiração
geral e disputada por tantos admiradores. Todo esse culto que lhe prestava
a sociedade, não seriam a seus olhos senão o tributo a ele oferecido
pelo amor de sua mulher.
Mas as condições em que se achava, deviam mudar completamente
a disposição de seu ânimo. Quanto mais se elevava a mulher,
a quem não o prendia o amor e somente uma obrigação pecuniária,
mais rebaixado sentia-se ele. Exagerava sua posição; chegava
a comparar-se a um acessório ou adereço da senhora.
Não tinha dito Aurélia naquela noite cruel, que o marido era
um traste indispensável à mulher honesta e que o comprara para
esse fim? Ela tinha razão. Ali, naquele carro, ou nas salas onde entravam,
parecia-lhe que sua posição e sua importância eram a mesma,
senão menor, do que tinha o leque, a peliça, as jóias,
o carro, no trajo e luxo de Aurélia.
Quando ele oferecia a mão à mulher para apear-se, ou levava
no braço a manta de caxemira, considerava-se a igual do cocheiro que
dirigia o carro e do lacaio que abria o estribo. A única diferença
era serem aqueles serviços dos que os cavalheiros geralmente prestam
às senhoras, e que só em falta desses recebem elas de um criado
mais graduado.
Uma das últimas visitas foi à família de Lísia
Soares, que se dizia a amiga mais íntima de Aurélia, quando
solteira.
Depois dos cumprimentos e felicitações, quando a conversa
vacilava à espera de um tema, a Lísia que era maliciosa lembrou-se
de soprar uma faísca. Não podia haver para ela maior prazer
do que o de picar Aurélia cujo espírito muitas vezes a tinha
beliscado.
– Lembra-se, Aurélia, quando você fazia a cotação
de seus pretendentes? Disse a maligna alteando a voz para ser bem ouvida.
– Se me lembro! Perfeitamente! respondeu Aurélia sorrindo.
– E o que me disse uma noite a respeito do Alfredo Moreira? Que valia quando
muito cem contos de réis; mas que você era muito rica para pagar
um marido de maior preço.
– E não disse a verdade?
– Então o Sr. Seixas?… interrompeu Lísia com uma reticência
impertinente que estancou-lhe a palavra nos lábios, para borrifar a
malícia no sorriso e no olhar.
– Pergunte-lhe! disse Aurélia voltando-se para o marido.
Nunca, depois que se achava sob o jugo dessa mulher, ou antes da fatalidade
que o submetia a seus caprichos, nunca Seixas precisou tanto da resignação
de que se revestira para não sucumbir à vergonha de semelhante
degradação. O primeiro abalo produzido pelo diálogo das
duas amigas foi terrível; e não o perceberam, porque a atenção
geral convergia para Aurélia nesse instante.
Dominou-se porém; quando os olhares acompanhando o gesto da mulher
voltaram-se para ele, encontraram-no calmo, naturalmente grave e cortês,
embora ainda lhe restasse uma ligeira palidez em que ninguém reparou.
– Então, Sr. Seixas, é certo? insistiu Lísia.
– O quê, minha senhora? perguntou o moço por sua vez e com
a maior polidez.
– O que disse Aurélia.
– Não vês que é um gracejo! observou a mãe de
Lísia.
– Ela foi sempre assim, amiga de brincar! disse uma prima.
– Não querem acreditar!… tornou Aurélia com um modo indiferente.
– É sério, Sr. Seixas? perguntou Lísia novamente.
– Responda! disse Aurélia ao marido, sorrindo-se.
– Da parte de minha mulher não sei, e só ela poderá
dizer-lhe, D. Lísia. Quanto a mim asseguro-lhe que me casei unicamente
pelo dote de cem contos de réis que recebi. Devo crer que minha mulher
mudou da idéia em que estava de pagar um marido de maior preço.
A sisudez com que Seixas pronunciou estas palavras, e porventura também
certa aspereza do timbre que percebia-se-lhe na fala harmoniosa, como sente-se
a aspa de ferro sob o estofo de cetim, deixaram as pessoas presentes perplexas
acerca do sentido e crédito que deviam dar a semelhante asseveração.
Nisto ressoaram os trilos cristalinos da risada de Aurélia.
– Eis o que você queria, Lísia, era fazer desconfiar Fernando.
Quer saber se eu o comprei, e por que preço? Não faço
mistério disso; comprei-o, e muito caro; custou-me mais, muito mais
de um milhão; e paguei-o, não em ouro, mas em outra moeda de
maior valia. Custou-me o coração; por isso já não
o tenho!
Estas palavras e a expressão que palpitava nelas convenceram a todos
que Aurélia estivera efetivamente a gracejar acerca de seu casamento.
A resposta à Lísia não fora senão um disfarce
para provocar aquela confissão inconveniente da paixão com que
se estremeciam ela e o marido.
Assim, quando retiraram-se as visitas, o tema da conversa foi o desfrute
dos dois noivos, que depois de um mês de casados andavam pela rua requebrando-se
como dois pombinhos namorados. Lísia asseverava ter visto Aurélia
de tal modo enleada ao braço do marido, que este não podia andar.
Entretanto rodava o carro pelo Catete, e Aurélia balançando-se
ao brando movimento das almofadas, parecia ter completamente esquecido Seixas
sentado a seu lado, quando este dirigiu-lhe a palavra.
– Desde que estamos casados, uma só vez não inquiri de suas
intenções. Respeito-as, como é meu dever, e conformo-me
com elas quanto posso, por mais estranhas que me pareçam. Mas para
satisfazer suas vontades é preciso pelo menos conhecê-las, embora
não as compreenda.
Aurélia voltara o rosto para o marido. Como já não
receava ser vista por causa do lusco-fusco, deixou que seu semblante tomasse
a expressão de soberba desdenhosa, que o vestia nesses momentos de
surda irritação.
– Que pretende com este prólogo?
– A princípio quis-me parecer que desejava ocultar dos estranhos a
realidade de nossa posição. Confesso que nunca pude atinar com
o motivo dessa singularidade. Criar deliberadamente uma situação,
para ter o gosto de a negar a todo instante…
– É absurdo?… Não é?… Também me parece a
mim.
– Não perscruto seu pensamento. A senhora devia ter uma razão,
que ignoro.
– Como eu.
– Importa-me, porém, saber se mudou de propósito, como indica
a cena que acaba de representar, e se resolveu dora em diante fazer escândalo,
do que ontem fazia mistério.
– E para que deseja saber isso?
– Já o disse, para conformar-me à sua vontade e afinar-me pela
mesma clave. O dueto será mais aplaudido.
– Não duvido; mas eu é que não me casei para fazer
de minha vida uma solfa de música. Serei leviana e inconseqüente;
terei estes defeitos; mas o que não tenho, pode estar certo, é
o talento do cálculo. Deixe-me com o meu gênio excêntrico.
Agora, neste momento, sei eu porventura o que farei esta noite? Que extravagância
me virá tentar? Como pois havia de formular um programa conjugal para
nosso uso? Eu posso fazer de nossa união um mistério ou um escândalo,
conforme o capricho. O senhor é que não tem esse direito.
– Tanto como a senhora!
Aurélia contestou com fria impassibilidade:
– Engana-se. O Sr. Seixas não pode desacreditar meu marido e expô-lo
à irrisão pública.
– Mas a mulher do infeliz pode; tem esse direito.
– O senhor deu-lho.
– Não; use do termo: Vendi-lho!
Aurélia não respondeu. Derreando o corpo nas almofadas, e voltando
o rosto para ver o recorte das árvores e chácaras na tela iluminada
do ocaso, deixou cair a conversa.
Ainda fizeram algumas visitas. Eram mais de oito horas quando parou o carro
à porta de casa. D. Firmina tinha saído. Aurélia queixou-se
de fadiga, cortejou o marido e recolheu-se.
Em seu quarto lembrou-se Seixas de algumas palavras que haviam escapado
a Aurélia na conversação da tarde. – Sei eu acaso o que
farei esta noite? Que extravagância me virá tentar? dissera a
mulher; e ele sabia, que valor tinham em seus lábios essas frases enigmáticas.
Desde a noite de luar e os devaneios poéticos sobre Byron que Aurélia
mostrava uma irritabilidade contínua. Qual devia ser a resolução
inspirada por essa febre de sua alma, já tão propensa aos caprichos
e excentricidades?
Esteve Seixas cogitando um momento sobre este ponto a fazer conjeturas. Fatigou-se,
porém, da tarefa, e abandonou-a, pensando que não havia piores
na posição intolerável em que se achava.
Já não pensava naquilo, quando súbito atravessou-lhe
o espírito uma idéia que o fez estremecer.
Um impulso de curiosidade o dominou. Correu à porta que o separava
da câmara nupcial e dos aposentos da mulher. Ergueu a mão para
bater; começou o nome de Aurélia; mas não se animou a
realizar o primeiro intento. Aplicou o ouvido a escutar. Reinava naquela parte
da casa o mais profundo silêncio. Que fazer?
Agitado pela idéia terrível que o assaltava, deu a esmo algumas
voltas pelo aposento, numa perplexidade cruel. Seu olhar que não deixava
a porta, notou um esguicho de luz no fundo do corredor escuro, e conheceu
que saía pela greta da fechadura.
Aproximou-se cautelosamente e sem rumor. Pelo recorte da chave, pôde
ver na parede fronteira um quadro iluminado que se destacava no crepúsculo
da câmara nupcial. Era o espelho colocado sobre a jardineira de mármore,
que refletia obliquamente pela porta aberta uma faixa de outro gabinete.
Essa zona abrangia um divã onde nesse instante destacava-se do brocado
verde a estátua de Aurélia, deitada como o alto-relevo que outrora
ornava as campas dos nobres. Envolvia o corpo da moça um roupão
de cambraia, cujas pregas caíam sobre o tapete semelhantes aos borbotões
da nívea espuma de uma cascata, e deixavam-lhe o talho debuxado sob
a fina teia de linho.
Estava muito pálida e imóvel. Um dos braços descaía
desfalecido pela borda do divã; tinha o outro suspenso até à
moldura do recorte onde a mão se crispava, talvez no esforço
de erguer o corpo. Havia na imobilidade dessa posição e em seu
perfil alguma cousa de hirto que assustava.
VIII
Sucedem-se no procedimento de Aurélia atos inexplicáveis e
tão contraditórios, que derrotam a perspicácia do mais
profundo fisiologista.
Convencido de que também o coração tem uma lógica,
embora diferente da que rege o espírito, bem desejara o narrador deste
episódio perscrutar a razão dos singulares movimentos que se
produzem n’alma de Aurélia.
Como porém não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo
dos fenômenos psicológicos, limita-se a referir o que sabe, deixando
à sagacidade de cada um atinar com a verdadeira causa de impulsos tão
encontrados.
Remontemos pois o curso dessa nova existência de Aurélia até
à noite de seu casamento, quando a exaltação que a animava
durante a cena passada com Seixas, abatendo de repente, a deixou prostrada
no tapete da câmara nupcial.
Não foi propriamente um desmaio que a tomou, ou este não passou
de breve síncope. Mas o resto da noite, ela o passou ali, sem forças
nem resolução de erguer-se, em um torpor intenso, que se não
lhe apagava de todo os espíritos, os sopitava em uma modorra pesada.
Tinha a consciência de sua dor; sofria acerbamente; porém faltava-lhe
naquele instante a lucidez para discriminar a causa de seu desespero e avaliar
da situação que ela própria havia criado.
Pela madrugada o sono, embora agitado, trouxe um breve repouso à
sua angústia. Dormiu cerca de uma hora, tendo por leito o chão,
e com a cabeça apoiada nesse mesmo estrado, que devia servir de degrau
à sua felicidade.
A claridade da manhã que filtrava pela cassa das cortinas, despertou-a.
Ergueu-se arrebatadamente e ao impulso de uma idéia terrível,
que atravessara como um raio de luz a sombra confusa de suas reminiscências.
Correu à porta por onde saíra Seixas, e escutou presa de viva
inquietação. Por vezes levou a mão à chave, e
retirou-a assustada. Volveu a esmo os passos rápidos pela casa; afinal
aproximou-se da janela, sem intenção, automaticamente.
Foi nessa ocasião que viu Seixas atravessar o jardim furtivamente
e entrar em casa. Ainda reinava o silêncio por toda essa parte da habitação,
de modo que ela pôde ouvir o leve rumor dos passos do marido no próximo
aposento.
Um riso de acre desprezo crispou-lhe os lábios.
– É um cobarde!
Depois do que se havia passado entre ambos, na noite de seu casamento, pensava
Aurélia, que só havia para Seixas dois meios de quebrar o jugo
humilhante a que o tinha submetido. Não lhe restava senão matá-la
a ela, ou matar-se a si.
Para uma dessas duas soluções se tinha a moça preparado.
É certo que às vezes seu coração afagava uma esperança
impossível. Se o homem a quem amava, se ajoelhasse a seus pés
e lhe suplicasse o perdão, teria ela forças para resistir e
salvar a dignidade de seu amor?
Por este lance não teve ela de passar. Às suas primeiras palavras,
Seixas retraíra-se, para ostentar depois uma imprudência, que
ela jamais podia esperar, e que produziu em sua alma indizível horror.
O laço que a unia àquele homem tornou-se uma abjeção,
quase uma infâmia.
Entretanto, ao expeli-lo de sua presença, ainda esperava que as palavras
proferidas pelo marido fossem apenas uma ironia amarga. Não concebia
que tivesse amado um ente tão depravado e vil. O cinismo que pouco
antes a indignara, devia ter uma reação.
Foi quando viu Seixas pela manhã que de todo acabou de convencer-se
da miséria do indivíduo. Então operou-se em sua alma
uma revolução, na qual soçobraram todos os sentimentos
bons e afetuosos, ficando à tona unicamente os instintos agressivos
e malignos que formam a lia do coração.
Quando Aurélia deliberara o casamento que veio a realizar, não
se inspirou em um cálculo de vingança. Sua idéia, a que
afagava e lhe sorria, era patentear a Seixas a imensidade da paixão
que ele não soubera compreender, sacrificando sua liberdade e todas
as esperanças para unir-se a um homem a quem não amava e nem
podia amar, desnudava a seus olhos o ermo sáfaro em que lhe ficara
a alma, depois da perda desse amor, que era toda sua existência. Esse
casamento póstumo de um amor extinto não era senão esplêndido
funeral, em face do qual Seixas devia sentir-se mesquinho e ridículo,
como em face da essa o soberbo compenetra-se da miséria humana.
O sentimento que animava Aurélia podia chamar-se orgulho, mas não
vingança. Era antes pela exaltação de seu amor que ela
ansiava, do que pela humilhação de Seixas, embora essa fosse
indispensável ao efeito desejado. Não sentia ódio pelo
homem que a iludira; revoltava-se contra a decepção, e queria
vencê-la, subjugá-la, obrigando esse coração frio
que não lhe retribuía o afeto, a admirá-la no esplendor
de sua paixão.
Mas naquele instante, recordando as palavras que Seixas proferira poucas
horas antes; vendo-o tranqüilo e disposto a aceitar como natural a terrível
situação; pensando no desbrio com que esse homem sujeitava-se
a uma degradação de todos os instantes, Aurélia tivera
um verdadeiro ímpeto de vingança.
Seixas queria afrontá-la com seu desgarro impudente. Pois bem; ela
aceitava o desafio; se esse infeliz não estava completamente desamparado
dos últimos resquícios do amor-próprio e da vergonha,
ela propunha-se a pungi-lo com o seu mais virulento sarcasmo. A menos que
a alma não estivesse morta, sentiria o estigma do ferro em brasa.
Foi nestas disposições que Aurélia vestiu-se para o
almoço; e nessas disposições conservava-se ainda na tarde
em que saíra com o marido às visitas.
Todavia, quando no dia seguinte ao casamento, sentada na cadeira de balanço,
viu entrar Seixas na sala de jantar, sua resolução vacilou.
O aspecto nobre e distinto do mancebo, a elegância natural de seu gesto,
recobraram o prestígio que esses dotes nunca deixam de exercer em espíritos
elevados, e a que o dela estava já afeito.
Não a abandonou o pensamento da vingança; mas o desabrimento
e a ira excitados pela indignação da véspera, revestiram
a forma cortês e o tom delicado, que raro e só em um instante
de violento abalo desamparam as pessoas de fina educação.
Nas alternativas desse desejo de vingança a miúdo contrariado
pelos generosos impulsos de sua alma, se escoara o primeiro mês depois
do casamento.
Se abandonando-se à irritação íntima que exacerbava-lhe
o espírito, deleitava-se em flagelar com o seu implacável sarcasmo
a dignidade do marido; quando recolhia-se depois de uma cena destas, era para
desafogar o pranto e soluços que intumesciam-lhe o seio. Então
reconhecia que a vítima de sua ira não fora o homem a quem detestava,
mas seu próprio coração, que havia adorado esse ente,
indigno de tão santo afeto.
Se fatigada desse constante orgasmo d’alma, sempre crispada pelo escárnio,
restituía-se insensivelmente à sua índole meiga, as relações
com o marido tomavam uma expressão afetuosa;- de repente a invadia
um gelo mortal, e ela estremecia espavorida com a idéia de pertencer
a semelhante homem.
Assim chegou Aurélia àquela noite de luar, em que Seixas falava
de poesia, e ela escutava reclinada a seu braço no enlevo de que a
arrancara dolorosamente uma palavra do marido.
Quando a sós consigo pensou neste incidente, encheu-se de terror.
Houve um instante, rápido embora, no qual chegou a lamentar que Seixas
não tivesse conseguido enganá-la nessa ocasião adormecendo
ou antes cegando-lhe os brios. Quando se dissipasse essa ilusão, seria
tarde, e ela pertenceria irrevogavelmente ao marido.
Este sentimento, que apenas pronunciado ela repeliu com todas as forças
de sua alma, deixou-lhe contudo um desgosto profundo, acompanhado do pânico
de semelhantes alucinações. Daí a irritabilidade que
desde então a possuía, e que tocara ao auge nessa tarde das
visitas.
Entretanto em seu toucador, Aurélia tinha febre: febre da paixão
que a abrasara. Abriu todas as portas e janelas, atirou-se vestida como estava
sobre o divã, e ali ficou imóvel, como a vira Seixas pela broca
da fechadura.
Assustado com essa imobilidade, o marido ia bater, quando a mucama atravessou
por diante do quadro iluminado, o qual apagou-se de repente. Fechara-se a
porta do toucador, refletida pelo espelho.
No dia seguinte Aurélia deixou-se ficar em seu aposento toda a manhã.
Voltando da repartição, Seixas encontrou-a pálida e abatida.
Ao jantar foi D. Firmina quem fez os gastos da conversação.
Na véspera a viúva passara a noite em uma casa da vizinhança,
onde havia reunião semanal. Acertou falar-se no Abreu, que diziam ter
caído na miséria. Por essa ocasião recordaram-se todas
as extravagâncias e prodigalidades, com que o rapaz havia esbanjado
em pouco mais de ano, a avultada herança deixada pelo pai.
D. Firmina repetindo o que ouvira lamentava a sorte do Abreu que sacrificara
tão bonito futuro. Revestindo-se dessa moral severa, que em geral se
cultiva para uso alheio e não para o próprio gasto, acusava
o rapaz com excessivo rigor.
– A culpa não é dele, D. Firmina, observou Aurélia
voltando de sua distração.
– De quem mais pode ser? perguntou a viúva.
– De quem o fez rico, não o tendo educado para a riqueza. O ouro
desprende de si não sei que miasmas que produzem febre, e causam vertigens
e delírios. É necessário ter um espírito muito
forte, para resistir a essa infecção; ou então possuir
algum santo afeto, que o preserve do veneno, sem o que sucumbe-se infalivelmente.
– Quer dizer que a riqueza é um mal, Aurélia?
– Não é um mal; muitas vezes torna-se um bem; mas em todo o
caso é um perigo. Aqueles que se exercitam em jogar as armas, pensam
que tudo se decide pela força. O mesmo acontece com o dinheiro. Quem
o possui em abundância, persuade-se que tudo se compra.
Tinham acabado de jantar. Aurélia ergueu-se da mesa e entretinha-se
em dar aos canários as migalhas de pão, que esfarelava na palma
da mão.
