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CAPÍTULO I
Padre Antônio de Morais devia chegar a Silves naquela esplêndida
manhã de fevereiro.
A carta que escrevera ao Macário sacristão anunciava o dia
da partida, designando o paquete, e pedia uma casa modesta e mobiliada simplesmente.
Macário fizera o cômputo do tempo necessário à
viagem, rio acima até Silves, e espalhara por toda a vila, havia exatamente
quinze dias, a notícia da próxima vinda do vigário enviado
pelo Sr. D. Antônio "na solicitude paterna de pastor que não
descura a salvação das suas mais obscuras ovelhas", conforme
lera o professor Aníbal na Boa nova da última semana.
A casa não fora difícil de arranjar, bem perto da Matriz, na
melhor situação, olhando para o lago. Era pequena, mas muito
arejada e estava caiadinha de novo. Cedera-a por seis mil-réis mensais
o presidente da Câmara, que a mandara preparar para si, com umas veleidades
de deixar o sítio ao rio Urubus e vir morar para a vila; mas a força
do hábito o fizera desistir do projeto, e depois… a D. Eulália…
coitada! não queria ouvir falar em tal mudança, por causa dos
seus queridos xerimbabos. Assim o Neves Barriga preferira alugar a casinha,
branca e asseada, e resignara-se a continuar enterrado naquele sertão
do Urubus, matando carapanãs e fazendo farinha de mandioca.
O Antônio Capina, por muito empenho, só pudera fornecer uma
mesa de pinho, envernizada e decente e a marquesa de palhinha que fora do
último juiz municipal, reformada para servir a "algum desses esquisitos
lá de fora que não gostam de dormir em rede". As cadeiras,
a mesa de jantar, o lavatório, a bacia de banho, tinha-os o Macário
pedido emprestado ao capitão Mendes da Fonseca, que, em toda a vila,
possuía as melhores coisas desse gênero.
Para ornar a parede do fundo da sala, o professor Aníbal emprestara
uma grande gravura, representando a batalha de Solferino, e retratos de Pio
IX, de Antonelli, de Cavour, da princesa Estefânia e do conselheiro
Paranhos. A louça, tanto a de mesa como a de cozinha, compunha-se do
que o Macário pudera arrancar à cobiça da Chiquinha do
Lago, restos do espólio do finado padre José, e do que comprara
na casa do Costa e Silva. Estava tudo decente.
Depois de aprontar a casa e arranjar a mobília, Macário assumira
as funções de diretor da recepção do novo pároco
e, naquele dia, ao romper da alva, envergara a sobrecasaca de lustrina, pusera
na cabeça o seu boliviano de seis patacas, engolira, a ferver, uma
tigela de chá de folhas de cafeeiro adoçado com rapadura, e
saíra para a rua, não se podendo ter dentro de quatro paredes,
cheio de ansiedade, receando o surpreendesse o apito do vapor, ardentemente
esperado.
Era ainda muito cedo. Macário deteve-se à porta, olhos na rua,
desejando avistar um amigo, um vizinho, uma criatura qualquer com quem desabafasse
a extraordinária emoção da hora, até ali nunca
esperada, de ser o diretor da recepção, o organizador da festa,
a fonte de informações, o único homem da vila que entretinha
relações com S. Rev.ma, a quem S. Rev.ma escrevia.
A rua estava deserta e as casas fechadas. Macário, passeando a sapata
de pedras desiguais, esburacada e velha, não podia expandira agitação
intestina que lhe escaldava o sangue e bulia com os nervos; só oferecia
derivativo à atividade a que se entregava a passos incertos, ziguezagueando
às vezes como um ébrio, dando topadas que lhe irritavam os calos
e despelavam o bezerro novo das botinas de rangedeira.
O sol subia lentamente no azul esbranquiçado do céu, banhando
a frente das casas e dando pinceladas verdes na massa escura da floresta da
outra banda. Sobre a superfície do lago Sacracá deslizava pequena
montaria, tripulada por um tapuio de movimentos automáticos e vagarosos,
que com o remo chato cortava a água cuidadosamente, para não
acordar o peixe. Na vila ladravam cães e cantavam galos, e da próxima
capoeira vinham vozes confusas de pássaros e de bichos.
Sentindo-se só, Macário concentrava o espírito, sem
se deter no espetáculo daquela manhã de sol. O alvoroço
da novidade esperada amortecia-lhe a faculdade contemplativa, alheando-o de
tudo mais. O seu pensamento estava absorvido naquela idéias, a que
lentamente foi relacionando outras, sujeitando ao exame todas as faces da
questão. À medida que a consciência assenhoreava-se dum
lado do problema, e esclarecia a solução do problema todo. Depois,
para bem pesar os resultados, a necessidade da comparação surgia,
e então, num tropel confuso, que se ia clareando e ordenando pouco
a pouco, vibrando as fibras cerebrais que guardavam a impressão das
emoções passadas, as lembranças afluíam, a princípio
vagas, depois precisas, exatas, reproduzindo em grandes quadros coloridos
os menores episódios, como se fossem da véspera.
A vinda do novo vigário mudava a posição do Macário
na sociedade de Silves. Passava a ser Il.mo Sr. Macário de Miranda
Vale, como delicadamente lhe chamara S.Rev.ma na carta, na querida carta que
ele trazia unida ao coração, no bolso interno da sobrecasaca,
e cujo contato lhe causava um sensação de esquisito gozo. Aquela
carta fora uma patente, fizera-o subir no conceito público e na própria
consideração, dera-lhe acesso à classe das pessoas gradas
de que se ocupa a imprensa; e publicamente lhe conferira o posto merecido
pela inteligência, pela perícia no ofício, pelo seu conhecimento
dos homens e das coisas, e do que uma demorada injustiça cruelmente
o privara até àquela data.
A idéia acentuava-se no seu espírito liberto de um passado
humilhante.
Um homem superior – o novo vigário não podia deixar de ser
um homem superior – escrevera ao Macário uma carta muito e muito cortês,
chamara-lhe Ilmo Sr. Macário, e não simplesmente – o Macário
sacristão, como toda a gente; confessara-se seu atento venerador e
amigo, muito obrigado; dirigira-se a ele de preferência; o encarregara
a ele, de lhe arranja a casa e a mobília, de o esperar, de o receber,
de lhe guiar os primeiros passos no paroquiato de Silves. A vaidade do Macário
– posto ele nada tivesse de vaidoso, entumescia-se, um véu caía-lhe
dos olhos, via-se outro, não já o triste sacristão maltratado
pelo vigário, mas um Macário novo, de sobrecasaca, de cabeça
alta, conhecido na capital do Pará, onde alguém – não
podia saber quem fora – ensinara o seu nome a padre Antônio de Morais;
um Macário que ao invés do que ousara esperar, ia dar conselho
a S.Rev.ma, arranjar-lhe a vida, guiá-lo, mandar, enfim no senhor vigário.
Chegando a essas alturas, vinham-lhe vertigens. Uma ambição
desenfreada apoderava-se do seu cérebro, dementando-o. Tinha um ardente
desejo de conhecer o digno mortal, o benemérito habitante da cidade
de Belém que revelara o seu, até ali, obscuro nome ao ilustre
pároco de Silves. Não era tão obscuro como supunha a
sua modéstia, espezinhada pelo defunto padre José. Conheciam-no,
sabiam-lhe o nome na grande capital do Grão-Pará! Podia pretender
tudo.
Mas, por um retorno brusco, recordava-se do nada donde saíra, e enternecia-se,
nascia-lhe uma gratidão profunda para com o amigo desconhecido e esse
ilustre padre Antônio que o vinha arrancar-lhe ao aviltamento, para
lhe matar, duma vez, a sede de consideração pública,
de respeito, de aplausos que consumia a sua vida miserável de sacristão
de aldeia.
Fora bem reles a existência até aquela data – a data da carta
– digna de ser marcada com uma pedra branca, como se marcam os dias felizes
da vida, segundo ouvira ao professor Aníbal ao jantar de casamento
do infeliz Joaquim Feliciano. Pai não conhecera, fora-lhe mãe
uma lavadeira, tristemente ligada a um sargento do corpo policial de Manaus,
desordeiro e bêbado. Macário crescera entre os repelões
da mãe e as sovas formidáveis com que o mimoseava o sargento
para se vingar do marinheiro da taverna, farto de lhe fiar a pinga. Poucas
vezes conseguira satisfazer a fome, senão graças à generosidade
de algum freguês em cuja casa entrava a serviço de condução
da roupa lavada; porque na casinha da lavadeira o pirarucu era pouco e mau,
a farinha rara, os frutos luxo dos ricos, o pão extravagância
de fidalgos de apetite gasto ou de doutores barrigudos e vadios. O estômago
do rapaz era exigente, afeiçoara-se facilmente às gulodices
das casas abastadas, onde entrava de cesto à cabeça, lançando
compridos olhos para a mesa de jantar ou para o armário dos doces,
até a senhora, entre um credo! e duas cruzes! tinhoso! lhe mandar dar
alguma coisa, para que não aguasse a comida. O duplo tormento da fome
e das pancadas exasperava o Macário, mas, à falta de energia,
não lhe dava mais remédios do que suspiros, gritos e lágrimas.
A sua devota Nossa Senhora do Carmo veio, porém, em seu auxílio.
Uma tarde, a mãe, ocupada em conter os ímpetos destruidores
do amante, fatais à louça e à mobília, mandara-o
levar um cesto de roupa lavada ao Seminário, e cobrar a conta do senhor
reitor.
Nesse dia, a bebedeira do sargento ameaçara trovoada grossa, e ao
jantar das duas horas faltara a farinha d’água, e o pirarucu
fora comido triste e só, sem gosto e às carreiras.
Macário, faminto e assustado, batera à porta do Seminário,
uma grande casa séria e limpa, cheia de janelas com vidraças
e de meninos alegres, brincando o esconde-esconde no vasto quintal inculto;
e esse espetáculo aumentara-lhe a tristeza, ao ponto de o fazer chorar.
Mandaram-no entrar no quarto do reitor, que o estava esperando para pagar
a conta.
Numa grande sala, simplesmente mobiliada, sentado numa bela rede de varandas
bordadas, estava um padre gordo, moreno, acaboclado, com uma cara toda de
bondade, e uma voz carinhosa. Era o reitor, o mesmo que, segundo diziam passageiros
do Pará, era agora arcebispo e conde lá para as bandas do Sul.
Um curumim de onze anos, legítimo maué, de calças e
camisa de riscadinho e grossos sapatos engraxados, tinha na mão um
tição de fogo para acender o cachimbo de S. Rev.ma cheio de
perfumado tabaco do Tapajós. Ao lado um seminarista, de batina azul,
sentado em cadeira baixa, lia num livro de estampas coloridas, muito enfastiado,
cumprindo uma sentença, e de vez em quando interrompia a leitura, para
olhar, pela janela aberta, para o quintal, e seguir com despeito os jogos
barulhentos dos seus felizes colegas.
Por baixo da rede do padre, deitada sobre vistosa pele de onça pintada,
uma capivara doméstica deixara-se cavalgar por um macaco barrigudo,
de sedoso couro cinzento, e aos punhos da rede um periquito do Rio Branco,
mimoso e verde, subindo e descendo sem cessar, pontuava com as suas notas
estrídulas a voz monótona e cadenciada do seminarista preso.
Quando o Macário entrou fez-se uma pequena revolução
no sossegado aposento de S. Rev.ma. O seminarista fechou o livro, pôs-se
de pé e começou a fazer-lhe gaifonas por trás do grande
livro de estampas. O macaco deixou a capivara, e, assustado, trepou rapidamente
pela rede e subiu pelos punhos, cordas fora, até às escápulas,
donde se pôs a olhar desconfiado para o rapazito, fazendo-lhe momices.
O periquito desceu para o fundo da rede e escondeu-se entre as pregas amplas
da batina do padre. A capivara fugiu para baixo duma cadeira. O pequeno maué
deixou de soprar ao fogo de tição, e fixou no recém-chegado
os grandes olhos negros, profundos e mudos.
O padre reitor largou o cachimbo e atentou na cara magra e doentia do Macário,
que não tinha ainda aquela belida no olho esquerdo, nem aquele lombinho
que lhe começara a surgir do meio da testa aos trinta anos, e agora
ostentava a sua protuberância polida num descaro insolente.
– O que tens, tu, rapazinho, que estás tão assustado e trêmulo?
– Saberá V. Rev.ma…
O tom do reitor era tão paternal e bondoso, inspirava tanta confiança
e punha a gente tão à vontade, que Macário sem vergonha
do seminarista nem do curumim, desatou a chorar. E depois, sentindo uma necessidade
de proteção e amparo, começou a contar àquele
padre gordo, bondoso e afável a desgraça que o sujeitava às
brutalidades dum soldado bêbado e ao desamor da mãe desnaturada.
O padre reitor acendeu o cachimbo muito comovido, e prometeu arrancá-lo
à sua situação. Justamente partia para Silves o seu amigo
padre José, vigário-colado daquela freguesia.
– Vai com o padre José, rapazinho, ele te dará boa vida. Há-de
ensinar-te o catecismo, a ler e a escrever. Mais tarde, se for possível,
e mostrares vocação, faço-te entrar no Seminário.
Notando a alegria do Macário, o reitor concluiu:
– Hoje mesmo, à noite, talvez fale ao juiz de órfãos
e ao meu amigo padre José.
E como se a idéia da projetada diligência o tivesse fatigado
muito, deu um suspiro, descansou o cachimbo sobre a pele de onça pintada,
e fechando os olhos ficou silencioso.
No dia seguinte Macário fora arrancado à lavadeira por dois
oficiais de justiça, e uma semana depois viera para Silves, humilde
e contente, seguindo o vigário-colado com um reconhecimento de cachorro
socorrido. Vinte anos servira o duplo ofício de fâmulo e sacristão
do padre José, um pândego! que passava meses nos lagos, tocando
violão e namorando as mulatas e as caboclas dos arredores, e gastava
em bons-bocados as missas, os enterros e os batizados da freguesia, e, na
falta, caloteava ao Costa e Silva e ao Mendes da Fonseca, que era um deus-nos-acuda!
A sua mesa era farta, e a casa alegre.
Pela primeira vez na vida, Macário conhecera o bem-estar dum estômago
repleto. O pão fresco, barrado de manteiga inglesa de barril, revelara-lhe
delícias gastronômicas, de que o seu paladar exigente nunca mais
se saciara, encontrando sempre novidade saborosa naquela combinação
vulgar. A carne verde, gorda e fibrinosa com que os fazendeiros presenteavam
regularmente o senhor vigário, o peixe fresco do rio, a farinha graúda,
amarela e torrada, vinda dos sítios do Urubus, forneciam-lhe uma diária
farta, apetitosa e saudável que o retemperou e lhe deu carnes. Facilmente
se afez àquele passadio, e a vida tranqüila e desocupada que levava,
graças à mandriice do vigário, quase sempre ausente,
o habituou ao cômodo regalado, e, franqueza! à preguicinha e
à moleza.
Só o infelicitava na existência abundante gozada em Silves,
a desconsideração com que tratavam o vigário, e o povo.
O viver descansado e a fartura com que deleitava o estômago, os hábitos
madraços não estavam em relação com a sua posição
doméstica, social, e política, e essa desarmonia irritava-o,
tirava-lhe às vezes o sono. Não compreendia como podia ser mal
considerado um homem que comia bem, vestia bem e não fazia nada. Alimentava
o ódio secreto contra o patrão e toda a gente de bem. Padre
José não queria ver no sacristão mais do que um curumim
tirado às brutalidades do sargento para o constituir em servidão
perpétua, mas bem remunerada. Ensinara-lhe a leitura, a escrita, a
contabilidade, a arte de ajudar a missa, dera-lhe umas tintas do latim necessário,
fornecera-o de roupa decente, gravata, botinas; consentia-lhe que bebesse
o vinho da despensa e gastasse o óleo de Macaçar do toucador,
quando as mulatas não o gastavam todo nos cacheados; mas tudo isso,
parece, por indolência ou por graça. Continuava a tratá-lo
como ao pequeno faminto que trouxera de Manaus, apesar de lhe ver a barba
na cara e o aproveitamento das lições recebidas. Devia engraxar-lhe
as botinas, escovar-lhe a roupa, varrer-lhe a casa, levar recadinhos às
moças. Não contente com isto, descompunha-o em público:
a besta do Macário, o caolho do sacristão, o burro do meu sacrista,
filho desta, filho daquela, tambor de sargento, ladrão, velhaco e outros
epítetos não menos injuriosos. O sargento do corpo de permanentes
moera-o com pancadas, o padre maltratava-o com palavras duras. Macário,
de rodaque de alpaca, de gravata preta, de botas de rangedeira, palitando
os dentes à porta do presbitério ou no adro da Matriz, sentia-se
amesquinhado e infeliz. Quanto mais queria elevar-se no conceito alheio até
o nível de estima que por si nutria, tanto mais lhe doíam ao
amor-próprio as feridas brutais que a palavra destemperada do padre
lhe causava.
Tentava reagir:
– Saberá V.Rev.ma que nunca furtei nada. Saberá V.Rev.ma que…
Mas o olhar irritado do padre acobardava-o, a recordação da
infância miserável em Manaus e a idéia de perder os pitéus
da mesa suculenta do vigário, tornavam-no prudente, quietava-se. O
bom protetor do seminário passara havia anos para o seu glorioso destino,
levando macacos e papagaios, e abandonando para sempre o Amazonas e o tabaco
do Tapajós. Desamparado e só, Macário contemporizava
e fingia. À força de habilidade conseguira ostentar certa importância
pessoal, principalmente quando o vigário estava ausente. Inventava
incumbências de responsabilidade, comissões graves, dizia-se
depositário de segredos de valor. O senhor vigário o encarregara
de cobrar as missas que lhe estavam devendo, e não eram missinhas à-toa,
não eram porcarias, eram missas que importavam em quantia graúda,
um horror de dinheiro capaz de saldar todas as contas de S.Rev.ma. O senhor
vigário mandara-o entender-se com o empreiteiro das obras da Matriz,
e lhe dissera uma coisa que ia brevemente acontecer ao Chico Fidêncio,
em relação à irmandade do Santíssimo Sacramento.
Não mentia, tinha horror à mentira, era um pecado mortal. Mas
para conciliar a consciência com as conveniências, Macário
tinha o macavelismo. Um meio astucioso de tudo fazer e dizer sem ferir de
frente as conveniências e a verdade, sem desmoralizar-se, sem pecar,
eis que era o macavelismo. Donde viera a palavra não sabia, nem lhe
importava. Sabia apenas ter existido outrora um espertalhão chamado
Maquiavel, ou Macavel, conforme melhor lhe parecia a pronúncia, e ouvira
dizer que Bismark e o conselheiro Zacarias tinham muito macavelismo; gostara
do termo e o adotara para seu uso.
Mas agora, era outra coisa. O novo vigário não o arrancara
a fomes e a misérias, não lhe conhecia a mãe, não
sabia o caso do sargento. Vinha encontrá-lo com trinta e cinco anos,
gordo, de sobrecasaca, de lenço preto grave, digno, necessário,
senhor dos detalhes do serviço da paróquia. O tempo ansiosamente
esperado vinha por fim, prenhe de promessas fagueiras de respeito pessoal
e consideração pública, reluzia-lhe diante dos olhos
no espelho do lago em que se refletia o sol brilhante daquela manhã…
O silvo agudo do vapor dizendo ao longe a grande nova arrancou-o a essas
reflexões. Agitado e nervoso, foi apalavrar um moleque para os repiques,
e em seguida encaminhou-se para o porto, a passos apressados, desejando ser
o primeiro a avistar o vulto negro do navio demandando o lago Saracá
com grande ruído de rodas.
Logo os sinos da Matriz começaram a repicar alegremente, enchendo
o ar de vibrações argentinas. A vila animava-se de repente,
como por varinha de condão, saindo da tristeza habitual das ruas desertas
e das casas fechadas para povoar-se de homens de paletó preto ou de
camisa branca e de mulheres de saia curta e lenço à cabeça.
Girândolas de foguetes subiram com estrépito, pondo em delírio
de prazer os curumins de calças de riscado novo e camisa de algodão
da terra, porfiando na conquista das taquaras que, rodopiando nas alturas,
se precipitavam para o chão, ameaçando os transeuntes e espalhando
o mulherio.
As ruas enfeitavam-se. Colchas de seda ou de algodão debruçavam-se
das janelas, ostentando belas cores vivas, e o adro da Matriz, coberto de
folhagem, oferecia a aparência graciosa dum presépio de Natal,
as vacas passeando despreocupadamente o alpendre, e as cabras mastigando as
folhas de mangueira e os ramos de murta dos arcos de ornamentação.
O vapor da Companhia do Amazonas estrugia os ouvidos com o assovio rouco,
anunciando a chegada a toda a redondeza, onde repercutia o eco, cutia o eco
transmitido às quebradas da cordilheira nas vibrações
do ar; e cobria-se de espesso fumo negro, soprado a baforadas do cano vermelho
e branco, numa bulha dominadora e altiva. A ancora fora largada ao rio, e
as espias e amarras eram levadas em pequenos botes leves, tripulados por marinheiros,
que as deviam prender aos marás da praia, a fim de proteger contra
a correnteza a manobra de saída. A tripulação e os passageiros
do vapor apinhavam-se no tombadilho, uns para fazer o serviço, outros
para gozar o espetáculo novo do desembarque solene. Na praia estava
muita gente, ou para ir a bordo nas montarias de pesca ou para aguardar o
acontecimento, enfiando olhos curiosos pelos postigos do navio, na vaga esperança
de avistar o novo vigário da freguesia.
Os tapuios dos sítios, no pensamento de aproveitar uma boa ocasião
de negócio, preparavam as igarités para levar a bordo os cestos
de laranjas, as bananas, as melancias, os copus-açus, os rouxinóis,
canoros, os papagaios tagarelas e os periquitos mimosos de testa amarela e
asas brancas. As tapuias da vila também enviavam a oferecer à
curiosidade dos passageiros as belas redes de algodão, laboriosamente
feitas ao tear os urus de palha colorida, as cuias pintadas e cascos de tartaruga
sem préstimo, na esperança de que algum estrangeiro esquisito
os comprasse por bom preço.
Macário passava apressado. O ruído das vozes, o barulho do
vapor, calmo e grande no meio das montarias e dos botes, davam ao porto de
porto de Silves um aspecto anormal de animação que lhe fazia
pulsar o coração no peito. Havia vinte anos que se internara
no silêncio e na inércia da vida sertaneja. E naquele momento,
o barco a vapor, com o seu penacho de fumo e o ruído de ferragens quebradas,
com as poderosas rodas imóveis, pintadas de encarnado e preto, com
os altos mastros enleados em cordas cruzadas intrincadamente, e a bandeira
nacional a tremular à ré, suavemente sacudida pela brisa da
manhã, contrastava de modo fantástico com a pobreza de movimento
e de vida do vasto lago deserto.
No caminho, Macário encontrara os vereadores da Câmara Municipal
e os juízes de paz que iam a bordo cumprimentar o novo vigário,
padre Antônio de Morais, que fizera, ao que diziam, brilhantes estudos
no Seminário grande do Pará, e recusando a oferta do senhor
bispo de o doutorar em S. Sulpício, a expensas da Caixa Pia, preferia
vir paroquiar a modesta vila de Silves. Esta informação, trazida
pelo imediato do vapor, que desembarcara com as malas do correio, circulava
rapidamente e provocara um entusiasmo respeitoso entre as pessoas gradas da
terra.
Macário chegara ao porto do desembarque e aí devia esperar
essas pessoas para as acompanhar a bordo.
Quando passou pela loja do Costa e Silva, à Rua do Porto, um sujeito
baixo, magro, enfezado, fumava cigarros e limpava as unhas, olhando para o
lago.
– Bom-dia, seu Chico Fidêncio, disse Macário, tirando o chapéu.
O sujeito respondeu:
– Viva!
Macário seguiu o seu caminho, desapontado. A presença daquele
homem ali, naquela ocasião, o incomodava. Foi-se postar a alguma distância,
mas não tirou os alhos da loja do Costa e Silva. Três ou quatro
rapazes bem vestidos vieram reunir-se ao Chico Fidêncio, formando um
grupo estranho ao sentimento geral da população de Silves.
Chico Fidêncio passava em revista mordente as pessoas gradas; e comentava
o acontecimento do dia com azedume e pilhéria, animado e secundado
pelos rapazes que o cercavam e riam a cada palavra dele. As vítimas
mostravam-se constrangidas, cumprimentavam a contragosto, sentindo na pele
a agudeza dos comentários, e seguiam o seu caminho, levando no ouvido
a vibração das risadas zombeteiras dos rapazes roda.
Macário, furioso, ouvia as queixas amargas das pessoas desacatadas.
A bordo, Macário foi o primeiro que falou com o vigário de
Silves. Era um rapaz alto, de boas cores, cabelos e olhos negros, muito novo
ainda. Vestia uma batina nova, muito bonita, e tinha na mão grande
chapéu de três bicos, novidade em Silves.
Mas o Macário não podia examinar S. Rev.ma bem à sua
vontade. O tombadilho estava cheio de gente, não só passageiros,
homens de fraque preto e chapéu de pele de lebre, mulheres de casaquinha
branca rendada e saias de lã ou de seda; como ainda marinheiros com
largas jaquetas de pano azul e boné de galão. Ora, toda esta
gente olhava para os homens da terra, como se estivesse vendo bichos, e tornava-se
incômoda afinal. Macário estava em brasas, não por si,
afinal era filho de Manaus, duma capital, estava costumado a ver gente, mas
pelos companheiros – coitados! que não sabiam como evitar aqueles olhares
curiosos e impertinentes!
Felizmente uma sineta deu o sinal convencionado de que a demora do vapor
não seria longa. As malas de S. Rev.ma já estavam no escaler
da Agência, que as devia levar para a terra. O comandante, em tom de
bonomia grosseira, declarou que o vapor ia largar, pois não podia demorar-se
naquela tapera, por ter necessidade de chegar cedo a Serpa, onde desembarcaria
muita carga para o Madeira.
– Para a terra quem for de terra! concluiu com um gesto largo de despedida.
Quando o vigário passou, acompanhado por muita gente, pela loja do
Costa e Silva, o Chico Fidêncio pôs-se na pontinha dos pés,
para melhor apreciar a saída do paquete, afetando não prestar
atenção ao fato que agitava a população toda.
Os rapazes da sua roda imitaram-no, falando cm voz alta da manobra do navio.
Então o professor Aníbal, pardo, de cabelo à escovinha
e óculos de tartaruga, saiu da comitiva do vigário, e, amparado
pelo escudo moral do coleguismo, aproximou-se do grupo do Chico Fidêncio,
sorrateiro, quase sem ser visto, e quando se achou entre o colega e os rapazes,
perguntou-lhes, para entabular conversa, se sabiam da história, contada
pelo imediato do vapor, relativa á preferência dada a Silves
sobre S. Sulpício, uma coisa soberba, uma prova da desinteresse e da
virtude do novo vigário. Era de bom agouro, e fora a notícia
desse fato que o levara, a ele Aníbal Brasileiro, a bordo do paquete.
O colega bem sabia, ele também não era lá muito amigo
de padres. Mas uma coisa assim! Deixar S. Sulpício e vir para Silves!
É dum patriotismo! exclamou gesticulando e cuspindo longe.
– Brocas da padraria, resmungou Chico Fidêncio, pondo-se a assoviar
a Marselhesa, sem retirar os olhos do vapor, que se ia desaparecer por trás
dum estirão de terra.
Macário apressou o passo para alcançar a comitiva do senhor
vigário, murmurando:
– Cambada!
CAPÍTULO II
Os amigos despediram-se afinal. Padre Antônio ficou só, sentindo
necessidade de repouso. Seriam três horas da tarde. O calor era intenso.
Erguera-se aquele dia antes do romper da aurora e mal fundeara o vapor, tivera
de receber os seus paroquianos, que se apresentavam em maioria de sobrecasaca
de lustrina, calças de ganga amarela, mostrando em grandes manchas
claras os chapéus de palha da Bolívia, vistosos e baratos, fingindo
Panamás.
Quem primeiro lhe falara fora o sacristão, um tal Macário de
Miranda Vale, moço corpulento, com uma belida e um lombinho, todo cheio
de si dentro da comprida sobrecasaca de grandes pregas duras. Dera-se a conhecer
como o destinatário da carta que o padre, por informações
que o Filipe do Ver-o-peso colhera do seu correspondente Costa e Silva, havia
escrito para Silves. Em primeiro lugar, o Macário vinha agradecer a
S. Rev.ma as expressões delicadas que usara na missiva, e, em segundo
lugar, cientificá-lo de que a casa estava pronta e mobiliada. E tudo
baratinho e decente. Depois o sacrista apresentara as principais pessoas da
terra com muita cerimônia, e na intenção de informar a
S. Rev.ma, em poucas palavras, das distintas qualidades daqueles cavaleiros:
Fora uma enfiada: – o tenente Valadão, subdelegado de polícia,
muito boa pessoa, incapaz de matar um carapanã.
Era um sujeito magro, esgrouviado, tísico. Tinha um comprido cavanhaque
grisalho, e usava óculos.
– O senhor capitão Manoel Mendes da Fonseca, coletor das rendas gerais
e provinciais, negociante importante, traz aviamentos de contos de réis.
O Elias tem muita confiança nele. É influência política
e dispõe de muitas relações boas.
Este era barrigudo e reforçado. Usava a barba toda e trazia a camisa
muito bem engomada. Parecia um homem de toda a consideração.
– O senhor presidente da Câmara, alferes José Pedreira das Neves
Barriga, que alugou a casa a S. Rev.ma.
Descendente de espanhóis, muito boa pessoa, mora no sítio,
ao Urubus, quase nunca vem à vila. Cara de carneiro com largas ventas
cheias de Paulo-Cordeiro.
– O escrivão da coletoria, Sr. José Antônio Pereira moço
de muito bons costumes.
Baixo, magro, mal barbado. Dentinhos podres, olhinhos mal abertos.
– O senhor vereador João Carlos, íntimo do senhor capitão
Fonseca.
– O Sr. Aníbal Americano Selvagem Brasileiro, professor régio,
inteligente e sério.
Era um mulato, de óculos de tartaruga.
– O Sr. Joaquim da Costa e Silva, que tem uma boa loja à rua do Porto,
e faz o comércio de regatão, mais por divertimento do que por
necessidade. É bom católico e fornece noticias ao Diário
do Grão-Pará.
– O Sr. Antônio Regalado, o Sr. Francisco Ferreira, uma chusma, de
que se destacava um sujeito de cara redonda. Dele Macário dissera em
voz alta:
– O Sr. Pedro Guimarães, eleitor.
E depois acrescentara com voz baixa, curvando-se para o padre, familiarmente:
– Chamam-lhe o Mapa-Múndi, mas é boa pessoa.
Tivera de sorrir a toda aquela gente, de apertar-lhe a mão oferecendo
os nenhuns préstimos dum humilde criado. Os silvenses diziam:
– Não há de quê…
E sérios, empertigados, mal a cômodo na sobrecasaca, atrapalhados
com o chapéu, balbuciavam palavras de respeito, num acanhamento roceiro,
cumprindo um dever penoso, olhando desconfiados para todos os lados, vexados
das vistas curiosas e zombeteiras dos passageiros do vapor.
Felizmente o desembarque se fizera sem demora, e apenas em terra, o primeiro
cuidado de padre Antônio fora dirigir-se à Matriz, a fazer oração.
O povo, em grande concurso, desertando o porto, o acompanhara por entre o
tanger dos sinos e o estourar dos rojões. Macário, o capitão
Fonseca, o Neves Barriga e outras pessoas gradas, ajoelhando as calças
de ganga amarela sobre os tijolos da igreja, oraram com ele, pedindo a Misericórdia
divina para o bom desempenho da sua missão nesta terra desconhecida.
Quando se erguera, confortado e sereno, as pessoas principais o acompanharam
na visita à igreja, cercando-o, admirando-o, pasmando de o ver tão
novo, e seguindo-lhe curiosamente todos os movimentos. Macário, parecendo
muito contente, guiava, explicava, dava pormenores, com o boliviano na mão
e a sobrecasaca direita, caindo-lhe sobre as curvas dos joelhos em grandes
dobras duras. E mostrava as imagens, uma a uma, os quadros parietais, representando
cenas da vida dos santos, os pequenos retábulos toscos e feios, o velho
confessionário atirado a um canto, o coro, os sinos, tudo. Padre Antônio
examinara a igreja com atenção, manifestando o seu parecer em
voz baixa e comedida, para não chocar melindres.
Era um templo muito modesto, de telha vã todo construído de
pau-a-pique, barrado de tabatinga. O teto carcomido abrigava inúmeras
cabas e morcegos, e os cupins daninhos iam devorando lentamente o madeiramento
da cobertura, mais gasto pelo abandono da que pelo decurso do tempo. As paredes
estavam cobertas de parasitas, e pelas falhas da verdura apareciam, como grandes
chagas, os buracos feitos pela queda do reboco, mostrando a argamassa ordinária.
Uma escada de pau, carcomida e trêmula, levava ao campanário,
onde se escondiam envergonhados os pequenos sinos, denunciados ao povo pela
voz de bronze bem fundido.
Visto de perto, não tinha a edifício a ar nobre e protetor
que lhe achara padre Antônio, mirando-o da amurada do vapor. Tinha,
pelo contrário, um aspecto miserável de ruína, como se
a fé que o levantara do chão houvesse ali esgotado o seu último
esforço.
Indignado, não podendo vencer uma ligeira alteração
na voz, denunciando o desapontamento que semelhante miséria lhe causara,
dissera, para o Macário que era uma vergonha uma igreja assim, e que,
se Deus Nosso Senhor lhe desse vida e saúde, melhoraria aquela falta
de decência, incompatível com o fim sublime a que se destinava
aquela casa.
O coletor, respeitosamente, defendeu os habitantes de Silves da censura,
à primeira vista justa, que as palavras de S. Rev.ma envolviam.
Ninguém era culpado dessa lástima senão o defunto vigário,
um padre muito boa coisa, mas que nenhum caso fazia da igreja, nem do culto
divino. O tempo não lhe chegava para dançar e tocar violão
à beira dos lagos, onde passava a maior parte do ano, deixando a freguesia
sem missa e sem socorros espirituais. Aí estava o Sr. Macário,
sabedor de bem boas passagens! Padre José fora uma espécie padre
João da Mata, o famoso vigário de Maués, que acabava
de morrer nos sertões de Guaranatuba, à beira do furo da Sapucaia,
onde passara a maior parte da vida a pescar tucunarés na companhia
duma soberba mameluca, que os regatões diziam um portento de formosura.
Ao menos padre João da Mata contentava-se com uma, embora por ela
esquecesse os deveres do seu cargo e o mundo inteiro, mas padre José!
isso era um sultão! Em matéria de dinheiro, era um deus-nos-acuda!
Já uma vez a Assembléia Provincial, a pedido dele capitão
Fonseca, votara uma verba para os consertos da Matriz, uma boa quantia, um
conto e quinhentos mil-réis, mas que acontecera? Padre José
fora nomeado presidente da comissão de obras, recebera o cobre num
passeio que dera a Manaus, e o comera com as caboclas da outra banda!
– Se não fosse o diacho da centralização, acrescentara
o Fonseca não teriam dado o dinheiro a padre José lá
na capital. Teria vindo, como devia ser, por intermédio da coletoria,
e eu saberia bem o que havia de fazer. Mal qual! Os homens da capital querem
tudo fazer por si, e o resultado foi aquela comezaina!
E terminou, em tom grave :
– Uma falta de patriotismo!
Padre Antônio ouvira aquelas maledicências com que o coletor
o adulava, abanando a cabeça, muito admirado. Pedira ao Macário
que lhe confirmasse a veracidade daquela história, e o sacristão,
cheio de si, cara tristonha, confirmara.
O coletor, triunfante, concluíra:
– Ora aí está. A verdade manda Deus que se diga. Em matéria
de dinheiros públicos sou intransigente.
O José Antônio Pereira, por entre os dentinhos podres, murmurou,
lisonjeiro:
– V.S.a é o exemplo dos exatores do Amazonas.
Examinada a igreja, pedira padre Antônio que lhe mostrassem os sagrados
paramentos, que o Macário pachorrento, lhe fora tirar duma cômoda
velha de cedro deslustrado. Outra miséria. Duas capas velhas, rotas,
sem brilho, pingadas de cera amarela; uma sobrepeliz esburacada, umas estolas
já sem cor; uma alva desmentindo a candidez do nome, tudo com uma aparência
triste, velha, de roupa sem préstimo tresandando a cânfora e
a excremento de rato. Os seus hábitos de asseio repeliram a idéia
de envergar aquela fatiota suja e indecente de padre relaxado. Formara, desde
logo, in petto , o projeto de encomendar uns paramentos novos e seus, com
o primeiro dinheiro que pudesse haver do pai, e, se tanto fosse preciso, escreveria
ao padrinho, pondo em contradição para o caso o seu espírito
religioso e a sua amizade incansável.
Notara com igual tristeza o estado das alfaias e vasos sagrados, e, contemplando
o velho cálice de prata dourada, oxidada e gasta, arrepiara-se todo
de repugnância e nojo, pensando descobrir em que lugar colaria os lábios,
que já não tivesse sido mil vezes babujado por uma série
de padres velhos sifilíticos e escorbúticos. Não tinha
a caridade extrema e inútil de S. Francisco Xavier no hospital de Veneza.
Era necessário cuidar, desde já, em mandar vir do Pará
um cálice novo para o seu uso particular.
O presidente da Câmara, alferes Neves Barriga, oferecera-lhe de almoçar,
uma refeição simples mas abundante, que o seu estômago,
acostumado à magra pitança do seminário, achara excelente.
O almoço fora dado na casa da Câmara, porque o Neves não
tinha casa na vila e estava de hóspede duma parenta pobre. Comera padre
Antônio com bom apetite, para mostrar que não era de cerimônia.
A senhora D. Eulália ficara encantada. Não cabia em si de contente
pela honra que lhe fazia o senhor vigário, comendo o seu tucumaré
cozido, com molho de limão e pimenta, e a sua galinha de cabidela,
banhada em louro e açafrão.
D. Eulália, andando da sala do banquete para a improvisada cozinha,
enxugando o suor do rosto com a manga do paletó de musselina branca,
não se cansava de lhe fazer elogios. Parecia uma boa velha, coitada!
O Neves, enterrando os dedos na grande caixa de rapé, dizia, com a
sua cara de carneiro manso:
– Eu, por meu gosto, morava, mas era só na vila. Isto aqui sempre
é outra coisa. Há gente com quem conversar, há recursos,
vêem-se caras novas. Mas a D. Eulália, coitada! não quer
deixar os xerimbabos!
Depois concluía, para convencer os convivas:
– Por isso é que eu aturo o sertão do Urubus. É um sacrifício
que a D. Eulália não paga.
A conversação versou sobre a moradia nos sítios do sertão.
O Neves dizia-se amigo dos centros populosos. O Fonseca abundava mesmas idéias:
– Isto de roça não é comigo. Preciso ver gente todos
os dias. Para um homem inteligente, o sertão é uma sepultura.
Padre Antônio gabara as vantagens dos lugares ermos para a meditação
e o estudo. Amava a grande solenidade das florestas virgens, a solidão
tranqüila dos rios sertanejos, a vasta campina silenciosa e triste.
O Valadão e o vereador João Carlos eram de parecer contrário,
e concordavam inteiramente com o senhor capitão Fonseca. Não
poderiam viver no ermo. Precisavam de movimento e de vida.
– Eu até acho Silves pequena e triste, cuspira, numa tosse convulsa,
o Valadão, esgrouviado e tísico.
O coletor, porém, defendera a vila:
– Sim, não direi que Silves seja tão alegre como a Barra, nem
tão grande como a capital do Pará, mas enfim… há vilas
piores, que digo! há cidades que não valem a nossa interessante
vila. Temos um bom porto, muitas casas de telhas, e a coletoria rende tanto
como a de Serpa. Se a nossa Matriz não está consertada, a culpa
é do defunto vigário que Deus haja…
– Temos boas lojas, disse o vereador João Carlos.
– A esse respeito, observara o José Antônio Pereira, basta olhar
para Vila Bela e fazer a comparação. Lá não há
senão a loja do Pechincha! concluiu, vitorioso, por entre os dentinhos
podres.
Todos mostraram desprezo pela loja do Pechincha.
Enfim! exclamara o coletor em tom profundo, temos uma coisa em que levamos
vantagem às grandes capitais.
– Temos moralidade, concluíra com aplausos gerais.
Depois do almoço, padre Antônio fora acompanhado à casa
que lhe haviam alugado, por trás da Matriz, e em que agora se achava.
Era uma habitação pequena, mas muito asseada, com um quintalzinho
plantado de goiabeiras e de bananeiras, tudo com ar alegre que enchia a alma
de bons pensamentos. O Neves Barriga, apesar de condenado a viver ao Urubus,
não tinha lá muito mau gosto.
Ao chegarem à sala do jantar, pela porta que dava para o quintal,
o vereador João Carlos mostrara o quintal vizinho, e explicara que
naquela casa, cujo telhado se avistava por entre as touças de bananeiras,
morava uma rapariga, desquitada do marido, uma tal Luísa Madeirense,
que se ocupava, para aparentar boa vida, em serviços de engomado. E
o capitão Fonseca, intervindo, fizera observar a padre Antônio
que da sua sala de jantar fácil lhe era ver, todo o santo dia, a moça
a labutar pela vida, indo ao quintal repetidas vezes a estender a roupa ensopada
em água de goma a borrifá-la de água pura, a tirá-la
da corda para a estender nas bandejas.
Depois acrescentara sorrindo:
– Se o Reverendíssimo precisar duma boa engomadeira, lá está
à mão a mesma que cuidava da roupa do defunto padre José.
O Valadão, tossindo todo arcado, também atirara a sua pedrinha:
– A vizinhança é uma das comodidades desta casa. O Macário
sacristão tem dedo para estas coisas.
Macário, muito sério, protestara, mas padre Antônio fingira
não perceber aquelas alusões brejeiras.
Passara todo o dia a receber visitas, e só agora, às três
hora da tarde, podia gozar algum repouso, concentrar o espírito e meditar
um pouco sobre os materiais objetivos que aquelas longas horas ocupadas lhe
haviam acumulado no cérebro.
Estava afinal só; e sentia um grande alivio. Ainda lhe soavam aos
ouvidos as vozes banais dos seus paroquianos, cuja solicitude obsequiadora
o perseguira desde a chegada até àquele momento em que o último,
o mais teimoso, o radiante Macário de Miranda Vale, se resolvera a
procurar um quarto para descalçar as botinas. O tanger dos sinos e
o estourar dos foguetes haviam cessado de todo, e a vila parecia ter retomado
a tranqüilidade morna que devia ser o modo ordinário duma povoação
sertaneja. Na rua, em frente ao presbitério ainda passavam vagarosamente
alguns curiosos insistentes, erguendo-se sobre os bicos dos pés, para
espiar pelas janelas abertas à viração da tarde, esperando
avistar o vigário novo ou descobrir alguma coisa interessante na sua
modesta vivenda. Mas padre Antônio os evitara, refugiando-se no interior
da habitação, no seu quarto, onde, cansado e moído deitou-se
na cama.
Pisando pela primeira vez o solo da paróquia onde vinha exercer funções
tão elevadas como as de pastorear um povo; achando-se frente a frente,
apenas saído do Seminário grande, com o problema prático
da vida, precisava reconhecer-se, saber o que faria, de que elementos de coragem
e força dispunha, para resolver com sabedoria e acerto a questão
que as circunstâncias lhe propunham.
As lutas que sustentara consigo mesmo haviam robustecido a vontade, que sobrepujara
o ardente temperamento de campônio livre, disciplinando os instintos
egoísticos da carne jovem.
Recordava-se, e a lição que tirava dos fatos firmava-o nessa
convicção.
Até entrar para o Seminário levara uma vida livre, solto nos
campos, ajudando a tocar o gado para a malhada, a meter as vacas no curral.
Montava os bezerros de seis meses e os poldros de ano e meio. Acordava cedo,
banhava-se no rio horas inteiras, e depois corria léguas à caça
dos ninhos de garças e de maguaris. Satisfazia o apetite sem peias,
nem precaução, nas goiabas verdes, nos araçás
silvestres e nos taperebás vermelhos, de perfume tentador e acidez
irritante.
Exercera imoderada tirania sobre os irmãos pequenos, sobre os escravos
e os animais domésticos, sobre as árvores do campo, os pássaros
da beira do rio e a pequena caça dos aningais. Trepara aos altos ingareiros,
atolara-se na lama dos brejos e dos chiqueiros, espojara-se na relva como
um burrico. Escondera-se nos buracos como as lontras dos lagos e as onças
das montanhas. Pulara, correra, brincara à sua vontade, saturando-se
do sol, de ar, de liberdade e de gozo.
O pai, o capitão Pedro Ribeiro de Morais, pequeno fazendeiro de Igarapé-mirim,
deixara-o crescer a seu gosto, sem cuidar um só instante em o instruir
e educar. A mãe, D. Brasília, sempre lhe dera algumas lições
de leitura, às escondidas do marido, que não gostava que aperreassem
a criança, mas quanto a disciplina e educação nenhuma
lhe deram nem podiam dar na pobre fazenda paterna.
Pedro Ribeiro era homem de idéias curtas, e de largos apetites nunca
saciados. Em rapaz, segundo contava o Filipe do Ver-o-peso, esbanjara no Pará
a pequena fortuna herdada dos pais, de que só lhe restava agora o sítio
em que nascera Antônio.
No isolamento da fazenda, vivendo entre negros e caboclos, Pedro Ribeiro
tornara-se brutal, despótico, egoísta em extremo, parecia que
o mundo fora feito para ele só, ou, pelo menos, que a sítio
das Laranjeiras só produzia para ele, e os seus habitantes só
deviam viver para o servir. A mulher, nulificada, triste mas resignada, fazendo-se
dócil,
submissa e aduladora para evitar brutalidades, chorava em silêncio.
Os filhos viviam à solta, sempre longe de casa, nos campos, no rio,
no curral, para fugir à presença terrível do velho e
à negra melancolia que devorava a pobre mãe desgraçada.
Antônio era o mais velho e o mais peralta. O padrinho, o comandante
superior, admirava-lhe a viveza, e um dia resolvera tomá-lo sob sua
proteção e mandá-lo à sua custa para o Seminário,
a fim de receber educação conveniente.
A pobre mãe quisera, a princípio, opor-se à resolução
do compadre coronel, sentindo-se incapaz de resistir às saudades do
Antonico, o seu filho predileto mas o bom senso e a lucidez intelectual de
que era dotada venceram a excesso de amor materno, e, debulhada em lágrimas,
deixou-o partir, depois de recomendá-lo muito aos cuidados do padrinho.
Quanto a Pedro Ribeiro, a idéia de vir a ter um filho padre lisonjeara-lhe
a vaidade.
0 Antonico, quando o mandaram para o Seminário, mal soletrava a História
do imperador Carlos Magno e dos doze pares de França, que o pai herdara
do avô e era o único livro que se encontrava na fazenda das Laranjeiras.
O livro já se sabia que era aquele. Mas compensando o atraso intelectual
e literário, o Antonico atirava com arco e flecha, governava uma montaria,
laçava um boi com ligeireza, subia à árvore mais alta
para desanichar uns ovos de japiim ou de tamburu-pará e perseguia as
mulatinhas da mãe, ainda não pertencentes ao serralho paterno,
com apertos e beliscões, significativos da puberdade incipiente.
Mal se amanhara, a princípio, com a batina e a volta com que o vestiram.
Os sapatos brancos, de couro cru disciplinares, arrebentaram-lhe os pés
em calos e frieiras que o torturaram por meses, sujeitando-o a ainda às
vaias e às caçoadas dos companheiros de classe. Mas o rigor
da disciplina, a convivência obrigada com rapazes educados, e o despertar
da inteligência, com a curiosidade de saber e a emulação,
foram-lhe pouco a pouco tirando o ar palerma e os modos achavascados, amorteceram
as saudades da mãe e da fazenda natal, e incutiram-lhe hábitos
de asseio e de ordem.
Por outro lado, o seu espírito indômito e a meio selvagem foi
paulatinamente cedendo à influência suave do cultivo e da doutrina
dos padres-mestres, mas não sem rebeldias bruscas e inesperadas que
tonteavam o padre reitor e tornavam necessárias as valentes palmatoadas
que lhe aplicava o carrasco do Seminário, um caboclo robusto e impassível,
de olhar estúpido e gestos de bonifrate.
No tocante aos ardores juvenis, que as mulatinhas haviam experimentado, pareciam
sopiados na atmosfera fria e severa em que se achava, se bem que às
vezes – com muito nojo o recordava – se desregrassem em extravagâncias,
confessadas na quaresma, e justamente punidas com jejuns e macerações,
a que Antônio se dava com um entusiasmo que lhe valia a admiração
dos mestres e a zombaria invejosa dos condiscípulos e cúmplices.
Alguns dias dava-lhe uma gana de satisfazer o apetite, devorando lascas de
pirarucu assado, com farinha-d’água e latas de marmelada, compradas
com os seus ganhos de acólito e cantor do coro. Apanhava indigestões
de queijo-do-reino e de bananas-da-terra, ingeridas às dúzias,
às escondidas, na latrina, para evitar a censura do confessor, a quem,
logo depois, quando lhe apertavam as cólicas e a moléstia se
denunciava, revelava a falta, culpando dela o demônio, pertinaz em o
perseguir e tentar. E jejuava severamente, privando-se de todo alimento dias
inteiros para purgar os pecados e provar o arrependimento.
Não saía nunca. O Felipe do Ver-o-peso, seu correspondente,
ou fosse recomendação do padrinho, ou esquecimento, jamais fora
buscar um domingo à tarde para passear, para respirar um pouco de ar
livre. Da cidade nada sabia, conservara a impressão que dela recebera
na tarde da chegada. O pai e o padrinho algumas vezes escreviam, o padrinho
para perguntar pelos progressos e o exortar a obedecer em tudo aos mestres,
que bem sabiam o que era conveniente; o pai para dar-lhe minuciosas notícias
da fazenda, a morte do mouro, o bom sucesso da malhada, a cobertura da Diana,
o roubo da Estrelinha, o combate dos garrotes com a onça, e outros
pormenores da vida rural que lhes causavam nostalgia intensa, afundando-o
numa melancolia negra. Mas as cartas eram raras, e na falta de comunicação
com a mãe e o mundo exterior, Antônio sentia o isolamento da
vida pesar-lhe sobre o coração e fechá-lo a todas as
expansões. Ficara assim, suspeitoso e arredio no trato dos colegas.
Mal visto deles, por força da sua superioridade incontestável,
passava horas de folga a enterrar-se nos velhos livros teológicos ou
de história eclesiástica, saturando-se das doutrinas absorventes
que os condiscípulos encaravam como boas tão-somente para ilustrar
o espírito.
A concentração em que vivia por força das circunstâncias,
entregara-o avidamente ao estudo dos tempos heróicos do cristianismo
exaltando-lhe a imaginação com os exemplos de abnegação
e de sacrifício dos mártires da Igreja. E ao passo que os colegas
decoravam tudo aquilo, para a utilidade prática dos sermões,
Antônio de Morais criava para si um mundo à parte, e ardia em
desejos de reproduzir neste século as lendas que enchiam aqueles livros
santos…
Quando se fora adiantando nos estudos e entrara a decifrar a filosofia de
Santo Tomás e do Genuense com auxílio de padre Azevedo, quando
cursara a teologia moral e dogmática, o seu espírito se perdera,
num dédalo de idéias antagônicas e contraditórias.
A dúvida, essa filha de Satanás, pairara sobre a sua alma de
ignorante, como um gavião prestes a devorá-la. O seu grosseiro
materialismo nativo abriu luta com as sutilezas da doutrina. O senso inculto
do campônio declarou guerra aos mistérios incompreensíveis
e sublimes que os padres lhe ensinavam da cadeira da verdade, muito senhores
de si, entre uma pitada de Paulo-Cordeiro e um bocejo sonolento.
Debalde espevitara o juízo, na ânsia de assegurar-se da verdade,
de agarrá-la fisicamente como a um bezerro rebelde. A sua mente era
como uma areia seca, em que o vento apaga os desenhos que o vento mesmo traçara.
Mal lhe parecia estar senhor duma idéia, já começava
a encará-la como duvidosa, e logo tão absurda que só
um asno maior da marca a poderia conceber. E se a inteligência algumas
vezes passivamente recebia a proposição do mestre e a gravava
como verdade incontestável, em outras ocasiões punha-se em atitude
belicosa, de lança em riste contra a doutrina da cadeira, que mal se
enunciava, logo lhe despertava no cérebro indisciplinado a idéia
exatamente contrária.
Fora assim que bastara a padre Azevedo pregar-lhe a doutrina ortodoxa de
que o papa é superior ao concílio, ainda geral e ecumênico,
para que a opinião galicana em contrário, fortalecida pelo sofístico
argumento de Gerson, de Noel Alexandre e de todos os bispos franceses, se
arraigasse no seu espírito propenso à rebeldia. E quando mais
entusiasmo gritava o professor na sua voz de falsete, enrouquecida pelo abuso
do rapé:
– Prima sedes a nemine judicatur!
Antônio mastigava baixinho a quarta proposição do Concílio
provincial de 1682, sintetizadora das liberdades da Igreja de França.
Sobre a questão de fazerem os pecadores parte da Igreja, ou deverem
dela ser excluídos, debalde sustentara o mestre a doutrina de Santo
Agostinho, em contestação à dos donatistas. Não
lograra convencer o discípulo, por mais que amontoasse textos das Sagradas
Escrituras, e declarasse que a opinião dos donatistas fora adotada
por Huss e por Lutero, quanto bastava para inficionar de heresia. A rebeldia
nativa do discípulo opunha-lhe à autoridade o concurso dos 296
bispos, combatidos pelo filho de Mônica na conferência de Cartago.
Padre Azevedo, esfregando nervosamente as ventas no lenço de Alcobaça,
respondia que na opinião de juiz competente, do papa Murtinho V, tanto
valia Agostinho como todos os mais doutores.
-Tantu unus quanti omnes! berrava vitoriosamente o mestre, relanceando os
vesgos olhos por sobre a classe convencida cujo silêncio aprovador esmagava
o contradicente, que, por fim, entrando na razão, sujeitava-se ao parecer
da cadeira.
Assim se passara a sua educação teológica entre a dúvida
e a contradição, duas filhas do demônio, infelizmente
alimentadas pela bonomia tolerante do professor, que admitia as objeções,
contanto que se chamassem simples dúvidas nascidas da pouca cultura.
A liberdade de discussão que lhe deixavam fortalecia-lhe a tendência
revolucionária do espírito, aguçava-lhe as sutilezas
da inteligência e habituava-o a procurar em todas as verdades o ponto
fraco para as combater, couraçando-se de sofismas com que a vaidade
buscava triunfar na argumentação, ao ponto de já lhe
não ser fácil perceber claramente o lado reto e seguro duma
controvérsia. E no recôndito da consciência confessava-se
incapaz de afirmar qualquer preceito ou de pensar com seriedade e inteireza
de ânimo.
Essa dubiedade tormentosa, causando-lhe as cruciantes dores da fraqueza consciente,
levara-o a extremos de submissão servil, que lhe lembravam a mãe
a adular as amantes do marido no meio de lágrimas da mais profunda
tristeza. Aqueles extremos reabilitavam o seminarista aso olhos dos padres-mestres,
mas no íntimo apenas cavavam mais fundo o vácuo do ceticismo,
pois que era uma submissão toda aparentes, momentânea, embora
sincera e de que ele se vingava, a sós consigo, no silêncio do
dormitório e das noites mal dormidas, levando o arrojo da sua contradição
e a ponta acerada dos seus sofismas à região das mais condenadas
heresias.
Conhecera e partilhara todos os erros que contristaram e dividiram a Igreja
Católica desde Orígenes até Lutero. À medida das
leituras, ia-se embebendo das doutrinas mais extravagantes e dos sofismas
mais grosseiros, pronto sempre a passar da verdade para o absurdo e do absurdo
para a verdade, parecendo-lhe o mais intrincado tecido de disparates um sistema
claro e consentâneo com a razão natural; e o mais simples preceito
de moral ou de civilidade afigurava-se-lhe uma regra de convenção
que a ignorância dos tempos impusera à boa fé dos pobres
de espírito.
Os apetites longamente sopitados e constrangidos sob a atmosfera claustral,
causavam-lhe aberrações de sentimento e obscureciam-lhe a razão
que, para os enganar, adotara os sistemas mais extraordinários e as
doutrinas mais imorais e anti-sociais que a loucura humana jamais concretizou
numa seita religiosa.
Fora maniqueu, como Santo Agostinho, e muitas vezes censurou a este ilustre
patriarca o ter-se convertido ao mistério da eucaristia, repugnante
à razão esclarecida (pretensiosa ignorância!), e ter esquecido
o preceito do mestre que toda a guerra é injusta e ilícita.
E no isolamento da sua pobre cama de vento exalava em suspiros de inveja os
ardores da paixão sensual que, sobretudo, o dominava, lamentando não
ter tido, como santo, ocasião de pecar antes da conversão, atolando-se
nos mistérios lúbricos e imundos com que aqueles hereges maniqueus
solenizavam as vigílias de determinadas noites, renovando os horrores
atribuídos aos gnósticos.
Fora milenário com S. Justino e Santo Ambrósio, e longas noites
sonhara a Jerusalém de ouro, cedro e cipreste em que ele, Antônio
de Morais, na companhia de Cristo e dos Santos Patriarcas, gozaria os mil
anos de ventura terrena prometidos por Papias em vista da tradição
e de textos expressos, que o seminarista lia, relia e meditava na convicção
da verdade, antegostando as delícias dum paraíso na terra, que
imaginava semelhante ao de Maomé, o árabe, com as huris muito
gozadas e eternamente virgens!
Como o Dr. Cerdon, passara as sua horas de meditação a sair
e entrar na ortodoxia. Acreditara na dualidade divina, como Marcion, com cuja
doutrina identificara-se por uma semana inteira, ficando-lhe ainda fundos
vestígios na alma e no coração dos princípios
ardentes e severos desse famoso herege, bem como das vacilações
e dúvidas com que lutou a sua existência inteira.
Fora místico, como o frígio Montário. Levara três
dias sem escovar os dentes e sem pentear o cabelo, apesar de ser o janota
do Seminário. Chegara mesmo a adotar a heresia dos valérios
e dos origenistas, mas não tivera a coragem de praticar em si mutilação
alguma, chegando a convencer-se de que estava em erro palmar, quando experimentara
as dorezinhas agudas duma canivetada de ensaio. Nos intervalos da adoção
duma e doutra heresia, voltava-se ardentemente para a ortodoxia com grandes
desalentos e tentativas de disciplinar-se.
O padrinho o viera ver algumas vezes ao Seminário, em raras viagens
que fazia à capital para sortir o sítio do necessário
e habilitar-se a negociar com os matutos da vizinhança.
Trazia lembranças do pai que, coitado, não podia deixar a fazenda
e aventurar-se a uma viagem dispendiosa e difícil, tanto mais que jurara
nunca mais voltar à cidade de Belém, cheia de marinheiros insolentes
e de pelintras malcriados. A comadre D. Brasília confiava de Deus e
da Virgem o apressarem o dia em que pudesse abraçar o seu querido padre,
e ouvir-lhe a missa num recolhimento íntimo e gozoso. Não escrevia
porque, na fazenda das Laranjeiras, só quem dispunha de papel e tinta
era o patrão, conforme o Antonico já sabia. Dado o seu recado,
o padrinho retirava-se, recomendando muito ao afilhado que obedecesse bem
ao senhores padres, que não os contrariasse em coisa alguma, porque
só com uma conduta dócil e submissa lhes granjearia a estima
e proteção indispensáveis à carreira que ia encetar.
Quando o padrinho saía para não voltar senão depois
de seis ou doze meses, Antônio sentia de novo a impressão do
isolamento em que caía, e absorvia-se outra vez em pensamentos tumultuosos
e divoradores. Meditando as palavras do velho, reconhecia que eram justas
e ajuizadas, filhas do bom senso prático, mas o seu temperamento ardente
nem sempre lhe permitia adaptar a tais conselhos a sua conduta no Seminário,
e apesar do propósito feito de prudência, a levedura de contradição
que fermentava no seu espírito, continuava a agitá-lo numa luta
interior dolorosa e estéril.
Roía dentro de si as aberrações da inteligência
e do coração no que tocava na teologia dogmática e na
filosofia moral, porque compreendia bem que manifestar tais aberrações
seria trancar ao seu futuro as portas do estado eclesiástico a que
se destinava. Mas o espírito de protestantismo e de rebeldia desafogava-se
nas discussões da teologia moral em que, dizia padre Azevedo, citando
um escritor católico, a Igreja permite alguma liberdade de opinião
aos seus adeptos, por efeito da Divina providência, porque uma vez que
o apetite humano tem cobrado tanta resistência ao honesto e justo, melhor
será ampliar a esfera deste com probabilidades, do que reduzi-lo a
termos de arremessar-se ao pecado conhecido por tal.
Usando e abusando dessa permissão e da tolerância de padre Azevedo,
com que não podia contar em matéria de dogma, Antônio
abrira os diques à eloqüência, banhara-se em controvérsias,
e de narinas dilatadas, olhar em fogo, boca espumante de entusiasmo, vibrara
o estilete da objeção contra a doutrina da cadeira, com um ar
de triunfo que fazia pasmar a classe. Pusera em sobressalto a ortodoxia do
professor, discutindo a matéria das vinte e uma proposições
condenadas por Alexandre VII em 1665, e, principalmente, a proposição
condenada por Inocêncio XII, relativa à validade do sacramento
da penitência em face da não idoneidade do confessor. Padre Azevedo
apertado da urgência da resposta, cedera muitas vezes à lógica
do discípulo, invocando, por fim, a sua autoridade privada para fazer
calar o moço discutidor. Antônio saíra da aula dizendo
para os companheiros que o levara à parede, o que – agora o reconhecia
pesaroso – era duma vaidade pueril.
Uma vez chegara a derrotar completamente o mestre, sustentando com Teodoro
de Beza que para a salvação da alma bastava a fé em Deus
e em Jesus Cristo, sendo escusadas as boas obras, coisas decentes e convenientes,
mas não indispensáveis à salvação eterna.
Embalde padre Azevedo, tomando o partido da boa razão e da sã
moral lhe perguntara como poderia Cristo, no dia do juízo final, apartar
os bons dos maus e pesá-los na balança da sua justiça,
condenando ao fogo eterno os que vendo-o com fome não lhe deram de
comer; vendo-o com sede não lhe deram de beber; vendo-o nu não
deram de vestir etc.
Antônio de pé, com o braço estendido, em atitude vitoriosa
atirara à cabeça do padre aturdido com o exemplo do bom ladrão,
e, depois, sem descanso, o submergira num dilúvio de textos sagrados
pedidos ao Evangélio de S. João, a Santo Ambrósio, a
S. Bernardo e a outros Doutores da Igreja. E por fim, por golpe de graça,
descarregara a célebre frase de Santo Agostinho, que, no entender do
próprio mestre, valia por todos os Doutores:
– Hæc est charitas quam si solam habueris, sufficit tibi.
E dominado pelo demônio da vaidade, para amesquinhar o adversário,
traduzira:
– Este é o amor de Deus que, se nada mais tiveres, bastar-te-á.
Terminara por fim, perdendo toda a noção de respeito e da desigualdade
das posições, imitando a voz fanhosa do mestre:
– Tantus unus quanti omnes!
Ouvindo tão decisivo texto do grande Patriarca, e percebendo a sátira
da última citação, padre Azevedo perdera a tramontana,
e levantando-se indignado, condenara o discípulo a jejuar todo aquele
dia a pão e água.
Mas Antônio, vítima indefesa do demônio da rebeldia e
da vaidade, eletrizado pela vitória que julgara tão brilhantemente
alcançada, declarara com arrogância:
– Não posso jejuar hoje, porque é sábado, nem amanhã,
porque é domingo. Um bom cristão não pode fazer de tristeza
o dia em que o Senhor descansou e em que Judas se enforcou, nem tampouco o
dia em que Jesus Cristo ressuscitou. Já os sagrados Apóstolos
o ensinaram e S. Clemente Romano o repetiu nas Constituições
Apostólicas. Santo Inácio disse que quem jejua aos sábados
e domingos é matador de Cristo – Si quis dominicam diem… V. Rev.ma
sabe o resto. Ora eu não quero ser o matador do meu Deus, coisa de
que Nosso Senhor de Belém me livre…
A heresia era evidente, e desta vez complicada desobediência e desrespeito
formais. Padre Azevedo ficara verde de indignação, que a muito
custo concentrara por alguns momentos, atendo-se a um silêncio esmagador
que pesou sobre toda a classe e produziu sobre Antônio de Morais o efeito
dum calmante poderoso, que lhe permitiu entrever o excesso de vaidade o levara.
Os colegas miravam-no com desprezo mesclado do santo horror da heresia. Ele
próprio, encontrando-se no meio da sala, com o braço estendido,
achou-se ridículo, cheio de fatuidade e ignorância, vítima
indefesa do demônio que lhe tentava o amor de aplausos para melhor lhe
segurar a alma…
Mas o silêncio do mestre não fora demorado, que não lho
permitia a índole barulhenta. Largara a cadeira, num ímpeto
de vingança pessoal, mas a consideração do organismo
atlético do campônio que tinha diante de si transformado em formigão,
ou o sentimento da dignidade do cargo obrigou-o a recorrer à autoridade
do reitor, que não tardou em aparecer, sombrio e grave na sua batina
negra.
Fora informado do ocorrido, e mostrava no rosto o espanto causado pela rebeldia
do seminarista, e a resolução firme de dobrar aquela vontade
exaltada e impetuosa. A campanha estava de antemão vencida. Antônio
nenhuma resistência opusera ao carrasco. Roera a dúzia de bolos
com resignação evangélica, e entrara para o cárcere
submisso e arrependido, curtindo em silêncio o áspero jejum de
três dias a pão e água.
Caíra em grande abatimento de espírito. Encarara como devia
o seu inqualificável procedimento, inspiração do demônio.
Sentira a necessidade dolorosa duma penitência severa, proporcionada
ao pecado mortal em que abismara a alma. Exagerar mesmo a gravidade da culpa,
e nas largas insônias daquelas três noites magras, a fome causara-lhe
alucinações terríveis, que dificilmente o seu organismo
de matuto, acostumado à alimentação abundante, podia
dominar. Persuadira-se de que já estava condenado ao inferno, e ficara
horas inteiras, hirto e pálido, sobre a esteira que lhe servia de cama,
sentindo um suor frio correr-lhe pela fronte, quando a idéia da morte
a surpreendê-lo em pecado mortal vinha assaltar-lhe a mente enferma.
Recordara, outras vezes, as descrições que lera das penas do
inferno, dos suplícios tremendos que aguardam os condenados, e sobretudo,
a idéia da eternidade dos castigos apavorava-o a tal ponto, que se
pusera a menoscabar os espantosos padecimentos dos confessores da fé,
desses sublimes heróis do cristianismo que com justiça a Igreja
proclama santos, por não parecerem homens. Pensara, no seu terror,
que nada eram esses sofrimentos, desde que com eles, rigorosamente, se comprava
– dá cá, toma lá – a salvação eterna. Julgara-se
então capaz do mais cruel martírio, e o próprio S. Quintino
não lhe levaria a palma no prazer com que se banharia em azeite fervendo
e se deixaria fritar pez derretida. Imaginara uma vida de ascetismo tal que
deixasse obscurecida a fama dos Hilariões, Antões e Macários,
e mesmo a do grande S. Jacó, no último quartel da sua longa
acidentada existência.
Mas – infelizmente – se recordava a sobranceira e desprendimento deste decantado
anacoreta, friccionando o peito da pecadora com a mão direita, enquanto
deixava arder a esquerda ao calor dum braseiro, não podia esquecer
o assassinato cometido pelo santo depois de velho e de ter ganho fama de virtudes,
em uma jovem de boa família que lhe fora confiada para a catequese,
e que, primeiro, deflorara, e, depois, cortara em pedacinhos para esconder
os vestígios do crime…E, mau grado seu, os ardores da sensualidade
que procurara comprimir voltavam-lhe em bando sem disciplina, evocando a lembrança
de grandes pecadores convertidos, e dando-lhe uma ânsia de cometer mais
pecados ainda para remi-los todos por um arrependimento sincero, capaz dos
maiores sacrifícios e tormentos. Umas vezes requeimava-se ao fogo da
concupiscência, sonhando maiores devassidões em que se atolasse
duma assentada na plena imundície dos vícios mais desregrados,
para saciar a fome de deleites que o devorava, e poder, morta de gozo a parte
terrena e demoníaca do seu ser, elevar a alma às regiões
sublimes do Amor Divino, pura de toda a mancha do interesse carnal. Outras
vezes, queria imaterializar o corpo, dominando-lhe os apetites com o estoicismo
de S. Vicente de Paula ou de Santo Efrém, invejando as tentações
que sofreram, somente pelo gosto de as colafizar sobranceiramente.
Ao quarto dia, quando lhe vieram abrir do cárcere, estava magro e
pálido, denunciando no olhar febril e na agitação do
pulso a exaltação que o possuía. Devorara o almoço
com um apetite de três dias, e recolhera-se ao dormitório, dizendo-se
adoentado.
– Esta febre, dissera o reitor, é obra do demônio da soberba.
A heresia e desobediência de Antônio de Morais causaram grande
escândalo no corpo docente, tendo mesmo chegado aos ouvidos do senhor
bispo, que muito as estranhara num aluno do Seminário maior.
O reitor dissera um dia à cabeceira do enfermo, julgando-o adormecido:
– É necessário não perder de vista esta alma vacilante.
Convém quebrar-lhe a vontade a poder de jejuns e penitências.
A obra anunciada começara em breve, para a felicidade do futuro padre,
combatido pelo demônio, auxiliado pelo seu grosseiro temperamento de
campônio sensual. Foram duras as provações salutares que
lhe impuseram por longos dois meses. Forçavam-no a não satisfazer
o apetite, obrigando-o a deixar o jantar em meio para ler aos colegas um capítulo
da História Sagrada. Não dormia as suas noites inteiras. Acordavam-no
à meia-noite para velar o Santíssimo Sacramento na capela do
Seminário. Amesquinhado pela severidade com que o tratavam nas classes,
posto num banco isolado, para não contaminar os condiscípulos
que o olhavam com zombaria; mal visto dos professores, privado do recreio
e entregue a uma meditação constante. Antônio, cujo físico
não se abalou, graças à sua robustez camponesa, ficara
sem ânimo de reagir contra aquela bendita opressão de todos os
dias e de todos os instantes. A enorme vaidade que herdara dos instintos desregrados
do pai cedera o passo à humildade de coração, santificadora
e eficaz, com que viera afinal a acomodar-se ao regime da disciplina clerical.
Modificara-se. Tornara-se morigerado e dócil. Sofrera com resignação
todas as contrariedades com que os senhores padres teimavam em impor-lhe uma
submissão que já não recusava, buscando inspirar-se no
exemplo da mãe resignada e humilde. Não deixava escapar uma
queixa. Compreendia que precisava sujeitar-se ao meio em que as circunstâncias
o colocavam para poder um dia, digna e proficuamente, seguir a carreira a
que uma irresistível vocação o chamava.
O reitor convencera-se, enfim, de que operara uma conversão milagrosa,
e apenas impusera a Antônio de Morais, como condição para
receber as ordens maiores, o fazer um retiro espiritual no convento de Santo
Antônio, dando-lhe para meditar o tema – Da malícia e das conseqüências
do pecado venial.
Agora que estava de posse da vigararia livremente escolhida, tendo, no momento
de iniciar definitivamente a sua carreira sacerdotal, sondado o fundo do seu
coração, sentia-se cheio de força e de vigor para as
lutas da vida.
Sofrera muito no Seminário, mas desses tormentos indizíveis,
de que apenas recordava os transes principais, saíra robustecido na
fé e na crença, e com a segurança do seu valor próprio,
da sua máscula energia, da sua inquebrável força de vontade.
Macário, batendo devagarinho à porta do quarto, comunicou respeitosamente:
– Saberá V. Rev.ma que a janta está na mesa.
CAPÍTULO III
Chovia. Era um aguaceiro forte de meados de março que lavara as ruas
malcuidadas da vila, ensopando o solo ressequido pelos ardores do verão.
O professor Francisco Fidêncio Nunes despedira cedo os rapazes da classe
de latim, os únicos que haviam afrontado o temporal; e olhava pela
janela aberta, sem vidros, pensando na necessidade que lhe impusera o Regalado
de passar aquele dia inteiro dentro de quatro paredes, por causa da umidade,
fatal ao seu fígado engorgitado.
A caseira, uma mulata ainda nova, chamara-o para almoçar.
Naquele dia podia oferecer-lhe uma boa posta de pirarucu fresco, e umas excelentes
bananas-da-terra, que lhe mandara de presente a velha Chica ha Beira do lago,
cujo filho cursava gratuitamente as aulas do professor. A caseira, a Maria
Miquelina, sabendo que o senhor professor não poderia comer as bananas
cruas, por causa da dieta homeopática do Regalado, cozera-as muito
bem em água e sal, preparara-as com manteiga e açúcar
e pusera-as no prato, douradas e apetitosas.
Mas o dono da casa nem sequer as provara. Fizera má cara também
ao pirarucu fresco, rosado e cheiroso, preparado com cebolas e tomates, e,
por almoço, tomara apenas uma xícara de café forte com
uma rosquinha torrada, porque a estômago lhe não permitia alimento
de mais sustância. Tivera durante a noite um derramamento de bílis,
devido à mudança de tempo, erguera-se de cabeça amarrada,
ictérico e nervoso. Fora ríspido com os dois ou três rapazes
que compareceram à classe de latim, e despedira-os dizendo que iam
ter férias, porque a semana santa se aproximava. Tratassem de decorar
bem o Novo método, senão pregava-lhes uma peça.
Depois da saída deles, Chico Fidêncio ficara aborecido, vagamente
arrependido de os ter despachado tão cedo. Que iria fazer agora? A
chuva continuara a cair torrencialmente, transformando a rua num regato volumoso
que arrastava paus, folhas, velhos paneiros sem préstimo, latas vazias
e barcos de papel, feitos pela criançada vadia que não tinha
medo à chuva. Não passava ninguém, para dar uma prosa.
As casas vizinhas estavam fechadas, para evitar que a chuva penetrasse pelas
janelas sem vidraça. A flauta do Chico Ferreira, às moscas na
alfaiataria, interrompia o silêncio da vila recolhida, casando os sons
agudos e picados com o ruído monótono da água repenicando
nos telhados.
Que dia estúpido aquele! Silêncio na rua, silêncio na
casa! Nem ao menos a Maria Miquelina, de ordinário palradora, queria
falar agora! Amuada, pois que o professor lhe desprezara o almoça,
sentara-se a um canto de sala de jantar e fazia rendas, silenciosa e trombuda.
Francisco Fidêncio voltara da varanda, e passeava a sala visitas, onde
dava as aulas cruzando-a em todos os sentidos, parando diante duma mesa, ora
em frente a um quadro, umas vezes ante a porta cerrada, como se tivesse vontade
de sair, outras vezes defronte à janela aberta, para olhar a rua, silenciosa
e molhada.
Era uma sala pequena, mal caiada, de chão de terra batida, coberta
de palha de pindoba escura, uma sala miserável de pobre habitação
sertaneja, mas com pretensões a aposento decente. A mobília
constava de dois compridos bancos, postos um atrás do outro. Perto
duma grande mesa de pinho mal envernizado. Outra mesa pequena colocada a um
ângulo da sala era servida por uma cadeira, a única existente,
de palhinha branca, de uso antigo. Sobre as duas mesas havia tinteiros, papéis,
alguns livros velhos. Da parede do fundo pendiam, em quadro de madeira preta,
uma litografia ordinária representando o conselheiro Joaquim Saldanha
Marinho, e mais abaixo, num pequeno quadro de moldura dourada, muito gasta,
uma gravura burlesca e desrespeitosa intitulada – O sonho de Pio IX. Numa
das paredes laterais, pendentes dum pequeno cabide de bambu falso, estavam
um chapéu de homem, um guarda-chuva de alpaca cor de pinhão
e uma opa de irmão do Santíssimo, ostentando audaciosamente
o seu encarnado vivo, ferindo os olhos. Ao lado, sobre um caixão virado,
uma rima de jornais em desordem sustentava um candeeiro para querosene, sem
abajur e com chaminé rachada. Na parede fronteira, numa litografia
de jornal caricato pregada com quatro obreias verdes o papa Ganganelli fulminava
com os raios pontificiais a Companhia de Jesus.
No chão mal varrido, com grandes manchas pretas feitas pelos pés
molhados dos alunos de latim, pontas de cigarros e palitos de fósforo
fraternizavam. Uma galinha com pintos ciscava embaixo da mesa grande, cacarejando.
Francisco Fidêncio lembrara-se de matar as longas horas desocupadas
lendo alguma coisa. Mas que leria? Os últimos jornais chegados do Pará
já haviam sido inteiramente devorados, lera-os todos e nada achara
neles que lhe prendesse a atenção, e menos ainda merecesse segunda
leitura. Os de Manaus também nada traziam de novo. As costumadas descomposturas
ao presidente da província, uma notícia ou outra e os anúncios
banais, em letras grandes, espaçadas. De livros estava farto. Bastava-lhe
a maçada de os ler obrigatoriamente na aula, todos os dias, para lecionar
os discípulos. Não iria agora dar-se ao luxo de estudar a lição
do dia seguinte! Nada, que ele não era o seu colega Aníbal Americano!
Podia escrever para ocupar-se. Foi à pequena mesa do canto da sala,
abriu uma gaveta, tirou algumas folhas de papel, caneta e pena, puxou a cadeira
de palhinha, sentou-se e traçou sobre a alvura do papel em tiras as
seguintes palavras:
"Amigo redator".
Depôs a pena, cruzou os braços sobre a mesa, e pôs-se
a soletrar aquelas palavras, muito aborrecido.
Que diabo escreveria ele? Contaria o mau tempo que reinava em Silves, a falta
do pirarucu e a carestia da farinha? Que lhe importava isso? Que interesse
tinha de noticiar coisas tão banais aos seus leitores, e que graça
achariam estes em conhecer tais borracheiras?
Só havia um assunto possível, em que poderia espraiar-se, lançando
um belo artigo capaz de fazer sensação. Esse assunto era padre
Antônio de Morais. Mas havia um mês que padre Antônio chegara,
e Chico Fidêncio ainda não pudera formar dele um juízo
definitivo, nem achara motivo para um pequeno artigo. Bem não queria
dizer mal do vigário, porque isso era contra os seus princípios.
Para dizer mal era preciso uma base, um motivo, um pretexto ao menos, e essa
base, esse motivo, esse pretexto não aparecia.
Por isso andava a Chico Fidêncio muito descontente, por isso, talvez,
se agravara a hepatite.
Todo aquele mês passara o padre Antônio de Morais em projetos
de reforma da paróquia, em assear o templo, em confessar beatas, examinar
crianças ao catecismo, dizer missas e cantar ladainhas. A população
estava muito satisfeita. Nunca vira um vigário assim tão sério
e zeloso, tão ativo e pontual. Pela manhã a missa, rezada devagar,
a durar vinte minutos pelo menos, macerando os joelhos do povo nos tijolos
da capela-mor. Em seguida, a confissão longa, minuciosa, cheia de conselhos
patemais e de repreensões bondosas. A Maria Miquelina fora confessar-se,
a mandado do professor, e voltara maravilhada. Ao meio-dia a aula dos pequenos;
à noite a ladainha, puxada pelo vigário em pessoa, à
luz duvidosa das lâmpadas de azeite de mamona…isto um mês a
fio… uma delícia! no dizer da senhora D. Eulália. Beatas velhas
e beatas novas bebiam os ares pelo padre vigário, rapagão de
vinte e dois anos, simpático, bem apessoado e de mais a mais um santo!
Sempre sério, bondoso, paternal, caminhando de olhos pregados no chão,
falando baixinho, minha filha, minha irmã, em voz suave e melíflua,
que fazia correr um calafrio pela espinha dorsal das devotas, acostumadas
às graçolas chocarreiras do defunto padre José. D. Cirila,
mulher do capitão Fonseca, D. Dinildes, irmã do Mapa-Múndi,
e a famosa D. Prudência, viúva do Joaquim Feliciano, não
se fartavam de gabá-lo, admirando-lhe a barba bem escanhoada, o cabelo
luzidio e penteado, a batina nova, a alva camisa engomada, os sapatos envernizados
a capricho, o todo de petimetre de sotaina, que contrastava de modo frisante
com as sobrecasacas domingueiras compridas e lustrosas, e com as largas calças
brancas e os sapatos grossos, de couro cru, dos rapazes mais atirados da terra.
E o mulherio todo as secundava nos elogios ao padreco. Até a Maria
Miquelina, a negrada! tinha as suas simpatias pelo troca-tintas do vigário!
Tanto entusiasmo das mulheres teria certamente despertado o ciúme
e o ódio dos homens, se, pelo seu procedimento – irrepreensível
– não lhes tivesse padre Antônio captado a benevolência.
Nenhuma fraqueza lhe conheciam. Essa virtude inexpugnável causava
pasmo ao Chico Fidêncio, desnorteava-o. Na sua opinião todos
os padres eram mais ou menos como os cardeais do quadro de moldura dourada,
sotoposta ao retrato do Ganganelli brasileiro: uns pândegos que bebiam
champanhe abraçando irmãs de caridade. Entretanto com padre
Antônio de Morais não se dava isso. A Luísa Madeirense
perdera completamente os seus requebros, as suas provocações
impudentes. Nem sequer lhe conseguira apanhar a freguesia do engomado, que
fora dada à mulher do coletor, senhora quarentona e respeitável.
D. Prudência debalde gastara dúzias de ovos em compoteiras de
cocada amarela, com que o Macário sacristão apanhava azias desesperadas.
S. Rev.ma lhas agradecia pelo portador, mas não a visitava. Todo trabalho
entregue aos trabalhos do culto, parecia superior às fragilidades humanas.
Andava atarefado, embebido na preocupação de regularizar o serviço
da Igreja. Parecia querer ser um pároco modelo, solícito, atento
e dedicado.
Na sua casinha solitária, acompanhado pelo Macário sacristão
que lhe governava a casa, e servido por um preto velho que trouxera do Pará,
levava a vida austera dum padre de S. Sulpício. Jamais nenhum dos sujeitos
que viviam em Silves da espionagem da vida alheia, nem o Maneco Furtado, nem
o Cazuza dos Tamarindos, pudera, naquele mês inteiro, divisar entre
os umbrais da porta da entrada, ou na abertura da cerca do quintal, um vulto
suspeito de mulher. Era simplesmente admirável.
