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José de Alencar
Que significa este nome — Sênio — no frontispício
de livros que vozes benévolas da imprensa já atribuíram
a outrem?
Cada um fará a suposição que entender.
Era preciso um apelido ao escritor destas páginas, que se tornou
um anacronismo literário. Acudiu esse que vale o outro e tem de mais
o sainete da novidade.
Porventura escolhendo aquela palavra, quis o espírito indicar que
para ele já começou a velhice literária, e que estes
livros não são mais as flores da primavera, nem os frutos do
outono, porém sim as desfolhas do inverno?
Talvez.
Há duas velhices: a do corpo que trazem os anos, e a da alma que
deixam as desilusões.
Aqui, onde a opinião é terra sáfara, e o mormaço
da corrupção vai crestando todos os estímulos nobres;
aqui a alma envelhece depressa. E ainda bem! A solidão moral dessa
velhice precoce é um refúgio contra a idolatria de Moloch.
10 de novembro de 1870.
LIVRO PRIMEIRO
O PEÃO
I – O PAMPA
Como são melancólicas e solenes, ao pino do sol, as vastas
campinas que cingem as margens do Uruguai e seus afluentes!
A savana se desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e coxilhas
que figuram as flutuações das vagas nesse verde oceano. Mais
profunda parece aqui a solidão, e mais pavorosa, do que na imensidade
dos mares.
É o mesmo ermo, porém selado pela imobilidade, e como que
estupefato ante a majestade do firmamento.
Raro corta o espaço, cheio de luz, um pássaro erradio, demandando
a sombra, longe na restinga de mato que borda as orlas de algum arroio. A
trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote; ei-lo que se vai retouçando
alegremente babujar a grama do próximo banhado.
No seio das ondas o nauta sente-se isolado; é o átomo envolto
numa dobra do infinito. A âmbula imensa tem só duas faces convexas,
o mar e o céu. Mas em ambas a cena é vivaz e palpitante. As
ondas se agitam em constante flutuação; têm uma voz, murmuram.
No firmamento as nuvens cambiam a cada instante ao sopro do vento; há
nelas uma fisionomia, um gesto.
A tela oceânica, sempre majestosa e esplêndida, ressumbra possante
vitalidade. O mesmo pego, insondável abismo, exubera de força
criadora; miríades de animais o povoam, que surgem à flor d’água.
O pampa ao contrário é o pasmo, o torpor da natureza.
O viandante perdido na imensa planície, fica mais que isolado, fica
opresso. Em torno dele faz-se o vácuo: súbita paralisia invade
o espaço, que pesa sobre o homem como lívida mortalha.
Lavor de jaspe, embutido na lâmina azul do céu, é a
nuvem. O chão semelha a vasta lápida musgosa de extenso pavimento.
Por toda a parte a imutabilidade. Nem um bafo para que essa natureza palpite;
nem um rumor que simule o balbuciar do deserto.
Pasmosa inanição da vida no seio de um alúvio de luz!
O pampa é a pátria do tufão. Aí, nas estepes nuas,
impera o rei dos ventos. Para a fúria dos elementos inventou o Criador
as rijezas cadavéricas da natureza. Diante da vaga impetuosa colocou
o rochedo; como leito de furacão estendeu pela terra as infindas savanas
da América e os ardentes areais da África.
Arroja-se o furacão pelas vastas planícies; espoja-se nelas
como o potro indômito; convole a terra e o céu em espesso turbilhão.
Afinal a natureza entra em repouso; serena a tempestade; queda-se o deserto,
como dantes plácido e inalterável.
É a mesma face impassível; não há ali sorriso,
nem ruga. Passou a borrasca, mas não ficaram vestígios. A savana
permanece como foi ontem, como há de ser amanhã, até
o dia em que o verme homem corroer essa crosta secular do deserto.
Ao pôr do sol perde o pampa os toques ardentes da luz meridional.