Entretanto, Seixas acendera o charuto e seguia distraído pela rua
que serpeando entre os tabuleiros de margaridas e os tapetes de relva, ia
sumir-se em um bosque de palmeiras. O mancebo recordava-se das cenas da véspera,
cotejava-as com as palavras que pouco antes haviam escapado a Aurélia,
e buscava a explicação do enigma.
Interrompeu-o a voz da moça que achava-se a seu lado.
– Este passeio todas as tardes já deve aborrecê-lo. Por que
não sai a cavalo? Deve distrair-se.
Aurélia falava brincando com as flores para evitar que seu olhar
encontrasse o de Seixas.
– Sua companhia não me pode aborrecer nunca.
– Sempre, torna-se monótona.
– Demais é o meu dever, tornou Seixas frisando a palavra.
Aurélia afastou-se; deu alguns passos, esteve reparando nas flores
escarlates de uma trepadeira a que chamam brincos-de-dama, e tendo-se firmado
na resolução que a preocupava, tornou para o marido.
– Nossos destinos estão ligados para sempre. A sorte recusou-me a
felicidade que sonhei. Tive este capricho que nenhuma outra o possuiria, enquanto
eu viva. Mas não pretendo condená-lo ao suplício desta
existência, que vivemos há mais de um mês. Não o
retenho; é livre; disponha de seu tempo como lhe aprouver, não
tem que dar-me contas.
A moça calou-se esperando uma resposta.
– A senhora deseja ficar só? perguntou Seixas. Ordene, que eu me
retiro, agora como em qualquer outra ocasião.
– Não me compreendeu. Há um meio de aliviar-lhe o peso dessa
cadeia que nos prende fatalmente e de poupar-lhe as constantes explosões
de meu gênio excêntrico. É o divórcio que lhe ofereço.
– O divórcio? exclamou Seixas com vivacidade.
– Pode tratar dele quando quiser, respondeu Aurélia com um tom firme
e afastou-se.
IX
Seixas surpreso e agitado pela proposição da moça,
refletiu um momento.
O resultado dessa reflexão foi aproximar-se da mulher, ocupada nesse
momento a ver os peixinhos vermelhos do tanque fervilharem à tona d’água
para devorar os bocados de um jambo com que ela os tentava.
– Estes peixes agora a divertem; disse Fernando. Se amanhã a aborrecerem,
mandará que os deitem fora, e que os deixem morrer à fome?
A moça ergueu para o marido os olhos cheios de surpresa.
– Talvez nunca lhe acontecesse refletir sobre este problema social, continuou
Fernando. O senhor tem o direito de despedir o cativo, quando lhe aprouver?
– Creio que ninguém porá isso em dúvida, respondeu Aurélia.
– Então entende que depois de privar-se um homem de sua liberdade,
de o rebaixar ante a própria consciência, de o haver transformado
em um instrumento, é lícito, a pretexto de alforria, abandonar
essa criatura a quem seqüestraram da sociedade? Eu penso o contrário.
– Mas que relação tem isso?…
– Toda. A senhora fez-me seu marido; não me resta outra missão
neste mundo; desde que impôs-me esse destino sacrificou meu futuro,
não tem o direito de negar-me o que paguei tão caro, pois o
paguei a preço de minha liberdade.
– Essa liberdade, eu a restituo.
– E pode restituir-me com ela o que perdi alienando-a?
– Receia talvez o escândalo que produzirá o divórcio.
Não há necessidade de publicarmos nossa resolução;
podemos viver inteiramente estranhos um ao outro na mesma cidade, e até
na mesma casa. Se for preciso, temos o pretexto das viagens por moléstia,
da mudança de clima, do passeio à Europa.
– A senhora fará o que for de sua vontade. A minha obrigação
é obedecer-lhe, como seu servo, contanto que não lhe falte com
o marido que a senhora comprou.
Aurélia fitou no semblante de Seixas um olhar soberano:
– Acredita que eu possa mudar de sentimentos para com o senhor?
– Não tenha esse receio. Se eu não estivesse convencido que
o amor entre nós é impossível, não estaria aqui
neste momento.
Estranho sorriso iluminou a fronte de Aurélia, que vibrou com um
gesto de sublime altivez.
– Qual é então o motivo por que não aceita o que lhe
ofereço?
– O que a senhora me oferece custou-lhe cem contos de réis, e receber
esmolas desse valor é roubar ao pródigo que as deita fora.
– Como quiser! disse Aurélia desdenhosamente. O senhor pensa decerto
que sua presença me incomoda, e por isso lhe sorri a idéia de
impô-la como uma contrariedade. Engana-se; pode ficar; não era
por mim, mas por si mesmo que oferecia-lhe a separação. Rejeita-a?
Melhor; não poderá queixar-se pelo que venha a acontecer.
Apesar da recusa de Seixas, suas relações com Aurélia
tornaram-se desde aquela tarde mais esquivas. A moça já não
caprichava como nas primeiras semanas em passar a maior parte do tempo na
companhia do marido. Este de seu lado, receando tornar-se importuno, conservava-se
arredio enquanto a mulher não manifestava o desejo de tê-lo perto
de si.
Dias houve em que não se viram. Seixas saía muito cedo para
a repartição; Aurélia ia jantar com alguma amiga; só
no outro dia às 4 horas da tarde se encontravam de novo.
Essas tardes em que Fernando ficava sozinho em casa, pois D. Firmina acompanhava
Aurélia, ele as aproveitava para ir ver a mãe, que ainda habitava
na mesma casa da Rua do Hospício.
Excitava reparo entre os conhecidos de D. Camila, que o filho a deixasse
na vida obscura e necessitada, em vez de chamá-la para sua companhia,
ou pelo menos de ajudá-la a passar com outra decência e abastança.
D. Camila não se queixava; mas apesar de seus extremos por aquele
filho, e da abnegação de sua ternura, tinha estranhado consigo,
que Fernando depois de casado, não pensasse em dar às irmãs
uma lembrança qualquer.
Mui raras vezes aparecia Fernando em casa da mãe, e de passagem.
Nisso não reparava D. Camila; embora lamentasse que a posição
do filho e seus deveres sociais não lhe permitissem possuí-lo
por mais tempo.
Mariquinhas a princípio excitava a mãe para irem à
casa de Seixas nas Laranjeiras e até para lá passarem um dia.
A mãe desabituada à sociedade receava-se da crítica de
Aurélia. Todavia essa razão não a demoveria se Fernando
insistisse; porém ele ao contrário fez-se desentendido e desconversou
aos primeiros rodeios da irmã.
Não passou desapercebida a Aurélia essa esquivança
da família do marido. Uma tarde em que Seixas recebeu à sua
vista um bilhete de Nicota, ela o interpelou:
– Sua família depois da noite de nosso casamento nunca mais voltou
a esta casa? Será por meu respeito?
– Não; o culpado sou eu que nunca lhes falei nisso.
– E por quê?
– Julgam-me feliz. Não quero roubar-lhes essa doce ilusão.
– Aqueles que nos visitam e que freqüentamos não andam iludidos?
– São indiferentes. Olhos de mãe lêem n’alma do
filho como em livro aberto; aquilo o que não vêem, adivinham.
– Quer fazer uma aposta?
– Sobre?
– Sou capaz de enganá-la como tenho enganado a todos.
– É possível; ela não é sua mãe.
O bilhete de Nicota comunicava a Fernando o dia que fora marcado para seu
casamento, o qual celebrou-se na seguinte semana, em um sábado conforme
o uso geral.
Seixas ocultou da mulher essa particularidade. Na tarde em que devia ter
lugar o casamento, saiu de casa a pretexto de fazer uma visita a um ministro,
e assistiu à cerimônia. Levara à irmã uma jóia;
mas de valor insignificante para sua riqueza.
Essa mesquinheza junta à circunstância de apresentar-se a pé,
fizeram suspeitar às pessoas presentes que a imprevista opulência
abalara o caráter de Seixas a ponto de transformá-lo de perdulário
que era, em refinado avarento.
Outro casamento efetuou-se por esse tempo! Foi o do Dr. Torquato Ribeiro
com Adelaide Amaral.
Dias antes, o noivo recebeu por intermédio de Lemos um recado de
Aurélia, que pedia-lhe o seu recibo de cinqüenta mil-réis,
pois chegara a ocasião de pagá-lo. Foi Ribeiro às Laranjeiras,
cogitando na surpresa que a moça lhe preparava.
– Aqui tem o que lhe devo; as três cifras são o presente de
Adelaide.
Ribeiro abriu o papel; era uma letra ao portador de cinqüenta contos
passada pelo Banco do Brasil. Ele fez um gesto de recusa; a moça atalhou-o.
– Não tem o direito de rejeitar. Foi o preço da minha felicidade.
Meu tio garantiu ao Amaral que o senhor possuía este dinheiro, sem
o que ele não consentiria em desfazer o casamento da filha com Fernando,
e este não seria meu marido.
– Como lhe havemos de pagar nunca tamanho benefício? disse o moço
comovido.
– Sendo feliz, respondeu Aurélia.
– Basta-me ser tanto como a senhora.
– Como eu?
– Sim; não é tão feliz?
– Muito; como não pode imaginar!
Aurélia serviu de madrinha a Adelaide, e Seixas foi obrigado a assistir
a esse casamento, que desdobrava-lhe por assim dizer diante dos olhos um passado
a que ele em vão tentava subtrair-se. Ali estavam juntas, diante do
altar, duas mulheres a quem ele traíra sucessivamente, e não
arrebatado da paixão, mas seduzido pelo interesse.
Quando absorto em suas cogitações, abandonava-se à
melancolia daquelas reminiscências, Aurélia que se aproximara,
murmurou-lhe ao ouvido:
– Mostre-se alegre. Quero que todos, mas principalmente esta mulher, acreditem
que sou feliz e muito. O senhor deve-me ao menos esta ridícula satisfação
em troca do que roubou-me.
Tomando o braço de Seixas, e reclinando-se com esse voluptuoso orgulho
da mulher que se rende a um imenso amor, dirigiu-se à porta da igreja
onde a esperava o seu carro.
Nesse momento, como durante a noite em casa do Amaral, não houve
quem não invejasse a felicidade do par formoso que Deus havia acumulado
de todos os dons, de formosura, de graça, de mocidade, de amor, de
saúde e de riqueza.
Tinham tudo isto, e não passavam de dois infelizes! Essa festa alegre
e aparatosa, ninguém imaginava que suplício era para essas duas
almas, que estavam queimando-se nas luzes da sala e dilacerando-se nos sorrisos
que desfolhavam dos lábios.
No dia seguinte, domingo, Aurélia deixou-se ficar em seu aposento,
e até quarta-feira não viu o marido.
Nem D. Firmina, nem os fâmulos, desconfiaram do fato, embora suspeitassem
de algum estremecimento entre os noivos.
Como nessas ocasiões, o marido e a mulher encerravam-se cada um de
seu lado; as pessoas da casa, ignorantes do interdito a que fora condenada
a câmara nupcial, presumiam que eles se correspondessem por essa comunicação
interior.
Estas esquivanças de Aurélia repetiram-se muitas vezes daí
em diante: Seixas percebeu que ela o evitava, e desconfiou que sua presença
começasse a importuná-la. Não se enganava. Desde que
a moça não achava mais em si a irritação e o sarcasmo,
em que a princípio se deleitava seu coração, a aproximação
do marido a oprimia.
Seixas não a contrariava. Conservando-se em casa ao alcance da voz
e ao aceno da mulher, poupava-lhe o desgosto de o ver.
Entrava isso na resolução que havia tomado, mas não
era sem grande esforço e luta acérrima, que obtinha de si permanecer
ao lado dessa mulher para a qual se havia tornado, ele o sentia, verdadeiro
flagelo.
Uma razão poderosa o retinha, devemos supor, e tão forte que
subjugava a todo o instante a revolta de seus brios, magoados pela aversão
cheia de desdém da qual era alvo.
Desse tempo data a agitação em que laborou ele à busca
de um recurso para subtraí-lo à terrível colisão.
Todas as idéias que lhe sugeria seu espírito alvoroçado,
ele as aceitava com sofreguidão, para logo as rejeitar com desânimo.
Afinal decidiu-se. Antes de ir à repartição procurou
Lemos, com quem só de passagem se encontrara depois do casamento. O
velho recebeu-o com o seu modo folgazão:
– Que honraria, meu amigo! Esta pobre casa não o merecia!
– Tinha necessidade de falar-lhe! respondeu Seixas.
O velhinho piscou os olhos. Ele adivinhava que o moço não
o tinha procurado àquela hora, para fazer-lhe uma visita de cortesia.
– Desejava consultá-lo, continuou Seixas hesitando. Consta-me que
as apólices vão baixar consideravelmente, e que seria um bom
negócio vendê-las neste momento para comprá-las mais tarde,
talvez daqui a dois meses.
– Não é mau; porém há outro melhor neste momento,
disse Lemos.
– Qual?
– Vender libras esterlinas.
– Não as possuo.
– Isso não impede.
– Não entendo.
– Venda a entregar no fim do mês, pelo preço de 12$. Nesse
tempo elas baixam a 10$ com certeza, e o senhor ganha em quinze dias sem despender
um real, uns contos de réis que não fazem mal a ninguém.
– Agora compreendo. Dez mil libras deixariam…
– Vinte contos.
– E se ao contrário subirem?
– Perde a diferença.
– Aí está o risco.
– Só há um meio de ganhar sem risco; é o de não
pagar.
Seixas despediu-se, apesar das instâncias de Lemos, que desejava levá-lo
à Praça do Comércio.
Nesse mesmo dia encontrou Abreu que depois de ter esbanjado a herança,
dera em jogador, e vivia segundo era fama, da banca. Pela conversa que tiveram
os dois ficou o marido de Aurélia sabendo a rua e número de
uma casa onde todas as noites havia reunião plena dos amantes da roleta.
Nessa noite Seixas saiu furtivamente de casa, e chamando um tílburi
dirigiu-se para a cidade. Quando porém transpunha o limiar da porta,
por onde se penetrava na Cova do Caco, tomou tal horror, que deitou a fugir
pela rua, e não parou senão em casa.
X
No pavimento térreo, ao lado esquerdo, havia na casa das Laranjeiras
uma varanda de estilo campestre, decorada com palmeiras vivas e corbelhas
de parasitas.
Servia de sala de bilhar, e aí costumava Aurélia e o marido
passarem a tarde, quando o tempo não convidava ao passeio no jardim.
Aí foi Seixas encontrar dois grandes quadros, colocados nos respectivos
cavaletes. Na tela viam-se os esboços de dois retratos, o de Aurélia,
e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vítor Meireles
e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia,
para retocá-lo em face dos modelos.
Ao olhar interrogador do marido, Aurélia respondeu:
– É um ornato indispensável à sala.
– Julga que seja indispensável? Parecia-me ao contrário inconveniente
reproduzir ainda que seja por esse modo, uma presença que tanto lhe
deve importunar.
– Não se tira retrato d’alma. Felizmente!… observou Aurélia
com o misterioso sorriso que desde certo tempo acompanhava essas palavras
de sentido recôndito.
Seixas prestou-se passivamente ao papel de modelo. As sessões à
tarde tinham ficado reservadas para ele a fim de não estorvar-lhe o
trabalho da repartição.
Aurélia retirou-se, deixando-o em plena liberdade.
No dia seguinte, pela manhã, quando o pintor voltou para trabalhar
em seu retrato, a moça antes de tomar posição fez-lhe
suas observações acerca da expressão fria e seca da fisionomia
de Seixas.
– Pintei o que vi. Se deseja um retrato de fantasia, é outra cousa,
respondeu o artista.
– Tem razão; meu marido não anda bom. É melhor interromper
seu trabalho por alguns dias; eu lhe mandarei aviso quando for ocasião.
Essa tarde Seixas achou Aurélia inteiramente outra da que era nos
últimos tempos. Sua expressão meiga, e sobretudo a candura e
singeleza de seu modo, restauraram em sua memória a imagem da formosa
menina de Santa Teresa, a quem amara outrora.
Deixou-se aliciar por essa ilusão, embora estivesse bem convencido
de que a veria dissipar-se de repente, e dolorosamente como as outras. Mas
sua alma tinha necessidade de repouso e ainda mais do conforto de uma crença
consoladora; abandonou-se àquela doce quimera e quis persuadir-se de
que revivia um idílio de seu passado.
Aurélia trouxe a conversa para os assuntos que mais podiam seduzir
um espírito poético e elegante como o de Seixas.
Falou de música, de versos, de flores e de artes. Quando a ironia
não lhe acerava a palavra, ela tinha uma exuberância de afeto
e ternura que manava de seus lábios e derramava em torno de si uma
atmosfera de amor.
À noite tocou piano e cantou os trechos prediletos do marido.
Não era ela decerto, apesar dos elogios de D. Firmina, uma mestra,
nem mesmo uma discípula exímia e correta. Mas poucas teriam
seu gênio artístico; ela tocava por inspiração,
e o canto eram as emoções de sua alma que ressoavam espontaneamente
como os harpejos da brisa no seio da floresta.
Os dias seguintes correram na mesma doce intimidade. À tarde no jardim,
ou admiravam juntos as flores, ou liam no mesmo livro algum romance menos
interessante do que o seu próprio.
Seixas incumbia-se da leitura, e Aurélia escutava sentada a seu lado.
Às vezes, ou porque se distraísse um momento, ou por sofreguidão
de antecipar a narração, reclinava-se para correr os olhos pela
página, onde ia brincar um anel de seus cabelos castanhos.
Foi no meio de uma dessas cenas que o pintor apareceu de novo. Seixas deu
sinal de contrariedade, que a gentileza de Aurélia conseguiu desvanecer.
Conservou durante a sessão a mesma expressão afável e
graciosa, que pouco antes iluminava seu nobre semblante, e que fora a sua
fisionomia de outrora, quando a subversão da existência ainda
não o tinha revestido de gravidade melancólica.
Na manhã seguinte, Aurélia examinando o trabalho do pintor,
viu palpitante de emoção a sorrir-lhe o homem que ela havia
amado. Ele aí estava em face dela, destacando-se da tela, onde o pincel
do artista o havia fixado com admirável felicidade. Era um desses retratos
em que o modelo, em vez de impor-se, inspira o artista; e que deixam de ser
cópias e tornam-se criações.
Ainda Aurélia estava enlevada em sua contemplação,
quando chegou o artista, que recebeu seus elogios acompanhados de sinceros
agradecimentos. O pintor supunha ter feito apenas uma obra de arte. Como podia
ele suspeitar o segredo dessa mulher, viúva daquele marido vivo?
– O senhor há de tirar uma cópia desse retrato, para ficar na
sala com o meu. Quanto a este, desejo que tenha o trajo com que me lembro
de ter visto meu marido, quando o conheci. É uma surpresa que pretendo
fazer-lhe. Compreende?
– Perfeitamente.
– Peço-lhe, porém, que não toque no rosto.
– Fique descansada.
Aurélia explicou ao pintor o trajo que devia figurar no retrato do
marido e tomou posição para concluir o seu.
Ao voltar da repartição, notou Seixas que sua mulher não
conservava a mesma disposição de ânimo em que a deixara
na véspera. Não tornou à primitiva irritação,
mas foi a pouco e pouco retraindo-se, e acabou por isolar-se de todo.
Passava os dias encerrada em seu toucador. Quando aparecia, era sempre distraída
e tinha o aspecto dessas pessoas que se habituam a viver no mundo da fantasia,
e que sentindo-se como aturdidas quando descem à realidade, refugiam-se
em suas quimeras.
A casa das Laranjeiras tornara-se uma verdadeira solidão, habitada
por dois cenobitas, que não se viam, nem tratavam, a não ser
na hora de jantar.
Ao levantarem-se da mesa, Aurélia escondia-se no fundo de algum espesso
caramanchão, de onde seguia de longe com os olhos o vulto do marido,
que passeava pelo jardim.
À noite cada um tomava seu livro; Seixas lia; Aurélia aproveitava
esses instantes de liberdade para tornar aos seus pensamentos, e aos suaves
devaneios que abandonava ao sair do toucador.
D. Firmina a princípio estranhara os modos de Aurélia; mas
era uma senhora de muito juízo, e bastante prática da vida.
Atinou logo com a causa dessa alteração, e aproveitou a primeira
oportunidade para dar mostra da sua perspicácia.
– Não acha Aurélia tão diferente do que era, Sr. Seixas?