O Macário sacristão, empanzinado de gulodices, palitando os
dentes, satisfeito do mundo, clamava na vila que nunca vira um homem assim,
que um padre daquele feitio era uma coisa espantosa. E batia-se, em discussões
calorosas, com os maliciosos que, mais por pirraça ao sacrista do que
por convicção, notavam a facilidade que havia em passar, sem
ser visto da casa do vigário para o quintal da Luísa Madeirense.
O Macário punha a mão ao fogo pela castidade de S. Rev. ma.
É verdade que havia tentações… a Madeirense fazia o
diabo! E uma certa viuvinha então? Era querer e estava feito, mas não!
S. Rev. ma não queria. Macário desafiava a toda a gente a que
o pilhasse em falso. Ele próprio, Francisco Fidêncio Nunes, o
terrível inimigo dos padres, que escrevia correspondências para
o Democrata, de Manaus, em que vazava a bílis revolucionária
e ateísta, para esfregar aquela súcia, era obrigado a confessar
que ou padre Antônio era um santo ou um verdadeiro ministro do altar!
O professor ergueu-se desanimado, deixando cair a caneta que tinha entre
os dedos. Foi à varanda, onde a Maria Miquelina, sentada a um canto,
tendo diante de si uma grande almofada branca, fazia rendas de bico, silenciosa
e trombuda.
– Então o tal padreco é mesmo um Santantoninho, Maria Miquelina!
A mulata não respondeu.
– Tens as bananas atravessadas na garganta, rapariga? Olha que se me móis,
não janto.
As bananas estavam perdidas, mas era preciso salvar a honra do pirarucu fresco,
que a caseira guardara para a refeição da tarde, fritando-o
em fino azeite doce. Estava de tentar.
– Olhe, seu Chico, disse a mulata depois duma pausa; vuncê sabe que
eu não gosto de homens de saia. Mas o vigarinho é um santo,
lá isso ninguém me tira.
O professor voltou para a sala, sentou-se de novo à mesa, pegou na
pena e começou a escrever:
"O escritor destas modestas e despretensiosas linhas…"
Mas largou a caneta, sem ânimo de prosseguir. Não queria elogiar
o padre, não queria comprometer-se. Demais, estava com um ferro por
causa da Maria Miquelina! E não se conformava facilmente com os olhos
baixos e o falar melífluo daquele padre elegante e belo.
Havia um ano que o Chico Fidêncio se estabelecera em Silves, espantando
os pacatos habitantes da vila com as suas teorias irreverentes e ousadas,
fascinando-os, tinha presunção disso, com o seu verbo colorido
e ardente, espicaçando-lhes a mole diferença com o aguilhão
das suas críticas acerbas e dos seus sarcasmos ferinos, dominando-os
pelo espírito desembaraçado de convenções e dos
prejuízos da estreita vida de aldeia.
Era natural do Rio de Janeiro, carioca da gema. Aquilo, sim é que
era terra! Cursara dois anos da antiga Escola Central. Não gostara
das matemáticas, era mais amigo das ciências sociais, e se fora
rico, teria ido estudar a S. Paulo, teria entrado para a troça do Varela,
do Castro Alves, teria sido talvez um Álvares de Azevedo. Era, porém
muito pobre. Um tio, que o ajudava, fartara-se de o aturar e pusera-o fora
de casa, quando saíra reprovado em cálculo diferencial, ao segundo
ano. Arranjaram-lhe um lugar de caixeiro de armarinho à Rua do Cano,
mas não ficara no emprego mais de três meses. O patrão
era um galego, burro como seiscentos galegos e malcriado como todos os da
sua igualha. Chico Fidêncio não estivera para o aturar, e despedira-se
da casa, passando-lhe uma descompostura descabelada. Um dos fregueses do armarinho,
que tinha queixas do patrão, meteu-o de condutor num ônibus de
carreira de S. Cristóvão. Era uma vida deliciosa, divertida,
cheia de episódios interessante e que contribuíra muito para
a educação do Chico Fidêncio. Ouvia tanta coisa! Estava
a par da política toda, conhecia todos os homens notáveis, sabia
de mil pormenores da sua vida pública e particular. Soubera da resolução
do ministério na crise bancária de 1864, antes de publicada
nos jornais, vira Christie furioso, por ocasião do conflito entre o
Brasil e a Inglaterra, dera fogo ao José Liberato quando fora pela
primeira vez a S. Cristóvão! Era uma vida deliciosa, toda a
gente o conhecia e o cumprimentava, dava-lhe cigarros. Infelizmente fora obrigado
a deixá-la por intrigas dum cocheiro, seu inimigo. Havia já
dado um passo decisivo na vida… entrara para a maçonaria! E o primeiro
benefício que tirara dessa acertada resolução fora conseguir
um lugar de despenseiro a bordo do vapor Santa Cruz, da Companhia Brasileira
do Norte. Mais tarde, numa das viagens deixar-se ficar no Pará, porque
enjoava muito, não nascera para a vida do mar. Tinha feito amizade
a bordo com um deputado geral, cuja família gostava das passas, nozes
e figos secos, com que Chico a presenteava generosamente. Obtivera uma cadeira
pública, num arrabalde de capital, e a regenera durante um ano inteiro.
Mas rompera a questão religiosa, e o Chico Fidêncio, fiel aos
seu homens de roupeta que ele importava de Roma. A nomeação
era interina, e o presidente, um carola, que ouvia missa todos os domingos,
quisera ser agradável a D. Antônio, e demitira o professor amigo
do livre-exame. Ficara então sem recursos. Recorrera à maçonaria,
mas a maçonaria era impotente na administração daquele
rato de sacristia que governava a província. Só podia obter
um emprego no comércio, mas as suas aspirações não
se davam com tal modo de vida. Demais, no comércio do Pará governavam
os portugueses, e o Fidêncio, apesar de maçom enragé,
nunca perdoara aos portugueses os desaforos que sofrera do dono do armarinho.
Antes morrer de fome do que, no seu país, sujeitar-se novamente a ser
mandado por um galego!
Enfim, Silves não pertencia ao Pará. O seu amigo Filipe do
Ver-o-peso, um português excepcional, dissera-lhe que Silves era uma
boa terra, não tinha professor que prestasse, e oferecera-lhe uma carta
de recomendação para o seu correspondente Costa e Silva. Viera
para tentar fortuna, e aqui soubera granjear muita consideração,
graças à sua incontestável inteligência e aos conhecimentos
que obtivera na sua acidentada existência.
A principio encontrara franca hostilidade, principalmente das mulheres, que
o achavam antipático e desagradável, as lambisgóias!
Como se ele não fosse da corte do Rio de Janeiro, que elas nunca haviam
de conhecer! Depois embirraram com as suas idéias anti-religiosas,
porque as expunha com a máxima franqueza, a todo o momento em qualquer
ocasião, sem resguardo das conveniências devidas às pessoas
e aos lugares. Ninguém lhe dera discípulos, poucos o cortejavam,
nenhuma família lhe oferecera a casa. Até o próprio Costa
e Silva, posto estivesse arrochado pela carta do Filipe do Ver-o-peso, tivera
certas friezas, porque era católico, achava a religião necessária,
principalmente para o povo. Parecia que temiam a infecção das
heresias daquele inimigo da Igreja, já condenado em vida às
penas eternas.
Fidêncio ergueu-se de novo, foi à janela e cuspiu para fora:
– Idiotas!
Voltou para junto da mesa, aliviado, preparou um cigarro, acendeu-o, sentou-se
de novo firmando-se sobre os pés traseiros da cadeira, utilizada para
balanço e, reatou o fio das suas recordações:
Alguns homens, na fácil convivência das portas das lojas, onde
à tarde se renova diariamente o processo da sindicância da vida
alheia, começaram a gostar de ouvir dizer mal de tudo e de todos, com
umas frases novas, uns ditozinhos agudos, uma certa maneira de exprimir as
idéias, entremeando calemburgos com palavrões sonoros e sibilando
muito os ss, que adquirira ao tempo de estudante e de caixeiro de armarinho.
Conquistara a fácil mentalidade dos bons matutos de Silves, posto não
lograsse cativar-lhes o coração desconfiado. Mas o Chico Fidêncio
tinha tanta graça! Tinha uns modos não sei como o diacho do
mestre-escola! Sabia tão bem o ridículo duma pessoa ou duma
coisa, que os seus ataques eram irresistíveis. Os matutos reconheciam
assim, o seu incontestável mérito.
Um dia, lembrara-se de escrever uma correspondência para uma folha
de Manaus, a propósito da última sessão do júri
no termo, e dissera umas coisas agradáveis ao juiz de direito que lhe
valeram a proposta para adjunto do promotor público, cargo que nunca
fora servido na comarca e de que não havia necessidade. E satisfeito
com o resultado obtido pusera-se em ativa correspondência com o jornal
de Manaus, o Democrata, órgão público, noticioso, comercial,
científico e independente, que lhe estampara a prosa, contente por
ter matéria nova com que encher as colunas da obrigação.
As cartas do Chico Fidêncio não seriam talvez muito lidas na
capital da província, mas em Silves eram devoradas avidamente, comentadas,
discutidas durante quinze dias a fio. O seu estilo tinha umas vezes o sarcasmo
ferino da conversação ordinária, e outras, quando o Chico
calçava as suas tamancas de jornalista grave, e queria discutir um
assunto com a seriedade necessária, subia aos fraseados sonoros, recheados
de declamações bombásticas, de trechos de bons autores,
de citações novas, com muita erudição de idéias
e palavras bebidas aqui e ali, na leitura de periódicos e panfletos.
E eram exatamente esses artigos, de que mais se orgulhava, que reputava melhor,
que lia e relia aos amigos, chamando-lhes a atenção para o fraseado
cheio, para as referências sábias e o rebuscado do estilo, os
mais raros e os menos apreciados. O público, ignorante e grosseiro,
preferia as pilhérias e as críticas mordazes, que iam subindo
de tom até ao diapasão da descompostura, degenerando em maledicências
e calúnias. Tinha, porém, uma justificação para
esses excessos: a necessidade de não poupar o inimigo, para não
lhe morrer às mãos.
Quando chegava o paquete e o Democrata aparecia, pequeno, massudo e mal impresso,
coberto de pastéis e falhas, como duma lepra incurável, toda
a gente queria saber se o Constante leitor, o pseudônimo do Chico Fidêncio,
escrevera a sua carta, datada de Silves, com quem bulia, se desancava o padre
José ou o subdelegado, se falava na Luísa ou na D. Prudência,
se contava os novos amores do vigário, ou descobria as recentes ladroeiras
do escrivão da polícia.
Apesar desses triunfos, Francisco Fidêncio Nunes sentia que pisava
em terreno falso. Não contava com as simpatias da população,
e teria de decidir-se em breve a procurar outro abrigo para a sua miséria
e para o seu ideal de liberdade religiosa, tão mal amparado na povoação
do lago Saracá. Não podia deixar de pensar que fora enganado
pelo Filipe do Ver-o-peso: Sempre era galego, e bastava.
O vigário vingava-se das correspondência, fazendo-lhe uma guerra
de morte. O coletor, que era o homem mais importante do lugar, não
gostava dele, embora lhe tivesse medo. As mulheres eram-lhes hostis, não
liam as suas cartas, não viam senão o homenzinho feio, que desrespeitava
os santos e pregava heresias. Estranho à terra, sem ligações
de família na província, sem a tradição dum passado
qualquer que o protegesse, reconhecia-se fraco e dispunha-se a abandonar o
campo, quando surgiu de chofre o segundo período da questão
religiosa, ferida entre os bispos do Pará e de Olinda e a maçonaria.
A gente de Silves não tinha interesse algum na questão, mesmo
porque o seu vigário, um pândego, valha a verdade! não
se ocupava muito dessas coisas de Igreja. Mas o espírito de partido,
muito vivo nas povoações pequenas, o amor da novidade, o instinto
de contradição e de luta que divide os homens, mesmo desinteressados
e indiferentes ao assunto da discussão, fracionaram a população
em dois grupos. Um formara-se dos maçons, dos parentes dos maçons,
dos inimigos pessoais do vigário e dos rapazes mais ardentes e mais
instruídos. O outro constituíra-se com os homens timoratos e
pacíficos, que, de preferência às inovações,
queriam viver com os padres, acreditando, ou fazendo acreditar, em tudo o
que esses exploradores da humanidade dizem. Francisco Fidêncio tornou-se
naturalmente chefe do partido maçônico.
A luta, a falar a verdade, não passara do terreno do palanfrório,
consistira unicamente em discussões fortes à porta do coletor
ou junto as procissões e Nossos-pais de balandrau e tocha. Francisco
Fidêncio era irmão do Santíssimo. A sua brilhante opa
encarnada, que por acinte tinha na sala, exposta a todas as vistas, aparecia
em toda a parte. Padre José bufava. Por fim tomara o pretexto de tão
grande irreverência para acabar com festas e procissões que lhe
davam muita maçada. Mas o melhor fora que o correspondente do Democrata
lucrara em questão.
Primeiro que tudo, dedicando as suas cartas ao assunto da pendência
que dividia os espíritos, atacando o papa, os bispos, os padres todos
e especialmente os jesuítas, poupava os habitantes da vila, com exceção
dos vigário. Mereceu com esse procedimento que se corresse um véu
sobre as críticas antigas, amortecendo os ódios dos ofendidos.
Não era mais o escrevinhador insolente, que se ocupava da vida privada
de cidadãos conhecidos, achincalhando a reputação do
capitão Fulano ou do negociante Sicrano. Passava a ser um escritor
preocupado de questões sociais, um sujeito que zurzia os padres, uma
espécie de adversário platônico. Os padres que se defendessem!
As antigas vítimas rejubilavam-se, descansadas, livres do temor, esforçando-se
por esquecer e fazer esquecer as descomposturas recebidas no Democrata. Eram
agora elas mesmas que chamavam a atenção pública para
os artigos do professor, que os comentavam, indagando hipocritamente se seria
verdade tudo aquilo que se dizia do padre José, alardeando indignação,
exclamando que tais monstruosidades eram dignas de severo castigo.
Francisco Fidêncio contava à redação do Democrata,
por miúdo as pândegas colossais do vigário, as aventuras
noturnas, as bambochatas em canoa, as orgias nas praias de areia, ao tempo
da desova das tartarugas. Citava nomes, falava da Chica da outra banda, da
mulher do Viriato, da Luísa, e até da D. Prudência, veladamente
– uma certa Imprudência. Dizia que o vigário bebera o dinheiro
da província com as mulatas, em vez de consertar a Matriz, que seduzia
as beatas, que prostituía as confessadas, que era ministro de Barrabás…
o diabo!
Padre José ficava furioso. Ameaçava quebrar as bitáculas
àquele safado, e caluniava-o, espalhando que Chico Fidêncio fora
condenado no Rio por gatuno e expulso do corpo de permanentes do Pará
por maus costumes, pecados contra a natureza.
Enquanto padre José apanhava bordoadas de cego nas colunas do Democrata,
o subdelegado, o escrivão da polícia, o comandante do destacamento,
o juiz municipal e o fiscal da Câmara folgavam, comprazendo-se numa
feliz obscuridade, e como o vigário não opunha aos artigos do
Chico um procedimento exemplar, as censuras e acusações calavam
na opinião, o partido maçônico aumentava, uma corrente
de simpatia estabelecia-se entre o jornalista liberal e a população
de Silves.
Em segundo lugar, a sua posição de chefe de partido reunira
em torno da sua pessoa um grupo dedicado e atento, que amparava e aplaudia
na luta, dando-lhe prestígio e força. Francisco Fidêncio
já se não sentia isolado, as sua palavras eram repetidas por
alguns como Evangelho, as pilhérias que lhe saíam da boca tinham
curso forçado. As suas opiniões eram aceitas geralmente, com
desconto do exagero que lhe atribuíam os tais homens sérios,
em questão de doutrina e de dogma:
– Aquilo é maluquice dele, mas tem razão no que diz dos padres.
– Maluquice resmungou Francisco Fidêncio, levantando-se de novo, e
chegando à porta do corredor, gritou para a varanda:
– Então, nem um cafezinho hoje! Olhe que a gente não almoçou!
Cessou o ruído dos bilros, e a voz arrastada da Maria Miquelina respondeu
lá de dentro:
– Pensei que vuncê não queria nada hoje. Está de burros,
paresque!
A caseira já devia saber que, quando o fígado lhe não
permitia comer, o Chico Fidêncio bebia muito café. Era a única
coisa que o seu estômago suportava. Demais era carioca da gema. Era
da terra do café. E quando estava danado, bebia café. No dia
em que fora demitido de professor público no Pará, bebera mais
de vinte xícaras desse líquido que prolongara a vida de Voltaire.
Voltou a passear a sala em todos os sentidos, levando a mão à
região do fígado e chupando um cigarro apagado.
A chuva continuava, monótona, repenicando nos telhados vizinhos. A
flauta do Chico Ferreira cansara. Da casa fronteira vinha um choro de criança
manhosa e endefluxada. Os pequenos sinos da Matriz espaIhavam no ar alegres
vibrações argentinas, saudando o meio-dia.
A rua continuava deserta. Francisco Fidêncio chegara à janela
e não vira pessoa alguma. Pudera! com aquele tempo de cachorro!
Estava de burros, sim, e tinha razão de sobra. Havia mais de meio
ano que padre José morrera, e que Fidêncio ficara sem assunto
para alimentar a sua correspondência com a folha de Manaus. A questão
religiosa amortecera, os episódios da luta iam ficando esquecidos,
o terrível adversário do clericalismo estava se tornando inofensivo.
Tivera uma forte tentação de voltar a bulir com os antigos
inimigos, para o que não lhe faltaria assunto, graças a Deus.
Sabia tudo que se passava em Silves, sem necessidade de espiar, nem de indagar
da vida alheia. Contavam-lhe, sem que nada perguntasse.
Podia referir-se ao José Antônio Pereira, que passava por moço
de muito bons costumes, mas tinha lá as suas mazelas em casa. Podia
contar que o Neves Barriga tinha um serralho no sítio do rio Urubus,
e que por isso não queria saber da vila, onde o chamavam os seus deveres
de camarista. Que o Valadão, o subdelegado, prendia por dinheiro os
negros fugidos, fazendo-se capitão-do-mato. 0 fiscal merecia bem boas
sovas pelo estado das ruas que a Câmara o incumbira de zelar, e sem
sair das raias do interesse público, que ele, como escritor público,
devia e podia superintender, tinha muito que dizer da Câmara, e especialmente
dum certo vereador João Carlos, que estava quase sempre na presidência,
porque o Neves não gostava de deixar o serralho.
Do Costa e Silva, apesar de amigo, poderia afirmar que pregava de vez em
quando o seu carapetão ao Diário do Grão-Pará,
porque tinha a imaginação exaltada e era duma credulidade de
caboclo. E 0 próprio coletor, o grave e pretensioso capitão
Fonseca não ficaria muito livre de culpa, se o Fidêncio quisesse
referir-se a certas coisas lá da coletoria que o escrivão Pereira
lhe contara muito em confiança…
Mas a dura experiência do passado…
Passara vicissitudes terríveis por causa daquele jeito que tinha para
a crítica e o sarcasmo. Conseguira, por um grande esforço de
prudência , fugir à tentação em que a falta de
assunto o ia despenhando.
Por isso, contentara-se com escrever generalidades contra o clero todo, contra
a doutrina da infalibilidade, e especialmente contra os homens do espanhol
de Loiola, entremeadas de censuras ao bispo por deixar tanto tempo sem pastor
espiritual uma população católica, o que provava, escrevera
ele ao Democrata, que a salvação das almas não era a
preocupação principal desses senhores de Roma.
Mas que se importava a gente de Silves com o espanhol Loiola e com os homens
de Roma?
0 que ela queria era a bela da descompostura a gente conhecida, a referência
direta a pessoa do lugar.
À chegada do padre Antônio de Morais o espírito de luta
acendera-se novamente no cérebro do Chico Fidêncio. Escovara
a opa encarnada e aguçara os adjetivos. A presença do novo vigário
parecia prestar-se à crítica que invocasse a humildade cristã.
0 desapego dos gozos mundanos, de que os primeiros apóstolos deram
prova. Desde o dia do desembarque solene, em que a sua pilhéria irritante
provocara a má vontade dos figurões, Fidêncio não
poupara alusões à batina nova, ao penteado, à cara bem
rapada, aos punhos engomados do senhor vigário.
Mas o diabo era que ele, Francisco Fidêncio Nunes, não podia
ir além dessas alusões.
Chegou novamente à porta do corredor e gritou para dentro, em voz
de caixeiro de botequim:
– Olha esse café que saia!
– Já vai, seu Chico. É o diacho da lenha que está muito
molhada, respondeu do fundo da cozinha a voz arrastada da Maria Miquelina.
-Pílulas, até a lenha!
Fidêncio entrou na alcova, pegada à sala, e saiu logo depois,
abotoando-se.
A chuva diminuíra, mas o céu, estava todo alvacento, empastado
de nevoeiros. A umidade do ar penetrava pela janela aberta, esfriando a temperatura
e causando ao professor uma sensação de arrepio, levantando-lhe
pela raiz os pêlos da epiderme. A luz escassa do dia dava aos objetos
uma coloração desmaiada que lhes confundia os contornos. As
linhas perdiam-se numa obscuridade vaga, ondulante. 0 preto sujo da velha
pindoba do teto pesava sobre a sala, acaçapando os móveis e
os quadros. Do chão úmido levantava-se um cheiro a bolor e a
ponta de cigarros, insípido e fastiento. A galinha de pintos fora-se
pelo corredor fora, a passos lentos, catando o pavimento, cacarejando. 0 pio
dos pintainhos irritava os nervos.
Fidêncio olhou vagamente para o teto, para as paredes, para os móveis,
indeciso, abstrato, metendo a mão entre o cós das calças
e a camisa para acariciar o fígado. As paredes brancas, dum branco
sujo, apertavam-no. O retrato de Saldanha Marinho morria no quadro de madeira
preta, na tinta pardacenta da litografia ordinária, salpicada de excremento
de moscas. Mais abaixo o Sonho de Pio IX, salientado pelo dourado velho da
moldura, degenerava numa confusão de pernas largas e de seios pontudos,
de taças redondas e de flores chatas, de batinas e coroas num plano
só, sem perspectiva. Do outro lado Ganganelli, entre as quatro obreias
verdes, na alvura duvidosa do papel de impressão, erguia a mão
sem vida segurando os raios pontificais, longas linhas trêmulas e quebradas,
a crayon, para fulminar a Companhia, representada por um padre moço
e barbado, mas muito branco, barba tesa e braços enormes, parecido
com D.Vital. E por baixo, a custo, aparecia, na meia-tinta, a legenda, em
versais gastas, mal impressa e incorreta: O PAPA CLEMENTE XIV EXTINGUE A COMPANHIA
DE JESUS. VIDE O TEXTO.
Na parede da esquerda, próximo à porta da rua, o cabide parecia
sustentar a custo o velho chapéu de pele de lebre, o velho guarda-chuva
cor de pinhão e a opa do Santíssimo Sacramento, que tinha agora
uma aparência desmaiada, de velho balandrau surrado em procissões
e Nossos-pais sem conta; e o candeeiro de petróleo lançava do
grande bojo de vidro ordinário, faceado, uma luz amarelada e baça,
com reflexos esverdeados de azeite de mamona.
Tudo parecia mais velho; as mesas, os tinteiros, os bancos, a cadeira de
palhinha. Do chão escuro e fétido, do teto negro, das paredes
úmidas, dos móveis, das roupas, dos contornos de todos os objetos,
dos quadros parietais, dos gestos dos personagens, da sua fisionomia dura
e chata de figuras malfeitas, vinha como uma emanação de tédio,
que ia subindo, espalhando-se pela casa, e depois saía pela janela,
para lançar-se sobre a vida toda, estúpida e molhada.
Fidêncio abriu os braços, retorceu-os num espreguiçamento,
vergando o corpo para trás, desarticulando as mandíbulas num
longo bocejo, e deixou escapar um grito agudo e prolongado que cortou de chofre
o silêncio do dia. Na casa fronteira abriu-se um pouco a janela de pau
pintada de azul, e pela frincha estreita, uma mulher espiou, curiosa.
A Maria Miquelina, equivocando-se, gritou da varanda:
– Já vai, já vai, seu Chico, tenha um mocadinho de paciência.
– Ah, o café! disse o Fidêncio, sorrindo.
Ressoaram no corredor as tamanquinhas da caseira azafamada.
– Pensei que era o café de João Pinheiro! exclamou quando a
mulata apareceu à porta da sala, trazendo na mão uma grande
xícara de louça azul, de que saía um fumo tênue
e um odor forte a café quente.
– Que João Pinheiro, seu Chico?
– Não sabes a história do João Pinheiro, rapariga!
– Como havera de saber, seu Chico? só se era o João Pinheiro
que matou outro dia o Joaquim Feliciano naquele encontro da beira do lago…
– Não, Maria Miquelina João Pinheiro era um fazendeiro da minha
terra, muito conhecido e apatacado
– Pois como eu havera de saber dele, se eu nunca estive lá nesses
Rio de Janeiro…
E, intrigada, a caseira colocou sobre a mesa grande a palangana de café,
e pôs-se a interrogar o professor com os olhos.
Fidêncio começou, narrando:
– João Pinheiro era um fazendeiro apatacado, mas muito amigo de guardar
o que tinha. A fazenda dele ficava à beira da estrada e era escolhida
pelos viajantes para descansarem durante as horas mais quentes do dia, pois
era justamente no meio do caminho da cidade… da cidade… enfim, duma cidade
para outra. Sempre que chegava algum viajante, João Pinheiro gritava
para dentro:
– Moleque, traze café para este homem.
O moleque, lá de dentro, respondia:
– Já, sim, siô.
O viajante ficava com a boca doce, esperando refrescar-se com o cafedório
do João Pinheiro.
Passava um quarto de hora… e nada.
– Moleque, olha esse café! gritava o fazendeiro.
– Já vai, sim, siô.
O viajante, que já estava com a garganta seca de engolir em falso,
concebia uma esperança.
Passava outro quarto de hora… e de café, nem lembrança.
– Moleque, vem ou não vem esse café? perguntava o João
Pinheiro.
E o moleque:
– Já vai já, sim, siô.
O viajante puxava o relógio, sentindo não ter tempo de esperar
que fizessem o fogo.
Passava outro quarto de hora:
– O moleque do dianho, então esse marvado café não vem
hoje?
– Já vai agora mesmo, meu siô.
O viajante levantava-se e despedia-se, farto de esperar.
– Este dianho de moleque, dizia o João Pinheiro, apertando a mão
ao hóspede, esse dianho de moleque é assim mesmo.
E acrescentava muito aborrecido:
– Que vexame sair V.S.a sem beber café!
Montando a cavalo, o viajante ouvia ainda o moleque gritar lá de dentro:
– Já vai, sim, siô.
A Maria Miquelina pôs as mãos nas ilhargas, rindo muito.
– Este diacho de seu Chico tem cada história! Pois o homem havera
de fazer isso mesmo?! Ara tome lá o seu café, que este não
é do João Pinheiro.
Fidêncio sorveu o café, gole a gole. Depois a caseira voltou
para o seu trabalho, e o professor foi procurar alguma coisa que ler. Era
preciso matar o tempo.
Acendeu um cigarro, abriu uma gaveta e procurou entre vários folhetos
de diversas cores e tamanhos um que lhe desse vontade de reler. Eram panfletos
anticlericais, com títulos prometedores: Os jesuítas desmascarados.
A maçonaria e a Companhia de Jesus. Os jesuítas, simplesmente.
As astúcias de Roma. A questão religiosa. A Igreja e o Estado.
O jesuíta na garganta, cena cômica. Os lazaristas. Recurso à
coroa… uma infinidade! Todos com pseudônimos: Ganganelli, Sebastião
José de Carvalho, Fábio Rústico, Um livre-pensador, Um
verdadeiro católico, O velho católico, O padre Jacinto, Jacolliot…
o diabo! Obras de erudição, discursos declamatórios,
panfletos virulentos, de escacha-pessegueiro, que trituravam, moíam
e reduziam a pó a Igreja, o papado, os bispos e os homens de roupeta,
pondo em pratos limpos, com segurança indiscutível, a história
da papisa Joana, os crimes dos Bórgias, os horrores da inquisição
e os sofismas audaciosos do Sr. D. Antônio. Ali, naqueles folhetos,
discutia-se com lucidez e verdade a questão religiosa! Faziam-se estatísticas,
enumeravam-se as vítimas da inquisição na Espanha, as
mortes da noite de S. Bartolomeu, em França. Mostrava-se o que era
Roma, explicavam-se as patifarias dos cardeais, somavam-se os milhões
roubados da Companhia de Jesus. Não havia fugir. Estava ali provado,
perfeitamente provado, e o que os padres respondiam eram sofismas.
Fidêncio tomou um dos folhetos, grande, massudo, de capa amarela e
tipo doze. Intitulava-se: A mônita secreta, por Um antigo jesuíta.
Era incrível o que aquele livro dizia. Era um horror!
Francisco Fidêncio foi buscar à mesa grande o Magnum Lexicon,
colocou-o sobre a extremidade dum dos bancos, para lhe servir de travesseiro.
Deitou-se no banco, ao comprido, trançou as pernas, tirou uma fumaça
do cigarro e abriu o panfleto, murmurando:
– Patifes!
Um livro assim é que ele queria ter escrito. Quisera ter sido jesuíta,
conhecer todos os segredos da Ordem, apanhar-lhe as manhas, e depois vir a
público, com uma coragem extraordinária, pôr pela imprensa
todas aquelas bandalheiras a nu.
Um dia ainda reuniria em folheto as suas correspondências, formaria
um folheto como aqueles, de capa de cor, com o título pomposo em letras
gordas e com um pseudônimo. O seu pseudônimo seria: o padre Quelé.
Era de arromba! Ninguém ficaria sério, lendo-o. O diabo era
não haver em Silves uma tipografia!
Esta idéia de publicar um livro, de ver os seus artigos reunidos em
folheto, com capa e frontispício, enraizara-se-lhe no cérebro,
enquanto percorria distraidamente as páginas do panfleto que tinha
nas mãos, sem entender o que lia. Que prazer seria o seu! Podia vir
a ser citado – o autor do livro tal… o espirituoso e erudito padre Quelé
(pseudônimo)… um escritor de pulso que zurze desapiedadamente os padres…
O livro podia ser intitulado Carapuças romanas, por exemplo, ou então
podia ter um nome pomposo: Os vampiros sociais ou simplesmente Os abutres.
OS ABUTRES PELO PADRE QUELÉ 187.
MANAUS TIP. DO "DEMOCRATA"
E numa prosa fluente, argumentação cerrada, vigoroso estilo
e linguagem castigada, um panfleto mordente e verdadeiro, contando as bandalheiras
inqualificáveis do vigário de Silves, reproduzidas das correspondências
do Democrata e entremeadas de citações latinas, de apóstrofes
veementes a Roma e ao senhor bispo, de exclamações bombásticas
e de calemburgos de fazer rir as pedras.
Padre José ficaria bem sovado… mas o diabo era que Padre José
estava morto, e o Chico Fidêncio não gostava de dar em defunto.
Demais, o que escrevera sobre o falecido vigário não era suficiente
para dar um livro de cento e vinte páginas, pelo menos.
O bom era sovar também a padre Antônio de Morais.
Fidêncio largou o panfleto e pôs-se a cismar, achando a idéia
impraticável.
O finório do padre era irrepreensível. A sua vida simples e
clara não se prestava à crítica!
Fidêncio procurava analisar, por miúdo, a vida do novo vigário
de Silves, rebuscando no íntimo dos fatos algum sintoma de fraqueza
ou de hipocrisia. Recapitulando, nada lhe escapava.
O padre levantava-se cedo, às seis horas, lia o breviário e
passava a dizer missa. Depois da missa, confessava, e ao sair, no adro, palestrava
com os homens, indagando da saúde de cada um, muito cortês, dando
conselhos úteis de higiene privada. Terminada a aula de religião
que dava aos meninos, recolhia-se a concertar com o lorpa do Macário
sacristão sobre as necessidades do culto. Jantava às quatro
horas, saía a dar um breve passeio pelos arredores da vila, a espairecer,
sempre sério, de olhos baixos, compenetrado do dever de dar o exemplo
da sisudez e da gravidade. Voltava às seis horas, ao toque de Ave-Maria,
descoberto, passeando lentamente, recolhia-se ao quarto a ler o breviário.
O Macário, vitorioso e néscio, saía à porta, ardendo
por dizer a toda gente que S. Rev.ma estava em casa estudando.
Os batizados e casamentos, atrasados um semestre, um ou outro enterro, achavam-no
sempre pronto, nada exigente quanto a propinas, observando com afetado escrúpulo
a tabela do bispado, e fechando os olhos à qualidade maçônica
do padrinho, do defunto ou do nubente.
O próprio Chico Fidêncio, para o experimentar e fazer escândalo,
servira de padrinho a um rapazito do Urubus.
Padre Antônio acudia com os últimos sacramentos a qualquer doente,
por mais pobre e desamparado que fosse, levando-lhe o Nosso-pai com um cerimonial
vistoso, ao toque dos pequenos sinos da Matriz e ao som da cantoria roufenha
e monótona dos beatos, o Fonseca, o Valadão, o João Carlos
e outros, que apareciam ao primeiro sinal e corriam a disputar as cruzes e
as lanternas com que haviam de formar o acompanhamento. Fidêncio, envergando
a opa encarnada do Santíssimo Sacramento, lá seguia atrás,
de tocheiro em punho. E padre Antônio, embrulhado na capa-magna, apertando
o Viático contra o peito, em atitude de unção e respeito,
caminhava lentamente sob o pálio, solene e absorto, alheio ao que se
passava em derredor, como um homem que consigo levava um Deus. Na frente,
o Macário badalava.
Na encomendação dos finados, a sua voz simpática tinha
modulações melancólicas, repassadas de infinita saudade,
como se aquele morto tivesse em vida ocupado o seu coração e
o seu espírito, ou como se, ante o terrível nada da morte, uma
dor latente lhe mordesse o peito, fazendo sentir a nulidade da existência
desse verme pretensioso que se chama o homem… Havia talvez em tal melancolia
o profundo desalento de quem se sabia sujeito àquela mesma transformação
hedionda da morte, apesar do apego à vida do moço de vinte e
dois anos, que a filosofia tremenda do memento contrariava cruelmente… Mas
o povo, fanatizado pelos homens de roupeta, não via na comoção
do vigário senão mais uma prova da bondade de S. Rev.ma, do
modo cabal por que sabia desempenhar os deveres do seu cargo, compenetrando-se
do papel que tinha de representar. Não seria padre José, sempre
alegre, barulhento, caçoador e pândego, que se mostraria assim
pesaroso da morte dum seu paroquiano!
O espertalhão do padrezinho, pensava Fidêncio com uma admiração
involuntária, soubera tornar-se o objeto exclusivo da atenção
e curiosidade de toda a população de Silves e dos arredores.
A fama chegara a Serpa, fora a Maués, voltara pelo Amazonas acima até
à cidade de Manaus. Nunca naquela redondeza se vira um vigário
assim tão compenetrado dos seus deveres, tão sério, afável
e pontual. Diante dele os homens modificavam a sua linguagem habitual, falavam
em coisas sérias, em pontos de doutrina cristã, cheios de respeito.
O ardor maçônico esmorecia, apesar dos esforços em contrário
tentados por Francisco Fidêncio Nunes. As qualidades morais que o pároco
afetava provocaram uma reação favorável no espírito
daquele povo indiferente em matéria religiosa. O professor Aníbal
Americano Selvagem Brasileiro, concertando os óculos de tartaruga e
cuspindo longe, falara em fundar um jornal que defendesse os interesses da
Igreja e doutrinasse os tapuios dos sítios do Urubus e adjacências.
Devia chamar-se a Aurora cristã e publicar-se de quinze em quinze dias,
com dois mil-réis de assinatura trimensal. A dificuldade estava em
arranjar a tipografia, custava um dinheirão, era preciso abrir uma
subscrição popular, ninguém que se sentisse com crenças
religiosas seria capaz de negar o seu óbolo, e podiam pedir o auxílio
da Caixa Pia e da Câmara Municipal, concorrendo esta com cinqüenta
mil-réis por ano para a publicação das atas. O João
Carlos lembrara, por economia, o jornal manuscrito, mas o professor Aníbal
repelira energicamente a idéia como atrasada e trabalhosa. Queria ler-se
em letra de forma! Afinal quando se fizera a subscrição para
a compra da tipografia dificilmente arranjaram-se quarenta mil-réis.
O vigário, consultado, desanimou o Aníbal, mostrando-se infenso
ao projeto, já pela falta de competência dele vigário
para dirigir uma imprensa católica, já porque não queria
alimentar ódios e dissensões na sua paróquia. Aníbal
Brasileiro retirara-se enfiado. Deixara de ir à missa e viera dizer
ao Chico Fidêncio que a lembrança que tivera não passara
duma pilhéria, dum meio de experimentar o ardor religioso daqueles
beócios que andavam todos os dias a falar em catolicismo. Mas Fidêncio
bem o conhecia, para cá vinha de carrinho o tal Sr. Aníbal!
Este último ato de padre Antônio de Morais agradara muito ao
Chico Fidêncio. Padre Antônio mostrava ser homem de juizo.
O malogro da tentativa do professor Aníbal não destruíra
os resultados das palavras e ações do novo vigário de
Silves. A missa de todas as manhãs era bastante concorrida, à
ladainha da noite ninguém faltava, o Nosso-pai nunca saía sem
numeroso acompanhamento. As crianças corriam a instruir-se na doutrina
do catecismo do bispado, as devotas confessavam-se, os casamentos amiudavam-se,
fazendo diminuir as mancebias… Tudo se encaminhava para a reforma que padre
Antônio pretendia fazer para glória de Deus e desempenho do honroso
encargo que lhe fora confiado por S. Ex.a Rev.ma.
Em tais condições, com um padre como aquele, que se dava ao
luxo de ser impecável, que faria, que escreveria Fidêncio, como
comporia o seu belo folheto de cento e vinte páginas, com capa verde
e frontispício pomposo? Um mês era decorrido, um longo mês
de observação, de análise, de estudo, e os seus ataques
contra o padreco catita e apelintrado não tinham ainda podido ir além
da batina nova, do penteado, dos punhos engomados e dos olhos baixos de padre
Antônio de Morais. Era pouco para um folheto de cento e vinte páginas!
Um relógio da vizinhança bateu duas pancadas argentinas. Francisco
Fidêncio arremessou contra a parede o folheto que não lia e que
esparralhou pelo chão as folhas soltas.
A chuva cessara, mas o ar estava ainda muito carregado de vapores aquosos.
Uma réstia de sol, muito tênue, penetrava, avivando num ponto
o encarnado da opa do Santíssimo. As tamanquinhas da Maria Miquelina
faziam-se ouvir no corredor.
– Quando vuncê quisé jantar, seu Chico, a janta está
quase pronta.
– Maria Miquelina, disse Fidêncio, muito sério. O tal padrezinho
ou é um santo ou um refinadíssimo hipócrita.
A caseira contestou:
– Ara, seu Chico…
– Pelo sim, pelo não, exclamou Fidêncio erguendo-se, numa resolução
assentada. Pelo sim, pelo não, vou passar-lhe uma descalçadeira.
CAPÍTULO IV
Macário, aquele dia, em alegre ansiedade, acendia uma a uma as velas
de cera amarelada do altar-mor, fazendo ranger sobre os degraus as botinas
de bezerro, lustradas de fresco. O peso da comprida sobrecasaca de lustrina,
caindo-lhe com solenidade sobre as curvas, impedia-lhe a liberdade dos movimentos
e continha o íntimo alvoroço que o possuía, forçando-o
a manter a calma e decente gravidade das cerimônias.
Pelas altas janelas envidraçadas do templo penetrava uma luz risonha
que avivava os dourados, amortecendo a claridade das tochas dos outros altares,
já acesas, e das placas das paredes. Um ar alegre vinha do Largo da
Matriz, entrava pela nave da igreja, envolvia os santos, os altares e os belos
festões de flores naturais que, naquele dia, ornavam o milagroso altar
de Nossa Senhora do Carmo. Das luzes crepitantes dos tocheiros exalava-se
um cheiro forte de cera oleosa e ordinária, derretida ao fogo, e do
chão subia o odor dos velhos tijolos empoeirados, úmidos da
recente lavagem.
Um primeiro repique dera o sinal da missa, e as últimas vibrações
do bronze bem fundido ecoavam ainda nas matas da outra banda.
Macário desceu do altar com a grande vara do acendedor na mão,
e, depois de dobrar os joelhos por um instante sobre o primeiro degrau, gozou
o efeito encantador dos pingos luminosos das velas dispostas em trapézio,
subindo até ao oratório do Cristo Crucificado.
Em seguida dirigiu-se para a porta da entrada, saudando com outra genuflexão
o altar de Nossa Senhora do Carmo, resplendente de flores e de luzes.
À porta parou um instante, ergueu a cabeça para a torre e gritou:
– Toca segunda vez, José, que já é tempo.
Os sinos repicaram, espalhando no ar alegres notas argentinas. Homens e mulheres
aproximavam-se da igreja, vindo dos quatro ângulos da praça,
com roupas de festas, a passos apressados, para escolher o melhor lugar.
Macário, de pé, à porta, de cabeça descoberta,
mergulhava o olhar nos grupos, esforçando-se por disfarçar a
alegre ansiedade que o possuía.
Era um domingo. Aquela gente que se aproximava vinha à missa mas era
principalmente atraída pela cerimônia que devia seguir o Santo
Sacrifício. Casava-se uma sobrinha do Neves Barriga com o filho dum
fazendeiro do Urubus. Naquele dia, em pleno mês mariano, além
da missa conventual, celebrava-se um casamento de gente rica.
Mas para o Macário, havia alguma coisa mais, que o trazia alvoroçado
e ansioso, havia um segredo, que ele gozava desde a véspera, e que
o impedira de dormir a sono solto, conforme era de tradicional costume…
Em toda Silves, só ele, Macário de Miranda Vale, sabia o que
se ia passar por ocasião do casamento do Cazuza Bernardino com a sobrinha
do Neves Barriga, presidente da Câmara Municipal. S. Rev.ma confiara-lhe
o segredo, pela muita confiança que nele depositava.
Por isso, desde muito cedo, Macário auxiliado sofrivelmente pelo José
do Lago, asseara a igreja, preparara tudo para a missa e para a cerimônia
nupcial. A igreja fora bem varrida, haviam-se queimado muitos ninhos de cabas
e espanado os altares, as grades, o púlpito e os bancos. Renovaram-se
o vinho e a água das galhetas – um vinhito branco e cheiroso que o
Filipe do Ver-o-peso mandava do Pará, por obséquio, e que desaparecia
da garrafa da sacristia com uma rapidez incrível. Macário desconfiava
da concorrência de José do Lago, um troca-tintas que aprendia
com o Chico Fidêncio, e nada fazia que prestasse. Abrira a caixinha
das hóstias e verificara que estava bem sortida. Já não
eram as hóstias moles e amareladas, sabendo a bolor, de que usava o
defunto vigário. Viera provisão nova de lâminas finas,
duras, alvas, de farinha torrada, parecendo obreias, e o hostiário
era reluzente e belo, um rico mimo que o reitor do Seminário grande
do Pará fizera a padre Antônio, por intermédio do mesmo
Filipe. Depois Macário tirara fora da cômoda os ricos paramentos
sagrados de S. Rev.ma, tudo novo e bonito como Silves nunca vira. A capa-magna
safra da gaveta para pôr-se em evidência sobre a cômoda,
porque tinha de servir aquele dia, na cerimônia do casamento. S. Rev.ma
fazia aquela distinção à noiva, por causa do Neves Barriga,
que o recebera muito bem quando chegara a Silves, já lá se iam
três meses.
Feito o serviço da sacristia, Macário mandara o malandro do
José do Lago para a torre, e começara a acender as velas, depois
de envergar a sua querida sobrecasaca de lustrina, companheira da capa-magna
do senhor vigário nas cerimônias religiosas.
E agora, à porta da igreja, vendo chegar o povo em fato domingueiro,
Macário sentia crescer-lhe a ansiedade, desejando ardentemente apreciar
o efeito da surpresa preparada por S. Rev.ma, cujo segredo só o Macário
possuía e de cujos inevitáveis resultados – Macário estava
seguro -, Silves colheria moralmente as maiores vantagens.
Porque a vila, forçoso era confessá-lo, não correspondia
aos esforços tentados por padre Antônio de Morais – e por Macário
– para a regeneração daquele povo indiferente e apático
em matéria religiosa. E com isso, Macário ficava desesperado,
posto que, pessoalmente, não tivesse razões de queixa, e nunca
na sua pobre vida de sacristão de aldeia tivesse sido mais feliz.
Padre Antônio tratava-o com toda a consideração e estima,
tornara-o depositário da sua confiança e ouvia-o sempre sobre
os detalhes do serviço da paróquia. Macário sentia-se
outro, aprumava melhor o corpo, falava mais alto. Para corresponder à
delicadeza de S. Rev. ma, desenvolvera um grande zelo pelos negócios
a seu cargo, e até gostava de estimular o ardor do vigário,
quando o via mais sossegado, com uma vaga sensação de fadiga.
Padre Antônio era moço e inexperiente, afinal de contas, precisava
dum amigo sisudo e prático da vida, que o não deixasse esmorecer
na árdua tarefa de que se incumbira. Macário, reconhecia-o sem
bazófia e sem macavelismo, fora esse amigo necessário.
Era preciso estar a pé muito cedo para a missa de todos os dias, não
esquecer a hora do catecismo, não faltar a um enterro, não fazer
esperar os padrinhos dum batizado. Era necessário imaginar combinações
para melhorar o templo, para adquirir o indispensável ao desempenho
das cerimônias religiosas e regularizar o serviço. Padre Antônio
era um santo, não havia dúvida alguma, mas se não fosse
o Macário…
Diversas pessoas entraram, saudando à passagem:
– Bom-dia, seu Macário.
– Ara Deus lhe dê muito bons-dias, seu Macário.
Macário fez um porta-voz com a mão e gritou para a torre:
– Toca a terceira, José do Lago.
Os sinos recomeçaram a repicar, e o povo aumentou à porta da
igreja. Por enquanto era só o povo miúdo: tapuios de camisa
branca e de cinta encarnada, caboclas de camisa de rendas, pretas velhas de
lenço branco à cabeça e de saias de chita pirarucu. Não
havia ainda nenhuma pessoa de consideração. Ao longe, a um canto
da rua, via-se um grupo formado pelo professor Aníbal, pelo Mapa-Múndi
e pelo Costa e Silva. Mas não pareciam ter vontade de vir à
missa.
Macário entrou na igreja, foi postar-se à porta da sacristia
para esperar o vigário. Em meio da nave, sobre os tijolos ainda úmidos,
mulheres do povo sentavam-se, cochichando.
– Ah! se eu não fosse, pensava o sacrista continuando nas suas cogitações,
se não fosse o macavelismo, as coisas estariam piores do que estavam.
Padre Antônio de Morais poderia bem arrumar a trouxa, apesar de ser
a pérola dos padres, um homem que era uma coisa espantosa! Mas, franqueza,
franqueza, não tinha prática da vida. Macário tomara
a si substituir a S. Rev.ma nos seus impedimentos, fazendo aquilo que ele
devia fazer, escondendo quanto possível as suas pequenas faltas nas
relações com os fregueses para que estes não desconfiassem.
Recebia as pessoas que procuravam o senhor vigário, dizia que S. Rev.ma
teria muito pesar quando soubesse; depois aconselhava a pessoa, dando a entender
a verdade, que, sem o seu auxilio de sacristão, nenhuma pretensão
era satisfeita. Se uma devota enviava algum presente, uma toalha para o altar
da milagrosa Senhora do Carmo, ou o azeite para a lâmpada do Santíssimo,
quem ia à casa da devota agradecer por S. Rev.ma o presente e dizer
que S. Rev.ma enviava a sua benção para que Nosso Senhor lhe
restituísse em cêntuplo o que dera à Igreja? Era Macário
que de moto próprio usava do pequeno macavelismo para não deixar
esfriar a coisa, porque ia notando que padre Antônio estava ficando
muito concentrado, e que tal ou qual afastamento começava a dar-se
entre o pastor e as principais ovelhas.
Uma vez dissera Chico Fidêncio numa roda, ao balcão do Costa
e Silva, que a confissão era o grande meio de que se serviam os jesuítas
para conhecer todos os segredos do lar e poder com eles governar o chefe da
família. Esta história de confissão, a que o povo não
estava habituado, porque padre José não confessara nunca, levantara
uma grande celeuma.
– Não faltava mais nada, exclamara o Costa e Silva um domingo, aguardando
a entrada da missa, não faltava mais nada do que admitir que minha
mulher vá contar ao senhor vigário o número de beijos
que lhe dou por noite. Ora essa é boa! Sou católico, e dos bons,
mas nisso de confissão não acredito.
Segundo o capitão Manuel Mendes da Fonseca, as confissões traziam,
às vezes, a desunião da família, e o professor Aníbal
Brasileiro afirmara haver certo bispo ordenado aos confessores que indagassem
das suas confessadas donzelas se já haviam pecado contra a castidade,
com quem, quantas vezes, se por amor ou por vadiação. Um horror!
Macário reconhecia; lá isso também era demais, não
seria um padre tão santo como o senhor padre Antônio que faria
coisa tão indecente e mal cabida. Ainda se as perguntas se fizessem
à moça com certo maquiavelismo, encobertamente, vá. Mas
crua e nuamente: Minha filha, pecou contra a castidade, diga com quem, quantas
vezes pecou, foi por amor, foi por vadiação? Safa, que o tal
bispo era de força!
Mas não era somente a confissão a indispor o povo de Silves
contra um padre tão santo como o senhor vigário. A missa diária
fatigava a população, acostumada a ouvir missa aos domingos,
quando muito, se o permitia a mandriice daquele pândego de padre José.
A missa aos domingos era uma distração salutar. Mas agora todos
os dias, cansava seu bocadinho. A igreja já ia ficando deserta, sob
pretexto de que o santo sacrifício se celebrava em horas de trabalho.
O professor Aníbal Brasileiro, que desde o malogro da Aurora crista
não ouvia missa, conseguira chamar para o seu lado o Mapa-Múndi;
este não podia agüentar por um bom quarto de hora a cerimônia,
de joelhos, sobre os tijolos esburacados da igreja. Os dois, inspirados evidentemente
pelo tratante do Chico Fidêncio, começaram a contrariar subterraneamente
a obra de regeneração encetada por padre Antônio, aconselhando
aos homens o cuidar mais do seu trabalho do que de carolices e às mulheres
o olhar mais para a sua casa. Eram uns verdadeiros ateus aqueles dois sujeitos,
dignos de ir em companhia do Chico Fidêncio para as caldeiras de Pedro
Botelho.
Até os meninos já gazeavam a aula de catecismo, aproveitando
o relaxamento dos pais receosos da despesa dos sapatos e da roupa de brim.
Um cansaço geral invadia a população, acostumada à
indiferença religiosa. Tudo pesava, tudo era constrangimento, principalmente
para as pessoas gradas, senhoras, havia muitos anos, de fazer tudo quanto
lhes convinha. Pois se padre José regera a paróquia durante
vinte anos!
Da parte das mulheres operava-se um grande retraimento. D. Eulália,
a mais ardente entusiasta do vigário, havia muito que saíra,
acompanhando o marido que, decididamente, não sacrificava aos seus
cômodos os xerimbabos da mulher. Mas esta, contara a parenta pobre,
ia ocasião da partida dissera de mau humor:
– Arre também com tanto xerimbabo!
D. Cirila, pela aversão que o capitão Mendes da Fonseca, o
coletor, ganhara à confissão, graças às tramóias
do patife do Chico Filêncio, deixara a freguesia do engomado, e metia-se
em casa, não vinha à igreja senão muito raramente.
D. Prudência esperara suceder a D. Cirila, mas como a freguesia da
roupa fora dada a uma tapuia velha, convencera-se de que era a Luísa
Madeirense a engomadeira do vigário, e estava louca de ciúmes,
apesar dos protestos do Macário, que jurara pela castidade de S. Rev.ma,
porque, realmente, homem assim Macário nunca vira. Era uma coisa espantosa!
D. Dimildes, a irmã do Mapa-Múndi, tivera ordem expressa do
irmão para se não confessar. Resistia ainda, coitada da devota,
mas teria talvez de ceder à imposição fraterna.
Abria-se um vácuo em torno do moço vigário, e ele, pela
inexperiência do mundo, aumentava a gravidade desses sintomas, ressentindo
ima hostilidade surda por parte das pessoas gradas, daqueles mesmos figurões
que se tinham apresentado a recebê-lo a bordo com tantas mostras de
estima e de respeito. Mas Macário, que não era tolo e tinha
muito conhecimento dos homens e das coisas, compreendia bem quela má
vontade. A vida imaculada de padre Antônio de Morais castigava os desregramentos
dos homens influentes. Eles tinham saudades daquele vigário pândego,
cujos hábitos folgazões, francos e livres deixavam toda a gente
viver à sua vontade, sem constrangimentos nem hipocrisias. O que as
pessoas gradas queriam era um vigário como padre José ou como
padre João da Mata, o vigário de Maués, que morrera no
princípio do ano no sítio de Sapucaia, em ignorado sertão,
nos braços duma mameluca linda como o sol.
Chegara a época da colheita das castanhas, e a vila começava
a ficar deserta. O vereador João Carlos, apesar da sua intimidade com
coletor, partira com a família em busca dos castanhais sombrios. muitas
famílias, preocupadas com os arranjos da viagem, esqueciam os deveres
religiosos, e pouco a pouco fora padre Antônio ficando reduzido a dizer
missa para meia dúzia de tapuias velhas, a confessar algumas negras
boçais e a doutrinar alguns meninos pobres, de ínfima classe,
sujos e quase nus. Macário andava desesperado, saía fora do
sério. Tudo aquilo era obra do Chico Fidêncio, ateu que, se fosse
ao tempo da inquisição, já estaria reduzido a cinzas.
O coletor, com o seu modo grave, defendera o povo, assegurando o Sr. Macário
que a fé não diminuíra, todos estavam contentes com senhor
vigário, a população de Silves era muito religiosa, mas
que, enfim, não se podia perder o tempo próprio para a colheita
das castanhas naquele ano, estavam dando um dinheirão.
– O Elias, acrescentara, acariciando a barba, escreveu-me a esse respeito.
Pediu-me que lhe mandasse toda a castanha que se pudesse obter, porque os
preços estão muito bons. Posso pagar até vinte mil-réis.
Já vê o Sr. Macário que a população de Silves
não deve perder uma ocasião tão boa. Demais, sou exator
da fazenda geral e provincial. Como funcionário público, o meu
dever é animar o comércio e a indústria, para favorecer
o desenvolvimento das rendas do Estado e da província. Isto disse-me
outro dia o presidente que é um cavalheiro distinto e muito boa pessoa.
Sem castanhas e sem pirarucu, sem óleo e sem cacau, os cofres ficariam
exaustos e onde iria parar o Estado? O Estado antes de tudo, Sr. Macário,
porque o Estado somos todos nós. Não digo que não se
seja religioso, isso não! A religião é uma coisa necessária
ao povo. A religião é um freio, não há dúvida,
eu o reconheço, mas enfim, concluiu com ironia fina, sorrindo discretamente
na espessa barba negra, a religião não produz castanhas, e sem
castanhas não há impostos.
Macário tivera vontade de responder-lhe que se a religião não
produzia castanhas, era Deus quem fazia os castanhais, e sem castanhais não
havia castanhas. Mas o respeito que o hábito lhe dera pelo capitão
Fonseca, a pessoa mais importante e de mais consideração na
vila, obrigara-o, a calar-se. Mas não que as bichas pegassem. Macário
não se convencia! Achava aquilo malfeito, ninguém lhe tirava
da cabeça que era obra do Chico Fidêncio pois, na última
correspondência para o Democrata, depois de criticar os olhos baixos
e o falar suave de padre Antônio de Morais, dissera que os castanheiros
estavam carregados aquele ano, e que tolo seria quem ficasse em Silves a papar
missas, quando podia fazer uma fortuna com o trabalho de levantar castanhas
do chão.
Padre Antônio parecia francamente descontente. A sua voz ecoava no
templo vazio, e talvez desanimasse se Macário não estivesse
sempre à beira dele, falando, entusiasmando-o, lembrando expedientes.
O casamento da sobrinha do Neves Barriga estava marcado para a segunda dominga
de maio, depois da missa. S. Rev.ma tivera uma idéia luminosa que confiara
ao sacristão, e este aprovara muito. E esse segredo, essa surpresa
que, com o seu consenso e assentimento, se preparava às pessoas gradas,
enchia-o de alegre esperança. Tanto ele, como padre Antônio,
confiavam muito no efeito desse maquiavelismo, para chamar o povo de Silves
à antiga devoção.
A igreja já estava cheia, e o fato era de bom agouro. Havia muito
tempo, um mês talvez, que a igreja mesmo aos domingos, ficava a meio
vazia. E desta vez não era só a gente miúda. O Neves
Barriga com a mulher e a sobrinha acabavam de chegar, o Neves de sobrecasaca
e calças pretas, lustrosas, antigas, mas de pano fino, um grande lenço
preto a endurecer o pescoço, obrigando-o a trazer ereta a cabeça,
pondo a plena luz a cara de carneiro manso, com as ventas atopetadas de Paulo-Cordeiro.
D. Eulália, de vestido de nobreza amarela, tinha sobre a testa estreita
dois largos bandós postiços que a punham atrapalhada e vesga.
A sobrinha, a D. Mariquinhas – Maria das Dores das Neves Pamplona, chamava-se
ela, toda enfiada, arrastava nos tijolos do pavimento o seu vestido de noiva,
branco, ornado de flores de laranjeira, e mordia, para disfarçar, o
lencinho de rendas, curvando a cabeça envergonhada, ao peso da coroa
da virgindade. Não tardou a chegar o Cazuza Bernardino, acompanhado
do pai, Bernardino Santana, fazendeiro do rio Urubus, todo vestido de preto,
como o Neves, mas de roupa menos fina e mais velha.
O noivo era um rapaz esperto, direito, bem apessoado, largo peito coberto
pela farda de botões dourados, mão grande e calosa, empunhando
os copos da bonita espada prateada. Muito moço, vinte e dois anos,
quando muito, e já era tenente da guarda nacional. Há dessas
felicidades inexplicáveis! pensava Macário, olhando, como toda
a gente, para o brilhante Cazuza Bernardino…
Uns passos ouviram-se de leve na sacristia. Era o vigário silencioso
e triste na sua batina negra.
– Está tudo pronto? perguntou S. Rev.ma. E com a resposta afirmativa
do Macário, encaminhou-se para o fundo da sacristia e começou
a vestir a alva.
Macário estava com vontade de perguntar-lhe se persistia na idéia
de surpreender o povo de Silves, aproveitando a reunião das pessoas
gradas na igreja, para aquilo que havia imaginado. Mas padre Antônio
preparava-se para a missa como se já estivesse celebrando o santo sacrifício.
Concentrado, os seus movimentos vagarosos e elegantes tinham a regularidade
da disciplina, e a unção da graça que consola. Erguia
a miúdo para o teto os olhos semicerrados, e com os lábios trêmulos
parecia dizer fervorosa prece. Baixava a cabeça, coroada de cabelos
negros, beijava a estola sagrada antes de a cruzar sobre o amplo peito de
rapaz robusto, e depois levantando a casula enfiava-a pelo pescoço,
continuando a oração com que se procurava tornar digno do mais
santo dos mistérios.
Macário não se atrevia a dirigir-lhe a palavra. A atitude de
padre Antônio de Morais infundia-lhe respeito. Como era diferente do
defunto padre José! Como tudo era diverso! As roupas novas, bordadas
a ouro, ou rendadas a ponto de labirinto, tinham um brilho que tornava mais
miserável e mais velha a imunda fatiota de padre José. Os modos,
os gestos, os usos eram duma elegância grave e digna. As cerimônias
vulgares do ofício divino assumiam uma nunca vista majestade. Padre
Antônio, na vestimenta comum dos celebrantes, parecia um bispo de pontifical,
sereno e radiante na magnificência sagrada de paramentos régios.
Só lhe faltava a mitra!
– Vamos, disse S. Rev.ma pegando no cálice coberto com a bolsa da
cor dos paramentos, cheia de alvos corporais bem engomados.
Macário vestiu a opa, tomou o missal e entrou na capela-mor, seguido
por S. Rev.ma.
A missa começou.
– Introibo ad altare Dei, anunciou padre Antônio com a voz comovida
e trêmula com que sempre iniciava o sacrifício, como se a sua
indignidade não se atrevesse a comparecer afoitamente perante Deus
Onisciente e Todo-Poderoso.
– Ad Deum qui lætificat juventutem meam, disse Macário com voz
segura e cheia, exprimindo a doce emoção da sua alma, no desempenho
da sua ocupação predileta.
– Judica me, Deus….
O celebrante abaixou os olhos para o quadro preto, e um murmúrio confuso
lhe saiu dos lábios, no recolhimento fervente da oração,
enquanto com os braços entreabertos, unindo o polegar e o indicador
de ambas as mãos, mostrava o êxtase da alma suspensa entre o
céu e a terra.
Macário aproveitou a ocasião para correr uma olhadela pela
igreja. As sobrecasacas negrejavam, em linha, por trás dos vestidos
aparatosos, de cores vivas. Na primeira fila, os botões do Cazuza Bernardino
brilhavam.
Padre Antônio voltou-se para o povo e disse:
-Oremus…
Um leve sussurro correu pela nave, um murmúrio de admiração
e respeito. A presença do padre, simpático e venerado, nas ricas
roupas bordadas a ouro, atraiu por instantes toda a atenção
dos fiéis. Quando o padre voltou as costas ao público para rezar
o Confiteor os olhos em liberdade puseram-se de novo a admirar o Cazuza Bernardino
e a sua interessante noiva. Macário aproveitou o Confiteor para dar
outra olhadela. O coletor, de casaca, engastava a figura redonda e barbada
na massa escura formada pela primeira fila de homens.
– De casaca! pensou Macário. É incontestavelmente um homem
decente e digno. Sabe como se fazem as coisas. Isto é que é.
Um homem sério deve apresentar-se às cerimônias decentemente
vestido.
E exclamou, curvando-se reverente, atraído pela sublimidade do mistério:
– Misereatur tui Omnipotens Deus, et dimissis peccatis tuis, perducat te
ad vilam æternam.
Padre Antônio esgotou o Kyrie eleison. Terminou a epístola.
Macário, mudando o missal para o lado do Evangelho, lançou em
cheio a vista sobre o povo de fiéis que assistia à missa.
Lá estava o Valadão, esgrouviado e tísico, com o fitão
tricolor a tiracolo, o José Antônio Pereira, muito sério,
com o guarda-chuva e o pequeno chapéu de feltro pendurados das mãos
engatadas sobre o baixo ventre. O Costa e Silva lá estava, em devoção
fervorosa; o Mapa-Múndi, suado e enorme, dando sinais de impaciência;
o Regalado, o Chico Ferreira… Silves em peso, inclusive as pessoas gradas,
tinha vindo assistir aquela missa especial para gozar melhor o espetáculo
dum casamento rico. Macário estava contente. Era aquilo mesmo que ele
desejava! Queria que estivessem ali todos aqueles devotos descontentes ou
arredios, para ter o gosto de os ver vencidos, confessando o arrependimento,
no balbuciar humilde da oração.
– Orate, frates, aconselhou o celebrante, voltando-se de novo para os fiéis.
Houve um ruge-ruge de saias engomadas, e um ruído de chapéus-de-sol
que batiam no chão. O povo ajoelhava.
Padre Antônio lia o Evangelho. Macário voltou-se de três
quartos, e pareceu-lhe que pela fresta da porta lateral, a figura enfezada
e biliosa do professor Chico Fidêncio espiava.
– Será possível?! murmurou Macário, fazendo esforços
para certificar-se da verdade. Sim, não havia dúvida. De punhos
rotos, seboso e mal vestido, com as botinas sem graxa, o cabelo sem óleo,
pequeno e desagradável, o Chico Fidêncio ali estava. O arrojo
do professor desnorteava o sacristão. O Chico Fidêncio ali, o
ateu, o troscista, o incorrigível Chico Fidêncio, era realmente
para um homem dar o cavaco! Viessem o capitão Fonseca, o Mapa-Múndi
e o Costa Silva, todos os que haviam protestado contra o dever da confissão,
isso era o que Macário desejava. Viesse mesmo o professor Aníbal
Americano, que jurara não ouvir missa dita por padre Antônio
de Morais. Apesar de livres-pensadores, apesar de desviados da senda direta
por onde o vigário os queria levar para o céu, Macário
tinha certeza de que se converteriam facilmente, e para eles se preparava
a grande surpresa daquele dia. Mas com o tratante do Chico Fidêncio
a coisa era diferente. Esse sujeito já estava em vida condenado ao
inferno, era um pecador impenitente. Com ele eram infrutíferas todas
as tentativas de conversão, o patife tudo metia a ridículo.
Macário não podia se defender dum certo respeito supersticioso
pela inteligência maligna e irreligiosa do professor, que tanto amargurara
os últimos dias do defunto padre José. O Fidêncio era
o diabo. Se ele se metesse a levar a surpresa para o lado da gaiatice, estava
tudo perdido. Apesar da confiança de Macário no talento e nas
virtudes de padre Antônio, receava o resultado da luta entre a unção
do santo vigário e o sarcasmo do patife que, no dizer de padre José,
fora expulso do corpo de permanentes do Pará por maus costumes, pecados
contra a natureza… Nesse combate que se iria talvez travar, dali a momentos,
ao pé do altar de Nossa Senhora, o padre e o professor representariam
os dois princípios opostos, o Bem e o Mal, o Anjo do Senhor e o Inimigo
da Alma. Macário estava muito inquieto. A seu pesar não podia
tirar os olhos da carinha enfezada de Fidêncio, sarcástica e
diabólica, por trás da porta lateral da rua. Por que coincidência
fatal, o Chico Fidêncio que nunca vinha à missa, se apresentava
ali naquele dia quando a sua presença só podia ser prejudicial
à salvação de Silves? O segredo da surpresa fora rigorosamente
guardado por Macário, nem à vizinha o dissera. Teria o Fidêncio
adivinhado, ou estaria ali só por curiosidade de assistir ao casamento
do Cazuza Bernardino? Terrível incerteza que mergulhava o sacristão
num mar de conjeturas e de receios.
– Sursum corda, balbuciou padre Antônio num murmúrio de êxtase.
Macário já não sabia o que fazia. O demônio do
Chico Fidêncio viera ali de propósito para o tentar, distraindo-o
do serviço santo. Felizmente Macário estava muito prático,
fazia aquilo todos os dias, e maquinalmente, preocupado da súbita aparição
do correspondente do Democrata, mudava o missal, trazia as galhetas, sacudia
o turíbulo e fazia genuflexões, como se estivesse todo entregue
ao mistério. Mas no fundo da alma pungia-lhe o remorso dum pecado,
e quando padre Antônio acabou de ler o Evangelho de S. João,
Macário, atarantado, esqueceu o Deo gratias.
– Estava distraído, Macário, disse S. Rev.ma, entrando atrás
dele pela sacristia dentro, carregando o cálice coberto com a bolsa
dos corporais.
– Saberá V. Rev.ma que foi uma tentação do demônio,
respondeu descansando o missal.
Padre Antônio despiu a casula e a alva, vestiu a capa-magna e voltou
para a igreja, seguido pelo sacristão.
Os noivos, os padrinhos e os convidados aproximaram-se. O matrimônio
começou a celebrar-se. O Cazuza Bernardino, satisfeito e risonho, acariciava
os copos da espada prateada e nova, virgem de combates. A D. Mariquinhas das
Dores continuava a morder o lencinho de rendas, corada e vergonhosa, com uma
lágrima no canto do olho esquerdo.
Quando padre Antônio perguntou se fazia gosto naquele casamento com
o senhor tenente José Bernardino de Santana, respondeu com voz ininteligível.
Quando lhe tocou a vez o Cazuza Bernardino sorriu e disse com segurança:
– Pois não, padre-mestre, é de todo o meu gosto.
Nenhum dos assistentes da missa se retirara, todos, mesmo os que não
haviam sido convidados para assistir ao casamento, detinham-se fazendo roda,
seguindo com um sorriso vago os movimentos dos nubentes. O capitão
Manuel Mendes da Fonseca, grave e sério, não sorria. O Neves
tinha lágrimas, muito comovido. D. Eulália assoava-se repetidas
vezes. O Mapa-Múndi, asfixiado pela multidão, suava.
Quando a cerimônia acabou, o Valadão ao ouvido do Costa e Silva:
– Estão conjugados!
Os noivos abraçavam os parentes. D. Mariquinhas desatara em pranto,
abraçada ao pescoço de D. Eulália ofegante. Neves Barriga,
pernas abertas, cabeça pendida, lenço espalmado na mão,
sorvia uma grande pitada de Paulo-Cordeiro, disfarçando emoção
profunda.
– Agora, disse ele para o capitão Fonseca, agora é que o Urubus
vai ficar de todo insuportável para mim. Por meu gosto mudava-me para
a vila. Mas D. Eulália, coitada, tem muito amor aos xerimbabos!
Os rapazes amigos do noivo vieram logo apertar a mão à noiva
e dar um abraço àquele felizardo. Cazuza agradecia dizendo:
– Olha lá, não fartes ao baile.
Macário procurou o Chico Fidêncio, e não o viu. Ter-se-ia
ido embora. Seria uma felicidade!
Havia um grande reboliço entre o povo. Preparavam-se todos para sair,
acompanhando os noivos à casa do Bernardino Santana. Mas padre Antônio,
de simples batina negra e barrete de quina, assomou de súbito ao púlpito.
Era a surpresa. Pararam todos. Macário, sorrindo, viu o Neves Barriga,
o Costa e Silva, o Valadão e o Mapa-Múndi voltarem-se muito
admirados. O professor Aníbal Americano entrava nessa ocasião,
de óculos de tartaruga, de sobrecasaca abotoada, muito formalizado.
Não quisera faltar ao dever de vir cumprimentar o seu antigo discípulo,
na ocasião do seu casamento. O professor estacou em meio da nave, contrariado,
concertando os óculos.
– É uma atenção delicada, disse o capitão Fonseca
para o Neves Barriga. S. Rev.ma vai fazer uma prática sobre o sacramento
do Himeneu. É para agradecer.
O Neves deu a entender com a cabeça que agradecia a atenção
de S. Rev.ma.
Mas padre Antônio de Morais, descansando o barrete sobre o parapeito
do púlpito, trovejou contra a falta de devoção do povo
de Silves, condenando, numa eloqüência cálida e correta,
o amor do lucro que o levava a abandonar pelos negócios o caminho da
salvação, em tão boa hora começado, e desfiou
um longo rosário de argumentos colhidos em Doutores da Igreja. Levantando
o gesto, e dando à voz entoações lúgubres, carregando
os supercílios e apertando os olhos, os belos olhos pretos, para não
ver o quadro horrendo que descrevia aos ouvintes atônitos e surpresos,
fez uma pintura viva e colorida das torturas preparadas na outra vida para
os que nesta se descuidam de Deus por amor do mundo. S. Rev.ma mostrou nada
haver de mais contrário ao ensinamento cristão, às eternas
verdades da Lei, do que essa ardente preocupação pelos bens
terrenos que levava as suas ovelhas queridas a abandonarem o serviço
do Senhor, para irem, na sôfrega ambição de ganhar dinheiro,
perverter a alma no ermo dos castanhais, onde todos os anos se reproduziam
cenas muito pouco dignas de gente católica, apostólica e romana.
– O bem mais precioso desta vida é a tranqüilidade da consciência.
E, depois, pausadamente, perguntou com solene intimativa, com que consciência
se deixava deserta a igreja, despovoava-se o culto santo da Mãe Santíssima
dos homens pelos prazeres e divertimentos mundanos.
E percorreu os olhos pela nave, por sobre as cabeças apinhadas em
redor da tribuna, nas proximidades do altar-mor. Aquela gente viera, alegre
e curiosa, para presenciar um espetáculo agradável, e não
sabia como responder à inesperada pergunta, começava a deixar-se
impressionar pela suave sombra da igreja, pelo cheiro de incenso, pelo silêncio,
pela nobre figura daquele mancebo, vestido de negro, cuja fronte alva e espaçosa
brilhava de inteligência e cuja voz simpática atraía os
corações.
– Loucos! bradou de repente o padre, sacudindo as mãos, no desespero
de convencer os matutos resistentes. Loucos, não sabeis que a morte
não se faz anunciar nunca! E que dum momento para outro, nas festas
dos castanhais, quando ao balcão contardes os lucros da colheita, e
vos entregardes descansados aos ganhos do negócio ou aos prazeres insípidos
do mundo, ela vos pode levar para a infinita dor com a alma cheia de pecados,
embalde arrependida!
Aquela evocação da idéia da morte, quando todos se preparavam
para os divertimentos duma festa, e trajando os melhores vestidos, as senhoras
desafiavam os olhares dos homens, ávidos dos gozos da vida, causou
uma espécie de arrepio geral, como se um inseto repugnante os perturbasse
a todos no repouso cômodo do corpo, roçando-lhes a epiderme.
O plano formado por S. Rev.ma surtia bom efeito. Macário estava satisfeito.
Entretanto alguns espíritos fortes, o Mapa-Múndi e o Costa
e Silva protestaram com um gesto e com o olhar contra aquele recurso empregado
pelo vigário. O professor Aníbal, que se achava perto do Macário,
disse ao ouvido de José Pereira, que no interesse de sua opinião,
padre Antônio não duvidara entristecer os seus paroquianos. Era
malfeito, principalmente numa ocasião daquelas.
Sem notar o protesto, sem ouvir a censura, com sincera compaixão na
voz e no rosto, erguendo os belos olhos ao teto escurecido do templo, baixando-os
depois para percorrer a nave com um olhar amoroso de pai que compreende a
desgraça dos filhos rebeldes, o padre continuou:
– Ah! meus irmãos, não sabeis que, morrendo em pecado, perdemos
a Deus, e que o perdemos para sempre ‘e’ sem remédio? E quereis, filhos
e irmãos amados, arruinar por bens que não são mais do
que males, por uma fortuna que é pó, cinza e nada, a salvação
eterna da vossa alma imortal?
– Sabeis o que é o inferno, bradou com energia crescente, agarrando-se
com ambas as mãos ao púlpito, para mostrar que estava seguro
da verdade. Sabeis o que é o inferno? É uma multidão
infinita e complicada de todos os tormentos, que se sofrem sem ter esperança
de melhorar, por toda a eternidade, para todo o sempre, sem que para diminuir
essas atrozes torturas possais invocar a vossa idade, o vosso sexo, a vossa
fraqueza, a vossa devoção, nem sequer a vossa qualidade de cristãos,
ó cegos colaboradores de Satanás!
O povo ficou transido de susto, ao ouvir falar de repente na escura e misteriosa
região em que não penetra a esperança. Padre Antônio
falara na entoação firme de íntima convicção.
Uma vaga sensação de mal-estar, um terror indefinido parecia
ir-se apoderando das mulheres e dos tapuios. Posto não fosse tapuio,
o Costa e Silva tinha os lábios trêmulos, sentia-se nervoso,
aborrecido por ter ido à missa. O Mapa-Múndi resmungava, fazendo
menção de retirar-se, mas a irmã, a D. Dinildes, deixava-se
ficar, dominada pela voz severa que lhe falava de coisas tão terríveis.
Padre Antônio percebia o efeito das suas palavras. Devia estar pessoalmente
magoado com o procedimento da gente de Silves, devia estar despeitado por
não lhe terem correspondido aos trabalhos e dedicação
pela salvação da vila. Ou por isso, ou porque um sincero desejo
de fixar a fé vacilante dos paroquianos o animasse naquele momento,
apaixonando um homem de ordinário tão calmo e comedido, começou
a apurar de tal modo ‘a influência do pecado sobre a vida futura, a
exagerar por tal forma o negro quadro da condenação eterna,
pintando ao vivo com muito talento, uma por uma, as diversas cenas do inferno,
que, de súbito, o povo pôs-se a bater no peito, num desespero
surdo em que os soluços das mulheres, prostradas sob o peso da ameaça,
se misturavam com a respiração forte, ofegante, dolorosa dos
tapuios caídos de joelhos, sobre os tijolos da igreja, num abatimento
profundo, como se o véu que encobria a consciência de todos eles
se tivesse rasgado à voz poderosa do padre, para lhes deixar conhecer
o estado de pecado mortal em que jaziam. O Mapa-Múndi e o Costa e Silva
tinham a garganta seca e os olhos úmidos. O capitão Fonseca
batia, às ocultas, nos peitos, realmente arrependido de ter proibido
à mulher o remédio da confissão. De D. Mariquinhas das
Dores apenas aparecia a cabecinha envolta numa gaze branca, cercada de botões
de laranjeira, agitada por um tremor convulso de rolinha assustada. O Cazuza
Bernardino tinha estereotipado nos lábios um sorriso à-toa.
O tenente Valadão, de faixa a tiracolo, encostado a um pilar, reprimia
a tosse. O Neves, muito vermelho, chorava como uma criança, assoando-se
ruidosamente.
O padre, então, falou ao coração compassivo daqueles
roceiros, como já falara à imaginação daqueles
filhos do Amazonas. Parecendo gozar a satisfação completa do
triunfo, adoçou a voz, terno e compassivo, e disse daquele divino Jesus,
pendurado da cruz do sacrifício, entre dois criminosos, com o belo
corpo chagado e dolorido, com a fronte cismadora inclinada ao peso dum incomparável
martírio, com os braços abertos como para exprimir o imenso
amor que dedicara à humanidade, morrendo como um bandido duma morte
afrontosa, injuriado, cuspido, açoitado como um negro, amesquinhado
na sua pessoa e na sua obra, tudo para remir da mácula do pecado original
aqueles tapuios imbecis, aquelas mulheres apáticas e moles, aqueles
homens soberbos, indolentes e viciados – que apesar de haverem nas águas
do batismo bebido a puríssima doutrina do Salvador do Mundo, viviam
como verdadeiros pagãos, como judeus que eram pelo pecado, a crucificar
novamente o Crucificado, a pregá-lo outra vez na cruz dos seus desatinos,
a chagar-lhe o corpo com a sua ingratidão e vileza, a injuriá-lo,
a cuspi-lo, a amesquinhá-lo na sua Igreja e nos seus sacerdotes.
E olhou de relance para o Costa e Silva que se sentia desfalecer. O Mapa-Múndi,
reconhecendo-se culpado, abaixara os olhos, confuso, torturado pelo olhar
da irmã, cheio de censuras.
– Sim, meus irmãos, continuou padre Antônio, compungido e riste,
com lágrimas na voz, com doloroso sentimento na face. Sois os verdadeiros
judeus deste tempo. Entre o nosso doce Salvador, o nosso bom e querido Jesus,
que se sacrificou por nós, que se empenhou por nós ante o austero
tribunal do seu augusto Pai, que morreu por nos naquela cruz, e o nosso eterno
inimigo, vós preferis o inimigo, vós crucificais a Cristo e
festejais o demônio.
– Sim, o demônio! repetiu fulminando com o olhar o Mapa-Múndi
e o Costa e Silva.
Depois amaciando a voz, e mostrando a estátua do Senhor dos Passos,
avelhantada e triste:
– Aquela pálida imagem chora ainda hoje lágrimas de sangue
pelos vossos desvarios, e quando Nosso Senhor chora e geme sob o peso de tantas
cruzes, vós, filhos e irmãos ingratos, só cuidais em
festas e negócios, como se nada houvesse depois desta vida terrena!
Um soluço comprimido abalou o auditório, como se uma corrente
simpática tivesse reunido todas as pessoas presentes na expansão
do mesmo sentimento.
O Costa e Silva parecia aniquilado. De mão ao peito, olhos baixos,
era uma estátua da contrição e do arrependimento. O Mapa-Múndi,
suava, torturado.
Olhando para eles, vendo-os vencidos, padre Antônio de Morais deixou
escapar um sorriso de triunfo, e entrou numa peroração brilhante,
cheia de eloqüência, repassada do mais poderoso sentimento religioso.
O povo, subjugado, tremia e admirava. Nunca a tribuna sagrada, em Silves,
fora levantada àquela altura. Nunca naquele pobre e obscuro recinto
do velho templo arruinado ecoara uma voz tão sonora, tão vibrante
e entusiástica, tão rica em rasgos de verdadeira eloquência.
Umas vezes singelo e chão, baixando ao nível da compreensão
dos tapuios ignorantes e das mulheres do povo, outras, alteando-se até
o estilo puramente literário, encantando e dominando o auditório
somente pela música da voz e pela sonoridade retumbante de grandes
frases que pareciam encher a modesta sala da igreja paroquial, padre Antônio
tinha a doçura do pai que fala a filhos estremecidos, o carinho da
mãe que embala o pequenino doente, a calma do amigo que aconselha,
a severidade do juiz que castiga, a raiva da vítima que se vinga. O
seu rosto refletia, como num mármore polido, os sentimentos que se
sucediam no largo peito, arfante sob a sobrepeliz de rendas brancas. Os olhos
brilhavam-lhe com o fulgor da cólera, depois aveludavam-se, ameigavam-se
para acentuar as palavras doces que saíam dos lábios, depois,
ainda, fixos, grandes, encarando entes ou cenas invisíveis, tinham
a profundeza escura dos abismos… A boca severa, convulsa, dizia maldições,
ameaças e castigos, mas logo desatava-se em murmúrio brando,
semelhante ao ciciar da brisa das campinas, em que se ouvem o ruído
leve das folhas levadas pelo vento e um vago som de beijos. A sua alta estatura
impunha-se à multidão. Da elevada posição em que
se achava parecia ter baixado do céu para castigar os maus e abraçar
os bons. Dizia de novo o martírio, a angústia de Maria Santíssima,
a ingratidão dos homens, o terrível nada do mundo. Tinha orações
que açoitavam, que faziam o auditório vergar-se como árvores
batidas pelo tufão do sul, ditos que punham uma angústia inexprimível
no coração dos homens, um doloroso desalento no peito fraco
das mulheres, gestos de compaixão e de dor fazendo correr lágrimas
de arrependimento. Havia uma hora que o sermão durava. O povo desabituado,
vencido pela emoção, abatido pelo calor que se desprendia dos
corpos com emanações de suor e de perfumes de trevo, de patchuli
e de manjerona, parecia uma cera mole que o padre amoldava a seu talante.
Parca era a luz que penetrava pelas vidraças estreitas e embaçadas.
Do alto do telhado, às pausas do orador, os morcegos chiavam, e as
vespas e cabas, deixando os ninhos e cortando subitamente a nave em diagonal,
zumbiam descontínua e lugubremente. Os raios do sol, coando pelos vãos
das telhas e pelas altas janelas, davam tons macilentos às grandes
imagens velhas, imóveis sobre os altares, com uma aparência de
desolada miséria. As almas penadas dos retábulos e dos grandes
quadros parietais, desmaiavam na fogueira, inspirando horror e lástima.