As grandes sombras, que não interceptam montes nem selvas, desdobram-se
lentamente pelo campo fora. É então que assenta perfeitamente
na imensa planície o nome castelhano. A savana figura realmente em
vasto lençol desfraldado por sobre a terra, e velando a virgem natureza
americana.
Essa fisionomia crepuscular do deserto é suave nos primeiros momentos;
mas logo após ressumbra tão funda tristeza que estringe a alma.
Parece que o vasto e imenso orbe cerra-se e vai minguando a ponto de espremer
o coração.
Cada região da terra tem uma alma sua, raio criador que lhe imprime
o cunho da originalidade. A natureza infiltra em todos os seres que ela gera
e nutre aquela seiva própria; e forma assim uma família na grande
sociedade universal.
Quantos seres habitam as estepes americanas, sejam homem, animal ou planta,
inspiram nelas uma alma pampa. Tem grandes virtudes essa alma. A coragem,
a sobriedade, a rapidez são indígenas da savana.
No seio dessa profunda solidão, onde não há guarida
para defesa, nem sombra para abrigo, é preciso afrontar o deserto com
intrepidez, sofrer as privações com paciência, e suprimir
as distâncias pela velocidade.
Até a árvore solitária que se ergue no meio dos pampas
é tipo dessas virtudes. Seu aspecto tem o que quer que seja de arrojado
e destemido; naquele tronco derreado, naqueles galhos convulsos, na folhagem
desgrenhada, há uma atitude atlética. Logo se conhece que a
árvore já lutou à sua nutrição. A árvore
é sóbria e feita às inclemências do sol abrasador.
Veio de longe a semente; trouxe-a o tufão nas asas e atirou-a ali,
onde medrou. É uma planta emigrante.
Como a árvore, são a ema, o touro, o corcel, todos os filhos
bravios da savana.
Nenhum ente, porém, inspira mais energicamente a alma pampa do que
o homem, o gaúcho. De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor;
tem a velocidade da ema ou da corça; os brios do corcel e a veemência
do touro.
O coração, fê-lo a natureza franco e descortinado como
a vasta coxilha; a paixão que o agita lembra os ímpetos do furacão;
o mesmo bramido, a mesma pujança. A esse turbilhão do sentimento
era indispensável uma amplitude de coração, imensa como
a savana.
Tal é o pampa.
Esta palavra originária da língua quíchua significa
simplesmente o plaino; mas sob a fria expressão do vocábulo
está viva e palpitante a idéia. Pronunciai o nome, com o povo
que o inventou. Não vedes no som cheio da voz, que reboa e se vai propagando
expirar no vago, a imagem fiel da savana a dilatar-se por horizontes infindos?
Não ouvis nessa majestosa onomatopéia repercutir a surdina profunda
e merencória da vasta solidão?
Nas margens do Uruguai, onde a civilização já babujou
a virgindade primitiva dessas regiões, perdeu o pampa seu belo nome
americano. O gaúcho, habitante da savana, dá-lhe o nome de campanha.
II – O VIAJANTE
Corria o ano de 1832.
Na manhã de 29 de setembro um cavaleiro corria a toda brida pela
verde campanha que se estende ao longo da margem esquerda do Jaguarão.
Deixara o pouso pela alvorada e seguia em direção ao nascente.
Para abreviar a jornada, se desviara da estrada, e tomara por meio dos campos,
como quem tinha perfeito conhecimento do lugar.
Não o detinham os obstáculos que porventura encontrava em
sua rota batida, mas não trilhada. Valados, seu cavalo morzelo os franqueava
de um salto, sem hesitar; sangas e arroios atravessava-os a nado, quando não
faziam vau.