Fernando surpreendido pela pergunta volveu os olhos para a mulher, cujo pálido
semblante iluminado nesse momento por um reflexo do Sol no ocaso, tinha a
diáfana aparência da cera.
– Algum incômodo passageiro. Precisa sair da cidade, passar algum
tempo fora, na Tijuca ou em Petrópolis.
– Não tenho moléstia, respondeu Aurélia com indiferença.
– Moléstia não tem, Aurélia; mas é cousa que
se parece, tornou a viúva. E os passeios no campo são excelentes
para essas melancolias e desmaios que você anda sofrendo.
– Engana-se, não sofro cousa alguma.
– Ora, não disfarce! Quem não vê que aí anda
volta de…
– De quê? insistiu Aurélia completamente alheia à intenção
da viúva.
– De um neném!
Soltou a moça uma gargalhada; mas tão descompassada e ríspida
que D. Firmina mais confirmou-se em sua convicção. Fernando
erguera-se a pretexto de regar os tabuleiros de violetas de Parma, que rodeavam
os pedestais das estátuas de bronze.
Decorreram meses. De repente, sem causa conhecida, com o constraste e o
improviso que tinham as resoluções dessa mulher singular, operou-se
uma revolução na casa das Laranjeiras, e na existência
de seus moradores. Saiu Aurélia do isolamento a que se condenara durante
tanto tempo, mas para lançar-se no outro extremo. Mostrava pelos divertimentos
uma sofreguidão que nunca tivera, nem mesmo em solteira. Entrou a freqüentar
de novo a sociedade, mas com furor e sem repouso.
Os teatros e os bailes não lhe bastavam; as noites em que não
tinha convite, ou não havia espetáculo, improvisava uma partida
que em animação e alegria, não invejava as mais lindas
funções da Corte. Tinha a arte de reunir em sua casa as formosuras
fluminenses. Gostava de rodear-se dessa corte de belezas.
Os dias destinava-os para as visitas da Rua do Ouvidor, e os piqueniques
no Jardim ou Tijuca. Lembrou-se de fazer da praia de Botafogo um passeio,
à semelhança dos Bois de Boulogne em Paris, do Prater em Viena,
e do Hyde Park em Londres. Durante alguns dias ela e algumas amigas percorriam
de carro aberto, por volta de quatro horas, a extensa curva da pitoresca enseada,
espairecendo a vista pelo panorama encantador, e respirando a fresca viração
do mar.
Os passantes olhavam-nas surpresos, e com um aspecto que traduzia a malignidade
de suas conjeturas. Aurélia não fazia o mínimo caso dessas
caras mexeriqueiras; mas as amigas incomodaram-se; e ela foi obrigada a abandonar
o lindo passeio às aves de arribação.
Esta ânsia de festa e distrações sucedendo a uma inexplicável
apatia e recolhimento, faria desconfiar que Aurélia buscava na sociedade,
não o prazer, mas talvez o esquecimento. Porventura tentava aturdir
o espírito, e arrancá-lo por este modo às cismas e enlevos
em que se engolfara por tantos dias?
– Deve estranhar esta febre de divertimentos? disse ela ao marido. É
uma febre, é; mas não tem perigo. Quero que o mundo me julgue
feliz. O orgulho de ser invejada, talvez me console da humilhação
de nunca ter sido amada. Ao menos gozarei de um aparato de ventura. No fim
de contas, o que é tudo neste mundo senão uma ilusão,
para não dizer uma mentira? Assim desculpe se incomodo, tirando-o de
seus hábitos para acompanhar-me. Há de reconhecer que mereço
esta compensação.
– É minha obrigação acompanhá-la, e me achará
sempre disposto a cumpri-la. Moça, formosa e rica, deve gozar da vida
que lhe sorri. O mundo tem esta virtude; o que não absorve, gasta.
Daqui a algum tempo a senhora verá a existência por um prisma
bem diverso, e do passado não lhe ficará senão a lembrança
de um pesadelo de criança.
– É o que eu procuro justamente. Que não dera eu para apagar
estas crenças, ou antes essas incômodas ilusões de minha
infância, com que educou-se minha alma, e conformar-me à realidade
da vida. Oh! se eu o conseguisse!…
A reticência desfez-se nos lábios da moça em um sorriso
sardônico.
– Então nos havíamos de entender!
QUARTA PARTE
Resgate
I
Havia baile em São Clemente.
Aurélia ali estava como sempre, deslumbrante de formosura, de espírito
e de luxo. Seu trajo era um primor de elegância; suas jóias valiam
um tesouro, mas ninguém apercebia-se disso. O que se via e admirava
era ela, sua beleza, que enchia a sala, como um esplendor.
O baile em vez de fatigá-la, ao contrário a expandia. Semelhante
às flores tropicais, filhas do sol, que ostentam o brilhante matiz
nas horas mais ardentes do dia, era justamente nesse pélago de luz
e paixões, que Aurélia revelava toda a opulência de sua
beleza.
Seixas a contemplava de parte.
As outras moças, de meia-noite em diante, começavam a fanar-se;
o cansaço desbotava-lhes a cor, ou afogueava-lhes o rosto. O talhe
denunciava o excesso da fadiga na languidez das inflexões ou na rispidez
do gesto.
Aurélia ao contrário, à medida que adiantava-se a noite,
desferia de si mais seduções, e parecia entrar na plenitude
de sua graça. A correção artística de seu trajo
ia desaparecendo no bulício do baile. Como o primeiro esboço
que surge afinal do cinzel impetuoso do artista, ao fogo da inspiração,
sua estátua recebia da admiração da turba os últimos
toques.
Quando em torno se revolvia o turbilhão, ela conservava sua inalterável
serenidade. O colo arfava-lhe mansamente, ao influxo das brandas emoções;
o sorriso coalhava-se em enlevos nos lábios entreabertos, por onde
escapava-se a respiração calma. Desprendia-se de seus olhos,
de toda sua pessoa, uma efusão celeste que era como a sua irradiação.
Quando completou-se esta assunção de sua beleza, o baile estava
a terminar.
Aurélia fez um gesto ao marido, e envolvendo-se na manta de caxemira
que ele apresentara-lhe, trançou o braço no seu. No meio das
adorações que a perseguiam, retirou-se orgulhosamente reclinada
ao peito desse homem tão invejado, que ela arrastava após si
como um troféu.
O carro estava à porta. Ela sentou-se rebatendo os amplos folhos
da saia para dar lugar ao marido.
– Que linda noite! exclamou recostando a cabeça nas almofadas para
engolfar os olhos no azul do céu marchetado de estrelas.
Com esse movimento sua espádua tocou no ombro de Seixas e os cachos
de cabelos castanhos, agitados pelo movimento do carro, afagaram a face do
mancebo desprendendo perfumes de inebriar. De momento a momento, a claridade
do gás entrava pela portinhola do carro, em frente ao lampião,
e debuxava o mavioso semblante de Aurélia e seu colo, que a manta escorregando,
tinha descoberto.
Na posição em que estava, olhando por cima da espádua
da moça, ele via na sombra transparente, quando o decote do vestido
sublevava-se com o movimento da respiração, as linhas harmoniosas
desse colo soberbo que apojavam-se em contornos voluptuosos.
– Como brilha aquela estrela! disse a moça.
– Qual? perguntou Seixas inclinando-se para olhar.
– Ali por cima do muro, não vê?
Seixas só via a ela. Acenou com a cabeça que não.
Aurélia distraidamente travou da mão do marido, e apontou-lhe
a direção da estrela.
– É verdade! respondeu Fernando que vira uma estrela qualquer.
Retirando a mão Aurélia descansou-a no joelho, não
advertindo sem dúvida que ainda tinha presa a do marido.
– Não sei que tem o luzir das estrelas!… murmurou a moça.
É uma cousa que notei desde menina. Sempre que fico assim a olhar para
elas e a beber os seus raios sinto uma vertigem, que me dá sono. Quem
sabe se a luz que elas cintilam, não embriaga? Parece-me que bebi um
cálice de champanha, mas feito do sumo daqueles cachos dourados que
lá estão no céu.
Estas palavras, o olhar de Aurélia dirigiu-as ao marido envoltas
em um sorriso feiticeiro.
– Então foi de ambrosia, que é a bebida dos deuses, tornou
Fernando correspondendo ao gracejo.
– Mas, fora de graça? Que sono me fez! Será cansaço?
– Talvez! Dançou tanto!
– Pois reparou?
– Que queria que eu fizesse?
Aurélia esperou um momento para não interromper o marido; vendo
que este calava-se, conchegou-se com o gracioso movimento dos passarinhos
quando se arrufam para dormir.
– Não posso mais! Estou tonta!
Derreou-se então pelas almofadas; a pouco e pouco, descaindo-lhe ao
balanço do carro o corpo lânguido de sono, sua cabeça
foi repousar no braço do marido; e seu hálito perfumado banhava
as faces de Seixas, que sentia a doce impressão daquele talhe sedutor.
Era como se respirasse e haurisse a sua beleza.
Fernando não sabia que fizesse. Às vezes queria esquecer tudo,
para só lembrar-se que era marido dessa mulher e que a tinha nos braços.
Mas quando queria ousar, um frio mortal trespassava-lhe o coração,
e ele ficava inerte, e tinha medo de si.
Todavia, ninguém sabe o que aconteceria se o carro não parasse
tão depressa à porta da casa; Aurélia sobressaltou-se;
caindo em si, retraiu-se para deixar que Seixas saltasse e lhe oferecesse
a mão.
– Nunca me senti tão fatigada! Creio que estou doente, disse ela
descendo do carro.
– Não devia ter ficado até tão tarde! observou Fernando
com solicitude.
– Dê-me seu braço! murmurou a moça com um gesto abatido.
Seixas começou a inquietar-se, ainda mais quando a viu suspensa a
seu braço, arrastar-se para a escada.
– Está realmente incomodada?
– Estou doente, muito doente! respondeu com a voz alquebrada.
Nos olhos porém e nas covinhas da boca, cintilou um raio de malícia
que desmentia aquelas palavras.
Seixas retribuiu o gracejo.
– É uma enfermidade muito grave, não é? Que ataca-lhe
todas as noites e a deixa sem sentidos por muitas horas? Chama-se sono.
– Não sei, nunca a tive, volveu a moça abaixando as pálpebras
e velando os lindos olhos.
Chegados à saleta, onde costumavam despedir-se, Aurélia dirigiu-se
para o toucador. Na porta, Fernando parou.
– Leve-me que eu não posso comigo, disse Aurélia atraindo-o
a si brandamente.
O marido levou-a ao divã onde ela deixou-se cair prostrada de fadiga
ou de sono. Não tendo soltado logo o braço de Seixas, este reclinou-se
para acompanhar-lhe o movimento, e achou-se debruçado para ela.
Aurélia conchegou as roupas fazendo lugar à beira do divã,
e acenando com a mão ao marido que se sentasse. Entretanto com a cabeça
atirada sobre o recosto de veludo, o colo nu debuxava sobre o fundo azul um
primor de estatuária cinzelado no mais fino mármore de Paros.
Seixas desviou os olhos como se visse diante de si um abismo. Sentia a fascinação,
e reconhecia que faltavam-lhe as forças para escapar à vertigem.
– Até amanhã? disse ele hesitando.
– Veja se não tenho febre!
Aurélia procurou a mão do marido e encostou-a na testa. Debruçando-se
para ela com esse movimento, Seixas roçara com o braço o contorno
de um seio palpitante. A moça estremeceu como se a percutisse uma vibração
íntima, e apertou com uma crispação nervosa a mão
do marido que ela conservara na sua.
– Aurélia, balbuciou Fernando que a pouco e pouco resvalara do divã,
e estava de joelhos, buscando os olhos da mulher.
Ela ergueu de leve a cabeça, para vazar no semblante do marido a
luz dos olhos, e sorriu. Que sorriso! Uma voragem, onde submergiam-se a razão,
a dignidade, a virtude, todas essas arrogâncias do homem.
Seixas ia precipitar-se; mas os olhos de Aurélia o queimavam; escapava
daquelas pupilas cintilantes um fogo intenso que penetrava-lhe n’alma
como lava em ebulição. Ele voltou o rosto para o lado da porta,
como receoso de que estivesse aberta.
Aurélia cerrara as pálpebras e atirara de novo a cabeça
sobre a almofada, com esse delicioso abandono, em que o corpo remite-se depois
de um excessivo exercício. Fernando na mesma posição
contemplava a formosa mulher, que ele tinha ali, palpitante sob o seu olhar
e ao contato do peito onde fervilhavam os frocos de renda do talhe do vestido,
aflando ao vivo ofego da respiração.
E todavia não ousava. Nunca, nos tempos em que ele fazia o contrabando
do amor, mulher alguma, por mais defesa que fosse a seu desejo, inspirou-lhe
o respeito, ou antes o susto, que o tolhia naquele momento junto de sua esposa.
A moça levantou o braço com um gesto de enfado e deixou-o
sobre o recosto do divã, donde foi deslizando fracamente para o ombro
de Seixas. À doce pressão dessa cadeia que o cingia, ele vergou
a cabeça e chegou a embeber a flor dos lábios nas tranças
de cabelos que borbulhavam em anéis pelas espáduas e refluíam
pela face de Aurélia.
Mas a moça voltara a cabeça escondendo o rosto no acolchoado
de veludo, com um gesto rápido, ao passo que retraía a mão
para velar a face. Bastou este movimento que não passava talvez de
frágil resistência da castidade, para reprimir o impulso de Seixas.
Depois de um instante de perplexidade ia levantar-se, quando Aurélia
surgiu arrebatadamente do torpor e languidez que a prostravam, e sentando-se
no divã, obrigou o marido a ajoelhar-se de novo a seus pés.
Apoiando-lhe então a mão na fronte, vergou-lhe a cabeça,
e cravou-lhe no semblante um olhar longo, penetrante, que parecia submergir-se
na consciência daquele homem, e sondar-lhe os arcanos.
– Não me engana? Ama-me enfim? perguntou ela com meiguice.
– Ainda não acredita?
– Venceu então o impossível?
– Fui vencido por ele.
– Essa felicidade não a tenho eu!… exclamou a moça erguendo-se
do divã, e caminhando pela sala com o passo frouxo e a cabeça
baixa.
Fernando que a seguia com o olhar surpreso, viu-a aproximar-se de um quadro
colocado sobre um estrado e contra a parede fronteira.
A cortina azul do dossel correu; à luz do gás que batia em
cheio desse lado, destacou-se do fundo do painel o retrato em vulto inteiro
de um elegante cavalheiro.
Era o seu retrato; mas do mancebo que fora dois anos antes, com o toque
de surpema elegância que ele ainda conservava, e com o sorriso inefável
que se apagara sob a expressão grave e melancólica do marido
de Aurélia.
– O homem que eu amei, e que amo, é este, disse Aurélia apontando
para o retrato. O senhor tem suas feições; a mesma elegância,
a mesma nobreza de porte. Mas o que não tem é sua alma, que
eu guardo aqui em meu seio e que sinto palpitar dentro de mim, e possuir-me,
quando ele me olha.
Aurélia fitou o retrato com delícia. Arrebatada pela veemência
do afeto que intumescia-lhe o seio, pousou nos lábios frios e mortos
da imagem um beijo férvido, pujante, impetuoso; um desses beijos exuberantes
que são verdadeiras explosões da alma irrupta pelo fogo de uma
paixão subterrânea, longamente recalcada.
Seixas estava atônito. Sentindo-se ludíbrio dessa mulher, que
o subjugava a seu pesar, escutava-lhe as palavras, observava-lhe os movimentos
e não a compreendia. Chamava a si a razão, e esta fugia-lhe,
deixando-o extático.
Aurélia acabava de voltar-se para ele, soberba de volúpia,
fremente de amor, com os olhos em chamas, os lábios túrgidos,
e o seio pulando aos ímpetos da paixão:
– Por que meu coração que vibra assim diante desta imagem, fica
frio junto a si? Por que seu olhar não penetra nele, como o raio desta
pupila imóvel? Por que o toque de sua mão não comunica
à minha esta chama que me embriaga como um néctar?
Aurélia parou de repente. Uma onda de rubor banhou-lhe o rosto mimoso.
Atalhada no ímpeto da paixão por um assomo de pudor, ela confrangeu-se
como a flor da noite ao raiar da luz. Suspendeu a capa de caxemira que lhe
tinha resvalado dos ombros para a cintura, e envolvendo-lhe com o estremecimento
de um calafrio, encolheu-se no canto do divã.
Seixas aproximou-se, fazendo-lhe a cortesia do costume; com a voz já
tranqüila, e o modo natural disse:
– Boa noite.
A moça entreabriu a caxemira quanto bastava para tirar os dedos afilados
da mão direita, que estendeu ao marido.
– Já? perguntou ela erguendo os olhos entre súplices e despóticos.
O marido estremeceu ao toque sutil dos dedos, que calcavam-lhe docemente
a palma da mão:
– Ordena que fique? disse com a voz trêmula.
– Não. Para quê?
O que exprimia essa frase, repassada do sorriso que lhe servia por assim dizer
de matiz, ninguém o imagina.
Seixas retirou-se levando n’alma a mais cruel humilhação
que podia infligir-lhe o desprezo dessa mulher.
II
Aconteceu uma noite cair a conversa em assunto de literatura nacional.
Fato raro. Entre nós há moda para tudo nos salões;
menos para as letras pátrias, que ficam à porta, ou quando muito
vão para o fumatório servir de tema a dois ou três incorrigíveis.
Nesse dia fez-se uma exceção. Alguém, que tinha a prurir-lhe
nos lábios a condenação dogmática de um livro
que lera recentemente, apesar de publicado desde muito, aproveitou o momento
para essa execução literária.
– Já leram a Diva?
Respondeu um silêncio cheio de surpresa. Ninguém tinha notícia
do livro, nem supunham que valesse a pena de gastar o tempo com essas cousas.
– É um tipo fantástico, impossível! sentenciou o crítico.
Acrescentou ele ainda algumas cousas acerca do romance, cujo estilo censurou
de incorreto, cheio de galicismos, e crivado de erros de gramática.
O desenlace especialmente provocou acres censuras.
A crítica, por maior que seja a sua malignidade, produz sempre um
efeito útil que é de aguçar a curiosidade. O mais rigoroso
censor mau grado seu presta homenagem ao autor, e o recomenda.
Pela manhã Aurélia mandou comprar o romance; e o leu em uma
sesta, ao balanço da cadeira de palha, no vão de uma janela
ensombrada pelas jaqueiras cujas flores exalavam perfumes de magnólias.
À noite apareceu o crítico.
– Já li a Diva, disse depois de corresponder ao cumprimento.
– Então? Não é uma mulher impossível?
– Não conheço nenhuma assim. Mas também só podia
conhecê-la Augusto Sá, o homem que ela amava, e o único
ente a quem abriu sua alma.
– Em todo o caso é um caráter inverossímil.
– E o que há de mais inverossímil que a própria verdade?-
retorquiu Aurélia repetindo uma frase célebre. Sei de uma moça…
Se alguém escrevesse a sua história, diriam como o senhor: “É
impossível! Esta mulher nunca existiu.” Entretanto eu a conheci.
Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra
de receber indiretamente suas confidências e escrever também
o romance de sua vida, a que ela fazia alusão.
Nessa noite, entre as novidades do dia que deram tema à palestra,
houve uma que bastante afligiu Aurélia. Corria que Eduardo Abreu estava
dominado pela idéia do suicídio. Um de seus camaradas que vinha
com ele de Niterói, o impedira de precipitar-se ao mar da borda da
barca; outro o surpreendera com um revólver no bolso.
No dia seguinte houve espetáculo no teatro lírico. Aurélia
escreveu a Adelaide Ribeiro um bilhete oferecendo-lhe o seu camarote e prometendo-lhe
sua companhia. As duas senhoras não tinham relações íntimas;
apenas haviam trocado entre si as visitas de rigor depois do casamento.
Aurélia aproveitou o pretexto da ópera nova não para
estreitar essas relações cerimoniosas, mas ter ocasião
de falar com o Dr. Torquato Ribeiro.
Às oito horas, quando Aurélia entrou no camarote pelo braço
de Seixas, já encontrou Adelaide com o marido.
As duas moças lembrando-se que iam passar a noite face a face, instintivamente
sem propósito, por uma irresistível emulação,
haviam-se esmerado. Ambas estavam no esplendor- de sua beleza. Mas curiosa
antítese: Adelaide, a pobre, vinha no maior apuro do luxo, com toda
a garridice e requintes da moda. Aurélia, a milionária, afetava
extrema simplicidade. Vestiu-se de pérolas e rendas; só tinha
uma flor, que era a sua graça.