Do teto, suspensa por compridas e finas correntes de ferro, uma grande lâmpada
de azeite, fracamente iluminada, pendia em frente ao altar-mor, projetando
uma sombra esguia sobre o pavimento da igreja, e quando o vento que entrava
pela porta lateral da sacristia, a balançava de leve, a sombra varria
o povo ajoelhado, impressionando as velhas beatas assustadas. O calor aumentava,
o suor banhava as frontes, era enorme a opressão dos peitos. O pregador
pôs-se a falar na eternidade, nessa terrível concepção
que abala os corações mais fortes e confunde os espíritos
mais lúcidos. E quando pronunciava em voz grave e lenta as palavras
– Para sempre! Para sempre! parecia que a sua voz acompanhava o pêndulo
invisível do tempo no eterno e monótono balanço. Depois,
por uma transição rápida terminando o discurso, disse
que a misericórdia divina era infinita e convidou o povo a dizer com
ele a oração dominical na esperança de abrandar a cólera
celeste.
Mas em vez de o acompanhar na oração, vendo-o de braços
estendidos e cabeça baixa a murmurar – Padre-nosso que estais no céu
– com submissão humílima, e como se a humildade e o aviltamento
daquele padre, havia pouco tão severo e grandioso, provasse mais a
magnitude da cólera celeste de que todo o seu discurso, o auditório,
no auge do terror e do arrependimento, pôs-se a bradar angustiado:
– Misericórdia, misericórdia!
E na ânsia de se vilipendiar em público, castigando a carne
pecadora e provando o arrependimento que lhe ganhara o coração,
toda a gente se pôs a bater na cara com ambas as mãos, produzindo
um ruído seco e prolongado como uma salva de palmas, na platéia
dum teatro.
Padre Antônio desceu do púlpito, e pôs-se a andar às
pressas para casa, suado, rubro, cansado, mas feliz, convencido de que possuía
a alma daquela gente para todo o sempre. Para que o encontro com alguém
não o forçasse a despir a fria e severa atitude com que descera
do púlpito, correu a encerrar-se no seu quarto, donde não saiu
todo o dia, recusando-se a receber as pessoas principais da terra que o vinham
felicitar pelo esplêndido sermão que proferira.
Macário saiu da igreja radiante de entusiasmo e de amor-próprio.
Sim, senhores, aquele macavelismo tinha sido bem achado, a surpresa do povo
fora completa, o triunfo seria certo. E a cara do Mendes da Fonseca, e o desapontamento
do Mapa-Múndi e do Costa e Silva, e a zanga do professor Aníbal
Brasileiro, que se fora embora, em meio do sermão, aborrecido por ter
faltado ao juramento que fizera! À porta da Matriz, satisfeito, sentindo
no peito o orgulho do pai que ouve os aplausos ao filho vitorioso, Macário
andou de grupo em grupo, e depois saiu pelas ruas, de loja em loja, sondando,
provocando e dirigindo a opinião:
– Que tal esteve o sermão, hein? Já se ouviu em Silves uma
coisa assim? Padre Antônio é ou não um pregador digno
da catedral do Pará?
E respondia, ele próprio, que a vila devia orgulhar-se de ter um vigário
que, além de ser um padre modelo, casto e sério até ali,
dispunha dum talento oratório capaz de meter inveja a todos os padres
do Amazonas. Ele aconselhara a S. Rev.ma a aproveitar aquele dia para o sermão,
que ninguém esperava, mas cujo tema o Macário conhecia desde
a véspera, pois fora combinado entre os dois, às oito horas
da noite, na sala de jantar.
E corria as ruas, falando às janelas, onde as senhoras passavam aquele
domingo perfumado e alegre:
– Gostou do sermão, D. Cirila? Que tal, D. Dinildes? Que me diz a
isto, D. Prudência?
Aos homens perguntava o que mais lhe agradara em toda a oração,
se o princípio, o meio ou o fim. Indagava: Gostou daquela chamada de
judeus, seu capitão Fonseca? E quando ele falou da eternidade, hein,
seu Costa e Silva? E quando ele, no princípio, falou nas ovelhas do
Senhor que abandonam o serviço de Deus para irem para os castanhais
apanhar castanhas e fazer porcarias?!
O sermão agradara geralmente, e agora, cá fora, na calma da
recordação, os homens elogiavam-no. Alguns faziam observações
ligeiras.
À noite era o baile em casa do Bernardino Santana para festejar o
casamento do filho. Ao sair da igreja o Cazuza Bernardino dissera ao sacristão,
amavelmente:
– Olhe lá, seu Macário sacristão, não farte.
Vá espiar um mocadinho o baile.
E o sacristão fora, de rodaque de alpaca, porque a sobrecasaca de
lustrina reservava-a para as grandes solenidades do dia. Padre Antônio
ficara encerrado no quarto, lendo ou meditando.
A casa do Bernardino Santana estava toda iluminada com lampiões de
querosene, e cheia de gente. Estava ali toda a sociedade seleta da vila, não
faltava uma só pessoa grada. Vinham uns pelo Neves Barriga, presidente
da Câmara, homem bom, que vivia fartamente no sítio de Urubus,
sem inimigos. Outros vinham pelo Bernardino que tinha lá a sua importância.
Os rapazes acudiam ao convite do Cazuza, que, apesar de tenente, era um bom
rapaz, muito pândego. A sala, pequena, clara e florida, estava cheia
de senhoras, e pelo corredor, pelas alcovas, transformadas em gabinetes e
pequenos salões, pela sala de jantar, e até pelo copiar da cozinha,
os convidados espa1havam-se, fumando, bebendo, conversando, passeando, uns
sérios e sisudos, sentindo o peso da sobrecasaca sobre os ombros acostumados
à liberdade do rodaque branco, outros, alegres, joviais, querendo desforçar-se
naquela noite de festa dos longos dias sensaborões da vida sertaneja.
As senhoras novas, sentadas nas cadeiras e canapés alinhados na sala,
vestidas de claro, coradas de emoção, tinham os olhos em alvo.
Pelos cantos as velhas negrejavam, cochichando. Um calor forte, impregnado
do cheiro acre de petróleo, de suor, do perfume de patchuli e manjerona,
vinha da sala e assaltava a garganta dos recém-vindos. Um pó
sutil levantava-se do pavimento recentemente varrido. A sala, nua, espaçosa,
posto que pequena, tinha um ar alegre de festa, com as paredes brancas, as
telhas vermelhas a descoberto, o chão de ladrilho, e os vestidos claros,
enfeitados e engomados das senhoras.
Quando Macário entrou, a orquestra, composta do Chico Ferreira, tocador
de flauta, e do Manduca sapateiro, rabequista, tocava a Varsoviana. Os rapazes,
às portas, empurravam-se rindo, excitando-se mutuamente a romper a
dança, nenhum queria ser o primeiro a tirar par, procurando disfarçar
o pejo com galhofas e risadas! Estavam ali os mais pintados, os mais atirados,
os mais bonitos rapazes de Silves. Eram o Totônio Bernardino, irmão
do noivo, recém-chegado do Pará, onde cursara as aulas do Liceu
Paraense, viera às férias da Semana Santa, e deixara-se ficar
vadiando; o Pedrinho Sousa, também estudante, companheiro do Totônio
nos estudos e na cábula; o Manduquinha Barata, pequenino, bonitinho,
bem vestidinho, fugira do Seminário de Manaus, por não poder
meter o dente no Hora-horæ, e o pai, depois de lhe dar uma tremenda
sova à beira do cacaual, quando o viu chegar de surpresa, pondo-o em
papas e de cama por quinze dias, deixava-o andar vagando em Silves, namorando
as moças e fumando cigarros, por não saber o que fazer dele;
o juiz municipal, Anselmo Pereira de Campos Natividade, bacharel de Pernambuco,
trigueiro e récem-formado, muito míope e muito pedante; o Felício
boticário, irmão de D. Prudência, magro e esguio, parecendo
filho do Valadão; e o Quinquim da Manuela, bom menino, sobrinho do
Neves Barriga, pobre mas muito estimado. Macário não vinha ali
para dançar, nem fora convidado para isso. Não freqüentava
bailes, e viera à festa do Bernardino por condescender, e ao mesmo
tempo porque andava com muita vontade de perguntar a toda a gente, com quem
não falara ainda, a sua opinião sobre o sermão da manhã.
– Venha espiar o baile, dissera-lhe o Cazuza Bernardino, e ele, condescendente,
espiava.
Vendo as nicas que os amigos faziam, o Cazuza Bernardino atravessou a sala,
com passo firme, afrontando com denodo os olhares das senhoras e foi convidar
a noiva para dar começo ao baile. Na fila das cadeiras houve um riso
nervoso que disparou duma ponta a outra quando os noivos vieram para o meio
da sala, de braço dado, prontos a começar. O Totônio animou-se
e foi tirar uma irmã da noiva. O Felício boticário atirou-se
a D. Dinildes e o Manduquinha Barata, por troça, foi convidar a D.
Eulália que se fez de manto de seda.
O Barata foi bater à porta de D. Cirila, que lhe respondeu, desdenhosa,
no seu vestido verde, precioso e largo:
– Axi! seu Manduquinha, eu não danço com menino.
O riso estalou na sala. O Barata, já meio vexado, foi oferecer a mão
à filha do Valadão, uma rapariga meio loura, muito pálida,
de nariz afilado e grandes dentes em ponta, vestida de musselina branca com
pingos vermelhos, e laços cor de castanha:
– Já estou comprometida com o filho do Chico Sousa, respondeu a filha
do Valadão, com maus modos.
Foi uma gargalhada. Afinal o Manduquinha achou quem o quisesse, uma menina
de onze anos, sardenta e endefluxada, e a Varsoviana começou compassada,
em cadência, com requebros convencionais de elegância provinciana.
A noiva, com o véu atirado para trás, o rosto descoberto, as
ventas dilatadas, o ventre para diante, sacudia as saias amplas e engomadas,
batendo fortemente no chão com os pés calçados em botinas
grandes de cetim branco, de carregação, ao som da música
monótona e pontuada da Varsoviana. O Cazuza Bernardino, direito como
um fuso, apertava-a contra a bela farda nova, aspirando-lhe enlevado o macaçar
dos cabelos negros, coroados pela grinalda de flores de pelica branca, e desmanchando-se
já, na desordem des primeiros passos da dança, do penteado de
bandós custosamente arranjado para aquele dia solene, único
na vida da donzela do Urubus. Agarravam-se um ao outro, como temendo uma separação,
e volteavam pela sala, mudos, corados, sentindo nas costas os olhares agudos
das senhoras, e nos ouvidos as graçolas dos homens e o murmúrio
confuso dos cochichos das velhas, sentadas ao canto da sala, maldizendo, vestidas
de preto. O Totônio e a irmã da noiva, a Milu, iniciavam um namoro
na Varsoviana. Haviam principiado rindo, metendo à bulha os noivos,
e dançando com desembaraço e graça, sobressaindo aos
outros pares na elegância dos passos e dos requebros, mas agora, sentindo
uma emoção evidente, estavam sérios, com os olhos cruzados
num estrabismo de enlevo, parecendo não pisar o chão, quase
abraçados, ele soprava-lhe os cabelos castanhos com a respiração
forte, ela, com o vestido de popelina azul-celeste caindo em pregas sobre
os amplos quadris de mulher feita, deitava a cabeça sobre o fraque
do cavalheiro, abandonando-se. O Felício botava a alma pela boca, carregando
a irmã do Mapa-Múndi; não acertavam os passos, pareciam
dois pistões duma peça mecânica em movimento alternado.
O Manduquinha, esse, sim, divertia-se. Agarrara a menina pela cintura, e eram
pulos, pinotes, saltos incríveis, patadas formidáveis querendo
arrancar tijolos, uma dança desenfreada e patusca que punha tudo em
rebuliço.
– É um diabinho, dissera D. Eulália, lisonjeada da preferência
que rejeitara.
A palavra circulava. Era um diabinho o demônio do Manduquinha Barata!
O Chico Ferreira soprava a flauta. O Manduca sapateiro raspava com fúria
a rabeca, fazendo macaquices.
A maior parte dos convidados havia chegado às portas da sala, para
ver a dança. Os compassos monótonos da Varsoviana apressavam-se.
O querosene dos lampiões tresandava.
Quando cessou a música por deliberação unânime
da orquestra, os pares separaram-se ofegantes. As damas correram a tomar as
cadeiras, tonteando, rubras, excitadas. Os cavalheiros suados, abanando-se
com o lencinho, dirigiram-se às portas, com o fim de se furtarem à
evidência, misturando-se com os espectadores em grupos. O Manduquinha
Barata veio para o lado de Macário que a curiosidade fizera adiantar-se
até à porta da sala, e, descuidosamente, se deixara ver de todos,
distraído na contemplação da linha de senhoras novas,
sentadas nos canapés e cadeiras. O Manduquinha, um fedelho, quis brincar
com o sacristão, e gritou, do meio da sala, para chamar a atenção:
– Olá, este rato de sacristia por cá! Então, seu Macário,
que faz aí que não vem tirar a sua dama? Tinha graça,
saias com saias!
Os olhares apontaram para o Macário, numa corrente elétrica
o riso disparou pelas bocas.
Macário quis responder com um desaforo àquele desacato, mas
não valia a pena! o Manduquinha era um criançola a quem puxaria
as orelhas na primeira ocasião.
Grave e digno, o sacristão afastou-se sem dizer palavra, e meteu-se
pelo corredor. Um homem de sobrecasaca de brim branco, e chapéu de
manilha na cabeça, passava sobraçando botijas de cerveja Bass.
Era o dono da casa, o Bernardino Santana. Macário parou e cumprimentou.
– Oh, quem é você?
– Sou o Macário de Miranda Vale, sacristão da Matriz.
– Ah, meu filho me disse que havia convidado a você para espiar o baile.
Que diz, hein? Está de arromba! Eu quis que tudo ficasse decente, por
causa das más línguas. Tem muita cerveja, licor, vinho do Porto,
chá e café. Pela madrugada há de haver chocolate. Não
faça cerimônia. Eu não sou soberbo…
Macário começou um cumprimento. Não faltava ninguém,
estava ali toda a gente de Silves!
– Quais, não me diga isso, retorquiu o Bernardino, são bondades
que não mereço. De mais a mais falta muita gente. O diacho da
pândega dos castanhais chama muito povo. Se não fossem os castanhais
a casa não chegava!
– Com licença… acrescentou, seguindo o seu caminho. A orquestra
dava o sinal duma contradança. Macário continuou pelo corredor
até à sala de jantar, transformada em sala de palestra e de
jogo. A uma mesa pequena o capitão Fonseca e o Neves Barriga jogavam
o pacau, a grão de milho. A uma outra mesa, maior, jogavam o três-sete
o Valadão, o Costa e Silva, o Mapa-Múndi e o Regalado, a grão
de milho também. Estavam na sala, além desses, o José
Antônio Pereira, o professor Aníbal e outras pessoas gradas.
A um canto, solitário e sarcástico, o Chico Fidêncio rola
as unhas, chupando de vez em quando o cigarro.
A sala de jantar estava cheia de fumo, havia copos de cerveja, a meio vazios,
sobre as mesas. Da cozinha vinha um cheiro forte de café e de peixe
frito.
– Um de rei! bradava triunfante o Neves, na ocasião em que Macário
chegava. Tome lá para o seu tabaco, compadre.
Sereno e grave, o coletor respondeu:
– São coisas da sorte, felicidades de cada um. A vaza é nossa,
compadre.
– Leve lá, que essa não me faz falta, acudiu generosamente
o Neves. E metendo a mão no bolso traseiro da sobrecasaca tirou a caixa
de couro e abriu-a, magnânimo:
– Vá lá uma pitada de amigo, compadre.
– Estou encaiporado hoje, exclamou o Mapa-Múndi, esfregando o lenço
no rosto, no pescoço, nas mãos, para enxugar o suor em bica.
Começou por aquela estopada do sermão, e acaba por esta infelicidade
ao jogo. Macacos me comam, se eu não largo isto já.
– Tenha paciência, Guimarães, a roda anda e desanda. Não
há meia hora que estamos jogando, e já você está
desesperado. Tenha paciência, homem.
E o Costa e Silva baralhava as cartas, judicioso e satisfeito.
– Isto de sorte é assim mesmo, opinou o Valadão, tossindo.
É como as mulheres, muda.
O Regalado aplaudiu. O Valadão tinha boas saídas! O diabo era
aquela tosse, mas também porque o Valadão não deixava
as xaropadas e não se tratava pela homeopatia? A homeopatia era o único
sistema verdadeiro, isso estava mais que provado.
O coletor voltou-se para a mesa do três-sete, e aprovou a opinião
do Regalado; ele em pessoa, era a melhor prova da excelência do sistema.
Curara-se dum ar de vento pela homeopatia, depois de desenganado, mas entendia
que além das doses se devia usar o Óleo de mamona.
– E o leite de maçarunduba para o peito, acrescentou o Neves intervindo.
É muito bom para abertura do peito.
Para o peito, não há como o peitoral de cereja de Ayer, disse
o Costa e Silva. Tenho lá na loja uma porção de caixas,
é bom e barato.
– Nada de misturas! exclamou o Regalado, largando as cartas. A homeopatia
só, sem mais nada! Ou bem que samos, ou bem que não samos…
Quem quiser beber as xaropadas do Felício, lá se avenha, mas
por mim, fiquem certos, morria de fome ou ia plantar batatas.
– O Felício é um moço honrado, protestou o Neves, sem
tirar os olhos das cartas que baralhava. Conheci o pai dele, era um bom homem,
e foi muito meu amigo.
E narrou, interrompendo-se a miúdo para prestar atenção
ao jogo.
– Quando a filha casou com o Joaquim Feliciano, eu disse logo:
mau casamento. E acertei, infelizmente… Quando houve a história
do padre José, o velho ficou tão apaixonado que nunca mais veio
à vila. E também não quis mais saber da filha, mas o
Felício, não, é um moço honrado.
E acrescentou:
– Cinco, seu compadre, marco cinco!
– Não digo que não, redarguiu o Regalado, voltando às
cartas, mas não há de ser o filho de meu pai que há de
beber as xaropadas.
– Nem eu, declarou o Mapa-Múndi, nem xaropes nem homeopatia. Médicos
e boticários podem ir para as profundas, não me fazem falta.
É como padres. Não, que o sermão de hoje sempre me pregou
uma maçada!
– Tinha pouco latim, observou o coletor, olhando de esguelha para o Chico
Fidêncio, e mendigando um aplauso.
– Tem V S.a muita razão, acudiu pressuroso o José Antônio
Pereira, por entre os dentes podres. Notei também certa falta de ligação
nas idéias e algumas alusões diretas a pessoas presentes.
Voltou-se também para o Chico Fidêncio provocando-o a manifestar-se.
O professor endireitou-se, cessou de roer as unhas, tirou o cigarro
e disse que, oculto na sacristia, ouvira toda a oração de padre
Antônio de Morais, que gostara muito; o padre era inteligente, mas exagerava
a mímica e metia medo ao povo ignorante para melhor conseguir os seus
uns ocultos.
– Quais serão esses fins do senhor vigário?’ perguntou o Neves,
largando as cartas, num pasmo.
– Ora, o jesuitismo! respondeu o Chico Fidêncio voltando à primeira
posição e riscando um fósforo para acender o cigarro.
Macário, indignado, retrocedeu pelo corredor, e achando a porta da
alcova, entrou-a. O Chico Ferreira e o ‘Manduca sapateiro tocavam a quadrilha
do Orfeu de Offenbach. Na alcova estava a mesa com as bebidas. Era o botequim.
O Dr. Natividade bebia cerveja Bass com o professor Aníbal que viera
refrescar-se. O bacharel não dançava mais. Sofrera uma desfeita,
estava estomagado. Assestando a luneta para os óculos do Aníbal
Brasileiro, o Natividade queixava-se amargamente da sobrinha do Neves Barriga,
da Milu, que lhe havia prometido ‘aquela quadrilha e, entretanto, a dera ao
pelintra do Totônio Bernadino.
– Não é que eu faça empenho em dançar com estas
matutinhas, explicava. Graças a Deus, lá no Recife, fartei-me
de dançar com os melhores pares. Freqüentava a casa das primeiras
famílias, graças a Deus. Dancei com baronesas e condessas, e
graças a Deus, nunca ninguém me fez uma desfeita. Foi preciso
vir a esta aldeia, para acontecer uma coisa assim. Mas é preciso que
me conheçam. Eu só digo que tenho gênio!
E o Aníbal, conciliador:
– Talvez fosse esquecimento, falta de lembrança.
– Não admito, redarguiu o Dr. Natividade, crescendo para ele, como
para lhe tomar satisfações, não admito esquecimentos
comigo. Graças a Deus, tive educação, e sei o que são
deveres de boa sociedade.
Nisto o Bernardino Santana aproximou-se, amável, sobraçando
duas botijas de água de Seltz.
– Então, senhor doutor, não dança?
– Não senhor, não danço, respondeu o juiz municipal,
abotoando o fraque.
– Então por quê? Ainda tão moço, já quer
ser do rol dos velhos?
– Não é por isso, é porque sofri uma desfeita, e eu,
graças a Deus, não preciso sofrer desfeitas.
E o Dr. Natividade assestou a luneta para o chapéu do Bernardino,
e cruzou as mãos atrás das costas.
– Desfeita, exclamou o Bernardino Santana, atrapalhado com as botijas, fizeram-lhe
uma desfeita? De quem foi essa patifaria, senhor doutor?
– Olhe, pergunte ao Sr. Aníbal, se quer saber, respondeu o juiz, fechando-se
na dignidade do silêncio. E voltando as costas ao Bernardino, foi para
a sala de jantar.
Macário foi verificar se de fato a Milu dançava aquela quadrilha
com o Totônio Bernardino, mas teve o cuidado de se não expor
aos olhos do Manduquinha Barata. Dançava, com requebros, muito corada,
recostando a cabeça no peito do cavalheiro. O Manduquinha desta vez
pilhara a filha do Valadão, e tinha um trabalho insano em a fazer dançar
à sua moda, aos pulos e saltos. Muito digna, a moça resistia,
entesando o corpo. O Cazuza Bernardino arrastava a D. Dinildes. O Pedrinho
Sousa era par de D. Cirila. O Felício boticário carregava a
menina de onze anos. Quinquim da Manuela, coitado, coubera em sorte à
mulher do Costa e Silva, e, para completar o quadro, dois velhos, o tenente
Pessoa e Bartolomeu de Aguiar haviam sido requisitados e dançavam com
filhas do Costa e Silva.
Na ocasião em que Macário chegava, D. Eulália dizia
à velha D. Basilisa, sentada ao pé dela, perto da porta:
– Agora é arrumar a trouxa. Depois de amanhã vamos embora.
Seu Neves diz que é por causa dos meus xerimbabos… mas é porque
ele quer mesmo!
– Havera de ser, replicou a velha. Os homens bem se importam com os xerimbabos
das mulheres!
A mulher do Costa e Silva entrou na conversa.
– Nós também vamos depois de amanhã, mas é para
os castanhais.
– Oh, os castanhais são outra coisa, disse D. Eulália, aquilo
é um regalo em comparação com o sítio. Ao menos,
lá vai muita gente.
– Eu acho que este ano ninguém fica, tornou a mulher do Costa e Silva,
satisfeita da inveja que inspirava. Há de haver muita festa!
– Gran-chaine! gritou o Pedrinho Sousa.
D. Basilisa aproveitou a ausência da mulher do Costa e Silva, para
consolar a amiga que não ia aos castanhais.
– Esses castanhais, disse, são a perdição de muita gente.
Ainda hoje o senhor padre Antônio falou tanto deles! Queira Deus não
aconteça alguma coisa aos que vão para lá.
E quando a mulher do Costa e Silva voltava, a velha abaixou a voz, sacudindo
a cabeça:
– Queira Deus, queira Deus!
Macário era da opinião daquela velha. Pela manhã, padre
Antônio de Morais havia provado que os castanhais eram uma perdição.
Pobre da mulher do Costa e Silva, não sabia o que lhe aconteceria,
se fosse aos castanhais!
A quadrilha terminava, os pares separavam-se, o Manduquinha Barata parecia
procurar alguém para objeto de troça. Macário retirou-se
e voltou para a alcova. O Manduquinha ali o veio encontrar, trazendo a filha
do Valadão pelo braço, procurando um licor para oferecer-lhe.
Macário fugiu para o corredor. O Valadão agarrara o Bernardino
Santana, e, tossindo, tomava-lhe uma satisfação. Por que diabo
havia convidado para o baile aquele patife do Chico Fidêncio? Numa casa
séria não devia entrar um homem como aquele, que, além
de tudo, vivia amasiado. Ele, Valadão, não podia perdoar ao
Chico Fidêncio os desaforos que lhe dissera pelo Democrata, e ainda
ultimamente aquela pouca-vergonha no desembarque ó senhor vigário.
Era um homem que não respeitava coisa alguma, e descompunha a religião
e até ao senhor bispo. Homens daquele teor não se convidavam
para bailes.
O Bernardino, com uma bandeja cheia de copos na mão, desculpava-se:
– Foi o rapazinho que o convidou. Dá-se com ele lá da loja
do Costa e Silva, e quer que ele dê a noticia no Democrata.
– É um patife, tornou o Valadão o tossindo, colérico.
Fui obrigado a deixar de jogar por causa dele. Estava bem por trás
de mim, rindo-se cada vez que os outros me atribuíam uma pexotada!
E cerrando os punhos, num furor:
– Olhe, seu Bernardino, eu sou incapaz de matar um carapanã, mas aquele
patife… recrutava-o, se me deixassem…. E aquilo convida-se para bailes!
– Mas, Valadão…
– Não tem mas nem mês, nem peça de entremez! berrou o
homem, de olhos vermelhos e boca espumante.
E gritava para ser ouvido de toda a gente:
– Um sujeito que vive amasiado com uma mulata! Quem tem filhas não
mete em casa um tipo assim!
– Mas eu não tenho filhas, balbuciava o Bernardino Santana, desorientado,
sem saber o que fizesse da bandeja, e implorando desculpas às pessoas
que chegavam, curiosas.
Súbito, o Valadão adiantou-se para a filha, numa indignação
solene:
– Minha filha, vamos embora. Isto aqui não é casa!
Dum grupo surgiu a cabeça trigueira do juiz municipal, cuja luneta
faiscava. Ouviu-se a sua voz seca, irritante:
– A mim fizeram-me uma desfeita, mas graças a Deus, tive educação,
não estou acostumado a receber desfeitas!
Que seria, por que estava tão zangado o tenente Valadão? A
filha chorava, o Quinquim da Manuela, pobrezinho! estava muito comovido. As
senhoras, achando que aquele escândalo punha remate à festa,
procuravam os chales, assustadas. Havia, pelos cantos, buscas ansiosas de
chapéus e guarda-chuvas. Da cozinha as mulatas, as negras e os moleques
afluíam, curiosos. Toda a gente estava interessada no incidente. só
o Totônio e a Milu não davam fé do que se estava passando,
e, a um ângulo da sala, cochichavam quase abraçados, como na
polca. O dono da casa procurava acalmar o irascível amigo. Outros homens
intervinham. O Valadão, duro, insistente, tossindo a arrebentar, pedia
que lhe abrissem passagem, porque queria sair daquela casa.
O Cazuza Bernardino teve uma inspiração. Foi pedir aos músicos
que dessem um sinal de quadrilha. A orquestra obedeceu. O Cazuza veio para
o meio da sala, e, batendo palmas, gritou:
– Quadrilha, meus senhores!
O círculo que fechava o Valadão, abriu-se. Os rapazes correram
para a sala. O Valadão e a filha saíram sem se despedirem. Bernardino
ficou algum tempo calado, olhando para o capitão Fonseca, o Costa e
Silva e para o Neves Barriga, estudando a impressão causada pelo incidente.
Depois, num gesto de desenfado, explicou com franqueza:
– Ora, aquilo é o diabo da cerveja!
– É uma desgraça, lamentou o Mendes da Fonseca. Basta o primeiro
copo.
– O Valadão é boa pessoa, formulou o Costa e Silva, mas não
pode beber.
– E mata-se, prognosticou o Regalado.
– Lá se avenha, filosofou o Bernardino, sacudindo os ombros.
E foi dar providencias sobre o chá, fazendo voltar para a cozinha
a criadagem que se apinhara à porta da sala de jantar.
A orquestra tocava a quadrilha da Bela Helena. O calor ia aumentando. Um
odor forte de querosene queimado misturava-se no ar às emanações
do suor, dos restos de cerveja, dos cigarros de tabaco negro, acesos, desfazendo-se
numa fumaça acre, ou apagados, juncando o chão de pontas enegrecidas
pelo sarro, nadando em lagos de saliva e catarro. O perfume vago de patchuli
e manjerona, que vinha da sala de visitas, chocando-se ao vivo com o cheiro
das bebidas deixadas nos copos ou atiradas ao chão, enjoava.
Depois do incidente do Valadão reinava um tumulto, a festa parecia
mais animada. Os jogadores haviam abandonado as cartas, as velhas tinham deixado
os cantos, formavam-se grupos de pé nos vãos das portas, ao
meio dos aposentos, conversando mais animados, com mais liberdade. As caras
tinham um brilho expansivo de suor e de licores. As próprias senhoras
haviam perdido muito do acanhamento do princípio, trocavam-se caçoadas,
pregavam-se peças para fazer rir, o baile perdia as cerimônias
duma solenidade para se transformar em festa íntima, em que todos se
conheciam, ninguém precisava guardar reservas e conveniências
incômodas. Brincava-se, ria-se, diziam-se tolices. Era encantador! Mas
a noite ia adiantada. Onze horas vira Macário no relógio de
parede da sala de jantar. Onze horas, e ele que se deitava sempre às
oito, e em ocasiões graves às nove e meia! Sentia a cabeça
pesada, os olhos ardentes, a garganta seca, tanto fumara aquela noite! O fumo
era o seu consolo, e sempre que estava separado do padre fumava os seus compridos
e excelentes cigarros de tauari que ele mesmo arranjava. Estava com vontade
de se ir embora. Não dançava, não jogava, não
encontrava parceiro para a prosa, sentia-se constrangido e secretamente humilhado.
Mas já agora esperaria pelo chá. Enquanto não vinha foi
rondar o botequim na esperança de que lhe oferecessem um cálice
de licor, que ele não se atrevia a pedir. Junto à mesa das bebidas
o professor Aníbal Americano conversava com o Mapa-Múndi:
– É o que lhe digo, Guimarães, depois daquele desaforo da Aurora
cristã, jurei não mais ouvir missa dita por padre Antônio.
Ele hoje pilhou-me na igreja, mas foi de surpresa, e por causa do casamento
do Cazuza Bernardino.
E, cuspindo longe, concertando os óculos de tartaruga, acrescentou:
– E tive de gramar quase todo o sermão.
– Eu gramei-o inteiro, queixou-se o Mapa-Múndi, pegando num copo cheio
de cerveja, mas também garanto-lhe que tão cedo não me
pilha. Isto aqui está muito quente. Vou com o Costa para os castanhais…
– Para os castanhais?
– P-a-pá, Santa Justa. Partimos depois de amanhã.
– Pois olhem, eu estou com vontade de os acompanhar. Que diz da idéia?
– E os meninos?
– Férias com eles, dou parte de doente. O delegado literário
é o Dr. Natividade, somos íntimos.
Também estes iam para os castanhais, pensou Macário, apreensivo.
E o Mapa-Múndi levaria a irmã? Então de que servira o
belo sermão de padre Antônio?
Nisto o Pedrinho Sousa veio da sala do baile, e bateu no ombro do Mapa-Múndi:
– Aquilo já está escandaloso, Guimarães.
– Que é que está escandaloso?
– O Totônio com a Milu. Não se largam. Ferve o azeite, que é
uma desgraça. A sala até já escorrega. Apre, assim também
é demais, não acham?
Ouvia-se tocar uma valsa. Macário olhou para a sala. No espaço
enquadrado no vão da porta o Totônio Bernardino e a Milu passavam,
abraçados, rodopiando. Ele sério, ofegante, cheirava-lhe os
cabelos. Ela, derretida, olhos fechados, recostava a bonita cabeça
no peito do rapaz, e deixava-se levar por ele. Sobre os seus fortes quadris
de mulher feita, o vestido de popelina azul ondulava em pregas cambiantes.
– Já está ficando indecente, murmurou D. Dinildes passando
pelo braço do Felício para a sala de jantar.
Macário teve vontade de perguntar-lhe se ela não achava indecente
ir para os castanhais, mas o terrível Manduquinha Barata aproximou-se,
trazendo uma filha do Costa e Silva para tomar licor. O sacristão retirou-se
discretamente para a sala de jantar.
Justamente, principiavam a servir o chá. Os criados traziam da cozinha
as bandejas com as xícaras de chá e com os doces, os sequilhos,
os pães-de-ló e as fatias-de-parida, douradas e recendendo a
canela e a ovos fritos. Bernardino não se gabara. Era um baile de arromba!
Primeiro passaram as bandejas de chá, em alvas xícaras de porcelana
lisa. Vieram depois os bons-bocados e os pastéis de nata em grandes
pratos de louça azul, e os sequilhos espalhados no fundo da bandeja,
sobre um leito de papel cor-de-rosa, recortado em tufos elegantes. Um pão-de-ló
de duas libras, corado e fofo, refestelava-se comodamente numa grande salva
de prata, riqueza de família, preciosa e rara, e vinha carregado por
uma mulatinha de estimação, de alva camisinha rendada e cabelos
cheirosos. Seguia-se o pão quente, em pratos, modesto e sólido,
cheirando a manteiga derretida, que era uma consolação; e fechava
o cortejo o Bernardino Santana, descoberto, com a grande calva reluzente banhada
de suor, a sobrecasaca branca caindo em pregas direitas, e nas mãos,
apoiada no abdome, para que fascinasse todos os olhares e provocasse todos
os apetites, a rica bandeja nova, imitando charão, e contendo seis
grandes pratos de fatias-de-parida, apetitosas e louras.
O Neves já estava na posse feliz duma chávena de chá,
duma naca de pão-de-ló e de duas fatias douradas, e pondo toda
a provisão num prato, sobre a mesa em que jogara o pacau, sorvia uma
grande pitada de Paulo-Cordeiro, e dizia para o Mendes da Fonseca:
– Aqui é que eu queria viver. Isto aqui sempre é outra coisa.
Há recursos, passa-se bem, goza-se. Ora fosse o Bernardino arranjar
estes requintes de civilização lá no sitio do Urubus!
Fonseca, mordendo num bom-bocado, concordava em que estava tudo bem-feito.
Fora a D. Cirila quem se encarregara dos doces, a pedido do Bernardino, gastara-se
muito açúcar, mas ao menos o Bernardino não se envergonhava.
Bernardino passou dizendo:
– Quem, perde é o tolo do Valadão, forte besta!
As danças interromperam-se por causa do chá. As senhoras retomavam
os seus lugares na sala, em linha, nas cadeiras. Os rapazes, amáveis,
carregavam xícaras e tomavam as bandejas aos criados para servirem
às senhoras. Os músicos, felizes do descanso, bebiam cerveja.
Macário serviu-se de dois bons-bocados, dois pastéis, uma fatia
e alguns sequilhos. Não gostava de chá, guardava-se para o chocolate
e cogitava no maquiavelismo com que apanharia ao Bernardino mais uma fatia-de-parida,
essa coisa fina que lhe proporcionava delicias incomparáveis.
Passou uma criada, o sacristão perguntou-lhe, a meia voz, pelo chocolate.
– Tem, é depois, respondeu, sem parar, a rapariga.
Depois! teria de esperar, e já onze e meia! Paciência, já
agora não ia sem tomar o chocolate que lhe prometera o Bernardino,
à entrada.
Ouviu-se a voz do Cazuza Bernardino que gritava na sala:
– Quadrilha, meus senhores.
Mas o Mapa-Múndi e a irmã despediam-se, seguidos do Felício
boticário que lhes rogava que ficassem, para lhe não fazer perder
a quadrilha.
– Não pode ser, dizia o Mapa-Múndi, apertando a mão
a toda a gente; seguimos depois de amanhã para os castanhais. É
preciso descansar e preparar os arranjos.
Então, na sala de jantar, generalizou-se a conversação
sobre os castanhais. Toda a gente queria ir aquele ano às praias. Chico
Fidêncio, chupando o cigarro apagado, dissera que tolo seria quem não
fosse à colheita das castanhas.
– Eu por mim não ia, disse o coletor, mas a pobre da D. Cirila quer
por força passar o S. João nas praias, e eu desejo fazer-lhe
a vontade. Depois, francamente, a coletoria mata-me. Estou cansado, preciso
de algum fôlego, e bem contra a minha vontade, é provável
que lá vá ter. Já mandei pedir licença.
– E quem fica na coletoria, senhor capitão? perguntou o Costa e Silva.
– O meu escrivão. É um moço de muito bons costumes em
quem deposito a maior confiança. Espero que Silves não sofrerá
muito com a minha falta.
E sorriu amável para o José Antônio Pereira, que, todo
curvado, fechava os olhos, agradecia, comovido:
– Oh, senhor capitão, oh! senhor capitão. V. S.a confunde-me…
– É justiça, moço, atalhou o Neves.
Todos apoiaram. Era justiça e não favor, porque o José
Antônio Pereira era um moço de muito bons costumes.
– Então você não vai aos castanhais, este ano, disse-lhe
o Mapa-Múndi, pois olhe, tenho pena.
– Eu sim, vou, afirmou o Bernardino passando com a bandeja das suspiradas
fatias. O rapazinho quer passar a lua-de-mel nas praias, e convidou-me. Há
de ser muito divertido, acrescentou afastando-se.
E Macário, seguindo com os olhos a bandeja, pensava no sermão
pregado aquela manhã pelo santo padre Antônio de Morais. A inconstância
daquela gente esquecera, mal salda da igreja, os momentos de terror incutido
pelas eloqüentes palavras do padre vigário, e, à luz dum
claro dia de maio, em pleno ar, em face das águas límpidas do
lago e das eternas verduras das suas margens, ouvindo o ruído alegre
do canto dos passarinhos que volitavam pelos cimos das laranjeiras, perdido
o receio das trevas do inferno, tivera saudades da natureza virgem dos castanhais,
e sonhara com as festas costumeiras à sombra das árvores, nas
lindas praias de areia.
E ali, naquele baile, estimulando-se uns aos outros, antegostando prazeres
em comum, incitados pela astúcia diabólica do Chico Fidêncio,
confirmavam os projetos, arrastavam os indecisos, preparando-se para a perdição
da alma, de que tanto lhes falara a inspirada palavra de padre Antônio
de Morais!
Felizmente no meio daqueles tresloucados um homem de juízo apareceu.
Neves Barriga, com o estômago repleto de pastéis e bons-bocados,
embora suspirando, não escondeu a resolução criteriosa
em que estava:
– Pois eu não vou. Não posso ir. Volto para o Urubus quanto
antes. A D. Eulália, coitada, não pode estar tanto tempo separada
dos seus queridos xerimbabos.
E o bom homem afastou-se sacudindo resignado a sua cabeça de carneiro
manso, e espalmando na mão o grande lenço de ramagens. Mas o
tratante do Chico Fidêncio, receando o prestígio da palavra do
presidente da Câmara, fitou-o pelas costas com um olhar sarcástico
e disse esta frase enigmática:
– Patrício de Loiola!
Macário ia tomar a palavra para secundar a opinião autorizada
do Neves, quando por trás dele uma voz murmurou:
– Espere um pouco. Vou arranjar-lhe a primeira xícara de chocolate.
Era o Totônio Bernardino que trouxera da sala a Milu, derretida e rubra.
Ia arranjar-lhe uma xícara de chocolate… mas então já
era possível tomar o chocolate e safar-se daquele baile que já
o estava aborrecendo muito, principalmente depois da conversa sobre os castanhais.
Macário seguiu o Totônio Bernardino que se dirigia para a cozinha.
Na sala o Chico Ferreira e o Manduca sapateiro, já muito cansados,
fraquejavam, tocando uma polca abaianada. As luzes de querosene começavam
a morrer por falta de óleo. Só se esperava pelo chocolate para
terminar o baile. O Cazuza Bernardino já gritara por três vezes,
inutilmente:
– Polca, meus senhores!
Ao penetrar no corredor da cozinha Macário esbarrou com o Dr. Natividade,
que correu para ele, armando-se da luneta:
– Vai pedir chocolate, não é? Pois não arranja!… Nesta
casa tudo é assim. A mim fizeram-me uma desfeita, ouviu? Um desaforo!
Graças a Deus, não me importa! Não estou acostumado a
receber desfeitas, graças a Deus!
Macário quis seguir adiante, desculpando-se. O juiz municipal pegou-lhe
no botão do rodaque:
– Já sabe o que foi? Ah, não sabe ainda? Foi a tal Milu, uma
roceira, que me pregou uma taboca por causa do Totônio Bernardino, um
criançola! Graças a Deus, eu não estou na altura de receber
tabocas. No Recife, em Pernambuco, dancei com as melhores famílias,
baronesas e condessas…
O Neves aproximou-se. O Dr. Natividade voltou-se para ele como de mais consideração:
– Graças a Deus, não estou acostumado a receber desfeitas.
Macário safou-se para o interior da casa. Totônio voltara já
da cozinha, com uma xícara na mão, cheirando a chocolate fresco.
Mas, de surpresa, em caminho, surgiu-lhe pela frente o pai, com a bandeja
de fatias-de-parida. Vendo o filho com a xícara, o Bernardino Santana
largou, afinal, a bandeja, colocando-a sobre o parapeito duma janela, e avançou
para o namorado Totônio:
– Que diabo levas tu aí, rapazinho?
O moço acobardou-se. Era uma xícara de chocolate para a D.
Milu, que lha havia pedido, por se estar sentindo muito fraca. Não
tomara chá, a coitadinha!
O pai, furioso, tomou-lhe o chocolate, e deu-lhe uma descompostura. Estava
bonita aquela pouca-vergonha! Só a Milu é que merecia tudo.
Não se dançava senão com a Milu, arranjava-se chocolate
para a Milu fora de tempo, e contra a sua ordem expressa! Pois ficasse sabendo
que a Milu não beberia o chocolate.
– Mas, papai, eu prometi, balbuciou o Totônio envergonhado.
Macário, comendo discretamente as fatias-de-parida, de que se esquecera
o Bernardino, achava o castigo duro.
– Não há de beber, insistia o Bernardino, muito zangado. É
para lhe dar uma lição, senhor badameco, para o ensinar a não
ser metido a sebo.
E raspou-se para a cozinha com o chocolate.
Macário, com a boca atulhada de fatias, consolou o Totônio.
– Aquilo passa, peça-lhe com jeito.
Mas o pai voltou da cozinha ainda muito zangado. Já dera ordem expressa
para não entregarem nenhuma xícara de chocolate senão
a ele próprio. Sempre queria ver quem beberia o chocolate sem sua licença!
Reparando nas fatias que deixara e no Macário ali perto, acudiu:
– O senhor já comeu uma lá na varanda, quer servir-se de outra?
O sacristão, delicadamente, com dois dedos, tirou uma fatia e mordeu-a.
– Estão deliciosas, disse.
– Pudera não, replicou o Bernardino carregando a bandeja, foi um poder
de ovos e leite como nunca vi!
O Totônio, envergonhado, meteu-se num quarto, chorando. Macário
voltou para a sala de jantar.
Era muito tarde, mas já agora não iria sem tomar chocolate.
CAPÍTULO V
Aquele padre triste tinha mistérios no gesto e uma agressão
no olhar – pensava Francisco Fidêncio Nunes, voltando para casa, sozinho,
muito preocupado.
Fidêncio fora, essa tarde – uma tarde de junho – sentar-se junto ao
balcão do Costa e Silva, à Rua do Porto, onde se reunia de ordinário
o grupo anticlerical que o tinha por chefe.
O sol, procurando esconder-se por trás da cordinheira, esbraseava
as vidraças miúdas das casas voltadas para o ocidente, e uma
grande sombra cobria a beira da praia e a parte adjacente do lago, que as
águas dos rios e dos montes enchiam. O porto, a vila e o lago achavam-se
quase desertos àquela hora. Silves cedia à melancolia profunda
das povoações sertanejas, agravada agora pela ausência
de muitos habitantes. Uma brisa forte, vinda de sudoeste, agitava as raras
folhas das amendoeiras do porto e refrescava o ar. O céu, em todo o
quadrante do sul, cobria-se de nimbos pardos que seguiam lentamente em grupo
cerrado, obedecendo ao mesmo impulso. Nas alturas, os urubus, parecendo pontos
negros, vagavam, descrevendo círculos, vinham descendo e depois subiam
até se perderem de vista nos páramos azuis, para reaparecerem
a trechos e deixarem-se levar ao sabor do vento, como folhas arrancadas a
uma árvore desconhecida. Curumins semi-nus, espojando-se na areia da
praia entre gritos e risadas, rolavam até à beira da água,
metiam-se pelo lago dentro, mergulhavam, nadavam, fazendo apostas, e logo
voltavam à terra, a brincar em pêlo o esconde-esconde, dando
uma nota alegre, que aumentava a tristeza do quadro da vila, a meio abandonada.
Francisco Fidêncio estivera mal disposto de espírito e de corpo.
Incomodava-o aquele barulho de crianças. Levantara-se muitas vezes
para as ir ver, pensando encontrar entre aqueles endiabrados algum discípulo,
para o responsabilizar pelo excesso, e para o incumbir dum mandado.
Desde a noite do baile do Bernardino Santana, Francisco Fidêncio andava
preocupado e descontente. O ingurgitamento do fígado agravara-se-lhe
com a imprudência de dois copos de cerveja que o Costa e Silva o forçara
a beber, rompendo a dieta que se impusera a conselho do Regalado e a rogos
da Maria Miquelina. Demais, a roda, a sua boa roda de amigos, diminuíra
depois daquela famosa festa. A poderosa atração dos castanhais
arrancava todos os dias as ovelhas ao pastor católico e os ouvintes
ao propagandista do livre-exame. Receando ficar isolado, sem os companheiros
de palestra, o benévolo auditório que o seu prestígio
criara para todas as tardes à porta do Costa e Silva, Francisco Fidêncio
era obrigado a dissimular o aborrecimento que o fato lhe causava, para não
dar o braço a torcer, não cair em contradição
consigo mesmo, pois fora do conselho de preferir as festas alegres das praias
e dos castanhais, às maçadas que o zelo antiquado do padreco
pregava aos pobres moradores de Silves. Para contrariar o vigário e
tirar-lhe gente, defendera o partido dos que pretextavam a necessidade de
ganhar dinheiro para deixar a vila, e agora era punido com a mesma pena, a
deserção chegara aos seus arraiais, o amor das festas rústicas,
à sombra dos castanheiros, das pândegas à beira-rio, ganhava
os seus mais ferventes adeptos, convictos de que deviam, exagerando o entusiasmo,
dar o exemplo do pouco caso em que tinham as prédicas e conselhos do
senhor vigário. A vitória fora completa, excedera mesmo a expectativa.
Padre Antônio, solitário e abatido, ficava cada vez mais concentrado.
O lorpa do sacristão tomara para si o desaforo daquelas maquinações
atribuídas a ele, Chico Fidêncio, um ateu desrespeitador da religião.
Macário estomagava-se contra todo aquele que falava em sair da vila.
No entender daquele idiota, não havia nada melhor do que Silves, depois
que morrera padre José e viera padre Antônio de Morais.
O sacristão comia bem, bebia bem, andava bem trajado, gozava de consideração
crescente e até já ia a bailes para apanhar indigestões
de fatias douradas e de chocolate! Ele dispunha das esmolas, ele dirigia o
pequeno serviço do culto, ele vendia os repiques e dobres de sinos
conforme lhe aprazia, ele arranjava capa-magna para o batizado dos filhos
de seus amigos, ele fazia presentes de cera benta, zelava das opas, distribuía
a seu talante as lanternas e as varas do pálio nas procissões
solenes ou no simples Nosso-pai, e não maltratava pessoa alguma, não
prejudicava a ninguém. Havia em Silves missa todas as manhãs,
ladainha todas as noites, um bom sermão de vez em quando, enterros,
batizados, casamentos, procissões às vezes, Nosso-pai sempre
que era preciso, confissão sempre que pediam, falava-se numa crisma
próxima, iam inaugurar-se as missas cantadas para os dias de festa,
por um plano que o Macário concebera e que o vigário achara
excelente. Que mais faltava, que mais queriam? Como deixar Silves que oferecia
todas essas vantagens da civilização, para ir-se meter pelos
castanhais dentro, expondo-se a febres, a sezões, a mordeduras de cobras,
a ataques de onças? Macário não compreendia um tal procedimento:
e queixavam-se do padre José, diziam o diabo do padre José!
Mas o que Silves precisava era ter padre José ou padre João
da Mata por vigário toda a vida!
O lorpa do sacrista não se continha, chegava a falar alto, censurando
a quem quer que fosse, sem rebuço, mas não de frente, valha
a verdade, sempre pelas costas. Falava pelas esquinas, à porta das
lojas, no açougue e na padaria. Acompanhava os viajantes até
o porto, até vê-los embarcados na canoa, e quando a canoa partia,
o Macário voltava-se, dizendo em voz alta para os que ficavam:
– Vão, mas é para as profundas!
Pois, apesar disso, Francisco Fidêncio vencera. Aconselhara que preferissem
a pândega lucrativa dos castanhais aos sermões de padre Antônio
de Morais, e a sua voz, revestida do antigo prestígio, fora geralmente
ouvida, e aquela tarde, na loja do Costa e Silva, constatando essa vitória
quase completa, a que a partida do coletor viria em breve dar a última
demão, Francisco Fidêncio achava que o triunfo fora além
do que esperava, e que ferindo em cheio o adversário, não safra
ileso do combate.
Bastava relancear os olhos pela sala quase vazia, para convencer-se de que
a vitória custava sacrifícios. E, por isso, mais do que pela
cerveja do Bernardino Santana, o seu fígado se ingurgitara de novo,
reagindo contra as doses homeopáticas do sapientíssimo Regalado…
A loja do Costa e Silva era uma sala de tamanho regular, com três portas
para a rua, e uma para o interior da casa. Tinha alta armação
envidraçada, dividida em dois raios, um destinado às fazendas
e outro aos objetos de armarinho, à sapataria, à louça
e às quinquilharias. Logo à entrada da casa ficavam um comprido
banco de pau, que o uso polira, e algumas cadeiras de palhinha destinadas
aos principais freqüentadores do estabelecimento. O. grande balcão
de cedro envernizado ia duma extremidade à outra, separando o vendedor
do público, e pondo uma barreira alta entre o acesso livre da sala
e a região cobiçada onde os panos americanos e as chitas pirarucus
viviam em cordial confusão com as servilhas de marroquim vermelho e
as garrafinhas de óleo de rícino, finas e azuis, ostentando,
em rótulos dum colorido suave, os bagos de mamona branca sotopostos
a um dístico inglês em letras pretas. Sobre o balcão algumas
peças de algodão grosseiro, uma caixa com anzóis e um
embrulho de cera virgem, a par do côvado, da vara de medir, atestavam
a freqüência dos tapuios dos sítios, que a vantagem da proximidade
atraía à loja do Costa e Silva. Na sala contígua, devassada
pela porta sempre aberta, viam-se os barris de vinho, as caixas de cerveja
e as pipas de aguardente, que formavam outro ramo de negócio do dono
da casa, mas esse a grosso, para vender a cerveja às caixas, a aguardente
e o vinho aos garrafões a gente de certa ordem, não aos tapuios,
a menos que não pedissem as quantidades marcadas e pagassem mais do
que os brancos. Era um meio que o Costa e Silva, moralizado e crente, inventara
para combater a embriaguez do povo. Por trás do balcão, unida
a ele, estava a mesa de pinho encerado em que o dono da casa fazia as contas
e os trocos, e escrevia a correspondência, enquanto o caixeiro, um portuguesinho
rechonchudo e claro, de olhos e cabelos pretos de azeviche, em mangas de camisa,
aviava à freguesia, com uns modos calmos e prudentes que desmentia
a petulância do olhar de vivo demônio. À guisa de tabuleta,
sobre a parede exterior, privada de cal e de óleo, duas figuras, pintadas
entre os vãos das portas, ostentavam as pretensões da primeira
loja de Silves. Era um homem e uma senhora da altura de um metro, ele de calças
justas, cor-de-rosa, terminando em pés enormes, tinha o ar dum peralvilho
de aldeia, com grossa bengala na mão; ela trajava vestido vermelho
armado sobre crinolina, e com uma sombrinha azul-ferrete abrigava do sol o
monstruoso coque do penteado; por cima de ambos, um grande letreiro em tinha
preta, já a meio apagado, anunciava – Modas e novidades de Paris, Joaquim
da Costa e Silva.
Ordinariamente, ao cair da tarde, reuniam-se ali, em torno do chefe maçônico,
o Regalado, o professor Aníbal, o Pedro Guimarães e o Chico
Ferreira, o alfaiate, sempre distraído, assoviando por entre os dentes,
e batendo a compasso sobre a perna esquerda, com a mão espalmada e
mole. Três rapazes novos, o Pedrinho Sousa, o Totônio Bernardino
e o Manduquinha Barata, gozando umas férias intermináveis, aplaudiam
o Fidêncio por feição, por estímulo de parecerem
adiantados e ao mesmo tempo por troça, para debicar os padres e caçoar
das beatas de lenço branco. O tenente Valadão, o José
Antônio Pereira, o vereador João Carlos, o Neves Barriga e o
Dr. Natividade não passavam os batentes da porta do Costa e Silva,
por via do ateu, como diziam, mas o capitão Manuel Mendes da Fonseca,
a pretexto de comprar alguma coisa que de repente lhe faltara na loja, aparecia
às vezes com o seu velho paletó de alpaca, o chapéu boliviano,
as calças brancas engomadas, duras e largas como crinolina. E depois
de regatear muito ao colega um par de sapatos ou dois metros de canículo
de cor, tomava parte na palestra, medindo as frases, escolhendo os termos,
refletindo devagar, discutindo gravemente os assuntos que o Fidêncio
propunha; sacrificando facilmente a Igreja aos ódios da maçonaria,
mas, defendendo a autoridade civil, o presidente da província, o ministério,
confessando, entretanto, quando o apertavam muito, que o João Alfredo
era um criançola, criatura do Camaragibe, e que não estava na
altura da situação. O Paranhos, sim, era um talento. O dono
da casa ouvia tudo da sua cadeira junto à mesa de pinho, arriscava
algumas observações, mas não gostava das ousadias do
Chico Fidêncio, porque se gabava de acreditar em milagres e de ser católico,
apostólico, romano. Apesar disso, era um bom amigo o Costa e Silva,
e não esquecera nunca as recomendações do Filipe do Ver-o-peso,
a favor do professor. Por isso, gozava o Fidêncio de completa liberdade
na casa do Costa, onde tinha a sua continha aberta, que passava de mês
para mês num crescendo perigoso.
Mas agora o Costa e Silva estava ausente. Havia uma semana que seguira para
o Ramos, buscando os castanhais. Levara a família toda, a igarité
bem carregada de fazendas, de aguardente, fumo, café, corais, palmas
e medidas do pé de Nossa Senhora. Outros muitos se haviam retirado,
e, nessa tarde, de junho, o auditório do professor se compusera exclusivamente
do Pedrinho Sousa e do Manduquinha Barata, porque mesmo o Totônio Bernardino,
o mais sério e o mais inteligente dos três, afrontando as iras
paternas, partira para o Urubus, doidamente apaixonado pela Milu, a sobrinha
do Neves Barriga. Começara aquele namoro, por brincadeira, no baile
do casamento do Cazuza, e rapidamente se transformara numa paixão profunda,
em que aquelas duas crianças, sem levarem em conta as conveniências
de família e a vontade dos pais, arriscavam o futuro, e, em todo o
caso, a tranqüilidade do coração. Pobre Totônio!
O pai o queria forçar a voltar aos estudos, ambicionando fazê-lo
bacharel ou padre, para glória da família, cujas posses admitiam
esse luxo; e ele, vadio e namorado, preferia ficar no Amazonas, vagabundeando
pelas ruas de Silves, ou descansando à sombra das árvores frondosas
do sítio do Urubus, ao lado de sua adorada Emília, num idílio
perpétuo. Quem venceria nessa luta de vontades entre pai e filho? O
Bernardino Santana era teimoso e rude, estava acostumado a lidar com escravos,
mas o Totônio era moço, livre e apaixonado. Quem venceria?
Fazia-lhe falta o Totônio Bernardino. Se ele ao menos estivesse ali!
Fidêncio não gostava de falar para tão pouca gente, principalmente
não tendo à sua disposição senão os ouvidos
do Pedrinho e do Manduquinha, que eram mais sócios e auxiliares do
que público. Muito aborrecido, Fidêncio estava com vontade de
mandar chamar o Regalado para lhe comunicar uma nova importante, a fim de
que a espalhasse pela vila, mas não havia ali quem o fosse procurar.
Felizmente, um homem aproximara-se a passo vagaroso e grave. Era o coletor.
Enfim! Francisco Fidêncio podia desembuchar, podia falar, podia contar
o que sabia de novo, apimentando-o com os comentários do costume!
O coletor tocara no boliviano, com muita cortesia.
– Boa-tarde, meus senhores.
– Boa-tarde.
Vinha pedir que lhe cedessem alguns anzóis para pirarucu. Faltavam-lhe
no sortimento, fora um diabo de esquecimento do seu correspondente, porque
no pedido estava bem explicado – anzóis para pirarucu. Mas o Elias
tinha tanto em que pensar, andava sempre tão atarefado! E como queria
partir o mais depressa possível para os castanhais, a fim de aproveitar
a licença que lhe viera de Manaus, não tinha tempo de mandar
buscar os anzóis ao Pará, e vinha pedir ao colega que lhe cedesse
alguns.
– Sempre vai aos castanhais, senhor capitão?
– Vou, senhor professor. Há muito tempo que não deixo o emprego,
estou aborrecido e cansado, e a D. Cirila, coitada! quer passar o S. João
nas praias. Mas a coletoria nada perde. Fica aí o José Antônio
Pereira.
E acrescentara, sentando-se numa cadeira, enquanto o Manuel ia escolher os
anzóis na caixa:
– Aquilo é uma pérola.
– Não digo que não, disse o Fidêncio, sorrindo, mas…
O coletor atalhara, convencido:
– Homem de toda a probidade. Conheço-o.
Fidêncio não estivera de maré para discutir a pessoa
do Pereira, o que ele queria era dar a última novidade.
– Já leu o Baixo Amazonas, senhor capitão?
O coletor não tinha lido; nunca lia aquela folha, porque só
assinava o Diário do Grão-Pará, que o Elias lhe mandava
por causa das cotações do cacau e da borracha. Demais, que lhe
importavam os negócios de Santarém? Era duma província
estranha, nada tinha com as brigas do barão com o Dr. Sousa.
Fidêncio contara então. Recebera aquele jornal, na véspera,
por um regatão, e lera a notícia dum ataque de índios
na Mundurucânia. Segundo o Baixo Amazonas, um bando de mundurucus ferozes
atacara a pequena povoação de S. Tomé, incendiando as
casas, e matara muitos moradores. Isto em pleno século dezenove, exclamara
por sua conta, e sob o governo do José Maria da Silva Paranhos! O povo
pagava impostos ao Estado para ter a sua vida garantida e a sua propriedade
segura! A isto estava reduzido o Amazonas, graças à inércia
do presidente da província, a uma floresta virgem, onde os habitantes
a todo momento eram trucidados pelos silvícolas! Fidêncio ia
escrever uma carta forte ao Democrata, verberando o ministério. Oh!
havia de ser uma das suas mais apimentadas correspondências, mostraria
o que era esse governo de fracalhões, de covardes, de malandros, que
deixava que os roupetas de Lojola se assenhoreassem do povo, e não
tratava de o defender contra os incolas da floresta, porque só cuidava
de encher a pança ao Mauá e mais meninos bonitos.
– Hei de mostrar-lhes! terminara acendendo o cigarro e indo sentar-se no
banco de pau, para limpar as unhas com um palito.
O coletor tomara a defesa do governo contra as injustiças de Fidêncio.
O ministério não tinha culpa! O presidente era um excelente
homem, um cavalheiro amável e não podia prever. O que provava
contra o governo do país aquele lamentável fato da Mundurucânia?
Que não temos braços.
– Varro, bradara o Pedrinho Sousa, por troça, varro, seu capitão.
Braços tenho eu e mais V. S.a, o Chico e o Barata.
O capitão explicara complacentemente. Queria dizer que se a população
aumentasse, os sertões se povoariam e o gentio fugiria para longe,
para muito longe, lá para Mato Grosso. E porque não aumentava
a população, coisa que já de si bastava para responder
às censuras, à primeira vista justas, do Sr. Fidêncio?
Evidentemente, por falta de braços…
– Talvez por falta de cabeças… acudira o professor, grifando a frase
para o meter à bulha.
Os rapazes deram uma risada, dizendo: essa é que é a verdade!
O coletor sorria, assoara-se e continuara, fingindo não entender a
pilhéria:
– Por falta de cabeça, diz V. S.a; e talvez tenha razão até
certo ponto, porque sem cabeça não há homem e sem homem
não há braços, sem braços não há
população, nem lavoura, nem civilização, nem nada.
Entretanto, o governo tem cuidado seriamente da catequese, que seria outro
meio de acabar com os selvagens, convidando-os pela brandura e pelas boas
maneiras a virem tomar parte no banquete do cristianismo. O diabo é
que não se pode fazer catequese sem padres, e os padres…
– Disso não cuidam eles, interrompera Fidêncio aproveitando
o ensejo. Catequese! Está fresco! Do que eles cuidam é de assegurar
o seu predomínio sobre as famílias católicas pela confissão,
pelas rezas, pelos bentinhos, a fim de conseguirem os seus fins tenebrosos,
como dizia Voltaire. Eu não creio na catequese pelos padres, porque
o índio não é civilizável, mas, enfim, antigamente
os padres dedicavam-se à conversão do gentio, como, por exemplo,
S. Paulo que foi chamado o Apóstolo dos Gentios. Mas, hoje, do que
eles tratam é de namorar as mulatas e de encher a pancinha com petisqueiras
finas, e aferrolhar o cobre para o que der e vier.
Os rapazes aplaudiam com profundo conhecimento da questão, bebido
nas muitas lições anteriores. O capitão Fonseca sacudia
a cabeça, como tendo muita coisa a opor. O portuguesinho do balcão,
o Manuel da Costa e Silva, como o chamavam, encostado à mesa de pinho
do patrão, de braços cruzados, silencioso, parecia não
ouvir o que se dizia; enfiava o olhar negro e vivo pela porta que lhe ficava
em frente, embebendo-o nas nuvens que sombreavam o lago, restringindo o horizonte,
e que talvez lhe estivessem recordando o céu da sua querida aldeia
minhota. Quando Fidêncio fazia uma pausa, um besouro verde-negro zumbia
sonoramente, batendo-se pelas paredes. A vozeria das crianças diminuíra,
ouviam-se as mães que as chamavam para a casa, ameaçando-as,
de cipó em punho. De vez em quando um tapuio, retardado pelo porre
da última hora, passava pelas portas, pisando forte, admirando com
os olhos vermelhos as figuras pintadas nos vãos da fachada. A noite
vinha vindo do fundo do Saracá.
Fidêncio desforrara-se então da privação de dias,
repisando as declarações contra os padres. Todas as acusações
formuladas pela imprensa livre-pensadora, pelos panfletos baratos, todas as
banalidades cediças reeditadas de fresco pelos inimigos do clericalismo
na luta travada a propósito do interdito das irmandades, tomaram na
boca do professor – tinha presunção disso – a forma original
dos seus calem-burgos brejeiros e das suas pilhérias desaforadas. O
Pedrinho Sousa e o Manduquinha ajudavam-no, esclarecendo com o comentário
das gargalhadas o sentido equívoco das expressões, revestidas
de um respeito afetado pela pessoa do capitão Fonseca. O coletor já
começava a ceder, meio vencido, mas entrincheirando-se na Divindade
de Cristo e na Virgindade de Maria Santíssima. Desses dois dogmas é
que não admitia que se duvidasse. O jornalista desfiara um longo rosário
de anedotas picantes, reminiscências da Central, para provar que os
padres eram os verdadeiros inimigos da religião católica e da
moral pública. E, despertando-lhe aquelas reminiscências a indignação
adormecida, bradara, batendo uma punhada sobre o balcão:
– Corja de jesuítas! Do que precisam é dum marquês de
Pombal!
Nessa ocasião o vulto de padre Antônio de Morais, esbatido pela
dúbia claridade do último crepúsculo da tarde, desenhou-se
no trecho de rua devassado pelas portas da loja, passando vagarosamente, sereno
e triste, na batina negra.
Houve um momento de curiosidade. O Manuelzinho sorriu, olhando para o professor.
Fidêncio agarrara a ocasião, pelos cabelos:
– Olhe, olhe, dissera, apontando ao coletor o padre, veja lá se aquele
é capaz de deixar a pelintragem, com que pretende enganar a todos,
para meter-se no mato a converter tapuios bravos; se é homem para deixar
a sua casinha cômoda da Rua da Matriz, o seu vinhito do Porto ao amanhecer,
o gordo tambaqui macio, o descanso da vidinha de padre vigário para
internar-se pelos sertões em busca de selvagens, arriscando a pele.
– Nada, que isto de ser padre é meio de vida e não meio de morte,
terminara vindo à porta contemplar o vigário que se demorara
a conversar com um homem que encontrara.
– Sim, observou o coletor, bem sei que isto de padres, hoje em dia, é
uma carreira, como a de advogado, por exemplo, cada um procura a maior comodidade
possível. Não contesto, acentuou olhando para o Pedrinho Sousa
que estava a rir; não contesto que a Igreja precise de reformas sérias;
entretanto, há padres que não são de todo maus. Padre
Antônio não bebe, não joga, não dá escândalos
com mulheres, diz a sua missinha todos os dias, prega de vez em quando, é
um pouco exigente talvez, pensa que o mundo está para acabar. É
ainda muito moço – não digo que se faça de padre italiano
para catequizar selvagens – mas pode vir a ser um padre distinto. Quanto a
meter-se em catequeses…
– Pois sim, exclamara Fidêncio, subitamente iluminado por uma idéia
ousada, olhe, aí o tem, senhor capitão, chame-o e pergunte-lho.
– Chamá-lo não tem propósito, respondeu o coletor.
E, assustado da lembrança, correu os olhos pelos circunstantes, perguntando:
– Que diria ele do meu procedimento irregular?
O Manduquinha Barata e o Pedrinho Sousa apoiaram o pedido do professor. O
coletor resistia. Então Fidêncio manejara uma arma hábil:
– Pois o senhor capitão não tem familiaridade com o padre?!
o que todos dizem. Ele é obrigado a V. S.a por muitos obséquios,
e não creio que a pessoa de sua consideração ele estranhe
procedimento tão simples.
Francisco Fidêncio e os dois rapazes teimaram, provocando a vaidade
do capitão Fonseca. Estavam vendo que não era o que se dizia!
Ou o capitão era muito acanhado ou o vigário não o tinha
em grande consideração. O coletor, para provar a influência
de que gozava, não hesitara mais em sacrificar o padre.
Levantou-se, chegou à porta da rua. O vigário estava na ocasião
de face para ele. No seu rosto calmo e sereno uma bondade reluzia. Falava
afavelmente, em voz baixa, com o homem, um tapuio morador da beira do lago:
– Padre-mestre, faz favor? disse o coletor em voz alta.
– Estava aqui sustentando este senhor, continuou na sua voz autoritária
e grave, quando o padre, largando o tapuio, chegou à porta da loja;
estava aqui sustentando este senhor que no Brasil não há mais
padres que façam catequese de índios, porque na Mundurucânia
os gentios queimaram a povoação de S. Tomé e assassinaram
os habitantes. Eu, pelo contrário, sustentava que ainda há missionários,
posto que isso seja mais próprio de italianos. Que diz V. Rev.ma?
Padre Antônio olhou demoradamente para Fidêncio, para os dois
rapazes, para a figura pascácia e grave do capitão Manuel Mendes
da Fonseca. No olhar brilhou-lhe um relâmpago, com uma expressão
de desafio e luta que Fidêncio estranhou, surpreso. Depois o padre sorrira
e dissera:
– Este senhor tem razão; há muitos chamados e poucos escolhidos.
Saudara cortesmente e acrescentara:
– Queiram desculpar, são horas da ladainha.
Francisco Fidêncio Nunes voltara para casa, sozinho, muito pensativo.
Quando padre Antônio de Morais deixou a porta do estabelecimento do
Costa e Silva, levava uma irritação surda que a custo contivera
na presença do correspondente do Democrata, que nunca vira tão
de perto, e cujos pequenos olhos pardos o desafiavam como dois punhais erguidos
sobre o seu peito. Vira os dois rapazes maliciosos, sorridentes, preparados
para arrebentar de riso com as pilhérias que o professor ia dizer ao
padre, vira o capitão Mendes da Fonseca de cabeça inclinada,
lenço desdobrado nas mãos espalmadas, pronto a ouvir a resposta
e a assoar as ventas, e compreendera a intenção humilhante com
que o haviam chamado. Lembrara-se de repente do tempo do Seminário
e tivera um ímpeto de entrar na loja, de tornar patente a vacuidade
daquela inteligência desregrada, a futilidade daquela erudição
de algibeira, a insignificância daquele sujeito que Silves venerava,
e cuja camisa amarrotada e suja, de punhos afiapados, cujas mãos suadas
de anemia, com dedos culotados pelo abuso do cigarro, davam-lhe uma sensação
de repugnância e de hostilidade, que não podia vencer. Compreendera,
refletindo, a tolice duma discussão com aquele homem, naquele lugar,
que o faria resvalar para o terreno da igualdade com aqueles três vadios
insolentes, mas agora, continuando o seu caminho para a igreja, sob os últimos
raios do sol já oculto por trás da cordilheira, tinha um vago
pesar da vingança insatisfeita.
Chico Fidêncio simbolizava para padre Antônio de Morais todos
os desgostos das ilusões perdidas, todo o desencanto da sua generosa
tentativa de regeneração de Silves, e o amargor do amor-próprio
vivamente ferido pelo insucesso dos seus esforços.
Fora cruel a desilusão causada pelos efeitos negativos do seu último
sermão, trabalhado noite e dia com esmero, com carinho, com o entusiasmo
da esperança numa vitória que se lhe afigurava garantida. E
desde esse dia um aborrecimento mortal lhe viera invadindo a alma, produzindo
um grande desânimo. Já se sentia incapaz de prosseguir naquela
obra de moralização e doutrinamento para a qual se necessitavam
uma paciência heróica e uma abnegaç&atiatilde;o de todos
os momentos, que teriam de ficar obscuras, para sempre desconhecidas. Fizera
um enorme esforço sobre si mesmo para dedicar-se àquela modesta
carreira, abafando os lampejos do gênio irrequieto e ousado, contendo
a custo o ímpeto das paixões que lhe tumultuavam no cérebro,
mordendo o freio da conveniência e da gravidade, como no caso da provocação
do Chico Fidêncio, com a raiva impotente do cavalo que mão valente
refreia. Sentia na vaidade picadas lancinantes, cada vez que adivinhava o
olhar desconfiado e cáustico do jornalista a perscrutar-lhe as intenções,
com uma enorme avidez de lhe descobrir as falhas da armadura, para as expor
nas colunas do Democrata, com as vítimas habituais da sua ímpia
crueldade. E, como agora, cada vez lhe custava mais o dominar-se!
Aquela vida de obscuros e não apreciados sacrifícios, de virtudes
negativas que os amigos de Silves resumiam em – não beber, não
jogar, não dar escândalos com mulheres – começava a pesar
de modo insuportável, e padre Antônio entrevia, cheio de profundo
e íntimo desespero, um futuro vulgar de padre bem-comportado, preso
à igreja duma vila de interior, numa colocação perpétua,
engordando na vadiação estúpida dum paroquiato aldeão,
e acabando, esquecido do mundo, numa icterícia negra. Agora estava
farto das beatas de lenço branco na cabeça, de andar miúdo
e língua viperina; cansado de ensinar o catecismo às crianças;
enjoado das ladainhas, puxadas numa voz monótona, à frente de
tapuios boçais, à luz mortiça das lâmpadas de azeite
de mamona. E caminhava, à boca da noite, seguindo a curvatura graciosa
do lago Saracá, soluçante e pardo, para ir rezar uma ladainha!
A obrigação que se impusera de dizer missa todas as manhãs
para o povinho ouvir ia ficando uma sujeição incompatível
com a dignidade do sacerdócio, uma maçada ativa e passiva, pensava,
recordando os dissabores do dia que ia findar na estopante reza da noite.
O vinho, o famoso vinhito do Filipe do Ver-o-peso, já lhe não
parecia o mesmo. O português o teria deslealmente adulterado com passas
e aguardente açucarada? As hóstias sabiam a mofo, apesar de
constantemente renovadas. A igreja nua, fria, só era procurada por
gente incapaz de perceber uma silaba de latim. Então, à beira
do lago deserto, uma indignação o possuiu, achando ridículo
o recitar frases latinas e gregas a uma dúzia de negras velhas que,
de joelhos, vergadas para trás, com os olhos em alvo e os dentes brancos
brilhando na sombra, estropiavam a ladainha na repetição fanhosa
e grotesca das invocações da prece.
E cada passo que dava o aproximava da igreja, cada momento que fugia adiantava
a hora em que teria de recitar em voz monótona as frases latinas e
gregas que as negras não entendiam…
Sentiu um grande desgosto de si mesmo.
Não, não fora para aquele viver suave, unido e despreocupado,
como a toalha escura do lago sertanejo, que cursara as aulas do Seminário
grande, aprofundando a teologia. Não para ser mestre de curumins nem
para corifeu de ladainhas, levara à parede tantas vezes o maior teólogo
do Norte do Império, chegando a despertar a atenção do
ilustre prelado paraense. Era digno de maiores ambições do que
as resumidas no modesto sacerdócio que exercia, estando, como estava
– modéstia à parte – convencido que o saber e a inteligência
o podiam levar às mais altas posições da igreja. Estava
deslocado -homem de gênio obrigado a viver no aperto dum meio estúpido
e banal, incapaz de o compreender, indócil à sua ação
regeneradora. Eram aqueles o fim e o resultado de tantos estudos e trabalhos?
Caminhava lentamente, preocupado, sentindo no coração uma inquietação
vaga. O lago gemia tristemente, monótono e tranqüilo. A rua alargava-se,
arenosa, escavada pela ação das chuvas, atravancada de cães
vadios, de vacas de leite ruminando na sombra. O casario sumia-se na escuridão
crescente, crivado de vez em quando por uma fachada nova e branca, salpicado
a trechos de gotas vivas de candeeiros iluminados. No fundo, a massa escura
da serra sustentava um céu negro, recamado de estrelas cintilantes.
Uma brisa sutil, impregnada do perfume de cedro novo, vinha do fundo do lago,
agitando de leve o recorte dos ramos das amendoeiras. Os sinos da Matriz começaram
a tocar o sinal da ladainha, cortando de súbito com a voz de bronze
bem fundido o silêncio da vila. Padre Antônio adivinhou a figura
do Macário sacristão, de pé à porta da igreja,
olhando para todos os lados, severo e impaciente, e um terror deteve-lhe de
repente os passos vagarosos, pensando no sacrifício que mais uma vez
faria e no insucesso das lutas até ali consigo mesmo travadas.
A liberdade de que gozava, as facilidades encontradas naquele meio relaxado
e indolente, as provocações da vizinha tão fáceis
de contentar no mistério dos quintais contíguos, as investigações
dos que zombavam de sua virtude inacreditável, a inocupação
do espírito, alheio aos pequenos detalhes do serviço diário,
haviam-lhe espicaçado a paixão, dominante no temperamento paterno
– a acreditar no que lhe haviam contado o padrinho e o Filipe do Ver-o-peso,
excitando-o ao ponto de consumir-se em noites de insônia, todo entregue
aos ardores da sensualidade reprimida, como no tempo do Seminário,
pelo que lhe renasciam os terrores da condenação eterna, e,
nos momentos de desânimo, julgava-se irremediavelmente perdido, vendo-se
sem força para resistir por muito tempo às exigências
da sua carne de vinte e dois anos.
Os sinos repicavam, numa impaciência alegre. Padre Antônio continuou
a caminhar lentamente, pensando que cem vezes estivera a cair, cedendo à
fatalidade da herança e à influência do meio que o arrastavam
para o pecado. O medo da condenação eterna, espantalho que para
sempre aterrara a imaginação supersticiosa do matuto, o desejo
de ganhar a vitória, e, por que não o confessaria na solidão
da rua adormecida? o olhar suspeitoso e investigador do jornalista liberal
haviam-no salvado da queda. Quisera lutar e vencer. Dominara o ímpeto
das paixões, na certeza de que vencia também o insolente colaborador
do Democrata de Manaus. Mas agora – pela centésima vez o pensava –
à sua natureza forte não podia quadrar aquele viver mesquinho
que o tanger dos sinos lhe recordava. Forçoso era fugir a todo o custo
às tentações da existência desocupada e fácil
de pároco sedentário. Voltava novamente a desejar uma vida de
tormentos e martírios da carne, sonho que esquecera por algum tempo
no entretenimento do culto divino, mas que ultimamente se impusera como solução
única do problema do futuro, prometendo sedutoramente na palma do martírio
a glorificação desta vida e a segurança da outra.
Havia muitos dias que esta idéia se lhe fixara no cérebro como
um prego metido a martelo. Descurara o serviço da igreja, dera sueto
aos alunos, fora severo com as beatas e intratável para o sacristão.
Andava preocupado e melancólico, sem apetite, passando horas compridas
no cemitério, contemplando as campas mesquinhas, ornadas de cruzes
toscas de madeira, e pensando na morte, na outra vida, no pouco que pesariam
as suas ações na balança do julgamento final, e convencido
agora, profundamente convencido que sem boas obras não poderia ir para
o céu apesar da sua fé ardente, ao contrário da doutrina
que despertara a justa indignação do maior teólogo do
bispado, do ilustre padre Azevedo.
À vista das pobres sepulturas invadidas pelo mata-pasto e pelo cordão
de S. Francisco, sentia uma tristeza infinita, misturada de raiva, pensando
que um dia, como os pacíficos habitantes daquela humilde necrópole,
ele, padre Antônio de Morais, dormiria esquecido o sono do aniquilamento,
sem deixar de si memória alguma. Sobre o seu túmulo obscuro
viriam pastar as cabras dos arredores e os mansos bois de carro, e como não
ficava uma lembrança, uma saudade, a única voz que choraria
sobre o seu corpo inanimado seria a do murucututu agoureiro, fugindo à
luz do dia e ao alegre convívio da passarada na mata para gemer tristemente
nas trevas e na solidão do cemitério os seus melancólicos
amores.
De que lhe teriam então servido e a que ficariam reduzidas a mocidade,
a inteligência, a extrema dedicação pelo próximo
de que ele se sentia capaz, se tudo isso acabava numa cova escura e fria que
os animais pisavam e os homens olhavam com indiferença? Meditara muito
nessas ocasiões de isolamento, sobre a ignorância da hora suprema,
sobre a incerteza da vida que, no dizer da Escritura Santa, é uma folha
que cai à menor aragem, e pensava que ninguém há que
não cuide viver ao menos até o dia seguinte. A morte podia surpreendê-lo
dum momento para outro, tornando-o para sempre esquecido dos homens e deslembrado
de Deus, a quem servia tibiamente no descanso do paroquiato cômodo de
vila sertaneja, dormindo em macia rede de linho noites compridas e tranqüilas
sob coberta enxuta, nutrindo o corpo de galinhas gordas e de tambaquis saborosos,
acompanhados dum suave vinho verde, espesso e cheiroso. Recordava a sentença
do filósofo, a vida é árvore que traz em si a semente
da morte e nunca é cedo para cuidar da longa viagem, e estremecia de
susto à idéia de que um desses acidentes dos climas tropicais,
uma simples perniciosa podia colhê-lo de surpresa, não preparado
para a vida eterna, não feito para a vida subjetiva da imortalidade
do nome. E à beira daquele lago sertanejo, ao meio da vila deserta,
ouvindo o segundo sinal da ladainha, e imaginando o Macário de pé,
à porta da igreja, as negras velhas sentadas no ladrilho, à
espera dele, numa passividade resignada, viu-se claramente condenado àquele
suplício novo e doloroso, inventado pelo poeta para as almas tristes
que neste mundo não caíram na infâmia, nem souberam merecer
aplausos.
… l’anime triste de coloro che visser senza infamia e senza lodo.
Não. O cumprimento banal do dever não bastava. Ser um bom padre,
não beber, não jogar, nem dar escândalos com mulheres
não bastava à ambição de padre Antônio de
Morais. Demais o interesse da salvação da alma confundia-se
singularmente com a sede de reputação e renome que o devorava.
Fosse o modelo dos padres, em Silves, não conseguiria vencer a muralha
do indiferentismo público. Ganhando a glória que perpetua uma
personalidade na memória dos homens, asseguraria o triunfo da sua causa
perante o tribunal do Juiz indefectível. Era preciso ser um herói
para a humanidade e um mártir para Deus. A vasta ambição
abraçaria o céu e a terra. Ser um santo célebre, eis
um ideal digno que as circunstâncias contrariavam e o seu temperamento
punha em risco.
E como combater esse risco? O isolamento, a falta de alimento sério
para o espírito inquieto e agitado, a ociosidade em que o fastio das
funções ordinárias do ofício e a indiferença
dos fregueses o deixavam, entregavam-no desarmado e fraco às paixões
ardentes que lhe tumultuavam no cérebro. A cultura intelectual recebida
no Seminário a modo que lhe aumentava o mal-estar do coração,
incapaz de afazer-se àquele meio ignorante. Não tinha com quem
trocar duas idéias em conversa que lhe contentasse o espírito.
Lia e relia o Flos Sanctorum, procurando achar nos inúmeros martírios
dos grandes homens do cristianismo um tormento igual ao seu, nada o consolava,
nada podia arrancar-lhe do coração o pungente espinho da sua
inutilidade imbecil, da sua chata vulgaridade.
Depois do insucesso do último sermão, não passava mais
pela Rua do Porto, nem pelos lugares mais povoados. Vagava pelos arredores
da vila, sombrio, preocupado, fugindo às vistas curiosas dos poucos
habitantes de Silves, maldizendo a irresolução e a fraqueza
que a mãe lhe transmitira no sangue. A noite embalava-se na rede, fazendo
ranger as cordas nas escápulas de madeira, e murmurando citações
latinas como para se convencer dessa verdade que o seu temperamento de contradição
repelia ainda, e parecendo-lhe ver, a cada trecho, na indecisa claridade dos
cantos, surgir, provocadora e risonha, a figura juvenil da Luísa Madeirense.