Era o cavaleiro moço de 22 anos quando muito, alto, de talhe delgado,
mas robusto. Tinha a face tostada pelo sol e sombreada por um buço
negro e já espesso. Cobria-lhe a fronte larga um chapéu desabado
de baeta preta. O rosto comprido, o nariz adunco, os olhos vivos e cintilantes
davam à sua fisionomia a expressão brusca e alerta das aves
de altanaria. Essa alma devia ter o arrojo e a velocidade do vôo do
gavião.
Pelo traje se reconhecia o gaúcho. O ponche de pano azul forrado
de pelúcia escarlate caía-lhe dos ombros. A aba revirada sobre
a espádua direita mostrava a cinta onde se cruzavam a longa faca de
ponta e o amolador em forma de lima.
Era cor de laranja o chiripá de lã enrolado nos quadris, em
volta das bragas escuras que desciam pouco além do joelho. Trazia botas
inteiriças de potrilho, rugadas sobre o peito do pé e ornadas
com as grossas chilenas de prata.
O morzelo, cavalo grande e fogoso, não tinha bonita estampa. Vinha
arreado à gaúcha; as rédeas e o fiador mostravam guarnições
de prata; eram do mesmo metal os bocais dos estribos à picaria e o
cabo do rebenque de guasca, preso ao punho da mão direita.
Na anca do animal enrolava-se o laço abotoado à cincha, e
do lado oposto os fiéis das bolas retovadas de couro, que descansavam
no lombilho de um e outro lado. Pela perna esquerda do cavaleiro descia a
ponta da lança gaúcha, cuja haste presa à carona apoiava-se
de revés no flanco do animal.
Quem não conhecesse os costumes da província do Rio Grande
do Sul, suporia que esse cavaleiro ia naquela desfilada correr alguma rês
no campo; ou fazer uma excursão a qualquer charqueada próxima.
Mas as pessoas vaqueanas reconheceriam à primeira vista um viajante
à escoteira.
Com efeito, ao lado do gaúcho galopavam relinchando três cavalos,
qual deles mais lindo e garboso; porém nenhum tão valente e
brioso como o morzelo, que os distanciava a todos, apesar de montado; e não
era animal que precisasse ser advertido pelo roçar das chilenas.
Estava fresca a manhã. Em setembro ainda reina o inverno na campanha;
e nesse dia soprava o minuano, vento glacial, que desce dos Andes. Apesar
do sol que dardejava em um céu límpido e azul, o frio cortava.
Depois de algum tempo de marcha, avistou o gaúcho no meio do campo
o rancho de um posteiro, que assim chamam nas estâncias os vaqueiros
incumbidos de guardar o gado solto. Encontram-se destas choupanas de distância
em distância pela extensão dos grandes pastos.
O viajante botou o animal para o rancho.
Pela porta aberta via-se no interior um homem deitado no chão sobre
um pelego, e um fogo a arder no fundo.
— Olá, amigo, Deus o salve!
— Para o servir, respondeu o posteiro virando-se de bruços e
levantando a cabeça.
— Sabe-me dizer se o coronel estará em Jaguarão?
— Homem, deve estar.
— Então não sabe com certeza?
— Até anteontem lá estava. Mas de um momento para outro
pode ser preciso em outra parte. Ainda mais agora que os castelhanos aí
andam na fronteira, fazendo das suas.
Abrindo o ponche, o gaúcho tirara da guaiaca, espécie de bolsa
de couro atada à cinta, um cigarro de palha e o preparava com a destreza
de fumista consumado.
— Bem; antes da noite saberei, disse tirando lume do fuzil.
Entretanto o peão, erguendo-se do pelego, se aproximara da porta
e olhava com atenção para o viajante.
— A modo que estou conhecendo ao senhor? acudiu ele.
— Pode ser, chamo-me Manuel Canho, para o servir.
— Outro tanto; Francisco da Graça, mas todos me conhecem por
Chico Baeta, um seu criado. Seu nome não me é estranho. Manuel
Canho… De Ponche-Verde?
— Isso mesmo.