Ao levantar-se o pano, a dona do camarote como de costume ocupou o lado
da cena, reservando o lugar de honra para sua convidada. Os maridos revezaram-se,
ficando Ribeiro perto de Aurélia, e Seixas da parte de Adelaide.
Passada a primeira curiosidade que desperta sempre as decorações
e trajos de uma cena ainda não vista, Aurélia voltando-se para
atender à amiga que lhe falava, notou a posição e atitude
de Seixas.
Este recostara-se à divisão do camarote, e observava a cena
por cima do ombro de Adelaide; mas à moça pareceu que a vista
do marido não chegava à rampa, e refrangia-se como uma réstia
de sol diante do obstáculo que se lhe antepunha à menor oscilação
do talhe esbelto da mulher de Ribeiro.
Se Adelaide inclinava-se à frente para trocar alguma observação,
bombeava graciosamente diante de Fernando as espáduas que a luz do
gás esbatendo-se em cheio jaspeava. Se a moça apoiava-se indolentemente
à coluna, era o seu lindo colo vazado por decote de ninfa, que se oferecia
aos olhos de Fernando.
Aurélia agitava o leque de madrepérola com um movimento rápido
e nervoso, que fazia crepitarem as aspas violentamente batidas umas contra
as outras. Duas ou três espedaçaram-se entre os dedos crispados.
Às vezes dardejava um olhar imperioso ao marido para adverti-lo de
sua inconveniência. Outras examinava a fisionomia de Ribeiro, com o
sentido de observar o efeito que nele produzia aquela faceirice da mulher.
Mas Seixas estava -completamente absorvido na cena, ou no que lhe ficava ao
rumo da cena, e Ribeiro passava revista de binóculo aos camarotes.
Quanto a Adelaide, toda a satisfação de brilhar, nem reparava
na impaciência da amiga, nem se apercebia que o excessivo esvazamento
de seu corpinho, com o requebro que imprimia ao talhe, desnudava-lhe quase
todo o busto aos olhos do homem a quem voltava as costas. Sente a estátua
o olhar que insinua-se entre os véus transparentes? A mulher da moda
tem a cútis da estátua quando se veste para o baile.
Aurélia não pôde conter-se afinal.
– Troquemos de lugar, Fernando? A luz do gás está incomodando-me
a vista.
– Venha para aqui! disse Adelaide querendo ceder-lhe a cadeira.
– Não: ali estou melhor; fico na sombra.
No intervalo saíram a passear no salão. A lembrança
foi de Aurélia que desejava uma ocasião de dizer algumas palavras
em particular ao Torquato. Antes de sair, porém, insistiu com Adelaide
para que pusesse a capa.
– Pode-se resfriar. Está úmido.
– Ao contrário; faz um calor!
– Não facilite.
E cobriu-lhe os ombros com sua própria capa que agasalhava mais.
Seixas ofereceu o braço a Adelaide, como era de rigor; Aurélia
seguindo ao braço de Ribeiro, e sem perdê-los de vista, começou
a conversar com seu cavalheiro.
– Ontem tive uma notícia que me afligiu; o Eduardo Abreu tentou suicidar-se.
– Já me disseram.
– E parece que não abandonou a idéia. Quero salvá-lo
dessa loucura: é um dever para mim, e um tributo que pago à
memória de minha mãe. Posso contar com o senhor?
– Permita que não responda a esta pergunta. Diga-me o que devo fazer.
– Obrigada. Basta que o traga à minha casa, e faça que a freqüente.
Ele foi rico; perdeu a riqueza, e com ela os amigos, a consideração,
tudo que lhe tornava doce a existência. Nada mais natural do que olhar
para o mundo como um inimigo a quem deve fugir. Se porém no meio desse
deserto moral em que se acha surgisse uma idéia, uma vontade, um sentimento
consolador, esse elo o prenderia de novo à existência.
– Mas não tem receio? observou Ribeiro hesitando.
– Pensa que ainda não esteja de todo extinta a sua paixão?
É justamente com o que eu conto.
– E seu marido?
– É meu marido, respondeu a moça erguendo a cabeça com
serena altivez.
Ribeiro compreendeu a palavra e o gesto. Em verdade, o homem que tinha a
suprema ventura de ser o esposo querido dessa mulher, podia suspeitá-la?
– Suponha-se em seu lugar, o senhor que sabe uma parte de minha história.
Depois do que lhe dei, a ele, julgar-se-ia com direito a esse triste sacrifício
da vida de um infeliz?
– Não, certamente.
Nesse instante, Aurélia que distraíra-se com a conversa, viu
Adelaide já sem a capa, e suspensa ou antes enlaçada ao braço
de seu marido com um abandono que ela, sua mulher, não se animaria
a mostrar em público.
Aurélia por um impulso que não pôde conter, apesar do
império que se habituara a conservar sobre si, deixou o braço
de Ribeiro para lançar-se ao encontro do outro par e separou os dois,
insinuando-se entre eles. Aí recobrou-se, ao perceber a surpresa que
se pintava no semblante dos outros, buscou disfarçar, afetando uma
risada e trançando no seu o braço da mulher de Ribeiro.
– Escute, quero dizer-lhe um segredo, D. Adelaide!
Afastou-se levando a amiga. O segredo foi um remoque a propósito de
certa loureira que passava; e depois uma indireta ao desgarro de certas senhoras,
que timbram em imitar aquelas a quem mais desprezam.
– Dê-me a minha capa! disse Aurélia com rispidez a Seixas.
Antes que este pudesse satisfazê-la, tirou-lhe da mão a caxemira
que Adelaide tinha dado a guardar, embrulhou-se nela, e tomou o braço
do marido.
– Vamos?
Seixas admirado deixou-se conduzir, supondo que tornavam ao camarote. Ao chegarem
defronte da escada, Aurélia esperou para despedir-se de Adelaide.
– Já se retira? perguntou a amiga cada vez mais surpresa.
– Prometi a minha madrinha, D. Margarida Ferreira, ir vê-la esta noite.
Passei por aqui somente para gozar da sua companhia.
Aurélia tivera esta lembrança, no caminho do salão
para o camarote; era uma excelente explicação de seu descaso
de tomar à amiga o braço do marido, e o melhor pretexto para
cortar de vez o desagradável incidente.
Seixas acompanhou a mulher, sem a mínima observação.
Entraram no carro; o cocheiro que não recebeu ordem alguma, dirigiu-se
a Laranjeiras. D. Margarida Ferreira morava em Andaraí.
– Não vai à casa de sua madrinha?
A resposta foi breve e seca:
– Não; já é tarde.
Aurélia revoltava-se contra si mesma, por causa daquele momento de
fragilidade. Como é que ela depois de haver arrebatado à sua
rival o homem a quem amava, e de haver desdenhado esse triunfo, por indigno
de sua alma nobre, dava a essa rival o prazer de recear-se de suas seduções?
Descontente, contrariada, cogitava uma vindita desse eclipse de seu orgulho.
– O que é o ciúme? disse de repente sem olhar o marido, e
com um tom incisivo.
Seixas compreendeu que aí vinha a refrega e preparou-se, chamando
a si toda a calculada resignação de que se costumava revestir.
– Exige uma definição fisiológica, ou a pergunta é
apenas mote para conversa?
– Acredita na fisiologia do coração? Não lhe parece um
disparate, esta ciência pretensiosa que se mete a explicar e definir
o incompreensível, aquilo que não entende o próprio que
o sente, e que sente-se, sem ter muitas vezes a consciência desse fenômeno
moral? Só há um fisiologista, mas esse não define, julga.
É Deus, que formando sua criatura do limo da terra, como ensina a Escritura,
deixou-lhe ao lado esquerdo, por amassar, uma porção de caos
de que a tirou. Quanto ao ciúme, todos nós sabemos mais ou menos
a significação da palavra. O que eu desejava era saber sua opinião
sobre este ponto: se o ciúme é produzido pelo amor?
– Assim pensam geralmente.
– E o senhor?
– Como nunca o senti, não posso ter opinião minha.
– Pois tenho-a eu, e por experiência. O ciúme não nasce
do amor, e sim do orgulho. O que dói neste sentimento, creia-me, não
é a privação do prazer que outrem goza, quando também
nós podemos gozá-lo e mais. É unicamente o desgosto de
ver o rival possuir um bem que nos pertence ou cobiçamos, ao qual nos
julgamos com direito exclusivo, e em que não admitimos partilha. Há
mais ardente ciúme do que o do avaro por seu ouro, do ministro por
sua pasta, do ambicioso por sua glória? Pode-se ter ciúme de
um amigo, como de um traste de estimação, ou de um animal favorito.
Eu quando era criança tinha-o de minhas bonecas.
Aurélia calou-se à espera da réplica; prolongando-se
a pausa continuou:
– Um exemplo. Há pouco, no teatro, quando vi o modo por que a Adelaide
Ribeiro lhe dava o braço, tive ciúmes do senhor. Entretanto
eu não o amo, bem sabe, e não o posso amar!
– Esta prova é decisiva. E a senhora não acredita na fisiologia?
Quer melhor definição? O ciúme é o zelo do senhor
pela cousa que lhe pertence.
– Ou pessoa! acrescentou Aurélia com maldade.
– Pela cousa que lhe pertence, insistiu Seixas; seja essa animada ou inanimada.
– Temos ainda outra prova em favor de minha opinião. O senhor que
amou tanto e tantas vezes, nunca teve ciúmes; há pouco me confessou.
– E como o ciúme é o sintoma do orgulho, ou em outros termos,
da dignidade, a conseqüência…
– É lógica; mas eu a dispenso. Preferia que o senhor me recitasse
alguma de suas poesias. Por exemplo – O Capricho.
III
As partidas de Aurélia, ou recepções, como as chamava
o Alfredo Moreira, à parisiense, eram das mais brilhantes que então
se davam na Corte.
Sem galopes infernais e as extravagantes figuras que fazem das quadrilhas
e valsas um perfeito corrupio de idos ou um remoinho de gente tocada da tarântula,
reinava ali sempre uma animação de bom gosto que excitava o
prazer e derramava a alegria sem amarrotar as moças, nem espremer as
damas entre os cavalheiros.
Aurélia descobrira um meio engenhoso de obter este resultado. Quando
os rapazes que deviam dar o tom à reunião, se retraíam
com fingidas esquivanças, e não se apressavam em tirar pares
e trazê-los ao meio da sala, a dona da casa anunciava a quadrilha dos
casados.
Essa quadrilha, como o nome indica, era dançada unicamente pelos
maridos com suas mulheres. Ninguém escapava; não se admitia
insenção alguma, nem de idade, nem de moléstia. Aurélia
era inflexível, e não havia resistir à sua doce tirania.
Se ela tinha desses caprichos despóticos e impertinentes, possuía
em compensação um tacto superior para cativar a todos com sua
fina e graciosa amabilidade.
O disparate das idades e a obrigação do galanteio entre as
duas caras-metades, às vezes tão desencontradas, servia de divertimento
geral, até aos próprios velhos reumáticos. As matronas
gostavam interiormente desta fantasia que as remoçava, embora deitassem
sua cafanga, como exigia a decência.
O mais apreciado porém era a pirraça feita aos rapazes, que
além de ficarem de fora e perderem os lindos pares escolhidos entre
as senhoras casadas, sofriam de ricochete os amuos das meninas solteiras,
aborrecidas por não dançarem e obrigadas a fazer o papel de
tias, ocupando o lugar das mães que tinham tomado os seus.
Disso resultava que os rapazes com receio da tal quadrilha jarreta, desenvolviam
uma atividade exemplar à primeira arcada da rabeca, e entretinham constante
animação na sala, sem que Aurélia se incomodasse em rogar
a esses meus senhores o especial obséquio de dançar.
A Lísia Soares dizia que essa invenção não passava
de um disfarce de Aurélia para dançar com o marido, de quem
andava cada vez mais namorada; a tal ponto que dava-se a esses desfrutes.
Aparecera nessas partidas Eduardo Abreu, a quem os camaradas desde muito
não viam na sociedade. Aurélia acolheu-o com afetuosa distinção,
e reservava-lhe sempre uma de suas quadrilhas tão disputadas pelos
inúmeros admiradores.
Acabava de dançar com ele, e passeava pelo salão ao seu braço.
O Alfredo Moreira, com esse espírito de restilo que fornece a vida
leviana aos leões de sala, vendo-os passar, disse para um companheiro:
– Retrospecto sentimental!
– Não entendo a charada, tornou-lhe o outro.
– Não sabes que o Abreu teve uma paixão estrepitosa pela Aurélia,
e fez as maiores loucuras para casar-se com ela?
– Já percebo.
– Ela recusou o casamento porque amava o Seixas; mas agora que está
casada com este, é muito capaz de transportar o amor para o jovem lírio
abandonado.
– O jeito é disso!
Este trecho de diálogo travou-se na alameda artificial, que em noites
de reunião, se dispunha ao longo da sala de jantar com palmeiras, acácias
e magnólias plantadas em vasos de louça e caixas de madeira.
Fernando que se havia refugiado um instante naquele recanto, e fumava sentado
em um sofá rústico à sombra de um plátano, ouviu
a maledicência dos dois leões. Buscando com os olhos o alvo do
remoque, viu sua mulher que falava ao cavalheiro com uma insistência
meiga e sedutora, que lembrou-lhe a época de seus primeiros amores.
– Ama-o! murmurou.
Depois não viu mais nada, o par desaparecera da sala, e ele submergira-se
em sua alma. Só deu acordo de si, quando a voz da mulher despertou-o
surpreso.
– Há que tempo o procuro! disse Aurélia sentando-se a seu
lado, e olhando-o inquieta. Está incomodado?
– Não, senhora: tive há pouco o prazer de vê-la dançar
com o Abreu.
Aurélia lançou um olhar rápido e penetrante ao marido.
– É verdade; dancei com ele; éacute; um de meus pares habituais,
tornou com volubilidade. E o senhor, por que não dançou também?
– Porque a senhora não me ordenou.
– É esta a razão? Pois vou dar-lhe um par… Quer oferecer-me
seu braço? replicou Aurélia sorrindo.
– Seria ridículo oferecer-lhe o que lhe pertence. A senhora manda,
e é obedecida.
Aurélia tomou o braço do marido, e afastou-se lentamente ao
longo da alameda.
– Por que me chama senhóra? perguntou ela fazendo soar o ó
com a voz cheia.
– Defeito de pronúncia!
– Mas às outras diz senhôra. Tenho notado; ainda esta noite.
– Essa é, creio eu, a verdadeira pronúncia da palavra; mas
nós, os brasileiros, para distinguir da fórmula cortês,
a relação de império e domínio, usamos da variante
que soa mais forte, e com certa vibração metálica. O
súdito diz à soberana, como o servo à sua dona senhóra.
Eu talvez não reflita e confunda.
– Quer isso dizer que o senhor considera-se meu escravo? perguntou Aurélia
fitando Seixas.
– Creio que lho declarei positivamente, desde o primeiro dia, ou antes desde
a noite de que data a nossa comum existência, e minha presença
aqui, a minha permanência em sua casa sob outra condição,
fora acrescentar à primeira humilhação uma indignidade
sem nome.
Aurélia replicou dando à sua voz inflexão triste e
repassada de sentimento.
– Já não é tempo de cessar entre nós estas represálias,
que não passam de truques de palavras? Temos para separar-nos eternamente
motivos tão graves, que não carecemos de estar a beliscar-nos
a todo o momento com semelhantes puerilidades. Eu dei o meu exemplo; devo
ser a primeira a fazer ato de contrição. O senhor é meu
marido, e somente meu marido.
– O que lhe disse não é uma banalidade, mas uma convicção
profunda, uma cousa séria, a mais séria de minha vida; breve
há de reconhecê-lo. Não empreguei a palavra escravo no
sentido da domesticidade; seria soberbamente ridículo. Mas a senhora
deve saber que o casamento começou por ser a compra da mulher pelo
homem; e ainda neste século se usava em Inglaterra, como símbolo
o divórcio, levar a repudiada ao mercado e vendê-la ao martelo.
Também não ignora que no Oriente há escravas que vivem
em suntuosos palácios, tratadas como rainhas.
– As sultanas?
– Ora esse poder ou esse luxo que o homem se arrogou, por que não o
terá a mulher deste século e desta sociedade, desde que lhe
cresce nas mãos o ouro que é afinal o grande legislador, como
o sumo pontífice?
A palavra de Seixas era acre, e queimava os lábios.
– Sou seu marido!… É verdade; como Scheherazade era mulher do sultão.
– Menos o lenço! acudiu Aurélia com um remoque.
Mas a ironia não pôde abafar a sublevação irresistível
do pudor, que cerrou-lhe as pálpebras e cobriu-lhe as faces e o colo
de vivos rubores.
– Poupemos aos nossos mútuos sarcasmos a augusta santidade do amor
conjugal, disse ela comovida. Deus não nos concedeu essa inefável
alegria, a fonte pura de quanto há de nobre e grande para o coração.
Ficamos… Eu pelo menos… órfãos e deserdados dessa bênção
celeste; mas nem por isso podemos recusar-lhe a nossa veneração.
Mal acabava de proferir estas palavras sentidas e vindas do íntimo,
que a moça arrependida de haver cedido à emoção,
desfolhou dos lábios um riso argentino, e afetou o seu costumado tom
de volubilidade:
– Quer saber minha opinião? Isto que o senhor chama escravidão,
não passa da violência que o forte exerce sobre o fraco; e nesse
ponto todos somos mais ou menos escravos, da lei, da opinião, das conveniências,
dos prejuízos; uns de sua pobreza, e outros de sua riqueza. Escravos
verdadeiros, só conheço um tirano que os faz, é o amor,
e este não foi a mim que o cativou.
Achavam-se nesse instante na sala, em face da cadeira ocupada por Adelaide
Ribeiro.
– D. Adelaide, faz-me um favor. Guarde-me este fugitivo, e tenha-o cativo,
ao menos durante esta contradança.
– É um depósito? perguntou Adelaide maliciosamente. Aceito;
mas sem responsabilidade.
– Não há risco.
Enquanto a mulher de Ribeiro consertava os fofos e a cauda de seu elegante
vestido para tomar o braço do par que a dona da casa lhe oferecera
com tanta amabilidade, Aurélia estreitando-se ao flanco do marido disse-lhe
ao ouvido e com expressão estas palavras.
– Restituo-lhe sua liberdade. Já o disse uma vez; agora o realizei.
– E eu rejeitei então como agora, respondeu-lhe o marido no mesmo
tom.
– Por quê? perguntou a moça com viva interrogação
na voz e no olhar.
– Não é porque desejo tolher a sua. Esteja descansada.
– Decerto! disse Aurélia com desdenhosa inflexão da fronte.
– A razão é outra.
– Quero saber.
– Espero em Deus, que a saberá um dia.
Tinham-se afastado alguns passos para não serem ouvidos. Aurélia
fitara os olhos no marido, excitada pelo tom das últimas palavras;
e preparava-se talvez a exigir a explicação, quando ouviu o
frolo do vestido de Adelaide que se aproximava.
Soltou o braço do marido e afastou-se.
A música dava o sinal da quadrilha. Passou o Alfredo Moreira, que
vinha borboleteando pela sala, como um sátiro que adeja na silva à
cata de uma flor. Fernando adivinhou que essa flor era um par, e encartou-lhe
a Adelaide Ribeiro em risco de infringir o código dos salões,
faltando às regras da polidez.
– Não tem par, Moreira? Aqui está D. Adelaide, que sem dúvida
estimará a troca, pois lhe dá por cavalheiro, em vez de um aposentado,
o príncipe da elegância fluminense.
Sem esperar resposta, deixou a moça ao leão que expandia-se
como uma tulipa, esticando as guias do bigode encerado. Seixas contava com
a sua posição de dono da casa, empenhado em fazer dançar
seus convidados para desculpar a estratégia, com que se dispensara
da quadrilha.
Frustrou assim o capricho de Aurélia, o qual o incomodara? Por quê?
Não poderia bem apurar a razão no encontro das impressões
do momento. Desejo de convencer a mulher de sua indiferença para Adelaide;
repugnância de prestar-se a esse ludíbrio; necessidade de manter
a gravidade duma situação que se complicava; tudo isto passou-lhe
pelo espírito.