Quando saiu ao Largo da Matriz era noite fechada, mas viu perfeitamente o
vulto do Macário, à porta, esperando. E penetrando no templo
escuro e frio, deu-lhe uma agonia, como se para sempre entrasse no aniquilamento
total da sua personalidade.
CAPÍTULO VI
Saberá V. Rev.ma que já são seis horas.
– E Macário, de servilhas e em mangas de camisa, foi abrindo a porta
da alcova à luz suave da manhã. Padre Antônio acordou
do sono que o dominara por alta madrugada, depois de uma longa noite de vigília.
Já seis horas! As janelas da sala, abertas de par em par, ofereciam
franca passagem à brisa úmida repassada de aromas sutis de flores
campestres. Da rua vinha um rumor vago de portas que se abriam e de vozes
raras e espaçadas. Ao longe chiava um carro de bois, descendo para
o pasto, sob o aguilhão do lenhador que fornecia os depósitos
da Companhia do Amazonas. No quintal da Luísa Madeirense um galo cantava
batendo com força as asas.
– Já seis horas! repetiu padre Antônio, puxando até o
pescoço o lençol da cama, numa sensação de frio
e sono. Passara mal a noite, e depois, que lhe importava a hora, pois que
nada tinha a fazer naquele dia? O melhor era encostar as janelas e aprontar-lhe
o café para as oito horas. Sentia-se cansado e moído, ia talvez
cair doente, um grande torpor apoderava-se-lhe do corpo, tinha dores vagas,
palpitações, um grande peso na cabeça, o melhor era descansar,
já que com isso nada perdia o serviço da paróquia.
Macário insistiu. Eram seis horas dadas, e se os hereges maçons
abandonavam a vila ainda havia almas cristãs que precisavam do ministério
de S. Rev.ma. A Chica da Beira do Lago, aquela velhinha devota, andava mal
de sezões e mandava pedir a S. Rev.ma que a fosse ouvir de confissão
à sua casa, visto como a moléstia não lhe permitia vir
à igreja. E V. Rev.ma devia fazer esse serviço já, a
tempo de voltar para o almoço, evitando o sol ardente de junho.
– Um quarto de légua! murmurou padre Antônio, voltando-se para
o lado da parede; um quarto de légua na ida, outro na volta, meia légua
pelas lamas do caminho do lago!
E acrescentou, como para desculpar-se daquela lamentação que
a preguiça lhe arrancara:
– A Chica nada tem que a impeça de vir à vila e a obrigue a
confessar-se com tanta urgência. É uma alma simples, gosta de
confessar-se todas as semanas, coitada!
E depois, com um largo bocejo, retalhado de cruzes sobre a boca:
– Aposto que padre José não se dava a estas maçadas!
Padre José era padre José, e S. Rev.ma é padre Antônio
de Morais, redargüiu Macário com leve impaciência. Também
o defunto vigário cantava e dançava lundus e S. Rev.ma não
o fazia. Padre José mandava presentinhos às moças, passava
os dias aos lagos, ao tempo das salgas, o dinheiro não lhe chegava,
porque tinha às três e quatro por sua conta, era uma bandalheira!
Ao passo que S. Rev.ma era conhecido como um sacerdote exemplar e o próprio
Chico Fidêncio não o negava, posto tivesse o arrojo de dizer
que aquilo era manha ou acanhamento de padre novo, que passaria com a idade.
Um patife aquele Chico Fidêncio, uma pedra de escândalo para a
população, ateu, desbocado, mal-dizente e amancebado!. Era o
causador de todos os males da vila, o autor de todas as desgraças,
o enredador-mor de todas as tramas e intrigas, aquele excomungado Chico Fidêncio!
Por causa dele brigara o Valadão com o Bernardino Santana, a fogo e
sangue. Ele instigara o Totônio a desobedecer ao pai, que o queria mandar
para o Liceu, a teimar em casar-se com a sobrinha do Neves. O Manduquinha
Barata e o Pedrinho Sousa estavam perdidos por culpa dele. Levantara a oposição
ao confessionário, impelira o povo a fugir para os castanhais, desamparando
a vila e fazendo ouvidos de mercador às prédicas de S. Rev.ma.
Era um patife! Era pena, realmente, que um homem tão instruído
fosse tão perverso, mas enfim em algumas coisas, forçoso era
confessá-lo, o Chico Fidêncio tinha razão e as suas correspondências
diziam a verdade, por exemplo, quando falava das bandalheiras do defunto padre
José, que Deus houvesse.
– Enfim, terminou Macário, padre José está dando conta
do que fez e a velha Chica esperando que V. Rev.ma a vá confessar.
Levante-se V.Rev.ma, que o estou desconhecendo hoje, e faça a caridade
que lhe pede a pobre da velha, para que morra em paz com Deus.
Padre Antônio, levantando-se de súbito, como se tivesse acabado
de tomar uma resolução longamente meditada, fixou a vista no
rosto do sacristão:
– Sabes que estou decidido a fazer uma missão ao porto dos Mundurucus?
– Nos mundurucus! exclamou Macário, atordoado com a inesperada revelação.
Nos mundurucus! repetiu com pasmo. Mas saberá V. Rev.ma que nos mundurucus
não há alma cristã?
Sabia-o perfeitamente, e fora por isso mesmo que formara aquela resolução.
Desejava ir ao porto dos Mundurucus, converter os selvagens, trazê-los
ao seio da religião católica, e ao mesmo tempo libertar o Amazonas
dessa terrível praga de índios bravos que lhe entorpecia o progresso.
Macário não acreditava, pensava que S. Rev.ma estava brincando,
queria caçoar com ele para o castigar de o ter acordado tão
cedo por causa da velha Chica. Afinal, pensava, ir à casa da velha
não era o mesmo que ir ao porto dos Mundurucus, ao centro da Mundurucânia.
A Chica não comia gente, e os índios, ficasse S. Rev.ma sabendo,
eram antropófagos, como dizia o professor Aníbal, pelavam-se
por carne branca. S. Rev.ma não lhe levasse a mal a insistência
com que lhe falava na pobre velha da beira do lago, uma cristã que
não se podia comparar com aqueles inimigos de Deus que matam e esfolam
uma criatura do Senhor por dá cá aquela palha.
– Maior o merecimento e maior o serviço, replicou padre Antônio,
enfiando a batina que o sacristão lhe apresentava. E enquanto a abotoava
de cima a baixo com gesto lento e grave, começou a falar com uma eloqüência
cálida, depositando no seio do Macário os sentimentos que lhe
transbordavam do coração e que por muito tempo guardava no íntimo
do peito. Sentia uma grande necessidade de expansão, de abrir-se com
alguém, de deixar sair os pensamentos recônditos, as idéias
vagas, os motivos misteriosos que, fervilhando no cérebro num combate
nervoso de todas as horas, impunham-lhe o proceder à primeira vista
inexplicável e estranho que desnorteava o amigo. Disse então
com toda a franqueza, como se conversasse com um irmão do seu espírito,
que aquele era o sonho dourado de toda a sua vida de moço. Missionar,
pregar o Evangelho e morrer às mãos dos índios, não
podia haver nada mais glorioso para um verdadeiro ministro do altar. Sacrificar
a vida ao ensino da religião do Crucificado, nada mais digno dum padre.
Converter ao cristianismo algumas almas ignorantes, arrancar ao inferno algumas
criaturas de Deus, lutar com o inimigo do gênero humano, vencê-lo
pela vida ou pela morte, nada satisfaria melhor os instintos de sua alma ardente
e apaixonada. Quando preferira uma vigararia do sertão ao curso das
altas classes de S. Sulpício, quando desprezara o futuro brilhante
que se lhe antolhava no doutoramento em Roma, nas honras do Cabido, no apreço
e na consideração do mundo, pelo exercício das funções
mais elevadas do clero diocesano, apanágio dos homens de talento que
D. Antônio consagrava e preferia, fizera-o na convicção
entusiástica das grandes coisas que poderia obrar, propagando a fé
católica entre o gentio do Amazonas, sacrificasse embora a vida miserável
a esse generoso empenho. Sim, ele, moço, robusto e são, como
o Macário estava ali vendo, tendo diante de si um futuro repousado
e próspero, não fazia caso algum da vida, estava pronto a dá-la
em troca da salvação de algumas almas do gentio amazonense.
Quando pela primeira vez pisara o solo de Silves, sabia que dali a poucas
léguas existiam índios selvagens e ferozes, e que evangelizando-os
expiaria os seus pecados conquistando fama imorredoura, que levaria o seu
nome à remota posteridade, com os de Francisco Xavier e José
de Anchieta. Até ali estivera calado e hesitante, consultando as forças,
não querendo ceder ao arrastamento dum entusiasmo de mancebo que lhe
podia ser fatal. Refletira longamente, pesara bem as dificuldades, os riscos
da santa empresa que ambicionava realizar, mas agora estava decidido, nada
o poderia demover do seu humanitário projeto. Iria levar aos mundurucus
a palavra sagrada de Jesus, e Deus que lê no coração,
Deus que conhece e experimenta as vocações lhe daria as forças
necessárias a tão grandioso cometimento.
Macário estava assombrado. Nunca lhe passara pela cabeça a
idéia de que um padre, um homem qualquer, pudesse conceber em seu perfeito
juízo um projeto tão extravagante, mas a figura, a voz, o olhar
de padre Antônio tinham tal cunho de convicção e de império,
a sua bela fisionomia revelava um entusiasmo tão ardente e sincero,
que o sacristão sentiu-se cheio de respeito e de pena por aquele desvio
da razão, que atribuía aos desgostos ultimamente sofridos no
paroquiato de Silves. Macário tinha vontade de o interromper para o
consolar, para dizer-lhe que não fizesse caso daquilo, que com o tempo
reconheceriam a injustiça, e outras coisas cordatas que lhe acudiam
à imaginação. Mas o padre, de pé no limiar da
alcova, com a mão esquerda no portal e a direita descaída ao
longo da batina, numa atitude de resignação invencível,
com o olhar erguido para a nesga de céu azul enquadrado pela janela
que lhe ficava em frente, não dera tempo a interrupções,
e continuava a falar em voz firme e mansa, de leve repassada de tristeza,
como o lutador que se prepara para um combate heróico sentindo a nostalgia
da vida que põe em risco; e dizia agora, provocando lágrimas,
as lutas que teria de travar com o selvagem, expondo o peito desarmado e nu
às flechas ervadas, combatendo com paciência evangélica
os furores da ignorância, o ódio dos pajés, a vingança
da raça oprimida e humilhada, vencendo pela palavra de caridade e de
amor os espíritos rebeldes e rudes que senhoreavam o sertão;
as privações que sofreria, sedes, fomes, tormentos desconhecidos,
criados pela imaginação crudelíssima dos tuxauas; o abandono
em que estaria, longe do mundo, privado de todo o socorro humano, a centenares
de léguas da civilização e do cristianismo, único
ser pensante entre brutos, única alma crente entre milhares de entes
cegos pela ignorância e pela superstição, e tudo para
morrer pregado a uma árvore, desconhecido, obscuro, sem que uma lágrima
amiga lhe lamentasse a sorte, sem que a mão dum afeiçoado lhe
fechasse os olhos, sem que a oração de lábios católicos
derramasse o último bálsamo da fé sobre o corpo estirado
e nu no solo da floresta virgem.
– o que mais me pesa! bradou Macário, sacudido por soluços
violentos. Pensar que V. Rev.ma entrega-se sozinho a tão grandes perigos!
Padre Antônio pôs-lhe a mão ao ombro, cheio de confiança:
– Não, Macário, não realizarei sozinho tão gloriosa
empresa. Pensei em você, Macário, para meu companheiro de jornada.
Partilharemos a glória e os perigos da missão.
A compaixão que Macário estava sentindo desapareceu por encanto.
As lágrimas, umas lágrimas tolas, secaram-se. O seu pasmo foi
tão grande que ficou atordoado, e como se já se visse oferecido
em pasto aos selvagens do Amazonas, pôs-se a exclamar repetidas vezes:
– Eu aos mundurucus, eu aos mundurucus!
E aterrado, sentindo fraquearem-lhe as pernas, saiu da sala quase às
apalpadelas, e foi refugiar-se na cozinha.
Justamente a Luísa Madeirense, labutando no quintal, cantava em voz
fresca e sonora:
Lá nas matas do sertão
encontrei certo gentio,
e com medo da taquara
logo lhe chamei meu tio.
Naquele dia padre Antônio de Morais não fora ouvir de confissão
a velha Chica da Beira do Lago. Safra de casa, sem tomar refeição
alguma, e como a Matriz lhe ficava em caminho, penetrara maquinalmente no
templo. A igreja, toda caiada de branco, estava deserta e fresca. Os morcegos
disputando entre si os vãos das telhas, chiavam batendo as asas, e
as vespas cruzavam-se no ar, na faina de prover à subsistência
da prole, zumbindo alegremente. O sol, entrando pelas janelas laterais, clareava
os grandes panos de parede lisa, limpos das parasitas de outrora e curados
das feridas que o tempo fizera no reboco; mas punha em evidência, a
uma luz crua, as figuras grotescas de santos e demônios, que os quadros
parietais ostentavam com uma abundância de cores vivas e de tintas espessas.
Através do repintado dos madeiros e da caiação dos muros,
a velhice prematura do edifício espiava o abandono da casa de Deus,
como se pressentisse o relaxamento da fé entusiástica que a
forçara a esconder-se aos olhares ingênuos do povo, cobrindo-se
de camadas de tabatinga, oca e alvaiade. Naquela manhã de sol os retábulos
grosseiros, as grades toscas, o confessionário repolido, o pavimento
remendado com tijolos de fábrica e forma diferentes, os ornamentos
do altar-mor, tinham um aspecto velho, gasto, de velhice disfarçada,
de arrebiques inúteis. O púlpito parecia cansado de ter-se a
pé, à espera do pregador ausente, manifestando o abandono em
que o deixavam nas quebras e rupturas da crosta de óleo colorido com
que lhe haviam vestido a nudez de velho cedro sujo. A pia batismal, esbeiçada
e limosa, guardava semanas uma água grossa e turva, que ocasionava
desastres sinistros de baratas afogadas e dramas obuscuros de lagartixas mortas.
O assento do confessionário estava cheio de pó. Do teto pendiam
já alguns longos filamentos indicando que as aranhas achavam-se a cômodo
naquela grande casa e que a vassoura, outrora desapiedada, do terrível
Macário, dormia agora escondida a um canto por trás do altar-mor.
Mesmo à entrada da igreja um cão vadio e um cabrito vagabundo
haviam profanado o asseio do ladrilho, depositando excrementos que pareciam
da véspera. No altar do Senhor dos Passos, o santo mostrava-se mais
velho e triste do que de costume; a amarelidão da face larga e chata
exprimia um desejo ardente de livrar-se da cruz que embalde o Cirineu, teso
e de má vontade, procurava sustentar com a mão espalmada e dura;
e sobre o altar-mor a própria padroeira, imóvel no seu longo
vestido azul-dourado, parecia ansiosa por tirar a coroa e largar o menino,
a fim de descansar um bocado ao lado da serpente.
O vigário foi ajoelhar-se sobre os degraus do altar de Nossa Senhora,
com o coração confrangido, sentindo-se penetrado por um remorso
vago. Naquela manhã não dissera missa, e havia muito que se
limitava à missa das nove horas, aos domingos, a única que atraía
alguns ouvintes. Começou a rezar, mas a impressão de desânimo
e abandono que o apanhara ao penetrar naquele templo mesquinho e sujo, o distraía,
impedindo-o de concentrar o espírito na tarefa banal da prece decorada.
Quando erguera os olhos para a imagem da padroeira, notara que o dourado malfeito
começava a quebrar-se em diversos pontos, deixando a nu o pau de que
se fizera a santa. Mais uma despesa ainda, pensara, avaliando o trabalho da
nova encarnação, e desta vez não tinha o dinheiro do
padrinho. A pintura do altar-mor estava estragada pelas moscas, a toalha de
renda roída de ratos, o missal parecia um alfarrábio comido
de traças, a prata dos castiçais fora-se devorada pelo uso ou
pelo tempo. Quanto seria preciso para renovar tudo isso, para dar alguma decência
à igreja? Era um nunca acabar. Fizera muitos esforços, renovara
os paramentos, algumas alfaias e vasos sagrados, gastara nisso todo o seu
dinheiro e o que lhe dera a pia generosidade do padrinho… de que servira?
Seriam precisos ainda alguns contos de réis para que a Matriz de Silves
oferecesse a aparência duma casa de Deus, dum edifício em que
se praticava o culto divino. Fora talvez melhor levantar um novo templo, uma
Matriz nova! Seria um edifício sólido, capaz de resistir ao
tempo, e não a miserável barraca de tabatinga e pau-a-pique
condecorada com o nome de Matriz de Silves. Teria a forma dum templo grego
ou seria a miniatura duma basílica medieval, dessas soberbas construções
de pedra, cuja contemplação arrebata a alma às alturas
infinitas, mergulhando-a num sonho povoado de visões antecipadas das
sublimidades do Empíreo. Poderia ainda buscar no movimento de renovação
artística do século XV, o modelo inexpressivo e frio com que
a decadência da fé religiosa parodiava a severa correção
da forma greco-romana, no desespero de reproduzir o ideal do paganismo morto.
Qualquer que fosse o estilo da futura igreja, colunatas gregas, relembrando
a harmonia e a graça do politeísmo generoso e fecundo; ogivas
góticas exprimindo as ansiedades da alma humana, sedenta dum ideal
novo; flechas e agulhas agudíssimas, perfurando o céu para abrir
uma entrada à fé do catolicismo ardente; ou zimbórios
e abóbadas romanas, aliados às linhas puras, à fria elegância
e à pobre correção dos artistas da Renascença,
privados do sentimento religioso que inspira e realiza as grandes criações;
tudo serviria contanto que o templo fosse grandioso e belo, provocasse a admiração
dos passageiros, atestasse o alto conceito do ministro que o servia, os seus
esforços, a sua vitória, e a sua poderosa iniciativa. Que importava
que essa igreja magnífica fosse edificada à margem dum obscuro
lago, num sertão quase desconhecido, num centro quase selvagem, se
a beleza e a harmonia das formas atraíssem as vistas curiosas do estrangeiro,
a crítica dos artistas e o julgamento dos competentes, vindos em chusma
das outras províncias, dos países de além-mar, para admirar
a obra gigantesca que a energia e o talento de padre Antônio de Morais
alevantara do chão. E como se o pensamento de semelhante glória
o dementasse, o padre, de joelhos sobre o primeiro degrau do altar-mor, com
a cabeça erguida e os olhos fixos no teto carunchoso da igrejinha,
julgava-se já dentro do novo templo. O telhado pouco a pouco ia-se
elevando a grande altura, arredondando-se em abóbada imensa que avolumava
o eco das vozes harmoniosas de órgãos e de cantores. A nave
alargava-se sobre um pavimento de mármore preto, ornado de cruzes e
de flores simbólicas, que os fiéis pisavam, como os santos passeiam
o tapete florido do céu estendido sobre miríades de estrelas.
Como plantas vigorosas, alimentadas pelo sol dos trópicos, os pés
direitos, transformados em colunas agrupadas, atiravam-se para o alto a sustentar
o peso formidável das arcadas em místico trifólio. Os
retábulos toscos abriam-se em nichos povoados de estátuas imponentes,
simbolizando na sua bem-aventurança celestial todas as crenças
e todos os conhecimentos humanos. Os quadros parietais coloriam-se, cercavam-se
de molduras ornamentadas com uma graça delicada, apresentavam cenas
da Paixão e da vida dos santos em que a verdade artística combinava
com os sentimentos inspiradores. A capela-mor crescia sob os arcobotantes
góticos, bela, ornada de mármores rendilhados, suave, elegante
e esvelta, realizando o ideal dum estilo novo em que o bom gosto florentino
corrigisse as demasias apaixonadas da arte da Idade Média, aliasse,
no supremo esforço do sentimento artístico, a fé, a ânsia,
o misticismo romântico das catedrais levantadas por gerações
de obreiros desconhecidos, à fina e correta elegância dos Médici;
em que a mão poderosa de Miguel Ângelo e a maestria de Bramante
retocassem os excessos de fantasia, os exageros de imaginação
dos grandes construtores medievais. Uma combinação nova, uma
arquitetura que exprimisse a perfeita relação entre o culto
e o ser supremo, uma arte que fosse humana e divina, participando das duas
naturezas de Cristo, Deus pela origem e pela onipotência, homem pelo
sofrimento e pelo amor. E ele, sacerdote dum tal culto, ministro dum tal Deus,
deslumbrado pelas inúmeras luzes dos grandes candelabros de prata e
ouro que lhe pareciam iluminar as naves solenes, sufocado pelo incenso queimado
aos pés do altar em turíbulos cinzelados por Benevenuto Celími,
vendo a seus pés a multidão enorme, rica, elegante, ávida
da palavra sagrada, a admirar o luxo caro da sobrepeliz de rendas finas, da
capa-magna bordada a ouro, das vestes pontificais que ostentava garbosamente,
coberto de púrpura, ouvia o canto divinal ‘dos anjos do paraíso
na fresca voz dos sopranos, acompanhada pela melodia grave do órgão.
Uma sensação profunda de gozo espiritual perturbava-lhe o cérebro,
arrancava-o à terra, levava-o pelas alturas, dando-lhe a prelibação
da suprema felicidade, fruída ao som do hino imenso e festival com
que tronos e dominações, arcanjos e serafins celebram a glória
do Deus uno e trino na serena claridade dos céus.
O sol, subindo para o zênite, penetrou com mais força pelos
óculos do oitão, e um raio ardente veio beliscar a nuca do padre
ajoelhado, chamando-o à realidade das coisas. Achou-se de súbito
na pobre Matriz de Silves, ajoelhado ante o altar de louro repintado, tendo
à sua frente a imagem gasta da santa padroeira, da mãe de Deus
que o olhava tristemente, humildemente quase, sem energia para esmagar a cabeça
da serpente. Correu os olhos pela igreja toda, com pasmo, como se acordasse
dum sonho delicioso e se encontrasse de repente na enfadonha realidade da
vida. A cobertura do telhado ali estava, velha e remendada, as paredes caiadas,
lisas, duma simplicidade sem graça, os quadros com figuras grotescas
de santos e de almas penadas. Sonhara, sim, um sonho louco, de fantasia doente,
para todo o sempre irrealizável. Como pudera conceber em Silves a edificação
dum templo que fosse um monumento da fé católica e uma prova
de poderoso gênio artístico? Jamais, naquele meio atrasado e
já corrupto, naquela povoação dominada pela vulgaridade
chata dum beatério sem sinceridade e sem elevação, jamais
daquelas almas frias de tapuios indolentes, de provincianos vadios, poderia
esperar um esforço convicto, um tentame qualquer que exprimisse força
e vida, digna submissão à tirania imponente do belo, adoração
entusiástica da grandeza imperecível de Deus.
Que sonho aquele! Que idéia disparatada e tola lhe ocupa por alguns
momentos, como se um sopro de loucura lhe passado pela fronte no isolamento
daquela triste Matriz Não. Era preciso banir para sempre essas fantasias
que lhe tiravam a calma e aumentavam-lhe o desânimo do presente, fazei
um gozo impossível, sem relação. alguma com a situação
que o prendia à tarefa inglória e debilitante livremente escolhida.
E devia resignar-se a isso? E agora, além de sentir-se devorado por
glória e de renome, reconhecia, com horror, que a pobreza, a rusticidade
da sua igreja enchiam-no de repugnância, contrariavam a tal ponto os
seus hábitos de elegância, os seus gostos de luxo, o seu ideal
artístico, que era como uma repulsão material que sentia por
aquela mesquinha casa de oração, por aquele altar despido de
ornatos, por aquelas imagens grotescas de santos martirizados pela imperícia
do escultor. Mas a consciência dessa fraqueza, ante a evidente tentação
demônio da vaidade, aterrava-o. Sentia-se violentamente arrastado para
o pecado da soberba, e em vão queria lutar com as tendências
do espírito, procurando recuperar a humildade do coração,
que lhe ditara outrora a renúncia dos benefícios prometidos
pela proteção do senhor bispo, pela estima dos mestres do Seminário.
Em vão a procurava readquirir, essa bendita humildade, sobre o pavimento
de velhos tijolos remendados, ao som do chiar sarcástico dos morcegos,
em face daqueles miseráveis objetos do culto dum povo, que a fé
já não alimentava. Teve de sair da igreja, sair da vila, procurar
a fresca das matas, achar-se em pleno ar, no meio da vegetação
luxuriante das margens do Sacará para recobrar a tranqüilidade
de que precisava o ânimo atribulado.
Vagou muito tempo por entre árvores, seguindo a esmo as picadas dos
lenhadores, sentindo-se bem, haurindo a brisa embalsamada da floresta.
Pacificava-o a idéia de que remiria todas as culpas com o sacrifício
da vida oferecida na resolução, já agora inabalável
de missionar na Mundurucânia. Ali não teria catedrais góticas,
nem capelas florentinas, nem lavores artísticos, nem luxos de púrpura
e ouro, nem concertos divinais de vozes de sopranos, imitando os angélicos
na harmonia grave dos órgãos, nem prodígios do engenho
humano embelezando Deus. Mas também, em vez do mesquinho esforço
duma religiosidade moribunda, teria, para adorar o Criador do universo, o
templo vivo, a Igreja única e verdadeira, a imensa catedral da natureza.
A floresta virgem era a basílica enorme que tivera por arquiteto Deus.
Tudo mais, templos do Egito, panteões gregos, mesquitas maometanas,
pagodes hindus, catedrais da Idade Média, igrejas da Renascença,
lúgubres conventos espanhóis, obras do esforço genial
dum homem ou lentas construções duma geração de
operários, materiais acumulados por um povo no decorrer de séculos,
não passavam de imitações mesquinhas, de paródias
mais ou menos felizes da arquitetura grandiosa da floresta virgem. Aí,
sobre o solo tapetado de rica folhagem, árvores gigantescas investiam
para o céu, originais soberbos das pobres colunas egípcias,
transformadas pela arte fina Grécia, apresentando todo o desenvolvimento
do progresso artístico da Hélade, desde a coluna dórica
nos robustos dendezeiros até a coluna coríntia nas elegantes
palmeiras-reais. As palmas entrançadas com as folhas formavam a abóbada
sombria, as cúpulas, os zimbórios, os tetos de várias
formas, sobrepostos às arquivoltas e às arquitraves dos galhos
e dos ramos. O canto dos pássaros, as vozes dos animais, o murmúrio
dos regatos, o ciciar da brisa, os rumores confusos da mata entoavam o hino
da criação num conjunto inimitável de harmonias divinas.
só o canto do rouxinol amazonense, no ramo do ingazeiro, valia Stradella
executando Palestrina. A luz cambiante do crepúsculo, coada pelas franças
do arvoredo, refletindo-se nas águas transparentes de majestosos rios,
não invejava o brilho das decorações de púrpura
e ouro, sobressaindo iluminadas pelos grandes candelabros, pelos lustres,
por centenares de velas de cera perfumada. Tudo ali era grande, majestoso,
incomparável, obra direta dum ser onipotente. Um povo jovem, numeroso
e livre, enchia a nave imensa esperando a palavra da catequese que lhe devia
ensinar a adoração do soberano autor de tantas maravilhas, e
ele, padre Antônio de Morais, o pontífice máximo na sublime
selvageria da floresta virgem, seria grande também, intemerato e forte.
Com a eloqüência da sua palavra, com a santidade da sua fé,
seria o traço de relação entre o Criador e a criatura,
Anjo do Senhor, baixando à terra para anunciar o Verbo, homem elevado
acima da humanidade para prestar serviço a Deus…
Não sem relutância terríveis, sem desânimos profundos,
sem hesitações repetidas se resolvera Macário a aceitar
a cumplicidade que lhe oferecera padre Antônio de Morais na perigosa
tentativa de converter gentios. O primeiro assombro passara, mas ficara o
terror da sinistra solidão das florestas, do encontro com índios
bravos, cujo primeiro ímpeto é distender o arco e fazer voar
a flecha homicida, sem a cortesia de prevenir com uma saudação
a vítima descuidada. O mato para o sacristão nada tinha de atraente,
era próprio de feras. Como deserto preferia o das ruas alinhadas com
renques de casinhas brancas, o das praças vastas, onde pastam vacas
de leite e mansos bois de carro, únicas feras de que se não
arreceava: como índios contentava-se com os prudentes tapuios de camisa
de riscado e calças de algodão, que remam silenciosamente à
proa das montarias de pesca, e com as caboclas de saias de chita verde dançando
o sairé à porta das igrejinhas sertanejas. À poesia da
floresta preferia a placidez da vila, aos encantos da liberdade selvagem a
prosa pacata à porta do coletor ou ao balcão do Costa e Silva,
entre um golezinho de café perfumado e quente e um cigarro de Borba,
maior e mais gostoso do que um charuto baiano, desses que o Dr. Natividade
afetava, às tardes, em passeio pelas ruas da vila. Deixassem-no ficar
onde estava, sem glórias nem renomes, sendo útil a Deus no zelo
dedicado ao serviço da paróquia, e estava muito satisfeito.
Mas S. Rev.ma exigia, era forçoso obedecer-lhe. Persistir na recusa
seria perder para sempre a amizade do senhor vigário, e com ela ia-se
o lugar, a tanto custo conservado, de sacristão de Silves. Padre Antônio
andava intratável, possuído da idéia fixa da missão
ao porto dos Mundurucus. Outro dia, viera da floresta, com a cabeça
exposta ao sol do meio-dia, tendo nos olhos um brilho desusado. Já
não parecia o mesmo. Falava com intimativa, não admitia réplicas
nem observações, sempre pensativo, taciturno, abrindo a boca
só para dizer que seria obrigado a procurar outro companheiro que melhor
e com maior dedicação o servisse. Ora Macário, por mais
que parafusasse, não descobria em Silves e em toda a redondeza, ocupação
melhor do que a de sacristão da Matriz, depois da chegada de padre
Antônio de Morais. Bem vestido, bem nutrido, muito considerado, dormindo
à farta, fazendo bons ganchos em missas de defunto, em batizados e
enterros, sentia-se melhor do que um cônego de prebenda inteira. Quem
lhe restituiria todas as vantagens que a resistência à vontade
do padre lhe faria perder? Longos anos de humilhação e sacrifício
haviam-lhe enraizado no coração o amor do bem-estar que a sua
situação representava, e agora que tão prontamente a
ela se habituara é que a perderia? Já não lhe faltavam
invejosos. O José do Lago sonhava com a substituição
do Macário, o Valadão tinha um afilhado para empregar, se Macário
insistisse em ficar, era certo perder para sempre o lugarzinho que tanto prezava,
e adeus, então, sonhos de prosperidade e de ventura! Iria ser caixeiro
do Costa e Silva ou do Mendes da Fonseca, varrer-lhes a loja, trazer-lhes
o café, vender cachaça aos tapuios, aturar os desaforos dos
fregueses, apanhar a sua descompostura de vez em quando sem dar um pio, ou
então, iria fazer cigarros, única prenda que possuía,
e se a indústria de cigarreiro de nada valesse, encheria de pernas
as ruas de Silves, esfarrapado e faminto, sem consideração social.
Nada! Não teria por vinte anos aturado as brutalidades de padre José,
que Deus houvesse, não teria ouvido ásperas descomposturas –
filho desta, filho daquela, ladrão, velhaco, não teria arrastado
a sua humilhação pela vila durante a mocidade toda, por amor
do emprego, para agora o deixar por si, só porque lhe falavam em uma
missão à Mundurucânia. Lá que era difícil
de roer a coisa, era, mas talvez que se estivesse assustando sem motivo. Era
até muito provável que o senhor vigário não levasse
a fim o seu absurdo projeto. A teima de padre Antônio não podia
durar muito tempo. Aquilo passava. Era lá homem para sacrificar-se
deveras, metendo-se entre índios bravos, a valer! A sua resolução
era filha do despeito, logo que se avistasse cara a cara com as dificuldades
de tão irrealizável empresa, recuaria, tão certo como
três e dois serem cinco. Coisas de rapaz. Esta convicção
grata e a confiança íntima e profunda na sua boa estrela, dando-lhe
a certeza de que jamais se veria em conjuntura apertada de que não
soubesse sair, decidiram Macário a mostrar boa cara à proposta
do padre, muitas vezes e instantemente repetida.
Mas para ganhar tempo Macário, mostrando-se desejoso de o acompanhar,
salientara as dificuldades e embaraços que se opunham a uma partida
breve. Primeiro era preciso deixar a igreja entregue a uma pessoa de bastante
zelo e probidade, e na opinião de Macário não havia naquela
miserável vila um homem de quem se pudessem confiar as novas alfaias
e os novos vasos sagrados, as riquezas da nave e da sacristia.
– O Cazuza Penteado? Um sujeito que furtara a tesoura com que a parteira
lhe cortara o umbigo.
– O José do Lago, um bêbado que dava cabo de todo o vinho branco
da sacristia.
A Matriz não podia ficar abandonada. Era preciso que uma pessoa a
zelasse na ausência de Macário. Enquanto não vinha a licença
impetrada por padre Antônio para deixar a paróquia, Macário
procurava. Veio de Manaus a licença e Macário ainda não
pudera descobrir uma pessoa de bastante zelo e probidade… Cada vez que o
sacristão passava pela porta do Costa e Silva, ouvia sair de lá
a voz zombeteira do Chico Fidêncio:
– Então, Macário, quando parte a missão?
A coisa transpirara. Toda a vila conhecia o projeto de padre Antônio
de Morais, mas não acreditava na sua realização. Era
uma idéia de moço inexperiente. Quando mesmo chegasse a partir
de Silves, não chegaria a atravessar o Amazonas. Era lá homem
para deixar os cômodos da vigararia e aventurar-se pelos sertões
fora em busca de mundurucus! Demais’ essa tarefa maçante de catequese
pertencia de direito aos padres que nos vinham de fora, e que rareavam cada
vez mais. Um padre brasileiro catequizando! Parecia uma pilhéria inventada
pelo Chico Fidêncio para caçoar da religião de Cristo.
Macário cansava-se em esforços vãos para convencer a
população rarefeita de Silves, de que a coisa era verdadeira
e de que padre Antônio pensava mesmo em atirar-se aos mundurucus selvagens.
E, por sinal, que Macário também ia, sim, senhores, Macário
de Miranda Vale ia missionar na Mundurucânia, e o seu nome viria nos
jornais, S. Rev.ma lho prometera. Padre Antônio até já
queria entregar a Matriz ao José do Lago, para poder sair mais depressa,
mas o diabo é que não havia remeiros que se prestassem a conduzir
S. Rev.ma ao porto dos Mundurucus. Coisa notável, mal O sacristão
chegava-se a um tapuio:
– Patrício, você quer levar o senhor vigário ao porto
dos Mundurucus?
– Uai! onde é isso?
– O porto dos Mundurucus é lá no fim do mundo, nem eu mesmo
sei, explicava Macário. É lá uma coisa que se meteu na
cabeça do senhor vigário. Quer ir por força à
terra dos gentios que comem gente, para servir a Nosso Senhor Jesus Cristo!
O tapuio que isso ouvia, dava de andar para longe, silenciosa e apressadamente,
receando que o obrigassem a pegar no remo. E Macário, mostrando muito
desânimo, ia dizer ao vigário:
– Saberá V. Rev.ma que não é possível obter remeiros.
Canoa havia, uma bela igarité grande, com tolda de japá, fixa
e cômoda, de sólida construção e marcha regular,
mas remeiros não apareciam. Nem dinheiro nem promessas, nem a lembrança
do serviço de Deus, nem mesmo o prestígio do senhor padre podiam
decidir os tapuios timoratos e preguiçosos a tão longa e perigosa
jornada. Padre Antônio impacientava-se, acusava a desídia e a
má vontade do Macário, falava em irem os dois sozinhos numa
montaria rio fora, em busca de melhor meio de condução. Macário
invocava todos os santos e santas da corte do céu em abono da sua boa
vontade e diligência. Mas não havia mesmo quem quisesse ir. Era
falar-se no porto dos Mundurucus e os tapuios largavam a correr como desesperados.
Pela centésima vez, Macário, por ordem do vigário, passara
pela Rua do Porto, procurando remeiros, até que parara casualmente,
muito cansado, absorto nesses pensamentos, à porta do Costa e Silva.
De repente uma voz sarcástica saiu da loja:
– Então, Macário, sai ou não sai a missão?
Era o Chico Fidêncio, sentado junto ao balcão, chupando um cigarro
apagado.
Macário impaciente, compreendendo a necessidade de acabar com aquela
dúbia situação em que o punham as insistências
do padre e os sarcasmos do Chico Fidêncio, respondeu com muita dignidade:
– Saberá V S.a que não é da sua conta.
Era numa tarde de fins de julho. Um chuvisqueiro miúdo começava
a cair, esbranquiçando a massa da floresta e a lombada longínqua
da cordilheira. A areia das ruas assentara, convertendo-se numa pasta flácida
em que os pés escorregavam. A vila quase deserta enchia-se da tristeza
sombria das noites invernosas. Macário tinha ojeriza às umidades,
não se davam com o seu gênio nem com o seu reumatismo. O melhor
era dar por concluídas as diligências daquele dia, e recolher-se
a quartéis.
Padre Antônio não estava em casa, não voltara ainda do
passeio, com que costumava combater a dispepsia nascente. Mas, disse o preto
velho, um moço bonito estava esperando na sala, para falar com o Sr.
Macário. Um moço queria falar-lhe, quem seria? Provavelmente
o afilhado do Valadão que vinha empenhar-se pela substituição
do Macário, durante a missão à Mundurucânia…
Que esperasse! Primeiro o Macário queria mudar as meias e beber um
copito de vinho branco para afugentar um resfriamento. Não havia de
sacrificar a sua saúde preciosa para ouvir as lengalengas do afilhado
do Valadão!
Mas, enfim, mudada a roupa e bebido o vinhozinho do Filipe do Ver-o-peso,
ocuparia o tempo até a volta de padre Antônio de Morais, ouvindo
o pedido do candidato a sacristão interino. Tratá-lo-ia bem,
mas o iria desde já prevenindo que os deveres do cargo eram muito sérios,
e era preciso medir bem as forças, antes de aceitar a responsabilidade
da posição solicitada. Não pensasse que ser sacristão
de Silves, e ainda com um sacerdote como Antônio de Morais, fosse alguma
sinecura! Devia desde já habituar-se à idéia da importância
das funções de acólito e de zelador do culto, de mestre-sala
e ordenador do serviço divino. Em primeiro lugar era preciso saber
latim. Não poderia ajudar a missa em português, isto estava claro.
A ele, Macário, custara-lhe muito o aprender o latim, não fora
biscoito, ouvira muita descompostura do defunto padre José, que Deus
houvesse, e levara mesmo algumas palmatoadas! Depois era preciso conhecer
o serviço, saber quando devia pronunciar os latinórios, quando
devia ajoelhar-se, erguer-se, carregar o missal do lado da Epístola
para o lado do evangelho, trazer as galhetas, servir o vinho e a água,
enfim estar senhor de todos os detalhes do santo sacrifício. É
verdade que estando padre Antônio ausente não se diriam missas
em Silves… mas podia haver algum enterro, e para acompanhá-lo precisava
o sacristão conhecer o seu ofício. Havia ainda as ladainhas,
que não seriam interrompidas durante a missão à Mundurucânia.
E finalmente requeria-se para sacristão um homem honrado e inteligente,
incapaz de se deixar tentar pelo ouro do cálice, pela alvura das rendas
da sobrepeliz ou pelo aroma delicado do vinho branco, mas que também
soubesse cuidar disso tudo, tendo-o sempre em boa conservação
e asseio. O afilhado do Valadão seria o homem necessário? Eis
um problema que Macário não poderia resolver senão depois
de ouvi-lo, de sondá-lo bem, estudar-lhe a fisionomia, os modos e o
vestuário. Em todo o caso já o fato do pretendente ter procurado
falar-lhe o preveniu em seu favor. Outro fosse ele e ter-se-ia dirigido diretamente
a S. Rev.ma, sem fazer caso do sacristão, como no tempo do defunto
padre José, em que Macário não tinha voz ativa. O afilhado
do Valadão devia ser um rapaz cheio de tino, se por si resolvera aquele
passo de pedir ao santo em vez de pedir a Deus, ou então, e era o mais
provável, o tenente Valadão, o subdelegado de polícia,
assim o aconselhara, reconhecendo a incontestável influência
de que gozava Macário. Sim, provavelmente preferiria o protegido do
subdelegado ao José do Lago, que era uma lesma, mas queria antes de
comprometer-se por uma promessa formal, expor-lhe com franqueza o modo por
que entendia as funções dum acólito pontual e zeloso.
Chovia ainda. Tinha tempo. Padre Antônio, provavelmente, surpreendido
pela chuva, entrara em alguma casa, e esperava a estiagem para voltar ao presbitério.
O pobre pretendente já esperava muito tempo.
Macário atravessou o corredor, abriu a porta da sala, e recuou espantado,
vendo sentado numa cadeira, com o chapéu entre os joelhos, um moço
de dezoito anos, pálido e franzino.
– Uai! é o senhor que quer substituir-me! exclamou o sacristão,
cheio de surpresa.
E logo fino e atilado, não querendo ser vítima duma mistificação
evidente, acrescentou com um sorriso:
– Já sei, é uma pilhéria do Chico Fidêncio! Aquele
tratante não descansa! Mas desta vez teve graça! O Sr. Totônio
Bernardino feito sacristão da Matriz!
O moço ergueu-se, acanhado e sério. Macário notou que
tinha emagrecido e estava muito triste. Nos olhos brilhava-lhe um relâmpago.
– Não sei de que fala, disse, nada tenho com o Chico Fidêncio,
e nem desejo ser sacristão da Matriz.
Ora essa, não queria ser sacristão, e que diabo queria ele?
– Venho fazer-lhe um pedido, murmurou o Totônio Bernardino, pondo os
olhos no chão.
Um pedido! Pois não, estava às suas ordens, contanto que fosse
para bem. Não se negara nunca ao que exigiam dele para o bem, era da
sua natureza, não poderia reformar-se. O Sr. Totônio podia falar
que Macário o estava ouvindo, pronto ao seu serviço. Não
se trata do lugar de sacristão interino, de algum batizado, de algum
Nosso-pai a levar? Ah! Já sabia, a coisa era um casamento!
E Macário, feliz por ter achado afinal a explicação
do caso, acrescentou com malícia:
– Invejas do mano, pois não é?
Uma contração fechou o rosto expansivo do jovem. Um profundo
suspiro levantou-lhe o peito.
– Não, Sr. Macário, não se trata disso. Mas já
me explico. Padre Antônio vai em missão à Mundurucânia…
– Vamos, pois não! interrompeu Macário.
– Pois é isso, tornou o Totônio, sei que S. Rev.ma tem demorado
a viagem por falta de remeiros…
– Ah! Já sei, o Sr. Totônio sabe de alguns tapuios que se prestam
a remar até o porto dos Mundurucus? Pois olhe, admira-me muito isso.
Tenho procurado tanto! Quando sabem que é para ir até às
tabas de selvagens que comem gente, todos fogem. E o senhor sabe de gente
que se preste a isso?!
– Sei. Estou pronto a remar na canoa de padre Antônio, e tenho um companheiro.
– O Sr. Totônio remando na canoa de padre Antônio!
E Macário, no auge do espanto, voltou-se para a porta, escolhendo
saída. Não havia que ver. O Totônio enlouquecera, estava
doido de pedras! Bem lhe parecera diferente do que era. Trazia a cabeleira
mal penteada, a gravata mal atada, o fraque mal escovado. Estava muito pálido,
com olheiras fundas, e no olhar tinha um brilho estranho, um fogo que abrasava.
Pobre Totônio!
O moço, percebendo o efeito das suas palavras, tentou explicar-se.
Era estranhável que ele, moço de boa família, tendo recebido
uma educação, tendo cursado aulas do Liceu, viesse oferecer-se
para remador da igarité de padre Antônio? Certamente que não
buscava uma profissão, um meio de ganhar dinheiro. Era certo também
que não procurava uma penitência de pecados mortais. Não.
Nada disso. Também não era um ato de loucura, mas uma resolução
fria e inabalável que livremente e no gozo inteiro das suas faculdades
adotara.
– Mas como se explica? perguntou Macário, serenando o ânimo,
e chegando-se para o simpático rapaz.
Ele, numa expansão, contou a desgraça da sua vida, sem ocultar
coisa alguma, como se se confessasse. Desde a noite do baile do casamento
do irmão, em que pela primeira vez depois de anos, vira a irmã
da noiva, a adorável Milu, sentira que uma vida nova começara
para ele. O seu coração abrira-se a sentimentos desconhecidos,
um afeto forte o enchera, assenhoreando-se pouco a pouco, como numa embriaguez
crescente, de todo o seu organismo. Quando o baile acabara, não havia
para o Totônio Bernardino outra criatura no mundo senão a graciosa
Emília, a rapariga de olhos pretos e boca perfumada. Que dizia? Não
havia em todo o vasto universo senão o seu olhar travesso e o seu sorriso
divino. Ela era o seu amor, a sua vida, o seu fim, a sua salvação.
Amara-a doida e apaixonadamente, e desde logo esse amor dera-lhe a convicção
profunda e inabalável de que não poderia viver sem ela. Não
exagerava, não estava louco, não se tratava de criançada,
como lhe haviam dito os amigos. Debalde o pai, o irmão e os amigos
haviam tentado afastá-lo da rapariga, ridicularizando aquele namoro
de criança, metendo à bulha a sua paixão ardente, censurando-a
e punindo-a por fim. Tudo era inútil. Estaria privado de razão,
seria um louco, mas amava, e esse amor era a sua vida. O pai quisera levá-lo
para os castanhais em companhia do irmão e da cunhada, mas ele fugira
de casa, e sozinho, embarcara numa pequena montaria de pesca, e seguira a
galeota do Neves Barriga, em demanda do rio Urubus. Ali tivera a inefável
ventura de achar-se muitas vezes a sós com o ídolo de sua alma,
e ouvira a grata confissão de que correspondia ao seu amor. Imaginasse
Macário se fora ou não feliz, e se essa doce intimidade de longos
dias sob as laranjeiras em flor, devia ter aprofundado ainda mais o sentimento
que os unia. Oh! era para a vida ou para a morte! Jurara, solenemente jurara
à escolhida de seu coração um amor e uma fidelidade eternos,
e ali, sem rebuço, falando a uma pessoa estranha que tinha o direito
de duvidar da sua sinceridade, o Totônio Bernardino confirmava a santidade
do seu juramento, e declarava que estava perdido, para todo o sempre perdido,
se a sorte cruel o separasse da sua querida Milu.
O rapaz fez uma pausa, sufocado de emoção. Uma lágrima
furtiva brilhou-lhe um instante nos olhos, mas ele enxugou-a disfarçadamente,
e procurando dar firmeza à voz, continuou a narração
dos seus tormentos de amor.
Tinham sido dias de inexprimível ventura os que gozara à sombra
dos arvoredos à margem do pitoresco Urubus. A mãe de Emília
acolhera benevolamente a aspiração do moço e com o seu
sorriso bondoso e meigo o protegia, dando-lhe esperança. Entregue todo
à adoração da formosa rapariga, Totônio não
sentia correr o tempo. Entretanto os dias sucediam-se, as horas voavam. Uma
tarde o Neves viera ao sítio da irmã e tivera com ela uma longa
conferência, a sós, na varanda. Depois o Neves saíra carrancudo,
e a irmã ficara abismada em pensamentos tristes, fora uma nuvem no
céu dos jovens namorados. Passaram-se dias e a mãe de Emília
contara, uma noite, à ceia, que o Bernardino Santana desaprovara muito
o procedimento do filho, e ele e o Cazuza haviam escrito ao Neves, pedindo-lhe
que acabasse com aquela criançada que podia ser perniciosa tanto a
um como a outro. O Neves viera e quisera obter da irmã uma oposição
formal ao enlace dos dois namorados… e a despedida de Totônio! A pobre
senhora recusara, mas estava receosa. O Bernardino era terrível quando
o contrariavam e o Neves, principalmente depois do casamento do Cazuza, fazia
tudo quanto o Bernardino queria. Fora uma noite de maus sonhos aquela! No
dia seguinte, sob uma grande mangueira à beira da água, Totônio
e Emília haviam chorado muito, sentindo pela primeira vez a possibilidade
duma desgraça. Totônio jurara que preferia a morte à separação,
e ela, a formosa, a incomparável Milu prometera que ficaria solteira
toda a vida, se lho não dessem por marido. Mas a irremediável
desventura não vinha longe. Nessa mesma tarde, ao voltar para a casa,
Totônio fora agarrado por quatro homens robustos, amarrado como um criminoso,
atirado ao fundo duma canoa e trazido para Silves. O autor dessa inqualificável
violência era sem dúvida o Neves Barriga com o ar pacato e a
cara de carneiro manso. Aqui Totônio encontrara o pai irritado ao último
ponto, falando em açoitá-lo, e declarando-lhe terminantemente
que o Totônio para casar passaria por cima do seu cadáver, e
que primeiro se arrasaria Silves do que se celebraria tal casamento. Já
a esse respeito se entendera com o juiz de órfãos, o Dr. Natividade,
que primeiro o recebera mal, mas sabendo que se tratava do Totônio e
da Milu, cedera a tudo que o Bernardino quisera. Totônio pensara enlouquecer
de dor. Que rápida e terrível mudança se dera na sua
vida! Lá as laranjeiras em flor, a sombra espessa da mangueira, o canto
mavioso das sabiás e dos titupururuís, e a figura esbelta e
graciosa de Emília animando o quadro, dando vida a tudo. Aqui a estupidez
da vila, o isolamento, a hostilidade, a má-vontade, o sarcasmo e o
pai, severo e implacável, prometendo pancada e fechando desapiedadamente
o futuro. O coração do Totônio não podia resistir.
Demais jurara. A morte, a morte só podia extinguir aquele amor e por
fim aos cruéis tormentos que o açoitavam…
– A morte na sua idade?! exclamou Macário, sentindo-se comovido.
– Morre-se em todas as idades, respondeu o Totônio Bernardino, com
a voz embargada pelo pranto.
E depois dum repouso, continuou.
– Queria e quero morrer. A vida é-me insuportável. Jurei a
Emília que preferia morrer a separar-me dela. Que posso contra o destino
que nos separa, senão cumprir o meu juramento? Estou, pois, decidido
a morrer, mas não queria ter uma morte inteiramente inútil como
foi a minha curta vida. O meu desejo era morrer prestando um serviço,
fazendo alguma coisa de bom, para deixar de mim alguma memória. Se
ainda durasse a guerra do Paraguai, ir-me-ia alistar como voluntário,
e daria o meu sangue pela integridade da minha pátria. Infelizmente.
essa morte gloriosa está-me interdita. Que fazer! Hoje soube do grandioso
projeto de padre Antônio de Morais, e disse comigo:
se não morrer pela pátria, morro pela religião.
– E aí está, terminou com um sorriso angélico, porque
eu vim fazer-lhe o pedido de aceitar-me como remeiro.
Macário, comovido até ao fundo da alma, tirou o lenço
de assoar para enxugar as lágrimas. Não atinava com o que dissesse
ao rapaz para o dissuadir do seu louco projeto. Felizmente para o sacristão,
ouviram-se passos no corredor, a porta abriu-se e a alta estatura de padre
Antônio de Morais destacou-se da meia sombra da tarde.
CAPÍTULO VII
Eram quatro horas da manhã. Espessa neblina erguia-se do rio, cobrindo
as árvores da beira, onde despertavam à primeira claridade da
aurora as barulhentas ciganas, enquanto a água corria mansamente e
a meio adormecida, apenas agitada de vez em quando por algum tucunaré
que sem ruído vinha à tona respirar a brisa da manhã.
Padre Antônio de Morais, sentado sobre a tolda da igarité, via
desaparecer pouco a pouco o casario branco da pitoresca Silves, reclinada
à beira do lago Saracá entre verduras eternas. Por último
sumiu-se a torre da Matriz. Havia meses que chegara a Silves, cheio de entusiasmo
e de fé, dedicando-se ao trabalho de reforma de uma paróquia
sertaneja, e já dali se partira, desiludido e triste, mas ardendo no
fogo de um novo entusiasmo, porventura mais bem fundado. Mas não era
a recordação do que passara em silves, nem tampouco a preocupação
do fim da viagem começada, que naquele momento lhe enchia a alma de
gratos sentimentos. Achava-se bem, gozava uma delícia, haurindo a pulmões
cheios o ar vivificante da madrugada, embalsamado pelo agreste perfume das
matas da beira do rio. Sentia-se renascer no meio da natureza que o cercara
na infância, e ora lhe avivava a lembrança de um passado já
longínquo, de que o separavam sete anos de estudos e de trabalhos,
e mais do que isso, a profissão adotada e as ambições
da sua alma poderosamente sacudida por duas correntes contrárias que
o levavam, todavia, ao mesmo resultado.
Via-se em pleno rio, numa embarcação pequena, surpreendendo
o sol no aparato da vestimenta matutina. Ouvia o ruído confuso da natureza
mal desperta, e tinha ímpetos de tirar fora a batina, de tomar um grande
banho purificador, de nadar atravessando o rio, de ir depois secar-se ao sol
sobre algum cedro perdido, e de internar-se então no mato até
perder-se no vasto sertão, onde passaria a vida a comer frutos silvestres
e a vagabundear pelas campinas, numa orgia de ar e de liberdade.
Era assim na meninice, na fazenda natal do Igarapé-mirim, onde para
fugir à presença tristonha e chorosa da mãe e às
brutalidades do pai, refugiava-se no campo, nas matas, na solidão do
rio, só, sem companheiro, face a face com a natureza. Desse viver ao
mesmo tempo ardente e tranqüilo o fora arrancar a solicitude do padrinho,
para o meter consigo na galeota de negócio e conduzi-lo ao Pará,
obrigando-o a viver entre gente estranha, constrangendo-lhe a índole
expansiva, sopitando o ardor do temperamento campônio para reformar
as idéias e os sentimentos, adquirir nova concepção do
mundo e da vida e formar um ideal novo de espiritualidade e meditação,
contra o qual se rebelara embalde o sangue de Pedro de Morais que lhe corria
nas veias.
Com que dor de coração se despedira da fazenda!
A mãe debulhada em lágrimas, envergonhada e tímida,
transmitira-lhe no último beijo o vago terror das coisas novas com
que se ia enfrentar. O pai, indiferente e grosseiro, insinuara-lhe o desprezo
dos homens e a filosofia do gozo, acompanhando-o até a galeota com
os olhos enxutos, os lábios sardônicos, a palavra cética
e dura. A ama de leite, a boa mãe-preta que o criara e protegera, na
fraqueza da mãe desmoralizada, contra os irmãos legítimos
e naturais, dando-lhe o apoio da sua influência sobre a domesticidade
da fazenda, abraçara-o ao embarcar, pondo-lhe ao pescoço um
bentinho milagroso e dando-lhe conselhos para evitar os diversos males que
por arte diabólica afligem a pobre humanidade.
Quando ficara só com o padrinho e os remadores na galeota de negócio,
dera-lhe uma grande dor de perder o seu arco de caça, as suas belas
flechas empenadas, o cavalo de campo, a corda de laçar bois, o belo
chapéu de couro com que o haviam presenteado no seu último aniversário
natalício. Que funda saudade daquela vida livre de campônio desocupado,
enquanto a galeota singrava as águas ao som cadenciado dos remos! E
depois, quando chegara ao Pará, ao cair da noite, deslumbrado pelos
centenares de luzes da grande cidade ativa, quando pernoitara na casa do Filipe
do Ver-o-peso, estranhando a cama, a linguagem, os hábitos todos, quando
entrara afinal no Seminário, numa grande sala branca e nua, à
hora do almoço, tropeçando no limiar com os seus sapatos grossos
de Igarapé-mirim, e provocando o riso zombeteiro de algumas dezenas
de rapazes famintos e hostis, a negra saudade da sua vida passada o acompanhava,
fazendo-o alheio a tudo que o cercava. No correr dos tempos, na marcha gradativa
do seu espírito, nas horas de desalento, quando a atenção
cansada do agro labor dos estudos repousava na contemplação
de um cantinho qualquer da natureza, entrevisto através das vidraças
poeirentas do Seminário, a pungente saudade o torturava ainda e o perseguia
sempre, no intervalo de projetos ambiciosos, no fim das meditações
filosóficas e dos arroubos de entusiasmo místico que entrecortavam
a sua existência, toda feita de lutas íntimas e de ansiedades
dolorosas. E agora que soube os ardores da mocidade impetuosa passara a calma
da reflexão e das conveniências, agora que a realidade desconsoladora
e fria devera ter sopitado aquele amor invencível de um passado morto,
e a idade, a posição, o hábito que vestia e o destino
que a si mesmo traçara, deviam trazer-lhe o completo esquecimento das
sensações da infância, voltavam as recordações
de chofre, e os quadros da meninice, reaparecendo com todo o brilho e frescura
dos tempos idos, de novo e com maior força ainda, evocavam idéias,
sentimentos e sensações que em tropel confundiam-se no seu cérebro,
e davam-lhe um apetite monstruoso de ar, de gozo, de liberdade sem peias,
pondo-o numa espécie de demência, como se um perfume sutil o
entontecesse…
O dia ia passando. O ruído cadenciado dos remos, durante horas a fio,
embalava o sonho de padre Antônio de Morais. O sol do Amazonas punha
cintilações de cobre polido na superfície do rio e aquecia
a igarité, cuja tolda de palha dava estalidos secos ao leve balanço
que o movimento lhe imprimia.
Macário acordou com a luz do sol a requeimar-lhe o rosto. Mal embarcado
adormecera, reatando o sono interrompido, mas agora, tendo completado a sua
conta, despertava bem disposto, e achando-se deitado sob a tolda da igarité,
vendo a batina do vigário caindo da coberta, e pelas costas as camisas
de riscado dos dois remeiros, não pode deixar de pensar com um sorriso
de malícia no modo por que a sua diligência conseguira pôr
em caminho de realização o sonho extravagante de padre Antônio
de Morais.
Depois que o vigário havia recusado o oferecimento do Totônio
Bernardino, Macário vira-se novamente entalado entre as pilhérias
do Chico Fidêncio e as instâncias do sacerdote que falara em procurar
um companheiro mais ativo do que o Macário e menos criança do
que o Totônio Bernardino. Havia nas palavras de S. Rev.ma uma referência
clara àquele bêbado do José do Lago, que ia visivelmente
ganhando terreno. Felizmente Macário tivera uma concepção
luminosa, em que punha à prova o seu tão estimado maquiavelismo,
salvador das apuradas circunstâncias em que se via. O passo era realmente
digno de um rapaz inteligente, de uma sagacidade rara. Tratava-se de satisfazer
o senhor vigário, facilitando-lhe os meios de sair da vila, na intenção
de dirigir-se ao porto dos Mundurucus, mas era preciso prever o caso, embora
improvável, de perseverar padre Antônio naquela loucura de catequese,
a qual, era coisa decidida, deveria cessar nos três primeiros dias de
viagem,’ quando S. Rev.ma se visse sem o belo cômodo da macia rede de
linho, sem o pãozinho fresco pela manhã, barrado de alva manteiga
inglesa, regado por um delicioso café com leite, feito à moda
de padre José, nutriente e espesso. Padre Antônio não
resistiria às saudades de tanta coisa boa, todavia era preciso estar
de prevenção; S. Rev.ma era um homem diferente dos outros, tinha
alguma coisa de esquisito e trazia ultimamente no olhar a fixidez absorvente
de uma idéia.
O plano, em si, era duma simplicidade admirável, e consistia em ocultar
aos remeiros o fim de S. Rev.ma, fazendo-lhes crer que se tratava duma viagem
de recreio aos castanhais do Caruma. Era exatamente o contrário do
que Macário fizera até então. De tal arte, tinha padre
Antônio muitos dias de jornada para recuperar a calma perdida e, na
dureza do lastro da tolda, na monotonia da viagem em canoa, rio abaixo rio
acima por entre filas de aningais mirrados, encontraria o desejo da macia
cama, dos bons passeios a pé nos pitorescos arrabaldes de Silves, tranqüilo
e repousado como um verdadeiro pastor de aldeia. E se por inconcebível
pertinácia o padre não descoroçoasse, na resistência
assustada dos tapuios, invocando a boa fé dos contratos, veria a impossibilidade
de levar a efeito a desmarcada loucura, voltariam todos, honrados e contentes,
a gozar em paragens cristãs a suavidade da vida.
Num santo horror do pecado da mentira, Macário tivera escrúpulos
de consciência na adoção deste engenhoso plano, pois consistia
em enganar ao mesmo tempo o padre e os remeiros, e ele, homem de verdade e
de consciência, fora obrigado a valer-se da máxima que o Chico
Fidêncio atribuía ao clero católico em geral e aos jesuítas
e lazaristas em particular – que o fim justifica os meios. De que se tratava?
De calmar a excitação de padre Antônio por meio de uma
diversão, de ocultar aos tapuios o fim duma viagem que, na opinião
íntima e reservada de Macário, não se devia realizar.
Não podia haver mais honestidade, nem mais inocente emprego daquele
hábil maquiavelismo com que o dotara a natureza.
As circunstâncias tinham-no servido otimamente.
Dois rapazes de um arraial vizinho, no Urubus, alheios à intenção
de converter selvagens alimentada por padre Antônio de Morais, haviam
trazido à vila uma canoa de lenha; e Macário, numa das suas
explorações pela Rua do Porto, vira-os, e fora logo apalavrá-los
para o remo, dizendo que se tratava de ir à boca do Guaranatuba. Em
seguida Macário fora levar a grata nova ao senhor vigário. Apalavrara
dois rapazes do arraial, robustos e bem comportados, um de nome Pedro, o mais
velho, e outro João, o mais magro. Eram caboclos legítimos,
da tribo maués, ao que pareciam, mas muito boa gente. Estavam prontos
a partir quando S. Rev.ma o desejasse, mas ele tomava a liberdade de recomendar
a S. Rev.ma que não conversasse muito com os tapuios, e o melhor, para
obedecerem mais facilmente, era não lhes falar na missão.
Padre Antônio soltara um grande suspiro de alívio, acreditando
na intervenção da Divina Providência. Aquele fato era
sinal iniludível da aquiescência do céu aos seus projetos.
Macário sorrira então, e sorria agora com finura, sentindo a
igarité deslizar sobre a superfície calma do rio, certo de que
a viagem cessaria quando lhe aprouvesse, a ele Macário de Miranda Vale,
proferir uma palavra…
Sentara-se e enfiara o olhar pela abertura da tolda. Dois renques de árvores
dum verde-claro corriam aos lados da embarcação. A água
cor de barro estendia-se numa toalha lisa. O sol dardejava raios de fogo,
torrando o japá da tolda. A isto chamava padre Antônio de Morais
a grande natureza virgem…
O rumor cadenciado dos remos durou o dia inteiro. À tarde descansaram
num sítio de pescador, mas saíram logo depois da meia-noite,
pela impaciência em que estava o senhor vigário de deixar quanto
antes o Paraná-mirim e de chegar às águas volumosas do
Amazonas.
Macário não gostara da lembrança de sair à meia-noite,
já por duas vezes seguidas interrompia o sono da madrugada, e a dormida
sobre a tolda do igarité não era tão agradável
como na casinha do pescador, rústica e pobre, mas que tinha os seus
encantos por uma vez.
Não fossem lá pensar que Macário era inimigo da rusticidade
campestre, uma vez na vida! Quando amanhecera, já na corrente principal
do grande rio, apertado pelas altas ribanceiras que o impedem de invadir todas
as terras, padre Antônio gritara aos rapazes que remassem, porque o
céu ameaçava tempestade. Macário olhara para o céu.
Uma nuvem negra vinha vindo do sul, e com grande velocidade crescia para todos
os pontos, alastrando como um borrão de tinta. A perspectiva não
era das mais risonhas. Às duas horas da tarde, quando mais intenso
era o calor, desencadeou-se a borrasca, mas, por felicidade, já se
achavam da outra banda. Como a chuva fora muita, houvera idéia de procurar
um abrigo. Não havia ali sítio algum, mas à beira do
rio, a meio escondida entre as árvores, uma maloca abandonada erguia-se
sobre quatro paus roliços e toscos. Ali desembarcaram. Padre Antônio
recebera alegremente o contratempo, como uma provação mesquinha
em comparação com o que esperava sofrer na sua excursão
evangelizadora. Os canoeiros pareciam indiferentes, aproveitavam a folga obrigada
do resto do dia e da noite, sob o reles abrigo da maloca, pacatamente acocorados
ao pé do lume improvisado com ramos secos, bebendo chibé e fumando.
Macário não estava contente. Não, não estava.
Deitado no chão úmido da palhoça, ouvindo a chuva cair
torrencialmente durante a tarde e a noite, pensava que se aquelas bátegas
de água estivessem lavando as telhas do presbitério de Silves,
e ele, Macário, atravessado na boa rede branca, que herdara do defunto
vigário, uma doce enfiada de sonhos, provocados pela vizinhança
da Luísa Madeirense, teria povoado agradavelmente o sono repousado.
A viagem continuara por três longos dias, depois de terem, à
boca do Ramos, encontrado um regatão de nome José de Vasconcelos,
que lhes ensinara o caminho para chegar ao grande rio Abacaxis, enfiando pelo
extenso e piscoso furo de Uraná. O descontentamento do Macário
crescia, com a diminuição constante de víveres que lhe
punha em risco a reputação de previdente e arranjado. Faltava
principalmente a farinha porque o malditos tapuios não perdiam ocasião
de esvaziar grandes cuias de chibé, fazendo consistir a sua alimentação
quase exclusivamente nessa mistura refrigerante de farinha com água
de que o sacristão também gostava – principalmente com açúcar
– mas se privava estoicamente, pensando no tempo a gastar na volta. Não
se renderam os rapazes às razões com que o vigário lhes
recomendava não abusassem do chibé – mas como o sacristão
fosse cautelosamente pondo a farinha a bom recado, começaram a espreguiçar-se,
a fazer pausas longas, e a olhar atentamente para o céu, na esperança
de nova tempestade que lhes proporcionasse o apetecido descanso ao abrigo
de alguma das malocas da beirada.
Seria talvez tempo de proferir a palavra eficaz que devia determinar a volta
da igarité às margens pacatas do lago Saracá? Macário
hesitava, receando o desapontamento de padre Antônio de Morais, embebido
na contemplação ardente e entusiástica daquelas árvores
sem frutos, daqueles cipós intrincados, daquela massa de água
intérmina e monótona. O vigário não falava, quase
não se movia, passando a maior parte do dia sentado sobre a coberta
da tolda, expondo-se ao sol tórrido do Amazonas, com risco de alguma
febre. Comia muito pouco, ao contrário do que lhe sucedia de costume.
Seria fastio do pobre pirarucu e da carne salgada do farnel, ou, na contemplação
da natureza virgem, esquecera as necessidades corpóreas! Havia na sua
fisionomia uma resolução tal que Macário sentia-se sem
coragem de proferir a palavra fatídica que o devia arrancar àquele
sonho perigoso. Que sucederia quando o padre se visse impossibilitado de prosseguir
na empresa? Padre Antônio era um homem delicado, cortês, manso,
falando baixinho e doce, mas desde que se lhe metera nos cascos a idéia
de converter selvagens parecia transformado. Um receio vago apoderava-se do
coração de Macário, obrigando-o a contemporizar, a adiar
a volta. Entretanto a brincadeira já se ia mudando em maçada.
Quatro noites contara ele pelos dedos, e cinco dias já se iam passando,
que se achavam ali no duro estrado daquela igarité, sentindo as pernas
entorpecidas pela falta de exercício, e o estômago a acusar as
saudades da carne verde e do pão fresco. Os víveres escasseavam,
teriam de ver-se em breve reduzidos a duras privações, muito
fora de propósito naquela viagem que ele imaginara toda de passeio
e de prazer. Era tempo de proferir a grande palavra, arrostando com a zanga
de padre Antônio de Morais.
Mas como fazê-lo? Nada mais simples. Na primeira pausa que os remeiros
fizessem para descansar, Macário disfarçado e sagaz chegar-se-ia
a eles, e com o modo mais natural deste mundo, diria animando-os: – Vamos,
rapazes, remem! Pouco nos falta para chegarmos ao porto dos Mundurucus. E
devemos lá chegar quanto antes. Quem sabe se algum cristão não
está lá à nossa espera para o salvarmos de ser comido
pelos gentios? O efeito seria infalível. Os tapuios, irados, pediriam
satisfações, e então Macário, complacente, explicaria:
– Não se assustem. Vamos ao porto dos Mundurucus, mas indo o senhor
vigário conosco não há perigo algum. Se os índios
pegassem a qualquer de vocês desgarrado, comiam-no com certeza assadinho
de espeto, está claro. Mas em companhia do senhor padre, isso não,
não há perigo. S. Rev.ma vai mandado por Deus Nosso Senhor e
por Nossa Senhora do Carmo converter os mundurucus ao cristianismo. É
certo, portanto, que os mundurucus não o hão-de querer matar!
Então o Pedro e o João pegariam os remos e virariam de bordo,
proa para baixo, apesar de todas as instâncias de padre Antônio
de Morais. Toda a dificuldade estava, apenas, em sofrer as conseqüências
prováveis do desespero de S. Rev.ma! Macário hesitava, e enquanto
isso, a canoa continuava, impelida pelos remos. À proa da igarité
o grande rio Abacaxis corria para o sul, a perder de vista, fechando na espessura
das altas florestas da sua margem a boca do Uraná. Na vastidão
do rio, nenhuma canoa, nenhum sinal de vida aparecia, e a espessura da floresta
ocultava a solidão ignota do deserto amazonense. Começava a
selvageria ali. A impressão que padre Antônio recebera, absorvia-o
no pensamento religioso da missão. Acudia-lhe a idéia de encontrarem
breve os ferozes munducurs.
A imaginação exaltava-se. Já cuidava em dirigir a palavra
aos índios, chamando-os ao seio de Cristo, persuadindo-os a abandonarem
a vida errante de guerras e roubos para se entregarem ao doce jugo da civilização
brasileira. Previa-os relutantes, ébrios de ódio, ardentes de
vingança, agarrando o missionário, amarrando-o a uma árvore,
crivando-o de setas como a outro S. Sebastião. E aquele martírio
prelibado entusiasmava-o, achando-se grande e só na vasta amplidão
do deserto. Aquele, sim, era um ideal digno de padre Antônio de Morais!
Aquele o templo para as suas orações, aquele o teatro para os
seus merecimentos, aquela a preocupação para o seu espírito
religioso e austero. Uma ambição desmarcada enchia-lhe o cérebro
e o perturbava. Mártir de Cristo, o seu nome, até ali obscuro,
ressoaria pelo mundo, levando os ecos às gerações da
posteridade. Seria o Francisco Xavier das florestas amazônicas, o Apóstolo
das Índias Ocidentais, e um dia o Hagiológio romano contaria
outro Santo Antônio, que não fora vítima resignada das
tiranias de Ercelino.
De súbito a igarité parou.
– Que é isto, patrícios? perguntou.. padre Antônio, descendo
da tolda e aproximando-se dos remeiros. Por que deixaram de remar?
– Mundurucu, responderam ao mesmo tempo, o João e o Pedro, apontando
a esteira do Abacaxis, à proa, unindo-se ao céu azul.
– Que estão dizendo, exclamou Macário, sem poder endireitar
as pernas.
Padre Antônio olhou sofregamente para todos os lados, esperando ver
realizar-se naquele momento o seu sonho de martírio. Não viu
mais do que as duas margens do rio, prolongando renques de árvores
até acabarem numa fita negra. A igarité uma vez cessado o movimento
impulsor, descambava, cedendo à força da correnteza. Toda a
vastidão do rio respirava o mais absoluto sossego.
– Onde estão os mundurucus? perguntou Macário, com dolorosa
ansiedade.
Pedro deu uma gargalhada e explicou o caso. Não havia ainda mundurucus,
mas dobrando uma ponta do Abacaxis, que já se avistava ao longe, entrava-se
no Guaranatuba, e ia-se direito às paragens infestadas por índios
bravos. Ora João e Pedro não queriam continuar a viagem. Preferiam
voltar para o Amazonas, não estavam para ser flechados como tartarugas.
Uma gargalhada de João fez ressaltar a tolice de se exporem ao risco
que indicara a comparação achada pelo companheiro.
– João e Pedro, continuava este com loquacidade desusada, são
maués, cristãos, graças a Deus, mas ainda maués.
A tribo de maués desde que o mundo é mundo e o mar cercou as
terras, vive em guerra com os mundurucus. Maué que visse mundurucus
quebrava logo o cachimbo e não comia mais farinha. João e Pedro
ainda queriam comer farinha e fumar tabaco.
Macário triunfava. O seu plano surtira bom efeito, e, admirável
resultado do seu engenhoso maquiavelismo! nem fora preciso proferir a palavra!
Agora contra a relutância invencível daqueles tapuios teimosos
e prudentes, quebrar-se-ia a vontade do senhor vigário. Mas para não
descobrir ao padre o expediente o sacristão começou a blaterar
contra a inconstância dessa súcia de caboclos vadios e medrosos
cuja vida se resume em comer e dormir, e cujo egoísmo preguiçoso
põe em apuros os brancos confiantes.
– Ora que tinha, terminou Macário, que fôssemos todos às
tabas mundurucuas, embora arriscássemos a vida? É verdade que
podíamos ser comidos, mas seria no serviço de Deus Nosso Senhor!
Padre Antônio, desesperado, tentou vencer a resistência de João
e de Pedro com rogos, ameaças e promessas. Foram inabaláveis.
Somente pôde S. Rev.ma conseguir que, mudando de rumo, remassem até
o próximo lago de Canumã, onde poderiam encontrar algum sítio
de gente civilizada.
– Ara vamos lá, senhor padre, disse o Pedro fazendo valer a condescendência.
E começaram a remar molemente. Ao cair da noite acharam-se à
boca do lago, no porto dum pequeno sítio de pescador, sentinela perdida
da civilização naqueles ermos.
Padre Antônio desembarcara com o Macário, a fim de ver se acharia
por ali dois rapazes que quisessem substituir o João e o Pedro na condução
da igarité ao porto dos Mundurucus. Padre Antônio entrou na casinha
de palha, barrada de preto, situada a meia encosta duma ribanceira suave.
Uma tapuia, ainda moça, vestida com uma simples. saia de chita pirarucu,
acocorada nos calcanhares, atiçava fogo a uma panela de peixe, e duas
crianças nuas, de duras melenas negras caídas sobre os olhos,
rojavam-se pelo chão úmido da casa, brincando com três
cachorros magros, que se quiseram lançar sobre os visitantes, apenas
os avistaram.
– Tá quieto, Jaguar, sossega, Pretinho, tá quieto, Paqueiro,
disse a mulher, ameaçando os cães com uma colher de pau.
As crianças cessaram de brincar, pasmando para os dois desconhecidos
que tão de improviso as perturbavam. Padre Antônio com a mão
direita arredondou no ar o sinal da cruz:
– A paz do Senhor seja convosco, irmã.
– Amen, dico vobis, acudiu Macário com gostosa reminiscência.
A tapuia rojou-se aos pés do padre, balbuciante e trêmula, e
veio beijar-lhe a fímbria da batina. Os pequenos, acocorados no chão,
olhavam, espantados. Os cães cercavam o sacristão, cheirando-o
desconfiados.
Padre Antônio expôs então o motivo da visita. Mas a tapuia
o desenganou logo, muito tímida, pedindo mil desculpas. Não
era culpa dela! A não ser o marido, o seu Guilherme que estava ausente
e só voltaria na outra semana, ninguém por aquela redondeza
se atreveria a adiantar-se pelo Abacaxis acima, e menos pelo Canumã,
que devia ser agora o caminho preferido, por ficar mais perto, desde que a
igarité, em vez de navegar direito pelo Abacaxis, subira até
o lago do Canumã. Seu Guilherme fora à salga no furo de Uraná,
e ela, a Teresa, ali ficara com os dois filhinhos, sem medo nenhum, já
acostumada, porque sabia que os tapuios bravos nunca chegariam à boca
do lago, e quando chegassem não lhe fariam mal algum, porque o seu
Guilherme era amigo deles, fornecia-lhes aguardente e tabaco a troco de castanhas
e de guaraná. O marido conhecia muito bem o caminho do porto dos Mundurucus,
e poderia levar o senhor padre até lá, se não estivesse
agora na salga do pirarucu.
Padre Antônio agradeceu a boa vontade da Teresa, e voltou a entender-se
com o João e o Pedro. Procurou convencê-los a continuar a viagem,
dizendo-lhes que não lhes sucederia mal algum. Ele, padre Antônio,
ia como missionário a chamar os índios para o grêmio do
cristianismo. Ia pregar-lhes a verdadeira religião e o João
e o Pedro, associando-se a esta nobre empresa, ligariam para sempre o seu
nome à gloriosa catequese dos mundurucus, prestando um grande serviço
a Deus Nosso Senhor, que morreu na cruz para nos salvar, a nós todos,
brancos e tapuios, das garras do demônio.
Macário seguira os passos de S. Rev.ma e muito resignado, juntou as
suas instâncias às exortações de padre Antônio
de Morais. Provavelmente morreriam todos naquela santa empresa, disse ele,
antes que a palavra de paz e amor que S. Rev.ma levava pudesse chegar aos
ouvidos dos mundurucus, porque as flechas andavam mais depressa do que as
vozes. Mas uma tal morte seria muito meritória, faria do João
e do Pedro santos da Igreja, S. João Maué, S. Pedro do Urubus,
tais como os da Matriz de Silves. Demais se morressem iriam para o céu
em companhia de S. Rev.ma e dele, Macário de Miranda Vale, que tinha
tanto amor à própria pele como qualquer outro.
– Muito bem, Macário, disse padre Antônio, satisfeito e admirado.
Nunca esquecerei os teus bons serviços.
– Saberá V. Rev.ma que ainda não fiz nada.
E Macário continuou a apertar com os maués. E como se lhe ocorresse
de súbito um argumento de peso, foi à tolda, muniu-se de uma
boa ração de fumo e aguardente e ofereceu-a aos endurecidos
rapazes.
O João e o Pedro, com lágrimas nos olhos, prometeram continuar
a viagem na seguinte madrugada, com a condição, porém,
de que se lhes daria licença de voltar logo que avistassem o aldeamento.
O Padre e o sacristão fariam o resto do caminho por terra.
Pela primeira vez naquela viagem padre Antônio conseguira conciliar
o sono. Estava prestes a realizar o seu grandioso projeto. Estava contente
consigo mesmo. A melancolia desaparecera como por encanto, não mais
as tristes idéias de aniquilamento e morte lhe ensombravam a imaginação,
não mais estremecia de terror pensando na vida eterna. A fadiga da
viagem, a novidade macia da rede e a idéia de estar livre das mesquinhas
ocupações da sua modesta vigararia, causavam-lhe uma satisfação
íntima, uma alegria plácida que o convidavam a um sono tranqüilo.
Quando acordou os primeiros raios do sol douravam os ramos de pindoba nova
que cobriam a casa, e enchiam o negro quarto de uma claridade tênue
que mal anunciava o dia. A fresca da madrugada induzia a continuar o sono
interrompido por força do hábito matinal do Seminário,
e as umidades da noite não absorvidas ainda, prendiam o corpo à
rede por uma sensação de agradável frio.
Mas dormira muito. Um projeto elevado e nobre engastara-se no seu cérebro,
e não dava tréguas à indolência. Não podia
ficar entregue a repouso sonolento quem pretendia o martírio na catequese
de selvagens bravios.
Sentia o peito dilatar-se a cada pensamento elevado, o coração
tinha sobressaltos entusiásticos que não permitiam descanso
aos nervos excitados. O movimento e a ação tornavam-se necessários
como diversão à atividade desordenada do espírito, o
alvoroço interior tinha de traduzir-se forçosamente na agitação
externa. Mal percebeu que raiava o dia, saltou fora da rede, e foi acordar
Macário que roncava todo envolvido nas varandas da maqueira.
Abrindo a porta do quarto, que dava para o terreiro, entrou por ela o dia,
um esplêndido dia de agosto, cheio de vozes de pássaros na floresta
e de ruído de peixes no rio. O sol parecia sair de um banho voluptuoso
com os raios brilhantes mitigados pelas umidades da atmosfera, impregnada
de vapores aquosos que surgiam do Canumã. As árvores, o capinzal,
o terreiro estavam cobertos de abundante orvalho. As árvores da beirada
recendiam. A natureza amazônica revivia com mais pujança aos
beijos do sol bem-amado.
Padre Antônio exaltado por um sentimento religioso ante o espetáculo
daquela manhã, dirigiu-se ao porto a chamar os camaradas, que deviam
ter pernoitado na canoa. Na superfície calma e lisa do lago, na esteira
sombria do furo do Uraná, abrigado da luz matutina pelas árvores
da beira, nenhuma embarcação se divisava. O porto estava deserto.
O vigário e o sacristão, numa terrível ansiedade, correram
pela margem, chamando em altas vozes os remeiros pelos nomes, mas somente
o eco lhes respondia, o eco da outra banda, entrecortado pela gargalhada zombeteira
da maritaca.
A situação era clara como o dia que se levantava por entre
os aningais da vargem.
Os tapuios haviam fugido na igarité de padre Antônio, levando-lhe
a roupa, as previsões, tudo.
Passados os primeiros assomos de indignação e o abalo da surpresa,
o sacristão a custo continha ‘a alegria, apesar da perda da roupa e
de um belo chicote de tabaco de Irituia, furtado pelos camaradas. O João
e o Pedro teriam sido perfeitos e mereceriam todos os aplausos se tivessem
esquecido à beira da água a roupa e o tabaco. Mas, em todo o
caso, que valia um tal prejuízo em comparação com o malogro
da insensata tentativa do senhor vigário? Logo que voltasse a Silves
iria ao tenente Valadão, queixar-se do furto, e obteria a reparação
do agravo, apesar da moleza habitual do subdelegado. Macário era esperto
e havia de descobrir o paradeiro dos ladrões, ainda que tivesse de
recorrer à Chica da Beira do Lago para fazer a sorte do balaio. Descobriria
tudo porque os maués eram uns pacovas sem habilidade alguma, capazes
de ir oferecer a igarité ao próprio Valadão. Então
Macário vestiria a sua roupa e fumaria o seu tabaquinho cheiroso do
Tapajós muito a salvo dos tais mundurucus, gente da sua especial ojeriza,
se gente se podia chamar. Isto de missões e catequeses não fora
feito para um homem pacato e temente a Deus, que nada mais queria do que levar
a sua vida descansada. Metera-se a acompanhar a V. Rev.ma naquela inaudita
excursão pastoral, pelo receio de perder com a recusa o emprego rendoso
e cômodo. Mas desde que a Providência arranjara tudo do melhor
modo, com um macavelismo invejável, salvando o amor-próprio
do padre e livrando o sacristão de ser comido por selvagens, o que
na verdade era pior do que perder dois ternos de riscadinho e um chicote de
tabaco, Macário devia, como bom cristão, curvar-se ao decreto
divino e resignar-se à modesta ventura de não vir a figurar
no calendário romano. Não devia imitar o desespero de padre
Antônio de Morais, que cismava encostado a uma árvore do porto,
com o olhar embebido na superfície do lago, procurando ali a solução
de um problema insolúvel. Para Macário estava claro. Não
havia outra solução senão voltar para Silves. Para cortejar
a dor do senhor vigário, como moço bem-criado, mostrou-se contrariado
com o resultado daquela infeliz viagem. Tomou um ar de resignado desgosto
e um tom de irremediável pesar:
– Então, senhor padre vigário, não há remédio
senão voltar para a vila?