— Bem dizia eu. Agora me alembro; foi em umas corridas no Alegrete,
há coisa assim como dois anos a esta parte. O senhor não esteve
lá?
— Fui um dos que correram.
— Bem sei; e ganhou aos vencedores. Pois é isso, que eu tinha
cá na idéia. E querem ver?
Proferindo estas palavras, o Chico Baeta afastou-se do morzelo para melhor
examiná-lo.
— Não há dúvida. Foi este o moço?
— É verdade!
— Eh pingo! exclamou o peão, dando com entusiasmo uma palmada
na anca do animal.
Só compreenderá a energia da exclamação do Chico
Baeta quem souber que pingo é o epíteto mais terno que o gaúcho
dá a seu cavalo. Quando ele diz “meu pingo” é como
se dissesse meu amigo do coração, meu amigo leal e generoso.
— Que faísca! Sr. Manuel Canho. Enquanto os outros ginetes,
e os havia de fama, levantavam a poama na quadra, cá o morzelinho fez
trás, zás, e fuzilou na raia como um corisco.
Canho estava gostando de ouvir o elogio feito a seu animal: o cavalo é
uma das fibras mais sensíveis do coração do gaúcho.
Mas alguma coisa instigava o viajante, que fazendo um esforço interrompeu
o peão.
— Então se me dá licença, vou-me andando. Careço
de estar hoje na vila sem falta.
— O churrasco está na brasa, se é servido?…
— Obrigado; ficará para outra vez. Antes do descanso ainda
tenho que fazer umas cinco léguas.
— Pois, amigo, até mais ver.
— Com o favor de Deus.
— Olhe; se vir lá pela vila a Missé, dê-lhe memórias;
diga-lhe que em havendo uma folga, lá me tem para bailarmos o tatu.
— Farei presente, respondeu rindo o Canho que já ia longe à
desfilada.
Naquele andar fez o viajante a porção de jornada que tencionava,
e aproximou-se do arroio da Candiota, um dos afluentes do Jaguarão,
que atravessa a campanha de norte a sul, na distância de algumas léguas
da cidade.
Medindo a altura do sol conheceu que era perto de meio-dia; já a
seriema afinava a garganta para soltar o canto.
Parando à sombra de uma árvore na beira do rio, o gaúcho
saltou no chão, e sacou em um momento os arreios do animal. Enquanto
o morzelo se espojava na grama para desinteiriçar os músculos
entorpecidos pelo arrocho da cincha, o viajante batia o fuzil, e tirava fogo
para acender um molho de galhos secos.
A sela é ao mesmo tempo a bagagem do gaúcho; esse viajante
do deserto, como o sábio da antigüidade, pode bem dizer que leva
consigo quanto possui.
A xerga lhe serve de cama; a sela forrada com o lombilho, de travesseiro.
Nas caronas traz a maleta com a roupa de muda; na guaiaca patacões
ou onças que constituem todo seu pecúlio. Entre a xerga e a
manta, estende um pedaço de carne que o calor do animal cozinha durante
a jornada.
Manuel fez com presteza seus arranjos para a sesta; e deixando a carne a
tostar sobre o fogo, aproximou-se do rio para lavar as mãos e o rosto.
A janta foi expedita. Uma grande naca de carne com alguns punhados de farinha;
e água bebida no bocal do estribo, que o rapaz teve o cuidado de lavar
para dar-lhe a serventia de copo.
Atirou-se então sobre a cama forrada com o pelego; e fumou dois cigarros
de palha enquanto descansava.
— Hoje em Jaguarão; e daqui a oito dias, Deus sabe aonde! Talvez
contigo, pai, lá em cima; murmurou o gaúcho engolfando os olhos
no límpido azul do céu.
Meia hora não tinha decorrido, que o gaúcho levantou-se de
um salto, e tirou do céu da boca o som com que a gente do campo costuma
falar aos animais. A tropilha que pastava ali perto, conduzida pelo morzelo,
aproximou-se gambeteando.