Corria a reunião sempre animada. Tinham chegado mais convidados;
e a partida transformara-se em baile, como muitas vezes acontecia.
A frauta soltou o cintilante prelúdio de uma valsa de Strauss.
Os valsistas afamados deixaram-se ficar de parte, sem dúvida para
se fazerem desejar. Os caloiros e a gente de encher hesitavam em tomar a dianteira;
algum mais afouto achou-se em branco; não encontrou par.
De repente correu pela sala este rumor, a valsa dos casados, e logo após
ouviu-se a risada cristalina de Aurélia, esse trilo fresco, límpido,
que às vezes escapava-lhe dos lábios, como se os seus dentes
de pérolas se lhe desfiassem entre os rubins a roçar uns nos
outros.
A formosa mulher atravessava a sala pelo braço do velho general Barão
do T. que para não desmentir o seu garbo marcial, fazia naquele momento
prova de um heroísmo superior ao que mostrara na última guerra
do Paraguai, onde havia sido um meio Bayard, sans peur, mas não sans
reproche.
O ilustre guerreiro, que nunca voltara o rosto ao canhão, fosse ele
Krupp, admitia contudo a possibilidade de curvar-se alguma vez para que a
bala não lhe cortasse a pluma do chapéu ou a metralha não
lhe queimasse a barba resplandecente como uma nuvem iluminada pelo sol. Mas
curvar o peito arcado e altaneiro, bambear a perna firme, rija e direita,
quando levava ao braço a mais bela mulher do mundo, era uma cobardia,
ainda mais, uma indignidade que ele não podia cometer.
A Lísia Soares acusou Aurélia da lembrança da tal valsa
dos casados. Esta defendeu-se:
– A idéia é do general, que está morto por dançar
uma valsa com a baronesa. Recordações da mocidade!
O famoso guerreiro não recuou; porém jamais carga de cavalaria
contra um quadrado ou uma trincheira, debaixo do fogo cruzado de uma bateria
de canhões, custou-lhe como aquela valsa que ele dançou decidido
a morrer como um bravo.
IV
Aurélia estava ocupada em reunir os diversos casais e enviá-los
ao meio da sala; desembargadores de todo o tope e calibre, conselheiros carunchosos,
viscondes mofados, marqueses carranças: tudo tratava de executar-se
da melhor vontade, que era o meio de tomar mais leve a penitência.
Nisto chegou-se a Lísia Soares ao braço de Fernando. A travessa
trazia nos lábios um sorriso maligno; o olhar beliscava como um alfinete.
– Está muito entretida com os outros e não se lembra de si,
disse ela.
– Como? perguntou Aurélia voltando-se.
– Não disfarce. A justiça começa por casa; aqui está
seu marido. Dê o exemplo.
Aurélia compreendeu a vingança da amiga, despeitada por não
valsar com o Alfredo Moreira.
Desde a primeira vez que apareceu na sociedade, depois do luto de sua mãe,
Aurélia que apesar da palavra afouta e viva, tinha o casto recato de
sua pessoa, resolveu não valsar para não arriscar-se a encontrar
um desses pares que põem ao vivo a comparação poética
da trepadeira enroscada ao tronco musgoso.
Declarou, portanto, que não sabia valsar, e que nunca poderia aprender
porque o giro rápido causava-lhe vertigem. Havia nesta segunda parte
um fundo de verdade. Quando valsava no colégio com as amigas, sentia
tão vivo prazer nessa dança impetuosa, que deixava-se arrebatar
e desprezando o compasso da música volvia uma velocidade prodigiosa
até que o atordoamento a obrigava a sentar.
Convencida de que ela não sabia realmente valsar, Lísia lembrou-se
de tomar uma desforra obrigando-a a fazer triste figura na sala, ou então
a retratar-se de sua esquisitice e acabar com a tal valsa dos casados. O que
mais estimulara a moça, fora a suspeita de que Aurélia fizera
aquilo por maldade, e só para privá-la de dançar com
o Moreira.
Nisto era injusta. A razão que movera Aurélia, não
sei; mas que ela nesse momento não se lembrava da existência
da Lísia e do Moreira, disso posso dar certeza.
– Não seja má, Lísia! disse Aurélia com um modo
queixoso, que não ocultava de todo o fino motejo do olhar.
– Nada, minha cara; você não dispensa ninguém, tenha
paciência.
– Eu não sei valsar!
– Aí é que está a graça. Meu pai também
não sabia.
– Ela sabe, era meu par no colégio, observou uma senhora.
– Há de dançar.
– Pena de talião, dizia um velho advogado gotoso que voltava da valsa
tão estafado como nunca o deixara a mais complicada defesa do júri.
– Caso de justa represália! acudiu um velho diplomata que fizera
sua carreira em eterna disponibilidade, sem trocadilhos.
– A coroa cede ante a opinião! orava um ministro para quem coroa
e opinião no Brasil eram a chapa e o cunho da mesma moeda em que se
recebia o salário.
As senhoras insistiam para se despicarem da entrega que lhes fizera a dona
da casa; as moças por pirraça; e os rapazes pelo desejo de quebrar
o encanto a Aurélia, e terem-na daí em diante como par certo
de valsa.
– Não é preciso essa revolução. Eu me submeto,
disse Aurélia, curvando gentilmente a cabeça.
Dirigindo-se ao marido que estava defronte e a quem a Lísia não
consentira que se retirasse, tomou-lhe resolutamente o braço e deixou-se
conduzir ao meio da sala.
– Por que se constrange? Não quer valsar; eu tomo sobre mim a recusa,
segredou Seixas.
– É questão de vaidade. Compreende a força que tem
para nós mulheres, este nosso ponto de honra? tornou Aurélia
também a meia voz.
– Neste momento, não; não compreendo.
– Veja a Lísia como está saboreando o meu vexame de não
saber valsar, e o fiasco que me espera? Demais…
Sua voz teve uma nota vibrante.
– Demais, o senhor pode pensar que tenho medo.
Aurélia pousara a mão no ombro do marido, e imprimindo ao
talhe um movimento gracioso e ondulado, como o arfar da borboleta que palpita
no seio do cacto, colocou-se diante de seu cavalheiro e entregou-lhe a cintura
mimosa.
Era a primeira vez, e já tinham mais de seis meses de casados; era
a primeira vez que o braço de Seixas enlaçava a cintura de Aurélia.
Explica-se pois o estremecimento que ambos sofreram ao mútuo contacto,
quando essa cadeia viva os surpreendeu.
Balançava-se o airoso par à cadência da música
arrebatadora; e todos o admiravam, menos Lísia Soares que ralava-se
de despeito ao ver a silfidez e graça com que Aurélia valsava,
triunfando, quando ela esperava humilhá-la.
Aurélia tinha nessa noite um vestido de tule cor de ouro, que a vestia
como uma gaze de luz. Com o voltear da valsa, as ondas vaporosas da saia e
a manga roçagante do braço que erguera para apoiar-se em seu
par, flutuavam como nuvens diáfanas embebidas de sol, e envolviam a
ela e ao cavalheiro como um brilhante arrebol.
Parecia que voavam ambos arrebatados ao céu por uma assunção
radiosa.
A cabeça de Aurélia afrontara-se, atirada para o ombro com
um gesto sobranceiro e uma expressão provocadora, que por certo havia
de desairar outro semblante, mas tinha no seu uma sedução irresistível
e uma beleza fatal e deslumbrante.
Nunca se fixou na tela, nem se lavrou no mármore, tão sublime
imagem da tentação, como aí estava encarnada na altivez
fascinante da formosa mulher.
Aos primeiros compassos principiou este rápido diálogo, cortado
pelas evoluções da dança:
– Não sei valsar devagar.
– Pois apressemos o passo.
– Não lhe tonteia?
– Não; a cabeça é forte.
– E o coração?
– Este já calejou.
– Pois eu sou o contrário.
– O coração?
– Nunca vacilou.
A moça continuara soltando frases intermitentes.
– A cabeça é que é fraca. – Mas que singularidade!
– Em tudo sou esquisita! – Devagar é que tonteio. – A casa roda em
torno de mim. – Depressa não. – Quando tudo desaparece… – Quando
não vejo mais nada… – Então sim! – Então gosto de valsar!
– E posso valsar muito tempo!
Passavam perto da música. Seixas disse ao regente da orquestra:
– Apresse o compasso!
O arco do regente deu o sinal.
– Mais! disse Aurélia.
Amiudaram-se as pancadas do arco.
– Ainda mais! ordenou a moça.
O arco sibilou. Os instrumentos estrepitaram; as notas despenhavam-se não
já em escalas, mas em borbotões. Não era mais valsa de
Strauss; era um turbilhão musical, um pampeiro como saía das
mãos inspiradas de Liszt.
O lindo par arrojou-se, deixando a trotar classicamente os outros que não
podiam acompanhar aquela torrente impetuosa. Obscurecia-se a vista que buscava
acompanhá-lo; ele passava nublado por aquela espécie de atmosfera
oscilante, que a velocidade da rotação estabelecia em torno
de si.
Aurélia cerrara a meio as pálpebras; seus longos cílios
franjados, que roçavam o cetim das faces, sombrearam o fogo intenso
do olhar, que escapava-se agora em chispas sutis, e feriam o semblante de
Seixas como os rutilos de uma estrela.
A valsa é filha das brumas da Alemanha, e irmã das louras
valquírias do norte. Talvez sobre essas regiões do gelo, com
os doces esplendores da neve, o céu derrame alguma da serenidade e
inocência que fruem os bem-aventurados; talvez que os povos da fecunda
Germânia, quando vão ao baile, mudem o temperamento com que marcham
à guerra, e façam correr nas veias cerveja em vez de sangue.
A ser assim, pode a valsa ter naqueles países as honras de uma dança
de sala. Em outra latitude, deve ser desterrada para os bailes públicos,
onde os homens gastos vão buscar as sensações fortes,
que o ébrio pede ao álcool.
Há nessa dança impetuosa alguma cousa que lembra os mistérios
consagrados a Vênus pela Grécia pagã, ou o delírio
das bacantes quando agitavam o tirso. “É, na frase do grande poeta,
a valsa impura e lasciva, desfolhando as mulheres e as flores.”
Nunca a linguagem, que esse rei da palavra, chamado Victor Hugo, subjuga e
maneja como um brioso corcel, prestou-se à mais eloqüente expressão
do pensamento. É realmente a desfolha da mulher, a despolpa de sua
beleza e de sua pessoa, o que a valsa impudica faz no meio da sala, em plena
luz, aos olhos da turba ávida e curiosa.
As senhoras não gostam da valsa, senão pelo prazer de sentirem-se
arrebatadas no turbilhão. Há uma delícia, uma voluptuosidade
pura e inocente, nessa embriaguez da velocidade. Aos volteios rápidos,
a mulher sente nascer-lhe as asas, e pensa que voa; rompe-se o casulo de seda,
desfralda-se a borboleta.
Mas é justamente aí que está o perigo. Esse enlevo
inocente da dança, entrega a mulher palpitante, inebriada, às
tentações do cavalheiro, delicado embora, mas homem, que ela
sem querer está provocando com o casto requebro de seu talhe e traspassando
com as tépidas emanações de seu corpo.
O que é a valsa, mostrava-o aquele formoso par que girava na sala;
e ao qual entretanto defendia dos olhos maliciosos a casta e santa auréola
da graça conjugal, com que Deus os abençoara.
Fernando arrependia-se de ter cedido ao desejo da mulher e começava,
ele um dos impertérritos valsistas da Corte, a recear a vertigem.
Seu olhar alucinado pelas fascinações de que se coroava naquele
instante a beleza de Aurélia, tentou desviar-se e vagou pela sala.
Voltou porém atraído por força poderosa e embebeu-se
no êxtase da adoração.
Quando a mão de Aurélia calcava-lhe no ombro, transmitindo-lhe
com a branda e macia pressão o seu doce calor, era como se todo seu
organismo estivesse ali, naquele ponto em que um fluido magnético o
punha em comunicação com a moça.
Depois essa estranha sensação tornou-se ainda mais intensa.
Já não tinha consciência de si para perceber distintamente
a pressão dos dedos em seu ombro. O que se passava nele era uma verdadeira
intuscepção da forma peregrina dessa mulher, que ele via em
face, mas sentia dentro em si.
Aurélia não consente, como outras, que seu cavalheiro a conchegue
ao peito. Entre os bustos de ambos mantém-se a distância necessária
para que não se unam com o volver da dança; e tanto que deixam
passagem à claridade do gás.
Entretanto a sensação viva que Fernando experimenta neste momento
é a do contato estreito, íntimo, do talhe palpitante da moça,
como se o tivesse fechado em seus braços; sua calma, semelhante ao
molde que concebe a cera branda, vazava em si formosa estátua e recebia
o seu toque mavioso.
Se o colo de Aurélia pulsava rápido no ofego da valsa, embora
os rofos do decote nem de leve roçassem o colete, ele, fechando os
olhos e recolhendo-se, palpava em seu peito o rijo galbo do seio voluptuoso.
Se um retraimento lascivo, peculiar à raça felina, imprimia
ao dorso de Aurélia uma flexão ondulosa, que dilatando-se no
abalo nervoso, brandia o corpo esbelto, essa vibração elétrica
repercutia em todo o organismo de Seixas.
Era uma verdadeira transfusão operada pelo toque da mão da
moça no ombro do marido, e da mão deste na cintura dela; mas
sobretudo pelos olhos que se imergiam, e pelas respirações que
se trocavam.
Não há flor de aroma delicado, como a boca pura e fresca de
uma moça.
Outros perfumes conheço mais vivos, alguns fortes e excitantes: nenhum
tem a maga suavidade de um hálito de rosas, fragrância de sua
alma, que Aurélia infundia nos lábios do cavalheiro.
Neste deleite em que se engolfava, teve Seixas um momento de recobro, e
pressentiu o perigo. Quis então parar e pôr termo a essa prova
terrível a que a mulher o submetera, certamente no propósito
de o render a seu império, como já uma vez o fizera, naquela
noite do divã, noite cruel de que ainda conservava a pungente recordação.
Para preparar a parada, conteve a velocidade do passo. Percebeu Aurélia
o leve movimento, se não teve a repercussão do pensamento do
marido, antes que este o realizasse. Os lábios murmuraram uma palavra
súplice:
– Não!
As pálpebras ergueram-se; os grandes olhos, cheios de luz e de amor,
inundaram o semblante de Seixas, e cerraram-se logo levando-lhe toda a vontade
e consciência, como uma onda que depois de espraiar-se, reflui, trazendo
no seio quanto encontrou em sua passagem.
Seixas abdicou de si, e arrojou-se novamente no turbilhão.
Tudo isto se passara em breves momentos, durante o espaço que o par
valsante levara para descrever pelo vasto salão duas ou três
elipses.
Nos quatro cantos da casa, havia para ornato altas jardineiras de bronze
verdadeiro e de trabalho artístico, lembrança de Aurélia
que as encomendara da Europa.
Eram grupos agrestes, onde se tinham disposto os lugares dos vasos; mas
estes em vez de flores, recebiam plantas vivas, que formavam assim um bosque
a cada ângulo da sala, concorrendo para dar-lhe o aspecto campestre,
que tanto se aprecia agora e com razão.
Há nada mais encantador do que trazer o campo para dentro da cidade
e até a casa; do que entrelaçar com as magnificências
do luxo as galas inimitáveis da natureza?
No enlace da valsa, o lindo par, ansioso de espaço, e sentindo-se apertado
na sala, alongara a elipse até a extremidade, voltando por detrás
de uma das jardineiras, onde não estava ninguém naquela ocasião.
Houve um ápice, rápido como o pensamento, em que o par achou-se
oculto pelas longas palmas de uma musácea, que se arqueavam graciosamente
em umbela. Nesse momento um relâmpago cegou-os a ambos.
Duas rosas se embalam cada uma em sua haste à aragem da tarde; inclinam
de leve o cálix e frisam-se roçando às pétalas.
Assim tocaram-se as frontes de Aurélia e Fernando, e os lábios
de ambos afloraram-se no sutil perpasse.
Foi um relance. O elegante par sumira-se atrás da folhagem, e já
emergia da sombra e nadava na claridade deslumbrante da sala que ia de novo
atravessar na elipse fugaz.
Mas Fernando sentiu na face um sopro gelado. Olhou: Aurélia estava
desmaiada em seus braços. A gentil cabeça ao desfalecer não
vergara para o peito. Como se a prendesse o ímã dos olhos que
a enlevara, inclinou à espádua do cavalheiro, com o rosto voltado
para ele.
Os lábios descorados moviam-se brandamente, como se a sua alma, que
ali ficara, estivesse conversando com a outra alma que ali passara.
Seixas ergueu a mulher nos braços e levou-a da sala.
V
No meio do alvoroço causado pelo incidente, enquanto acudiam médicos,
vinham os sais e corriam as amigas, umas inquietas, e outras curiosas, choviam
os comentos.
– Que imprudência!
– Aquele desespero!… Eu logo vi!
– E ela que não tem costume de valsar.
– Quis fazer-se de forte!
– Não é, senhora; aquilo foi o vestido. Não vê
como acocha a cintura.
– Ora! Romantismos!… dizia Lísia com um muxoxo, e acrescentou para
Adelaide: Acredita no desmaio?
– Pensa que foi fingimento?
– Requebros com o marido. Queria que ele a carregasse no meio da sala e à
vista de todos. Gosta de mostrar que Seixas a adora e derrete-se por ela!
Pudera não! Uma boneca de mil contos!…
Nesse tema continuou a menina, que tinha a balda muito comum de falar como
um realejo, pensando que assim abismava os outros com um espírito gasoso,
quando ao contrário aguava o que a natureza lhe dera.
Entretanto Seixas tinha conduzido a mulher ao toucador e deitara o belo
corpo desmaiado em um sofá. Estava inquieto, mas não aflito.
No transportar a moça havia sentido o calor de sua epiderme e o pulsar
do coração. Não passava o acidente de ligeira síncope.
Com efeito, antes que a inundassem de éter ou álcali, e que
lhe desatassem a cintura, Aurélia abriu os olhos e arredou com um gesto
as pessoas que se apinhavam junto ao sofá.
– Não é nada: uma tonteira, já passou.
O médico que tomava-lhe o pulso confirmou, limitando-se a recomendar
além do repouso, o desafogo do vestido para respirar melhor.
– Não é preciso; basta que me deixem espaço, respondeu
Aurélia.
Retiraram-se todas as senhoras e voltaram à sala. D. Firmina demorou-se
com intenção de não deixar a moça; mas esta pediu-lhe
que a subsituísse nas funções de dona da casa.
– Fernando fica. Vá para a sala; e faça continuar a dança.
Estou boa; não tenho nada. Se constrangerem-se, é que me incomodam;
cismarei que estou doente!
D. Firmina riu-se, inclinou-se para beijar a moça na testa e voltou
à sala. Ao aproximar-se da porta viu alguns curiosos que espiavam para
dentro, e cerrou as duas bandas fechando-as com a aldraba.
Aurélia ficara deitada no sofá, de costas, na posição
inclinada em que Seixas a colocara sobre as almofadas. Quando D. Firmina afastou-se,
ela cerrara outra vez as pálpebras, e engolfou-se no sonho delicioso
a que a tinham arrancado.
Sua mão tateou hesitando pela borda do sofá, e encontrou a
de Seixas que estava sentado junto dela, e contemplava a formosa mulher, ainda
mais bela nesse langue delíquio, do que em suas deslumbrantes irradiações.
– Eu caí na sala?… murmurou Aurélia sem abrir os olhos,
e corando de leve.
– Não, respondeu Seixas.
– Quem segurou-me?
– Podia eu confiá-la a outro? disse Fernando.
Os dedos da moça responderam apertando a mão do marido.
– Quando vi que tinha desmaiado, tomei-a nos braços e trouxe-a para
aqui.
– Para onde?
– Para seu toucador. Não conhece?
– Não me lembro.
Seixas calou-se. Aurélia permaneceu na mesma imobilidade, com a mão
do marido presa na sua, que às vezes recebendo uma ligeira vibração
contraía-se.
Nisto bateram discretamente à porta. Seixas fez movimento de erguer-se
para ver quem era; mas Aurélia ao fugir-lhe a mão que tinha
na sua, ergueu-se em pé de um jacto, e lançando os dois braços
ao colo do marido, curvou-o sob esse jugo irresistível.