– Não, nunca! exclamou padre Antônio, como se acabasse de tomar
uma resolução enérgica.
E vendo o efeito da negativa no rosto de Macário, desculpou-se:
– E como voltar sem canoa?
– E como continuar a viagem sem canoa? perguntou o sacristão meio
desanimado.
– Deus Nosso Senhor providenciará, sentenciou padre Antônio,
com muita confiança.
E acrescentou falando muito tempo e desabafando a contrariedade sofrida no
incidente, que estava resolvido àquela história de catequese,
e a levaria a efeito, custasse o que custasse. Não perderia cinco dias
de viagem. Que diriam na vila se o vissem voltar da foz do Canumã sem
ter avistado um só mundurucu? Pensariam que inventara a história
da fuga dos canoeiros e o cachorro do Chico Fidêncio divertir-se-ia
com o episódio no Democrata de Manaus, fazendo-o passar por um charlatão
religioso. Não era homem que prometesse fazer uma coisa e a não
fizesse, principalmente tratando-se de coisa tão santa como a conversão
de selvagens ao cristianismo e à civilização, a ponto
de o senhor bispo pretender ocupar-se dela muito a sério. S. Ex.a Rev.ma
imaginara a construção de um navio-igreja, que se chamaria Cristóforo,
isto é, o que leva a Cristo, e navegaria todos os grandes afluentes
do Amazonas, evangelizando os povos. Era uma idéia grandiosa, digna
do cérebro do ilustre prelado paraense, e, levada à prática,
prestaria os maiores serviços à civilização daquelas
paragens. Infelizmente a construção demandava muito dinheiro;
era preciso fazer um grande barco a vapor, apropriado às solenidades
imponentes do culto católico, com o luxo que o senhor bispo gostava
de desenvolver nas cerimônias cultuais para exaltar a imaginação
dos crentes e agradar aos indiferentes de bom gosto que o lado estético
da cerimônia atrai e concilia. Enquanto o fervor religioso, invocado
pelo senhor bispo, não vinha derramar na Caixa Pia as quantias necessárias
à construção do Cristóforo, forçoso era
que os missionários isolados, para não deixar interrompida a
obra de catequese, se aventurassem pelos sertões ínvios do Amazonas
com o meio de locomoção que as circunstâncias lhes deparassem,
pois quanto maior fosse o sacrifício mais meritório seria e
mais digno da consideração de Deus.
– Demais, concluiu, gesticulando animosamente, para voltar a Silves é
preciso uma canoa, e desde que eu a tenha à minha disposição,
nenhuma razão me impedirá de prosseguir na viagem.
E andaram ambos para a casa, padre Antônio cabisbaixo e pensativo,
Macário sentindo que não tinha a energia necessária para
resistir à vontade do superior, acostumado, como estava, a respeitá-lo,
não só pela posição como pelas suas raras virtudes
entre as quais sobressaíam, impondo-se à sua profunda admiração,
a castidade e o desinteresse nas coisas de dinheiro. Um padre que era uma
coisa espantosa, mas que infelizmente dera agora para aquela história
de catequese, que não havia como tirar-lhe da cabeça. Mas in
petto Macário afagara a esperança de, com alguma nova artimanha
do seu maquiavelismo, safar-se da rascada, para o que ia desde já prometendo
dez réis a Santo Antônio, não duvidando chegar ao sacrifício
das suas duas patacas se não soubesse que o santo só recebia
dez réis.
A tia Teresa, a mulher do pescador, ficara muito admirada da fuga dos remeiros,
mas não vira remédio pronto. O seu homem estava no furo de Uraná
ou no lago da outra banda, e só poderia regressar daí a uma
semana, se não ficasse lá todo o mês.
– Não haverá aqui por esta vizinhança alguma embarcação?
perguntou padre Antônio de Morais.
Não havia. Onde havera de sê incontrá ua igarité
por estes mondo? respondera-lhe a tapuia na linguagem dura e arrastada.
Para cima do rio, continuou, gesticulando gravemente, cantando as palavras
uma a uma, prolongando as vogais, na impassibilidade de quem fala somente
para se ouvir a si próprio; para cima do rio não havia morador
nenhum, e lá para baixo eram poucos, o Chico Pequeno, o Pipirioca e
o Jacaretinga. E depois, respondendo a uma pergunta que adivinhava nos olhos
do padre:
– ‘Stão na sarga, disse com um gesto largo, indicando distância.
E prosseguiu no tom dolente e monótono das caboclas, cortando as frases
para acentuar uma palavra, prolongando o som das vogais até penetrarem
bem no ouvido do interlocutor.
– Havera de achá ……. canua. Só sê fosse alguma…
montarizinha… de pescá, como seu Guierme… tem… uma… munto…
velha, bem velhi….nha…. que nem nhá vó.
– Onde está essa montaria? indagou sofregamente padre Antônio.
– ‘Stá nu purto, respondeu a tia Teresa. E continuou a deleitar os
ouvidos do Macário com a sua melopéia plangente.
– Saberá vence, nhã branco… que é…p’ra …….
us la… drão dus ta. .. puios… não ……. ‘stá iscondidi….nha….
nas cana… rana…
E voltando-se para o vigário, a convencê-lo da inutilidade da
pesquisa:
– Havera dê… servi… não serve. O dia… cho da muntari…
a é ve… lha, e peque… tita, que só p’ra cu…. . rumi.
Macário e padre Antônio foram ver a canoa. Era um pequeno casco,
feito toscamente de um tronco de cedro, medindo doze palmos de comprimento
sobre dois e meio de boca. Estava encalhada entre as canaranas do porto. Era
velha, como dissera a tia Teresa, e tinha apenas um banco além do jacumã.
Era impossível arriscar a continuação da viagem naquela
casca de noz. Padre Antônio voltou para a casa, impaciente.
Aquela noite não dormira, nervoso e agitado pela impossibilidade material
de prosseguir no seu elevado intento, burlado pela reles traição
de dois caboclos estúpidos e medrosos. Examinara uma por uma as probabilidades
de sair daquela conjuntura difícil, procurando dominar a indignação
que lhe subia do peito ao cérebro, numa onda efervescente de projetos
de vingança. Mas não vira outra solução senão
esperar pacientemente no sítio da Teresa a volta do pescador Guilherme,
que mais tarde ou mais cedo regressaria depois de esgotar em tabaco e aguardente
o produto da sua demorada pesca. Esta solução indeterminada
e dependente do capricho do pescador ausente era a que menos lhe sorria. Vinha-lhe
um vago receio. Não confiava demasiado na firmeza das próprias
resoluções, e cobrando medo às tentações
do Inimigo, cada vez que percebia em si a dúvida, a hesitação,
a fragilidade da vontade que formavam talvez a base do seu caráter,
julgava que o único meio de dominar o seu organismo contraditório
e inconseqüente era forçá-lo a uma atividade devoradora
que não desse tempo às paixões nem azo ao demônio
de lhe senhorearem o corpo.
Comera mal aquele dia, ou antes não comera nada, e velando até
alta noite, as exigências dum estômago acostumado a nutrição
abundante causavam-lhe uma fraqueza física, cuja origem não
percebera a princípio, mas que o lançara num desânimo
profundo. Acreditara por momentos que teria de renunciar para sempre a sua
querida missão evangélica. Adeus, glória e sonhos dum
porvir grandioso! Adeus, ilusões da mente criadora! Adeus, templos
colossais, florestas enormes, povos conquistados pela palavra, puras invenções
dum espírito reduzido à impotência! Antônio de Morais,
o padre sonhador, voltaria à vida pacata, monótona e vegetativa
de pároco de aldeia, coberto do ridículo da sua missão
falha. Seria restituído às ladainhas, cantadas numa voz fanhosa
pelas pretas velhas, de lenço branco à cabeça; à
palestra insípida das tardes à porta do coletor; aos longos
dias sem ocupação e sem trabalho, em que se embalaria suavemente
na maqueira da sala de jantar, para refrescar a calma dum verão equatorial,
numa sonolência mórbida, com o corpo fatigado de repouso e o
espírito a vagabundear nas regiões escuras de teorias extravagantes
e heterodoxas; a preguiça a tolher-lhe os membros e a fechar-lhe os
olhos para não ver o breviário caído relaxadamente abaixo
da rede, de capa para o ar e folhas amarrotadas; e o demônio a insinuar-lhe
no peito o ardor da concupiscência no olhar provocador e no sorriso
desvergonhado da Luísa Madeirense, a passar e repassar pela cerca divisória,
cantarolando a Maria Cachucha e levantando bem alto as saias para as não
macular na lama do quintal. E a um canto, os olhinhos maus do professor Fidêncio,
a perscrutar-lhe os mais íntimos pensamentos, a adivinhar-lhe as fraquezas
sob a aparência severa de padre de S. Sulpício, para as estatelar
ao comprido numa coluna do Democrata.
Esses pensamentos aumentavam-lhe o mal-estar ocasionado pela crescente sensação
de debilidade.
Levantou-se, riscou um fósforo e depois outro; e à luz rápida
e intermitente de fósforos sucessivos, enganou a fome com uma boa cuia
de água, precedida dum punhado de farinha que fora buscar ao paneiro
da Teresa, a um canto da sala. Sentia-se confortado. As idéias tristes
e desanimadoras fugiram à claridade da luz, como assustados morcegos.
Padre Antônio, ao romper do dia, fora ao porto ver se aparecia alguma
canoa. Ficara muito tempo passeando à beira do lago, molhando os pés
na umidade das canaranas, atento ao menor ruído de remos, alimentando
uma vaga esperança de ver romper à boca do furo de Urariá
a sua igarité remada pelo João e pelo Pedro, tocados de sincero
arrependimento; ou fantasiando um regatão que o ardor do ganho trouxesse
àqueles confins da civilização para vender as suas chitas
de ramagens e os seus terçados americanos; ou ainda acreditando que
o pescador Guilherme, sentindo súbitas saudades da mulher e dos filhos,
largara a vida regalada das salgas, o lundu e as cuias de aguardente para
regressar ao sítio na sua excelente canoa veloz e segura, experimentada
nos tropeços da navegação fluvial. A superfície
do lago continuava deserta e lisa, agitada, apenas, de vez em quando, por
algum pirarucu que vinha à tona da água respirar a brisa da
manhã.
Macário, depois duma noite bem dormida, chegara ao porto fresco e
bem disposto, de mãos aos bolsos, assoviando o Vinde espírito
de luz. O vigário parecia desacoroçoado. Todavia, como por desencargo
de consciência, S. Rev.ma convidou-o a examinar de novo a montaria de
pesca que na véspera a tia Teresa lhe mostrara, oculta entre as altas
canaranas.
– Saberá S. Rev.ma que está de todo imprestável, sentenciou
Macário depois. de desdenhosa vistoria.
Padre Antônio não se deu por convencido. Convinha saber se a
tia Teresa teria algum breu e um bocado de estopa.
Teresa viera ao porto buscar água. Tinha o breu e a estopa, nem poderia
a casa dum pescador estar desprovida daquelas coisas indispensáveis.
Voltava já e havia de trazê-las ao senhor padre.
Então padre Antônio de Morais dissera sorrindo que ia fazer-se
calafate. Não que se quisesse realmente servir daquela canoinha de
criança, mas para matar o tempo e prestar um serviço ao dono
da casa, porque, enfim, a montaria ainda podia servir para os curumins se
divertirem a pescar de caniço, enquanto não chegava o tempo
de irem com o pai às pescarias longínquas.
– Ainda estão muito pequetitos, observou Macário.
– Hão-de crescer. Ande, Macário, largue essa preguiça
e ajude-me.
Puxaram a canoa para terra, e colocaram-na sob uma árvore do caminho,
a cuja sombra padre Antônio lhe fora calafetando o costado, aberto em
diversos lugares pela ação do sol e do tempo. Padre Antônio,
parecendo esquecido da contrariedade que sofrera, alegre e risonho, trabalhava
brincando com os filhos da Teresa, que a alguns passos de distância
assistiam nus e pasmados àquele espetáculo surpreendente dum
branco vestido de preto a calafetar a velha montaria.
Macário, ajudando o senhor vigário naquela fastidiosa e longa
tarefa, que durara até à hora do jantar, estava tranqüilo.
Não se podia tratar de outra coisa senão dum passatempo, e posto
que notasse o olhar de satisfação e de amor-próprio que
o padre lançara ao trabalho ao despedir-se dele, comera com muito apetite
e contentamento.
Ao cair da tarde, antes de se recolherem à casa, para fugir à
perseguição dos carapanas e à insipidez duma noite sem
lua, foram ainda ao porto correr a superfície do lago com a vista ansiosa.
Nada ainda. A noite caía, ensombrando o lago e mergulhando nas trevas
a floresta de tucumas e muritis que circundava a cabana.
O sacristão de Silves tocava o primeiro sinal da missa conventual
nos pequenos sinos da Matriz, num domingo de festa. A população,
de volta dos castanhais, corria pressurosa ao templo, enchendo o adro de sobrecasacas
de lustrina compridas e respeitáveis, de jaquetas de ganga, de saias
de chita verde e de cabeções bordados à moda da Madeira,
deixando entrever a pele morena e acetinada das mulatinhas faceiras e das
caboclinhas sérias, de pisar duro que lhes faz tremer os seios. O capitão
Manuel Mendes da Fonseca, de largas calças brancas engomadas, sobrecasaca
aberta, chapéu de Manilha rico e raro -última lembrança
do Elias – cavaqueava à porta da igreja com o tenente Valadão,
que lhe contava como apanhara o João e o Pedro com a boca na botija,
pretendendo vender ao Mapa-Múndi um chicote de tabaco de Irituia e
dois ternos de riscadinho, novos em folha. O Dr. Natividade dizia numa roda,
em que estava o professor Aníbal, que o Bernardino Santana conseguiria
dele tudo quanto quisesse em castigo do Totônio, pois não esquecera
a noite do casamento do Cazuza, e, graças a Deus, não estava
acostumado a receber desfeitas. O Regalado dizia ao Costa e Silva muito mal
do Felício boticário, que, magro, seco, parecendo filho do Valadão,
receitava uns emplastros ao Neves Barriga para a cura completa de tumores.
D. Prudência chegava, conversando com D. Dinildes sobre uma receita
nova para fabricar cocada amarela. Estavam ambas vestidas com muito luxo,
assim como todas as senhoras que aquele domingo concorriam à Matriz
de Silves, enquanto o sacristão, olhado com inveja pelo José
do Lago e pelo afilhado do Valadão, tocava alegremente os pequenos
sinos musicais. Mas entre todas as mulheres sobressaía a rainha das
formosas, a esplêndida Luísa, de vestido de lá, refolhado
e rico, de botinas de duraque cor de canário, chapelinho à Garibaldi,
vistoso e novo, lançando ao Macário um olhar de fogo que o obrigava
a repicar os sinos, com entusiasmo dobrado, como se só para a Luísa
repicasse, e quando mais enlevado estava, sentindo-se atordoado pelo ruído
argentino dos sinos, e excitado pela presença da formosa criatura que
lhe ocupava os pensamentos, ouviu a voz sonora e grave de padre Antônio
de Morais, cortando subitamente o ar, como se o chicoteasse em pleno rosto:
– Sabe que mais, Macário? Vamos continuar a viagem, esta madrugada.
Macário despertou esfregando os olhos. A Luísa, os sinos, o
adro, o capitão Fonseca, o Dr. Natividade, o povo todo sumiu-se na
penumbra. Macário pulou da rede, ainda entontecido pelo sonho em que
se deleitava. Sonhara mesmo, ou estava sonhando agora, ouvindo falar em viagem
aquela madrugada? Fora um pesadelo que lhe dera pela muita banana que comera
ao jantar? Ai, não! À beira da rede estava o padre, de olhos
febris e fisionomia dura, a repetir-lhe:
– Vamos continuar a viagem esta madrugada.
Macário não acreditava. O ardor do sol que o senhor vigário
suportara durante o dia, na faina de obsequiar a hospedeira, calafetando-lhe
a montaria, ter-lhe-ia transtornado a bola? Continuar a viagem, como, se não
tinham embarcação, nem camaradas, nem víveres? Chegara
o Guilherme, aparecera algum regatão, o tenente Valadão por
acaso surpreendera a igarité furtada e a mandara ao padre por homens
de confiança? Esta hipótese era inadmissível porque o
tempo não permitiria tão rápida diligência.
Padre Antônio achou que as perguntas de Macário revelavam pouca
fé. Não chegara ninguém, não havia notícias
da igarité, mas tinham a montaria do pescador que, calafetada como
se achava, serviria perfeitamente para duas pessoas. Víveres não
faltavam. A dona do sítio fornecer-lhes-ia anzóis e linhas de
pesca, com isso ninguém morria de fome no Brasil. Em vez da boa farinha-d’água
que os tapuios haviam furtado, comeriam o seu peixe com bananas verdes assadas,
petisco delicioso, capaz de despertar a gula dum santo. De resto bananas não
faltavam no sitio e já cortadas. A tia Teresa ceder-lhes-ia facilmente
dois magníficos cachos que estavam pendurados no teto da cozinha. E
enquanto a remeiros, que falta faziam João e Pedro, se estavam eles
ali, Antônio e Macário, dois rapazes vigorosos, capazes de manejar
um remo? Tinham uma boa lasca de pirarucu seco, sal, bananas e anzóis,
que lhes faltava? E, por fim, quanto maiores fossem os sacrifícios,
tanto mais mereceriam do Senhor, em cuja vinha trabalhavam e maiores seriam
a glória e o renome de que infalivelmente gozariam.
E terminou com intimativa:
– Vamos, Macário, não me seja mole, mexa esse corpanzil, deixe-se
de preguiça. Hei-de seguir a viagem. Se for preciso partirei sozinho,
aconteça o que acontecer.
Macário viu nos olhos ardentes do padre uma resolução
inabalável, embora sem calma, misturada com a agitação
da impaciência, como se o amor-próprio forcejasse por esconder
uma vaga desconfiança de si mesmo, ansiando por sepultá-la sob
o peso do fato consumado. Partir sozinho, loucura! Exigir que Macário
partisse também, que falta de caridade evangélica! Nada o demoveria
desse propósito insensato? Que mal viria à catequese dos mundurucus
da paciência empregada em esperar uma condução mais segura
e cômoda do que a reles montaria, inabilmente calafetada por S. Rev.ma?
A nada atendia, nada podia acalmar-lhe uma impaciência inexplicável
S. Rev.ma era bem capaz de partir sozinho? E que diria Silves? Não
faltaria ali quem acusasse o Macário de tê-lo abandonado, e quem
sabe mesmo de que horrores seriam capazes as línguas viperinas de José
do Lago e do afilhado do Valadão!
Macário resistia e cedia ao mesmo tempo. Não se sentia com
forças para aquele sacrifício, mas não tinha a energia
precisa para dizer não. Ainda se a missão se fizesse a bordo
do Cristóforo! Mas qual! era numa canoinha de criança, numa
casca de noz, que podia fazer água por todos os lados! O Cristóforo
ainda não estava feito, e quem sabe se se faria! Se algum dia o senhor
bispo levasse a efeito a sua execução, não lhe aproveitaria
mais, ao triste Macário de Miranda Vale! Enchia-se de ciúmes
da fácil glória dos sacristães vindouros. Esses viajariam
no Cristóforo, a ele, a ele sozinho cabia a infelicidade de missionar
numa montaria de pesca, abandonada pelo próprio dono. Entretanto os
outros, os que tinham de gozar as comodidades do navio-igreja, seriam elogiados,
gratificados, canonizados talvez!
A atitude severa e o silêncio resoluto do vigário, dominavam-no.
Obedecia, resistindo sempre, resmungando, andando pelo quarto, preparando-se
para a viagem, parando subitamente, decidido a ficar, num grande esforço
de vontade, e logo, apenas o feria o olhar frio e penetrante do padre, continuando
a arrumar as coisas necessárias, ora com maneiras bruscas de revoltado,
ora com submissão resignada de vitima, já derramando uma fonte
de lágrimas que enxugava raivosamente na manga da camisa, já
ativando febrilmente os preparativos, como se a obediência desesperada
protestasse contra a violência que se lhe fazia. Padre Antônio
cruzara os braços, não proferia palavra, não fazia um
gesto, mas o seu olhar implacável seguia todos os movimentos do Macário,
causava-lhe impaciências nervosas, quando o sacristão o sentia
espetar-lhe a epiderme, forçando-o a levantar-se, a pôr-se em
andamento, a engolir frases cheias de justa indignação, que
o engasgavam e lhe teriam valido a vitória se ele as pudesse proferir
claramente, se a maldita garganta não as retivesse, se a endiabrada
língua não se gelasse na boca sob a ação daquele
olhar dominador, que o abatia como a uma criança medrosa. No meio dos
arranjos, quando tudo parecia pronto, o sacristão sentiu voltar a liberdade
da fala e dos lábios lhe saiu como um protesto solene:
– Saberá V. Rev.ma que havemos de remar com as mãos.
Padre Antônio saiu do mutismo que guardava para responder sorrindo:
– Sossegue, Macário, a tapuia vendeu-me dois remos novos.
– Não é isso, tornou Macário, vitorioso, o breu está
muito fresco, o sol o derreterá e teremos de ir a nado para o porto
dos Mundurucus!
Era um dia que se ganhava, e nesse espaço de tempo, o mundo dava muitas
voltas… pensou o sacristão em desespero de causa
CAPÍTULO VIII
A canoa deslizava brandamente, entrando à boca do rio Canumã,
cuja superfície calma enrugava de leve, despertando as sardinhas a
meio adormecidas entre duas águas. Nenhum pássaro cantava, as
vozes noturnas da floresta haviam-se calado, num recolhimento solene, ao despontar
da aurora, como se ensaiassem as forças para a abertura do grande hino
da manhã selvagem. Reinava profundo silencio, apenas entrecortado pelo
ruído cadenciado do remo batendo alternadamente na água e nas
falcas da montaria. Padre Antônio procurava concentrar o espírito
numa meditação profunda, influenciada pelos materiais objetivos
que o cercavam, sentindo que dava um passo decisivo na vida, e precisava reunir
todas as forças da sua mentalidade para o conhecimento exato da sua
situação moral. A meditação em que se absorvesse
não impediria a marcha regular do governo da montaria, porque o grande
rio Canumã oferecia navegação larga e franca, a corrente
não era de todo desfavorável, e permitia imobilizar o remo do
jacumã numa posição demorada. Naquela região inteiramente
despovoada e sujeita às correrias dos índios bravos, entrava
de repente num mundo novo, longe da vida social.
A cem braças da embocadura já o rio oferecia um aspecto muito
diverso do que nas proximidades do sítio do Guilherme, tendo um cunho
de selvagem grandeza que impressionava a imaginação e prendia
a faculdade contemplativa. As árvores da beirada, sem receio do machado
vandálico do lenhador, cresciam a uma altura descomunal, envoltas em
intrincados cipós e em apaixonadas parasitas, que pareciam querer sufocá-las
num abraço estreito; e à claridade dúbia da madrugada
projetavam no rio a sua grande sombra, cheia de mistérios. As ribanceiras
negras, irregulares, ora alteando-se como montanhas, ora arredondando-se em
lombadas, aqui estendendo-se em praia alagadiça, salpicada de aningas
magras, ali correndo a largos trechos um muro baixo, feito de tabatinga de
veios cor-de-rosa; em alguns lugares retendo a custo os cedros que se esforçavam
por despenhar-se no rio, ansiosos por vagabundear nos braços da correnteza;
em outros esmagadas pelas possantes maçarandubas que lhes entranhavam
no seio as raízes grossas como galhos de pau-pereira; tinham o aspecto
triste e desconsolado das paragens ermas, das vastas solidões jamais
pisadas pelo homem civilizado, e onde a pujança da natureza bruta parece
opor uma resistência de bronze ao mesquinho que se aventura a perscrutar-lhe
os segredos.
Mas, ao abrir do sol, bandos de macacos grandes e de guaribas assaltaram
os castanheiros, pulando de galho em galho em gritos e porfia. Uma infinidade
de pássaros de todas as cores cruzaram o ar, atravessando o rio num
canto alegre de liberdade e de vida. Veados vieram beber confiadamente a água
do rio, levantando a tímida cabeça para escutar o urro da onça
que se fazia ouvir no mato, de vez em quando, dominando os ruídos da
floresta, e pondo em sobressalto as capivaras vermelhas que se banhavam em
numerosa vara à beira da corrente.
O movimento da fauna amazonense arrancara padre Antônio à meditação
a que se queria entregar, sujeitando-o todo à encantadora contemplação
das maravilhas da natureza selvagem, naquela esplêndida manhã
de agosto, em meio do largo rio que se desdobrava, a perder de vista, numa
luzente toalha em que se refletia, como em puríssimo cristal, o azul
dum céu sem nuvens, sombreado pelas ramagens de árvores seculares,
e riscado em diagonal pela linha de vôo de pássaros desconhecidos.
As recordações da meninice assaltaram-no de novo, eram a mais
grata memória do seu cérebro, evocadas sempre pelo espetáculo
da natureza virgem. E vira-se a percorrer os campos incultos da fazenda, a
aventurar-se numa pequena canoa pelo Amazonas fora, quando gostava de supor-se
perdido na vastidão do rio, e a imaginação sonhava uma
vida acidentada de combates com feras e de luta com os elementos na solidão
das águas e das matas. Agora via quase realizado o seu sonho de menino,
em pleno deserto, indo talvez perder-se em paragens desconhecidas, dormir
ao relento, matar a fome nos maracujás silvestres e nas castanhas oleosas,
talvez morrer às mãos dos índios do sertão, que
não teriam pena da sua mocidade e gentileza. Mas em todo o caso ia
saciar a alma de solidão e de liberdade, gozar talvez a inefável
delícia de sentir-se só num grande país, de poder entregar-se
desassombradamente ao enlevo dos seus queridos pensamentos íntimos,
sem receio de olhares indiscretos nem de interrupções importunas.
Ia, enfim, achar-se face a face com a grande e virgem natureza, num tête-à-tête
misterioso, em que poderia desabafar as dores secretas do coração
dilacerado por sentimentos incompreensíveis; pensar e falar sinceramente,
pondo o peito a nu, reconhecer-se a si próprio, ser franco consigo
mesmo, propondo e resolvendo com lealdade, despido de todos os preconceitos,
de todos os prejuízos de educação e de doutrina, o até
ali insolúvel problema da natureza humana. Esta idéia, esta
esperança mergulhava-lhe os sentidos numa embriaguez estranha, que
lhe fazia esquecer as horas, imóvel, à popa da montaria, não
sentindo o sol que na sua marcha ascendente, vinha queimar-lhe as faces em
carícias ardentes.
Macário, à proa, remando com afinco, suando em bica, começava
a achar que os mundurucus estavam muito longe, e o remo lhe cairia das mãos
antes de lhes pôr a vista em cima. Teimava naquela tarefa ingrata de
repelir a água com a face do seu remo redondo, inabilmente manejado,
porque, graças a Nossa Senhora, nunca fora remador de montarias. Sentia
arderem-lhe as mãos, uma dor aguda comia-lhe as costas, descendo-lhe
até os rins, e copioso suor inundava-lhe a fronte, dando uma sensação
de crescimento ao lombinho, que o sol castigava com uma preferência
incômoda. Desde alta madrugada estava Macário acordado, tinha
perdido a noite, pela primeira vez na vida, na luta terrível que a
prudência travara contra o prestigio e a força moral do vigário,
e na qual fora vencida, por entre grandes suspiros e profundos desalentos.
Carregara aos ombros os remos e os cachos de bananas, vendidos pela tia Teresa
por muito bom dinheiro acompanhado das bênção de padre
Antônio, e desde que as estrelas empalideceram à primeira claridade
da aurora, sentara-se naquele banco e puxava pelo remo como se nunca tivesse
feito outra coisa em dias de sua vida. O calor aumentava. Macário já
não sentia as pernas adormecidas pela demorada imobilidade em que jaziam;
os braços já se recusavam ao serviço. O lombinho, no
meio da testa, crescia, interceptando-lhe a luz dos olhos.
Saberá V. Rev.ma que são horas de almoço, disse, enfim,
voltando-se para o padre, descansando o remo, enxugando o suor na manga da
camisa.
Seriam, com efeito, oito horas da manhã. Ardia o sol num céu
sem nuvens. A água do rio tomava tons azulados, e o verdejante arvoredo
das margens revestia-se dum colorido luxuriante, em plena seiva, banhado em
luz intensa e poderosamente fecundado pelo calor que abrasava a terra. Ao
longe a linha da cordilheira, suavemente ondulante, recortava o azul-celeste
do firmamento em metátomos irregulares dum azul mais carregado, alargando
o horizonte, numa perspectiva de afastamento indefinido. No meio da massa
verde-escura da floresta, de um e de outro lado, as altas embaúbas
abriam as folhas brancas, leques inúteis que a viração
não abanava, e as bacabeiras carregadas de cachos, deixavam-se estar
imóveis com as palmas estiradas, abertas, levemente amarelecidas, sem
ânimo de as balançar no espaço, para não perder
nenhum dos beijos vivificantes do sol.
Os sabiás, os corrupiões, os diversos trovadores das selvas
amazônicas recolhiam-se à frescura do arvoredo para a modulação
dos trenos amorosos no mistério das folhagens. Os macacos, preguiçosos
e sonolentos, internavam-se no mato em busca de algum regato cristalino ou,
saciados de castanhas, balançavam-se pachorrentamente em delgados cipós.
As próprias ciganas arrastavam o grasnar desagradável, como
vencidas do cansaço e do silêncio, que lhes não permitia
a índole barulhenta e irrequieta. Os peixes tardavam em vir à
tona da água, ou boiavam sem ruído, para não interromper
a calada do dia. Era intenso o calor.
Padre Antônio acedera suspirando ao pedido contido no aviso do Macário,
e dirigira a canoa para a beira, escolhendo lugar para o desembarque. Macário
petiscara lume, fizera uma fogueirinha com ramos secos, e assara um naco de
pirarucu, e umas bananas verdes.
Depois do almoço, como o calor aumentava, o sacristão obtivera
o descanso de algumas horas à sombra. Escolhera um castanheiro, a cujo
abrigo se estendera no chão, moído e escangalhado. E adormecera
logo.
Padre Antônio aproveitara o tempo num longo passeio por entre as árvores
da mata, enchendo os ouvidos dos sons sensuais do canto dos rouxinóis,
e sentindo uma agradável impressão de isolamento e de bem-estar
debaixo daquele teto de verdura. Quando viera a viração do mar,
por volta de uma hora da tarde, toda a natureza, como reanimada pela varinha
de condão de uma fada, acordara do letargo e repetira o concerto das
vozes matutinas, com menos frescura e intensidade talvez, mas com a mesma
agitação. Os peixes amiudaram-se à superfície
do rio, como em brincos apostados, a quem mais vezes mergulhava e surgia no
mesmo trecho do rio. As aves atreveram-se a deixar a sombra da floresta e
a atravessar novamente o Canumã, voltando da viagem de amor ou de negócios
feita pela manhã, e recolhendo-se aos ninhos, pressurosas e alegres.
As palmeiras balançaram no espaço os leques verdes, auxiliando
a viração na tarefa de refrescar a atmosfera; e grandes folhas
de embaúba e palmas de coqueiros silvestres caíram com um ruído
seco espantando as capivaras. Ao longe, o azul da cordilheira desmaiava, expirando
numa orla esbranquiçada mal distinta da base dos altos cirros recém-formados,
e cujos filamentos entrecortados semelhavam colunas de mármore veiado
de azul sustentando rico dossel brilhantemente colorido. O sol, dardejando
os raios quase a prumo sobre a coroa das palmeiras, parecia um sultão,
recolhendo ao seu dormitório recôndito de tirano, satisfeito
com as sultanas mais esbeltas e formosas e desdenhoso da turba das escravas.
O ruído das franças agitadas pelo vento e o canto dos passarinhos
distraíam a padre Antônio da meditação religiosa
em que procurava afundar-se, suscitando-lhe imagens de gozo profano. Reagira,
porém, contra aquela espécie de torpor moral que o invadia,
e fora acordar o Macário para porem-se de novo em viagem.
O sacristão olhou tristemente para as mãos cheias de ampolas
pelo desuso do exercício a que o padre o forçara, e sacudiu
a desanimada cabeça. S. Rev.ma não percebeu aquela muda e eloqüente
linguagem, e injungiu quase com dureza:
-Vamos, seu madraço, vamos aproveitar a fresca da tarde.
Macário fora aproveitar a fresca, mas estava no seu direito de resmungar,
e foi resmungando. Aquilo já passava de caçoada! Um fomento
de rebeldia estava a espicaçar-lhe o fígado… mas era um homem
de juízo e compreendia que ante a obstinação cabeçuda
do padre vigário de nada serviria persistir na teima de voltar para
a vila. A canoa era uma só: ou havia de subir o Canumã ao sabor
de padre Antônio ou de descê-lo como o pretendia e desejava o
sacristão. O padre era o dono da montaria porque a tomara de aluguel
com o dinheiro do seu bolso (que infelizmente o João e o Pedro lhe
deixaram), e quando mesmo Macário o quisesse forçar a desistir
da empresa, coisa, aliás, de que Nossa Senhora do Carmo o livrasse!
era certo ser o vigário um rapaz sacudido e valente, de pulso forte
e ânimo inteiro. Quanto a voltar sozinho por terra, não era idéia
que se demorasse dois segundos na cabeça de um homem sensato. Macário,
especialmente e de nascença, votava invencível ojeriza às
onças, às queixadas e aos tamanduás que passeiam o sertão
do Amazonas com a sem-cerimônia de quem conhece os seus domínios;
e ele, o filho da lavadeira de Manaus, não contava entre os seus planos
de futuro, ruminados ao cair da tarde, saboreando o cachimbo em frente à
casa da Luísa Madeirense, o de ser estraçado por uma vara de
caititus, para regalo de urubus vorazes, ou de perder o último alento
no abraço apertado do tamanduá-bandeira, de unhas cortantes
como navalhas. Se a perspectiva de ser banquete de tapuios bravos, embora
em serviço de Cristo Crucificado, não lhe sorria muito, posto
o lisonjeasse uma vaga esperança de ser recebido em boa paz por milagre
de Nossa Senhora e do Senhor São Macário, menos o favoneava
a empresa de galgar léguas e léguas por caminhos ínvios,
por florestas intrincadas, por insondáveis gapós, trepando serras
onde as onças moram, vadeando lagoas onde se ocultam sucurijus de enorme
boca, palmilhando sobre espinhos, onde se aninham caninanas, e penetrando
grutas onde habita o maracajá de súcia com a surucucu, para,
por fim, se viesse a sair dessa impossível peregrinação,
chegar morto de cansaço, doente e desmoralizado à sua saudosa
e sempre lembrada Silves. Nada, antes morrer de uma só vez, flechado
por um selvagem, ganhando foros de tartaruga. Era mais simples e não
cansava tanto. Contemporizaria, sujeitar-se-ia ao insano capricho do padre
vigário até que a Providência lhe oferecesse ocasião
de pôr em prática o hábil maquiavelismo, de que tantas
vezes colhera inesperados resultados.
A tarde estava muito fresca. A viração, vinda do Amazonas,
acentuava-se, enrugando as águas do Canumã em pequenas vagas
de prata e fazendo oscilar a humilde embarcação de pesca. As
arvores da beirada balançavam-se graciosamente sobre as ribanceiras
em saudações corteses aos atrevidos nautas que visitavam aquelas
paragens despovoadas. As cigarras e os tananãs, sentindo avizinhar-se
a noite, cantavam em notas melancólicas as saudades da vida efêmera
que se desprendia do minguado corpinho. O unicorne denunciava a sua presença
nas várzeas da beira do rio, cortando o ar com as vibrações
da voz sonora e potente acordando o jaburu meditativo e tristonho na sua roupagem
negra. Araras de torna-viagem enchiam o céu com a gritaria estridente
que ia perder-se, num rumor longínquo e monótono, nos taperebás
da serra, e cruzavam-se com os papagaios sertanejos voando alto, em bandos
compactos; governando o impulso do vôo com os staccati do canto arquejado.
No meio dos gapós a saracura e o galo-d’água gemiam um dueto
amoroso, com o acompanhamento da orquestra desenxabida das lontras que vinham
gozar do último calor do sol morrente; e no capinzal da beira os cururus
enfatuados e bulhentos assustavam as tímidas rolas aninhadas na espessura
da canarana, no aconchego da folhagem macia, e que se punham a dar gritozinhos
aflitos, cedendo à fascinação irresistível. Com
a despedida do dia as ciganas grasnavam à porfia, numa confusão
de vozes discordantes, maltratando-se a bicadas, lutando por um mesmo ramo
de árvore, donde pudessem, empoleiradas, mergulhar na água duvidosa
do rio a profundeza escura do olhar corvino, em busca de um indício
de carne morta. Frutos maduros se desprendiam das árvores ribeirinhas,
caindo na água com um ruído sonoro que provocava uma avançada
geral das tartarugas famintas, nadando entre duas águas. Enormes pirarucus
vinham por sua vez, graves e solenes, gozar a fresca da tarde, aspirando com
delícia e em grandes rabanadas a brisa do Amazonas. O sol já
se escondia por trás da serra, desprendendo uma luz suave coada através
das clareiras, dourando as cristalizações das rochas, e resvalando
sobre a toalha do rio, salientava as cabeças silenciosas dos grandes
jacarés imóveis, como tocos de pau, perdidos na correnteza,
e cujos olhos ardentes e ferozes cravavam-se na montaria com fixidez de mau
agouro. A canoa avançava lentamente.
Padre Antônio remara toda a tarde, subindo vagarosamente o Canumã,
vencendo a custo a correnteza que o arrastava para o lago, como se uma força
oculta o quisesse desviar da arriscada tentativa. Depois do jantar, que foi
mesmo a bordo, ao cair da noite de treze de agosto, tratara de procurar um
lugar em que ele e o companheiro pudessem repousar os membros fatigados. O
problema, pensava, não era de fácil solução.
Era preciso amarrar a canoa em lugar que a abrigasse de alguma ventania noturna
ou dessas rápidas tempestades dos países quentes, terríveis
e imprevistas, despedaçando as florestas e convulsionando os rios.
Ao mesmo tempo convinha não esquecer os perigos de terra, não
menos de temer naquele trecho do Canumã, de aspecto tão diverso
do que lhes oferecera ao desembocar no lago de que tira o nome. As ribanceiras
eram altas, corridas a prumo, como se o Canumã, à semelhança
do Amazonas, se ocupasse em devorar as margens, ameaçando espraiar-se
até a raiz da cordilheira que padre Antônio divisava ao longe,
enquadrando o vale numa cercadura azul. A beira do rio parecia coberta de
aningais cerrados e doentios, que se compraziam num solo inconsistente e úmido,
e defendiam-se da correnteza com uma larga faixa de densa canarana, dum verde
cambiante. A noite enchia o céu, entenebrecendo o horizonte, depois
dum rápido crepúsculo. Padre Antônio amolecia o remo,
olhando para todos os lados, hesitando. Amarrar a canoa muito perto da terra,
além de a sujeitar ao risco do desmoronamento das ribanceiras, era
expô-la ao ataque das onças, protegidas pela escuridão
do mato e pela frouxidão do solo. Fundear ao largo sem um mará
que a garantisse contra a correnteza, impedia aos viajantes o sono repousado
em terra, ao menos que não se aventurassem por entre as canaranas nos
domínios da cobra e do jacaré. Não havia remédio
senão continuar a viagem até que encontrassem um bom porto para
o desembarque.
– Ali! exclamou de repente o Macário, lobrigando à última
claridade do crepúsculo uma língua de terra que num trecho de
cerca de três braças entrava pela água dentro, forçando
a correnteza a desviar-se e formando um remanso. Por efeito do desabamento
da ribanceira a margem abaixava-se numa pequena praia. Não havia mais
hesitação possível. A noite já os impedia de viajar
livremente.
Padre Antônio aproou a montaria para a beira.
– Desça e amarre a canoa, ordenou.
Macário arregaçou as calças até os joelhos, resmungou,
tirou fora os sapatos e atirou-se à água. Mas imediatamente
soltou um grito estridente, titubeou e foi cair de ventas sobre a terra mole
da pequena praia improvisada.
O sacristão de Silves, repimpado sobre um montão de folhagem
com que procurava evitar a umidade do solo, agitava-se como se o diabo lhe
tivesse entrado no corpo por fenômeno de incubação. Eram
murros no ar, sacudidelas de braços, cabeçadas no espaço,
exclamações de ódio e rancor que lhe saíam em
atropelo dos lábios espumantes para permitir a entrada repentina na
cavidade bucal de alguma atrevida muriçoca, doida por chupar-lhe o
véu do paladar, e logo após expectorada, nadando em saliva,
numa grande careta de enjôo. Era um espetáculo estranho e fantástico,
que o padre observava da montaria em que ficara, esse do Macário, sentado
à beira do rio, junto a uma grande fogueira, com a frente aureolada
por um enxame de insetos alados, e a vociferar imprecações de
toda sorte, sacudindo os braços, as pernas, o tronco, num movimento
desordenado e contínuo, como se estivesse atacado da dança de
S. Guido. Dir-se-ia um feiticeiro que no silêncio da noite e da solidão,
entregava-se aos mistérios da sua arte diabólica, invocando
os espíritos familiares para os lançar contra a humanidade,
ou algum pobre tapuio louco que se ensaiasse para o religioso sairé,
dançando ao som de instrumentos imaginários.
Padre Antônio também não se sentia a gosto, forçado
a repousar na montaria, porque a ardente preocupação com que
deixara o sítio de Guilherme não lhe dera a calma necessária
para cuidar em todos os preparativos duma viagem que devia durar muitos dias
por inóspitas regiões, e agora, naquela noite cálida
de agosto, à margem alagadiça daquele trecho do Canumã,
sem cômodo e sem abrigo, começava a convencer-se de que os inumeráveis
inimigos do sossego noturno, de diversas espécies e famílias,
mudos e canoros, visíveis ou ocultos, venenosos ou simplesmente incômodos
que estavam perseguindo atrozmente o pobre Macário, nem sequer lhe
permitiriam a ele uma meditação profunda e tranqüila. Os
mosquitos, os carapanãs, os piuns, as muriçocas, os pernilongos
atiravam-se com uma gana desenfreada à iguaria rara e delicada daquela
epiderme branca e daquele sangue ardente, parecendo buscar na fácil
empresa uma compensação da luta velha contra a pele grossa,
oleosa e repintada do caboclo que habita os seus domínios. Não
havia meio de dormir ou sequer estar quieto, com as ferroadas agudas dos sanguinários
bichinhos que lhe deixavam no corpo ampolas e inflamações de
mau agouro.
A noite corria plácida e serena, iluminada pelo brilho vivíssimo
das estrelas. O calor era intenso, cessara a viração do mar
por volta de oito horas, as águas do rio corriam mansamente, arrastando
grandes troncos de árvore e periantãs flutuantes. Ao longe,
na floresta, ouvia-se o urro da onça errante e faminta, cruzando-se
de modo estranho, num contraste frisante, com o zumbido prolongado de milhares
de milhões de carapanãs vorazes.
Macário cansado de agitar o corpo em todos os sentidos arrancara a
camisa de riscado, e dava fortes palmadas nas costas, no peito, na testa,
nas faces e no querido lombinho para matar os insetos que o torturavam. O
sacristão lamentava-se amargamente. Logo ao chegar àquele miserável
lugar um asqueroso puraquê o sacudira violentamente obrigando-o a enterrar
a cara na lama da beira do rio. A eletricidade do peixe abalara-lhe os nervos,
excitando-lhe o mau humor que já de véspera trazia contra padre
Antônio de Morais e a sua louca empresa. A necessidade da fogueira para’
evitar a aproximação das cobras, avivando-lhe a idéia
do perigo a que se expunha, e ainda o urro longínquo da onça,
que já lhe parecia estar a pequena distância, aumentavam-lhe
a antipatia pela situação a que o forçara o receio absurdo
de desobedecer ao senhor vigário. E agora, por mal dos seus pecados,
por cúmulo de desgraças, os miseráveis insetos, teimando
na cruenta lida de sugar-lhe o sangue todo, acabavam de esgotar-lhe a paciência,
a santa paciência de que ele sempre timbrara nas épocas mais
difíceis da sua acidentada existência.
Caía de sono, apesar de haver cochilado durante o dia sob os castanheiros,
à moda dos pastores de Virgílio, como dizia o padre José,
sempre que fazia a sua soneca debaixo da mangueira do sítio da Chiquinha
do Urubus. O que provava que o tal Virgílio era um patrão acomodatício.
Não podia dormir porque não lhe consentiam os carapanãs
e as muriçocas! Que noite, senhor Deus, que noite aquela, de que’ se
lembraria toda a vida, ainda que vivesse cem anos, porque nunca passara uma
noite assim nos trinta e cinco anos de moradia neste vale de lágrimas!
Também quem o mandara meter-se naquela maluquice de padre Antônio
de Morais? Bem sossegadinho podia Macário estar àquela hora,
dormindo o seu sono na sua rede americana na casinha de Silves… em vez disso,
matava mosquitos! Ai, quem ele queria pilhar ali era o pateta do Valadão,
que se gabava de não matar um carapanã! Por mal dos pecados
nem sequer tinha uma rodela de tabaco, nem uma folha de tauari! Se ao menos
pudesse fumar, talvez se distraísse, e sempre se defenderia daquela
súcia de carapanãs de má morte. Indignava-se contra os
tapuios que lhe haviam furtado o chicote de cheiroso tabaco com que contava
regalar-se nas paragens de Guaranatuba. Rebelava-se contra padre Antônio,
o causador único de todas aquelas desgraças, e suspirava triste
e amargurado. Quem diabo metera na cabeça de S. Rev.ma a idéia
de vir àquele sertão em busca de gentios para converter? Pensar
que poderia ter ficado no sítio de Guilherme, a esperar que voltasse
da pescaria, lá estava a tia Teresa para o divertir, que antes ela,
apesar das tetas pendentes, do que aqueles safados carapanãs que o
estavam forçando a duvidar de Deus. Mas qual! tivera pena do idiota
do padre, pensando que se meteria sozinho na rascada! O Sr. Macário
de Miranda Vale tivera pena de padre Antônio de Morais, que não
era seu filho, nem seu irmão, nem nada!
– Forte besta, o Sr. Macário! dizia sacudindo-se todo como um endemoninhado
no desespero de um novo ataque de piuns que lhe caíam em nuvem sobre
as costas e o peito. E no auge da aflição, com violência
crescente exclamava, batendo com os punhos no coxim de folhagem:
– Burro, burro, burro!
Padre Antônio mal acomodado no único banco da montaria, começava
a pensar que a empresa não era tão fácil como a princípio
parecera ao seu ardor entusiástico. Já o impacientava a repetição
das contrariedades da viagem que lhe tinha feito passar desapercebidas a preocupação
do grande objetivo. A sua natureza exaltada e de repentes, irritava-se com
os pequenos obstáculos, obrigando-o a desviar o pensamento da elevada
missão a que se destinava.
Francamente, pensava, no silêncio daquela noite de desagradável
vigília, não seria jamais o temor da morte que o faria renunciar
ao seu tio religioso quão humanitário projeto. Estava pronto
para arrostar com todos os perigos, naufrágios, fomes, torturas. Confessava-o
a si mesmo, sem vislumbre de charlatanismo ou de hipocrisia, sondando a sinceridade
do seu coração de moço. Sabia que se expunha a perder-se
em pleno rio ou sob a torrente impetuosa de alguma cachoeira, a ser envenenado
pelo impaludismo, a ser devorado pelas feras da floresta, esmagado por altas
terras ou por cedros gigantescos. Mas passar noites sem dormir, a matar mosquitos,
gastando a resignação e a paciência em tão mesquinhos
e vulgares sofrimentos, em tão ridículas provações,
não o podia levar a sangue frio. Os malditos não se limitavam
a morder… cantavam, e aquele zinzim contínuo e monótono bulia-lhe
com os nervos, perturbava-lhe a calma do espírito, apertando-lhe o
coração num desespero infantil. Queria ser pregado a uma árvore
pelas flechas dos selvagens, como o mártir S. Sebastião, de
gloriosa memória, mas não via em que aproveitava à sua
glória aquele martírio obscuro e inenarrável de ser devorado
aos bocadinhos pelos carapanãs da beira do rio. Era um tormento inglório
e escusado, porque em nada adiantava a grande obra da conversão dos
mundurucus, e ninguém o tomaria a sério. E se ia continuar por
noites e noites, por toda a viagem, por todo o tempo que pretendia dedicar
à catequese, nas excursões às tabas mundurucus, nas horas
de oração e preparo espiritual, e até no momento do sacrifício,
quando precisasse dar ao selvagem o exemplo de uma calma superior, de uma
resolução digna, qual seria a paciência humana capaz de
suportar tão miseráveis e pequenos quão agudos e cruéis
sofrimentos? O ardor do sangue que sentia correr-lhe nas veias, a sensualidade
da carne cheia de vida e robustez, cujos incitamentos combatia pela dedicação
e pelo sacrifício, preferiam decerto a morte violenta e heróica,
as grandes sensações que aniquilam o corpo, elevando a alma.
A preocupação constante dos últimos dias o impedira
de dormir, enquanto o pudera fazer ao rumor cadenciado dos remos dos camaradas
ou no silêncio da casinha de palha do pescador Guilherme, e agora que
cedera à certeza de levar avante o grande desideratum da sua vida de
padre; agora que o corpo cansado se tornava exigente na reivindicação
dos seus direitos, e a calma da noite o convidava a um sono reparador, eis
que o não conseguia conciliar pela oposição invejosa
de pequeninos insetos que o queriam todo para si, como se sua propriedade
fora! As pálpebras fechavam-se, abria-se a boca em bocejos sonolentos,
o corpo todo entregava-se a um torpor doentio e profundo, mas era impossível
repousar um instante. Os olhos lacrimejavam, a cabeça estava oca de
pensamentos, e os membros doloridos sentiam duplamente a dureza da improvisada
cama que arranjara… Era impossível conservar-se deitado. Ergueu-se,
e fazendo um enérgico movimento afugentou os mosquitos. Levantou os
olhos para o céu estrelado e profundo, com uma vontade de queixar-se
e de desafiar ao mesmo tempo o vasto firmamento. As pequenas estrelas pareciam
observá-lo com um milhão de olhos curiosos, que o envergonharam
do seu arrebatamento. Um frio glacial invadiu-lhe o peito, gerando a convicção
de que fora vítima duma tentação do demônio que
lhe queria vencer a constância para o desviar do serviço de Deus.
Esta idéia arrancou-o com uma sacudidela ao torpor físico e
moral que o ia despenhando no poder do inimigo de sua alma, e restituiu-lhe
a força. Curvou-se sobre a borda da canoa, banhou o rosto e as mãos
na água fresca do rio, e como se a ablução lhe desse
um novo batismo de crença e de fé, sentiu-se são. Sentou
à popa da montaria, e reatou o fio das suas meditações
sobre a empresa que havia de vencer as tentações da sua carne
de vinte e dois anos, preparando-o para a outra vida, e habilitando-o a deixar
honrosa memória do seu nome.
Rememorou os feitos sublimes dos mártires do catolicismo nascente,
os tormentos aturados por todos os que de boa mente trocavam algumas horas
de dores por uma eternidade de beatitude, e reputou-se feliz por haver teimado
na árdua viagem empreendida, do que rendeu graças infinitas
ao seu anjo da guarda, que o não desamparara.
Os insetos voltavam, que voltassem! Já não lhes temia a fúria
redobrada dos ataques. Não tentava afugentá-los, nem mesmo procurava
resguardar-se das suas agudas ferroadas. Aquele tormento mandava-lho Deus
para provar-lhe a constância e ânimo sofredor. Só tinha
um pesar. Era o de ter quase desesperado com aqueles pequenos incômodos
que nada eram em comparação com os incríveis sofrimentos
suportados pelos santos do cristianismo. Naquele mesmo dia treze de agosto,
cuja noite tranqüila padre Antônio atravessava à margem
do Canumã, celebrava a Igreja de Roma a morte gloriosa de S. Cassiano,
martirizado pelos ponteiros de seus próprios discípulos. E como
pretender a palma do martírio um padre que nem sabia sofrer ferroadas
de carapanãs?
A ação forte e dominadora duma fé ardente absorvera
a vitalidade física de padre Antônio de Morais, causando-lhe
um torpor profundo, mergulhando-o numa abstração completa. A
recordação do martírio sobre-humano dos santos excitara
no seu cérebro a sensação correspondente, que o sofrimento
físico avivava, reagindo sobre a imaginação. Esquecera
o presente. Via-se entre os mundurucus a pregar o Evangelho, a reduzi-los
à civilização e à fé do catolicismo. O
rio, a canoa, o céu estrelado, o Macário e os carapanãs
varreram-se-lhe da memória. Mergulhara num sonho de catequese e de
martírio em que, atado ao tronco dum gigantesco cedro, crivado de flechas
ervadas, vertendo sangue por todos os poros, e sentindo a vida esvair-se pelas
feridas ao passo que o veneno mortífero subia-lhe lentamente ao coração,
falava ao gentio as doces palavras de Jesus.
Pouco a pouco aquele delicioso torpor fora-se apoderando de todas as suas
faculdades, e o sonho continuara como realidade tangível, em que encontrava
um gozo intenso. Recostara-se à popa da montaria.
Cerrara os olhos. Cruzara as mãos no peito e entregara-se à
suprema felicidade de sentir-se martirizado por amor de Deus Crucificado.
Os insetos, aproveitando a passividade daquele corpo, picavam-lhe o rosto,
as mãos, o peito a meio descoberto pela abertura da camisa. Gotas de
sangue vermelho cobriam-lhe as faces salpicadas de pontinhos pretos, uma nuvem
de muriçocas aureolava-lhe a fronte, coroada de cabelos negros como
a treva da noite que os envolvia.
À dúbia claridade das estrelas e ao reflexo das chamas da fogueira
da praia, o sangue brilhava como rubis preciosos, e o vulto grande do padre
destacava-se do fundo da humilde montaria numa atitude tranqüila e repousada,
que o Macário invejava, como se houvera cedido ao sono embalado pelas
auras da fresca madrugada, ao som duma música divina.
Um odor forte e balsâmico chegava da floresta, e misturando-se às
emanações úmidas e agrestes da beira do rio, enchia o
ar dum perfume oriental de nardo, sândalo e canela, que inebriava os
sentidos, despertando vagos desejos dum gozo indefinido. A água corria
docemente com um sussurro de regato coando por sobre leito de folhas, pelo
leve embaraço que o estirão punha à correnteza desviada
do seu curso; e as sardinhas, fugindo à voracidade dos peixes em caçada
noturna, faziam às vezes estremecer a toalha do rio em pequenos círculos
concêntricos que se desfaziam ao tocar na corrente, brilhando como lâminas
de cristal à escassa luz do firmamento. Sobre uma moita de taquaris,
perdida no meio dos aningais da outra banda, o reflexo da fogueira punha tons
quentes de ouro queimado, e essa réstia de luz, caindo até meio
rio, tonteava as piranhas pretas fazendo-as saltar fora da água em
cardumes assustados.
Todos esses pequenos ruídos a modo que ainda tornavam mais profundo
o grande silêncio do deserto, esmagador e terrível.
Sentindo-se num misto singular de ilusão e realidade, que no vago
conhecimento do meio ambiente o conservava embebido no sonho de martírio,
padre Antônio permanecia imóvel, impassível, sorrindo
sob as dores agudas, fruindo inconcebível bem-estar, um prazer estranho,
uma volúpia doce no castigo do seu corpo vigoroso por pequeninos insetos,
que em miríades compactas cobriam-lhe o rosto e as mãos, saciando-se
do seu sangue. As picadas eram um excitante do Amor Divino. E quando o sangue
lhe corria vagarosamente pelo rosto abaixo, dava-lhe uma sensação
de alívio e de frescura, que lhe punha nos nervos um agradável
estremecimento. O calor ocasionado pelo afluxo do sangue ao rosto, o cansaço,
a insônia forçada, o silêncio da noite e o cheiro sensual
da floresta, trazido por uma brisa refrigerante, perturbando-lhe o cérebro
desequilibrado, lançavam-no numa espécie de alienação
mental, no puro subjetivismo dos mártires e dos loucos…
De repente o ruído dum corpo atirado ao rio arrancara-o à coma
santa em que jazia.
Levantara-se e olhara para todos os lados, procurando reconhecer-se, e a
custo voltara a si. Dores cruciantes no rosto e nas mãos chamaram-no
à realidade das coisas e dos fatos. Sonhara, sem perder de todo a noção
do meio. Vira o rio, o céu, as matas, ouvira os ruídos, respirara
o odor balsâmico da floresta, mas não sentira aquelas horríveis
dores que o estavam pondo quase louco, a agitar-se freneticamente no fundo
da montaria. Isto não era sonho, sê-lo-ia o ruído que
por último o despertara do letargo?
Macário não estava no lugar em que se assentara a vociferar
contra os mosquitos, junto à fogueira, agora quase extinta. Essa ausência
inquietava-o. Chamara e ninguém lhe respondera. Que queria isso dizer?
Era de recear uma desgraça. Desembarcaria para procurar o companheiro.
Mas nesse momento, a algumas braças de distância, vira surgir
de dentro da água uma cabeça humana, com os cabelos colados
na fronte, e logo à luz das estrelas um braço agitara-se no
ar, e um homem nadando entre duas águas, com perícia, aproximara-se
da montaria, batendo com as pernas, fazendo barulho para assustar as vorazes
piranha pretas.
Com duas ou três fortes braçadas e o auxilio de padre Antônio,
Macário de Miranda Vale achou-se dentro da montaria, confortado e risonho.
Explicou que se atirara ao rio para fugir às mordidelas dos carapanãs,
uma súcia de uma figa, capaz de levar um cristão ao desespero,
e que deixando a S. Rev.ma em paz na montaria, o tinham ido perseguir, a ele,
pobre sacristão, sobre o seu coxim de folhas. A frescura da água
de súbito lhe aplacara as dores, aliviando-lhe o cérebro dos
negros pensamentos que o enchiam. Não fosse o receio das dentadas das
piranhas, e da morte entrevista na garganta de jacarés enormes, teria
prolongado o delicioso banho.
A aurora, aparecendo por entre as altas árvores longínquas,
expeliu a noite estrelada com o seu cortejo de terrores vagos e de alucinações
cruéis.
Macário, comido de mosquitos, com o rosto, as mãos, o peito
e os pés cheios de ampolas, remara silenciosamente, sentindo crescer
no cérebro, como a fervura da água que se levanta numa caçarola,
o horror daquela tresloucada tentativa do padre vigário. A continuação
da viagem que o padre resolvera logo pela manhã, como se não
estivesse fatigado, parecia ao sacristão um sacrifício superior
às suas forças. Não. Aquilo havia de terminar. Não
era possível que a sua estúpida passividade chegasse ao ponto
de sujeitar-se a passar outra noite como aquela que o pusera todo varioloso.
Não. Antes a morte!
E Macário, possuído de idéias sombrias, olhava de esguelha
para o senhor vigário, procurando descobrir na fisionomia impassível
do jovem sacerdote um indício de desânimo, um leve sinal de perturbação
interior, que mostrasse hesitação no insensato alvitre de se
deixar comer de mosquitos antes de ser devorado pelos mundurucus! Nada. O
idiota do padre era inabalável! pensava o sacristão, com indignação
a custo concentrada, perdendo mentalmente o respeito àquele homem,
a cujas ordens cegamente obedecia.
Padre Antônio sentado à popa, governando o jacumã, não
perdia nenhum dos olhares observadores que o Macário lhe atirava, na
persuasão de que o vigário não lhe notava os movimentos.
Padre Antônio sentia-se salteado por saudades vagas do tranqüilo
viver do presbitério, mas escondia-as bem no fundo do coração
cuidando em vencê-las como tentações do demônio,
sempre em viva guerra com a paz da sua alma e o repouso do seu corpo. As vigílias,
os dias sem descanso suficiente, a má alimentação e ainda
o visível mau humor do companheiro, começavam a exacerbar-lhe
a bílis, causando-lhe impaciências nervosas e uma raiva surda
sem motivo nem objetivo certo. As inflamações do rosto e das
mãos incomodavam-no muito. O sol as irritava com os seus beijos de
fogo, produzindo um ardor contínuo que ameaçava transformar-se
em febre. Ia também silencioso o padre, puxando molemente o remo, pensando
nos dias que ainda lhe faltavam para chegar ao seu glorioso destino.
Às oito horas da manhã o Macário esquecera momentaneamente
o desgosto e lembrara que eram horas de almoço. Justamente achavam-se
perto duma pequena ilha verdejante de muritis e tucumãs, onde poderiam
encontrar sombra e frescura para repousar depois do almoço, porque
o sol já castigava tanto que – S. Rev.ma perdoasse – era impossível
suportá-lo com o remo na mão. Para almoço pouco tinham.
Era o triste pirarucu de sempre, que fazia suspirar pela gorda carne de vaca
e pela gostosa farinha-d’água em que o costumava envolver com limão
e pimenta para depois regá-lo com o vinho do Filipe do Ver-o-peso…
Mas, Senhor Deus, nem valia a pena falar em coisas cuja lembrança só
servia para tornar mais sensível a miséria do presente. Comesse
todavia S. Rev.ma, que antes pirarucu do que nada.
Padre Antônio recusara o almoço, mas consentira em desembarcar
na ilha para fugir ao ardor da canícula e mesmo descansar um pouco
à sombra das árvores, a fim de recuperar a noite perdida.
– Saberá V. Rev.ma que isto era indispensável, disse o Macário,
repleto de pirarucu e de bananas verdes, estendendo-se ao lado de padre Antônio
à sombra de árvores folhudas.
Padre Antônio não respondeu. Cerrara os olhos, mas não
dormia.
O calor aumentara. O sol tinha cintilações de cobre polido
que ofuscavam a vista e causavam vagas dores nevrálgicas nas arcadas
superciliares, aquecendo a cabeça. As árvores estavam paradas,
ressequidas, estalando ao contato da mais leve aragem ou de algum passarinho
que voejava em busca de sombra e de frescura na folhagem verde-claro com ligeiros
tons violáceos. O chão duro, seco, crestado pelo calor, ressoava
ao passo tardonho e preguiçoso das capivaras que vinham beber ao rio.
Um enxame de mutucas verdes esvoaçava no ar, com um zumbido sonoro,
e o sol dava-lhes um brilho de esmeralda e ouro às asas rutilantes.
Sobre as folhas secas que a última ventania derrubara, camaleões
expunham ao calor do sol os ventres brancos e chatos, comprazendo-se na imobilidade
de fogo, e grandes jacuruarus pardos, deixando o esconderijo dos tocos de
pau, arrastavam no horizonte em espessa muralha cinzento-escura, denunciando
a caça dos gafanhotos inofensivos que, desmaiando de susto, tentavam
confundir-se com as folhas claras das pacoveiras selvagens.
O céu começava a toldar-se de nimbos carregados que se cerravam
no horizonte em espessa muralha cinzento-escura, denunciando a borrasca em
que se ia transformar de súbito aquela esplêndida manhã
de verão. Precedida dum bando de maguaris que vinham voando com pios
aflitivos, uma nuvem negra aproximava-se com rapidez, e em breve cobria o
sol com uma cortina escura que sombreou a superfície do rio e encheu
a floresta de mistério. Uma forte lufada que vergou a coroa dos miritis
e das juçaras, levantou as folhas secas que lastravam o solo, e que
se puseram a correr ao sabor do vento com um ruído de maracá
selvagem. As nuvens acumuladas chocaram-se, desprendendo a faísca elétrica,
medonho trovão abalou a terra, indo estourar por trás da cordilheira
com eco surdo e longínquo. Macário acordou sobressaltado.
Começou logo a chuva a cair em grandes bátegas de água,
rufando nas folhas das árvores, e um cheiro acre e intenso de barro
molhado de fresco subiu da terra. Lagartos e calangros correram a abrigar-se
nas junturas das pedras e nos tocos negros dos madeiros a meio carcomidos
pelo tempo. Os passarinhos trataram de esconder-se no mais denso do mato em
prudente silêncio. O rio, pálido, manchado de pingos pardacentos,
agitava-se num balanço frouxo, sacudindo os periantãs que se
desprendiam da margem e punham-se a viajar na correnteza.
Era preciso primeiro que tudo cuidar da canoa, que não podia ficar
exposta à chuva, e que deviam cobrir com o japá e alguns ramos
de árvore. Depois iriam abrigar-se sob a copada cuieira que dali estavam
vendo, e cujos ramos entrelaçados de parasitas multicores ofereciam
um resguardo suficiente.
– Isto é chuva de trovoada, logo passa, terminou padre Antônio,
indo com o companheiro para o abrigo da cuieira.
Mas a chuva recrudescia de violência, varando a ramagem da cuieira,
e caindo em cheio sobre o padre e o sacristão que se foram meter sob
o japá da canoa, guardando uma posição incômoda
por largo espaço de tempo, na esperança de ver raiar o sol entre
as nuvens que escureciam o horizonte. Não cessava a chuva e o bom tempo
podia não voltar antes do cair da noite. Era, pois, melhor continuar
a viagem, debaixo de toda aquela carga de água, já que a não
podiam evitar sem maior sacrifício.
– Afinal, disse padre Antônio, a chuva não quebra ossos.
Macário não partilhava dessa opinião, mas obedeceu com
surda rebeldia. Lembrava-se de um certo reumatismo antigo que lhe torturava
os músculos das costas, sempre que pilhava algum resfriamento. A posição
que deixava ao incômodo abrigo do japá da canoa não era,
a falar a verdade, muito tolerável, e prudente parecia a resolução
do senhor vigário, mas nem por isso ficava o Macário satisfeito.
A raiva aninhava-se acesa no seu coração de homem honrado. Não
seria obrigado àquele extremo de atirar-se às intempéries,
numa obediência passiva, se padre Antônio não se tivesse
lembrado da existência dos mundurucus em terras do Amazonas, e, por
maior desgraça, da existência dele, Macário de Miranda
Vale, que não era mundurucu nem nada. A idéia de fugir, de escapar
por qualquer modo àquela situação impossível pregou-se-lhe
no meio do cérebro. Ou por maquiavelismo ou por outra forma que achasse
ao seu alcance. Nossa Senhora do Carmo valer-lhe-ia, como já lhe havia
valido tantas vezes.
O vigário ia atento, governando o jacumã com redobrado cuidado.
Da foz do Mamiá em diante, o Canumã estreitara muito. As margens
tinham aspecto mais selvagem e a navegação não ficava
isenta de perigo. A corrente era difícil de vencer, obrigando a canoa
a navegar perto da beira para aproveitar o remanso. Isso alongava a viagem
pelo desdobramento da sinuosidade do rio e arriscava a montaria ao desabamento
das terras, a bater num tronco de árvore ou encalhar em algum banco
de areia. A viagem atrasara-se. Apenas a embarcação se distanciara
algumas braças da foz do Mamiá, que atravessara com dificuldade.
A tarde chegara, banhada de aguaceiros sucessivos, e em breve o horror duma
noite sem estrelas devia envolver o céu e a terra numa escuridão
completa. Padre Antônio remava, pensativo. A previsão das trevas
impenetráveis duma noite chuvosa, sem o clarão dum relâmpago,
em pleno rio sertanejo, sugeriu-lhe pela primeira vez a idéia da possibilidade
dum erro. Duvidou da sanidade do seu cérebro. Uma obcecação
fatal devia ter-se apoderado do seu espírito para que não compreendesse
a loucura duma viagem nas condições da que fazia. Aventurar-se
a um rio despovoado e quase desconhecido, numa pequena montaria de pesca,
sem víveres e sem cômodos, não contando com os insetos,
com a fome, com as itempéries, com os perigos da navegação
realizada com a pasmosa segurança de quem atravessasse de Silves para
a foz do Urubus, era coisa muito de admirar em homem que tinha por obrigação
ser sisudo e prudente. Começara a viagem numa excelente igarité,
espaçosa e segura, tripulada por dois remeiros vigorosos e práticos,
sortida de víveres abundantes e de tudo mais que era preciso numa viagem
ao sertão. Como, porém, perdera tudo isso, metera-se-lhe na
cabeça, num momento de insensatez, continuar a viagem a todo o transe,
custasse o que custasse, para não retroceder. Agora uma dúvida
atroz estava-lhe atravessando o espírito. Fora o exemplo da coragem
sobre-humana dos mártires antigos que o levara àquele passo,
ou uma tentação demoníaca que lhe excitara a vaidade
pueril de não parecer vencido por obstáculos triviais? De relance
esta última idéia iluminara-lhe o entendimento. O inimigo da
alma insinuara aquela inqualificável teima, que o desarmava para sempre.
A continuação da viagem, depois da perda da igarité,
fazia abortar a missão pela impossibilidade física de a levar
a fim. Os mundurucus ficariam ainda por muitos anos nas trevas da barbaria.
A Igreja perdia esses novos crentes, e o moço padre, em vez do quinhão
de glória com que sonhara assegurar a salvação eterna,
acabaria desconhecido e miserável.
A escuridão da noite que se avizinhava entenebrecia-lhe cada vez mais
os pensamentos. A convicção de que fora vítima do pecado
naquela empresa santa, penetrava-o. Lera que muitas vezes Satanás se
serve das mais santas causas para preparar a queda das frágeis criaturas
de Deus, e reconhecia no intimo do coração que carecera da humildade
cristã que ampara e fortalece contra as tentações da
soberba. Sondando o fundo da consciência reconhecia, e o confessava
a Deus Misericordioso; não haviam sido tanto o ardor da propaganda
e o zelo da catequese que o tinham feito obstinar-se naquela empresa impossível.
Aniquilado, sentindo toda a vileza do seu caráter, toda a lama mole
do seu orgulho, não o ocultava por mais tempo a Deus, como o procurara
fazer a si mesmo, que foram talvez a teima, a obstinação casmurra,
talvez o receio daquele terrível escarnecedor de padres que ria das
suas ladainhas e dos seus olhos baixos. Um grande desprezo de si o invadia,
era o último dos últimos, a própria abjeção
saturava-o. Joguete vil do demônio (nenhum móvel elevado e nobre
o impelira aos sertões da Mundurucânia. Era uma criatura desprezível,
merecedora da sorte que o destino implacável lhe preparava nas inóspitas
paragens sertanejas. Corpo apodrecido de vaidade balofa, inchado de ignorância,
envenenado pela inveja e secretamente roído por uma luxúria
ardente, digno era de servir de pasto aos urubus asquerosos, empestando o
ar e excitando a gulodice dos vermes.
Comprazia-se no rebaixamento da sua personalidade, no exagero dos seus defeitos,
no aviltamento de tudo quanto lhe era mais caro, e dessa humildade extrema
em que pedia a Deus o perdão do seu maior pecado, vinha-lhe um grande
abatimento que a fadiga e a fome aumentavam.
Viera a noite e a chuva caía sempre, obrigando os viajantes a deixar
os remos e a esgotar a água que a canoa fazia por todo o costado. Não
fora possível fazer fogo para preparar a comida. Abeirados a um estirão
de terra que se lhes deparara, fora preciso passar ali a noite toda, interminável
e chuvosa, na escuridão. A chuva já não dava em bátegas,
mas num fino e frio chuvisqueiro, contínuo e monótono, penetrando
os ossos. Do Canumã, das margens alagadas, do seio da floresta, embebida
em água, vinham vapores úmidos, um grande cheiro de barro, de
madeiras molhadas, de folhas secas repassadas de água, de paus apodrecidos,
de lama revolvida. E do céu tenebroso e infinito a chuva caía
ainda, trocando umidade por umidade, e saturando de água a terra, como
se lhe quisesse extinguir o ardor do seio com um novo dilúvio fecundante.
Naquele dia o sacristão Macário fora sentar-se à beira
do rio, sobre um tronco verde, sem querer ouvir os discursos com que padre
Antônio de Morais procurava confortá-lo, ou iludi-lo, como fizera
até ali. Deixava-se estar abismado nos profundos pensamentos que substituíam
a alegre despreocupação de outrora. Depois daquela horrorosa
noite de chuva, passada em densas trevas à margem do Canumã,
não houvera remédio senão prosseguir na viagem, uma vez
novamente calafetada a reles montaria do Guilherme, em busca do maldito porto
dos Mundurucus, cada vez mais distante, e que, naquela ocasião de desespero,
oferecia-lhes um fim e um abrigo, fosse embora esse fim a morte, e esse abrigo
a sepultura.
A infame covardia de que agora Macário com maior indignação
se acusava, à luz do sol dum belo dia, o levou naquela ocasião
a consentir na continuação da viagem, pelo desânimo que
dele se apoderara, cansado, faminto, molhado, incapaz dum ato de energia,
cedendo à fatalidade que o arrastava para o abismo pelo órgão
daquele padre endemoninhado. E o resultado de mais essa fraqueza, quando já
tantas decepções e infelicidades o haviam castigado, fora arriscá-lo
ao maior perigo que jamais correra em dias da sua vida. Ah! o sargento de
polícia espancava-o, padre José, que Deus houvesse, descompunha-o,
mas nenhum deles pensara em mandá-lo para os anjinhos! Fora preciso
que viesse a Silves padre Antônio de Morais para que Macário
de Miranda Vale fosse o mais infeliz dos homens!
Haviam largado do porto em que passaram a noite chuvosa, e alguma coisa confortados
com o regalo de dois gordos pacus que, por milagre! Macário pescara
e assara ao espeto. Remavam regularmente, quando avistaram uma canoa que levava
a mesma direção da montaria, mas seguindo a margem oposta do
rio. Pararam de remar para esperar os companheiros que vinham mais atrasados,
felicitando-se pelo auxílio que lhes chegara de improviso. A idéia
de esperar fora do padre, porque Macário era homem experiente e desconfiava
de tudo! Mas o senhor vigário não tinha medo de nada! Afinal
a tal canoa de companheiros era nada mais nem menos – e só de pensá-lo
Macário estremecia de horror – um ubá selvagem que surdira do
Mamiá e navegava talvez para alguma aldeia da vizinhança.
A tempo teriam evitado o perigo, porque o ubá, tripulado por três
índios, trazia grande velocidade, e seguia pela margem oposta, sem
que os selvagens tivessem visto a pobre montaria. Mas a incrível imprudência
e a espantosa leviandade de padre Antônio de Morais não o permitiram.
S. Rev.ma queria à fina força converter mundurucus! S. Rev.ma
queria a todo o custo ser mártir da Igreja! S. Rev.ma queria morrer
flechado, embora sacrificando também a vida de quem não era
padre, nem doido, nem nada!
Por isso em vez de deixar passar o ubá, Padre Antônio pusera-se
a gritar como um possesso:
– Bom-dia, patrícios!
O ubá parara de repente. Os patrícios não hesitaram
na resposta a dar a S. Rev.ma .Três flechas – com certeza estariam ervadas
– descreveram uma elipse no ar, e vieram cair pertinho da montaria. Era o
tiro de aviso, seguido de novo tiro. Duas flechas cravaram-se no fundo da
canoa, tão perto do Macário que só por milagre poderia
ter escapado. Milagre fora esse e grande, porque os diachos dos caboclos esqueceram-se
de que o ubá subia o rio, cuja correnteza natural fora aumentada pela
grande chuva da véspera que nele derramara as águas do monte.
Sem se lembrarem de mais nada senão flechar os pobres brancos – largaram
o jacumã, e o ubá, perdendo a força impulsiva que trazia,
fora de mansinho cedendo à correnteza, e virando proa para baixo, começara
a descer o rio com maior rapidez do que subindo lhe poderiam dar os braços
dos tripulantes. Felizmente S. Rev.ma compreendera logo que os tapuios não
estavam para conversas, e dando ele e o Macário ao remo, com a maior
gana deste mundo, trataram de fugir. Valeu-lhes estarem ainda a boa distância
da embarcação selvagem. Milagre fora ainda ficarem os índios
tão furiosos e atarantados que não souberam dividir a atenção
entre a presa que fugia e a correnteza que os arrastava. Milagre fora também
encontrar logo a montaria um estirão que dobrara para escapar às
vistas dos ladrões dos tapuios, e altas canaranas em que se escondesse.
Milagre fora achar Macário, logo ao desembarcar com o padre, um enorme
taperebá, donde pudera ver, trêmulo de susto, a manobra com que
os mundurucus os caçavam, remando com vigor, mas parando de vez em
quando, na ingenuidade do seu ódio, para exprimir a vontade com que
estavam de os colher às mãos, e logo voltando ao remo, curvados
sobre os joelhos, parecendo tocar de leve a água. Uma longa esteira
seguia a embarcação, refletindo os raios do sol ainda no oriente,
e os troncos vermelhos dos índios destacavam-se na linha do horizonte
por entre a folhagem verde.
Na altura do estirão que, ao que deviam supor, lhes encobria os brancos,
dispuseram-se a atravessar o rio, mas não vendo a montaria, pararam
de remar, hesitantes e surpresos. E por que cessaram a perseguição,
mudando subitamente de propósito e cedendo à ordem que num gesto
lhes dava o do jacumã para que remassem em direção a
um furo que já haviam passado? Inconstância selvagem, necessidade
urgente que os chamasse àquele furo, ligada à certeza de que
os brancos não lhes escapariam, devendo cair mais tarde ou mais cedo
no seu poder – pelo que mandaram um último tiro, sem pontaria, como
para dizer: até logo – isso é que Macário não
podia decidir. Era provavelmente milagre de Nossa Senhora do Carmo e de S.
Macário. Mas por isso mesmo aquele fato devia servir de lição,
e Macário estava decidido, inteiramente decidido a aproveitar-lhe o
ensinamento. Não hesitaria mais,. nem teria mais fraquezas. O encanto
que o prendia a padre Antônio de Morais estava quebrado para sempre.
Falasse para aí horas e horas, arregalasse os olhos na grande severidade
de quem se julga superior a todos, vomitasse sangue, arrebentasse os peitos,
Macário não arredaria pé dali, não se levantaria
daquele tronco de árvore senão para voltar rio abaixo até
Silves. Ainda que tivesse de morrer de fome ou de ser devorado por alguma
onça, não embarcaria senão para voltar. Jurara-o. Era
muito temente a Deus, não podia faltar ao seu juramento.
Padre Antônio estava convencido de que a retirada dos mundurucus fora
uma demonstração clara e positiva da Providência em favor
da missão. Depois desse fato extraordinário e surpreendente
era impossível abandonar o glorioso projeto de catequese. O ataque
dos homens do ubá nada provava. Não podiam – coitados! ter recebido
como de amigo a saudação de um homem em quem não reconheciam
o caráter sacerdotal. Ao sair do sítio do Guilherme, por pura
comodidade, padre Antônio cometera o grave erro de trocar o hábito
talar por umas roupas grosseiras que a Teresa lhe emprestara. A sua até
então, e de agora em diante, inseparável batina que acabara
de vestir com o chapéu de três bicos, era suficiente para inspirar
a todos os selvagens do Amazonas o maior respeito pela sua pessoa e pela do
seu desanimado companheiro. E passeando em frente de Macário pensativo
e cabisbaixo, S. Rev.ma o apostrofava com a eloqüência persuasiva
com que pregava em Silves.
Que fraqueza era aquela dum servo de Deus, de entregar-se assim ao desespero
esquecendo a sua infinita misericórdia e a sua imensa bondade? Estaria
Macário arrependido de ter-se dedicado, com desapego dos bens mundanos,
à obra sublime da catequese dos mundurucus, que lhe granjearia uma
glória imorredoura nesta vida, e na outra a bem-aventurança
eterna? Que era a miserável vida que punham ao serviço da religião
do Crucificado e da civilização do Amazonas? Para o martírio
haviam-se disposto desde que embarcaram para aquela viagem.
E antes de ter alcançado a palma dos seus esforços recuariam
do caminho por causa de carapanãs e de outras pequenas contrariedades
que o Senhor enviava para os provar? Seria acaso, continuava S. Rev.ma depois
de um gesto de desprezo dos carapanãs, seria acaso pelo ataque dos
índios do ubá que o sacristão queria abandonar o seu
vigário, fugindo para eterna vergonha sua, da sua classe inteira? Mas,
não fora para se exporem a ataques semelhantes, a combates, fomes,
desolações e misérias que se haviam dedicado àquela
missão de paz e de amor, abandonando os cômodos de uma vida tranqüila
e repousada? Demais o episódio do ubá era mais próprio
para dar-lhes do que para lhes tirar a coragem. Estava bem patente na fuga
daqueles tapuios a intervenção divina, nem era capaz de dizer
o contrário. Se Deus Nosso Senhor não quisesse a realização
da missão, bastava-lhe abandonar os brancos à sanha daqueles
selvagens. Entretanto, que fizera ele? Respondesse o Macário, que fizera
o Senhor Deus dos Exércitos? Primeiro, havia por suas mãos desviado
as setas envenenadas. Depois havia tocado o coração dos índios,
e os seus servos ali estavam sãos e salvos, rendendo graças
à sua infinita bondade. Isto era lógico, ou então dissesse
o Macário o que era a lógica, que ele padre Antônio mandaria
dizer ao padre Azevedo, o maior teólogo do Norte do Império,
que procurasse outro ofício. Deus repetira o milagre de Davi escapando
aos soldados de Saul.
– Vamos, Macário, terminara, sursum corda. Digamos como S. Paulo aos
romanos: Sejamos alegres pela esperança e resignados nas tribulações.
Padre Antônio entusiasmava-se com as suas próprias palavras,
readquiria pouco a pouco, sob a ação do seu discurso, ao fogo
da própria eloqüência, a convicção que nos
últimos dias parecia ter afrouxado. A fé renascia no seu espírito
abalado pelos contratempos da viagem. As frases ardentes e sonoras que lhe
brotavam dos lábios, reacendiam-lhe no peito a exaltação
do proselitismo. Como um artista, a quem a obra das próprias mãos
enternece e comove, apaixonara-se pelo quadro que expunha às vistas
desanimadas do companheiro. Uma resignação sublime pintava-se
no seu semblante e exprimia-se nos seus gestos.
– Se morrermos, fiat voluntas tua, ó soberano do céu e da terra!
Levaremos para o túmulo com a certeza de haver cumprido o nosso dever
as bênçãos da posteridade. Temos de morrer um dia. A morte
é o tributo natural da humanidade à contingência criada.