— Cá, Ruão!
Arreado o animal, pulou o gaúcho na sela e atravessando o rio, partiu
a galope.
Seriam cinco horas e meia, quando no azul diáfano do horizonte se
desenhou iluminada pelo arrebol da tarde a torre da igreja do Espírito
Santo, que servia de matriz à vila de Jaguarão.
Receoso talvez de que o último raio do sol se apagasse, deixando-o
ainda em caminho, o gaúcho afrouxou as rédeas ao Ruão,
que lançou-se como uma flecha.
III – O AGOURO
Sobre uma pequena ondulação, que cingem de um e outro lado
dois pequenos córregos, está assentada a cidade, então
vila de Jaguarão, à margem esquerda do rio do mesmo nome.
Naquela tarde do dia 29 de setembro de 1832, havia no povoado uma agitação,
que indicava algum fato extraordinário. Os habitantes em turmas enchiam
as ruas, e especialmente a das Palmas, que fica fronteira ao quartel.
A razão desse ajuntamento, e do alvoroto que se percebia entre o
povo, podia conhecê-la quem se desse ao trabalho de escutar as falas
daqueles bandos de curiosos.
— Foram batidos?
— Completamente. Rivera caiu sobre eles que foi uma lástima.
— E Bento Gonçalves os prendeu?
— Não vai desarmá-los?
— Ande lá, acudiu um tropeiro, que o Lavalleja é um duro.
Há de tirar a desforra.
Com efeito, Juan Lavalleja, o herói da independência de Montevidéu,
sua pátria, tendo-se revoltado contra o Presidente da República,
Frutuoso Rivera, fora afinal derrotado pelas forças legais e obrigado
a passar a fronteira.
Pisando território brasileiro foi o caudilho intimado pelo coronel
Bento Gonçalves, comandante da fronteira do Jaguarão, para entregar
as armas, ao que submeteu-se sem resistência.
Fronteiro ao quartel, e em face da nossa tropa, formou a força rebelde.
Os soldados com o semblante carregado esperavam o momento solene de depor
as armas. O sentimento dessa humilhação era partilhado por grande
parte da população, imbuída de certo espírito
militar.
Lavalleja dirigiu a seus companheiros de infortúnio palavras de animação,
que produziram efeito contrário. A cólera concentrada prorrompeu
em queixas amargas e violentas recriminações.
Afinal consumou-se o ato. Os soldados deixaram as armas em terra, e foram
recolhidos presos ao quartel. D. Juan Lavalleja entregou a espada ao coronel
Bento Gonçalves, que o hospedou em sua casa, enquanto não lhe
dava destino.
Dispersava-se o povo, comovido pela triste cerimônia, quando o galope
do cavalo de Manuel Canho ressoou no princípio da Rua das Trincheiras.
O gaúcho apeou à porta de uma venda que dava pousada. Depois
de recolher seus animais ao potreiro, e guardar os arreios no canto que lhe
destinaram, sentou-se no alpendre e pediu uma cuia de mate.
Já sabia o que desejava. O coronel estava na vila; logo mais, quando
ele tivesse dado as providências sobre o destino da gente desarmada,
iria o rapaz procurá-lo.
No alpendre estava diversas pessoas conversando sobre o acontecimento do
dia:
— Se é verdade o que dizem, observou um seleiro com ar de mistério,
o coronel não desarmou o homem lá muito pelo seu gosto.
— Ora esta do Lucas Fernandes! Se ele não quisesse, quem o
obrigava? Não é assim?
— Decerto!
— Ainda não é tempo.
— De quê? perguntou um ferrador.
— Olhem; desta ninguém me tira. O coronel antes queria ter
filado o Frutuoso, do que o Lavalleja!
— Mas por quê, Félix?
— Vocês verão.