Seixas foi obrigado a sentar-se outra vez; e Aurélia deixando-se
cair também sentada sobre o sofá, o retinha fechado na mimosa
cadeia, enquanto dardejava à porta o olhar colérico, erigindo
o busto com a retração serpe que enrista-se para o bote.
Que se passava nesse momento no espírito da moça exaltada
pelas comoções dessa noite?
Afigurava-se a Aurélia que achara enfim a encarnação
de seu ideal, o homem a quem adorava, e cuja sombra a tinha cruelmente escarnecido
até àquele instante, esvanecendo-se quando ela julgava tê-lo
diante dos olhos.
Agora que o achara, que ele aí estava perto dela, que tomara posse
de sua vida, parecia-lhe no desvario de sua alucinação que o
queriam disputar-lhe, arrancando-o de seus braços, e deixando-a outra
vez na viuvez em que se estava consumindo.
– Não!… Não quero!… exclamou com veemência.
Continuavam a bater.
– Podem abrir, Aurélia, e surpreender-nos!
Estas palavras do marido, ou antes o receio que as ditava, provocaram em Aurélia
um assomo ainda mais impetuoso.
– Que me importa a mim a opinião dessa gente?… Que me importa esse
mundo, que separou-nos! Eu o desprezo. Mas não consentirei que me roube
meu marido, não? Tu me pertences, Fernando; és meu, meu só,
comprei-te, oh! sim, comprei-te muito caro…
Fernando erguera-se como impelido por violenta distensão de uma mola
e tão alheio de si que não ouviu o fim da frase:
– Pois foi ao preço de minhas lágrimas e das ilusões
de minha vida, concluiu a moça, que ao movimento de Seixas soerguera-se
também suspensa pela cadeia com que lhe cingia o pescoço.
Seixas dominara o ímpeto que o precipitava, e conseguiu afogá-lo
no escárnio, que é uma válvula para essas grandes comoções
da alma. Sentou-se de novo, e murmurou ao ouvido da mulher, que o inundava
com seu olhar:
– O lenço?
– O lenço?… repetiu a moça maquinalmente.
E apanhando seu lenço de rendas que jazia sobre o sofá, olhou-o
como se buscasse nele explicação daquela singular pergunta do
marido.
Súbito estremeceu com abalo tão forte que a levantou em pé,
soberba de ira e indignação.
Não se desmanchara um só anel de seus cabelos, que se cacheavam
em torno da cerviz com a mesma correção, não se amarrotara
nenhum dos folhos de seu trajo vaporoso e todavia quem contemplasse Aurélia
nesse momento, acreditaria na desordem do lindo vestuário, tal era
a exacerbação que perspirava de toda sua pessoa.
A aurora serena dessa beleza, ainda há pouco dourada dos níveos
raios de luz coada pelo cristal fosco, transformara-se de repente na tarde
incendiada pelos sinistros clarões da borrasca. A estrela fizera-se
relâmpago; o anjo despira as asas celestes, e vestira o fulgor lucífero.
Aurélia soltou uma gargalhada:
– Tem razão!… É o único amor que pode haver entre nós!
A mão da moça que machucava convulsivamente o lenço,
ergueu-se para arremessá-lo a Seixas, com as palavras de desprezo que
acabava de proferir. Mas foi apenas um simulacro; a meio do gesto a mão
retraíra-se com energia.
– Se fosse possível que eu decaísse de minha virtude, e até
da minha altivez, havia um homem a quem não me rebaixaria jamais! De
todas as indignidades, a maior seria a profanação do único
amor de minha vida!
Com o sibilo da voz da moça ao soltar estas frases, misturou-se o esgarço
das rendas do lenço que ela acabava de despedaçar. Aproximando
então as tiras do gás que ardia em uma arandela ao lado do espelho
do toucador, comunicou-lhes a chama e deixou-as consumirem-se sobre o mármore.
Haverá quem acuse Seixas, de ter, no momento em que a mulher lhe
fazia confissão de seu amor e lhe oferecia um perdão espantâneo,
proferido aquela palavra que envolvia um insulto cruel.
Ele próprio, que pouco antes não achava uma expressão
bastante eloqüente para sua revolta, ali estava agora arrependido, com
os olhos compassivos fitos na mulher, que abria uma janela, e encostava-se
à sacada para banhar-se na brisa e na treva da noite.
E não só arrependia-se. Pela primeira vez duvidava disso a
que ele chamava sua honra.
Na mesma noite, em que Aurélia lhe infligira a atroz humilhação
desse consórcio monstruoso do sarcasmo com a vergonha, Seixas considerou-se
impossível para semelhante mulher. Não poderia amá-la
nunca mais, e ainda menos aceitar seu amor.
Até o momento da revelação afrontosa, seu procedimento
podia ser repreensível ante uma moral severa; mas não ia além
de um casamento de conveniência, cousa banal e freqüente, que tinha
não somente a tolerância, como a consagração da
sociedade.
Desde porém que esse casamento de conveniência fora convertido
em um mercado positivo, ele julgava uma infâmia para si, envolver sua
alma e afundá-la nessa transação torpe.
Seu corpo sim estava vendido; ele não o podia subtrair ao indigno
mister, desde que havia recebido o salário. Mas a alma nunca! Tivesse-o
embora essa mulher na conta de um especulador sem escrúpulos, ele sentia
que a honra não o abandonara; e que se outrora ia-se embotando, esse
acidente lhe restituíra o vigor.
Foi este pensamento, que Seixas sob a impressão das suspeitas relativas
ao Abreu, enunciou de um modo vago a Aurélia no diálogo que
travara com ela no princípio da noite.
Veio, porém, a valsa, e ele subjugado pela beleza da mulher, e por
sua prodigiosa fascinação, esqueceu todos os protestos de dignidade;
só viveu na adoração do ídolo, a que não
o conseguira arrancar sua apostasia.
O desmaio arrefeceu a exaltação do amante. Sentado à
cabeceira do sofá, onde Aurélia se conservava deitada, com os
olhos cerrados, apertando-lhe a mão por intermitentes pulsações
dos dedos, ele não se pôde esquivar a uma reflexão, que
o reclamava.
Aquela vertigem súbita na circunstância em que se dera, e tão
prontamente dissipada, seria uma afetação? Não estaria
a moça representando uma cena da comédia matrimonial que a divertia?
Seixas, apesar da revolução que nele se havia operado nos últimos
seis meses, ainda não gastara de todo seus hábitos de homem
de sociedade para quem a vida é uma série de etiquetas e cerimônias,
regradas pelo uso.
A rotina da sala não conhece os movimentos impetuosos e desordenados
das paixões. Ali tudo se faz com regra e medida. Uma menina que desde
os sete anos se habitua a entregar os lábios às carícias
dos amigos da casa, recebe o seu primeiro beijo de amor com um pudor gracioso,
mas sereno.
E o homem que sugara tantas bocas travessas, como se fossem os cálices
de cristal rosa onde libava goles de moscatel; esse homem que tivera em seus
braços, calmas e risonhas, tantas namoradas, podia compreender que
a ponta da asa de um ósculo, pois não fora outra cousa, causasse
um desmaio?
Aurélia tinha em suas relações com o marido, especialmente
nos instantes de animação, gestos e atitudes de uma grande expressão
dramática. Esses movimentos naturais não eram senão acenos
das paixões e sentimentos de sua alma; pareciam artísticos porque
revestiam-se de uma suprema elegância.
Seixas, admirando-os como poeta, suspeitava-os de teatrais; por isso entrou-o
a desconfiança de que Aurélia preparava-lhe com todos aqueles
rendimentos uma nova humilhação, igual, senão maior,
do que a da noite do baile, naquele mesmo toucador.
Foi nessa disposição de espírito que penetrou-o como
a lâmina de um estilete, a frase comprei-o bem caro, que o lábio
de Aurélia vibrava com viva entonação. Não ouviu
mais nada; fez-se em sua consciência um imenso deserto que enchia a
só idéia do mercado aviltante.
O pensamento que o dominara antes da valsa, e que um enlevo passageiro havia
sopitado, ressurgiu.
Ele refugiou-se no sarcasmo, que desde o casamento era um derivativo às
sublevações de sua cólera. Sem intenção
de injúria, somente como acerba ironia, soltou a palavra de que se
arrependera.
Entretanto Aurélia na janela derramava a vista pelo azul da atmosfera
onde se recortava o perfil das montanhas. Uma nebulosa vislumbrava o seu vago
lampejo.
A moça ficou olhando-a um instante; e cuidou ver o rasto de sua alma
que subia ao céu.
– O ar da noite deve fazer-lhe mal, sobretudo agitada como está,
disse Fernando timidamente.
Julgando que a moça não o ouvira, aproximou-se e repetiu sua
observação.
– Engana-se! Estou calma; perfeitamente calma! disse a moça, e para
exibir a prova de sua afirmação deixou a sacada, e expôs-se
à claridade do gás.
Tinha no semblante, e em todo o aspecto, a inalterável serenidade
de que sabia revestir-se, quando queria conter e domar os impulsos da paixão.
Fernando deu um passo e ia talvez pedir-lhe perdão, quando a porta
abriu-se. A pessoa que batera antes, como não lhe abrissem, insistiu;
mas desta vez resolveu-se a levantar a aldraba. Era D. Firmina, que vinha
saber notícias da moça.
– Bravo! Já de pé?
– E pronta para dançar! respondeu Aurélia rindo-se.
Aproximou-se do psichê, compôs as ligeiras perturbações
de seu traje, anelou um cacho dos cabelos, consertou os fofos da saia, e tomou
o braço do marido para entrar na sala.
– Não faça imprudências, Aurélia! disse D. Firmina.
– Não tenha susto! Agora estou preservada.
A viúva não entendeu. Aurélia, afastando-se, atirou
em voz rápida esta advertência ao marido, cuja fisionomia conservava
os traços das comoções por que passara:
– Sejamos desgraçados, mas não ridículos. Tudo, menos
dar minha vida em espetáculo a este mundo escarninho.
Todos estes incidentes foram curtos e sucederam-se tão breves, que
um quarto de hora depois do desmaio, Aurélia entrava no salão
pelo braço do marido, tão fresca e viçosa como no princípio
do baile, e ainda mais deslumbrante de beleza.
Seus convidados ao vê-la caminharam ao seu encontro, mas não
puderam apresentar-lhe suas felicitações, porque a orquestra
despejava o mesmo turbilhão da valsa de Strauss, e Aurélia volteava
na sala com o marido.
– Que loucura!
Foi a voz que se ouviu de todos os cantos, Seixas quisera demovê-la,
mas ela o emudecera com uma palavra:
– É a reparação que o senhor me deve.
Valsaram tanto tempo quanto da primeira vez, e o mínimo alvoroço
não agitou esses dois corações, que ainda há pouco
se confundiam na mesma pulsação, e agora batiam isolados e cadentes,
apenas agitados pelo movimento, como ponteiros de relógio. Havia entre
ambos um oceano de gelo.
Acabada a valsa, Aurélia recebeu risonha as felicitações
das amigas e convidados; Seixas, censuras e exprobrações por
ter consentido em dançar segunda vez com a mulher.
– Podia ser-lhe fatal!
– Era preciso curar-me da vertigem, acudiu Aurélia rindo. Ele tinha
obrigação.
– E agora está curada? perguntou o general.
– Oh! para sempre!
O baile continuou cada vez mais animado.
VI
Tinha saído o último dos convidados. Seixas voltava de conduzir
ao carro D. Margarida Ferreira. Aurélia que o esperava, deu-lhe boa-noite
e ia retirar-se. Fernando a atalhou:
– Desejo dar-lhe uma explicação!
– É inútil.
– Não tive intenção de ofendê-la.
– Decerto; um cavalheiro tão delicado não podia injuriar uma
senhora.
– Uma cousa desagradável que ouvi e que me afligiu profundamente,
tirou-me do meu natural. Não estava calmo; em todo o caso referi-me
unicamente à minha posição, sem desígnio de qualquer
alusão…
– É a história de ontem, que o senhor me está contando!
exclamou Aurélia e apontou para o mostrador da pêndula que marcava
duas horas. Tratemos de amanhã. Vamos dormir.
Fazendo ao marido uma risonha mesura, a moça deixou-o na sala e recolheu-se
a seus aposentos, onde a esperava a mucama para despi-la.
– Podes ir; não preciso de ti.
Aurélia conservava de sua pobreza o costume de bastar-se para o serviço
de sua pessoa; como não gostava de entregar seu corpo a mãos
alheias, nem consentia que outros olhos que não os seus lhe devassassem
o natural recato, poupava sempre que podia a mucama, a qual já não
estranhava esse modo.
Fechada a porta por dentro, a moça em um instante operou a sua metamorfose.
O trajo de baile ficou sobre o tapete, defronte do espelho, como as asas da
borboleta que finou-se no seio da flor, surgiu dali, daquele desmoronamento
de sedas, a casta menina envolta em seu alvo roupão de cambraia.
Sentou-se no sofá onde estivera poucas horas antes com Seixas, e
ficou pensativa. Até que levantou-se para ir correr a cortina ao quadro
e acender a arandela próxima.
Esteve contemplando o retrato e falou-lhe, como se tivesse diante de si
o homem, de que via a imagem.
– Tu me amas!… exclamou cheia de júbilo. Negues embora, eu o conheço;
eu o vejo em ti, e sinto-o em mim! Um homem de fina educação,
como és, só insulta a mulher quando a ama e com paixão!
Tu me insultaste, porque o meu amor era mais forte que tu, porque aniquilava
a tua natureza, e fez do cavalheiro que és, um déspota feroz!
Não te desculpes, não! Não foste tu, foi o ciúme,
que é um sentimento grosseiro e brutal. Eu bem o conheço!…
Tu me amas!… Ainda podemos ser felizes! Oh! então havemos de viver
a dobro, para descontar esses dias que desvivemos!
A gentil senhora apoiou-se à moldura do quadro, e outra vez ficou pensativa.
– E por que não podemos ser felizes desde este momento? Ele está
ali, pensando em mim; talvez me espera! Basta-me abrir aquela porta. Virá
suplicar-me seu perdão, eu o receberei em meus braços; e estaremos
para sempre unidos!
Um sorriso divino iluminou a formosa mulher. Ela desceu do estrado e atravessou
a câmara de dormir, com o passo trêmulo, mas afouto, e as faces
a arderem.
Chegou à porta; afastou o reposteiro azul; aplicou o ouvido; sorriu;
murmurou baixinho o nome do marido; recordou as notas- apaixonadas com que
a Stolz cantava a ária da Favorita: Oh! mio Fernando!
Afinal procurou a chave. Não estava na fechadura. Ela própria
a havia tirado, e guardara na gaveta de sua escrivaninha de araribá-rosa.
Voltou impaciente para procurá-la. Quando sua mão tocou o aço,
a impressão fria do metal produziu-lhe um arrepio. Rejeitou a chave,
e fechou a gaveta.
– Não! é cedo! É preciso que ele me ame bastante para
vencer-me a mim, e não só para se deixar vencer. Eu posso, não
o duvido mais, eu posso, no momento em que me aprouver, trazê-lo aqui,
a meus pés, suplicante, ébrio de amor, subjugado ao meu aceno.
Eu posso obrigá-lo a sacrificar-me tudo, a sua dignidade, os seus brios,
os últimos escrúpulos de sua consciência. Mas no outro
dia ambos acordaríamos desse horrível pesadelo, eu para desprezá-lo,
ele para odiar-me. Então é que nunca mais nos perdoaríamos,
eu a ele; o meu amor profanado, ele a mim, o seu caráter abatido. Então
é que principiaria a eterna separação.
Depois de breve pausa, continuou falando outra vez ao retrato:
– Quando ele convencer-me do seu amor e arrancar de meu coração
a última raiz desta dúvida atroz, que o dilacera; quando nele
encontrar-te a ti, o meu ideal, o soberano de meu amor; quando tu e ele fores
um, e que eu não vos possa distinguir nem no meu afeto, nem nas minhas
recordações; nesse dia, eu lhe pertenço… Não,
que já lhe pertenço agora e sempre, desde que o amei!… Nesse
dia tomará posse de minha alma, e a fará sua!
Afastando-se, a moça levava ainda o pensamento de seu amor que subiu
ao céu na primeira frase da prece da noite.
– Concedei, meu Deus, que seja breve! dizia ela cruzando as mãos,
de joelhos no escabelo, e com os olhos em um crucifixo de prata e ébano.
Terminada a prece, Aurélia fechou o gás, deixando apenas no
toucador uma lamparina, cujos frouxos vislumbres esclareciam o rosto do retrato.
De sua cama, onde se acabava de aninhar como uma rola, entre os finos lençóis
de irlanda, com a cabeça no travesseiro, ela via pela porta aberta,
lá no toucador, a imagem querida; e com os olhos nela adormeceu, passando,
como costumava, de um sonho a outro, ou antes continuando o mesmo e único
sonho, que era toda sua vida.
Os choques dessas duas almas, que uma fatalidade prendera, para arrojá-las
uma contra outra, produziam sempre afastamento e frieza durante algum tempo.
A remissão foi mais sensível e duradoura depois da noite do
baile, porque também a crise fora mais violenta.
Durante estas pausas, Aurélia observava o marido, e assistia comovida
à transformação que se fora operando naquele caráter,
outrora frágil, mundano e volúbil, a quem uma salutar influência
restituía gradualmente à sua natureza generosa.
Ela adivinhava ou antes via, que sua lembrança enchia a vida do marido
e a ocupava toda. A cada instante, na menor circunstância, revelava-se
essa possessão absoluta que tomara naquela alma. Havia em Fernando
uma como repercussão dela.
Sabia que a atenção do marido nunca a deixava de todo, embora
a solicitassem assuntos da maior importância, ou pessoas de consideração.
Na sociedade, como em família, ela descobria através dos disfarces
o olhar que a buscava, muitas vezes no reflexo do espelho, ou por entre uma
fresta de cortina; e quando não era o olhar, o ouvido preso à
sua voz.
As flores que Seixas regava eram as hortênsias, suas prediletas, dela
Aurélia. Quando aproximava-se do viveiro, os canários mimosos
da senhora mereciam todas as suas carícias. No jardim, como em casa,
os sítios favoritos, fora ela quem os escolhera.
Aurélia não gostava de Byron, embora o admirasse. Seu poeta
querido era Shakespeare, em quem achava não o simples cantor, mas o
sublime escultor da paixão.
Muitas vezes aconteceu-lhe pensar que ela podia ser uma heroína dessa
grande epopéia da mulher, escrita pelo imortal poeta. No dia do casamento,
sua imaginação exaltada chegou a sonhar uma morte semelhante
à de Desdêmona.
Seixas renegara o poeta de seus antigos devaneios, para afeiçoar-se
ao trágico inglês, que ele outrora achava monstruoso e ridículo.
Lia os mesmos livros que ela; os pensamentos de ambos encontravam-se nas páginas
que um já tinha percorrido, e confundiam-se. Aplaudiam reciprocamente
ou censuravam.
Poucas mulheres possuíam como Aurélia, esposo tão dedicado
e tão preso à sua vida. Seixas não estava ausente senão
o tempo do emprego; o resto do dia passava-o em sua companhia, na intimidade
doméstica, ou nas visitas e reuniões.
Desde os primeiros dias, no seu propósito de passiva obediência,
o marido se impusera a tarefa de lhe dar uma conta minuciosa das horas passadas
fora de casa, dos acidentes da viagem, dos encontros que fizera, e até
dos trabalhos da secretaria.
Aquilo que não passava de uma ironia do marido, veio a tornar-se
um costume; e ela que a princípio incomodara-se com a fingida subserviência,
não pôde mais tarde dispensar essa confidência que lhe
restituía a pequena fração da existência de Seixas,
vivida longe de si.
Mas não era unicamente a possessão dela pelo amor, que se
operara em Seixas; era também a assimilação do caráter.
Como todas as almas que se regeneram, a de Seixas exercia sobre si mesma
uma disciplina rigorosa. Tinha severidade que em outras circunstâncias
haviam de parecer ridículas. A desculpa, o inofensivo pretexto tomavam
para ele proporções de mentira. A amabilidade constante e geral
era a hipocrisia; os indiferentes não tinham direito senão à
polidez, e não podiam usurpar os privilégios da amizade.