Se há-de ser de moléstia ou de acidente, que venha a morte das
mãos dos inimigos de Cristo, Senhor Nosso, tentando chamá-los
ao grêmio da Igreja Universal, e cumprindo a lei de Deus que nos criou.
Que vale a vida obscura e inútil de pobres criaturas, escravas do pecado
como nós somos? Só Deus é grande, e a suprema felicidade
é possuí-lo a custo do insignificante sacrifício desta
vida terrena. E Deus é duma infinita bondade, porque dá-nos
tanto por coisa tão miserável e mesquinha que nos poderia tirar
sem compensação. Eia, Macário, erga-me essa cabeça
e fite-me o céu azul, cheio de promessas e de esperanças!
De repente pareceu a padre Antônio de Morais que de tanto cismar no
ubá de índios que haviam encontrado pela manhã, Macário
enlouquecera. O sacristão, erguendo-se dum jato, e dando um grande
grito, pusera-se a correr desadoradamente para o porto. Da sua boca escancarada
pelo terror, o padre ouvira o nome da tribo de índios ferozes que andava
buscando por aquelas paragens ermas:
– Mundurucu, mundurucu!
Mas logo o padre conheceu que o Macário não fugira sem motivo.
Quando se voltou para seguir a direção do olhar assustado do
sacristão, dois homens, dois índios, parados a alguns passos
de distância por trás dum matagal que lhes encobria a parte inferior
do corpo, do ventre para baixo, ofereciam aos olhos atônitos do padre
os troncos nus e a face cor de cobre, que se destacavam no meio da verdura
como um baixo-relevo de bronze. Os índios olhavam fixamente para o
chapéu de três bicos que o vigário conservava na cabeça,
e no momento em que o padre os vira, atiravam-se para a frente, cortando apressadamente
o mato que lhes embaraçava o passo. Padre Antônio compreendia
bem que tudo estava perdido. Chegara afinal a hora do martírio, por
tanto tempo procurado e desejado como o supremo bem.
Nem valia a pena dirigir a palavra àqueles selvagens para implorar
misericórdia, ou para falar-lhes a linguagem de paz e de amor que trazia
desde muito estudada para o primeiro encontro.
Para que discursos?
Naquela manhã, que devia ser a última da sua vida inglória
e obscura, percebera que os mundurucus não falavam a língua
geral, mas um dialeto impossível de compreender para quem, como padre
Antônio, possuía apenas os rudimentos do tupi. Seria escusada
qualquer tentativa de conversão daqueles selvagens, sem o auxílio
dum intérprete, sem a calma e o concurso do tempo.
Demais naquele supremo momento um desânimo profundo apoderou-se do
seu coração. Como por encanto, desaparecera o entusiasmo ardente
que o animara ainda havia poucos instantes. Enquanto os índios se esforçavam
por aproximar-se dele, padre Antônio concentrava numa emoção
profunda toda a agra tristeza da sua mocidade perdida, as saudades de sua
meninice feliz e descuidada, as suas aspirações de mancebo,
os sonhos de ventura e de glória, o negro desespero duma irremediável
desgraça.
Como os arbustos derrubados pelos terçados indígenas, as suas
ilusões caiam de súbito. Ia desaparecer para sempre da face
da terra quem tanto soubera sentir os carinhos dessa mãe extremosa,
e com tanto ardor amara o sol, as árvores, os passarinhos, a grande
natureza virgem. Morreria às mãos de estúpidos selvagens
quem se conhecera fadado para uma carreira brilhante, para deslumbrar o mundo
com o brilho do talento e de virtudes raras! Nem ao menos teria tempo de chorar,
como a filha de Jefté, a sua virgindade inútil! E o passamento
desconhecido e inglório nenhum lustre daria ao seu nome, para sempre
sepultado, com o corpo vigoroso e jovem, naquele inculto sertão, só
visitado de feras e de índios boçais, que viriam tripudiar sobre
o cadáver, talvez despedaçado sem reverência para servir
de odioso troféu! Era triste sentir-se cheio de vida, de saúde
e de força, tão perto da morte; e terrível era vê-la
aproximar-se lentamente, certa e inevitável, sem que o alento duma
esperança permitisse conservar uma ilusão. A realidade tremenda,
esmagadora, estava ali naqueles braços nus, naqueles terçados
finos, faiscando à luz do sol, como para dizerem brutalmente a evidência
do seu fatal destino.
Um terror que ia crescendo e se definindo pouco a pouco invadia-lhe o coração.
A dúvida mordia-o como uma serpente, causando-lhe um calafrio que acabava
de tirar-lhe a presença de espírito. Estaria em graça?
Não iria, por última e suprema infelicidade, morrer em pecado
mortal, ele, cujo maior empenho fora salvar a alma das garras do demônio,
e para o conseguir fizera um feixe de todas as paixões de homem e de
todas as aspirações de moço e o queimara sem pesar na
ara sagrada da religião e do sacrifício! As pequenas faltas,
as tibiezas de ânimo, os súbitos desalentos acudiam-lhe à
memória num tropel confuso, e um rápido clarão enchia-lhe
o espírito de uma verdade amarga, rasgando-lhe os véus da consciência
e patenteando a vaidade, o orgulho, a ambição de nome e de glória,
que, mais do que o Amor Divino, haviam motivado os atos da sua vida. Perturbado,
unindo à angústia do pecador na hora da morte, um vago pesar
dos deleites perdidos e um arrependimento sincero e inútil, perdia
a noção exata do que se passava em redor de si…
Os os rompiam afinal o mato que lhes estorvava a passagem. Padre Antônio
caiu de joelhos sobre a relva ainda úmida das chuvas da véspera,
e, juntando as mãos numa agonia, ergueu os olhos para o céu,
num olhar em que pôs toda a sua alma, e aguardou silencioso o golpe
que o devia prostrar para sempre.
CAPÍTULO IX
O capitão Manuel Mendes da Fonseca acabara de tomar a sua xícara
de café, adoçado com rapadura, acendera um cachimbo, e fora
para a porta da rua, a conselho de D. Cirila, espairecer a negra preocupação
que lhe haviam deixado as Últimas notícias vindas de Manaus
pelo vapor Belém.
Seriam cinco horas da tarde. O sol caminhava lentamente para o ocaso, ensombrando
mais da metade da rua e dando reflexos dourados à água serena
do lago Saracá, tranqüilo àquela hora, como de ordinário.
A vila retomara o seu aspecto normal, com as casinhas bem alinhadas, abertas
à viração fresca da tarde, os habitantes a fazerem a
digestão do jantar à janela ou à porta da rua, à
porta do Costa e Silva ou sob as ramalhudas amendoeiras do porto, cavaqueando
pacatamente, no deslizar suave e monótono da vida sertaneja.
Só à porta do coletor ninguém estava, e essa falta,
parecendo proposital ao seu espírito atribulado, carregava-lhe o semblante
com uma nuvem sombria, e bulia-lhe com o fígado.
Antes de partir para os castanhais havia muito tempo que tal fato não
se dera, a não ser em alguma tarde chuvosa. O Valadão, o vereador
João Carlos, o juiz municipal e outros que não freqüentavam
a loja do Costa e Silva, inficionada de heresia maçônica pela
presença do professor Chico Fidêncio, vinham todas ás
tardes à porta da coletoria trazer as novidades do dia e conhecer a
opinião do dono da casa, levando a dedicação ao ponto
de ali ficarem palestrando quando o coletor, a pretexto da necessidade de
comprar alguma coisa, fazia uma investida ao antro do maçonismo, para
mostrar àquele patife do Fidêncio que não tinha medo das
suas criticas ferinas.
Mas agora, depois da volta dos castanhais, o capitão Mendes da Fonseca,
sentado na sua cadeira de braços, fumando gravemente no seu cachimbo
de taquari, notava a falta dos amigos, e não podia deixar de a relacionar
com as notícias trazidas pelo Belém, e que ameaçavam
claramente o seu prestígio e a sua posição na sociedade
de Silves.
O coletor, isolado, cismava, olhando vagamente para o largo tranqüilo,
em que vinham boiando, quase sem esforço de remo, duas ou três
montarias de pesca que se recolhiam ao porto. A vista do lago recordava-lhe
o tempo passado sob os castanheiros frondosos, à margem dos rios sertanejos,
na delícia do viver alegre e despreocupado, passando os dias na colheita,
a regalar-se de castanhas e de peixe fresco, de ovos de tartaruga desenterrados
da areia com alvoroço de criança, as noites nas festas ruidosas
dos lundus e dos cateretês que iam até ao amanhecer, ao som dos
instrumentos primitivos dos tapuios, ao perfume irritante da aguardente de
mandioca e da catinga das mulatas, enquanto a família dormia em alvas
redes de linho, nas barracas improvisadas, cansada de vagabundear na extensão
das praias em busca de ovos de garças e de maguaris.
Mas quando relanceava os olhos sobre o seu quarteirão deserto, a falta
do Valadão, do João Carlos, do Natividade e do Pereira desfazia
de pronto a impressão agradável que aquela recordação
lhe dava, e um grande pesar lhe vinha de ter cedido inconsideradamente ao
gosto pela pândega dos castanhais e, sobretudo, de se ter lá
deixado ficar tanto tempo. Fora para passar o S. João, satisfazendo
o pedido da mulher que morria por gozar a festa nas praias, longe das cerimônias
e incômodos a que a obrigava a posição do marido em Silves.
Passara-se o S. João, viera o S. Pedro, depois o dia de Santana, e
dois longos meses se haviam esgotado sem que o coletor, esquecido dos árduos
deveres que lhe incumbiam, pensasse em outra coisa senão em colher
castanhas para o Elias e em pagodear com as caboclas à beira do rio,
vingando-se fartamente do constrangimento da sobrecasaca de lustrina e dos
sapatos ingleses que lhe impunha a etiqueta da vila, pelo menos quando fazia
visitas e principalmente aos domingos.
Ainda lá estaria decerto, pensava, com um sorriso, se de repente a
senhora D. Cirila não se tomasse de ciúmes por uma mulatinha
faceira, que lhe freqüentava a barraca, e lhe comia em contas e chitas
o melhor do lucro das castanhas. Mas para ter as notícias que recebera
ao chegar, antes não houvesse voltado, ou melhor, nunca lá tivesse
ido. Fizera sempre muito bom juízo do Pereira, esse rapaz que lhe parecia
de bons costumes, e a quem deixara o encargo de o substituir na coletoria
dando-lhe dinheiro a ganhar… Pois fora esse mesmo Pereira o principal causador
dos dissabores que estava sofrendo. De ingratos andava o mundo cheio!
O capitão sacudira a cinza do cachimbo, renovara o tabaco e acendera-o,
e depois que observara que nem o Valadão, nem o João Carlos,
nem o Natividade aparecia, pusera-se de novo a ruminar os graves acontecimentos
que se haviam dado na sua vida depois que fora aos castanhais. A traição
do escrivão José Antônio Pereira pesava-lhe sobre o coração,
não porque se arreceasse da influência daquele lagalhé,
que ele tirara do tijuco em que vivia para dar-lhe emprego e importância,
mas porque as circunstâncias da política favoreciam extraordinariamente
as intrigas urdidas contra o coletor por um patife, que pretendia tirar-lhe
o emprego, para locupletar-se com ele, dilapidando provavelmente as rendas
públicas. Não fossem essas circunstâncias excepcionais,
e bem se importaria o capitão Manuel Mendes da Fonseca com as infâmias
do tal escrivãozinho das dúzias!
Mas, enquanto o coletor gozava a sua licença, e mesmo, a excedia alguma
coisa, à sombra dos castanheiros, o presidente da província
do Amazonas deixara a administração sem aviso prévio,
e sucedera-lhe interinamente um cônego, que o gabinete Paranhos esquecera
na lista dos vice-presidentes, em segundo ou terceiro lugar, e que, por mal
dos pecados, era um católico ardente e ativo depositário da
confiança da panelinha da Boa nova, o jornal que atiçava a questão
religiosa na diocese do Grão-Pará.
O presidente resignatário passara por Silves muito zangado com o governo,
que o não satisfizera numas tantas coisas, e que para vingar-se passara
a administração ao cônego Marcelino, que mostraria aos
amigos do gabinete de que pau era a canoa. Até que chegasse a notícia
ao Rio de Janeiro e o ministério pudesse pôr na presidência
um dos seus amigos do peito, seriam precisos três meses bons, e isso
mesmo se o João Alfredo, atrapalhado com as Câmaras, não
se descuidasse da longínqua província que só lhe servia
para dar ao governo dois deputados da maioria. Ora, em dois meses padre Marcelino
tinha tempo de sobra para reagir contra os que se julgavam obrigados, na qualidade
de amigos da situação, a fazer praça de liberalismo,
falando mal dos padres e defendendo a maçonaria. Padre Marcelino era
cabeçudo, sem entranhas, de poucas brincadeiras, e tinha ódio
mortal a tudo que era ou lhe parecia maçom. E o patife do Pereira não
se lembrara de escrever para Manaus que o capitão Fonseca era maçom,
amigo do Chico Fidêncio e assinante do Democrata?
Aquela infâmia do Pereira desatinava o coletor, dava-lhe uma vontade
invencível de agarrar o escrivão da coletoria pelas goelas e
de o mandar desta para melhor vida. Ele, maçom! O capitão Fonseca
amigo do Chico Fidêncio! Isto só lembrava ao diabo! E o tal escrivãozinho
não se limitara a isso, falara em certas irregularidades da repartição,
em certos desfalquezinhos, verdadeiras insignificâncias, que nunca apareceriam
se o coletor não tivesse caído na asneira de deixar o exercício,
porque sabia passá-los de trimestre para trimestre, cuidadosamente
velados sob a denominação de – saldo em caixa – e, valha a verdade,
dando-se tão bem com esse sistema que até estavam engordando.
Ainda acrescentara o cachorro que toda a gente estranhava o dinheiro que o
coletor gastava em pândegas nos castanhais, e, requinte de perfídia!
ousara aquele incomparável patife, recordar aos inspetores da Tesouraria
de Fazenda e do Tesouro Provincial que o capitão Manuel Mendes não
tinha fiança, como se um homem da sua qualidade precisasse prestar
fiança, como qualquer troca-tintas!
Todas as pequenas faltas que lhe atribuíam não lhe causariam
o menor abalo se o Pereira não se tivesse lembrado da intriga do maçonismo,
com que o queria deitar a perder no conceito do vice-presidente da província.
Outros mais pintados do que José Antônio Pereira já tinham
feito as mesmas acusações e nada haviam conseguido. A respeito
da tal fiança, a Reforma liberal escrevera notícias furibundas
de que os presidentes nenhum caso fizeram. Mas agora, com essa história
de questão religiosa, as coisas mudavam muito e o coletor não
se sentia tranqüilo. O tal padre Marcelino queria ser um Catão,
e tratando-se de maçons, era duma severidade até ridícula!
O que valia era que, tendo notícia dos boatos traiçoeiros do
escrivão, o coletor não perdera tempo, escrevera para Manaus,
deixara de ir à casa do Costa e Silva e até arranjara meios
de levar uma descompostura do Chico Fidêncio, numa correspondência
para o Democrata. O trecho fora transcrito, à custa do Fonseca, no
Jornal do Amazonas, que era o órgão do governo, precedido duma
defesa, em que um amigo dizia que o capitão Manuel Mendes da Fonseca,
conhecido em todo o vale do Amazonas pela sua honradez e sólidos princípios,
estimava os ataques da maçonaria, porque constituíam uma glória
para um verdadeiro católico.
Não contente com isso, Fonseca procurara por todos os meios ostentar
os seus sentimentos católicos. Lembrara-se mesmo de fazer reviver a
idéia do professor Aníbal Americano. Oferecera-se para custear
a tipografia que devia publicar a Aurora cristã.
O professor Aníbal viera à sua casa e combinara com ele a forma
que daria ao prospecto a remeter para Manaus, e que devia trazer em letras
graúdas:
AURORA CRISTÃ
folha católica, noticiosa e comercial
propriedade do
capitão Manuel Mendes da Fonseca
REDATOR – ANÍBAL A. S. BRASILEIRO
A falar a verdade a coisa era cara, mas também não havia necessidade
de a levar a cabo, bastava anunciá-la, fazer constar que o jornal ia
aparecer, para dar tempo ao João Alfredo de mandar outro presidente
ou de nomear um vice-presidente em substituição ao primeiro
da lista que se achava entrevado na cama. Enquanto o pau ia e vinha folgariam
as costas. Em vista da demonstração de tão apurado sentimento
religioso o terrível cônego Marcelino desprezaria as intrigas
do Pereira, e ainda ficaria muito contente com o auxilio que ao partido católico
prestaria a adesão do capitão Fonseca.
Apesar dessa convicção que lhe entrara pouco a pouco no espírito,
quando recapitulava as providências que tomara para defender-se dos
ataques do escrivão e as pesava maduramente na balança da sua
experiência de homem prático e de político velho, o capitão
Fonseca ainda não estava tranqüilo, e um receio vago ficara-lhe
sempre no fundo da consciência.
A tarde adiantava-se. A sombra da cordilheira ia-se estendendo sobre o lago
e expelindo a luz branda do sol que se refugiava nas árvores da outra
banda. E o capitão Fonseca, já cansado de esperar pelo Valadão,
pelo João Carlos e pelo juiz municipal, sentia o coração
apertado, como se, à semelhança do dia que ia morrendo, o seu
prestigio fosse acabando aos poucos, e tivesse de desaparecer com a noite
que se avizinhava para sepultar a negra ingratidão dos amigos ausentes.
Estaria já demitido do cargo de coletor das rendas gerais e provinciais,
metido em processo, perseguido, obrigado a refugiar-se em algum sítio
do Urubus?
Estaria nomeado em seu lugar o infame José Antônio Pereira,
e àquela hora seria à porta dele que o Valadão, o João
Carlos e o Natividade palestravam satisfeitos, esquecidos do amigo velho e
inteiramente deslembrados dos benefícios recebidos, das atenções
e finezas que lhe haviam merecido? O Valadão não se lembraria
mais dos bons remédios que lhe receitara para a tosse, e de que obrigara
o Bernardino Santana a dar-lhe uma satisfação completa depois
daquela história do baile? O João Carlos estaria esquecido dos
conselhos que lhe dera para bem administrar as coisas do município,
dos despachos que lhe fornecia e do trabalho com que lhe redigia as indicações?
O Dr. Natividade não se recordaria mais da pontualidade com que lhe
pagava o ordenado mensal, chegando mesmo a fazê-lo adiantadamente?
À medida que se passava o tempo, mais a ingratidão o afligia.
Vinham-lhe idéias negras, a mujica de pirarucu que comera ao jantar
pesava-lhe no estômago, aumentando-lhe o mau humor. Já se cuidava
abandonado de todos, sem apoio, sem prestígio, perdendo por contragolpe
a confiança do Elias que lhe dava bons aviamentos e obrigado a fechar
a casa e a rebaixar-se, em competência com o Costa e Silva, ao ofício
de regatão, impróprio da sua idade e da posição
que ganhara.
O lago mergulhava-se em sombra. A vila ficava escura. Os transeuntes rareavam.
Pontos luminosos apareciam por janelas e portas abertas, aumentando a escuridão
da vizinhança. Bois e cavalos vagabundos passavam lentamente, espichando
o pescoço em busca de alguma erva esquecida pelas sarjetas, e bufando
gravemente para assustar os cães que lhe saíam ao encontro de
quase todas as portas. Ao longe a flauta do Chico Ferreira punha notas melancólicas
no vago ruído da vila, ao rápido crepúsculo da tarde.
Dentro da coletoria, D. Cirila ralhava com as negrinhas, e a sua voz alta
e mordente irritava aos nervos do marido, fazendo-lhe sentir mais próxima
a desgraça iminente, de que, por fim de contas, era D. Cirila a causa
primeira, pois se não fora a sua mania de passar o S. João nas
praias, o Pereira não teria tomado conta da coletoria, não teria
ganho o desejo de ser coletor, e não teria lançado mão
do infamíssimo expediente de que usara pára o conseguir. Não
fora a insistência da mulher em partir para os castanhais, o Fonseca
teria seguido os conselhos do padre vigário, não teria abandonado
a vila, e àquela hora estaria descansado, com o seu prestígio
seguro, o seu lugar garantido e a sua roda de amigos para dar-lhe as novidades
do dia. Mas a senhora D. Cirila quisera passar o S. João nas praias,
o S. Pedro, e não se contentara com isso, quisera ficar até
o dia de Santana! E agora arrumassem-lhe com um trapo quente!
Vinha-lhe grande rancor contra a mulher, cuja voz continuava a irritar-lhe
os nervos, afogueando-lhe a bílis. Aí estava em que davam as
complacências dos maridos. Tivesse o Fonseca seguido os conselhos de
padre Antônio de Morais, e estaria muito descansadinho. Esta idéia
acudia-lhe com insistência, acompanhada duma irritação
surda contra o vigário que se fora embora, abandonando as suas ovelhas
que lhe cumpria guardar e proteger.
O vigário devia-lhe, como toda a gente, muitas obrigações.
Dera-lhe um opíparo jantar no dia dos seus anos, encarregara-se de
lhe mandar lavar e engomar a roupa, pusera-o a par de todos os negócios
da vila, dando-lhe conselhos. No transe aflitivo em que o Fonseca se achava,
muito lhe poderia valer padre Antônio de Morais. Bastava uma cartinha
sua ao cônego Marcelino e tudo estaria arranjado, o José Antônio
Pereira ficaria chuchando no dedo, desmoralizado. Mas não, S. Rev.ma
preferira ir converter mundurucus! S. Rev.ma abandonara a paróquia,
deixara os seus fregueses privados dos socorros espirituais, e lá fora
por esses sertões fora pregar aos tapuios bravos, como se os tapuios
o pudessem entender! E iria mesmo pregar aos tapuios, ou, talvez, gozar uma
vidinha livre, à maneira de padre João da Mata, vigário
de Maués, que fora amigo de viver nas malocas indígenas entre
bandos de tapuias, como um sultão da Turquia? Fonseca já estava
arrependido de ter defendido o vigário de Silves quando o Chico Fidêncio
o atacara com os seus sarcasmos ferinos e as suas críticas audazes.
Defendê-lo para quê? De que lhe serviria agora o serviço
que em boa fé prestara? O padre estava ausente, metido entre selvagens,
morto segundo dissera o sacristão Macário, não lhe poderia
valer!
A sua tristeza aumentava. Uma última esperança, reunida à
repugnância de se encontrar cara a cara com a mulher, na disposição
de espírito em que se achava, prendia-o à cadeira de braços,
à porta da rua, descontente de tudo e de todos, doendo-se profundamente
da traição do Pereira e da ingratidão do João
Carlos, do Valadão, do juiz municipal, do vigário e de toda
a gente. Um grande desânimo o invadia e uma lágrima teimosa,
aproveitando a escuridão da noite que fechava a vila num círculo
de trevas, descia-lhe lentamente pela face abaixo, vindo perder-se na farta
barba grisalha.
As pressas um homem veio do porto, subindo a rampa com muita agilidade, e
chegando ao pé do coletor, que se endireitou na cadeira, disse alvoroçado:
– Morreu agora mesmo. Parecia um passarinho!
Era o vereador João Carlos que, cedendo aos hábitos inveterados
da sua vida, vinha consolar o capitão Fonseca no seu isolamento.
No dia seguinte, caminhava o coletor para o domicílio mortuário,
azafamado e esbaforido, lamentando o caiporismo que o perseguia agora nas
menores coisas da vida. Ia quase a correr, para não faltar à
cerimônia, ele, o homem grave, sempre pontual, exato, sempre correto
na atitude. Que série de calamidades se desencadeara contra ele, de
certo tempo àquela parte, que até nas mínimas circunstâncias
a sorte se lhe mostrava adversa!
Primeiro, ao abotoar a sobrecasaca enquanto D. Cirila a escovava, tivera
de pregar-lhe um sermão para a convencer que não era decente,
para uma senhora séria, estar a lastimar a morte do Totônio Bernardino,
atribuindo-a ao amor. E então com que maneiras novas dizia aquilo D.
Cirila, batendo-lhe no lombo com a escova, sorrindo entre lágrimas,
suspirando – ai! coisa rara! morrer um homem de amor!
Fonseca tivera de repreendê-la. Aquilo eram tolices de rapazes vadios
e de raparigas delambidas! Totônio Bernardino não morrera de
amor, nem isso era coisa de que se morresse. Segundo o parecer de Regalado,
o rapaz recolhera uma constipação, que se complicara com o miasma
palustre, e dera em resultado uma tísica furiosa e galopante. Demais
o Totônio era um criançola, a quem lá no Pará haviam
metido coisas na cabeça. Nunca havia de dar para nada. Não safra
ao irmão, que tão moço já era tenente da guarda
nacional. O Cazuza, sim, era um rapaz trabalhador e sério. Vivia muito
bem com a mulher e ajudava o pai na lavoura, ao passo que o outro era um vadio,
cheio de idéias esquisitas, um poeta, afinal!
Após essa altercação que tivera com a mulher, já
pronto para sair, Fonseca só depois duma campanha, encontrara o seu
chapéu de pêlo, um belo chapéu, comprado em 1868, em Manaus,
para a posse do primeiro presidente conservador. Zangara-se. D. Cirila gritara
conforme o seu costume. As negrinhas tonteavam pelos cantos, vasculhando os
armários e as arcas da roupa guardada. Afinal fora o chapéu
encontrado dentro da sua caixa verde atrás de uma porta. Parecia caçoada.
Atrás da porta!
Em seguida pediu o seu guarda-sol. D. Cirila gritara de novo. As negrinhas
corriam em todas as direções, como baratas pressentindo chuva.
E nada do chapéu-de-sol!
– Pois havia de ir ao enterro sem chapéu-de-sol? Quem fora o canalha
que lhe furtara o traste?
Busca e mais busca. Nada. Talvez o tivesse emprestado ao Valadão.
– Negrinha, gritou D. Cirila, corre à casa do seu tenente Valadão.
Dize que vais de minha parte fazer uma visita e saber como passou a família
toda. E pergunta se não está lá o chapéu-de-sol
do teu senhor.
– Já, sim, senhora, disse a escrava. E saiu correndo.
Não estaria o chapéu na casa do João Carlos? Parecia
que na véspera, estando a ameaçar chuva, Fonseca lhe oferecera
o chapéu-de-sol quando se retirara. Com certeza lá estaria!
Era isto. Querer fazer bem aos outros e passar privações e dissabores!
Fonseca arrependia-se’ daquela mania que tinha de servir a toda a gente, fazendo
sacrifícios. De que lhe servia isso? Era uma súcia de ingratos!
Pois agora havia de ir ao enterro sem chapéu-de-sol!
– Negrinha, disse D. Cirila a outra rapariga, vai à casa do seu João
Carlos, na carreira. Dize que vais da minha parte fazer uma visita e saber
a senhora e os meninos como passaram. Que nós estamos bons, muito obrigados.
Que eu mando pedir o favor de mandar o chapéu-de-sol de teu senhor
que ele emprestou ontem ao João Carlos.
– Já, sim, senhora, respondeu a escrava. E saiu num pulo.
Fonseca sentara-se desanimado abrindo as abas da sobrecasaca para as não
amarrotar na cadeira. O tempo corria. O relógio marcava quatro horas.
D. Cirila, por desencargo de consciência, continuava a procurar o chapéu-de-sol
por todos os cantos, auxiliada por duas escravas.
Não estaria na casa do Dr. Natividade? Fonseca parecia recordar-se
de que, no domingo passado, o juiz municipal lhe pedira emprestado o chapéu-de-sol
para um passeio que fizera à outra banda com o professor Aníbal
Brasileiro! Era isto. Sempre a mesma coisa! Sempre a mania de fazer bem, em
prejuízo próprio. Que lhe importaria a ele, Manuel Mendes da
Fonseca, que o Natividade apanhasse sol no tal passeio? Não ficaria
mais trigueiro. E que ficasse! Era um ingrato, isso estava provado. Fosse
pedir ao Pereira as coisas emprestadas! Estaria bem aviado. José Antônio
Pereira não lhe emprestaria coisa alguma, porque não era tolo
como Fonseca.
– Negrinha, providenciou pela terceira vez D. Cirila, vai à casa do
Dr. Natividade. Dize que teu senhor manda fazer uma visita e saber como ele
tem passado. Nós estamos bons, muito obrigado. Dize que teu senhor
mandou pedir o favor de lhe remeter o chapéu-de-sol que lhe emprestou
no domingo passado para o passeio com seu professor Aníbal na outra
banda. Já ouviste?
– Já, sim, senhora, respondeu a negrinha. E saiu a correr.
– Estou bem aviado! gemeu o Fonseca. Primeiro que qualquer desses demônios
volte, já o pobre do Totônio Bernardino está farto da
sepultura.
– Também é bem feito! acrescentou, dando um murro no espaldar
da cadeira. Quem me manda emprestar tudo quanto tenho?
O tempo passava. Fonseca consultava o relógio e ficava cada vez mais
zangado. Tudo agora lhe corria mal. Parecia que uma caipora atroz o perseguia.
Malditos castanhais! Fora depois daquele estúpido passeio que a sua
sina mudara! Visse ali a senhora D. Cirila, naquela série de infelicidades,
as conseqüências da sua teima em passar o S. João nas praias!
D. Cirila parecia não esperar por aquela acusação. Estava
nessa ocasião espiando o vão entre a cômoda e a parede,
porque talvez lá tivesse caído o chapéu-de-sol. Voltou-se
muito desapontada para o marido:
– O Manduca! Pois eu tenho culpa de você ter emprestado o chapéu-de-sol!
Tinha, sim, embora indireta. Fonseca contendo a custo o rancor que havia
dias alimentava contra a mulher, explicara longamente a teoria do caiporismo,
em virtude da qual todos os males do presente se originavam da infeliz lembrança
que tivera D. Cirila de passar o S. João nas praias. Acusou a mulher
de ser a causadora das intrigas de José Antônio Pereira e da
desgraça iminente sobre a cabeça do marido. Mostrou que tudo
neste mundo filiava-se a causas certas, embora parecessem sem importância.
Que a desgraça era sempre uma conseqüência do erro e do
pecado. D. Cirila fizera como Eva. Incitara o marido a comer o fruto proibido,
e ele agora, como Adão, teria de ser expulso do paraíso, vergonhosamente.
Demonstrou claramente que o fruto proibido eram os castanhais que o vigário
lhes proibira num sermão eloqüente e enérgico, e o paraíso
que tinham de deixar era a coletoria porque talvez muito breve o Pereira,
José Antônio Pereira, seria nomeado coletor das rendas gerais
e provinciais de Silves! E tudo isto por quê? Por culpa de D. Cirila,
estava claro.
A mulher tentava interrompê-lo, mas na confusão da consciência
culpada só conseguia colocar algumas exclamações: ah!
Manduca, oh! Manduca! Não diga isso!
– Digo, sim, senhora, continuava Fonseca, implacável, desabafando
por fim. E desdobrava ante os olhos atônitos e já lacrimosos
da mulher o quadro negro da sua desgraça futura. A vingança
do cônego Marcelino, a demissão, o retraimento do Elias, o processo,
a falência, o desprestígio, o abandono, o isolamento, a miséria,
a necessidade de competir com o Costa e Silva, o desrespeito dos inimigos
e o risinho amarelo do Valadão, do João Carlos e do Natividade.
E pior que tudo isso, o José Antônio Pereira, aquele lagalhé
que o Fonseca tirara da lama das estradas, repimpado na cadeira de coletor,
imparia de bazófia sorrindo nos dentes podres, adulado, festejado,
elevado a altura duma personagem!
D. Cirila abrira uma gaveta da cômoda e tirara um lencinho branco para
enxugar os olhos, quando à porta apareceu a rapariga que fora à
casa do Valadão.
A diversão não podia vir mais a propósito para a mulher
culpada.
– Então, que disseram lá? perguntou sofregamente à mensageira.
– A filha do seu tenente Valadão, disse a rapariga, cruzando os braços,
mandou dizer que todos estão bons, muito obrigado. Que o seu tenente
tossiu muito esta madrugada, mas que tomou duas colheres dum xarope que seu
Regalado mandou, e passou melhor. Que estima muito que senhor e senhora tenham
passado bem de saúde e fica muito obrigada pela visita.
– E o chapéu-de-sol?
– A filha do seu tenente Valadão diz que lá não tem
chapéu-de-sol nenhum.
– Então está em casa do Natividade! dissera o Fonseca. Aquele
sujeitinho é um esquecido de conta, peso e medida! Eu bem dizia que
não estava com Valadão, mas com o Natividade, a quem o emprestei
no domingo passado. A senhora quis por força mandar à casa do
Valadão e perdeu o seu latim.
Nesse momento apareceu a serva que fora à casa do juiz municipal.
– E o chapéu-de-sol? perguntara-lhe D. Cirila, impaciente.
A rapariga cruzou os braços sobre os seios, e respondeu, arrastando
as palavras:
– Mandou dizer que está bom, muito obrigado. Que já mandou
o chapéu-de-sol logo na segunda-feira de manhã, e que, graças
a Deus, não precisa ficar com o que é dos outros.
– Patife! dissera Fonseca, zangado, e com toda a razão. Patife! Deve-me
mil obrigações, e manda-me um recado assim tão atrevido!
E, numa grande desolação, com uma idéia sinistra a atravessar-lhe
a mente, lançara um olhar desesperado à mulher aflita:
– Sabe o que isto é, D. Cirila? O Natividade já sabe tudo!
Tem ordem para processar-me, e por isso trata-me dessa maneira. E quem é
a culpada, D. Cirila? Meta a mão na consciência, senhora, e diga
quem é a culpada desta desgraça?
D. Cirila chorava. Nada tinha que opor à evidência daquele presságio
funesto. As crioulas, vendo-a chorar, choravam também, ruidosamente.
Ouvia-se o voejar sinistro das moscas. Da sala vinha uma luz pálida,
do dia que descambava, encoberto de nuvens. As paredes brancas, caiadas de
fresco, tomavam de repente colorações sombrias. Pela casa silenciosa
perpassava um vento de desgraça. Fonseca estava perdido! Ouviram-se
no corredor passos leves de gente descalça.
A porta abriu-se. A rapariga que fora à casa do vereador João
Carlos apareceu. Os olhares voltaram-se ansiosos para ela.
– Que disseram? perguntou D. Cirila.
– Que todos estão bons, muito obrigado. Estimam que senhor e senhora
estejam bons, e ficam muito agradecidos pela visita. Que seu João Carlos
foi para o enterro e levou o chapéu-de-sol do senhor.
– Bonito! uivara o capitão Fonseca, compreendendo a importância
daquele novo presságio Pois havia de ir ao enterro sem chapéu-de-sol?
E deixara cair a cabeça, num desânimo.
Mas D. Cirila, assoando-se rapidamente, providenciou, resoluta:
– Negrinha, vai à casa do seu Bernardino Santana. Dize ao seu João
Carlos que teu senhor está à espera do chapéu-de-sol
para ir ao enterro.
E aí estava a razão por que o grave capitão Mendes da
Fonseca caminhava azafamado e esbaforido.
O enterro do Totônio Bernardino estava marcado para as quatro horas.
Era a primeira vez, depois que regressara da missão à Mundurucânia,
que o sacristão Macário tinha ocasião de praticar um
ato de ofício, pois que até ali, as suas ocupações
se haviam resumido em tratar da igreja que o bêbado do José do
Lago deixara ficar numa miséria.
O enterro se faria sem padre, mas o sacristão levaria a cruz alçada
e a caldeirinha, e a irmandade do Santíssimo Sacramento, a que pertencia
o Bernardino Santana, o acompanharia de balandrau e tocha. Macário
procurava suprir, como lhe era possível, a falta do senhor vigário.
Tendo dado todas as providências necessárias, Macário
aguardava a hora marcada para o saimento. E, bem penteado, de paletó
de alpaca, de botas de rangedeiras, camisa engomada, nodoada de anil, passeava
sobre os modestos tijolos da igreja a impaciência de entrar em funções,
unida ao intenso contentamento de ver-se restituído à sua querida
vidinha de sacristão repousado e decente, agora glorificado pela parte
que tomara na heróica, embora infeliz, empresa de padre Antônio
de Morais.
Não fora sem susto que Macário chegara àquele resultado
admirável, excedente de toda a expectativa na sua pobre mas muito acidentada
existência. Tivera muito que padecer, sofrera o que não contara
sofrer, comera o pão que o diabo amassara. Mas agora satisfeito e risonho,
fazendo horas, sentia prazer em recordar as peripécias daquela viagem
extraordinária, em que se vira tantas vezes no meio dos maiores perigos,
próximo da morte, sem que jamais tivesse desesperado do auxílio
de Nossa Senhora do Carmo, nem perdido a confiança no maquiavelismo
com que o dotara a pródiga natureza.
O dia estava claro, a vila tranqüila. O José do Lago já
tocara no sino grande os primeiros dobres de finados, melancólicos
e graves.
Era aquela mesma a sua Silves querida, aquela a casa do vigário, asseada
e branca. Lá nos fundos ficava o quintal onde a Luísa Madeirense
cantarolava a Maria Cachucha. Não havia dúvida alguma. Macário
escapara aos mundurucus, e ali estava são e salvo, certo de que não
cairia noutra. Entretanto, por mais de uma vez vira o caldo entornado, principalmente
quando, sentado à margem do rio sobre um tronco verde, avistara os
dois índios de terçado em punho, avançando para os brancos
descuidados, com grande barulho de mato derribado! Oh! nunca pensara o sacristão
de Silves ter tão boas pernas para correr! Se lho tivessem dito antes,
não se acreditaria capaz de galgar em tão pouco tempo o espaço
que o separava do porto, de cortar com tanta segurança a corda que
prendia a montaria à terra, de saltar para dentro dela com tamanha
agilidade, impelindo-a para o largo com tão extraordinária força.
O terror dera-lhe força, agilidade e talento, um talento excepcional,
que lhe aguçara o maquiavelismo naquelas apertadas conjunturas. Ah!
fora só depois de atravessar o rio Mamiá, ajudado pela corrente
favorável do Canumã, que Macário se julgara livre dos
malditos índios, e começara a alimentar a doce convicção
de que se poderia salvar escorreito e são daquela insensata empresa
de padre Antônio, de quem se lembrou então com algum remorso
de o ter abandonado sozinho, sem recursos para fugir ou defender-se da sanha
dos tapuias. Mas ainda agora, que já o medo lhe não podia obscurecer
o juízo, o sacristão reconhecia que aquele remorso não
tinha razão de ser. Fizera o mesmo que outro qualquer faria. A sua
filosofia prática resumia-se na frase que repetia complacentemente:
– Se ficasse éramos dois a morrer, morrer por morrer, morra meu pai
que é mais velho; ou, por outra, morra padre Antônio que estava
morto por isso.
Fizera a viagem até o sítio do Guilherme, com o enorme contentamento
de ver-se livre das loucuras do vigário. O seu lombinho rejubilara-se,
entumecendo de gozo ao contato do sol que o picava do lado com titilações
provocadoras. Os passarinhos cruzavam-se sobre a sua cabeça, como para
o saudar pela vitória alcançada, e festejavam-lhe o feliz regresso,
pipilando alegremente. Uma viração fresca soprava do Amazonas,
acariciando-lhe os cabelos, e pondo-lhe nos membros uma sensação
de bem-estar indizível, como se o hálito perfumado da Luísa
Madeirense viesse ao seu encontro para o afagar docemente, fazendo-o prelibar
as delícias que o esperavam na vila. A canoa cedia facilmente ao remo,
se é que o não dispensava, deixando-se arrastar pela corrente
na cumplicidade feliz daquela fuga.
Chegara ao sítio do Guilherme – seria talvez onze horas da noite com
um luar de quarto crescente. Os cães latiam, mas o dono da casa acudira
ao barulho.
– Tome tento na cachorrada, patrício, é gente de paz.
O tapuio não o conhecia, mas a tia Teresa tinha boa memória:
– Gentes, cruzes! É aquele branco do outro dia que tem o olho tapado!
Até essas palavras tinham-lhe ficado gravadas na cabeça. Não
podia esquecer o mínimo incidente do seu afortunado regresso. Desde
que deixara a companhia de padre Antônio, tudo lhe correra às
mil maravilhas, como se Nossa Senhora do Carmo o quisesse compensar amplamente
dos dissabores sofridos. A hospitalidade do Guilherme fora franca e de boa
vontade, e a tia Teresa, apesar daquela tolice insulsa com que lhe assinalara
a belida, esmerara-se em obséquios e atenções que iam
direito ao coração faminto do sacristão de Silves. Todavia
a demora no sítio do pescador fora muito longa. O Guilherme tinha de
levar ao Ramos uma boa partida de pirarucu salgado, que estava preparando,
e não queria fazer duas viagens para aquelas bandas. Quando fosse levar
o pirarucu, levaria o branco. E assim obrigou o Macário a esperar cerca
dum mês com intensas saudades.
Entretanto a viagem do lago Canumã ao lago Saracá fora feita
nas melhores condições possíveis. Macário, refeito
das fadigas excessivas que suportara, estirado no fundo da igarité
sobre um tupé macio, cruzara os braços e as pernas numa regalada
mandriice, resguardando do sol o lombinho com o chapéu de palha, e
pensando na esplêndida Luísa, a rainha das formosas. Uma nuvem
apenas ensombrava-lhe a alegria de sentir-se deslizar suavemente sobre a superfície
do rio, sem que tivesse de calejar as mãos no remo. Era a idéia
do embaraço em que se teria de achar para dar explicações
aos habitantes de Silves sobre o desaparecimento do vigário coincidindo
com a própria salvação.
Mas ainda aí fizera-se sentir a decidida proteção de
Nossa Senhora do Carmo, porque ninguém em Silves duvidara da história
que Macário contara ao chegar, e de que se não podia lembrar
sem que um sorriso de orgulho prestasse homenagem ao seu mais que provado
maquiavelismo. Era num aperto destes que Macário queria ver o Bismarck
e o conselheiro Zacarias!
O tenente Valadão, João Carlos, o professor Aníbal,
o Costa e Silva, o Mapa-Múndi e o Chico Fidêncio cercaram-no
no porto, não consentindo que fosse para a casa sem primeiro pôr
tudo em pratos limpos. Pois pusera-o, e, gabava-se, fora obra asseada. Fugindo
a um ubá selvagem, que os perseguira por duas horas, numa terrível
porfia de remos, sob uma nuvem de flechas, tinham ido ele e o senhor vigário
abrigar-se num mato cerrado, esperando que os gentios lhes perdessem a pista.
Mal se tinham julgado a salvo dos índios do ubá, foram agredidos
por um bando de parintintins; que ali se achavam, naturalmente para dar caça
aos mundurucus do ubá. Logo ao primeiro golpe os parintintins atiraram
ao chão o ardente missionário que se preparava para lhes fazer
um discurso evangélico. Então ele, Macário, vendo o seu
protetor e amigo, o arrimo da sua vida, o esteio da religião e da moral,
banhado em sangue, perdera a noção do número e da força,
e num esforço desesperado e louco – confessava-o – investira com os
selvagens, armado de remo, e disposto a morrer, vingando o companheiro. Mas
o gentio lá de si para si pensou que um homem tão valente como
o Macário se mostrava não devia morrer sem as habituais cerimônias
selvagens. Macário fora agarrado e amarrado a um castanheiro. Depois
os índios retiraram-se muito alegres para o interior da floresta, levando
em charola o corpo do missionário para lhe servir de prato de resistência
nos seus horríveis festins noturnos. O sacristão ficara por
muitas horas atado ao castanheiro, esperando a cada momento ser, como S. Sebastião,
convertido em paliteiro, pelas flechas dos parintintins. Mas ao que lhe parecera,
ao partirem aqueles selvagens levando o corpo de padre Antônio, avistaram
os mundurucus do ubá, e trataram de os apanhar numa cilada, esquecendo
o pobre prisioneiro branco. Ou seria outro o motivo da demora que permitira
à Providência Divina, a rogo de Nossa Senhora do Carmo e do Senhor
S. Macário, realizar em favor do sacristão de Silves um grande
e verdadeiro milagre. A embira com que os índios lhe haviam amarrado
os pés era muito verde. Uma cutia, que por ali passara, sentira o apetite
aguçado pelo cheiro vegetal da fibra tirada de fresco, e a roera de
tal sorte que com um pequeno esforço Macário pudera libertar
os pés. Conseguira livrar depois as mãos, esfregando com força
a embira na aresta duma pedra grande que ali estava, a modo que de propósito,
e correra para o porto. Os mundurucus do ubá haviam passado, sem dar
pela montaria oculta entre as canaranas. Macário tratara de navegar
para o lago Canumã, com um grande pesar de não ter apanhado
a cutia, que se fora embora, apenas concluída a tarefa de que parecia
incumbida. Era ou não era uma obra asseada aquela história da
guerra dos parintintins com os mundurucus e da cutia mandada por Nossa Senhora
do Carmo?
De fato Nossa Senhora fizera o milagre, porque afinal milagre fora salvar-se
Macário dos dois caboclos do terçado que deram cabo de padre
Antônio de Morais. A consciência de Macário estava tranqüila.
Não mentira. Houvera ou não o encontro do ubá dos mundurucus?
Estivera ou não Macário sentado à beira do rio sobre
um tronco verde? Tinha ou não tinha visto caboclos de terçado
em punho, que tanto podiam ser maués ou mundurucus como parintintins?
Fugira ou não na montaria para o sítio de Guilherme? Quanto
à morte de padre Antônio, não podia ser posta em dúvida.
Poderia ele resistir à fúria com que vinham os dos terçados?
O episódio da cutia era na verdade um exagero, mas milagre por milagre,
tanto valia o da cutia como o da retirada do ubá que padre Antônio
asseverara ser milagrosa, e aquele tinha sobre este a vantagem de não
deixar mal o pobre sacristão que nenhuma culpa tinha de não
haver nascido com vocação para missionário.
A história fora acreditada, e isto era o principal, apesar dos muitos
oh! oh! ora essa! homem, esta cá me fica! abençoada cutia! malvados
parintintins! e quejandas exclamações com que o auditório
interrompera o narrador.
Toda a gente considerava agora o Macário um homem favorecido por grandes
milagres de Nossa Senhora do Carmo, um favorito do céu. A coisa fizera
barulho. Fazendo ranger as botas sobre o ladrilho da igreja, Macário
sentia-se possuído de legitimo orgulho.
Estavam longe os tempos em que padre José o descompunha aos olhos
de todos, sujeitando-o ao desfavor público! O filho da lavadeira de
Manaus era um homem importante, de quem se falaria nas folhas, ao que lhe
dissera o professor Chico Fidêncio, que, triunfo incomparável!
o tratava com muita distinção. Toda a gente lhe tirava o chapéu:
boa-tarde, Sr. Macário, como passou, Sr. Macário? As visitas
sucediam-se e Macário nunca em sua vida recebera visitas! Esperava
todos os dias a do coletor, homem importante, freguês do Elias, e que
o estava enchendo de atenções. O capitão Mendes da Fonseca
viria insistir com ele para que aceitasse o lugar do José Antônio
Pereira que se tornara um tratante maior da marca. Mas Macário não
queria deixar a sua querida igreja! Seria ingratidão para com a sua
excelsa padroeira! Contentava-se modestamente com a consideração
pública, que o colocava numa situação nova e superior.
E não queria mudar de vida, amava o seu emprego, e se Deus algum dia
o favorecesse com um filho, legar-lhe-ia essa profissão honrosa e decente.
O cheiro do incenso e da cera queimada, a frescura da igreja, o som argentino
dos sinos, a gravidade das ocupações, a importância dos
detalhes do serviço agradavam-lhe.
Depois aquele lugar proporcionava-lhe uma influência crescente, e agora
que Silves estava outra vez sem pároco, e que seis meses pelo menos
se passariam antes que a solicitude de D. Antônio remediasse a falta,
o sacristão era como vigário leigo, sem tonsura, sem batina
e sem direito de dizer missa, mas com todo o encargo espiritual daquele rebanho
amado, com todas as vantagens do paroquiato. Era o único a dirigir
o serviço do culto, reduzido embora a ladainhas e a enterros, governava
a igreja, distribuía ceras e registros, emprestava as cadeiras, as
toalhas e os castiçais da Matriz sem dar satisfação a
pessoa alguma. Não podendo confessar as beatas, ouvia-as sem mais sigilo
do que a sua discrição, aconselhava-as, dava-lhes remédios.
E até já se lembrara, por amor à instrução
pública da vila, de continuar com a escola de catecismo dos pequenos
que ultimamente padre Antônio abandonara.
Macário embebido nestes pensamentos passeava na sacristia, aguardando
a chegada dos irmãos do Santíssimo para ter o prazer de distribuir
entre eles, ao sabor das suas preferências pessoais, as tochas, e as
cruzes. Era regalia que tinha em muito apreço e que não deixava
de mão. O Chico Fidêncio seria naturalmente o mais favorecido.
Era preciso corresponder!
Ele estava deitado, e parecia dormir no seu caixão forrado de belbutina
preta e ornado de largos galões dum dourado tirante a cobre, afogueado
e velho.
A cabeça, coberta de cabelos castanhos anelados, que deixavam a testa
livre e vasta, estava voltada para um lado e ligeiramente inclinada para trás;
por efeito dum último espasmo tetânico, ou por compostura que
mão estranha dera, salientando o magro perfil de tísico e emprestando
uma audácia de atitude àquele corpo de vadio que resumira a
vida numa única paixão. No rosto comprido e macilento manchas
azuladas destacavam-se. Nos lábios finos, sombreados por um nascente
buço castanho, vagueava um sorriso, como se no momento supremo do trespasse
uma idéia feliz lhe tivesse alegremente colorido o quadro de além-túmulo.
Ou talvez a certeza e a aproximação da morte tivesse tornado
grato o instante que punha fim às tribulações da vida.
Sobre o peito cavado pela moléstia a alva camisa francesa, engomada
com esmero, bombeava o plastron de seda preta, amarrotado de leve pelas mãos
cruzadas, brancas, diáfanas, veiadas dum azul escuro.
O resto do corpo perdia-se na frouxidão das roupas elegantes e caras,
terminando pelos sapatos novos de polimento, entrelaçados por um lenço
branco, para que os pés se não separassem. Pobre Totônio!
Inutilmente lhe prendiam os pés. Já não poderia fugir
em busca do pitoresco sítio do Urubus, onde solitária e triste
gemia a sua adorada Emília, de quem para sempre o separava agora a
terrível fatalidade da morte. Ao menos o seu juramento fora cumprido!
A sala branca, séria, desguarnecida de móveis? tinha uma melancolia
que assaltava o coração da gente, logo à entrada. Da
parede do fundo pendia um grande crucifixo amarelado, com chagas hediondas.
Sobre pequena mesa coberta de pano preto duas velas de cera alumiavam a face
esbranquiçada e menineira duma Senhora das Dores. Quadros com imagens
cinzentas de santos milagrosos rodeavam o caixão mortuário,
descansando na grande mesa de pinho sem lustre, forrada de pano preto, pingado
de cera e picado de traças, e os santos, retratados em litografias
baratas, com legendas místicas por baixo, cruzavam os olhos brancos
por cima do cadáver, numa desolação. Às cabeceiras
da essa improvisada três círios queimavam os longos pavios resinosos,
pingando lágrimas amarelas sobre os tocheiros de pau preto, colocados
no chão. A luz baça das velas perdia-se na claridade decrescente
da tarde. As três chamas, privadas de toda a irradiação,
pareciam três brasas oscilando no ar. Um cheiro enjoativo de cera e
alfazema enchia a casa e vinha até à rua. Pelas janelas semicerradas
entrava a viração da tarde. Lá dentro, nos aposentos
da família, ouvia-se um soluçar contínuo e monótono,
mas moderado e tímido. Num quintal vizinho cantava um galo melancólico.
Na sala fizera-se um silêncio quando Macário entrara. Depois
um murmúrio começou, acentuou-se e se transformou em conversação
cortada, a trechos, em voz baixa, como para não perturbar a solenidade
triste da ocasião.
A casa já estava cheia. Junto ao caixão, mexendo distraidamente
no lenço que atava os pés do cadáver, o Pedrinho Sousa,
muito bem vestido de preto, chorava. Estava pálido e com olheiras pelas
muitas noites que velara à cabeceira do amigo, cujo confidente era.
Do outro lado do caixão, o Manduquinha Barata, também de preto,
forcejava por guardar a seriedade que a ocasião exigia, mordendo os
beiços para não rir de qualquer coisa de extraordinariamente
ridículo que descobria no vestuário do vereador João
Carlos. Valadão contava os seus padecimentos ao Dr. Natividade, que
muito penteado, com os cabelos úmidos, parecia ter saído dum
banho, e de mãos atrás das costas, bamboleando uma perna, dava
conselhos de medicamentos usados em Pernambuco. O Mapa-Múndi, o Costa
e Silva e o Regalado conversavam baixinho, em grupo, perto da janela. O Felício
boticário murmurava ao ouvido do tenente Pena e do Bartolomeu de Aguiar,
alternadamente. Os velhos, ouvindo, sacudiam a cabeça, muito convencidos.
O Cazuza Bernardino, de pé à porta da sala, vestindo a bela
farda de tenente, com fumo no braço, tinha uma atitude de dor resignada
e forte. Quinquim da Manuela entrava e saía, atarefado, cuidando dos
últimos arranjos, com interesse e dedicação de bom rapazinho.
O senhor vereador João Carlos, atordoado, perseguido pelos olhos insolentes
e brejeiros do Manduquinha Barata, procurava disfarçar; abrindo conversa
com o professor Aníbal. Mas este, muito preocupado, virava-se para
um e outro lado, concertava os óculos e cuspia, sem lhe dar atenção.
Macário, depois de deixar a cruz ao Quinquim da Manuela, foi contemplar
o pobre finado, de quem guardara uma impressão de pena e simpatia,
misturada duns longes de inveja e desprezo ao mesmo tempo. Sim, era uma coisa
assim esquisita o que Macário sentia por aquela criança de dezoito
anos, roubada à vida, ao que se dizia, por uma paixão amorosa,
e que tão vivos e salientes deixara os traços do seu caráter.
Quando o vira pela primeira vez no baile do casamento do irmão, a impressão
que lhe causara fora desfavorável. Era um pelintra, um vadio que perdia
o tempo palestrando na roda do Chico Fidêncio. Demais, era bonito moço
e só vestia roupas feitas no Pará, umas coisas elegantes e novas,
que Macário admirava, mas que não teria jamais a coragem de
pôr em si. E Macário, até então humilhado, e visto
com sarcasmo pelos rapazes alegres da roda do Chico Fidêncio, embirrava
solenemente com aquelas elegâncias. Depois vira-o pálido, abatido,
com um raio de loucura no olhar, as roupas em desalinho, narrando a desgraça
da sua vida e falando em morrer para não suportar os tormentos da separação
da sua amada. Agora que pela terceira vez o via era frio e imóvel naquele
caixão mortuário, audacioso e terno ao mesmo tempo na sua rigidez
cadavérica. E aquela transformação rápida, efetuada
em tão poucos meses, como numa vertigem assombrosa que se apoderara
daquele mancebo de dezoito anos, elegante e frívolo, apaixonado e ardente,
devorado pela lava incandescente duma paixão súbita e mortal,
enchia de pasmo e confusão o espírito de Macário. Francamente
não o compreendia. Morrer pelo amor duma mulher! E morrer amado! Moço,
elegante, instruído, pertencendo a uma boa família, renunciar
à vida, deixar-se apanhar estupidamente por uma tísica ou coisa
que o valha, só porque o papai não consentiu no casamento com
uma matutinha do Urubus, era por demais inexplicável.
E Macário, contemplando o bonito fraque azul-ferrete que o cadáver
tinha vestido, o colete de gorgorão preto, a bela gravata e os finos
sapatos de polimento, pensava que os rapazes educados nas capitais não
têm a mesma têmpera que os da vila, e que o Bernardino Santana,
não pela proibição do casamento com a Milu, mas pelas
larguezas e facilidades que permitira ao filho era culpado daquela morte prematura…
Nisto Q Bernardino Santana, todo de preto, com a calva descoberta à
viração da tarde, numa das mãos uma tocha e na outra
uma coroa de latão, aproximou-se dele, e pôs-se a dizer com os
olhos rasos de lágrimas:
– Ora está vendo, seu Macário sacristão? É uma
desgraça! O rapazinho morreu como um passarinho. E não havia
modos de lhe fazer tomar o remédio. Desde que adoeceu, não se
lhe pôde pôr na boca uma colher do remédio. É uma
desgraça!
Puxou do bolso da sobrecasava um grande lenço de chita, enxugou os
olhos, assoou-se e continuou:
– E você que o conheceu, seu Macário sacristão, lembra-se
dele? Como era alegre, e bom menino! Se não fossem aquelas tolices
com a Milu, eu nunca teria tido ocasião de zangar-me com ele. Pois,
desde que caiu na cama mudou como uma coisa extraordinária. Não
falava, não respondia à gente, e não queria tomar remédios.
E olhe que não eram remédios de cacaracá, de pouca monta…
Eram remédios caros… e o rapazinho nada! Por mais que eu gritasse,
ralhasse, nada! Uma teima assim, nunca vi em dias de minha vida!
E o Bernardino Santana deixou a coroa de latão sobre a mesa, entregou
a tocha ao Pedrinho Sousa e foi perguntar ao Quinquim da Manuela se a cova
estava pronta.
Macário também afastou-se de junto do cadáver, e procurou
saber qual a razão da demora, pois julgava que seria o último
a chegar.
– É por causa do Fonseca, disse-lhe o Costa e Silva, ainda não
chegou e Bernardino quer que se espere por ele.
Nesse momento o professor Aníbal acercou-se do grupo do Costa e Silva.
– Morreu de amor, o coitadinho! disse ele concertando os óculos e
cuspindo longe.
– Qual morreu de amor! exclamou o Regalado. O que ele teve foi uma boa galopante,
posso asseverá-lo! E se não fosse tão teimoso, se tivesse
tomado os remédios que lhe dei, teria ficado bom. A moléstia
começou por uma constipação desprezada. Sobreveio uma
febre palustre, e em poucos dias a febre tomou o caráter tífico
e… os tubérculos logo se declararam… enfim uma embrulhada! Se o
pai o tivesse obrigado a tomar os remédios, teria ficado bom.
– Pois eu, tornou o professor Aníbal, como ouvi dizer que ele morrera
de paixão por não casar com uma sobrinha do Neves Barriga, fiquei
com pena e arranjei uma nênia para o caso. Não é lá
coisa como de Lamartine ou de Casimiro de Abreu, porque eu não sei
fazer versos e nunca fui poeta. Mas por pena do pobre do Totônio labutei
toda a noite e compus a nênia…
Aníbal Brasileiro concertou os óculos, cuspiu, e meteu a mão
no bolso da sobrecasaca para tirar alguma coisa, dizendo:
– Trago-a aqui para ler no cemitério. Intitula-se: Morto por amor!
– E o senhor a dar-lhe! exclamou o Regalado impaciente, levantando a voz
para ser ouvido do Bernardino Santana que vinha nessa ocasião do interior
da casa, trazendo um mocho de pau e dois grandes castiçais com velas
de cera. Já lhe disse ao senhor professor, que o rapaz não morreu
de amor, mas duma galopante.
– É o mesmo, murmurou desapontado o Aníbal, deixando a nênia
no bolso e afastando-se para o lado do vereador João Carlos.
Então o Costa e Silva quis saber do sacristão se o enterro
seria acompanhado pela irmandade do Santíssimo.
– Sem dúvida, respondeu Macário, alisando o cordão da
opa.
O Bernardino Santana é irmão do Santíssimo. A irmandade
aí vem toda com o Chico Fidêncio à frente. O Chico Fidêncio
é quem traz o pendão.
O Regalado, admirado, exclamou:
– O pândego do Chico Fidêncio de pendão em punho!
E sorriu, pasmado.
Mas nem o Costa e Silva nem o Mapa-Múndi o acompanharam na surpresa.
Nada mais natural! O Chico Fidêncio era maçom, inimigo dos jesuítas,
mas não era contrário à verdadeira religião!
Macário ponderou, convicto:
– O professor não é tão ateu, como geralmente se diz…
Ele lá tem a sua história de não querer saber de padres,
mas acredita na religião, e é boa pessoa.
– Isso na sua boca, senhor Macário, aplaudiu o Costa e Silva agradecido,
é um bonito elogio.
Macário confessou então que andava enganado com o Chico Fidêncio
por causa daquelas histórias do defunto padre José, que Deus
houvesse. Agora o desejo dele Macário, que tinha sobre os seus débeis
ombros o encargo espiritual de Silves enquanto o senhor bispo não mandava
outro vigário – era restabelecer a harmonia, a paz na sociedade de
Silves. Para isso empregaria todos os esforços e sacrifícios.
Felizmente as coisas iam bem encaminhadas porque o Chico Fidêncio também
agora confessava que se enganara com o santo padre Antônio
– Macário enxugou uma lágrima – e com o sacristão, ao
qual fizera muitas injustiças.
O Costa e Silva e o Mapa-Múndi apoiaram as palavras do sacristão
com sinais de deferência. O perfume sutil da lisonja entontecia o sacristão,
dando-lhe vertigens. A casa parecia andar à roda. Na claridade baça
da sala, pontos negros espalhavam-se. Macário naquele lugar, naquela
ocasião, era incontestavelmente a primeira pessoa.
Ia ficando tarde. A irmandade do Santíssimo chegara, de opa encarnada
e tocha na mão e rodeava o cadáver.
– Ora até que enfim! suspirou o Bernardino Santana, vendo chegar o
capitão Mendes da Fonseca, o último que faltava. O coletor vinha
esbaforido, suado, de chapéu alto – o único – e guarda-sol debaixo
do braço. E logo à entrada da sala teve uma ligeira altercação
com o Dr. Natividade, que cresceu para ele:
– Ora diga-me, senhor capitão, que história de chapéu-de-sol
é uma? Fique V. S.a sabendo, senhor capitão, que graças
a Deus, eu não preciso de ficar com os chapéus-de-sol dos outros.
Graças a Deus, eu não preciso! exclamou, voltando-se para o
Macário, que se aproximava para os harmonizar.
O capitão mastigara uma desculpa. Eram coisas de senhoras. Não
fora ele, fora a senhora D. Cirila que teimara que o chapéu-de-sol
estava na casa do juiz municipal – mas não era verdade. O chapéu
estava com o João Carlos.
– Ora muito bem, peço a V. S.a que para outra vez não repita
a graça. Graças a Deus, não estou acostumado a receber
desfeitas, e não preciso ficar com o que é dos outros. O governo
ainda me paga para comprar um chapéu-de-sol. Sou pobre, é verdade,
sou de família obscura, mas graças a Deus, sempre gozei em Pernambuco
da maior consideração. Nunca ninguém pôs em dúvida
o meu caráter.
E o Dr. Natividade, nervoso e impressionado, tirou o lencinho da algibeira
do fraque e enxugou o rosto e as mãos. Depois tirou o pincenê
e pôs-se a limpar-lhe os vidros com o lenço, murmurando:
– Graças a Deus, é a primeira vez que isto me acontece. Mas
o Bernardino chegava carregando a tampa do caixão mortuário.
João Carlos ajudou-o a encaixá-la nos machos, e os preparativos
para a saída começaram.
Nessa ocasião o professor Aníbal Americano aproximou-se do
capitão Fonseca e perguntou-lhe baixinho:
– Devo ler agora a nênia, ou deixo-a para o cemitério?
– Que nênia, seu Aníbal?
– Uma nênia que fiz pela morte do Totônio. Não é
obra-prima, mas fiz o que pude.
– Acho melhor no cemitério, opinou o Fonseca. É mais solene.
Bernardino Santana convidou o Costa e Silva, o Mapa-Múndi, o Pedrinho
Sousa, o João Carlos, o Bartolomeu de Aguiar e o Dr. Natividade para
carregarem o caixão.
O Dr. Natividade escusou-se, sem dar as razões. O Bernardino foi convidar
o capitão Fonseca que aceitou. Mas o Natividade veio confiar ao Macário
os motivos da recusa.
– O senhor compreende? Vim ao enterro por obra de caridade, e porque, graças
a Deus, não levo o meu ressentimento até o túmulo. Mas
a dignididade impedia-me de carregar um rapazola que há tão
pouco tempo foi o causador de me fazerem uma desfeita.
Macário não se lembrava. O Dr. Natividade, de mãos atrás
das costas, pincenê fixo nos olhos, auxiliou-lhe a memória:
– Na noite do casamento do Cazuza… aqui… no baile… a desfeita da Milu?…
Macário já se lembrava. O juiz municipal resumiu, numa convicção
profunda:
– Já vê que a dignidade me impede.
O Bernardino Santana despedia-se do filho, apertando nas mãos as mãos
geladas do cadáver. O velho chorava, numa dor expansiva:
– Pobre rapazinho! Tão moço, tão bonito e tão
esperto! Ele vai-se, eu, traste velho, é que fico! Coitadinho! Até
parece que está dormindo!
E impressionado com a causa a que atribuía aquela morte tão
sentida, repetia:
– Tudo foi ele ficar tão teimoso, a ponto de não querer tomar
os remédios! Remédios tão bons e tão caros!
E num soluço dolorido:
– Pobre rapazinho! Tua mãe que está no céu há-de
perguntar por que não tomaste os remédios. Mas que culpa tenho
eu, fiz tudo, tudo.
O Valadão e o Fonseca agarraram-no, dando-lhe coragem:
– Tenha ânimo, homem! A morte é obra de Deus. Resigne-se e lembre-se
que ainda tem outro filho!
O Cazuza aproximou-se do pai, pálido, sem lágrimas. Era uma
dor forte. Filho e pai abraçaram-se junto ao cadáver de Totônio.
– Agora só me restas tu, meu filho. Desculpa o meu sentimento… mas
ele também era filho.
E o Bernardino desatou de novo a chorar. No meio da sua dor, a lembrança
duma providência a dar acudiu-lhe. Voltou-se para o Quinquim da Manuela,
e recomendou por entre lágrimas:
– Olha o Filipe que leve o mocho atrás do caixão, para o descanso.
Uma senhora, toda de luto, entrou, seguida de três ou quatro mucamas.
Era a D. Mariquinhas das Dores que vinha dizer o último adeus ao cadáver
do cunhado. Os que cercavam o caixão afastaram-se para dar-lhe lugar.
A jovem senhora descansou um braço sobre a borda do caixão e
pôs-se a chorar, assoando-se de vez em quando num lencinho rendado.
– São horas! disse suspirando o Bernardino Santana. Pelas janelas
entrava, acentuada, a viração da tarde. O Cazuza Bernardino
arrancara a mulher de junto do cadáver. D. Mariquinhas saiu soluçando
gritos. As mucamas choravam ruidosamente, em coro. Fechou-se o caixão
à chave. Organizou-se o préstito. O José do Lago ia à
frente com a caldeirinha. Macário seguia-o com a cruz. Vinha logo após
a irmandade do Santíssimo, com o Chico Fidêncio à frente,
empunhando o pendão. Depois era o féretro carregado por seis
amigos do pai do finado. O preto Filipe vinha logo atrás, carregando
o mocho. Os convidados cercavam o préstito, sem ordem.
Quando o caixão transpunha a porta da rua, ouviu-se no interior da
casa um grande grito de mulher.
– É a D. Mariquinhas que está com um ataque, disseram.
– Aquela está pronta, notou o Regalado. O Cazuza bem mostra que é
trabalhador.
O enterro seguiu pela segunda rua até ao cemitério. Havia mulheres
às janelas e crianças às portas das casas. Ouviam-se
expressões de pesar por toda a parte. Coitadinho, tão moço
e tão bonito! E dizem que morreu de paixão!
Uma grande tristeza envolvia a vila. O tempo mudara por volta de cinco horas,
e o céu estava toldado. Um vento carregado de umidade soprava do lado
do sul. O sol escondia-se lentamente por trás da serra.
No caminho os homens que carregavam o caixão renovaram-se duas vezes.
Quando o préstito parava, a conversação estabelecia-se
a princípio em voz baixa, e depois em tom natural, como num passeio.
No cemitério, quando depuseram o caixão de Totônio Bernardino
no fundo da cova escura e fresca, o professor Aníbal Americano Selvagem
Brasileiro recitara uma poesia que começava assim:
MORTO POR AMOR NÊNIA
E morreste na flor da mocidade,
Teu pai, coitado, aí ficou chorando…
Macário não se recordava do resto. Mas eram versos muito bonitos
que o Costa e Silva prometera mandar para o Diário do Grão-Pará,
apesar do Regalado dizer que o tal professor era um idiota.
O Costa e Silva, porém, confirmara a promessa. Ficasse o Sr. Aníbal
descansado. Havia de mandar os versos, e os mandaria já, porque queria
ter o gosto de os ler impressos antes de sua partida para o Madeira.
Quando o pobre do Totônio Bernardino ficou bem enterrado sob uma grande
camada de terra negra e úmida, e os convidados começaram a retirar-se,
o Chico Fidêncio passou o pendão do Santíssimo às
mãos do Quinquim da Manuela, e chamando o sacristão Macário,
levou-o para um canto, passando-lhe um braço pelo pescoço, numa
familiaridade agradecida.
Queria mostrar-lhe uma cópia da correspondência que enviara
pelo último paquete ao Democrata de Manaus. Tratava da missão
à Mundurucânia.
E naquele canto do cemitério, à fraca claridade do crepúsculo
da tarde, o Chico Fidêncio leu o seguinte trecho:
"O escritor destas modestas e despretensiosas linhas gaba-se de não
se deixar iludir pelos homens de roupeta e chapéu de três bicos
que o senhor D. Antônio encomenda para Roma, ou forja no Seminário
maior para a obra da romanização (permitam-me o vocábulo)
da sua diocese; mas sabe curvar-se diante dos verdadeiros apóstolos
do Nazareno, que não vendem indulgências, mas expulsam os vendilhões
do templo.
Por mais livre-pensador e despido de abusões ridículas que
um homem se preze de ser, não pode deixar de admirar o zelo (digno
de melhor causa!) desses ministros de Cristo, que, desprezando os regalos
da vida que lhes facilita o erário público, fornecendo-lhes
um excelente lugar à mesa do orçamento, atiram-se aos perigos
da catequese dos íncolas da floresta, através de mil privações
e misérias, para granjearem a palma dum martírio sublime, mas
inútil para á sociedade, porque os índios são
uma raça decadente e refratária ao progresso, e que, conforme
já se provou na grande República Americana, só podem
ser civilizados a tiro. Padre Antônio de Morais era um desses raros
exemplos de abnegação e culto do Evangelho. Era um soldado da
idéia (antiquada!) que soube morrer no seu posto, e que deve servir
de modelo aos carcamanos que nos mandam de Roma. O escritor desta, mais do
que qualquer outro, tem o dever de fazer-lhe justiça, porque, vendo
os seus ares modestos e os seus olhos baixos, cometeu o erro de tomá-lo
por um desses muitos hipócritas que zombam da religião e da
sociedade, introduzindo a discórdia no seio das famílias, e
que tanto abundam no clero paraense. Felizmente, para que os ilustres feitos
desse apóstolo da fé de nossos pais não ficassem desconhecidos,
o Acaso conservou-nos o seu modesto, mas digno companheiro, o honrado e zeloso
sacristão da freguesia, Sr. Macário de Miranda Vale, salvo da
sanha dos parintintins pelo cego instinto roedor dum pobre animalejo, no qual
o povo ignorante e embrutecido pelos padres quer ver um enviado da Providência
Divina…"
CAPÍTULO X
Felisberto, entreabrindo a porta do quarto, meteu pela fresta a curiosa cabeça,
e perguntou:
– Agora está melhor?
O dia estava alto. Jorros de luz intensa penetravam pela abertura da porta,
pelo telhado, pelas falhas da taipa. Lã fora não se ouvia ruído
algum, como se todos, homens e animais, se tivessem combinado para respeitar
o sono do hóspede. Entretanto padre Antônio de Morais não
dormia. Muito cedo, ao cantar do galo no terreiro, ao mugir do gado no curral,
abrira os olhos, estranhando a cama, o quarto, as paredes grosseiramente caiadas,
esburacadas, e limpas, o ladrilho lavado, as imagens de santos penduradas
das paredes em quadros pintados de preto, como se estivesse vendo tudo aquilo
pela primeira vez. Notava aquele ar de bem-estar confortável, de asseio
cuidadoso, a par da falta de comodidades, e da extrema simplicidade duma habitação
sertaneja, e aquilo o impressionava agora, pela primeira vez, depois de três
longos dias de estada naquele sítio, em pleno Guaranatuba.
Chegara tão cansado, de corpo e de espírito, tão desnorteado,
tão incapaz de pensar e de sentir que entrara maquinalmente naquela
casa hospitaleira, maquinalmente aceitara o quarto, a cama, os obséquios
que lhe ofereciam, e só naquela manhã recobrara a presença
de espírito, a lucidez necessária para relacionar os fatos com
as pessoas, religar a corrente das idéias e dos acontecimentos, dar-se
contas da sua situação presente e reconstituir o passado de
três dias, espaço de tempo que fazia uma solução
de continuidade na sua vida mental. Naquele prazo decorrido tudo lhe havia
passado, não desapercebido, porque os mínimos detalhes se lhe
gravavam na memória, mas vago, obscuro, como em sonho, ou alheio à
sua individualidade psíquica, como quadros e figuras dum caleidoscópio
gigante, de que ele fosse o espectador único, distraído e desinteressado.
A enorme tensão de espírito que os últimos acontecimentos
da sua vida lhe haviam produzido, a meditação aturada e constante
dum tema único, no meio de vicissitudes e acidentes que o obrigavam
a atender às realidades objetivas, haviam-no de súbito mergulhado
num colapso profundo, que lhe tirara a noção exata do eu, e
o fazia estranho à sua própria personalidade. Agia, falava,
movia-se, mas como se um outro por ele estivesse preenchendo essas funções
vitais. A sensibilidade estava embotada, o pensamento adormecido. Os fatos,
as pessoas, os quadros passavam-lhe por diante dos olhos, mas não sabia
dar-lhes a verdadeira significação, ficava indiferente, como
se tudo aquilo não tivesse relação alguma com a sua pessoa.
Entretanto agora, repousado, tranqüilo, sentindo-se bem naquela cama,
em que estirava os membros para verificar se haviam recobrado a antiga energia
e elasticidade, naquele quarto onde a luz suave da manhã lhe patenteava
o conforto relativo de que se privara por tantos dias, parecia que abria de
novo o entendimento à percepção exata das coisas, e que
de pronto entrava na posse das suas faculdades mentais. Então queria
examinar o passado, informar-se do que o outro fizera, vira e ouvira, para
reatar o fio da sua vida, o curso das suas meditações. Começava
por querer assenhoriar-se do presente, explicando a sua situação
e permanência naquela casa perdida nas brenhas do igarapé da
Sapucaia, em pleno Guaranatuba, mas já o aspecto daquela habitação
sertaneja, misto inexplicável de atraso e de civilização,
de simplicidade rústica e de um confortável estranho naquelas
paragens, punha-o em confusão, baralhando-lhe as idéias.
Aquela casa tinha uma história, e a recordação dessa
história prendia-se à lembrança de fatos que a tinham
antecedido na memória do padre; e não podia acudir-lhe sem que
primeiro viessem pela ordem do tempo os acontecimentos que a haviam originado.
Quem a contaria? Que série de fatos a tornara necessária? A
recordação dessa história lhe daria a razão de
ser da sua estada naquela cama e naquele quarto? Os fatos do passado lhe vinham
vindo pouco a pouco à memória, porém sem ordem nem clareza,
intercalando-se o que vira com o que lhe haviam contado, o que observara com
o que ouvira. Faltava-lhe o nexo dos acontecimentos. Via-se na situação
de quem lesse o último capítulo duma narrativa sem ter lido
os primeiros.
Não conseguiria jamais coordenar as suas reminiscências, evocar
os fatos do passado mais antigo sem que a percepção do presente
ou a lembrança do passado mais recente se lhes interpusesse, para desviar-lhe
a atenção e obscurecer-lhe a memória? Faria um esforço
de abstração, e para a completar, fecharia os olhos, a fim de
não ver o quarto, as paredes caiadas, o ladrilho lavado, as imagens
dos santos penduradas em quadros de pau pintado de preto.
E então, lucidamente as recordações lhe foram chegando,
em ordem, concatenadas, como uma história que lhe tivessem contado.
Primeiro, de súbito, nas trevas, procurando remontar-se ao mais longínquo
passado, via-se ajoelhado, olhos para o céu numa fervorosa prece, esperando
o golpe que lhe deviam dar João Pimenta e Felisberto enquanto o Macário
corria para o porto…
Sim, desta vez, a sua memória não o iludia. Os dois tapuios
que de terçado em punho, cortando o mato que lhes impedia a passagem,
se dirigiam para ele, eram o João Pimenta e o Felisberto. Um era velho,
de face enrugada, cabelos pretos e corredios, narinas e beiços furtados,
fisionomia de selvagem mal iniciado na civilização, em que sobressaía
principalmente a estupidez, estampada numa larga face achatada, sem vida.
O outro, o Felisberto, o insuportável tagarela que com a sua verbiagem
tola concorria para aturdi-lo, era moço, muito menos trigueiro do que
o velho, nariz grosso, olhos pretos e belíssimos dentes, aparados em
ponta, o que lhe dava um vago ar canino. Este não mostrava indícios
de haver sofrido nos lábios, nas narinas nem nas orelhas as perfurações
em voga. Era mestiço, segundo o indicavam a cor do rosto, o leve ondeado
da farta cabeleira mal tratada, e tinha também um certo ar palerma,
que lhe garantia a consangüinidade com o velho; era mais a simplicidade
de espírito do que a estupidez profunda que a pródiga natureza
gravara com mão pesada na fronte enrugada do companheiro. Ambos vestiam
apenas calças de riscado azul e traziam terçados americanos
e espingardas Laporte. Os troncos nus luziam ao sol, destacando-se o do velho
no meio da folhagem com uns tons quentes de urucu e jenipapo, cuja tinta o
revestia de desenhos caprichosos com antiga e indelével tatuagem, e
o do moço desmaiando em coloração branda de entrecasca
de canela, nos contornos cheios, de suavidade feminina…
Tendo-os assim retratado complacentemente, começou a vê-los
logo em ação, seguindo-os com uma curiosidade nova. Via-os,
quando os supunha agressivos e ferozes, caindo-lhe aos pés, extáticos,
fascinados, pedindo-lhe a benção, balbuciando palavras de humildade,
na crença, como depois lhe disseram, que era a alma do padre santo
João da Mata. Eram moradores do furo da Sapucaia, que atravessa do
Sucundari para o Mamiá até o rio Abacaxis, e ali viviam desde
que o velho, avô do moço, deixara de ser tuxaua duma tribo de
mundurucus para batizar-se e vir a ser camarada do vigário de Maués,
o santo padre João. Andavam naquela ocasião a colher guaraná
e castanhas por sua conta, pois que o padre santo morrera, havia já
tempo bastante para estar fedendo de velho lá no céu.
O padre, ao recordar a frase, sorria, e logo se lhe firmava melhor na memória
a figura do Felisberto, a repetir frases de um latim das brenhas estropiado
e ridículo; e a dar aquelas explicações todas, com muita
minudência, satisfeito por mostrar que não era um caboclo qualquer,
mas um moço que tivera a sua educaçãozinha e até
acolitara a padre João da Mata na própria Matriz de Maués,
em pequeno, pelo que sabia ajudar a missa, acompanhar um enterro, puxar uma
ladainha, e gabava-se de outras prendas… raras nos sertões de Guaranatuba.
O sorriso fugira, porém, dos lábios do padre, ao lembrar-se
do Macário, do seu pobre companheiro, que embalde procurara por toda
a margem do rio, chamando-o em altas vozes, repetidas pelo eco da outra banda,
e que talvez àquela hora tivesse naufragado, na frágil embarcação
que a precipitação e o medo não lhe permitiriam dirigir
com acerto no curso acidentado do Carumã. Depois perdido, sem recursos
à beira dum rio deserto, padre Antônio cedera aos rogos do Felisberto
que o queria levar para o sitio da Sapucaia, prometendo que o avô o
guiaria, depois de algum repouso, ao porto dos Mundurucus, arranjando a condução
necessária; e todos três haviam seguido pelo mato dentro, indo
sair a um pequeno igarapé, todo coberto de ramagens verdes, onde urna
água cristalina corria à sombra de araçás e maracujás
silvestres. Um ubá de três bancos estava ali amarrado a um tronco
de árvore. Embarcaram, o mestiço à proa, o padre no meio
e o velho ao jacumã, e seguiram viagem para o sul em profundo silêncio,
navegando cerca de quatro horas por baixo de ramos e cipós que cobriam
o igarapé negando-lhe franca passagem. Depois chegaram ao furo da Sapucaia,
que corta o Mamiá por ambas as margens, indo encontrar o Abacaxis,
em cujo leito despeja as suas águas negras, duma admirável transparência.
Afinal foram ter ao sítio de João Pimenta, que tinha um aspecto
agradável, com a casa de palha, bem caiada e limpa, os taperebás
e mangueiras do terreiro, parecendo mais a casa de vivenda dum cacaulista
abastado da beira do Amazonas do que a propriedade dum pobre selvagem meio
civilizado dos remotos sertões de Guaranatuba. Era local bem escolhido
para uma vivenda de recreio, um bom retiro para o tempo dos tracajás
e da desova das tartarugas. Os altos castanhais da margem oposta do furo estreito
da Sapucaia proporcionavam ao sítio sombra e frescura nos dias de ardente
verão, e ofereciam à vista, além da esplêndida
vegetação, do sertão amazonense, a maior variedade de
flores silvestres e uma fauna riquíssima com pássaros esquisitos
e com caças de todos os tamanhos. Veados, antas, tamanduás,
lontras, capivaras, caititus, enormes barrigudos e vermelhos caiararas vinham
desassombrados beber a água do furo, animados do silêncio e tranqüilidade
do lugar, apenas levemente alterado pelo deslizar suave do ubá de João
Pimenta. A margem esquerda, em que estava o sítio, formava um contraste,
a modo que de propósito, com a banda fronteira, pois ao passo que esta
oferecia um perfeito espécime da mais virgem e rude mata do Amazonas,
o que exaltava a imaginação de padre Antônio de Morais,
o local do sítio do velho tuxaua fora completamente modificado por
mãos inteligentes de homem de bom gosto. As altas sumaúmas,
as agrestes embaubeiras, os cedros gigantescos haviam sido substituídos
por grande variedade de plantas de cultura, de modo a tornar o sítio
uma miniatura de toda a lavoura do Amazonas. A um cacautal de cerca de trezentos
pés, que vinha descendo até o rio, unia-se um canavial, cuja
cor verde-claro manchava o fundo escuro formado pelos cacaueiros densos; logo
ao pé um pequeno pacoval se ocultava por trás dum renque de
floridas laranjeiras, onde se aninhavam titipuruís e rouxinóis
de peito amarelo, saltitantes e canoros. Dentro dum cercado coberto de grama
miúda e vistosa pastavam duas ou três vacas, um touro e alguns
bezerros de mama, e galinhas, patos, perus, marrecos e pavões pequenos
mariscavam à sombra dos cajueiros, das mangueiras, e dos abieiros que
cercavam a casa e desciam pelo terreiro abaixo até à beira da
água, onde um arrozal, levantando as cristas das plantas, parecia ali
posto para dar uma nota risonha à paisagem sombria das grandes árvores
escuras.