O coronel Bento Gonçalves da Silva, veterano da guerra da Cisplatina
e comandante da fronteira de Jaguarão e Bagé, era então
o homem mais respeitado em toda a campanha do Rio Grande do Sul. Franco e
generoso, bravo como as armas, vazado na mesma têmpera de Osório
e Andrade Neves, montando a cavalo como o Cid campeador, era Bento Gonçalves
o ídolo da campanha.
Os homens o adoravam; as mulheres o admiravam. O mais sacudido rapaz achava
coisa muito natural que as moças bonitas chegassem à janela
para ver passar o elegante velho, com seu talhe alto e espigado, e seu peito
amplo e bombeado como a petrina do brioso ginete.
Sensível a essa fineza do belo sexo, o veterano alisava o bigode
grisalho, pagando com um sorriso os olhares coados pelas rótulas. Ao
mesmo tempo consolava os rapazes, fazendo-lhes um aceno com a mão,
ou dirigindo-lhes algum dito picaresco.
Da influência que exercia Bento Gonçalves sobre o ânimo
da população, pode bem dar uma idéia o que dizia há
pouco um dos camaradas reunidos no alpendre da pousada: “Se ele não
quisesse, quem o obrigava?” Estas palavras traduziam a convicção
daquela gente. Para os habitantes do interior, o coronel era o rei da campanha;
ninguém tinha o direito de lhe dar ordens; desarmara Juan Lavalleja
porque assim lhe aprouvera, como poderia protegê-lo, unir-se a ele,
e marchar sobre Frutuoso Rivera.
Havia então no Rio Grande do Sul outros coronéis, e entre
eles o veterano Bento Ribeiro, que devia figurar posteriormente na história
de sua província de uma maneira tão triste, apagando as páginas
brilhantes que sua espada leal tinha escrito em mais de um campo de batalha.
Mas o coronel por excelência, aquele em quem o povo havia personificado
o título, como o mais bravo e digno, era Bento Gonçalves. De
uma à outra fronteira da província, os estancieiros muitas vezes
não sabiam ou não se lembravam quem era o presidente e o comandante
das armas; mas qualquer peão ouvindo falar no coronel, sabia de quem
se tratava; e não se metessem a tasquinhar nele, que a faca de ponta
saltava logo da bainha.
Continuava a prática entre os fregueses da venda:
— Cá por mim, se eu fosse o coronel, o que fazia era passar uma
coleira vermelha ao pescoço do Lavalleja.
Estas palavras eram de um carneador. Coleira chamava ele no seu estilo pitoresco
ao degolo que todas as manhãs fazia nas reses destinadas ao corte da
charqueada.
— Ora, que mal fez o homem?
— Já se esqueceu do levante de Montevidéu?
— Não vejo crime em libertar um homem sua pátria, acudiu
o Lucas Fernandes. Fez ele muito bem, e nós cá não estamos
muito longe de seguir o mesmo caminho. As coisas vão mal; o governo
do Rio não dá importância aos homens da província.
Já não demitiram o coronel porque têm medo.
— Lá isso é verdade! Atrevam-se que hão de ver
o bonito.
— Não é por falta de vontade dos de Montevidéu
que não cessam de pedir.
— Pudera! Se não fosse o coronel, entravam eles por esta fronteira
como por sua casa.
Eram os pródromos da revolução que devia prorromper
três anos depois. A semente aí estava lançada na população,
e se desenvolvia com o vento sedicioso que soprava do Prata.
Uma voz infantil soara na rua perguntando:
— Papai está aí?
Lucas Fernandes voltou-se para a menina que subia os degraus do alpendre.
— Que queres, Catita?
— Já se foi a tropa, papai?
— Pois não viste?
— Ora! cuidei que iam brigar!
— Olhem a pequena! exclamou o ferrador a rir. Então você
queria ver-nos brigar com os castelhanos?
— Queria; há de ser bonito!
— Assim, gauchinha! acudiu um tropeiro repuxando o bigode.