Algumas vezes, Aurélia de parte o ouvira conversando acerca de outros
reprovar essa existência de negaças e galanteios, em que ele
consumira os primeiros anos da mocidade. Em qualquer ocasião revelava-se
o seu modo grave e austero de considerar agora a sociedade, e de resolver
as questões práticas da vida.
Como uma cera branda, o homem de coração e de honra se formara
aos toques da mão de Aurélia. Se o artista que cinzela o mármore
enche-se de entusiasmos ao ver a sua concepção, que surge-lhe
do buril, imagine-se quais seriam os júbilos da moça, sentindo
plasmar-se de sua alma, a estátua de seu ideal, encarnação
de seu amor.
Assim, apesar da esquivança que sucedera ao baile, o drama dessa
paixão encaminhava-se a um desenlace feliz, quando um incidente veio
complicá-lo, perturbando seu desenvolvimento e precipitando o desfecho.
Já se tinha desvanecido a impressão da cena violenta, e voltava
aos poucos a calma intimidade.
Fernando saíra para a repartição. Ao chegar à
cidade avistou-se com um negociante seu antigo conhecido.
– Estimo muito encontrá-lo. Tenho uma boa notícia a dar-lhe.
Aquele privilégio afinal desencantou-se.
– Qual privilégio? perguntou Seixas surpreso.
– Ora! Já esqueceu? Não faz mais caso dessas ninharias? O
nosso privilégio de minas de cobre…
– Ah! já sei! atalhou o moço um tanto perturbado.
– Pois o Fróis sempre conseguiu vendê-lo em Londres. Deram
uma bagatela; cinqüenta contos de réis. Em todo o caso é
melhor que nada, porque do tal cobre das minas, meu caro, eu já não
esperava nem um tacho. Veio-me a notícia pelo último paquete;
fazia tenção de procurá-lo todos os dias, e faltou-me
o tempo. Felizmente encontrei-o. Desculpe.
– Não há de que, Sr. Barbosa.
– Deduzidas umas despesas que se fizeram, toca-nos a cada um cousa de quinze
contos e pouco. Quando quiser receber sua parte, é mandar-me a cautela
que lhe passei.
– A cautela?
– Aposto que a vendeu?
– Não; devo tê-la em casa.
– Pois à vista dela… Passar bem.
Despediu-se o Barbosa, e Seixas continuou seu caminho, mas distraído
e perplexo. A notícia dada pelo negociante sugeria-lhe várias
e encontradas reflexões.
Aquele privilégio era um póstumo da antiga existência,
que findara-se com o seu casamento. Começara a desenvolver-se a febre
das empresas; um espertalhão teve a idéia da exploração
de umas minas de cobre em São Paulo; e para obter a concessão
lembrou-se de associar à especulação um negociante que
fornecesse os fundos, e um empregado que abrisse os canais administrativos.
Seixas achava-se em relações com o Fróis, e veio a
ser o empregado escolhido. A seu pedido o requerimento subiu ao ministro,
como um balão, cheio do gás de pomposas informações.
O despacho não se demorou. O oficial de gabinete o alcançara
fumando um charuto com seu ministro, e dando-lhe os mais amplos esclarecimentos,
não sobre a projetada empresa, mas sobre uma bela mulher, por quem
a Excelência se apaixonara.
Concedido o privilégio, tratou o Fróis de negociá-lo,
muito esperançoso de obter pelo menos uns trezentos contos. Mas essas
esperanças mofaram, e os três associados chegaram a acreditar
que suas minas de cobre em papel valiam menos de que o tacho velho, pelo qual
os carcamanos sempre dão uma meia pataca.
Seixas não pensou mais nisso, e desde então ficou na ignorância
das tentativas do Fróis e de seus cálculos de probabilidade,
até receber nesse momento a notícia da venda do privilégio,
que lhe trazia de repente e inesperadamente um lucro de quinze contos.
O primeiro e o mais vivo movimento que em Seixas produziu a notícia
foi de alegria pelo ganho dessa quantia que tinha para ele um preço
incalculável. Assaltou-o, porém, certo desgosto, pela origem
daquele dinheiro. A intervenção de um empregado público
nestes negócios, se outrora lhe parecera lícita, já não
era apreciada por ele com a mesma tolerância.
Quaisquer porém que fossem seus escrúpulos, ele carecia desse
dinheiro, e julgava-se com direito de empregá-lo em serviço
de tamanho alcance, como era aquele a que o destinava, salva mais tarde a
restituição da quantia por um meio indireto, para descargo desses
escrúpulos de consciência.
Tomada esta resolução, sobreveio-lhe um receio acerca da cautela
passada pelo negociante como capitalista da empresa. Não recordava-se
de ter visto o papel desde muito tempo, talvez três anos. Onde andaria?
Na queima que fizera em vésperas de casar-se, teria sido poupada essa
inutilidade?
Grande importância devia Seixas ligar a esse negócio, pois estando
já a trabalhar na repartição, interrompeu sua rigorosa
assiduidade. Meteu-se em um tílburi, e correu a casa, esperando achar-se
de volta em uma hora.
VII
Deviam ser onze horas, quando o tílburi chegou a Laranjeiras.
Seixas embora não pensasse em ocultar-se, desejava para não
despertar a curiosidade, que em casa se não apercebessem de sua volta.
Mandou parar o tílburi a alguma distância, e subiu sem rumor
a escada particular que levava a seus aposentos.
A porta do gabinete estava fechada interiormente, e ele esquecera essa manhã
de levar a chave. Foi obrigado portanto a dar a volta pela saleta. Àquela
hora Aurélia e D. Firmina costumavam estar no interior, passaria sem
que o vissem.
Estranhou achar a porta da saleta cerrada, embora não fechada com
o trinco; supôs que não estando presa ao rodapé pelo ferrolho,
o vento a tivesse encostado.
Empurrou-a devagar e entrou, para estacar na soleira pálido e estupefato.
No sofá colocado ao longo da parede, que lhe ficava à esquerda,
viu Aurélia sentada, e conversando de um modo animado e instante com
Eduardo Abreu que ocupava a cadeira próxima, e tinha a cabeça
baixa.
Erguendo os olhos sem animar-se a fitá-los na moça, deu o
mancebo com o vulto transtornado de Seixas em pé na porta, a encará-lo;
e levantou-se por um impulso irresistível.
Foi então que Aurélia avistou o marido, cuja presença
imprevista e semblante demudado a perturbaram, mas rápido, quase imperceptivelmente.
Com a segurança que tinha de si, prontamente recobrou-se.
– Pode entrar, Fernando! disse ela a sorrir.
– Não quero perturbá-los, respondeu Seixas desprendendo a
custo a voz dos lábios secos.
– O negócio é urgente, tornou ela, mas pode bem suportar a
demora de alguns minutos. Sente-se, Sr. Abreu!
Seixas dera alguns passos automaticamente pela sala adentro.
– Não foi hoje à repartição? perguntou Aurélia
para disfarçar a confusão dos dois, o marido e o hóspede.
– Voltei à procura de um papel que me esqueceu. Com licença!
Seixas aproveitara o primeiro ensejo para fugir desse lugar, onde temia representar
alguma cena ridícula ou medonha. Fazendo um cumprimento a esmo, retirou-se
apressado na direção de seus aposentos.
Se até ali tinha necessidade de dinheiro, agora mais do que nunca.
Foi direito à sua secretária; abriu a gaveta onde guardava os
seus papéis antigos; espalhou-os pelo tapete de mistura com outros
objetos, e encontrando afinal a cautela que procurava, saiu precipitadamente
pela escada particular.
Parou na porta para deixar passar o Abreu que descia; quando o viu longe,
meteu-se no tílburi e voltou à cidade.
Aurélia, logo que o marido retirou-se, estendeu a mão a Abreu
dizendo-lhe:
– Não tem o direito de recusar, e espero que não me prive desta
satisfação. Adeus, seja feliz.
O mancebo apertou comovido a mão gentil que lhe era oferecida com
tanta sinceridade, e balbuciando expressões de reconhecimento, despediu-se.
Apenas ele desapareceu na escada, Aurélia dirigiu-se ao gabinete
do marido. Bateu à porta, e chamou-o; não recebendo resposta,
entrou. A primeira cousa que viu foi a gaveta da secretária escancarada,
e a ruma de papéis atirada sobre o pavimento.
A moça certificou-se que Seixas não estava em casa; adivinhou
que saíra pela escada particular cuja porta fechara levando a chave.
Lançando um olhar aos papéis esparsos e resistindo à
ânsia de conhecer aquelas relíquias de um passado, que não
lhe pertencia, encaminhava-se à porta para sair. Eis que descobriu
entre maços de cartas, um trabalho de tapeçaria.
Apanhou-o para examinar, com simples curiosidade artística. Era uma
fita de marcar folha de livro. Tinha bordados a fio de ouro, de um lado a
palavra amor; do outro lado em semicírculo o nome Rodrigues de Seixas;
no centro do qual estava um monograma composto de um F e um A entrelaçados.
Esta prenda de Adelaide Amaral, e a alusão ao próximo casamento
feita na comunidade do apelido, não diziam novidade a Aurélia.
Ela sabia cousas talvez mais pungentes para seu amor; porém o tempo
já as tinha expungido da memória. Eram a cicatriz que essa lembrança
crua veio reabrir e ulcerar.
Todo aquele passado doloroso, de que mal começava a desprender-se,
surgiu de novo ante ela, como um espetro implacável. Curtiu novamente
em uma hora que ali esteve imóvel todas as aflições e
angústias, que havia sofrido durante dois anos. Esta fita escarlate
queimava-lhe os olhos e os dedos como uma lâmina em brasa, e ela não
tinha forças para retirar a vista e a mão das letras de ouro
e púrpura, que entrelaçavam com o nome de seu marido, o nome
de outra mulher.
Afinal prorrompeu a indignação. A seda rangiu entre as mãozinhas
crispadas, que debalde tentaram espedaçá-la. Não conseguindo
seu intento, a moça levou à boca a fita; num soberbo ímpeto
de cólera, cortou com os dentes os fios que teciam as letras, e dilacerou
a prenda de sua rival.
Atirou então de si com asco os fragmentos, mas em lugar onde não
escapassem à vista do marido, e foi encerrar-se em seu toucador.
Seixas entrou à hora habitual. De ordinário passava pela saleta,
onde sempre encontrava a mulher, que já vestida para a tarde, vinha
esperá-lo. Trocavam algumas palavras, depois do que ele ia ao seu quarto
preparar-se para o jantar.
Nesse dia subiu pela escada particular. Já estava senhor de si; mas
quis evitar o encontro, naturalmente porque necessitava daqueles momentos.
Efetivamente, logo que chegou ao gabinete, sem dar-se ao trabalho de apanhar
os papéis que jaziam pelo chão, nem aperceber-se dos fragmentos
da fita que estavam em cima da secretária, abriu uma gaveta de segredo,
tirou um livrinho de notas, de que extraiu alguns algarismos. Sobre estes
começou uma série de cálculos e operações
que o absorveram até o momento de chamá-lo o criado para jantar.
Aurélia não podia ocultar sua irritação. Crivou
o marido de remoques e epigramas. Nem a inofensiva D. Firmina escapou a essa
veia sarcástica; mas o alvo principal foi Adelaide, sobre quem choveram
as alusões.
Seixas mostrou-se indiferente às provocações. Deixou
passar os motejos sem redargüir; mas sua fisionomia desdenhosa e sobranceira
opunha à exacerbação da moça fria e surda resistência
que ainda mais a irritava.
O orgulho contrariado de Aurélia acerava o gume às suas armas,
para abater aquela atitude de ameaça que a afrontava; mas não
o conseguiu. As lutas constantes tinham acabado por aguerrir o caráter
de Fernando e afinar-lhe a têmpera.
Ao erguer-se da mesa, a moça lançou ao marido um olhar de
desafio, e foi esperá-lo ao jardim, no lugar retirado onde costumavam
reunir-se de tarde para conversarem em mais liberdade.
Fernando achou-a sentada em um banco rústico, na posição
altiva e imperiosa de uma rainha que se prepara a ouvir as súplicas
dos súditos prostrados a suas plantas. Descansava o braço direito
sobre a copa enfolhada de um bogarim, cujas flores esmagava entre os dedos.
Seixas sentou-se defronte:
– Não tenho e nunca tive, senhora, pretensões a seu amor. Seria
uma rematada loucura, e eu acho-me no uso frio e calmo de toda a minha razão
para ver a barreira que nos separa. Também não tenho direito
de pedir-lhe contas de seus sentimentos, nem mesmo de suas ações,
desde que não ofendam aquilo que o homem preza acima de todos os bens.
Abdicando na senhora a minha liberdade e com ela a minha pessoa, uma cousa,
porém, não lhe transferi, e não o podia: a minha honra.
– E de que serve a mim esse traste, a sua honra? Não me dirá?
interrogou Aurélia com a sátira mais picante no olhar.
– Lembre-se que a senhora fez-me seu marido, e que eu ainda o sou. Vendesse-lhe
eu embora esse título e as obrigações que a ele correspondem,
a origem não importa; ele existe, e atesta-me esse direito reconhecido,
ou antes conferido por si mesma; o direito que tem todo o esposo, se não
à fidelidade da mulher, ao menos ao respeito da fé conjugal
e ao decoro da família.
– Ah! Deseja que se guardem as aparências? E contenta-se com isso!
– Por enquanto!
Aurélia relanceou um olhar com o intento de surpreender o pensamento
do marido na expressão da fisionomia:
– Terá a bondade de dizer-me qual é esse escândalo de
que se queixa?
– Já não se recorda? Acha muito naturais as liberdades que tem
deixado tomar esse moço, o Eduardo Abreu? Haverá um mês,
em uma noite de partida, a senhora conversava com ele de um modo que deu tema
às pilhérias do Moreira. Nessa ocasião não castiguei
a insolência desse fátuo para evitar uma cena.
– Foi na noite da valsa?
– Não contente com isso, leva a inconveniência a ponto de receber
aquele moço, na ausência de seu marido, e só, em colóquio
reservado, como os encontrei!
– Acabou?
– Creio que é bastante.
– Bem, toca-me a vez de responder. Como o confessou, não lhe devo
conta de minhas ações; só o homem a quem eu amasse teria
o direito de mas pedir. Quero, porém, supor um momento que o senhor
fosse esse homem, hipótese absurda, que eu figuro somente para mostrar-lhe
que ainda assim, é para estranhar a sua suscetibilidade.
– Oh! pareço-lhe um Otelo! disse Fernando a chasquear.
– Não, Otelo tinha razão em todos os seus ultrajes e brutalidades;
amava e com paixão. Mas o senhor não é aqui outra cousa
mais do que o advogado da decência.
Fernando esmagado pelo sarcasmo, contra o qual não podia reagir,
teve ímpetos de confessar a essa mulher toda a insânia do amor
que sentia, e depois, quando ela exultasse com seu triunfo e a humilhação
dele, abatê-la a seus pés.
VIII
Aurélia continuou com os olhos fitos nas alvas pétalas aveludadas
de um jasmim do Cabo:
– O recato é o mais puro véu de uma senhora. Feliz aquela que
vive à sombra do zelo materno, e só a deixa pelo doce abrigo
do amor santificado. Sua virtude tem como esta flor a tez imaculada, e o perfume
vivo. Essa ventura não me tocou; achei-me só no mundo sem amparo,
sem guia, sem conselho, obrigada a abrir o caminho da vida, através
de um mundo desconhecido. Desde muito cedo vi-me exposta às suspeitas,
às insolências e às vis paixões; habituei-me para
lutar com essa sociedade, que me aterra, a envolver-me na minha altivez, desde
que não tinha para guardar-me o desvelo de uma mãe ou de um
esposo.
A expressão tocante e melancólica da moça ao proferir
estas palavras comoveu Seixas, que já não se lembrava de seus
ressentimentos.
– Quando eu era uma menina ingênua, que não deixava a companhia
de sua mãe, e nunca se achara só em presença de outro
homem a não ser aquele a quem amava e, unicamente, amou neste mundo,
esse homem abandonou-me por outra mulher, ou por outra cousa; e foi entrelaçar
o seu nome ao de uma moça que era noiva de outrem. Mais tarde, encontrando-me
só no mundo, acompanhada por uma parenta velha, mãe de aparato
e amiga oficiosa, que ainda mais só me tornava, fazendo as vezes de
um reposteiro, esse homem desabusado casou-se comigo sem a menor repugnância.
A moça fitou os olhos no marido:
– Confesse que os escrúpulos desse senhor e o seu pânico de escândalo
vêm tarde e fora de tempo.
– Esses escrúpulos nascem da posição atual.
– Outro engano seu. Essa posição é um encargo, e não
um direito. O senhor falou-me em sua honra. Penso eu que a honra é
um estímulo de coração. Que resta dela a quem alienou
o seu? Se o senhor tem uma honra, e eu acredito, essa me pertence; e eu posso
usar e abusar dela como me aprouver.
– Assim, julga-se dispensada de guardar qualquer re-serva?
– Para o senhor e para o mundo julgo-me dispensada de tudo; nada lhes devo;
o que me dão, são apenas as homenagens à riqueza, e ela
as paga com o luxo e a dissipação. Sou senhora de mim, e pretendo
gozar da minha independência sem outras restrições, além
do meu capricho. Foi o único bem que me ficou do naufrágio de
minha vida; este ao menos hei de defendê-lo contra o mundo.
– Agradeço-lhe ter me desiludido a tempo. Acreditava que sacrificando
a liberdade, não renunciava à minha honra perante o mundo e
não me sujeitava a ser apontado como um indigno; a senhora entende
o contrário; aplaudo esta colisão; ela vem a propósito
para romper uma situação intolerável, e que já
durou demais para a dignidade de ambos.
– Sobretudo daquele que tendo alienado sua pessoa em um casamento livre
e refletido, conserva as prendas de outra noiva.
Seixas surpreso interrogou a mulher com os olhos.
– Nunca pensei ter feito a aquisição de seu amor nem contei
com a fidelidade que jurou; mas esperava do senhor ao menos a lealdade do
negociante, que depois de vendida a mercadoria, não substitui por outra
marca à do comprador.
Seixas não podia compreender esta alusão, cujo sentido só
atinou mais tarde, quando ao entrar no gabinete viu os destroços da
prenda de Adelaide. Quis pedir a explicação; mas avistou um
criado que dirigia-se para ali.
– Está aí o Sr. Eduardo Abreu que deseja falar à senhora.
– Bem! disse Aurélia despedindo com um gesto o criado que afastou-se.
Seixas custou a conter-se até esse momento:
– A senhora não pode receber esse homem!
– Era minha intenção. Tinha-o recebido esta manhã pela
última vez; mas à vista de sua desconfiança mudei de
resolução, respondeu Aurélia friamente.
– Pois saiba que hoje, depois que saiu de sua casa, encontrei-o de face
na rua, e recusei-lhe claramente o cumprimento, voltando-lhe as costas.
– Razão demais para que o receba. É preciso convencê-lo
de que foi uma simples distração de sua parte, para não
supor ele que o senhor honrou-o com uma suspeita, que ultraja-me.
Aurélia tomou o braço do marido e dirigiu-se à saleta,
onde acharam o Eduardo Abreu.
Os dois mancebos trocaram um cumprimento seco e cerimonioso; depois do qual
Seixas foi debruçar-se à janela ao lado de D. Firmina, e deixou
a mulher em liberdade com sua visita:
– Desculpe-me esta insistência; um dever de lealdade à justiça.
Hoje tive de repelir a um leviano certa insinuação vil, e logo
depois encontrando o Sr. Seixas, percebi diferença notável em
seu tratamento.
– Alguma preocupação.
– Afligiu-me a idéia de ser causa involuntária, ou mesmo pretexto
de qualquer desconfiança; e por isso vim desistir da promessa que me
fez do segredo sobre seus benefícios, e confessar eu próprio
a seu marido tudo quanto lhe devo a fim de que ele ainda mais admire a nobreza
de sua alma.
– Essa confissão o senhor não a fará; seria uma ofensa
grave à minha dignidade. Meu marido não carece de seu testemunho
para conservar-me na mesma elevada estima, inacessível aos assaltos
da maledicência. No dia em que eu precisasse justificar-me, estaria
divorciada, pois se teria extinguido a confiança, que é o primeiro
vínculo do amor, e a verdadeira graça do casamento. Esteja tranqüilo
pois; seu segredo não lançou a menor sombra em minha felicidade.