Fora ali, contemplando aquele delicioso sítio, que, logo à
chegada padre Antônio de Morais vira a Clarinha, a neta de João
Pimenta, de pé sobre o tronco de palmeira que servia de ponte ao bem
tratado porto. Era uma mameluca, de quinze a dezesseis anos de idade, uma
fisionomia petulante e decididamente desagradável, tão desagradável
que padre Antônio sentiu uma necessidade imperiosa de não se
demorar nesta recordação, desejando já terminar com o
passado e chegar ao presente, naquele quarto, naquela cama, para indagar de
si, da sua situação e do seu futuro. Chegara doente e bem doente,
disso se recordava e fora recolhido àquele quarto, o quarto do finado
padre João da Mata, dando-se-lhe a cama que fora do padre João,
uma marquesa de palhinha, envernizada de preto, que ele guardava para as noites
frias, por causa do reumatismo. João Pimenta e o neto tinham ido buscar
a marquesa ao paiol, onde se achava por inútil, e a Clarinha, entretanto,
ia e vinha, arrumando o quarto, e, quando a marquesa chegou, pôs-se
a fazer a cama, curvando-se e deitando-se às vezes sobre o leito para
prender a fímbria dos lençóis de linho, dum luxo raro
naquelas alturas.
E daí em diante, nos dias seguintes, sempre aquele vulto de mulher,
indo e vindo pelo quarto, cuidadosa, falando meigamente, e com uma solicitude
incômoda. E então a figura de João Pimenta, calado e estúpido,
limitando-se a duas saudações por dia, a do Felisberto, falando
sem parar, curioso, impertinente, fatigante com o seu latim das brenhas e
as suas receitas da mãe Benta de Maués para todas as moléstias,
e a da Clarinha, a mameluca, a irmã do Felisberto, com a sua saia de
chita verde sobre a camisa, sem anáguas, e o seu cabeção
rendado que, num descaro impudente, deixava ver a pele acetinada e clara,
trotavam-lhe na cabeça, num vaivém contínuo de entradas
e saídas, entremeadas de palavras ocas duma sensibilidade extrema,
de cuidados excessivos que lhe deixavam, sobretudo as palavras e os cuidados
da rapariga, uma impressão penosa. Aquela mameluca incomodava-o, irritava-lhe
os nervos doentes, com o seu pisar firme de moça do campo, a voz doce
e arrastada, os olhos lânguidos de crioula derretida. Não lhe
parecia formosa, tanto quanto podia julgar olhando-a por baixo das pálpebras,
porque jamais fitara de frente a uma mulher qualquer, ou pelo menos, a sua
beleza, se beleza tinha, não o atraía, achava-a petulante demais,
provocadora, quase impudente, com o seu arzinho ingênuo, visivelmente
enganador, como devem ter todas as mulheres que o demônio excita a tentar
os servos de Deus. Não sabia por que, mas antipatizara com ela, recebia-a
agressivo e brutal, como se receasse um ataque à sua, aliás
invencível, castidade. Entretanto, francamente, sem vaidade nem falsas
modéstias, nada tinha a recear da neta de João Pimenta, da matutinha
de saia de chita e cabeção rendado. Quem no Pará entrevira
as mulheres do mundo, luxuosas e apetecidas, sem quebrar o voto sagrado que
fizera, quem na vila de Silves se vira alvo das atenções de
muitas senhoras brancas, de posição, formosas e dedicadas, sem
ceder à tentação de lhes sorrir ao menos, não
podia duvidar de si, quando se tratava duma simples mameluca, perdida nas
brenhas do Guaranatuba. Não, não era isso. Não sentia,
à vista da neta de João Pimenta, emoção alguma
que pudesse sobressaltar a sua dignidade de padre severo e consciencioso,
e demais tinha bastante confiança em si e na proteção
de Nossa Senhora, para poder estar tranqüilo a esse respeito. Mas, positivamente,
aquela rapariga incomodava-o. E como explicar isso? Ela era dedicada, serviçal,
quase extremosa, cuidava-lhe da saúde como se aquele hóspede
inesperado fosse seu irmão ou seu pai. Por que o aborrecia? Incongruências
dos seus nervos abalados, efeito da moléstia que o abatera, tirando-lhe
a compreensão exata das coisas, causando-lhe verdadeiras aberrações
de sentimento. Mas tinha fé em Deus que isto passaria com o restabelecimento
da saúde. Sentia-se melhor, quase bom, em breve partiria para o seu
glorioso destino, e a figura da neta de João Pimenta se apagaria da
sua lembrança, como a de tantas outras mulheres que entrevira na vida
austera que dedicara a Deus.
Agora o que convinha, já que o sentimento da realidade lhe voltava,
agora que estava senhor de todas as suas faculdades, e via claramente as coisas
e os homens, era exigir dos tapuios do Sapucaia o cumprimento da promessa
de o levarem ao Porto dos Mundurucus, ou, ao menos, ao Rosarinho, onde lhe
parecia existir uma aldeia dirigida pelos padres da Companhia.
Sentia-se forte, confiante, com a idéia de cumprir a resolução
heróica que tomara em Silves, realizando a missão aos mundurucus,
depois de tantos acidentes e perigos, e na sua cabeça ainda fraca o
entusiasmo exaltara-lhe a imaginação, evocando os mesmos sentimentos
e idéias que o tinham trazido àquelas paragens longínquas.
O fio das suas idéias foi cortado pela aparição do Felisberto
na abertura da porta:
– Agora está melhor?
Estava melhor, sim, estava quase bom. Apenas lhe restava um peso na cabeça
e alguma debilidade, devida provavelmente à dieta. Com um dia de alimentação
mais forte, estaria pronto para seguir viagem, e esperava que Felisberto não
lhe faltaria à promessa de o mandar conduzir ao porto dos Mundurucus
ou ao Rosarinho, conforme fosse mais cômodo.
Felisberto protestou. Era homem de palavra, incapaz de faltar ao que prometera.
Sabia muito bem disso o defunto padre João da Mata, o santo padre que
o criara e o educara para seu acólito, nas missas da Matriz de Maués,
e mais a Clarinha, a afilhada do padre santo. Mas antes de se meter em nova
viagem, era preciso que o senhor padre ficasse bom de todo, ficasse capaz
de apanhar sol e chuva sem perigo de uma recaída. O senhor padre tivesse
paciência, esperasse mais alguns dias, e acabasse de tomar o remédio
da mãe Benta de Maués, que não se havia de arrepender.
E então tratado pela Clarinha que a modo que tinha uma queda por S.
Rev.ma!
O Felisberto ria alvarmente, encantado daquela descoberta que lhe viera de
momento ao espírito, e repetia, gozando:
– A modo que ela tem a sua queda por S. Rev.ma!
Padre Antônio achou a idéia risível. Inspirar paixão
a uma mameluca, esta só daquela besta do Felisberto!
Depois o neto de João Pimenta continuou com a loquacidade acostumada,
abundando na conveniência de permanecer mais alguns dias no sítio,
naquele paraíso, como lhe chamava o defunto padre santo, porque, ficasse
S. Rev.ma sabendo, quem fizera aquele sítio, aquilo tudo, não
fora o João Pimenta, mas o finado vigário de Maués, para
gozar, como ele dizia, algumas semanas tranqüilo e repousado no seio
dos seus mundurucus, como lhes chamava por caçoada. Nesse tempo, a
mãe do Felisberto ainda vivia, uma cabocla de truz, palavra de honra!
Era filha duma moça de Serpa que aquele velho João Pimenta furtara,
no tempo em que era tuxaua, antes de ser convertido pelo padre João
da Mata. Quem diria vendo aquele caboclo velho que fora tuxaua e furtara uma
moça clara? Pois era o avô dele, Felisberto Pimenta da Mata,
um criado de S. Rev.ma para o servir em tudo e por tudo. Padre João,
que era um homem esquisito em Maués, gostava muito de ali estar, no
furo da Sapucaia, passando os dias a pescar tucunarés de caniço
e as noites a ensinar à Clarinha tudo quanto ele sabia. Por isso também
a Clarinha lia, escrevia e contava como talvez nenhuma moça da vila
o fizesse! Pois se o padrinho tinha tanto cuidado com ela, e eram mimos e
mais mimos que até parecia uma princesa! E que cuidados com ela! Nem
o avô João Pimenta podia dizer-lhe coisa alguma, e o Felisberto
chuchara muito bons cachações só porque lhe tocara com
um dedo. Safa, exclamava o rapaz, também não sabia para que
aqueles luxos! Para uma mameluca, não valia a pena. Por isso a Clarinha
não parecia o que era, e, a falar a verdade, nunca tivera inclinação
alguma! Pois ali só apareciam tapuios e
de ano a ano algum regatão mais arrojado. Mas a afilhada do padre
santo não fora feita para tapuios nem regatões!
Padre Antônio distraído, enfastiado, ouvia pela vigésima
vez a história do padre João da Mata, mas quando Felisberto
começou a falar da Clarinha, uma vaga curiosidade o agitava. A Clarinha
fora educada pelo padrinho com tanto esmero e cuidado, não podia ser,
como padre Antônio supunha, uma mameluca como as outras.
Vinha-lhe um desejo de vê-la melhor, sem a prevenção
injustificável que nutria desde que a avistara pela primeira vez de
pé sobre o tronco de palmeira; de examinar-lhe as feições,
sondar-lhe com o olhar o coração para saber se, aquela ingenuidade
aparente era real ou simulada Ao mesmo tempo a sua curiosidade revestia-se,
com grande espanto seu, duma ligeira malícia, a que se não podia
furtar ouvindo tantas vezes a história de padre João da Mata
e da Benedita, a filha da moça furtada por João Pimenta em Serpa.
Ao chegar a Silves, havia seis ou sete meses, ouvira falar da morte do vigário
de Maués, de quem se diziam coisas realmente esquisitas, falando-se
vagamente dum sítio, um verdadeiro paraíso, perdido nos sertões
do Guaranatuba, onde o João da Mata escondia com intransigente ciúme
uma formosa mameluca, que os regatões, que por acaso se haviam aventurado
àquelas remotas regiões, entreviam apenas de longe, passando
como uma sombra esquiva pelos vãos das portas interiores. Â existência
dessa criatura, a quem a imaginação popular dava prodígios
de formosura, se atribuíam as freqüentes ausências de padre
João da Mata, que não parecia comprazer-se na convivência
dos seus paroquianos, antes, demorava-se na vila somente o tempo indispensável
para não faltar de todo às exigências do culto divino.
Entretanto, um dia o velho tuxaua João Pimenta trouxera em uma rede
o corpo duma mulher que dizia ser sua filha, e que declarara querer ser enterrada
em sagrado. Apesar da enorme curiosidade que o fato despertara, ninguém
se atrevera a ir espiar o rosto da morta, envolvido numa grande mantilha de
linho branco, e nos assentos da paróquia, afirmara o sacristão
Firmino, em íntima palestra, padre João da Mata inscrevera o
nome de Benedita Pimenta, solteira, de vinte e dois anos de idade. Mas, coisa
que desnorteara os curiosos habitantes da antiga aldeia tapuia, nem por esse
fato deixara o reverendíssimo vigário de freqüentar o sítio
da Sapucaia, onde com o correr dos anos, parecia demorar-se mais tempo do
que em vida da famosa mameluca, até que um dia, fora no mês de
fevereiro, o João Pimenta, desta vez acompanhado pelo seu neto Felisberto,
viera trazer à vila o corpo de padre santo João da Mata, para
ser enterrado em sagrado. Os habitantes de Maués e de Silves numa puderam
saber o que prendia tanto padre João da Mata àquele sítio
do remoto sertão da Sapucaia, pois não era crível que
só a recordação da Benedita lhe tornasse agradável
aquele retiro selvagem, e desse enigma que por tanto tempo desafiara a argúcia
dos bisbilhoteiros do alto Amazonas, julgava padre Antônio possuir a
solução na existência da neta de João Pimenta,
de quem estava agora o Felisberto dizendo maravilhas. Mas então não
podia ser uma simples mameluca como as outras essa criança que soubera
cativar dum modo tão absoluto o velho padre João, fazendo-o
esquecido dos sagrados deveres do seu cargo. Alguma coisa de extraordinário
teria, que lhe passara desapercebido ou que a sua prevenção
o impedira de ver. Não levaria muito tempo em descobrir a razão
de ser daquele fato que começava a interessá-lo descomunalmente,
chegando a causar-lhe sérias apreensões sobre a serenidade do
seu espírito. Já o prestar benévolo ouvido às
histórias do Felisberto, o relembrar as maledicências de Silves
sobre o seu finado colega, era um pecado que estava cometendo, e de que se
arrependia ao mesmo tempo, pesando-lhe como uma falta grave.
Aquele romance de amor sacrílego, de que não podia desviar
a atenção, atraía-o poderosamente, posto que a consciência
lhe remordesse o erro, advertindo-o da insânia que se ia pouco a pouco
apoderando da sua mente, levando-o a um desregramento grave na sua austera
vida de ministro duma religião de paz e castidade. Bem conhecia o erro,
a que o forçava o persistente inimigo da sua alma, querendo arrastá-lo
para o mal, que pressentia já, vago e indefinido; mas sentia ao mesmo
tempo um prazer estranho, uma volúpia nova, na satisfação
daquela curiosidade doentia, que o levara a ocupar-se de negócio tão
indigno de si, da sua missão, e do caráter que a sua profissão
lhe impunha. E enquanto o Felisberto falava interminavelmente, à beira
da cama, com os olhos parados e o seu sorriso de pobre de espírito,
padre Antônio de Morais pensava no atrativo que prendera padre João
da Mata ao sítio da Sapucaia.
CAPÍTULO XI
O hóspede devia partir, deixando o repouso do sítio da Sapucaia,
para demandar, no ligeiro ubá de João Pimenta, as paragens perigosas
do porto dos Mundurucus, procurando converter ao cristianismo os índios
daquela guerreira tribo, cujo sangue corria nas veias da afilhada de padre
João da Mata. Era uma empresa heróica, até certo ponto
inexplicável para a Clarinha, que não compreendia o móvel
verdadeiro da dedicação incrível daquele rapaz de vinte
e três anos pela salvação eterna de selvagens desconhecidos,
esforço inútil talvez, e que, em todo o caso, não merecia
ocupar de modo tão absoluto um padre moço, cheio de vida e belo
na sua palidez de convalescente. Não fora com risco de vida que padre
João chamara ao grêmio da religião o tuxaua mundurucu
que senhoreava agora o pitoresco sítio da Sapucaia, nem mesmo lhe coubera
a iniciativa dessa obra de civilização e paciência. Facilitara-lhe
muito a tarefa a moça que o Jiquitaia, como se chamava na sua tribo
o avô de Felisberto, raptara em Serpa, e que, conformando-se heroicamente
com a triste sorte que lhe tocara em partilha na vida, se esforçara
por arrancar o tuxaua à vida nômade acenando-lhe com o lucro
da colheita do guaraná, e animando-o a ir, furtivamente a princípio,
e pouco a pouco às claras, à vila da Conceição
de Maués, trocar o produto do trabalho por espingardas, pólvora,
chumbo, corais e ricos vestidos de chita de cores vistosas. Depois ela o induzira
a batizar a sua única filha, a Benedita, e a receber também
por sua vez as águas lustrais do batismo e logo em seguida a matrimoniar-se,
para fazer cessar aquele grande escândalo que padre João da Mata,
vigário de Maués, não queria ver na sua freguesia, composta
na maioria de índios mansos, mundurucus batizados, que ele desejava
conduzir pelo caminho da virtude. A catequese do Jiquitaia, que tanta glória
dera ao vigário de Maués, fora feita na vila, com descanso e
tempo, sem risco de vida nem incômodos de viagem. Padre João
da Mata o arrancara à barbaria, batizara-o, casara-o e o estabelecera
naquela linda situação do furo da Sapucaia, a que depois o padrinho
da Clarinha tanto se afeiçoara, e onde morrera, cedendo à força
de velhos achaques e moléstias, mas tranqüilo e repousado, abençoando
a afilhada e ouvindo o canto mavioso dos rouxinóis e dos sabiás
nas mangueiras do terreiro. Isso sim, era fazer uma catequese. Mas deixar
todos os cômodos e gozos que a vida proporciona a um padre moço
e formoso, para se aventurar pelos rios do sertão em busca de índios
bravos, não era natural, a Clarinha não o compreendia. Padre
Antônio tinha um ar de tristeza resignada que lhe falava ao coração.
O seu porte elevado, raro dote no Amazonas, a fisionomia jovem e simpática,
a regularidade das feições, e, sobretudo, a melancolia profunda
de que eram repassadas todas as palavras que dizia, impressionavam a neta
de João Pimenta, acostumada às galhofas alegres e às
severidades bruscas do finado padre santo e à quase imbecilidade do
irmão e do avô. O hóspede tinha hábitos duma elegância
desconhecida, naturalmente apreendida nas cidades em que bebera a instrução
que o sagrara superior aos outros homens. A batina e o solidéu iam-lhe
admiravelmente, as camisas brancas e finas do finado colega, cuidadosamente
engomadas pela Clarinha, eram substituídas todos os dias, e saíam-lhe
do corpo tão limpas como as havia vestido. Logo que se levantou da
cama, onde o prostrara a moléstia, barbeara-se de fresco, e repetira
diariamente a operação com as navalhas que haviam servido ao
vigário de Maués, e que o Felisberto guardava religiosamente
na sua caixa de papelão. A voz, a estatura, o trajar, os hábitos
de asseio e de elegância, uma graça e distinção
que debalde se procuraria nos raros visitantes do sítio da Sapucaia,
unindo-se ao prestígio da batina, atuavam de tal forma sobre a neta
de João Pimenta que ela se sentia acanhada e trêmula diante daquele
moço que lhe parecia não um homem, nem um padre, mas um ente
superior. A sua jovem imaginação de matutinha de quinze anos
não estava longe de o supor um Anjo do Senhor, desses de que lhe falava
a mãe, nas longas narrativas ao pôr-do-sol, à beira do
igarapé, e que vêm ao mundo disfarçados para experimentarem
a virtude dos homens. Mais a confirmava nessa crença a persistência
do hóspede em se partir dali sem mais demora para ir ao porto dos Mundurucus
pregar o Evangelho a selvagens estúpios e ferozes, o que, no modo de
pensar da moça, o colocava muito acima da humanidade. Entretanto ela
o vira chegar, pálido e sombrio, exausto de forças, a morrer
de fadiga, e depois, subjugado pela febre, com os grandes olhos negros ardentes
e fixos, balbuciante, alheio a tudo que se passava, parecendo ter perdido
a inteligência naquela luta do seu corpo vigoroso com a moléstia
cruel que o derribara. Mais tarde erguera-se convalescente, ainda pálido,
mas de olhos baixos, teimosamente fechados, como se não precisasse
deles para ver o caminho da vida, que a mão inflexível do destino
lhe traçava; e uma melancolia profunda cobria aquele belo semblante,
como se uma irremediável desgraça para sempre lhe tivesse arrancado
a alegria do coração. Então naquelas faces pálidas,
naquela boca triste, naquela fronte sombreada por uma preocupação
visível, a moça, advertida pelo seu instinto de mulher, reconhecia
o homem agitado por sentimentos fortes, adivinhava a luta íntima, embora
para ela intraduzível, que se travava no cérebro daquele rapaz
elegante, daquele formoso padre de vinte e três anos. Que seria? Que
dor amarga lhe torturava o coração? Que inexplicável
tristeza era aquela, que só parecia comprazer-se na vasta solidão
da mata virgem, ou na dedicação sem limites por uma causa que
se dizia sublime mas que ela reputava inútil? Problema insolúvel
para a sua pobre perspicácia de matutinha de quinze anos, que não
sabia ler naquele semblante austero e meigo, nem ver naquela boca séria
e triste senão a simpática melancolia que invencivelmente atraía
a compaixão e a ternura.
O hóspede ia, porém, partir. Em breve seguiria no ubá
de João Pimenta, em demanda de paragens desconhecidas, no cumprimento
do seu destino indecifrável. Tudo aquilo acabaria, e o moço
talvez nem conservaria da neta de João Pimenta a recordação
das suas feições de rapariga, que ele jamais olhara francamente,
na teima dos olhos baixos. Mas a figura elegante daquele mancebo triste jamais
se apagaria da memória da Clarinha. Para sempre lhe ficaria gravada
no coração a lembrança daquelas pálpebras quase
cerradas, brancas, com as longas pestanas trêmulas.
E agora uma infinda tristeza a perseguia, nos vagares da vida suave e monótona
do sítio.
O serão daquela vez durara pouco tempo, e padre Antônio de Morais,
vendo a Clarinha e os dois homens retirar-se, logo depois do café,
sentira-se isolado, todo entregue à enorme agitação que
o possuía, e que a presença da família o obrigara a dominar
por um ingente esforço de sua inquebrantável vontade. Depois
que entrara em convalescença, todas as tardes, ao escurecer, reuniam-se
o avô e os netos no quarto que fora de padre João da Mata e que
lhe haviam dado como o melhor da casa. Felisberto, sentado sobre os calcanhares,
repetia a já muito conhecida história do finado padre santo
e dos seus fregueses de Maués. João Pimenta, de pé no
liamiar da porta, ouvia silencioso, rindo às vezes das pilhérias
insulsas do neto, mascando o seu tabaco com um prazer egoísta; e a
Clarinha, sentada aos pés da cama do padre, num banquinho de pau, seguia
a sua tarefa de costura, interrompendo-se somente para cortar com os pequenos
e alvos dentes a linha com que cosia, e da qual, às vezes, um fiozinho
lhe ficava na boca, avivando-lhe o encarnado dos lábios.
Lá fora ouviam-se a chiadeira dos grilos e o pio agoureiro de alguma
ave noturna, cortando o silêncio das matas. A preta velha trazia o chá
de folhas de café com farinha-d’água, o Felisberto continuava
a falar, o João Pimenta mascava ainda e a Clarinha cosia, ligeiramente
séria, parecendo ter a atenção presa à costura,
apesar das distrações freqüentes que lhe valiam picadas
da agulha vingativa. Daquela vez, porém, a monotonia do serão
fora alterada por um acontecimento inesperado, cujas possíveis conseqüências
lançavam o espírito de padre Antônio de Morais no mais
cruel desassossego.
João Pimenta entrara de chapéu na mão, com ar de quem
tinha alguma coisa a dizer, mas não se atrevia a abrir a boca, como
se um nó lhe apertasse a garganta. Depois de algum tempo de hesitação
e silêncio, o neto falara por ele, explicando que o João Pimenta
precisava ausentar-se por alguns dias, para ir a Maués, a negócio
de muita importância. Tratava-se de levar à vila as frutas colhidas
no sítio, antes que apodrecessem, e o guaraná que haviam colhido
à margem do Carumã e que era encomenda da família Labareda,
gente muito séria, incapaz de lograr a quem quer que fosse e muito
amiga de receber a tempo as encomendas que fazia. Ora estando aprazada a viagem
de S. Rev.ma para o dia seguinte, o velho tuxaua encontrava-se em grande embaraço,
receando lhe apodrecesse a fruta e se descontentasse a respeitável
família Labareda. Felisberto não podia deixar o sítio
naquela ocasião, por causa da roça que exigia os seus cuidados
diários. O único remédio era o senhor padre ter um bocado
de paciência, e esperar a volta do ubá para seguir em busca do
porto dos Mundurucus. Era coisa de pouca demora, uma semana quando muito,
e se isso não desagradava muito ao senhor padre, o pobre tuxaua João
Pimenta ficaria contente:
– Principalmente por causa das frutas e da família Labareda, terminou
o Felisberto, resumindo as razões da insistência do velho.
Padre Antônio ficara contrariado, mas que remédio! Tivera de
aceder ao pedido, dizendo em tom grave que ficaria muito aflito se soubesse
que a sua permanência ali causava transtorno aos donos da casa. Fingira
muita resignação diante da alegria manifestada por João
Pimenta, que arreganhara os dentes numa risada estúpida, soluçada
e nervosa, e por Felisberto, que a contivera numa frase do seu latim do sertão;
e não pudera mesmo o padre deixar de corresponder com um sorriso ao
longo olhar, cheio de carícias, com que a Clarinha lhe agradecia o
sacrifício. Mas agora, que se haviam retirado para tratar dos arranjos
da partida do velho tapuio, agora que se achava sozinho, entregue a si mesmo,
meditando sobre as conseqüências que podia ter a demora no sítio
encantador da Sapucaia, aquela aparente resignação se transformava
numa agitação enorme, num quase desespero, como se, náufrago
na corrente caudalosa do Amazonas, visse afastar-se para longe a tábua
de salvação. Um profundo terror, filho da desconfiança
das próprias forças, começava a encher-lhe o coração,
dando-lhe o antegosto das torturas que o aguardavam naquela casinha rústica
e agradável, e que juntas às cruciantes dores já sofridas
no silêncio do seu modesto quarto, iam talvez despenhá-lo no
abismo da depravação e do pecado. Porque agora que a iminência
do perigo o assoberbava, que, ante a cumplicidade criminosa da sorte, a sua
coragem desmaiava, padre Antônio de Morais, o casto, o puro, o severo
vigário de Silves, o ardente missionário da Mundurucânia
era obrigado, num sério exame de consciência, sondando o fundo
do seu coração da padre, a confessar, corrido de vergonha e
de nojo, que estava louco e cinicamente apaixonado pela neta de João
Pimenta, por aquela mameluca que padre João da Mata escondera nos sertões
de Guaranatuba, e cuja primeira vista lhe fizera impressão tão
desagradável. As fastidiosas histórias do Felisberto lhe haviam
despertado o desejo de conhecer melhor essa rapariga, criada com tanto cuidado
e zelo pelo defunto padre santo, e sem que o respeito, que a si e ao seu caráter
sacerdotal devia, lhe corrigisse aquele movimento insensato de curiosidade
profana, cometera a imperdoável imprudência de levantar os olhos
para essa mulher, que o seu anjo da guarda lhe aconselhava que evitasse, como
se o advertisse da aproximação dum inimigo. Olhara, e maravilhara-se
na contemplação da mais formosa mameluca que jamais vira em
sua vida, se mameluca se podia chamar a quem só muito de leve acusava
os caracteres físicos da raça americana, e que, pela graça
ingênua, pela viva inteligência que revelava nos grandes olhos
pretos, sempre banhados em ondas duma volúpia ardente, parecia filha
dum outro continente. Olhara e compreendera o feroz ciúme com que nos
seus últimos anos de vida, padre João da Mata escondia do mundo
aquele inapreciável tesouro de graça e formosura, e o esquecimento
em que deixava os deveres paroquiais para passar os dias na adoração
daquela criatura angélica, formada por um capricho da natureza, e condenada
pelo destino a viver no sertão do Alto Amazonas entre um velho índio
boçal e um padre cheio de achaques. A que vida, entretanto, a destinava?
Que sorte lhe proporcionaria o padre santo nos sertões de Guaranatuba?
Não haviam sido feitas para rústicos misteres aquelas mãozinhas
delicadas, gordas e polpudas, cujo único préstimo parecia ser
o de acariciar uma face amiga; aqueles pés pequenos, nervosos e bem-feitos
não correriam sem se magoarem por sobre o duro capinzal do campo; aquela
cintura fina e graciosa não era para ser abraçada por um pesado
tapuio acachaçado nas danças do batuque sertanejo ou nos grosseiros
afagos dum noivado desigual. E daí em diante, desde esse fatal momento
em que o seu anjo da guarda velara a face, deixando-o sujeito às tentações
do inimigo da sua alma, que teimava em infiltrar-lhe nas veias o sutil veneno
da volúpia, não tivera o padre um só momento de repouso,
principalmente durante a noite, não lhe sendo permitido conciliar o
sono. A imagem da linda mameluca, beleza extraordinária na verdade
– ou criação fantástica de sua imaginação
doente, dos seus sentidos excitados, não o sabia ao certo -, não
lhe saía da lembrança, com os seus cabelos cheirosos, os grandes
olhos pretos e a pele acetinada, entrevista um dia entre o cabeção
traidor e a leve saia de chita… Passara noites horrorosas! No silêncio
do seu quarto solitário, embalado na alva rede de linho que substituíra
a marquesa de padre João da Mata, padre Antônio de Morais, o
puro, o casto, o ardente missionário da Mundurucânia, confessava-o
agora pela primeira vez, falando francamente consigo mesmo, entregara-se insensatamente
àquele amor que se apoderava bruscamente do seu coração
de sacerdote de Cristo, estremecendo de horror pelo pecado que cometia como
se já estivesse condenado às penas eternas com que outrora ameaçara
os seus ouvintes de Silves. Os terrores que no Seminário, nas longas
vigílias das suas tristes noites de recluso, o perseguiam, repetindo-se
em Silves nas horas de ócio, nas agitações doloridas
dum espírito desocupado, haviam voltado com maior intensidade, porque
vinham acompanhados da convicção de que estava vencido pelo
espírito maligno, auxiliado pelo negrume brilhante dos olhos da mameluca.
Ardera em febre de desejos, e desmaiara de terror à idéia duma
condenação infalível, que se julgava incapaz de evitar.
Revolvera-se na rede, abraçara-se aos punhos, cobrira-os de beijos
doidos num espasmo voluptuoso, como se sentisse ao pé de si o corpo
da Clarinha, macio e flexível como o linho que apertava nos braços.
Mas sempre lhe parecera que a rede se transformava num braseiro e que as garras
do demônio se lhe entranhavam nas carnes palpitantes, longa e dolorosamente.
Sim, foram noites dum sofrer sem fim! A castidade guardada por muito tempo
no meio das baixas devassidões, de que fora testemunha na infeliz e
atrasada sociedade em que vivera os últimos tempos, desequilibrava-lhe
o cérebro num delírio de gozo, numa sede de amor sensual e ardente
que ameaçava tornar-se irresistível, obscurecendo-lhe a razão,
e fazendo-lhe perder a noção da dignidade do sacerdócio
que tanto prezava! A ignorância quase completa da mulher física
desregrava-lhe a imaginação, prometendo-lhe gozos supremos e
inesgotáveis delícias, um mundo desconhecido de prazeres inexcedíveis
no delírio da sua carne jovem e vigorosa. Mas o inferno! Essa crença
inabalável numa vida eterna de suplícios indescritíveis,
que bebera no leite da ama e se lhe avigorara no Seminário, enchia-o
dum terror profundo que o aniquilava.
Para que o tratara a mameluca com desvelos de mãe e de ‘irmã,
dando-lhe gozos desconhecidos, a ele, que da primeira infância recordava
apenas as carícias raras e tímidas da mãe desmoralizada
pelas amásias do marido, e da adolescência e virilidade só
tinha a aridez e o austero isolamento da sua vida de padre católico?
Como ainda nesta noite, em que o Pimenta lhe participara a próxima
viagem a Maués, a presença da rapariga, a sua voz velada e cheia
de doçura, despertavam-lhe no coração uma emoção
nova, uma ternura de criança afagada, um estremecimento fagueiro que
o inundava do contentamento de ser amado, de ser o alvo’ de todas as atenções
duma mulher, de sentir-se protegido, e ao mesmo tempo lhe trazia lágrimas
aos olhos com uma grande vontade, reprimida a custo, de banhar com o seu pranto
as mãos delicadas daquela criatura bonita e bondosa que lhe velara
à cabeceira, como a um enfermo querido. Nessas ocasiões sentia-se
bem, sem ambições nem desejos, a paixão transformava-se
num afeto doce, sereno, sem sobressaltos, e para viver assim, envenenando-se
lentamente, para gozar a presença e os cuidados da moça, de
bom grado prolongaria a convalescença. Mas quando à noite a
Clarinha se retirava, recaía ele nos ardores da paixão que o
queria dominar. A ausência lhe recordava as formas voluptuosas, os lábios
rubros, o olhar demoníaco, e a lembrança o mergulhava na mais
áspera sensualidade. O regime dietético que seguira, o repouso
absoluto a que o forçavam, excitariam o seu temperamento sensual, robustecendo
os instintos egoísticos do matuto, criado ao pleno ar, na mais completa
liberdade, ou um agente estranho, um ser independente e autônomo tomara
a tarefa de o rebaixar a um tal animalismo? Não o sabia, ou antes,
acreditava de preferência na constante tentação que o
perseguia desde o Seminário e contra a qual lutara sempre vitoriosamente,
dominando-a com jejuns e penitências. Mas a triste verdade era que no
silêncio da noite cálida, naquele quarto outrora habitado por
um padre desregrado e astucioso, longe do mundo e das conveniências
sociais, reaparecia o matuto a meio selvagem que saciava o apetite sem peias
nem precaução nas goiabas verdes, nos araçás silvestres,
nos taperebás vermelhos, sentindo a acidez irritante da fruta umedecer-lhe
a boca e banhá-la em ondas duma voluptuosidade bruta. Então
era o demônio que o fazia voltar aos tempos idos de mocidade e de fogo
para melhor o queimar naquele inferno indescritível de sensualidade.
O gozo se tornava necessário e fatal; conveniências do estado,
crença religiosa, escrúpulos de homem honesto, tudo cedia ao
seu imenso amor. Consumia-se em ardores estéreis, agarrado aos punhos
da rede, numa ânsia louca de apertar nos braços um corpo fremente
de mulher bonita, e desfalecia por fim, cansado, aborrecido, indignado, enjoado
do cheiro a flor de castanheiro que o seu corpo exalava. Isto todas as noites!
Com o dia vinha-lhe felizmente a calma, mas uma calma enganadora e perigosa,
que não era senão o adormecimento provisório dos sentidos
exaustos; e como remédio supremo, como tábua de salvação
única, nesse pélago em que se afundavam a sua coragem e a sua
virtude, só via a fuga, a partida precipitada daquela nova ilha de
Calipso, encantadora e terrível. Reunira todas as forças de
sua vontade numa resolução suprema, e marcara a viagem para
o dia seguinte, sem atender aos pedidos de Felisberto e de Clarinha que o
queriam deter, sob o pretexto de que não estava ainda bastante forte
para os incômodos da empresa. Tudo estava pronto, dentro de poucas horas
devia largar do porto da Sapucaia, dizendo um eterno adeus à visão
sedutora que tanto agitara as suas carnes de vinte e três anos. Mas
o inimigo de sua alma não se contentava com pecados de intenção,
não estava satisfeito com tormentos infligidos à sua virtude
nos estéreis ardores das noites em claro. Queria precipitá-lo
duma vez no abismo de que se não volta, e suscitara ao estúpido
tapuio a idéia de uma viagem a Maués para salvar as suas frutas
e servir a família Labareda. Estava vendo naquela resolução
inesperada a obra do demônio da cobiça, vindo em auxílio
do demônio da concupiscência. Era um golpe decisivo que o inferno
tentava contra a virtude austera do missionário, devotado de corpo
e alma à causa santa da religião e do sacrifício, e o
missionário, horror! sentia-se de antemão vencido, incapaz de
mais longa resistência.
Sim, sentia-se vencido. Viver naquela casa, entre as paredes que haviam testemunhado
os amores sacrílegos do defunto padre santo, vendo todos os dias a
admirável criatura, que se apoderara do seu coração,
enchendo os olhos das suas formas voluptuosas e do seu sorriso meigo, saber-se
ali sozinho com ela, porque o Felisberto não entrava em linha de conta,
longe do mundo, livre de olhares invejosos e importunos, era um sacrifício
superior às suas forças.
Passeava agitado pelo quarto, receando a macieza da rede, tentadora como
braços abertos de mulher bonita; já vencido, mas lutando ainda.
Reinava silêncio na casa. A família já estava acomodada.
Da outra banda do igarapé vinha um cheiro forte de baunilha e de cumari,
que misturando-se à exalação das flores das laranjeiras
do terreiro formava um perfume afrodisíaco que entrava pelas portas
dentro e lhe subia ao cérebro, para o embriagar e tirar-lhe o último
lampejo de razão que o esclarecia na luta travada com a sua carne desejosa
e virgem.
Passou a noite toda de pé, com medo de se ir deitar, como se a rede
o atraísse para o pecado; ora desesperado, sentindo a antecipação
das penas do inferno, ora ardendo em desejos viris, pensando em abrir a porta,
sair para a varanda e entrar à força no quarto da Clarinha,
ora caindo em desânimo, maldizendo a covardia do Macário, que
o incitara a fugir aos mundurucus do ubá, cujas flechas lhe teriam
tirado a vida em estado de graça; maldizia também o encontro
que fizera do João Pimenta e do Felisberto, a idéia que tivera
de os acompanhar em vez de se deixar morrer de fadiga e de febre à
margem do Canumã na vasta solidão do deserto. Morresse flechado
por índios, em caminho de sua gloriosa missão, ou de cansaço
e fome à margem de um rio desabitado, teria cumprido o seu destino
na terra, deixaria um nome honrado e alcançaria a palma que não
se nega aos mártires de Cristo; e Deus não deixaria de levar-lhe
em conta a mocidade, os anos decorridos sem que jamais tivesse levado aos
lábios a taça inebriante do prazer… Morreria jovem, sem ter
conhecido da vida senão as suas dores e desgraças, sem ter sentido
um coração de mulher palpitar de encontro ao seu peito vigoroso…
A repetição desta idéia de morte prematura começava
a tornar-se-lhe antipática, estranha na situação em que
se achava. Tudo era calmo e repousado em derredor; através das paredes
de taipa caiada, ouvia-se o ressonar tranqüilo do João Pimenta
e do Felisberto, alternando a respiração em sons agudos e graves,
como à porfia de quem dormiria melhor; do outro lado, do lado do quarto
de Clarinha, nenhum rumor se ouvia; lá fora haviam cessado as vozes
noturnas da floresta no grande silêncio da madrugada. O frescor da brisa
que penetrava pelas juntas mal unidas das portas, trazia um perfume suave
de flor de laranjeira. Toda a natureza repousava, tranqüila e feliz na
calma de uma noite estrelada e serena. Só ele não dormia, só
ele não podia ter um momento de repouso, e pensava em morrer, maldizendo
a vida. E por que morrer? A rede, a alva e macia rede que fora de padre João
da Mata, oferecia-lhe o regaço de puro linho lavado, cheio de promessas.
Por que não dormiria, ao menos para fugir à luta incessante
que o torturava? Talvez que o sono lhe aconselhasse um meio de sair daquele
combate que lhe devorava a alma e o corpo, permitindo-lhe achar uma transação
da consciência com o amor irresistível pela linda mameluca de
cintura fina e dentes brancos. Não seria possível essa transação
prudente que acabasse de uma vez com a loucura que ameaçava sepultá-lo
no abismo da depravação e da morte?
A rede, de que se aproximara lentamente, sentindo nos membros lassos um torpor
suave que o convidava ao sono, e um ligeiro tremor que o frio da madrugada
lhe dava, continuava a oferecer-lhe o regaço de linho, lavado e branco.
Dentro de poucas horas o dono da casa seguiria viagem, e o mal, se mal havia
a temer, seria irremediável. Por que entregar-se a um desespero estéril,
teimando em privar-se dos gozos que a natureza proporciona à mocidade?
Não queria viver a vida que padre João da Mata gozara naquele
sítio dos sertões de Guaranatuba, não sacrificaria todo
o seu futuro à satisfação dos gozos impuros que o sangue
de Pedro de Morais exigia imperiosamente, não, saberia dominar-se.
Mas podia pecar uma vez, matar a enorme curiosidade do amor físico
que o devorava, e resgataria a sua falta, indo resolutamente ao encontro dos
ferozes mundurucus, para morrer às suas mãos pela glória
da religião do Crucificado. Não era difícil recordar
exemplos da história eclesiástica, que lhe servissem de precedente
e lhe atenuassem o procedimento. A partir de Santo Agostinho, cuja mocidade
fora um grande escândalo dos seus contemporâneos, o que o não
impedira de vir a ser um dos maiores Doutores da Igreja, até ao famoso
S. Jocó, passando por centenares de conversos, entre os quais o grande
S. Paulo brilhava pelo esplendor da armadura divina, não faltavam casos
de santos pecando contra a castidade e, depois, por um arrependimento sincero,
ganhando um lugar no céu. Na modesta apreciação dos próprios
méritos, padre Antônio de Morais não se achava em condições
inferiores àqueles dois primeiros célebres pecadores, tocados
da graça divina, pois não pensava em fazer como o filho de Mônica,
que se chafurdara nos horrores da mais baixa devassidão, nem lhe passava
pela cabeça cortar a Clarinha em pedaços, para esconder a falta,
como fizera S. Jacó à pobre moça de família que
lhe haviam confiado para a catequese.
Sentara-se num banco, sentindo muita fraqueza nas pernas, e ainda sem coragem
de se meter na rede. Afinal de contas, que queria ele? Apenas satisfazer a
imensa sede de gozo que o consumia, pagar o tributo ao sangue ardente que
lhe corria nas veias, e ainda assim, entregando-se a um amor desinteressado
e sem mescla de pensamento ruim. A rapariga ali estava, a pedir um homem de
coração que a tomasse, e se havia de cair às mãos
de algum tapuio boçal que colhesse aquela flor delicada, sem ao menos
apreciar-lhe o valor, melhor era que a tomasse Antônio de Morais que
se prezava de conhecer o que havia de belo e bom na natureza. Era um pecado?
Era, mas para remir os pecados tinha padre Antônio o arrependimento,
um arrependimento sincero, que o levaria até o martírio pela
causa santa da religião que professava. Oh! ele bem sabia que resgataria
aquela falta única da sua vida com o maior sacrifício que se
pode exigir dum homem e mesmo dum padre. O seu caso não era, decididamente,
pior do que o dos santos arrependidos, que renovavam os horrores dos gnósticos
e picavam mulheres defloradas! Para as grandes faltas havia a grande misericórdia
divina. O arrependimento lavava todas as culpas!
A argúcia lhe sorria, e ele próprio, com secreta vaidade, aplaudia
a finura do sofisma e o bem lembrado da transação, pensando
nos combates em que outrora vencera os silogismos do douto padre Azevedo.
A luta íntima havia cessado, ele aproximara-se da rede, abrira-a, contemplando-a
com um grande desejo sensual. Sentia-se outro homem, parecia-lhe que estava
mais leve, que lhe haviam voado do cérebro umas nuvens que lhe tapavam
os olhos da razão. Agora, sentado no fundo da rede, prestes a estender
o corpo sobre o seio amoroso do alvo linho lavado, via tudo com a calma e
segurança dum homem que não se deixa enganar por escrúpulos
vãos. Admirava-se dos terrores infantis que o haviam perseguido, e
começava a desconfiar de que não andara até ali o caminho
do bom senso, mas um desvio da imaginação enferma.
Felizmente o senso comum do campônio, que as teorias e a disciplina
do Seminário não lhe haviam tirado, espancava as dúvidas
da mente escaldada pelo terror dum castigo imediato e que nada fazia prever.
Adormecer na segurança do bem-estar atual, reservando para mais tarde
os cuidados da salvação eterna, era a verdadeira filosofia prática
que o amazonense adotava, que a floresta, o rio, toda a natureza amazônica
ensinavam numa fresca madrugada. Adiar era ganhar tempo, sem perder coisa
alguma; graças à infinita bondade do Criador sempre havia tempo
para remir as mais graves culpas, e disso dera exemplo Cristo perdoando à
Madalena os seus lúbricos amores.
Também o bom ladrão, apesar de ladrão, na mesma noite
em que morrera, fora dormir no paraíso. Para que gastar as forças
em sacrifícios sobre-humanos, quando se é jovem e a vida se
arrasta lenta e desocupada? Para que recusar a taça dos deleites, como
Cristo recusara a de amarguras, se era sempre tempo de pedir o remédio,
repudiando sinceramente as alegrias mundanas?
Deitou-se, sentindo em todo o corpo o contato macio do linho, experimentando
a sensação do viajante fatigado que toma um grande banho aromático,
e nele deixa o cansaço, a poeira da estrada e as preocupações
da viagem. Nunca pudera gozar a rede como a estava gozando, e agora, abraçado
aos punhos, sentia a consciência limpa, o espírito lúcido,
o coração desassombrado e alegre, e no aroma das flores de laranjeira
e da brisa da floresta, que lhe entrava pelas juntas mal unidas das portas,
com um perfume oriental de nardo, de sândalo e de canela, bebeu uma
embriaguez suave que lhe pôs em mal definidas reminiscências o
melancólico passado.
– Famoso maçador, o Felisberto, sempre à sua ilharga, deleitando-o
com a prosa prolixa e incolor, recheada de latinórios nunca ouvidos!
Para onde quer que fosse padre Antônio de Morais, o obsequioso Felisberto
ia também, não por desconfiança, que não entrava
facilmente naquele cérebro de tapuio, mas por cortesia, talvez por
prazer, porque criado à sombra da sotaina, ao perfume das velas de
cera ordinária da Matriz de Maués, a vila mundurucua, bebia
os ares por coisas e pessoas da Igreja, mostrando-se orgulhoso e satisfeito
na companhia dum sacerdote, com o desejo de o ter sempre ao pé de si,
de possuí-lo todo para si, no ardor da sua veneração
egoística. E não parecia desconfiar, o lorpa, do incêndio
que lavrava no coração daquele padre, encontrado de joelhos
à beira do Carumã, em missão de catequese e de religião!
Por uma aberração inexplicável, nos seus menores atos
revelava o Felisberto a intenção de lhe atirar a irmã
à cara, como se para o neto do tuxaua a maior ventura e maior glória
fosse ter um sobrinho que nascesse da Igreja, como o dava claramente a entender
nas graçolas insulsas e pesadas com que mimoseava a irmã na
presença do hóspede, cobrindo-os a ambos de vergonha. Era uma
coisa inqualificável que enchia de repugnância o hóspede,
e lhe dera vontade de se ir embora, sozinho, sem esperar o João Pimenta,
e profundamente o desgostara. Mas não tivera ainda tempo de se abrir
francamente com a Clarinha, de lhe dizer tudo que sentia, de lhe falar às
claras, com o coração nas mãos. Algumas frases trocadas
a furto, umas lisonjas medrosas de namorado calouro… e nada mais. O receio
de desagradar, o pudor de sacerdote o impediam de aproveitar-se francamente
da cumplicidade que as chufas do grosseiro tapuio lhe ofereciam. E como partir
assim? Afinal de contas, pensava padre Antônio, ela não tinha
culpa do que o irmão fazia.
Nessa manhã, no copiar da casa, banhado em cheio pelo sol brilhante
de agosto que espalhava vida, luz e calor por todo o vale do Sapucaia, alegrando
os pássaros do céu e os animais da mata, o Felisberto pela centésima
vez contava como o padre santo João da Mata formara o sítio
da Sapucaia para recompensar a dedicação do seu camarada João
pimenta Em frente, ficava o curral do gado vacum, onde os bois, contemplando
com o olhar triste a verde relva luzidia do campo e as folhas claras do arrozal
da beira do rio, pareciam mordidos do desejo de se atirar pelo sítio
fora, numa orgia de liberdade e de folhas verdes. Enquanto o Felisberto falava,
padre Antônio de Morais pensava que até aquela hora ainda não
se atrevera, ou não pudera, dizer à Clarissa o que sentia, e
que perdia o tempo, na pasmaceira do sítio da Sapucaia, sem adiantar
um passo na senda amorosa que se decidira a seguir, sentindo-se incapaz de
resistir ao seu temperamento de campônio. Seria realmente o idiota do
Felisberto que lhe criava os embaraços, ou o acanhamento invencível
do novato, talvez um resto de dignidade ou mesmo remorso, que lhe prendia
os movimentos e lhe dava um nó na garganta toda a vez que tinha de
dizer alguma coisa à adorável criatura que lhe ocupava os pensamentos?
Se tivesse ocasião de se achar a sós com ela, teria maior coragem,
ou faltar-lhe-ia o ânimo de se declarar duma vez, rompendo com o seu
passado, e com a fé do seu juramento? Era uma pergunta que a si mesmo
dirigia pensativo, ouvindo o som monótono e corrente do fraseado do
Felisberto, e olhando distraidamente para o curral onde o touro, o único
touro da manada dava sinais de impaciência, escavando com os pés
o solo e ameaçando com as pontas a cerca, que lhe tolhia a liberdade
e o gozo do arrozal, mas hesitando ainda, em dúvida se poderia vencer
a resistência. Padre Antônio não tinha uma resposta clara,
desconfiava de si mesmo, e começava a pensar que talvez tivesse exagerado
os perigos que corria no sítio de João Pimenta e a gravidade
da moléstia que o afligia. Provavelmente o seu hediondo pecado não
passaria da intenção, por muito condenável, mas que no
fim de contas não lhe podia trazer os mesmos funestos resultados duma
falta irremediável. Pecara gravemente contra a castidade, entregando-se
complacentemente aos ardores estéreis de noites em claro, povoadas
de imagens lúbricas, de desejos sensuais, mas a sólida educação,
que recebera no Seminário, o fundo de religião e de moralidade
com que o dotara a natureza e a firme vontade de ser superior às fraquezas
humanas, sem dúvida venceriam, estava seguro disso e o reconhecia com
orgulho, as tentações da sua carne de vinte e três anos.
Agora que a noite passara, carregando consigo os sonhos bestiais, sentia-se
incapaz de ultrapassar os limites do pecado intencional. O seu anjo da guarda
o protegia, livrando-o das tentações do demônio durante
o dia, quando mais fácil lhe era cair e se afundar na infâmia.
Por um fenômeno singular, cuja causa ele buscava em vão, com
o dia lhe vinham a calma, o bem-estar, o vegetar tranqüilo e satisfeito
sob o olhar meigo da moça, iluminado pelo seu sorriso espirituoso e
honesto. Sentia um prazer indefinível em estar assim, enchendo-se de
emoções ternas e boas, com os sentidos adormecidos, sem pensar
em coisa alguma, sem preocupações de qualquer ordem, deixando
sucederem-se as horas uniformes no caminhar incessante do sol para o seu eterno
fadário, e se não fossem o Felisberto, as tremendas estopadas
que lhe pregava, moendo-o com a sua parolice interminável, de bom grado
ficaria assim toda a vida. Não havia, pois, motivo para desesperar
da salvação. Por um lado o Felisberto, por outro as boas tendências
do seu espírito e do seu coração, o amparo da educação
recebida e a proteção do seu anjo tutelar lhe impediriam a queda.
Mas, coisa singular! esta idéia não o confortava, não
lhe dava confiança no futuro, e a modo que o irritava, ou pelo menos,
causava-lhe uma emoção desagradável, que ele procurava
explicar pela insistência com que o Felisberto lhe espicaçava
o fígado, saturando-o de aborrecimento. No fundo do coração,
fraco e receoso, começava a aparecer como um sentimento de emulação
infantil, o desejo de provar ao neto de João Pimenta que só
da vontade dele, o padre Antônio, dependia o aproximar-se de Clarinha,
e mesmo de afastar para longe o Felisberto e as suas eternas histórias,
recendentes a cera e a incenso queimado. E enquanto o mestiço falava,
com o olhar sereno e sem luz fixo no rosto do padre, as mãos cruzadas
sobre o peito em atitude humilde, e a boca mole a escorrer verdades monotonamente
proferidas, o missionário pensava, olhando distraído para o
curral, onde o touro continuava a ameaçar a cerca, com má catadura,
enfurecendo-se com a permanência do obstáculo que o impedia de
gozar livremente o campo. De repente, como se uma resolução
enérgica lhe tivesse afogueado o sangue, o touro recuou três
passos, e arremeteu com a cerca num ímpeto tal que em parte a derribou
e pôs meio corpo fora. O ruído dos paus quebrados arrancou a
Felisberto ao encanto melodioso das próprias palavras. O neto do tuxaua,
receando que solto o touro se atirasse às plantações
novas, estragando o trabalho de muitos dias, correu a acudir ao desastre,
gritando que se o maldito se soltasse, o avô ficaria danado quando chegasse
de Maués. Padre Antônio, desinteressado, retirou-se para o seu
dormitório passageiro, à procura dum livro – um dos dois livros
do finado padre santo – com que dava pasto ao espírito nos intermináveis
vagares do sítio da Sapucaia.
A Clarinha lá estava. Curvada sobre o leito, a fazer a cama, oferecia-lhe
às vistas a redondeza cativante das formas rijas de mameluca jovem.
A comoção do padre foi tão grande, ao ver-se a sós
no quarto com a encantadora rapariga, que ficou algum tempo sem movimento.
Mas não devia perder aquela ocasião que o acaso lhe deparava
e o loquaz tapuio não deixaria renovar-se facilmente. Era preciso vencer
a timidez de seminarista, abalançar-se a uma declaração
de amor! Aí estava, porém, toda a dificuldade. Jamais se resolveria
a pronunciar a sacrílega palavra, e com certeza deixaria fugir aquela
ocasião única! Não, não, jamais poluiria os lábios
com palavras impróprias da sua dignidade sacerdotal. Sufocaria aquele
insensato amor, aquela paixão criminosa, embora ela tivesse de reduzir-lhe
o coração a cinzas. Morreria desesperado e louco, mas não
ofenderia a pobre menina, confiante e carinhosa, falando-lhe dum sentimento
que a moral e a religião repeliam, e que ela não poderia aceitar
sem perder a alma pura e inocente. Entretanto, ao passo que assim pensava,
uma agitação extrema o perturbava, como se tivesse diante de
si um tesouro inapreciável a que bastasse estender a mão para
o possuir. O vento de virtude que perpassara pelo seu cérebro exaltado
abalara-o profundamente, e inconscientemente, sem saber o que fazia, torturado
por uma angústia, começou a falar, doce e convincente, com uma
tristeza infinita na voz, mal percebendo o efeito das suas palavras sobre
a rapariga, que a princípio se voltara surpresa e, depois, se deixara
ficar sentada na cama, ouvindo-o de olhos baixos, com os braços caídos,
inertes, para o chão.
O coração do padre foi-se abrindo pouco a pouco, com a precaução
com que abriria uma gaiola de pássaros gentis, para não deixar
sair os sentimentos a uma, em tropel confuso. Disse que felizmente para ela
e infelizmente para ele, em breve teria de retirar-se daquele abençoado
sítio de que levava as mais gratas recordações da vida.
Deixaria de incomodar aquela boa gente, e muito mais cedo do que o poderiam
supor, teriam notícia de sua morte em alguma aldeia de mundurucus.
A moça levantou para ele os olhos úmidos de lágrimas,
como se aquela idéia de morte lhe cortasse o coração.
Sim, continuou padre Antônio, morreria em breve, e dele naquela casa
ficaria a lembrança dum hóspede importuno.
E como a rapariga protestasse com um sinal de cabeça gentil, ele,
por sua vez, repetiu que todos os obséquios recebidos no sítio
da Sapucaia lhe ficariam para sempre gravados na memória. Não
pensasse a Clarinha que dizia uma banalidade amável, não sabia
mentir, ainda que para agradar ou agradecer favores. Desde a sua infância,
passada na triste fazenda paterna, erma de afetos, nunca tivera o sorriso
carinhoso duma mulher, mãe ou irmã, a animá-lo no caminho
escabroso da vida. E quando se vira doente, perdido em pleno sertão,
numa casa estranha, entre gente que pela primeira vez o via, e que o amparava
na desgraça, uma mulher lhe sorrira, tratara-o com o afeto de mãe
e irmã ao mesmo tempo, despertando-lhe no coração as
mais doces emoções que tivera a sua mocidade árida e
isolada, toda preenchida pelo estudo e pela dedicação austera
do sacerdócio. Essa mulher, era ela, a Clarinha, sempre solícita,
bondadosa e paciente, aturando as impertinências e rabugices da moléstia,
passando noites em claro para velar-lhe à cabeceira, dando-lhe coragem
e resignação, exortando-o a viver quando o sofrimento o despenhava
no desespero. Agora, que tinha de seguir o seu fadário, cumprir a missão
que se impusera, terminando por uma morte gloriosa e útil uma vida
estéril, queria ao menos, como alívio e derradeiro consolo,
dizer-lhe, assegurar-lhe que jamais se esqueceria dela, da sua bondade, dos
seus carinhos, e que na hora da morte, se alguma idéia, algum pensamento
profano pudesse acudir-lhe, seria o de Clarinha, meiga e afável, dedicando-se,
sem vislumbre de interesse, pela vida do hóspede melancólico
que o acaso lhe trouxera…
A moca estava comovida, os seus lábios trêmulos, os seus belos
olhos chorosos diziam os sentimentos que as palavras do padre despertavam-lhe
no peito. Quando o padre terminou dizendo que ninguém poderia sentir
profundamente a sua morte, porque ninguém o amara, a rapariga fez uma
negativa tão enérgica, que o padre eletrizado aproximou-se dela,
sentou-se ao seu lado, com a cabeça perdida e a voz presa na garganta.
Ficaram ambos enleados, namorando-se com olhos apaixonados. Os peitos arquejantes
denunciavam a viva emoção que os unia num afeto ardente. Padre
Antônio tinha os lábios secos, um forte tremor lhe sacudia as
pernas, os braços, o corpo todo, dando-lhe a sensação
dum frio intenso. A moça, de lábios entreabertos, com um sorriso
doce, cravava nele os olhos, pedindo-lhe que falasse mais…
O Felisberto empurrou a porta, gritando muito alegre, que sempre contivera
o touro no curral, para o impedir de comer o arrozal, mas vendo-os juntos,
sentados na mesma cama, em atitude envergonhada, lançou ao padre um
olhar de malícia velhaca, e gargalhou um riso nervoso e alvar, no gozo
duma aspiração satisfeita.
A volta de João Pimenta, que no dia seguinte chegou de Maués,
agitou novamente a questão da viagem de padre Antônio de Morais
ao porto dos Mundurucus. O vigário de Silves não ousava adiar
por mais tempo a realização do projeto de catequese, temendo
despertar as suspeitas do velho índio, e logo que este lhe mandou dizer
pelo Felisberto que estava às suas ordens, apressou-se em marcar a
partida para daí a dois dias pela madrugada Clarinha tentou opor-se
à partida, dizendo que aquela história de catequese não
tinha razão de ser, que padre João da Mata para converter um
tuxaua não precisaria sair de Maués, e que era pena arriscar
uma vida preciosa para batizar tapuios.
Felisberto disse que entendia também que a viagem às tabas
mundurucuas era uma asneira do padre, que ele Felisberto não compreendia.
João Pimenta, porém, não manifestou opinião, e
essa reserva obrigou o vigário, baldo de desculpas para a delonga,
a insistir em partir no dia designado.
Esta deliberação que pela manhã, à luz do dia,
sob o olhar sereno da moça, tomara com virtuosa energia, sustentava-a
agora no silêncio do quarto, reputando-a, à luz mortiça
do candeeiro de azeite, acertada e salvadora. Pela primeira vez, a noite não
lhe trouxera uma modificação nas idéias e nos sentimentos
que o dia lhe proporcionara Agora, a sós, no exame de consciência
a que se entregava sentia um grande asco da sua hipocrisia, da sua moleza,
da rápida degradação moral em que ia caindo. Horrorizava-o
aquele amor infame que o salteara de improviso, como um cão danado
se atira à garganta do transeunte, e que lhe abalara a fé, a
crença, a honradez e a virtude, reduzindo-o a uma criatura sem moral
e sem dignidade, vítima indefesa das tentações do inimigo,
presa fácil de demônios cobiçosos. Agora, a sua vaidade
estava satisfeita, aplaudia-o pela prova que dera, naquela manhã, de
que sabia dominar as paixões e os instintos baixos da natureza egoísta.
A resolução de deixar a Clarinha, inabalavelmente firmada, mostrava
à sua vaidade que assim como rompera naquele dia os laços que
o prendiam ao sítio da Sapucaia, os saberia arrebentar em qualquer
tempo que a dignidade imperiosa o ordenasse. Bem se sabia forte, incapaz de
se deixar dominar por uma mulher, ainda que ela realizasse o ideal da Grécia
antiga, a correção palpitante das formas, ainda que conhecesse
os segredos lúbricos de Popéia e tivesse as manhas da feiticeira
Circe! Podia perfeitamente colher a flor que encontrava no caminho, sem receio
de que o perfume o embriagasse, tirando-lhe a razão e fazendo-lhe esquecer
o ideal da sua vida de padre! Não pertencia ao número dos fracos,
dos que não podem levar aos lábios a taça do prazer,
sem que se lhes agarre à boca, e lhes tire o ânimo de a deixar
cair ainda cheia! Oh! se ele, padre Antônio de Morais, quisesse gozar
as inefáveis doçuras dum amor partilhado, nem por isso a sua
carreira se cortaria desastradamente, não se afundaria no lodaçal
da sensualidade, que, como o fizera a feiticeira aos companheiros de Ulisses,
converte os homens em porcos. Não, tinha a necessária energia
e força de vontade para conter-se àagrave; borda do abismo, e a calma
precisa para lhe sondar a profundeza a olho frio e seguro. Homem, poderia
ceder às exigências da natureza sem que por isso se tornasse
incompatível com as grandes empresas que demandam coragem, lealdade,
desprezo da vida e dos prazeres. Para um homem sensato, o problema era dominar
o prazer, regularizá-lo, utilizá-lo mesmo, e não se deixar
subjugar pelo gozo; tomá-lo como um acidente agradável na vida,
como estimulante para os grandes combates da existência, e não
como o seu objetivo principal. Assim, segundo esta filosofia verdadeira, a
convicção da própria fortaleza aconselhava-o a encarar
a deliberação de seguir viagem como um ato cujos efeitos morais
eram importantes, mas suficientes. Desde que ele se via capaz de quebrar o
encanto que o prendia ao sítio, para que privar-se de satisfazer as
exigências de sua natureza de vinte e três anos, adiando a partida
por uma semana ou por um mês? O principal era experimentar a sua força
de vontade; uma vez provada, os terrores deviam desaparecer, a dúvida
esvaía-se, a regeneração era certa, o arrependimento
salutar.
À medida que as horas se adiantavam e a atmosfera do quarto refrescava
com a brisa da madrugada, aquela segurança ia dando à resolução
inabalável da manhã o caráter duma rematada tolice. Perdido
o receio de se deixar dominar por um amor terreno, ao ponto de lhe sacrificar
a glória da religião e a salvação eterna, que
necessidade havia de perder também a ótima ocasião de
consolar o isolamento de toda a mocidade com o gozo dum amor de virgem? Partiria
para o sacrifício e para a morte sem ter libado algumas gotas de felicidade
neste mundo, sem conseqüências fatais ao seu nome, porque secreta,
e à salvação da alma, porque não absorvente, e
antes, pelo contrário, sempre possível dum arrependimento oportuno
e sincero? Sairia, deixando a Clarinha, aquele tesouro de graças e
de beleza, à disposição do primeiro regatão ousado
que se aventurasse por aquelas paragens? Que mal resultaria duma hora de esquecimento,
de embriaguez mesmo, uma vez que havia certeza de recuperar a razão,
para o guiar no governo da vida, tirando toda ação nociva à
bebida inebriante? O sacrifício que ia fazer nas brenhas da Mundurucânia,
exemplo raro de crença e de fé, não era bastante para
resgatar uma culpa?
Começava a reconhecer que fora precipitado na determinação
do dia da viagem, antes de ter saciado aquela imensa curiosidade de amor que
o devorava, porque, com calma e reflexão, sondando o íntimo
da sua natureza ardente de matuto, sem paixão nem cegueira, constatava,
verificava e reconhecia que o gozo almejado lhe era tão necessário,
como o alento da fé, que o trouxera das bordas do lago Saracá
às paragens do Guaranatuba, era indispensável para a realização
da grandiosa empresa que tentara. Sem satisfazer primeiro as exigências
do temperamento animal, nunca seria capaz de levar a cabo a obra de dedicação
e sacrifício, seria um homem incompleto, não encontraria um
estimulante assaz forte para o robustecer contra as fadigas e descômodos
da viagem, as fomes, as perseguições e as misérias; ficar-lhe-ia
sempre na alma o espinho pungente daquele prazer não provado, daquela
curiosidade insatisfeita, para o ferir no mais solene momento, para lhe fazer
nascer a dúvida no espírito, para abalar a crença nos
grandes atos de martírio com o pesar, talvez, das delícias incomparáveis
que lhe teriam proporcionado os braços da Clarinha. E agora, nesse
momento de grande sinceridade, em que se fazia justiça severa, podia
confessar que o sangue de Pedro de Morais não lhe corria nas veias
sem que influísse sobre o seu caráter indolente, comodista e
sensual, que só um grande sentimento, o remorso por exemplo, um profundo
arrependimento de grandes pecados cometidos, poderia arrastar ao mais’ completo
sacrifício que a um homem é dado fazer da sua pessoa e das suas
aspirações.
Exaltava-se, recordando-se de que tivera a Clarinha ali, naquela cama, quase
nos seus braços, palpitante e apaixonada, e que nem sequer ousara tocar-lhe,
limitando-se a dizer-lhe coisas tristes. Tinha acessos de raiva quando pensava
que deixara escapar ocasião tão favorável, que provavelmente
não se repetiria no curto prazo que lhe restava. Dava murros na cara
para se castigar da falta que cometera. Ele, padre Antônio de Morais,
tão ousado de imaginação que se arrojara aos mais inconfessáveis
pensamentos, levando a ponta da sua curiosidade investigadora às mais
sagradas regiões dos mistérios divinos, deixara-se ficar como
um palerma ao pé de uma rapariga que se lhe oferecia, com os braços
pendentes e resignados, os olhos úmidos, a boca entreaberta, solicitando
beijos.
Havia já algum tempo que desertara a macia rede de linho, e passava
as noites na marquesa de palhinha, em cama feita carinhosamente de alvos lençóis
finos, na convicção de que evitaria assim mais facilmente as
tentações da carne. Mas a lembrança de que ali estivera
assentada a Clarinha, deixando um vago perfume de sua pessoa naqueles linhos
brancos, e como que o sinal do seu corpo na leve depressão das roupas
da cama, tornava-lhe mais perigoso aquele leito do que jamais o fora o regaço
macio da rede. Ocupava o mesmo lugar que ela ocupara, e sentia desmaios de
gozo e ardores formidáveis com aquela aproximação ideal
dos corpos. A idéia de que perdera tudo levava a paixão às
raias do delírio, havia momentos em que pensava em assassinar o velho
tuxaua e o Felisberto, e fugir com a Clarinha para o mato, para a amar, debaixo
dos castanheiros, sob o sol ardente, à luz esplêndida de um dia
de verão, em pleno ar, em plena liberdade, ao som da música
dos passarinhos e à face de toda a natureza, que desejava provocar
a um desafio insensato. O sonho da carne nua, palpitante à luz do sol,
lembrava-lhe aquele trecho de epiderme acetinada e colorida, entrevisto ao
chegar, nas formas excitantes da mameluca, e os seus olhos negros e aveludados,
cheios de ternura, os cabelos recendentes do cheiro afrodisíaco das
mulatas paraenses, e tinha alucinações cruéis… A Clarinha
estava ali, sentada na cama, como na véspera, mas despida, só
com aquele cabeção indiscreto com que a surpreendera à
chegada, e ele, num frenesi agarrava-a pela cintura, atirava-a sobre os travesseiros;
cobria-a de beijos loucos, e desfalecia de prazer nos braços da mameluca,
embrutecido por um perfume ativo de trevo e de pipirioca.
O dia o veio achar num abatimento indescritível. Ergueu-se a custo,
com a cabeça pesada e o corpo lânguido, abriu a porta do quarto
e saiu para a varanda, vestido como se deitara, com uma camisa de chita e
umas calças de brim.
Como para lhe fazer sentir melhor a dor da separação, o último
dia da sua estada no sítio se anunciava esplêndido. A natureza
revestia-se de todas as galas, ostentando uma profusão de cores e de
luz. Nunca o sítio de João Pimenta lhe parecera tão belo.
Fora certamente num dia como aquele que padre João da Mata aportara
àquele lugar e o escolhera para seu retiro. O sol, erguendo-se por
trás das matas da outra banda, coloria de azul a rica vegetação
das terras, deixando ainda na sombra as tranqüilas águas do estreito,
abrigadas pelas árvores colossais da beirada, e vinha dourar a pindoba
do teto da casa de moradia, dando-lhe reflexos metálicos. O céu,
dum azul esbranquiçado, alourando para o oriente, parecia uma grande
cúpula transparente, que limitava por todos os lados o horizonte, engatando-se
na linha ondulante das árvores longínquas, ou abaixando-se para
o poente até encontrar a orla da campina, que crescia para ele numa
atração de amor.
Os pássaros despertos enchiam a mata de mil vozes confusas, a que
respondia o mugir das vacas de leite, presas no curral e ansiosas por correr
livremente o campo, cuja verdura namoravam.
Todos dormiam ainda na casa. Padre Antônio caminhou para o porto. Despiu-se
por detrás duma moita, e meteu-se no banho. A branda tepidez matutina
da água acalmou-lhe os nervos, refrescou-lhe a cabeça, e restituiu-lhe
o vigor, e quando sentiu que a gente da casa acordava, saiu do banho, vestiu-se
às pressas, confiando ao sol o cuidado de secar-lhe a roupa.
Na disposição de espírito em que se achava nada lhe
seria mais insuportável do que a prosa soporífera do quase imbecil
Felisberto, e em vez de voltar para a casa, onde o assustava também
a idéia dum encontro com a Clarinha, rodeou o laranjal, e internou-se
no cacaual, no propósito de meditar calma e livremente.
O banho acalmara-lhe a exaltação extraordinária em que
gastara a noite, e podia agora refletir melhor sobre o que lhe cumpria fazer.
Ao período de excitação nervosa sucedera o de colapso
físico em que a alma pudera reassumir o governo do corpo. Essa mudança
permitia-lhe ver claro na sua loucura. Sustentara um combate terrível
com o inimigo do gênero humano, donde safra são e salvo por um
milagre da graça divina, mais do que pela robustez da sua fé.
Havia no cacaual uma sombra cheia de umidade, que penetrava os ossos e dava
uma sensação singular de frio. Os papagaios e os macacos devoravam
os cacaus que a inércia de João Pimenta deixara apodrecer na
árvore, e fugiam à aproximação do padre. O missionário
passeava sob os cacaueiros, enterrando os chinelos nas folhas úmidas
que lastravam o chão, parando de vez em quando inconscientemente se
alguma idéia mais grave lhe atravessava o cérebro.
Sentia um grande conforto de virtude. Liberto da presença encantadora
e dominante da neta de João Pimenta, sentia que a honradez nativa retomara
o antigo império no cérebro farto de aninhar uma paixão
impossível e vá, e que o ardor religioso se reacendia exaltando-lhe
os sentimentos. Parecia-lhe que tinha agora o coração limpo
duma moléstia incômoda ou que safra duma embriaguez de vinho,
readquirindo a lucidez do espírito. Não, não recairia
naquele abatimento moral que o pusera às bordas do abismo, havia de
furtar-se, uma vez para sempre, às tentações indignas
que o iam fazendo esquecer a grande e sublime missão que Deus lhe reservara
na terra, e no íntimo de seu peito, ainda há pouco opresso por
desejos insensatos, nascia um honrado orgulho da vitória da sua integridade.
O orgulho ia crescendo e se transformando numa necessidade irresistível
de se aplaudir a si mesmo, e de comparar-se para se convencer do próprio
mérito. O beato Luiz de Gonzaga, de virginal memória, não
lhe ficaria superior se se atendesse à gravidade e número das
tentações sofridas por um e desconhecidas do outro. Sim, estava
contente consigo mesmo. Partiria no dia seguinte, sereno e tranqüilo,
sem saudades do tesouro de deleites que sacrificara à glória
do próprio nome e à propagação da fé nos
sertões do Alto Amazonas.
Não se diria que padre Antônio de Morais, depois de vencer tantos
obstáculos, fadigas e perigos, atravessando incólume inóspitas
paragens, esmorecera no fim da empresa, deixando-se cativar pelos olhos duma
tapuia, ele que sentira sobre si, orgulhoso e indiferente, os olhares cobiçosos
de mulheres brancas do Pará e das suas mais belas paroquianas de Silves.
Seguiria para o porto dos Mundurucus, morreria às mãos do gentio
ou o converteria à religião de Cristo, e o próprio Chico
Fidêncio lhe faria justiça.
Passeava, fazendo gestos de extraordinária energia, expandindo os
sentimentos que o agitavam. Falava, esquecido de que ninguém o ouvia,
escapavam-lhe frases, cheias de intimativa aos silenciosos cacaueiros. De
que valiam gozos terrenos ante a perspectiva da bem-aventurança eterna!
Que era o amor duma mulher comparado com o amor da humanidade? Que era o prazer
carnal, que voluntariamente deixava, em confronto com a glória que
cobriria o seu nome, se morresse, e as honras e dignidades que recairiam sobre
o obscuro padre matuto, se lograsse voltar com vida das aldeias mundurucuas?
Vinha-lhe uma ambição de subir, de ocupar altos cargos, uma
cobiça de honrarias. Podia ser chamado pelo seu bispo a ocupar a primeira
dignidade da Sé paraense, e talvez que a fama levasse o seu nome ao
Rio de Janeiro… aos pés do imperador, o dispensador dos benefícios.
Decididamente não fora feito para vegetar numa paróquia sertaneja.
Também não imitava, comprazia-se em o reconhecer, para se desculpar
das ambições, não imitava o procedimento dos seus indolentes
e debochados colegas do interior da província, não era um padre
João da Mata, um padre José, o finado vigário de Silves.
E então, inchando de vaidade, e para melhor se convencer do direito
que tinha às altas posições da Igreja, perguntava, possuído
dum ódio súbito contra os outros padres: Que faria em seu lugar
um desses sacerdotes espalhados pela diocese do Pará, desde a capital
até os confins de Tabatinga? Levaria uma vida cômoda e fácil,
entregue à adoração de Vênus, seguindo as doutrinas
de Epicuro. Ele não, não se confundiria com esses porcos de
ceva, ignorantes e dissolutos. A sua missão estava traçada,
havia de cumpri-la.
Sentia o cérebro perturbado pelo fumo da vaidade que lhe vinha de
tais pensamentos, embriagava-se pouco a pouco com a idéia da superioridade
do próprio mérito, à medida que evocava da história
dos santos os nomes mais reputados em virtudes, e por um breve processo de
comparação, levando em seu favor a diferença dos tempos
e das situações, concluía, com a lógica poderosa
que lhe ensinara padre Azevedo, que não lhes restava nada a dever.
Novo S. Francisco Xavier, o apóstolo dos índios, casto como
S. Efrém e S. Luís de Gonzaga, forte e sereno como o seu homônimo,
vencedor do demônio, ele, padre Antônio de Morais, ilustraria
os sertões da Amazônia e glorificaria a sua pátria, resumindo
na sua simpática figura de mancebo forte os altos merecimentos que,
separadamente, haviam eternizado a memória de tantos canonizados!
O dia adiantara-se. O sol, coando raios vivos pela folhagem dos cacaueiros,
punha em plena luz a sua estatura elevada, o seu rústico vestuário,
que lhe causou uma impressão de desgosto. Era tempo de sair do cacaual,
de volta para a casa, a tratar dos preparativos da viagem que devia fazer
no dia seguinte. Mal tomara a resolução, uma visão inesperada
o colheu de surpresa, obrigando-o a dar um salto para trás e a esconder-se
entre troncos de árvores. A Clarinha, a neta de João Pimenta,
dirigia-se para o cacaual, com um alguidar vazio na mão, arregaçando
a saia de chita para a não molhar no capim orvalhado, e deixando à
vista, descuidosamente, uma perna roliça, até perto do joelho.
Ele a viu aproximar-se, encantadora, com o cabelo preso no alto da cabeça,
com um simples vestido de chita, e os pequeninos pés nus a dançarem
numas tamanquinhas de couro vermelho, encaminhar-se para o seu lado, e parar
bem ao pé dele, sem o ver; depois chegar-se a um cacaueiro, carregado
de frutas maduras, pôr o alguidar no chão, e começar a
colher os cacaus, que partia batendo-os na árvore, e cujos bagos, cobertos
de alva polpa aveludada, despejava no alguidar. Viu-a com o rosto pálido
e sério, entregue àquela tarefa simples, e parecendo-lhe que
chorara, porque tinha os olhos vermelhos, comoveu-se e acercou-se dela, perguntando-lhe
o que tinha que a fazia tão triste.
Ouviu-a responder que não tinha nada, mas ao passo que isso dizia,
saltavam-lhe as lágrimas dos olhos, e com grande volubilidade contava,
para disfarçar a emoção, que viera colher cacau para
preparar o vinho que o avô gostava muito de ter à sua vontade
quando viajava. Queria preparar um pote de vinho porque, bebendo-o na viagem,
o senhor padre, talvez, conservasse por mais tempo a recordação
do sítio da Sapucaia… que queria deixar a todo o custo, como se desagradável
lhe fora a convivência com os pobres habitantes de tão mesquinha
tapera. Viu-a, ao pronunciar essa última frase, deixar o trabalho que
encetara e, encostada ao cacaueiro, olhar para ele com um misto encantador
de ternura e de zanga, sacudindo a cabeça muito sentida pela ingratidão
que lhe faziam, toda ela respirando amor e volúpia, com os seios a
arfar brandamente, o tronco do corpo, vergado para trás, salientando
o ventre numa postura provocante; o ligeiro prognatismo de raça, dando-lhe
ao rosto uma graça peculiar, parecendo oferecer a beijos apaixonados
aquela linda boca vermelha de lábios fortes e carnudos. Um braço
erguido e descansando sobre um galho de árvore, deixava pender a manga
do vestido e oferecia à vista uma carne rija e colorida, enquanto o
outro braço, caindo ao longo do corpo, exprimia uma passividade resignada…
Viu-a finalmente manter-se nessa posição por algum tempo, e
depois com um risinho irônico dispor-se a continuar o trabalho, abaixando-se
para levantar o alguidar do chão.
Então ele, saindo de uma luta suprema, silencioso, com um frio mortal
no coração, com o cérebro despedaçado por um turbilhão
de sentimentos contrários, atirou-se à moça, agarrou-a
pela cintura e mordeu-lhe o lábio inferior numa carícia brutal.
Foi breve a luta. A neta de João Pimenta caiu exausta sobre o tapete
de folhas úmidas do orvalho, douradas pelo sol. Entre os ramos dos
cacaueiros os passarinhos sensuais cantavam.
Quando a Clarinha voltou para a casa, levando o alguidar cheio de bagos brancos
e aveludados, padre Antônio de Morais vagava pela floresta, com a cabeça
oca, sentindo uma grande necessidade de andar.
CAPÍTULO XII
A notícia que o Felisberto trouxera de Maués, na volta de sua
ultima viagem, alterara profundamente a preguiçosa tranqüilidade
em que vivia padre Antônio de Morais, havia exatamente três meses,
no sítio da Sapucaia, em companhia da Clarinha, cada vez mais terna
e amorosa, sabendo com segredos feiticeiros avivar-lhe a paixão sensual
que o dominava. A narrativa o arrancara de chofre àquela calaçaria
monótona em que jazia, bem nutrido, dormindo noites sem cuidado, passando
dias sem trabalho nem preocupações, sentindo um bem-estar extraordinário,
que satisfazia plenamente a sua natureza de matuto amazonense.
E naquela tarde, ao pôr-do-sol, enquanto a Clarinha ia ao porto ajudar
o irmão a descarregar as chitas e os diversos objetos e galantarias
que trouxera de Maués, o missionário, sozinho no copiar, sentado
junto à mesa, vendo a figura graciosa da moça desaparecer entre
as árvores do caminho, tivera um despertar da consciência, e
fizera um exame introspectivo daqueles três meses decorridos, com a
absoluta segurança de perito desapaixonado. Uma luz nova se fazia no
seu cérebro, os fatos evocados lhe apareciam nus, destacados e salientes
no exame duma crítica imparcial. O amor-próprio não devia
influir na apreciação do seu procedimento. Juiz severo e reto,
como se fossem atos de outro, ele os via pela lente fria e segura do observador
desinteressado. O seu temperamento, a sua organização íntima,
toda a sua individualidade patenteavam-se à lucidez da consciência,
sem um refolho, sem um ponto obscuro. Os motivos que lhe haviam determinado
o procedimento revelavam-se pela primeira vez à análise fria
a que se entregava, lembrando-se, pesando, classificando, filiando os efeitos
às causas, com uma penetração, uma perspicácia
de que até então não dispunha o seu cérebro, povoado
de idéias e sentimentos antagônicos. Tinha naquele momento a
percepção exata do que fora, do que era, do que viria a ser,
na situação que as circunstâncias lhe faziam, em que o
futuro aio era mais do que a continuação indetenninada do presente
e a conseqüência inevitável do passado. Como a Clarinha
desaparecera entre as árvores do porto, deixando o vago perfume da
sua adorada pessoa, cessara a embriaguez da paixão correspondida em
que o mergulhara o amor da mameluca, deixando-lhe a sensação
agradável do bem-estar gozado, abalado agora por uma notícia
inesperada, que lhe despertara a consciência adormecida.
Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga
que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada,
extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina
do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação,
quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não
seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim,
se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos,
que a privação de prazeres açulava e que uma educação
superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário
haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular e conter a ação
determinante da hereditariedade psico-fisiológica sobre o cérebro
do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um
ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria
conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos,
como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único,
o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera? No momento dado,
impotente o freio moral para conter a. rebelião dos apetites, o instinto
mais forte, o menos nobre, assenhoreara-se daquele temperamento de matuto,
disfarçado em padre de S. Sulpício, Em outras circunstâncias,
colocado em meio diverso, talvez que padre Antônio de Morais viesse
a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez que
viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando
o mundo com o fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios
inauditos. Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar,
sem moral, sem educação… vivendo no meio da mais completa
liberdade de costumes, sem a coação da opinião pública,
sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente constituída…
sem estímulos e sem apoio… devia cair na regra geral dos seus colegas
de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora do isolamento,
e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo
o senso moral e rebaixando-se ao nível dos indivíduos que fora
chamado a dirigir.
Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e a reputação
do seu nome, para mergulhar-se nas ardentes sensualidades dum amor físico,
porque a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros atrativos além
dos seus frescos lábios vermelhos, tentação demoníaca,
e das suas formas esculturais, assombro dos sertões de Guaranatuba.
Dera-se tão bem com aquele modo de viver no sítio da Sapucaia,
que o futuro não o preocupava um só instante naqueles rápidos
três meses. Passaria naturalmente o resto da existência ao lado
da neta gentil de João Pimenta, gozando os inesgotáveis deleites
duma vida livre de convenções sociais, em plena natureza, embalado
pelo canto mavioso dos rouxinóis e acariciado pelo doce calor dos beijos
da sertaneja.