— Ainda hás de ter esse divertimento, Catita, redargüiu
o Lucas Fernandes. Tão depressa achasses tu um bom marido.
— Pois não há de achar? Tão guapa moçoila!
Aqui estou eu que se ela não refugar… Hein! Catita, que diz? Há
de ser minha noiva.
— Quem conta com soldado? O noivo dela é cá o degas,
que já nos ajustamos! Tornou o tropeiro piscando o olho.
Sorria no entanto a menina com certo arzinho de malícia que frisava
o botão de rosa da boquinha a mais gentil. Ao mesmo tempo movendo lentamente
a fronte em sinal de recusa, meneava as duas longas tranças de cabelos
negros, que, ondeando pelas espáduas, desciam até à bainha
da saia curta de lila encarnada com vivos pretos.
Era realmente um feitiço a Catita. Seu talhe de treze anos, esbelto
e airoso, não tinha as formas da donzela, mas já no requebro
faceiro ressumbrava a graça feminina. Os olhos negros, como os cabelos,
ela os trazia sempre a meio vendados pelas róseas pálpebras;
por isso, quando alguma vez se desvendavam, parecia que seu rosto se tinha
banhado em jorros de luz.
A tez, quem a visse, em repouso, sob a negra madeixa, cuidaria ser alva;
mas nas inflexões do colo e dos braços percebia-se, como sob
a transparência da opala, uns reflexos de ouro fusco. Então conhecia-se
que era morena; e o tom cálido de sua cútis lembrava o aspecto
das brancas praias de areia, iluminadas pelos últimos raios do sol.
— Estão aí perdendo seu tempo. Ela já me deu
sua palavra. Não é, moça?
— Sai-te, gabola, que o dunga está aqui, disse um peão
plantando-se no meio da casa com a mão esquerda no quadril, e a direita
no ar brandindo a faca.
— Está bem, não vai a brigar, acudiu Lucas Fernandes
rindo. Qual deles escolhes, Catita?
— Eu, papai?
— Pois então?
— Eu… disse a menina esticando a perna bem torneada, e arqueando o
pezinho calçado com um sapato de marroquim azul.
Suspensa um momento nessa figura de dança, enquanto percorria com
olhar brejeiro os sujeitos da roda, acabou a frase descrevendo uma pirueta
graciosa.
— Eu não escolho nenhum!
— Ora aí está! disse o Lucas soltando uma gargalhada.
— Qual! Já está fazendo melúrias.
— Meu noivo… Querem saber qual é?
— Então sempre escolhe!
— Ai que já estou me lambendo!
— Quem é?
— Olhe!
No canto oposto do alpendre, estava o Manuel Canho, sentado no parapeito,
com o cigarro na boca, e a vista divagando pelos campos que se estendiam além
do córrego, às abas da cidade. Inteiramente alheio ao que passava
junto, o gaúcho parecia de todo absorvido em suas cogitações.
Esta expressão de recolho íntimo apagava certa aspereza de
sua fisionomia. Visto assim de perfil, com a fronte descoberta, os cabelos
que a brisa agitava, e o talhe desenhado pelo traje pitoresco do gaúcho,
era sem dúvida um bonito rapaz.
Foi a ele que se dirigiu Catita; e tocando-lhe no ombro, voltada para os
outros, disse:
— Este!
— Não vale! exclamou o peão.
Sentindo no ombro a mão da menina, o gaúcho voltou-se com
um olhar interrogador.
— É você que eu quero para meu noivo, disse-lhe Catita
a sorrir.
— Quando for viúva, então sim, serei seu noivo! respondeu
o gaúcho em amargo tom de ironia.
Afastou-se a menina com um espanto misturado de pesar. Da gente da roda,
uns não viram no dito do gaúcho mais do que uma chufa, e riram;
outros não lhe deram atenção.