A moça disse essas palavras com uma emoção que persuadiu
a Abreu, e desvaneceu-lhe os receios.
De seu lado Seixas tinha refletido. Em véspera de uma resolução
definitiva que devia operar mudança profunda em seu destino, pareceu-lhe
fraqueza esse ridículo desabafo, semelhante aos agastamentos do ciúme
banal, que ele acreditava não sentir. Fazendo portanto um esforço,
aproximou-se do Abreu com a maneira cortês, por que o costumava tratar,
e confirmou assim a explicação dada por Aurélia ao incidente
da manhã.
Essa noite era de partida.
A reunião não foi numerosa, mas correu animada. Fernando esteve
muito alegre; nunca se ocupou tão ostensivamente da mulher como nessa
noite; não a deixava; as mais delicadas flores, as mais galantes finezas,
que se disseram naquela escolhida sociedade, foram dele a Aurélia.
Aurélia pelo contrário mostrou-se preocupada.
Essa amenidade do marido depois da cena do jardim a inquietava a seu pesar.
Por mais esforços que fizesse não podia arredar seu espírito
das palavras proferidas por Seixas naquela tarde, acerca de um rompimento,
que devia solver a suposta colisão.
Qual intenção era a sua? Nesse problema fatigou o espírito
durante a noite.
No dia seguinte Seixas almoçou às oito horas conforme o ordinário
e partiu para a repartição. A essa hora Aurélia ainda
estava recolhida; mas seu quarto de dormir, que ficava no pavimento superior,
deitava janelas para o jardim; da última delas via-se perfeitamente
a parte da sala de jantar onde estava a mesa.
A moça tinha uma devoção de todas as manhãs;
quando ouvia o rumor dos passos de Seixas na escada, saltava da cama, e envolta
na sua colcha de damasco para não perder tempo a vestir o roupão,
corria à janela. Ali escondida por entre as cortinas ficava um instante
a olhar o marido algum tempo; como para dar-lhe o bom-dia. Se estava muito
fatigada da véspera, se o sono lutava com ela, voltava ao ninho ainda
quente, e dormia novo sono.
Nessa manhã porém apesar de ter-se recolhido tarde e sentir
necessidade de repouso, demorou-se contemplando o semblante de Seixas com
um sentimento de tristeza, que não podia desterrar de si. Um pressentimento
vago advertia-lhe que não deixasse partir seu marido sob a impressão
dos sarcasmos implacáveis, que lhe tinha lançado na véspera.
Mas triunfou a altivez de seu amor, ainda magoada pelas recordações
pungentes que havia acordado em sua alma a vista do mimo de Adelaide.
Seixas saiu, e ela, para disfarçar a impaciência, logo depois
do almoço meteu-se no carro com D. Firmina e foi gastar o tempo na
Rua do Ouvidor, por casa das modistas e das amigas. Procurava nas novidades
parisienses, nas tentações do luxo, um atrativo que lhe cativasse
o pensamento e o arrancasse a suas inquietações.
Conseguiu atordoar-se até quatro horas em que chegou a casa.
Seixas não estava, o que era extraordinário. Não havia
exemplo de ter excedido dessa hora. Aurélia disfarçou para não
mostrar seu desassossego a D. Firmina e aos criados. Recolheu-se a seus aposentos
para mudar o vestuário; mas encostou-se ao portal da janela, com os
olhos no caminho.
Às cinco horas veio a mucama chamá-la:
– A senhora não vem jantar? Está na mesa.
– Quem mandou deitar?
– São cinco horas.
– E o senhor?
– Disse ao José para prevenir a senhora que talvez não voltasse
hoje, senão muito tarde.
– Quando falou o senhor com José?
– Esta manhã, na cidade.
– E não disse a razão por que se demorava?
– Não sei; eu vou chamá-lo.
O José interrogado nada adiantou, de modo que Aurélia permaneceu
na mesma inquietação; mas para não dá-la a perceber
a D. Firmina, atribuiu a ausência do marido à conferência
que ele devia ter com o ministro acerca de trabalhos importantes da repartição.
Quando sentavam-se à mesa, abriu-se a porta e entrou Seixas.
A surpresa não deu tempo a Aurélia para dominar o primeiro
impulso de sua alegria que logo arrefeceu ante a fisionomia de Seixas. Ele
trazia na expressão rígida e grave do rosto o cunho- de uma
resolução inflexível.
Entretanto não apartou-se da natural polidez. Desculpou-se delicadamente
com a mulher pela demora:
– Precisava concluir um negócio urgente, que lhe comunicarei.
– E concluiu?
– Felizmente.
– Perguntei, para saber se devia esperá-lo amanhã.
– Agora creio que não há de esperar mais por mim, tornou Seixas
com um sorriso fugaz.
Aurélia viu o sorriso, e sentiu a modulação especial
da voz.
Terminado o jantar, quando seguiam ambos pelos meandros recortados na grama,
Seixas disse à mulher:
– Desejo falar-lhe em particular.
– Vamos sentar-nos então, disse Aurélia indicando o sítio
onde habitualmente passavam as tardes.
– Aqui no jardim, não; prefiro um lugar mais reservado, onde não
venham interromper-nos.
– No meu toucador?
– Serve.
– Ou no seu gabinete?
– No seu toucador; é melhor.
– Já? perguntou Aurélia simulando indiferença.
– Não; basta à noite; e se não lhe incomoda, depois
do chá, antes de recolher-se.
– Como quiser! disse Aurélia abrindo as folhas das violetas, à
cata de uma flor.
Seixas tomou o regador da moça, guardado com os outros utensílios
de jardinagem em um ninho rústico praticado no muro, e entreteve-se
a regar os tabuleiros de margaridas e os vasos de hortênsias.
Uma vez na volta do repuxo onde fora buscar água, ao passar perto
de Aurélia, a moça perguntou-lhe distraidamente, como se não
tivessem interrompido o diálogo:
– É sobre o negócio de que falou-me?
– Justamente.
Seixas ficou parado em frente de Aurélia, supondo que ela ia fazer-lhe
nova pergunta, enquanto a moça esperava uma explicação,
que não queria pedir diretamente.
Vendo que o marido calava-se, voltou de novo às violetas, e ele continuou
em sua ocupação.
IX
Eram dez horas da noite.
Aurélia, que se havia retirado mais cedo da saleta, trocando com
o marido um olhar de inteligência, estava nesse momento em seu toucador,
sentada em frente à elegante escrivaninha de araribá cor-de-rosa,
com relevos de bronze dourado a fogo.
A moça trazia nessa ocasião um roupão de cetim verde
cerrado à cintura por um cordão de fios de ouro. Era o mesmo
da noite do casamento, e que desde então ela nunca mais usara. Por
uma espécie de superstição lembrara-se de vesti-lo de
novo, nessa hora na qual, a crer em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal
o seu destino e a sua vida.
A moça reclinara a fronte sobre a mão direita, cujo braço
nu, apoiado na mesa, surgia de entre os rofos de cambraia que frocavam a manga
do roupão. Estava absorta em uma profunda cisma, da qual a arrancou
o tímpano da pêndula soando as horas.
Ergueu-se então, e tirou da gaveta uma chave; atravessou a câmara
nupcial, que estava às escuras, apenas esclarecida pelo reflexo do
toucador, e abriu afoutamente aquela porta que havia fechado onze meses antes,
num ímpeto de indignação e horror.
Empurrando a porta com estrépito de modo a ser ouvida no outro aposento,
e prendendo o reposteiro para deixar franca a passagem, voltou rapidamente,
depois de proferir estas palavras:
– Quando quiser!
Fernando ao penetrar nessa câmara nupcial, cheia de sombras e silêncio,
esqueceu um momento a pungente recordação que ela devia avivar,
e que parecia ter-se apagado com a escuridão. O que ele sentiu foi
a fragrância que ali recendia, e que o envolveu como a atmosfera de
um céu, do qual ele era o anjo de-caído.
Aurélia esperava o marido, outra vez sentada à escrivaninha.
Ela tinha afastado o braço da arandela de modo que a luz do gás,
interceptada por um refletor de jaspe representando o carro da aurora, deixava-a
imersa em uma penumbra diáfana, que dava à sua beleza tons de
maviosa suavidade.
Seixas sentou-se na cadeira que Auélia lhe indicara em frente dela,
e depois de recolher-se um instante, buscando o modo por que devia começar,
entregou-se à inspiração do momento.
– É a segunda vez que a vejo com este roupão. A primeira foi
há cerca de onze meses, não justamente neste lugar, mas perto
daqui naquele aposento.
– Deseja que conversemos no mesmo lugar? perguntou a moça singelamente.
– Não, senhora. Este lugar é mais próprio para o assunto
que vamos tratar. Lembrei aquela circunstância unicamente pela coincidência
de representá-la a meus olhos, tal como a vi naquela noite, de modo
que parece-me continuar uma entrevista suspensa. Recorda-se?
– De tudo.
– Eu supunha haver feito uma cousa muito vulgar que o mundo tem admitido
com o nome de casamento de conveniência. A senhora desenganou-me: definiu
a minha posição com a maior clareza; mostrou que realizara uma
transação mercantil; e exibiu o seu título de compra,
que naturalmente ainda con-serva.
– É a minha maior riqueza, disse a moça com um tom que não
se podia distinguir se era de ironia ou de emoção.
Seixas agradeceu com uma inclinação de cabeça e pros-seguiu:
– Se eu tivesse naquele momento os vinte contos de réis, que havia
recebido de seu tutor, por adiantamento de dote, a questão resolvia-se
de si mesma. Desfazia-se o equívoco; restituía-lhe seu dinheiro;
recuperava minha palavra; e separávamo-nos como fazem dois contratantes
de boa fé, que reconhecendo seu engano, desobrigam-se mutuamente.
Seixas parou, como se aguardasse uma contradição, que não
apareceu. Aurélia, recostada na cadeira de braço com as pálpebras
a meio cerradas, ouvia brincando, com um punhal de madrepérola que
servia para cortar papel.
– Mas os vinte contos, eu já os não possuía naquela
ocasião, nem tinha onde havê-los. Em tais circunstâncias
restavam duas alternativas: trair a obrigação estipulada, tornar-me
um caloteiro; ou respeitar a fé do contrato e cumprir minha palavra.
Apesar do conceito que lhe mereço, faça-me a justiça
de acreditar que a primeira dessas alternativas, eu não a formulei
senão para a repelir. O homem que se vende, pode depre-ciar-se; mas
dispõe do que lhe pertence. Aquele que depois de vendido subtrai-se
ao dono, rouba o alheio. Dessa infâmia isentei-me eu, aceitando o fato
consumado que já não podia conjurar, e submetendo-me lealmente,
com o maior escrúpulo, à vontade que eu reconhecera como lei,
e à qual me alienara. Invoco sua consciência; por mais severa
que se mostre a meu respeito, estou certo que não me negará
uma virtude: a fidelidade à minha palavra.
– Não, senhor; cumpriu-a como um cavalheiro.
– É o que desejei ouvir de sua boca antes de informá-la do
motivo desta conferência. A quantia que me faltava há onze meses,
na noite de seu casamento, eu a possuo finalmente. Tenho-a comigo; trago-a
aqui nesta carteira, e com ela venho negociar o meu resgate.
Estas palavras romperam dos lábios de Seixas com uma impetuosidade,
que ele dificilmente pôde conter. Como se elas lhe desoprimissem o peito
de um peso grande, respirou vivamente, apertando com movimento sôfrego
a carteira que tirara do bolso.
Se não estivesse tão preocupado com a sua própria comoção,
notaria de certo a percussão íntima que sofrera Aurélia,
cujo talhe reclinado sobre o descanso da cadeira brandiu como a lâmina
de uma mola de aço.
No sobressalto que a agitou, levara à boca a folha de madrepérola,
na qual os lindos dentes rangeram.
Ao abrir a carteira, Seixas suspendeu o gesto:
– Antes de concluir a negociação, devo revelar-lhe a origem
deste dinheiro, para desvanecer qualquer suspeita de o ter eu obtido por seu
crédito e como seu marido. Não, senhora,- adquiri-o por mim
exclusivamente; e para maior tranqüilidade- de minha consciência
provém de data anterior ao nosso casamento. Cerca de seis contos representam
o produto de meus ordenados e das jóias e trastes, que apurei logo
depois do ca-ti-veiro, pensando já na minha redenção.
Ainda tinha muito que esperar e talvez me faltaria resignação
para ir ao cabo, se Deus não abreviasse este martírio, fazendo
um mila-gre- em meu -fa-vor. Era sócio de um privilégio concedido
há quatro anos, e do qual já nem me lembrava. Anteontem, à
mes-ma- hora em que a -senhora me submetia à mais dura de todas as
provas, o céu me enviava um socorro imprevisto para quebrar- enfim
este jugo vergonhoso. Recebi a notícia da venda do privilégio,-
que me trouxe um lucro de mais de quinze con-tos.- Aqui estão as -provas.
Aurélia recebeu da mão de Seixas vários papéis
e correu os olhos por eles. Constavam de uma declaração do Barbosa
relativa ao privilégio, e contas de vendas de jóias e outros
objetos.
– Agora nossa conta, continuou Seixas desdobrando uma folha de papel. A
senhora pagou-me cem contos de réis; oitenta em um cheque do Banco
do Brasil que lhe restituo intacto; e vinte em dinheiro, recebido há
330 dias. Ao juro de 6% essa quantia lhe rendeu 1:084$710. Tenho pois de entregar-lhe
Rs. 21:084$710, além do cheque. Não é isto?
Aurélia examinou a conta corrente; tomou uma pena e fez com facilidade
o cálculo dos juros.
– Está exato.
Então Seixas abriu a carteira e tirou com o cheque vinte e um maços
de notas, de conto de réis cada um, além dos quebrados que depositou
em cima da mesa:
– Tenha a bondade de contar.
A moça com a fleuma de um negociante abriu os maços um após
outro e contou as células pausadamente. Quando acabou essa operação,
voltou-se para Seixas e perguntou-lhe como se falasse ao procurador incumbido
de receber o dividendo de suas apólices.
– Está certo. Quer que eu lhe passe um recibo?
– Não há necessidade. Basta que me restitua o papel de venda.
– É verdade. Não me lembrava.
Aurélia hesitou um instante. Parecia recordar-se do lugar onde havia
guardado o papel; mas o verdadeiro motivo era outro. Consultava-se, receosa
de revelar sua comoção, caso se levantasse.
– Faça-me o favor de abrir aquela gavetinha, a segunda. Dentro há
de estar um maço de papéis atado com uma fita azul… justamente!…
Não conhece esta fita? Foi a primeira cousa que recebi de sua mão,
com um ramo de violetas. Ah! perdão; estamos negociando. Aqui tem seu
título.
A moça tirara do maço um papel e o deu a Seixas, que fechou-o
na carteira.
– Enfim partiu-se o vínculo que nos prendia. Reassumi a minha liberdade,
e a posse de mim mesmo. Não sou mais seu marido. A senhora compreende
a solenidade deste momento?
– É o da nossa separação, confirmou Aurélia.
– Talvez ainda nos encontremos neste mundo, mas como dois desconhecidos.
– Creio que nunca mais, disse Aurélia com o tom de uma profunda convicção.
– Em todo o caso, como é esta a última vez que lhe dirijo
a palavra, quero dar-lhe agora uma explicação, que não
me era lícita há onze meses na noite do nosso casamento. Então
eu faria a figura de um coitado que arma à compaixão, e a senhora
que pisava aos pés a minha probidade, não acreditaria uma palavra
do que então lhe dissesse.
– A explicação é supérflua.
– Ouça-me; desejo que em um dia remoto, quando refletir sobre este
acontecimento, me restitua uma parte da sua estima; nada mais. A sociedade
no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua feição;
o luxo dourava-me os vícios, e eu não via através da
fascinação o materialismo a que eles me arrastavam. Habituei-me
a considerar a riqueza como a primeira força viva da existência,
e os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio tão legítimo
de adquiri-la, como a herança e qualquer honesta especulação.
Entretanto ainda assim, a senhora me teria achado inacessível à
tentação, se logo depois que seu tutor procurou-me, não
surgisse uma situação que aterrou-me. Não somente vi-me
ameaçado da pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividada,
como achei-me o causador, embora in-voluntário, da infelicidade de
minha irmã cujas economias eu havia consumido, e que ia perder um casamento
por falta de enxoval. Ao mesmo tempo minha mãe, privada dos módicos
recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu tinha disposto imprevidentemente,
pensando que os poderia refazer mais tarde!… Tudo isto abateu-me. Não
me defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica a abdicação
da dignidade. Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser homem; naquele tempo
não era mais do que um ator de sala; sucumbi. Mas a senhora regenerou-me
e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.
Aurélia ouviu imóvel. Seixas concluiu:
– Eis o que pretendia dizer-lhe antes de separarmo-nos para sempre.
– Também eu desejo que não leve de mim uma suspeita injusta.
Como sua mulher, não me defenderia; desde porém que já
não somos nada um para o outro, tenho direito de reclamar o respeito
devido a uma senhora.
Aurélia referiu sucintamente o que Eduardo Abreu fizera quando falecera
D. Emília, e a resolução que ela tomara de salvá-lo
do suicídio.
– Eis a razão por que chamei esse moço à minha casa.
Seu segredo não me pertencia; e entre mim e o senhor não existia
a comunidade que faz de duas almas uma.
Aurélia reuniu o cheque e os maços de dinheiro que estavam
sobre a mesa.
– Este dinheiro é abençoado. Diz o senhor que ele o regenerou,
e acaba de o restituir muito a propósito para realizar um pensamento
de caridade e servir a outra regeneração.
A moça abriu uma gaveta da escrivaninha e guardou nela os valores;
depois do que bateu o tímpano; a mucama apareceu:
– Permita-me, disse Aurélia e voltou-se para dar em voz baixa uma ordem
à escrava.
Esta acendeu o gás nas arandelas da câmara nupcial e retirou-se,
enquanto Aurélia dizia ao marido, mostrando o aposento iluminado:
– Não quero que erre o caminho.
– Agora não há perigo.
– Agora? repetiu a moça com um olhar que perturbou Seixas.
Houve uma pausa.
– Talvez a senhora, para evitar a curiosidade pública, deseje um
pretexto?
– Para quê?
– A viagem à Europa seria o melhor. O paquete deve partir nestes quinze
dias. Uma prescrição médica tudo explicará, a
separação e a urgência. Mais tarde quando venham a saber,
já não causará surpresa.
Aurélia deixou perceber ligeira comoção. Entretanto
foi com a voz firme que respondeu:
– Desde que uma cousa se tem de fazer, o melhor é que se faça
logo e sem evasivas.
Fernando ergueu-se de pronto:
– Neste caso receba as minhas despedidas.
Aurélia de seu lado erguera-se também para cortejar o ma-rido.
– Adeus, senhora. Acredite…
– Sem cumprimentos! atalhou a moça. Que poderíamos dizer um
ao outro que já não fosse pensado por ambos?
– Tem razão.
Seixas recuou um passo até o meio do aposento, e fez uma profunda
cortesia, à qual Aurélia respondeu. Depois atravessou lentamente
a câmara nupcial agora iluminada. Quando erguia o reposteiro ouviu a
voz da mulher.
– Um instante! disse Aurélia.
– Chamou-me?
– O passado está extinto. Estes onze meses, não fomos nós
que os vivemos, mas aqueles que se acabam de separar, e para sempre. Não
sou mais sua mulher; o senhor já não é meu marido. Somos
dois estranhos. Não é verdade?
Seixas confirmou com a cabeça.
– Pois bem, agora ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te
que aceites meu amor, este amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando
mais cruelmente ofendia-te.
A moça travara das mãos de Seixas e o levara arrebatadamente
ao mesmo lugar onde cerca de um ano antes ela infligira ao mancebo ajoelhado
a seus pés a cruel afronta.
– Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te,
nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando seu perdão e
feliz porque te adora, como o senhor de sua alma.
Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés;
os lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando
um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou
de si com gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por
uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.
– Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.
A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador,
e trouxe um papel lacrado que entregou a Seixas.
– O que é isto, Aurélia?
– Meu testamento.
Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente
um testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o
instituía seu universal herdeiro.
– Eu o escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse naquela
noite, disse Aurélia com um gesto sublime.
Seixas contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.
– Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É
o meio de a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.
* * *
As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores,
cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.
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