Se alguma vez, no meio daquele torpor delicioso, um sobressalto o apanhava
de repente, acordando a idéia do inferno, que lhe atravessava o cérebro
como um relâmpago, logo recaia na apática tranqüilidade
que era a sua situação normal, adiando – com o movimento impaciente
de quem enxota um inseto importuno – o arrependimento que lhe devia remir
as culpas, e que reservava para ocasião própria, como o mergulhador
que se aventura às profundezas do abismo, confiando na corda que o
há-de chamar à tona da água na ocasião do perigo.
Semanas e meses se haviam passado naquela rápida degradação
moral. A sua falta não causara estranheza aos tapuios que o hospedavam,
e a nova posição da Clarinha, se vivo prazer dera ao pateta
do Felisberto, fora perfeitamente indiferente ao velho João Pimenta.
Nem sequer se mostrara surpreso quando a sua inteligência tarda percebera
que já não se tratava da viagem ao porto dos Mundurucus. O antigo
tuxaua deixara de ocupar-se da partida, e retomara as suas labutações
normais, a pesca, a caça e a colheita do guaraná para os suprimentos
da família Labareda. Também padre Antônio de Morais não
se julgara obrigado a dar-lhe satisfação.
Na verdade, a vida já lhe corria sem aquelas lutas intimas da consciência
com o pecado, que se lhe refletiam no semblante, imprimindo-lhe na fronte
o sinete do sofrimento mortal. Nobres ambições de glória,
ardores de propaganda desapareciam sob a calmaria podre duma consciência
adormecida, em que o quase desconhecimento de si mesmo era o resultado dum
esgotamento das forças vivas da inteligência e da vontade. O
temperamento abafara, no enérgico desenvolvimento das tendências
hereditárias e dos instintos famélicos de matuto independente,
a moralidade relativa e os sentimentos elevados que a educação
do Seminário tentara aproveitar para um fim acanhado, mas que não
conseguira disciplinar por insuficiência da doutrina que desconhece
a verdadeira natureza do homem; e num rapaz de vinte e três anos, exemplo
da sua classe e honra do colégio que o atirara ao mundo como apto para
as lutas da vida na espinhosa carreira que procurara, aparecera somente o
matuto grosseiro e sensual. Fora bastante o contato da realidade mundana,
auxiliado pelo isolamento e pela vaidade, para raspar a caiação
superficial que lhe dera o Seminário, e patentear o couro do animal.
O hábito fizera o monge. Quem reconheceria no rapaz moreno, de espesso
bigode preto, cabeleira penteada, rescendendo a patchuli, com calças
e camisa de riscado, o ardente missionário da Mundurucânia, o
padre de semblante angélico, a cuja voz as beatas de Silves estremeciam
de gozo místico? De vestido talar ou de calças de riscado, Antônio
de Morais era fisiologicamente o mesmo homem, mas a diferença que o
hábito externo estabelecia entre o presente e o passado duma mesma
pessoa exprimia apenas a relação entre o homem que a natureza
formara e o indivíduo que a sociedade moldara à sua feição.
Tirara a batina e aparecera o filho legítimo de Pedro Ribeiro, o rapazola
que levara uma infância livre, satisfazendo o apetite sem peias nem
precauções nas goiabas verdes, nos araçás silvestres
e nos taperebás vermelhos, tentadores e ácidos.
Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre
Antônio de Morais acordava ao romper da alva, quando os japiins, no
alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera-cômica
cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos.
Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora
do padre santo João da Mata -, espreguiçava-se, desarticulava
as mandíbulas em lânguidos bocejos e depois de respirar por algum
tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não
tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma
simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canículo
enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente,
ele oculto por uma árvore; ela acocorada ao pé da tosca ponte
do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa
enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso,
entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções
de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil
coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com
a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando
chegavam à casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação
do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café
com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois
duma volta pelo cacaual e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café
com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de
farinha-d’água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça
ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos
de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da
escandalosa mandriice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira
de tucum, armada no copiar
– para as sestas do defunto padre santo. A Clarinha desembaraçava-se
dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o padre,
deitado a fio comprido, e ela sentada na beira de rede, passavam longas horas
num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros
monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver
um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa
natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.
Às vezes saíam a dar um passeio pelo cacaual, primeiro teatro
dos seus amores, e entretinham-se a ouvir o canto sensual dos passarinhos
ocultos na ramagem, chegando-se bem um para o outro, entrelaçando as
mãos. Um dia quiseram experimentar se o leito de folhas secas que recebera
o seu primeiro abraço lhes daria a mesma hospitalidade daquela manhã
de paixão ardente e louca, mas reconheceram com um fastio súbito
que a rede e a marquesa, sobretudo a marquesa do padre santo João da
Mata, eram mais cômodas e mais asseadas.
Outras vezes vagavam pelo campo, pisando a relva macia que o gado namorava,
e assistiam complacentemente a cenas ordinárias de amores bestiais.
Queriam, então, à plena luz do sol, desafiando a discrição
dos maçaricos e das colhereiras cor-de-rosa, esquecer entre as hastes
do capim crescido, nos braços um do outro, o mundo e a vida universal.
A Faustina ficara em casa. João Pimenta e o Felisberto pescavam no
furo e estariam bem longe. Na vasta solidão do sítio pitoresco
só eles e os animais, oferecendo-lhes a cumplicidade do seu silêncio
invencível. A intensa claridade do dia excitava-os. O sol mordia-lhes
o dorso, fazendo-lhes uma carícia quente que lhes redobrava o prazer
buscado no extravagante requinte.
Mas esses passeios e diversões eram raros. De ordinário quando
João Pimenta e o neto voltavam ao cair da tarde, ainda os encontravam
na maqueira, embalando-se de leve e entregando-se à doce embriaguez
dum isolamento a dois.
Findo o jantar, fechavam-se as janelas e as portas da casa, para que não
entrassem os mosquitos. Reuniam-se todos no quarto do padre, à luz
vacilante de uma, candeia de azeite de andiroba. Ela fazia renda de bico,
numa grande almofada, trocando com agilidade os bilros de tucumã com
haste de cedro envolvida em linha branca. João Pimenta, sentado sobre
a tampa de uma arca velha, mascava silenciosamente o seu tabaco negro. Felisberto,
sempre de bom humor, repetia as histórias de maués e os episódios
da vida do padre santo João da Mata dizendo que o seu maior orgulho
eram essas recordações dos tempos gloriosos em que ajudara a
missa de opa encarnada e turíbulo na mão. Padre Antônio
de Morais, deitado na marquesa de peito para o ar, com a cabeça oca
e as carnes satisfeitas, nos intervalos da prosa soporifera de Felisberto
assobiava ladainhas e cânticos de Igreja.
Pouco mais de uma hora durava o serão. A Faustina trazia o café
num’ velho bule de louça azul, e logo depois, com lacônico eanê
petuna – boa-noite, se retirava o velho tapuio. Felisberto ainda se demorava
alguma coisa a caçoar com a irmã, jogando-lhe graçolas
pesadas que a obrigavam a arregaçar os lábios num aborrecimento
desdenhoso. Depois o rapaz saía, puxando a porta e dizendo numa bonomia
alegre e complacente:
– Ara Deus dê bás noites p’ra vuncês.
Isto fora assim, dia por dia, noite por noite, durante três meses.
Uma tarde, ao pôr-do-sol, o Felisberto voltara de uma das suas costumadas
viagens a Maués, trazendo aquela notícia que arrancara o padre
a essa espécie de inconsciência em que jazia. Encontrara em Maués
um regatão de Silves, um tal Costa e Silva – talvez o dono do estabelecimento
– Modas e novidades de Paris – que lhe contara que a morte do padre Antônio
de Morais, em missão na Mundurucânia, passara como certa naquela
vila, e tanto que se tratava de lhe dar sucessor, acrescentando que a escolha
de S. Ex.a Rev.ma já estava feita. Foi quanto bastou ao vigário
para o tirar do delicioso torpor em que mergulhara toda a sua energia moral,
na saturação de deleites infinitos, despertando-lhe as recordações
de um passado digno. E com o olhar perdido, imóvel, sentado junto à
mesa de jantar, uma idéia irritante o perseguia. Teria o Felisberto,
trocando confidência por confidência, revelado ao Costa e Silva
a sua longa permanência na casa de João Pimenta? Esta idéia
lhe dava um ciúme áspero da sua vida passada, avivando-lhe o
zelo da reputação tão custosamente adquirida; e que agora
se evaporaria, como fumo tênue, pela indiscrição de um
palerma, incapaz de conservar um segredo que tanto importava guardar.
O primeiro movimento do seu espírito, acordado por aquela brusca evocação
do passado, do marasmo, em que o haviam sepultado três meses de prazeres,
era o cuidado do seu nome. Não podia fugir à admissão
daquela dolorosa hipótese que a conhecida loquacidade do rapaz lhe
sugeria. A sua vida presente teria sido revelada aos paroquianos, acostumados
a venerá-lo como a um santo e a admirar a rara virtude com que resistia
a todas as tentações do demônio. A consciência,
educada no sofisma, acomodara-se àquela vilegiatura de ininterrompidos
prazeres, gozados à sombra das mangueiras do sítio. A rápida
degradação dos sentimentos, que o rebaixara de confessor da
fé à mesquinha condição de mancebo de uma mameluca
bonita, fizera-lhe esquecer os deveres sagrados do sacerdócio, a fé
jurada ao altar, a virtude de que tanto se orgulhava. Mas na luta de sentimentos
pessoais e egoísticos que lhe moviam e determinavam a conduta, mais
poderosas do que o apetite carnal, agora enfraquecido pelo gozo de três
meses de volúpias ardentes, punham-se em campo a vaidade do seminarista,
honrado com os elogios do seu bispo, e a ambição de glória
e renome que essa mesma vaidade alimentava. Confessava-o sem vergonha alguma,
analisando friamente o seu passado: caíra no momento em que, limitado
a um meio que não podia dar teatro à ambição nem
aplausos às virtudes, isolado, privado do estímulo da opinião
pública, do ardor do seu temperamento de matuto criado à lei
da natureza, mas longamente refreado pela disciplina da profissão,
ateara um verdadeiro incêndio dos sentidos. A mameluca era bela, admirável,
provocadora, a empresa fácil, não exigia o mínimo esforço.
E agora que para ele o amor já não tinha o encanto do mistério,
agora que sorvera longa e gostosamente o mel da taça tão ardentemente
desejada, os sentidos satisfeitos cediam o passo a instintos mais elevados,
posto que igualmente pessoais.
Mas vinha o pateta do Felisberto com a sua habitual tagarelice, e desmoronava
aquele tão bem arquitetado edifício da reputação
do padre Antônio de Morais, precioso tesouro guardado no meio da abjeção
em que caíra. O missionário ia ser abatido do pedestal que erguera
sobre as circunstâncias da vida e a credulidade dos homens, e, angústia
incomparável que lhe causava o triste clarão da condenação
eterna surgindo de novo quando se rasgava o véu da consciência
– a inconfidência de Felisberto vinha até impossibilitar ao padre
o arrependimento, com que sempre contara como o náufrago que não
deixa a tábua que o pode levar à praia. Como arrepender-se agora
que a falta era conhecida, que o prestígio estava reduzido a fumo?
Iria buscar a morte às aldeias mundurucuas? Ninguém acreditaria
que um padre devasso e preguiçoso pudesse sinceramente fazer-se confessor
da fé e mártir de Cristo, e se viesse a morrer naquelas aldeias,
não celebrariam o seu nome como o de um missionário católico
que a caridade levara a catequizar selvagens, mas todos atribuiriam a tentativa
a uma curiosidade torpe, se não vissem no passo uma mistificação
nova, encobrindo a continuação da vida desregrada do sítio
da Sapucaia.
Voltar para Silves e dar ali o exemplo da castidade e da dedicação
ao serviço divino pareceria arrependimento sincero? Não se sentiria
com forças para arrostar com um povo que o sabia vulgar e desmoralizado,
repugnava-lhe invencivelmente apresentar-se aos seus antigos paroquianos em
atitude humilde de pecador arrependido. O episódio do sítio
da Sapucaia não seria mistério para pessoa alguma, porque o
Felisberto contara provavelmente, devia ter contado, não podia deixar
de contar ao Costa e Silva a permanência do padre na casa e as conseqüências
que se lhe seguiam. Todos em Silves, o Mapa-Múndi e o Neves Barriga,
o Mendes da Fonseca e o Valadão, o Aníbal Americano e até
o patife do Macário, se é que lá chegara, todos deviam
estar a rir daquela famosa catequese, iniciada com tão grande ardor
religioso e tão patuscamente terminada. O Mapa-Múndi negaria,
invocando o testemunho do Costa e Silva, que tivesse chorado ouvindo o famoso
sermão sobre a eternidade; o Neves Barriga lamentaria os obséquios
feitos a um pândego da ordem de padre Antônio; o professor Aníbal
Brasileiro diria que desconfiar a do padre quando o vira opor-se à
publicação da Aurora, e o Mendes da Fonseca e o Valadão
esgotariam o cômico incidente, comentando o caso com a profundeza dos
seus conceitos e acabando por dar razão aos ataques do Chico Fidêncio
contra o clero. As mulheres também não o poupariam. A D. Dinildes
afirmaria que lhe dirigira gracinhas, uma vez, ao confessionário e
a D. Prudência que deixara de o presentear porque soubera das suas relações
com a bisca da Madeirense… O arrependimento era, pois, inútil, porque
não lhe salvaria o nome, pensava ele, confundindo o interesse da salvação
da alma com o da reputação mundana. De nada serviria ser bom
e virtuoso, desde que os outros o consideravam mau. Assim era forçoso
tirar esta conclusão lógica: se o tratante do Felisberto dera
com a língua nos dentes a respeito da Clarinha, o que não podia
deixar de ter acontecido, ele, padre Antônio de Morais, estava perdido
para sempre, em pecado mortal, incapaz duma regeneração perfeita.
Esta conclusão que claramente lhe figurava a sua irremediável
desgraça arrancou-o à reflexão calma, com que procurava
estudar a situação presente. As idéias baralharam-se
no cérebro. Um desânimo profundo apoderou-se dele.
Passou a noite mal, muito agitado pelos terrores do inferno, e mordido no
amor-próprio pela idéia da má opinião que os outros
estariam tendo dele em Silves. A Clarinha achou-o frio, preocupado, nervoso,
movido por impaciências bruscas que pela primeira vez lhes separavam
os corações. Ela pôs-se a chorar silenciosamente, doída
daquele abandono que não tinha explicação para a sua
simplicidade, crente na duração perpétua daquela paixão
que soubera inspirar ao senhor padre, o qual, ainda na véspera, a manifestara
por beijos ardentes de amor e de volúpia.
Ele deixou-a chorar. Um ressentimento lhe vinha contra aquela rapariga que
o havia seduzido e arrastado ao precipício, em cujo fundo se revolvia
num leito de espinhos e de lama; um ressentimento que não podia deixar
de considerar injusto, mas que por isso mesmo mais o irritava, gelando-lhe
o coração. Sentia uma repugnância súbita daqueles
deleites que tanto o haviam subjugado, e ora lhe pareciam sem atração
e sem calor. Como se uma névoa lhe tivesse caído dos olhos,
percebia que o prazer físico daquele amor de mameluca não lhe
bastava para encher o vácuo do coração, donde arrancara
a confiança no futuro.
Chegou a manhã sem que tivesse conciliado o sono, excitado ainda mais
contra a Clarinha que adormecera afinal, cedendo às exigências
da natureza, como se lhe tivessem bastado aquelas poucas lágrimas que
vertera para a justificar do crime cometido. Levantou-se de mau humor, e no
copiar, encontrando o Felisberto, deu-lhe uma descompostura.
Fizera-a boa, o Felisberto, não havia dúvida! Agora ele, padre
Antônio de Morais, estava com a sua carreira cortada! Havia de passar
toda a vida no sertão do Guaranatuba a beber vinho de cacau, a chupar
laranjas, a dormir com a sirigaita da Clarinha, e a aturar as maçadas
do idiota do Felisberto, em vez de continuar a sua carreira honrosa, podendo
vir a ser cônego e talvez que bispo um dia! Estava enganado o pateta
se pensara que ele voltaria para Silves, depois que ali se soubera que não
fora a porto dos Mundurucus, e ficara de namoro com a Clarinha no furo da
Sapucaia. Nada. Ou seria vigário com a força moral que soubera
adquirir ou não seria mais nada neste mundo! E que diria o Chico Fidêncio?
Que escreveria aquele patife para o Democrata? Vamos! Dissesse o Felisberto
o que escreveria o Chico Fidêncio! Bandalheiras, mentiras, mentiras,
desaforos! E quem era culpado de tudo isto? Aquela besta que logo havia de
encontrar em Maués um morador de Silves com quem desse à taramela!
Passeava agitado na varanda, com as mãos atrás das costas,
carrancudo, irritado, reproduzindo na fisionomia os traços duros do
caráter paterno. Desabafava a ira em palavras grosseiras, que pela
primeira vez saíam daquela boca acostumada aos doces fraseados com
que captava os ânimos do auditório. Sentia uma grande cólera
contra aquele estafermo que ali estava, estúpido e mole, sem ânimo
de protestar contra os insultos que ele lhe atirava, e gozava um alívio
cada vez que um palavrão porco ou indecente lhe caía dos lábios.
O Felisberto, atônito, punha os dedos em cruz, e beijando-os, jurava
que não dissera nada ao Costa e Silva, mas S. Rev.ma não o ouvia
e continuava a descompostura que só cessou quando o tapuio, corrido
e atemorizado, fugiu, receando o castigasse mais severamente do que com palavras.
S. Rev.ma durante todo o dia evitou a Clarinha, que, sentada na maqueira,
balançando-se de mansinho, com os olhos baixos, sem ânimo de
dizer palavra, curtia a primeira mágoa que lhe amargurava a existência
depois da morte de sua querida mãe.
À noite, por força do costume, reuniram-se no quarto do padre,
que mudo e carrancudo, vagamente arrependido dos excessos a que se entregara,
quedava-se estirado na marquesa, a parafusar sobre a solução
do intrincado problema que a indiscrição do Felisberto lhe dera
a resolver. Clarinha trocava os bilros da almofada, mordendo os beiços
de despeito, pela mudança que se operava no amante, e alternava os
alfinetes, cravando-os com força nas casas novas, como se aquela vingança
contra o papelão da renda lhe satisfizesse a zanga com que estava.
João Pimenta, indiferente, como se não tivesse percebido aquela
súbita catástrofe que tão inesperadamente perturbara
a paz gozada pela família, mascava o seu tabaco forte, salivando a
miúdo. Somente o Felisberto, que a cólera do hóspede
não conseguira fazer calar por muito tempo, papagueava, como de costume,
muito interessado em fornecer pormenores sobre o seu encontro com o Costa
e Silva, para provar que nada lhe dissera sobre o modo de vida de padre Antônio
no sítio da Sapucaia, tendo-se limitado a contar-lhe apenas que o conhecia
e o sabia vivo. Nem mesmo houvera tempo para mais, valha a verdade, por Deus
Nosso Senhor o jurava. O encontro dera-se na casa da família Labareda,
onde o Felisberto fora receber dinheiro e o Costa comprar vinte libras de
guaraná para o Elias, um sujeito do Pará. Por sinal que a família
Labareda era muito ladrona, pois que vendera ao Costa e Silva o guaraná
por muito mais dinheiro do que lhes dava a eles que o colhiam. Fora a primeira
vez que o Felisberto vira esse desaforo, de que não fazia idéia,
e se não fosse o medo de perder a freguesia, teria reclamado. O Costa
lhe perguntara, quem és tu? Sou neto do meu avô João Pimenta,
Jiquitaia, da tribo mundurucu. Saberá V. M.ce que meu avó era
tuxaua, valente, e governava todo o Carumã.
– Pois vai-te queixar ao bispo, dissera-lhe o Costa e Silva.
O bispo estava muito longe, lá para as bandas do Amazonas, e não
valia a pena. Então o Felisberto declarou que pediria a S. Rev.ma,
padre Antônio, que quando fosse para esses lados, falasse por ele ao
bispo, para acabar com a ladroeira da família Labareda, que estava
tirando dos pobres tapuios o suor do seu rosto, que lhes custava tanto a ganhar
trabalhando no sertão e arriscando a sua vida para colher o guaraná
para aquela família de unhas-de-fome. O Costa ficou muito admirado
e perguntou:
– Que padre Antônio é esse?
– É S. Rev.ma, padre santo muito bom, que se chama padre Antônio
de Morais.
– E tu conheces a padre Antônio de Morais, mentiroso? disse o Costa
e Silva.
– Mentiroso, ele, Felisberto, não, nunca mentira, porque sabia que
isso era um pecado mortal. Conhecia padre Antônio tão certo como
ter sido Jiquitaia seu avô, catequizado pelo padre santo lá da
Sapucaia. E por sinal que padre Antônio tinha-se encontrado com ele
e o avô João Pimenta à margem do Sucundari, sozinho, muito
assustado, porque havia escapado dos parintintins ou mundurucus, o Felisberto
já não se lembrava bem…
– Dos parintintins, disse o Costa e Silva, foi dos parintintins!
Nesse momento o filho mais velho do Labareda, aquele que quis casar o ano
passado com a filha mais moça do Francês, chamou-o para ver o
guaraná que estava saindo do forno. O Costa saiu apressado e gritou
do corredor ao Felisberto:
– Deixa estar que no Madeira hei-de saber notícias dele.
O Felisberto saiu, e não se encontrou mais com o regatão que
nesse mesmo dia seguia viagem, ao passo que o rapaz ainda se demorara uma
semana em Maués, por causa dum ……. Era coisa que não perdia,
um sairé. Se esta não era a verdade, Deus Nosso Senhor o castigasse
por aquela luz que os estava alumiando, e que lhe faltasse à hora da
morte.
– Que estás tu aí a falar do Madeira, perguntou padre Antônio,
que afinal prestara atenção à tagarelice do tapuio, e
sentiu que uma idéia luminosa lhe atravessava o cérebro. Pois
o Costa e Silva, perguntou ainda, sentando-se na marquesa, pois o Costa e
Silva não voltava para Silves?
– Não voltava tão cedo, afirmou Felisberto, levantando-se e
apontando de novo para a candeia de andiroba, jurava por aquela luz. O Costa
e Silva seguira para o Madeira, onde poderia estar há uns quinze dias
e onde havia de demorar-se mais dum mês. Por sinal dissera que havia
de perguntar por S. Rev.ma lá no Madeira, e se ele voltasse para Silves,
que é que ia perguntar no Madeira?
Mas então, em Silves ainda ninguém sabia a verdade! Então
padre Antônio de Morais podia voltar para a sua paróquia, sem
receio de que lhe descobrissem o segredo que tanto lhe importava guardar,
e do qual dependia o seu futuro! Voltaria, pois, e sem demora, para evitar
que o Costa e Silva regressasse à vila antes dele lá estar.
Partiria quanto antes, pois que o pateta do Felisberto gastara tanto tempo
em Maués, ‘ria surpreender os seus ingratos paroquianos, que já
se preparavam para receber de braços abertos o sucessor que a solicitude
do senhor bispo não tardaria em nomear, zelando das suas obscuras,
mas nem por isso menos queridas ovelhas! Partiria e ninguém, ninguém
em Silves era capaz de duvidar de que padre Antônio de Morais tivesse
gasto aqueles três meses na catequese de índios bravios, em pleno
sertão do Sucundari e do Guaranatuba.
Pensava, rejubilando-se com esta solução tão fácil
que a bendita tagarelice do Felisberto lhe tinha feito brotar no espírito
abatido, e enquanto os outros prosseguiam no insípido serão,
ele, cheio de coragem, criando alma nova, combinava, refletia, pesava todas
as hipóteses que se lhe apresentavam, resolvia as dúvidas, discutia
consigo mesmo as probabilidades, e assentava finalmente na resolução
firme de partir no dia seguinte pelo rio Abacaxis fora em busca do lago Saracá
e da vila que à sua margem repousa entre eternas verduras.
Quando se recolheram todos, e o padre ficou só com a mameluca, uma
última luta se travou entre e a ambição e o amor a que
se acostumara na posse daquela rapariga gentil, cujo amuo passageiro, cujos
olhos vermelhos de lágrimas, cujo retraimento inesperado. naquela noite
de despedida lhe incendiavam de novo os sentidos, despertando a paixão
adormecida, como se já há muito tempo estivesse privado do gozo
do seu corpo.
Já agora deixá-la era impossível. Depois que a notícia
da viagem do Costa e Silva ao Madeira lhe reanimara o ânimo abatido,
mostrando que não estava impossibilitado de regressar à sua
paróquia com o mesmo prestígio de outrora, a alegria e a esperança
extinguiram o ressentimento contra a linda mameluca que lhe revelara as delícias
inefáveis dum amor correspondido. Pensando em partir, em a deixar para
nunca mais a tornar a ver, em abandonar por seu gosto aquele tesouro inapreciável
de encantos que só ele, ele só, conhecera e gozara, sentia um
grande abalo que lhe tirava a firmeza da resolução que acabara
de tomar. Os ressaibos dos beijos da Clarinha chocavam-se com as recordações
dos tédios de Silves, e a sua natureza sensual reagia em favor dos
doces prazeres que a moça lhe proporcionara. O quê! Voltaria
a levar a vida estúpida e monótona de pároco da aldeia,
a cantar ladainhas, a confessar negras velhas, feias e repelentes, a doutrinar
crianças, a morrer de tristeza e de aborrecimento na vastidão
daquela vila deserta, onde não tinha para o consolar nas horas de freqüente
desânimo, em que a herança materna sobrepujava a fortaleza viril,
para povoar o seu isolamento, para lhe suavizar as agruras da vida, o olhar
meigo e carinhoso, a fala doce, o amor incansável da sua querida Clarinha,
da única mulher que seriamente o amara. Deixá-la-ia naquele
sítio solitário, para morrer de saudades, ou – coisa horrível
que o fazia estremecer – para cair nos braços de algum tapuio boçal
que a cobiçasse para mulher, ou de algum regatão atrevido que
a tomasse para o duplo emprego de amante e de criada! Partiria tão
às pressas, quando os encantos daquela mulher incomparável lhe
prometiam ainda tantos dias vividos à sombra das mangueiras em flor,
na intimidade, tantas noites repletas de delícias que jamais encontraria
em outra! Tinha visões eróticas, pensando nos prazeres que gozara.
Recordava o cacaual, a bela carne clara destacando-se do amarelo avermelhado
das folhas secas; o capinzal verdejante do campo, espigado e fino, emoldurando
a redondeza palpitante das formas; o furo de água negra, transparente
e límpida em que os membros gentis tomavam figuras vagas, fantásticas
e vacilantes; a maqueira de tucum, refrescando o calor dos corpos unidos em
apertado abraço, na ausência do Felisberto, do João Pimenta
e da Faustina, a rede, a macia rede, tentadora e provocante, embalando suavemente
os amantes no vaguejar dos sonhos… Mas que perigo em se deixar ficar ali,
naquele viver sensual e mole, enquanto a história da sua queda podia
chegar a Silves e matar para sempre a aspiração dum futuro glorioso!
Lutava enleado nas pontas daquele dilema terrível, com a cabeça
perdida, procurando embalde no arsenal dos seus sofismas, no manancial de
argúcias da sua filosofia egoística e chicaneira, um meio de
sair daquele embaraço cruel que lhe esmagava o coração.
Sentia-se incapaz de sacrificar o futuro àquela mameluca simples, e
mais incapaz ainda de desprender-se dos braços dela para salvar a honra
de seu nome e o brilho da carreira que imaginara poder percorrer na vida.
Entre o presente, representado pelo amor da neta do João Pimenta, pela
vida fácil, cheia de gozos e de inação, que tanto satisfazia
o seu temperamento de matuto grosseiro e preguiçoso, e o futuro, visto
pela lente da ambição que o exaltava nas grandezas e dignidades
da Igreja, na confiança depositada na própria inteligência,
saber e ilustração adquirida à custa de tantos esforços,
a sua alma se balançava hesitante. Toda a fraqueza de caráter
que o sangue materno lhe transmitira, se revelava naquela conjuntura da vida.
Pálido, arquejante, sem saber o que fazia, atirou-se à cama,
cobriu o rosto com os lençóis, e rompeu num choro convulso de
criança contrariada.
A Clarinha, que o espiava silenciosa, chegou-se a ele, abraçou-o ternamente,
e segredou-lhe ao ouvido com uma meiguice incomparável na voz:
– Levas-me contigo, sim?
CAPÍTULO XIII
Quando o ubá chegou ao sítio do Tucunduva, no rio do Ramos,
seriam três horas da tarde, e havia três dias que viajavam, descendo
o rio Abacaxis, na esguia embarcação selvagem, bem provida de
todo o necessário que era possível acomodar sob a estreita tolda
de japá, improvisada para resguardar a Clarinha do sol ardente de dezembro.
Fora uma partida alegre, despreocupada. A família deixara o sítio
da Sapucaia como se fosse fazer uma pequena viagem de recreio. João
Pimenta, na indiferença da sua estupidez de antigo tuxaua convertido
ao cristianismo, acostumado à subserviência as ordens de padre
João da Mata, não achara palavra no seu pobre vocabulário
para opor à deliberação dos netos, e concordara com a
viagem como se se tratasse da coisa mais simples e natural do mundo. No furo
da Sapucaia, no pitoresco bom retiro do defunto padre santo, apenas ficara
a Faustina, a preta velha, para cuidar dos numerosos xerimbabos que a moça
sustentava.
O Felisberto, remando à proa, vinha alegre, duma alegria ruidosa.
Era o mais feliz de todos quantos haviam deixado o sítio do furo da
Sapucaia no ubá de João Pimenta.
Quando soubera que o hóspede regressava ao exercício das suas
funções paroquiais em Silves, Felisberto gargalhara o seu contentamento
numa risada convulsa, que expandira a sua fisionomia de jovem tapuio civilizado,
numa expressão alvar de orgulho satisfeito. Havia muito que nutria
secretamente o desejo ardente de ver o hóspede voltar às funções
da vigararia, ambicionando a continuação da gloriosa ocupação
que iniciara sob os auspícios do defunto padre santo. Ia agora talvez
conseguir a honra de acolitar o novo padre santo, com o tal Macário
ou sem ele, não na indiana Maués, mas num povoado muito mais
importante, na civilizada Silves, cuja população branca ele
cuidava deslumbrar com as mesuras e salamaleques que aprendera no ofício
com o latinório de contrabando que padre Antônio escutara maravilhado
nos sertões de Guaranatuba.
Maior fora ainda o seu prazer quando, risonha e feliz, a mana Clarinha o
certificou de que o senhor padre a queria levar consigo para lhe lavar a roupa
e tomar conta da casa, porque S. Rev.ma, coitado! não tinha jeito nenhum
para o governo da casa, que o Macário deixava andar à matroca,
e a respeito de lavagem de roupa era uma ladroeira monstruosa em Silves, além
de uma pouca-vergonha na demora e porcaria do serviço. A princípio
a Clarinha ficaria num sítio do rio Ramos, no Tucunduva, enquanto o
senhor padre arranjasse casa e dispusesse tudo para a receber e agasalhar
dignamente; mas, havia prometido, a demora não seria longa, porque
S. Rev.ma estava resolvido a não continuar sem mulher em casa, por
causa das perdas e transtornos que essa falta lhe ocasionava. Ouvindo isto,
o Felisberto não se pudera conter, pulara como uma criança.
A dupla decisão de padre Antônio de Morais fazia antever um futuro
de honras subidas e de prazeres incomparáveis, realizando o sonho com
que se pagara a sua imaginação de tapuio, vaidoso da consideração
que lhe dava o namoro de S. Rev.ma com a Clarinha.
Por isso, remando à proa do ubá, descendo a corrente do rio
Abacaxis, o Felisberto antegostava o prazer de repenicar, com a força
dos pulsos acostumados ao corte das rijas maçarandubas, os sinos afamados
da Matriz de Silves, que o padre santo lhe descrevera como de verdadeiro bronze,
de som argentino e de bela aparência dourada. Já se imaginava
de opa encarnada, carregando o missal de um lado do altar para outro, com
mesuras graciosas e latinórios difíceis, balançando o
turíbulo cheio de sufocante incenso queimado, numa gravidade solene,
e às ocultas, depois da missa, por detrás, do altar-mor, fingindo
apagar as velas de cera com o apagador de couro preto pregado à comprida
vara, devorando silenciosamente as hóstias da caixinha de lata, regando-as
com o vinho branco das galhetas, na satisfação da sua gulodice
de tapuio, não acostumado à farinha de trigo e ao vinho estrangeiro,
alcoolizado e doce.
João Pimenta governava o jacumã, silencioso e apático,
mascando tabaco, e embebendo o olhar na contemplação passiva
do céu, das águas, das árvores da beirada, da grande
natureza que amesquinhava a sua personalidade embrionária de mundurucu
batizado.
Padre Antônio de Morais, meio deitado no fundo do ubá, ao lado
da apaixonada Clarinha, com o chapéu sobre o rosto para o resguardar
do sol; cismava. enquanto o ubá deslizava, impelido pelos compridos
remos dos dois tapuios.
Haviam sido rápidos, apressados os últimos dias passados no
sítio da Sapucaia. O padre sentia uma grande impaciência, queria
chegar quanto antes a Silves, para assumir o exercício da vigararia,
antes que o Costa e Silva regressasse do rio Madeira e espalhasse a notícia
que obtivera sobre o missionário da Mundurucânia.
A solução encontrada e a aproximação da partida
haviam recordado hábitos e deveres esquecidos; física e moralmente
padre Antônio queria voltar a ser o sacerdote que o João Pimenta
e o Felisberto haviam encontrado ajoelhado à beira de um rio sertanejo,
o mesmo que partira de Silves, alimentando o grandioso projeto de civilizar
os mundurucus. Fora, primeiro que tudo, forçoso recorrer às
velhas navalhas do seu colega João da Mata, postas de lado quando,
vencido pela paixão sensual que o dominara, perdera os estímulos
do brio e se chafurdara na degradação moral que o ia inutilizando
para sempre. Padre Antônio sacrificara o espesso bigode negro que a
preguiça deixara crescer com força, e quando no pequeno espelho
de parede se viu restituído à depilação obrigatória
do ofício, pareceu-lhe que de fato tornava a ser o que fora, e que
com aquela operação tão simples lhe voltavam as idéias,
os sentimentos e os gostos do sacerdócio. Ao vestir a batina, alguma
coisa embolorada e velha, aquela mesma que em nova trazia com a apurada elegância
que entusiasmara as mulheres de Silves, a transformação se completara,
e o padre sob a vestimenta negra e grave, que lhe alteava o corpo, sentira
o espírito elevado acima das vulgaridades da sociedade em que se metera,
dos gostos que ali o haviam detido. A sua superioridade, desprendendo-se das
teias em que a haviam enlaçado os apetites do corpo, se afirmara de
novo sobre aqueles tapuios ignorantes que o tinham feito resvalar até
o nível da sua simplicidade grosseira, na igualdade dos instintos sórdidos
de sertanejos sensuais. Quando pôs na cabeça o chapéu
de três bicos, e saiu para o copiar, para tomar o caminho do porto,
o Felisberto exprimira por uma risada nervosa e sacudida a funda impressão
que lhe causava o aspecto do vigário, e a Clarinha enchera-se de involuntário
respeito e de encantadora timidez, diante daquela aparência severa e
fria de sacerdote que não lhe recordava o amante apaixonado do cacaual
e do campo, mas o hóspede extraordinário e imponente que lhe
chegara numa tarde de agosto, como um Anjo do Senhor, suave e triste na sua
grandeza sobre-humana.
Entretanto, apesar do hábito sacerdotal, padre Antônio de Morais
já não era o mesmo mancebo entusiasta e ardente que o vale do
Canumã havia visto batendo-se contra a natureza implacável do
Amazonas, e consumindo-se numa luta sempre renovada contra o temperamento
de campônio livre e robusto, contra o natural de poldro rebelde que
a educação embalde procurara domar. Engordara na vegetação
preguiçosa dos três meses passados no sítio; a satisfação
dos apetites por longo tempo comprimidos e contrariados, contentando-lhe a
carne, dera-lhe a robustez da virilidade perfeita, o desenvolvimento másculo
do corpo. A alta estatura, favorecida pela formação do tecido
adiposo, dava-lhe uma aparência de autoridade e poder, que confirmavam
o semblante arredondado, com os olhos à flor do rosto, os lábios
carnudos, a boca grande e franca, a fronte espaçosa e lisa, que ele
vira com prazer ao espelho da Clarinha. Os músculos da face, repuxados
para baixo, davam-lhe ao rosto uma expressão de serenidade satisfeita
e de segurança de ânimo. Não mais os indícios duma
paixão agitada por sentimentos contrários se viam na fisionomia
simpática e melancólica do padre que freqüentara o cemitério
de Silves, comprazendo-se na meditação e no silêncio.
Nem tampouco se refletiam naquele rosto os generosos ardores do proselitismo
religioso que o arrancara dos labores triviais dum paroquiato aldeão
para o atirar a uma empresa arriscada e perigosa. Naquela larga face de homem
robusto e são acentuavam-se, pelo contrário, a convicção
da própria força, a paz da consciência, firmada após
lutas devastadoras, o desprezo dos homens e um contentamento íntimo
de quem se sabia superior ao meio em que tinha de viver, e apto para vencer
todos os embaraços que se lhe pusessem diante. Não podia ser
mais completa a transformação, ele próprio o percebera
num derradeiro lampejo de sua consciência moral, nem a revolução
profunda que em tão limitado espaço de tempo se operava no seu
espírito e no seu coração, gravando-se de modo indelével
na sua face respeitável de padre repousado e tranqüilo. Vivera
naqueles três meses mais do que em toda a mocidade, e como se o atrito
das paixões que lhe haviam escaldado o sangue tivesse raspado o verniz
da educação eclesiástica, deixando a nu o esqueleto do
matuto criado à lei da natureza, ele se reconhecia agora tal qual era,
tal qual podia ser, não conservando da exaltação de sentimentos
e de imaginação, que determinaram os passos decisivos de sua
vida, senão o ardor latente, sob a severa aparência de padre
desiludido, dos gozos sensuais e da ambição de poder e de glória,
um misto contraditório de aspirações e de gozos que ele
harmonizava perfeitamente na sua filosofia arguciosa e pessoal.
Achava-se bem assim.
Uma galeota de regatão chegara primeiro do que o ubá de João
Pimenta ao porto de Tucunduva. O negociante, felizmente, já havia desembarcado
e estava na casa de moradia, a discutir com a tia Gertrudes, a velha dona
do sítio, e na galeota apenas estavam os dois remeiros, dois tapuios
que olhavam com indiferença para os tripulantes e passageiros do ubá,
deixando-se ficar na sua apatia de tapuios indolentes, que de nada se admiravam.
Padre Antônio saltou logo em terra e tomou o caminho da casa, para explicar
ao regatão, quem quer que fosse, a companhia de Clarinha. Felisberto
foi também, para o apresentar à tia Gertrudes, muito conhecida
de João Pimenta e muito amiga do Felisberto, que a conhecera em Maués,
numa esplêndida festa de sairé, onde a velha sobressaíra
no canto e no bailado com que adorava a Virgem Mãe e o seu Menino naqueles
poéticos versos tupis, compostos pelos senhores padres da Companhia
para o serviço do culto dos índios convertidos ao cristianismo.
Quando o missionário e o Felisberto chegaram à humilde habitação
da bailarina do sairé, travava-se uma luta renhida entre a velha e
o regatão, que lhe queria impingir um pouco de café, algum tabaco
e um corte de chita verde, a troco do peixe salgado e do cacau que a tapuia
armazenara aquele ano no seu quarto de dormir. A velha, parecendo amestrada
por dura experiência, não queria largar mão dos seus gêneros
com a facilidade cobiçada pelo mercador ambulante. O regatão
fazia grandes gestos de enfado, jurava, ameaçava de se ir embora, e
de nunca mais tornar a pôr os pés no porto de Tucunduva; pois
que não era nenhum marinheiro desgraçado, capaz de roubar os
fregueses, nem precisava de adular a gente de pouco mais ou menos. Prezava-se
de negociante sério, de homem respeitável, e sempre respeitado,
andava naquela vida porque queria, e se o duvidasse a Gertrudes, que fosse
perguntar a toda a vila de Silves. E nessa torrente de palavras grosseiras,
proferidas com grave serenidade e segurança, menoscabava o cacau que
aquele ano estava por dez réis de mel coado no Pará e dizia
horrores do peixe de que ninguém queria a arroba por meia pataca porque
dos lagos chegavam batelões atopetados de pirarucus e tambaquis, de
que já se não sabia o que fazer; ao passo que o café,
esse fiava mais fino. Em todo o Amazonas já não se bebia senão
chá de folhas de café, porque o pouco grão que aparecia
no mercado era por um despropósito. O tabaco também rareava,
por causa da praga que dera em Santarém e em todo o Tapajós.
A chita estava por um preço de hora da morte por causa da guerra dos
Estados Unidos, valia quase tanto como a seda. A falar a verdade, terminava
em tom decidido, não faço empenho, tia Gertrudes, em lhe receber
o cacau e o peixe, é sim ou não, pegar ou largar, porque cacau
não me há-de faltar por toda esta viagem. E fazendo menção
de retirar-se, o regatão voltou-se. Padre Antônio reconheceu
admirado o capitão Manuel Mendes da Fonseca, o coletor de Silves, em
pessoa.
Uma dupla exclamação de surpresa cruzou os ares:
– Ó senhor capitão Fonseca!
– O Reverendíssimo aqui!
Seguiram-se as explicações. O capitão Fonseca, pasmo
de o ver ali são e bem disposto (até lhe parecia que engordara
nos sertões da Mundurucânia), contou o que se sabia em Silves
sobre padre Antônio de Morais. Repetiu por miúdo a narrativa
do Macário, o encontro dos mundurucus, a guerra destes com os parintintins,
a surpresa, a luta do Macário com os índios, a morte do vigário
e a salvação miraculosa do sacristão, que devera a liberdade
e a vida à intervenção duma cutia misteriosa. Toda a
população de Silves, sem distinção de cor política
e de crenças religiosas, ficara profundamente consternada com tão
triste acontecimento. O próprio Chico Fidêncio, que outrora não
poupava os padres nas palestras à porta do Costa e Silva, chegando
mesmo a censurar os modos de S. Rev.ma e a duvidar da sua sinceridade, era
agora um dos seus maiores glorificadores, tendo até escrito uma correspondência
em que’ o comparara a S. Francisco Xavier. O professor Aníbal Americano
Selvagem Brasileiro escrevera um hino intitulado – O missionário da
Mundurucânia, e uma oração fúnebre para ser publicada
no Democrata.
Toda a gente na vila estivera persuadida da morte de padre Antônio
até à véspera da partida do capitão Fonseca, quando
viera uma notícia no Diário do Grão-Pará, que
ele, o único na vila, assinava a pedido de Elias, e na qual se dizia
que padre Antônio estava vivo. Nesse mesmo dia o Chico Fidêncio
recebera uma carta do Costa e Silva, que em viagem para o Madeira, escrevera
de Maués, relatando o encontro que ali tivera com o neto dum tuxaua
mundurucu, o qual encontrara S. Rev.ma à margem do Sucundari, muito
assustado ainda por ter escapado às mãos dos caboclos bravos,
e depois parece que fora convertido pelo padre, ao que se podia depreender
da meia-lingua do neto. Acrescentava o Costa que já havia escrito para
o Pará ao seu correspondente para dar essa notícia, e assim
se explicara como a gente do Diário do Grão-Pará soubera
que padre Antônio estava vivo. O que ele capitão Fonseca não
podia conseguir era conciliar a narrativa do Macário com o fato de
estar vendo ali são e salvo, e até mais gordo, o senhor vigário.
O Macário, estava agora convencido, pregara uma formidável peta
à população de Silves. S. Rev.ma não morrera tal,
porque o Fonseca ali o estava vendo vivo. Que tremendo maranhão!
E lá estava, aquele mentiroso, recebendo visitas e felicitações,
honrado e festejado como se fosse um homem importante, e até já
se dizia, suprema extravagância! que seria condecorado com o hábito
de Cristo! Condecorado aquele bobo? Não admirava, os tempos estavam
muito mudados, os homens já não eram apreciados pelo que valiam,
mas pelas mentiras e calúnias que pregavam.
Quando ouviu a história narrada pelo sacristão Macário,
padre Antônio de Morais sentiu um vivo rubor subir-lhe ao rosto e afoguear-lhe
o cérebro, perturbando-lhe a vista. Um grande embaraço o enleava,
e não sabendo o que devia dizer, ouvia silencioso o capitão
Mendes da Fonseca falar, numa voz que a custo, por fim, conseguira guardar
a serenidade do principio, como se um vivo despeito o agitasse. Esse embaraço
foi, porém, passageiro. Compreendeu de relance a gravidade da situação
em que se achava, o perigo que corria em desmentir o astuto sacrista cuja
inventiva o maravilhava, dando-lhe uma forte vontade de rir da história
da cutia misteriosa. Era forçoso fazer o sacrifício da verdade
ao plano que engendrara, cujo resultado dependia da completa ocultação
da falta cometida e que devia ser sepultada em eterno silêncio. Quando
o capitão acabou de falar, o padre, disfarçando com dificuldade
a pungente emoção, sentindo a mentira queimar-lhe os lábios,
na sensação física do remorso, explicou que o Macário
se enganara, mas não mentira. E como se tivesse pressa de se ver livre
daquele penoso sacrifício, selando com a mentira o mistério
dos três meses passados à sombra das laranjeiras em flor no sítio
do Sapucaia, acrescentou em palavras breves, que naturalmente o Macário
o tivera por morto, mas que a verdade era outra. Levado pelos índios,
desmaiado e malferido, fora entregue aos cuidados de um pajé que o
curara com o suco de algumas plantas. Os selvagens o haviam poupado por lhe
conhecerem o caráter sacerdotal pela batina e pelo chapéu de
três bicos, e o tinham posto em liberdade, depois de algumas conversões
que fizera. Que tendo passado três meses nas selvas, pregando o Evangelho,
resolvera regressar à sede de sua paróquia, e que achando-se
à margem do Abacaxis encontrara uma família de tapuios, avô,
neto e neta, que lhe oferecera passagem até o Amazonas.
– Por sinal, confirmou o Felisberto que tendo acabado de conversar com a
tia Gertrudes, intervinha na conversação, encantado por auxiliar
a S. Rev.ma na peta que pregava ao demônio do regatão: por sinal
que nós não conhecíamos a S. Rev.ma e pensávamos
que era a alma do padre santo João da Mata.
– A confusão, disse o Fonseca, não era lisonjeira para S. Rev.ma.
Padre João era um pândego da força do nosso defunto padre
José, que Deus haja, e não podia comparar-se a um confessor
da fé.
Inclinou a cabeça em sinal de respeito, tomou a mão de padre
Antônio, beijou-a e prosseguiu:
– Faz o Reverendíssimo muito bem em voltar para a sua paróquia.
Não são somente os gentios que precisam da luz do Evangelho.
Se o Reverendíssimo não nos tivesse deixado, quero crer que
não me viria encontrar por estas paragens, rebaixado a fazer concorrência
ao tratante do Costa e Silva, vindo pessoalmente regatear com esta súcia
de caboclos ignorantes e vadios.
Fez uma pausa, e como S. Rev.ma se mostrasse admirado do que ele dizia, continuou:
– Fui exonerado de coletor…
– O senhor exonerado!
– É verdade, tornou o capitão. Fui exonerado, e logo vi que
esta notícia causaria espanto a todo o homem inteligente. O miserável
do José Pereira, que eu tinha deixado tomando conta da coletoria quando
fui aos castanhais para o S. João, armou-me uma tal intriga, o safado
– perdoe-me o Reverendíssimo a expressão – que por mais empenhos
que metesse, por mais explicações que desse, o cônego
Marcelino, meu inimigo figadal, aproveitou a ocasião e fez-me aquela
desfeita, e ainda por cima teve o descoco de dizer que a coisa ficava só
na demissão porque eu tinha bons padrinhos!
Dos lábios contraídos pelo despeito escapou-lhe um insulto,
reprimido em meio.
– Filho da…
E emendou:
– Filho da mãe!
Depois fazendo um esforço para conter-se continuou por largo tempo
vazando a bílis acumulada desde que regressara dos castanhais, sem
atender a que estavam de pé, ele, o padre, o Felisberto e a tia Gertrudes,
e que teriam naturalmente alguma coisa .que fazer. Relatou miudamente as intrigas
de José Pereira, o tal moço de bons costumes que, o Fonseca
sabia agora positivamente, vivia amigado com a cunhada; os passos que dera
para se justificar, a insistência do cônego Marcelino em o demitir,
a situação falsa em que esse fato o colocara em Silves, a perda
da confiança do Elias, a necessidade de apurar capitais para satisfazer
os credores exigentes e a dura contingência em que se via de descer
da sua dignidade para vir correr os rios do sertão, fazendo o comércio
de regatão, muito rendoso de certo, mas indigno de um homem que era
o verdadeiro chefe conservador de Silves, que se correspondera com o João
Alfredo e com o cônego Siqueira…
– E tudo isto por quê? acrescentou com profunda amargura. Tudo porque
tenho a infelicidade de ser casado com uma mulher louca e porque V. Rev.ma
lembrou-se de catequizar mundurucus. Se a tal D. Cirila, que o diabo carregue,
não se tivesse lembrado de ir passar o S. João nos castanhais,
o José Pereira não teria entrado no exercício da coletoria
e não saberia o que soube. E se V. Rev.ma não tivesse-se lembrado
dos mundurucus, teria ficado em Silves, e teria-me valido, afirmando ao cônego
Marcelino que eu não sou pedreiro-livre, fui sempre muito bom católico,
e até quis publicar a Aurora cristã, com o professor Aníbal
Americano. Abandonaram-me, deixaram-me só. As intrigas daquele patife
do José Pereira ganharam a causa, fui demitido e por muito favor não
me processaram. O mundo anda agora assim, cada um cuida de si. A senhora D.
Cirila, continuou com um despeito visível, sacrificou-me aos castanhais,
onde eu, seguindo o conselho de V. Rev.ma, não queria ir, e bem me
arrependi de lá ter ido! V. Rev.ma abandonou-nos pelos mundurucus!
O Chico Fidêncio infamou-me com o seu contágio. O sem-vergonha
do José Pereira furtou-me o lugar. O Elias desconfiou de um freguês
velho que tanto lhe tem dado a ganhar. O cônego Marcelino esqueceu-se
de que eu era um correligionário firme e leal que sempre acompanhou
o governo. O inspetor do tesouro não se lembrou de que o hospedei como
a um príncipe quando esteve em Silves. O João Alfredo, que persegue
os bispos, conserva na presidência um padre carola e perseguidor dos
maçons! E até o miserável do Costa e Silva lembra-se
de me querer tirar a freguesia do sertão!
E resumiu num largo gesto o egoísmo de todos os homens:
– Tolo é quem neles se fia.
E como querendo esquecer o desgosto que lhe causava a recordação
de tantas ingratidões, voltou-se para a velha tapuia:
– Tia Gertrudes, é pegar ou largar. Quer o negócio ou não
quer? Não posso perder tempo e por isso avie-se.
E como a velha hesitasse, encorajada pela presença do padre e do Felisberto,
o capitão decidiu:
– Não fazemos nada, vou-me embora. Deixe que o seu peixe apodreça,
e o seu cacau pendure-o ao pescoço.
E, enfadado, tomou o caminho do porto, acompanhado de padre Antônio,
que receava o encontro dele com a Clarinha. Mas o capitão Fonseca tinha
o espírito por demais atribulado para se ocupar com as pessoas que
estavam no ubá. Ao despedir-se de S. Rev.ma, torturado pela idéia
da sua decadência, disse-lhe:
– Sabe quem está agora muito graúdo em Silves? É o Macário,
aquele sujeito que eu vi levar bofetadas do padre José, que Deus tenha!
Não cabe em si de contente, o malandro! É até um escândalo
com a Madeirense todos os dias pelo quintal! A Chica da Beira do Lago já
teve o arrojo de dizer que ele quando quer um milagre, é só
pedir por boca. E vai ser condecorado! Enfim, em Silves quem vale hoje é
o Macário.
E acrescentou, depois de uma pausa:
– E o Sr. José Antônio Pereira, moço de muito bons costumes,
amigado com a cunhada, todavia. Hoje, em Silves, não há como
pregar petas e inventar calúnias, para ser graúdo. Os homens
sérios já não valem nada! O Reverendíssimo precisa
muito de voltar para lá. Os costumes estão relaxados, que é
uma pouca-vergonha. O Mapa-Múndi deu de chicote na irmã, a D.
Dinildes, porque a encontrou com o Manduquinha Barata. O Macário vive
com a Luísa, o Valadão e o João Carlos brigaram em casa
de D. Prudência, o José Pereira está roubando o governo.
Silves já não vale nada. Os homens sérios são
escorraçados. Só um vigário do caráter e austeridade
de V. Rev.ma a poderá salvar da depravação em que se
acha a vila.
E com gesto ameaçador, mostrando a mão fechada à vila
invisível, murmurou com rancor:
– Bandalheira, pouca-vergonha!
Embarcou na galeota, depois de despedir-se de S. Rev.ma. Quando ia penetrar
na tolda, voltou-se de repente para o padre que ficara na praia, seguindo-o
com o olhar:
– É verdade, quer ver o tal periódico?
– Que periódico?
– O Diário do Grão-Pará, tenho aqui debaixo da tolda,
embrulhando as botinas.
A galeota partiu, deixando o vigário de Silves, absorto na leitura
da seguinte local :
"PADRE ANTÔNIO DE MORAIS. – Um estimado negociante de Silves,
o Sr. Costa e Silva, achando-se de passagem em Maués, ali encontrou
noticias deste arrojado missionário, que toda a gente supunha morto
às mãos dos parintintins, segundo a narrativa do seu companheiro
de viagem. Parece que o ardente vigário de Silves escapou milagrosamente
a uma morte afrontosa, e tem prosseguido na gloriosa tarefa de catequizar
os índios da Mundurucânia. Diz-se mesmo que padre Antônio
conseguiu trazer ao aprisco do Senhor, entre outras ovelhas desgarradas, um
célebre tuxaua, nomeado pelas suas façanhas guerreiras, e entre
os pobres moradores do Canumã temido pelas suas muitas tropelias. Se
isso é verdade, como assegura o nosso informante, digno de todo o crédito,
padre Antônio tem prestado e está prestando inolvidáveis
serviços à religião e à civilização
do Amazonas. Não conviria que o governo mandasse alguém procurar
na Mundurucânia esse novo Anchieta, que estará talvez, à
hora em que escrevemos, perdido nos sertões do Sucundari, sem meios
de regressar à sua paróquia? O governo não deve ficar
indiferente à sorte dum sacerdote que tão digno se tem feito
da estima e veneração dos seus contemporâneos.
"Padre Antônio é nosso compatrício. Filho do nosso
amigo senhor capitão Pedro Ribeiro de Morais, uma das influências
conservadoras do Igarapé-mirim, fez brilhantes estudos no Seminário
maior, sendo o mais aproveitado discípulo do reverendo padre Azevedo,
o maior teólogo do Norte do Império."
A velha tapuia do sítio de Tucunduva facilmente aceitou a proposta
que lhe fizeram de hospedar a Clarinha, enquanto o avô e o irmão
iam levar o senhor padre a Silves. O plano de S. Rev.ma era procurar em Silves
um sitiozinho, em que pudesse estabelecer a afilhada de padre João
da Mata longe das vistas do Chico Fidêncio e dos falatórios invejosos
do beatério, numa pequena situação poética e retirada
como o sítio de João Pimenta, uma reprodução do
encantador bom-retiro que o seu amestrado colega soubera criar à margem
do furo da Sapucaia, entre castanheiros gigantescos e sombrios e laranjeiras
floridas, dum perfume afrodisíaco de noivado. Aí poderiam viver
horas esquecidas, afastados do bulício da freguesia, a salvo dos comentários
azedos da grei dos pedreiros-livres, com o recém-converso Chico Fidêncio
à frente; ai libaria ele o néctar delicioso do amor daquela
mameluca feiticeira, cujas mãos delicadas e polpudas entrelaçariam
olorosas flores aos louros da coroa de glória com que a gratidão
popular lhe enalteceria a fronte inteligente. Um sonho encantador que S. Rev.ma
comunicou à amante, com muitas carícias e promessas, à
sombra de uma goiabeira do porto, afirmando que por pouco tempo a deixava
naquele exílio de Tucunduva, e não tardaria em a mandar buscar,
se não pudesse vir pessoalmente, para não despertar suspeitas.
Do Tucunduva a Silves havia razoável distância. A largura do
Amazonas, interposta entre o sítio do rio Ramos e o Paraná-mirim
do Saracá, favorecia o mistério. Mais tarde, quando a curiosidade
pública estivesse amortecida e os silvenses, fartos de olhar e admirar
o seu ressuscitado vigário, tivessem voltado aos seus lazeres ordinários,
a Clarinha, envolta sempre em romanesca sombra, iria para algum sítio
do rio Urubus ou mesmo do lago Saracá, onde o padre a visitaria a miúdo,
salvando as aparências, e não acordando a desconfiança
do Chico Fidêncio do sono profundo em que a mergulhara a inventiva feliz
do prestimoso Macário.
Clarinha não gostou do engenhoso plano que S. Rev.ma lhe expunha entre
mil beijos e carícias. Na ingenuidade do seu amor de mameluca, confiante
e sincero, não compreendia a necessidade de todos esses mistérios
e precauções de que se queria cercar o senhor padre, para esconder
aos olhos dos seus paroquianos as relações com uma moça
solteira e livre. Um grande pesar lhe causava o receio manifestado por S.
Rev.ma de que se conhecessem esses amores que, havia bem pouco ainda, nos
delírios da paixão, ele confessara serem a suprema felicidade
de toda a sua vida de privações e misérias. Repugnava
à sua natureza franca aquela hipocrisia. Dera-se sem reserva, sem pensamento
oculto ou interesseiro, sabendo perfeitamente que dava o que tinha de mais
precioso, entregando vida, alma e coração àquele belo
padre melancólico que a fazia sonhar com Anjos do Senhor. Agora que
tudo estava consumado, que lhe importava que todos o soubessem? Não
sentia vergonha alguma da sua falta, julgava-a muito natural, e qualquer moça,
colocada nas suas circunstâncias, faria a mesma coisa. O seu espírito,
elevado pela educação que lhe dera o padrinho acima da sua condição
social, não podia simpatizar com os da sua classe, e aspirava a relações
mais cultas e finas. Padre Antônio estava tão acima dos brancos
que ela conhecera na sua tranqüila e desconhecida existência, como
esses brancos, regatões na maior parte, eram superiores aos reles tapuios,
semicivilizados, com quem a sua origem e condição a obrigavam
a tratar. Como moça de aspirações, escolhera para amante
o homem mais distinto que encontrara até o momento em que o coração
falou. Se esse homem não podia ser seu marido, que importava isso?
A sua avó só casara depois de ter tido a Benedita. Esta não
casara nunca, e de seus amores com padre João da Mata nascera a Clarinha,
pelo menos, ela assim o’ supunha agora. Que havia de admirar que Clarinha
seguisse o exemplo da mãe e da avó?
As despedidas foram tristes. Padre Antônio embarcara no ubá,
e Clarinha, de pé sobre a ponte do sítio, seguira com os olhos
rasos de lágrimas a embarcação que se afastava, levando
o eleito do seu coração a lugar donde talvez não voltasse
a consolar-lhe a triste viuvez. Mas quando o ubá se sumiu por detrás
dum espigão da margem, perdendo de vista o vulto encantador da rapariga,
padre Antônio pôs-se a pensar em Silves, nos seus paroquianos,
na recepção que o esperava e no futuro que o aguardava lá,
bem longe desse paraíso que deixara entre os castanhais sombrios.
Sentado no fundo do ubá, com a cabeça descoberta, tinha os
olhos embebidos na vaguidão do espaço, e cismava, silencioso
e imóvel, indiferente à marcha da embarcação que
o levava ao seu destino.
A narração do capitão Fonseca acalmava os sobressaltos
e receios que lhe havia causado a história do Felisberto ultimamente.
Tudo lhe indicava que a sua falta não seria descoberta. A força
inventiva de Macário o colocara muito alto na opinião dos seus
paroquianos e por uma felicidade realmente inaudita, a tola parolice e a pueril
vaidade de Felisberto, que muito poderiam ter prejudicado a reputação
do padre, a haviam servido maravilhosamente, graças à credulidade
tapuia e à azáfama novidadeira do serviçal e católico
Costa e Silva. Assim o Felisberto, aquele palerma que ali ia, remando rudemente,
com a fisionomia radiante de prazer, prestara a padre Antônio de Morais
um relevantíssimo serviço! Padre Antônio não podia
deixar de sorrir, lembrando-se da figura que faria o Felisberto proclamando-se
neto dum tuxaua, convertido por padre Antônio, o melhor padre santo
que jamais fora àquelas remotas paragens do Guaranatuba; e da precipitação
com que o Costa e Silva, interpretando mal a meia-língua do Felisberto,
não quisera ouvir mais nada e escrevera para o Pará, a transmitir
a estupenda notícia, que revelava aos povos a existência de padre
Antônio de Morais, o missionário da Mundurucânia.
Sim, o Felisberto lhe prestara um relevante serviço, mas a sua presença
em Silves, no mesmo ubá, e naquela ocasião, não seria
tão comprometedora como a de Clarinha? O Costa e Silva o reconheceria,
puxaria conversa com ele, e o rapaz, que tudo dava para falar, teria tempo
de sobra para entrar em pormenores que sacrificariam o efeito das suas primeiras
palavras. Já agora, quando estava perto de tocar a meta dos seus desejos,
não devia cometer tão grave imprudência como a de aportar
a Silves em companhia do falador Felisberto. Procuraria uma boa combinação
para deixar o rapaz em algum sítio do Paraná-mirim de Silves,
e chegaria à vila acompanhado somente pelo velho tuxaua, cuja estupidez
absoluta lhe oferecia absoluta segurança.
Chegaria a Silves, cheio de glória e de prestígio, e desde
já imaginava a recepção que lhe fariam os habitantes
deslumbrados…
Haveria na povoação um movimento desusado. Os habitantes correriam
para o porto, levados duma curiosidade simpática, que faria brilhar
a alegria em todos os semblantes. Velhos, moços e crianças andariam
apressados, formariam grupos à beira do rio, conversando em voz alta,
trocando observações rápidas, comentando o fato extraordinário.
O alferes Barriga, ou na sua falta o vereador João Carlos, reuniria
a Câmara Municipal para incorporada, com o porteiro e o secretário,
encaminhar-se solenemente para o porto do desembarque. O tenente Valadão,
com a sua ordenança, guarda nacional de jaqueta e chapéu boliviano
que olharia com ar palerma para os cães que lhe ladrassem à
farda, destacar-se-ia do grupo das pessoas gradas pelo fitão a tiracolo,
verde e amarelo. Os sinos da Matriz repicariam alegremente, tangidos por moleques
travessos. D. Prudência, D. Dinildes, D. Eulália, as senhoras
todas estenderiam sobre o parapeito das janelas as suas colchas de cores vivas.
O professor Aníbal releria o discurso preparado para aquele solene
momento, e o Chico Fidêncio, escamado, indeciso, roeria as unhas e fumaria
o seu cigarro apagado.
À proa dum ubá selvagem, remado por um legitimo tuxaua, vinha
padre Antônio de Morais, o missionário da Mundurucânia.
Assim que chegasse ao presbitério, rompendo a custo a turma de devotos
que o queriam admirar e lhe pediam a benção, o Macário
se lhe rojaria aos pés confessando o seu macavelismo, contando-lhe
tudo, habilitando-o a combinar os fatos e as narrativas…
A Clarinha ficara no Tucunduva, o Felisberto no Paraná-mirim. O velho
João Pimenta era como se fosse mudo. O passado ficaria sepultado para
sempre no esquecimento. Nem ele próprio se lembrava já. só
via o presente, o rio, a floresta, o ubá em viagem, o sol de dezembro
acabando de colorir-lhe a face, e o futuro, obscuro ainda, mas envolto em
nuvens cor-de-rosa. O sol era forte. Na fronte espaçosa do padre bagas
de suor brilhavam. A emoção intensa fazia-lhe subir o sangue
ao cérebro. Meteu a mão na algibeira da batina, para tirar o
lenço. A mão encontrou o exemplar do Diário do Grão-Pará
que lhe dera o capitão Fonseca.
Aquele quadrado de papel, inutilizado pela tinta de impressão e machucado
pelas mãos do capitão Mendes da Fonseca para lhe servir de invólucro
às botinas, era o lábaro em que se inscrevia a legenda sublime
do seu futuro, da sua glorificação. Abriu-o, recostando-se no
banco central do ubá, para o reler melhor, e procurou a local em que
o seu nome fulgurava numa constelação de letras pretas, que
se destacavam da alvura do papel barato. Era na segunda página, em
meio da primeira coluna, e todo o resto da folha ficava às escuras,
sumia-se numa confusão de caracteres baralhados, ilegíveis no
amontoado de tipos duma só cor e duma só forma.
Leu e releu a local, primeiro de relance, na ânsia de chegar-lhe ao
fim, para gozar duma vez, a haustos largos, o incenso finíssimo do
elogio entusiasta do gazeteiro paraense. Depois, devagar, soletrando as palavras,
como o provador que sorve delicadamente o licor precioso e raro, repetiu a
epígrafe, e notou com mágoa, que a correção tipográfica
não era perfeita. O s final do seu apelido de família estava
virado, por um descuido imperdoável do revisor, um erro que lhe irritava
os nervos. Desde então, cada vez que corria os olhos pelo artigo, deleitando-se
na leitura das frases encomiásticas, de que uma emanação
sutil lhe tonteava o cérebro, o maldito erro tipográfico dançava-lhe
diante da vista, tomando proporções estranhas e fantásticas,
animando-se. Parecia que aquela letrazinha, comicamente retorcida, fazia-lhe
caretas e o provocava com esgares bufos, duma ironia mordente e cáustica,
que lhe amargurava o gozo inefável da vaidade satisfeita. Era como
se no meio dum concerto de hosanas festivais, de entusiásticos aplausos,
uma voz discordante lhe atirasse à cara a mentira de toda aquela glorificação
em vida, que o Macário em apuros começara e que a parolice balofa
e vaidosa do Felisberto, aproveitada por gazeteiros crédulos e desocupados,
havia completado. Um assovio estridente, cortando uma salva de palmas, não
produziria sobre o ator transportado de júbilo, efeito diverso do que
aquele descuido de revisão, aquele cômico s virado, como um clown
a dar cambalhotas no tapete, produzia na alma extasiada do missionário
da Mundurucânia.
A princípio um grande desapontamento; depois uma desilusão
profunda, logo substituída pela reação, do amor-próprio
atuando sobre uma consciência maleável e bonacheirona. Ao menos
representara bem o seu papel, e não era sua a culpa, se as circunstâncias
e só as circunstâncias não lhe haviam permitido realizar
realmente os feitos gloriosos, cuja fama vinha tão de improviso engrinaldar-lhe
a fronte. Que outro sacerdote nas suas condições, no nosso século
prosaico e interesseiro, abandonaria os cômodos duma vigararia sossegada
e pouco trabalhosa, para aventurar-se em afanosa missão aos rios do
interior da província, povoados de índios e de perigos sem número,
passando fomes, frios, vigílias e árduos trabalhos, arriscando
a vida, dormindo ao relento, calejando as mãos nos remos, e deixando-se
martirizar pelos terríveis insetos das margens dos rios, e tudo por
um pensamento de religião e caridade? D. Antônio imaginara a
catequese em um grande vapor, o Cristóloro, com todas as comodidades
e todas as solenidades; ele padre Antônio, a tentara numa velha montaria,
numa casca de noz, privado de todos os recursos. Entretanto D. Antônio
era um príncipe da Igreja, e ele um pobre vigário sertanejo,
sem posição e sem nome. Que outro padre moço, recém-saído
do Seminário grande, tendo diante de si um futuro plácido e
tranqüilo de pároco bem pago e bem nutrido, se meteria nos ínvios
matos da Mundurucânia, sem outro fim senão o de batizar índios,
sem outro auxilio que não fossem o próprio esforço e
a própria dedicação! D. Antônio era bispo, e doutrinava
nas cidades, comodamente sentado na sua cadeira sagrada… Se padre Antônio
de Morais não convertera índio algum, se não fora ferido
pelos parintintins, não era porque se poupasse a trabalhos e sofrimentos,
mentia a lenda jornalística, mas pela força das coisas, pelas
circunstâncias especiais em que se achara, pela impossibilidade material
em que se vira de continuar a viagem, depois da fuga de Macário. Mas,
em compensação, sofrera tormentos cruéis, escapara de
morrer flechado por mundurucus, de ser devorado por feras nos sertões
do Sucundari e de ceder a uma moléstia pertinaz, resultante das fadigas
e privações aturadas ao serviço do Senhor.
E fazendo justiça aos seus sentimentos, no ardor da sua própria
apologia perguntava a si mesmo, sondando a consciência desinteressada,
qual fora o móvel que o fizera deixar Silves; porque, tendo perdido
a roupa e o farnel da viagem no sítio do Guilherme, teimara em viajar
na pequena montaria de pesca, remando como qualquer caboclo; porque passara
noites sem dormir; porque suportara com paciência as picadas dos carapanãs;
porque se afoitara a dirigir a palavra aos índios do ubá; porque
fizera tudo isso? Algum pensamento egoísta o guiava em passos tão
arriscados e cheios de abnegação? Não, decerto, respondia
a complacente consciência, fora o ardor religioso, o amor da catequese
e da civilização do Amazonas que o levara a tais extremos de
dedicação e de sacrifício. Logo, concluiu com a lógica
admirável aprendida nas lutas com o maior teólogo do Norte;
logo nem por estar vivo e são, nem por ter deixado de converter mundurucus,
era menos digno dos elogios da fama e da reputação alcançada
nas duas províncias que o Amazonas banha.
Satisfeito com este raciocínio do amor-próprio, aplaudido pela
consciência, desviou os olhos do zombeteiro s, e dobrou o jornal para
o guardar. O cabeçalho do periódico trazia em letras graúdas
-Diário do Grão-Pará. A princípio distraidamente,
e logo depois com interesse, padre Antônio pôs-se a ler o título,
os dizeres permanentes, o ano, a data que trazia o jornal. Era mesmo o Diário
do Grão-Pará, então a folha mais importante da província,
que espalhara as suas façanhas aos ventos da publicidade.
BELÉM, 20 DE DEZEMBRO DE 18…
A folha estava datada de Belém. Lendo o nome da capital do Pará,
o seu contentamento aumentou. Era em Belém, na capital, que se falava
dele, na grande cidade comercial que é o empório da riqueza
e civilização do Amazonas onde se resume toda a vida intelectual
das duas províncias gêmeas.
Padre Antônio de Morais era célebre em Belém. Ali, na
grande cidade, falava-se nele àquela hora do dia. O Filipe do Ver-o-peso,
o reitor do Seminário, o padre Azevedo estariam, talvez, lendo e relendo
o famoso artigo, transportados de admiração e cheios de enternecimento.
E súbito lhe veio clara e perfeita a recordação da sua
chegada à capital do Pará, quando fora para o Seminário,
mandado pelo padrinho. Era então um rapazola de quinze anos, de negras
melenas caídas sobre os olhos e de magras formas angulares de camponês
robusto.
Recordava-se bem. A noite vinha, pesada e escura, envolvendo em lâminas
de chumbo o horizonte curto de que se destacavam as torres da Sé, e
mais longe as do Carmo, por cima do casario, sujo de pó vermelho, aglomerado
em ruas estreitas. Renques de varas cercavam os espaços não
edificados, abrigando mal da indiscrição dos transeuntes os
poucos limpos quintais, logradouros de galináceos e de não raros
suínos, escapos às vistas grossas dos fiscais da Câmara.
Quase em frente ao Ver-o-peso, onde atracara a galeota do padrinho, o velho
casarão do governo fechava a vasta praça verdejante, em que
os sendeiros da polícia montada pastavam sossegados, sob o olhar cobiçoso
de numerosos urubus, empoleirados no alto do telhado do Palácio, cujas
janelas abertas de par em par pareciam haurir sofregamente a mesquinha aragem
do mar, que os coqueiros se transmitiam dum para outro, no balanço
indolente das palmas flexíveis. Os últimos raios do sol esbraseavam
as vidraças poeirentas da igreja de Santo Alexandre, dando-lhe reflexos
metálicos, duros à vista, e punham nas águas do canal
uma réstia de luz fugitiva e trêmula. Um acendedor do gás
rodeava o largo a passos apressados, armado duma vara, em cuja extremidade
brilhava um ponto luminoso que, de longe, parecia um vaga-lume grande, estonteado,
a procurar o abrigo dum mato protetor. A medida que o acendedor passava, uma
sucessão de pontos luminosos pingava a indecisa claridade do último
crepúsculo de manchas pálidas, que se ruborizavam pouco a pouco,
dando aos objetos uma saliência fantástica. As árvores
da praça pareciam afagar com as ramagens as nuvens negras que lhes
passavam por cima, caminhando lentamente para o sul em esquadrão cerrado.
Vultos de homens passavam devagar por baixo do arvoredo, projetando na selva
a sombra comprida e esguia, e os corvos assumiam proporções
enormes, cobrindo os telhados com as asas negras e inquietas.
Do lado do bairro de Santana um surdo murmúrio, o último ruído
da agitação industrial, de carroças que se recolhiam,
de quitandas que se levantavam, de portas que se fechavam, traduzia o fim
do dia para os homens de trabalho que iam repousar, exaustos de calor e de
fadiga.
Negras da Costa, com as panelas de tacacá e de quibebe equilibradas
sobre as rodilhas de riscado, que em forma de turbante lhes cingiam a carapinha,
passavam, balançando os quadris num descadeiramento ridículo,
e enchendo o ar de forte catinga suarenta, que se misturava ao aroma irritante
do trevo e da manjerona exalado pelo penteado das mulatas, e ao pixé
nauseabundo dos resíduos do Ver-o-peso. Raparigas de cor arrastando
servilhas de marroquim vermelho ou verde, ofereciam aos olhos dos homens o
busto moreno meio nu, apenas velado pela fina camisa de renda, decotada e
de mangas curtas, mais excitante do que a nudez. Os negociantes de retalho,
em mangas de camisa, pescoço nu, calças de brim, chinelos de
tapete ou de couro claro, cavaqueavam com pachorra à porta da loja,
ou sentados à beira do canal, sob as árvores quietas, abanando-se
com ventarolas de papel. Homens vestidos de casimira, com ares de empregados
públicos, avançavam lentamente, opressos pelo alto chapéu
de seda, que lhes aquecia a cabeça, e contendo a custo nas mãos
úmidas o guarda-chuva previdente e pesado, trocavam, a furto, olhares
de inteligência com as mulatas de camisa de renda. Carroceiros portugueses,
baixos e barbados, carrancudos, suados, recolhiam-se com as suas carroças
de duas rodas, que uma parelha de burros puxava a custo, depois dum dia inteiro
de labutar contínuo por um calor de janeiro. Dois ou três padres
saíram do colégio descendo a calçada com passo grave,
e dirigiram-se para fora da cidade pela estrada de S. José, cujas grandes
árvores, salpicadas de luzes, estendiam-se a perder de vista pela frente
de rocinhas elegantes e ricas. Caleças, puxadas a dois cavalos, passavam
pela porta do Palácio, vindo da Travessa da Rosa e tomavam pela Rua
da Cadeia. Os cocheiros estalavam o chicote, e o ruído dos trens punha,
por momentos, uma nota alegre na tristeza monótona da praça.
Um instante de repouso se dava na vida da capital provinciana. Ao longe o
chiar dos carros de lenha que se retiravam pela estrada fora, ao passo vagaroso
dos bois, evocava idéias do sossego e tranqüilidade da roça,
aumentando a melancolia vaga que fazia nascer a hora crepuscular da tarde,
ao derradeiro eco do toque da Ave-Maria, pausadamente badalada pelo sino grande
da sé.
Mas fechava-se a noite. As casas iluminavam-se uma a uma. Das lojas francamente
abertas um jorro de luz clareava as calçadas, a trechos, mergulhando
na sombra o centro da praça, o leito do canal do Ver-o-peso e a copa
das árvores de todo oculta na escuridão do céu. Das janelas
do Palácio do Governo escassa luz se derramava sobre o passeio, onde
se formavam grupos, cada vez mais numerosos, de homens de paletó e
chapéu alto e de mulheres. do povo. As ruas iam-se animando. Ouviam-se
frases proferidas em voz alta, ditos alegres ou grosseiros atirados a grande
distância, cortando subitamente o ar numa vibração metálica.
Do lado da Rua dos Cavalheiros aproximava-se um tropel confuso de vozes e
de passos.
E ele matutinho imberbe, recém-chegado na galeota do padrinho, pusera-se
a olhar para todos os lados, a princípio deslumbrado e medroso, depois
com maior segurança, numa grande curiosidade. Primeiro, ao levantar
a cabeça, ficara embasbacado a admirar o tamanho do Palácio,
que achava senhoril e nobre, as torres da sé, duma altura descomunal,
ameaçando desabar sobre as casas próximas, a igreja de Santo
Alexandre que lhe pareceu grande e majestosa, seguida do colégio vasto,
cheio de janelas com vidros; a chefatura de polícia com o seu mirante
de três janelas, com certeza o supra-sumo do gosto e da elegância.
Depois ficara atordoado com o barulho dos carros de praça, duma novidade
estranha e dum luxo caro; enlevara-se na contemplação dos vestuários
dos homens de chapéu alto, que contrastava singularmente com o seu
terno de brim pardo, os seus chinelos de tapete e o chapéu de palha
de tucumã, ornado de larga fita preta. Apesar do esforço que
fazia para dominar-se, a multidão de gente que vagabundeava na praça,
cruzando-se em diversos sentidos, a infinidade de lojas e tavernas, freqüentadas
e claras, e, sobretudo, o renque de lampiões de gás projetando
uma luz brilhante sobre o colo de mulatas atrevidas, desembaraçadas,
provocadoras, que lhe lançavam olhares esquisitos e incômodos,
obrigando-o a virar o rosto para disfarçar o vexame, tudo isso causava-lhe
um acanhamento invencível.
O povo continuava a afluir para a praça, desembocando da Travessa
da Rosa, da Calçada do Colégio e mais ruas adjacentes. Algumas
senhoras, raras, tímidas, destacando-se dos grupos pelos’ chapéus
enfeitados de flores artificiais, passeavam devagarinho pela frente do Palácio,
como por acaso, não desejando mostrar que a concorrência as atraía,
relanceando o olhar artisticamente indiferente sobre os grupos de rapazes
alegres e de mulatinhas faceiras. A banda de música do corpo de polícia
chegara finalmente, precedida de moleques armados de pequenas bengalas toscas
que brandiam marcialmente, e começou o pot-pourri da Norma com vibrações
metálicas dos instrumentos de sax.
Confuso, apalermado, tonto, pisara pela primeira vez o solo da grande capital
da Amazônia, sentindo-se mesquinho e ridículo no meio daquela
gente acostumada ao movimento dos carros e à luz brilhante dos lampiões
de gás.
Agora, porém, era outra coisa.
Graças ao próprio esforço era célebre, respeitado,
admirado naquela mesma cidade que sete anos antes o vira chegar desconhecido
e semi-selvagem.
Agora preocupava a atenção pública!
Aqueles homens vestidos de casimira, com ares de empregados públicos,
que passeavam lentamente a calçada do Palácio, talvez que, àquela
hora, estivessem falando dele, padre Antônio de Morais, à sombra
das árvores quietas, no intervalo do ruído dos carros que vinham
da Travessa da Rosa, e os padres, ao saírem do colégio para
se encaminharem dois a dois para a estrada de S. José, comentariam
talvez a história extraordinária do antigo seminarista que em
assunto de teologia moral levara à parede o maior teólogo do
bispado.
Embebido nos pensamentos que as recordações evocadas lhe faziam
nascer, padre Antônio não sentia o ubá correr pela superfície
do Ramos. João Pimenta e o Felisberto respeitavam-lhe o silêncio,
supondo-o causado por amargas saudades da Clarinha.
No fim de duas horas de viagem, o ubá saiu ao Amazonas, vasto, estendendo-se
para todos os lados a perder de vista, e no meio daquele imenso rio, cujas
águas cor de barro, açoitadas por forte viração
do mar, balançavam a esguia embarcação selvagem, estranho
veículo naquela artéria dia e noite sulcada por inúmeros
paquetes, o sacerdote sentiu a impressão do alargamento dos horizontes,
como se de fato a vitória que alcançara sobre o próprio
temperamento lhe tivesse rasgado às vistas, deslumbradas pela ambição,
uma perspectiva infinita de glorioso futuro.
Um paquete da Companhia subia a correnteza em direção a Serpa,
com grande barulho de rodas, e o vapor formava um penacho de fumo negro que
maculava o esplêndido céu azul dum meio-dia de dezembro. Comparado
ao ubá, o barco a vapor parecia um gigante enorme que devorava o espaço
e agitava o rio, trêmulo de orgulho; e o contraste formado pelas duas
embarcações que por acaso se cruzavam em frente à embocadura
do rio Ramos, exprimia a diferença entre o passado recente do vigário
de Silves que a natureza dominara e possuíra, e o futuro que se lhe
antolhava no desdobramento da sua carreira de padre inteligente e forte. Aquele
vapor em breve voltaria de Manaus, e receberia em Silves a notícia
do regresso do missionário da Mundurucânia, para a levar, embelezada
pela fama e pela ardente imaginação do povo amazonense, à
sofreguidão novidadeira da imprensa do Pará e da corte, onde
o nome do jovem sacerdote despertaria a atenção pública.
As recompensas não tardariam. Antes de tudo, D. Antônio, o bispo
justiceiro, apreciador do mérito dos seus padres, lhe obteria facilmente
uma prebenda inteira no cabide da Sé de Belém, onde a sua voz
de barítono brilhante, ecoando nas abóbadas severas do majestoso
templo, despertaria emoções fortes e provocaria expansões
de sentimento religioso nas solenidades aparatosas do culto católico.
O imperador não podia perder de vista o missionário que sacrificara
vida, cômodos e saúde ao serviço da propaganda católica.
A sorte de padre Antônio de Morais seria mais brilhante do que lha podia
fazer a benevolência do bispo justiceiro.
Nas auras sopradas do mar lhe vinham os perfumes acres da cidade que entrevira
uma vez ao cair da tarde, e que lhe deixara uma impressão confusa de
luzes, de sons e de objetos estranhos, entre os quais se destacavam as mulatas
de camisa de rendas impregnada de trevo e pipirioca, perfumes fortes que lhe
excitavam o temperamento sensual, dando-lhe o antegosto duma infinidade de
prazeres. Ao mesmo tempo na toalha larga, clara e movediça do rio,
a perder-se intérmina no horizonte, parecia refletir-se a imagem dum
esplêndido futuro, em que ofuscavam a fantasia as cintilações
diamantinas da mitra episcopal numa diocese do sul…
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