Catita, porém, tomou aquela estranha resposta de Canho como agouro;
e teve nessa noite um sonho bem triste.
IV – O PADRINHO
Soavam trindades na torre da matriz.
Manuel Canho ergueu-se e esperou de cabeça descoberta pela última
badalada; depois do que, saiu na volta da Rua das Palmas onde morava o coronel.
Estavam à porta o cabo de ordens e uma récua de camaradas
paisanos ao serviço do coronel. Não havia então na campanha
do sul homem ou estancieiro importante que não se acompanhasse de um
bando de gaúchos. O número desses camaradas, que lembram os
acostados da Idade Média, indicava o grau de preponderância e
riqueza do patrão.
Voltara Bento Gonçalves do quartel, e enquanto serviam a ceia, foi
ter na sala com seu prisioneiro, D. Juan Lavalleja.
O caudilho dava sinais bem visíveis de mau-humor, no cenho carrancudo
e na impaciência com que trincava a ponta do cigarro de palha. Por momentos
arrependia-se do que tinha feito, e lamentava não ter morrido combatendo
contra Frutuoso Rivera ou Bento Gonçalves, antes do que sujeitar-se
à humilhação de render as armas. E a quem? A brasileiros.
Não obstante, no meio desta apoquentação, lá
surdia no ânimo do ambicioso caudilho uma idéia, que ele ruminava
com a mesma pertinácia do dente a morder a palha do cigarro.
Com a entrada de Bento Gonçalves, a sofreguidão de Lavalleja
aumentou. Correspondendo apenas com um gesto seco à saudação
do hóspede, ergueu-se e começou a percorrer a varanda de uma
a outra ponta, em passo de carga. Pelo que lembrou-se o coronel de assobiar
o toque de avançar a marche e marche.
Ou porque o gracejo do hóspede o excitasse, ou porque era chegado
o momento da explosão, Lavalleja veio como uma bomba parar em face
do coronel, e exclamou com uma voz taurina, atirando aos ares um murro furioso:
— Coronel, o senhor não é um homem!
Como aquela palavra abalou Bento Gonçalves, que achou-se em pé
de repente, afrontando em face o oriental! Mas não passou de um primeiro
assomo; a alta estatura que a indignação erigira perdeu a rijeza
ameaçadora; no rosto anuviado perpassou o sorriso plácido e
sereno das grandes almas, que uma cólera pequena não conturba.
São essas almas como o grande oceano; qualquer borrasca não
o agita; para subvertê-lo é preciso o tufão dos Andes.
— O senhor é meu prisioneiro e hóspede desta casa, general,
disse Bento Gonçalves sentando-se com a maior calma. Em outro momento
e outro lugar, eu lhe mostraria que um brasileiro não vale um, mas
dez homens; enquanto que são precisos dois castelhanos para fazer meio
brasileiro. O senhor deve saber disto.
— Outro tanto lhe podia eu retorquir; mas não estou agora para
bravatas. Digo e repito que não é um homem, Sr. Bento Gonçalves,
pois se o fosse, seria o primeiro de todo este Rio Grande. Em vez de coronel
se faria general. Que vale o comando desta fronteira para quem pode, estendendo
a mão, apanhar a presidência da província?
— Que pretende dizer com isto, general?
— Caramba! No momento em que Bento Gonçalves quiser, o Rio Grande
do Sul será um Estado independente como a Banda Oriental. Está
bem claro agora? Para arrancar minha pátria ao jugo do império
bastaram trinta e três heróis; bem sei que um deles era D. Juan
Lavalleja. O senhor que tem por si toda a campanha, deixa-se aqui ficar bem
repousado, a chupitar seu mate como uma velha; e pica-se porque lhe digo que
não é um homem. Mas decerto que não o é. Minha
mulher, D. Ana Monteroso, teria vergonha de praticar semelhante fraqueza;
ainda que é mulher de quem é, todavia…
— De que lhe serviu ao senhor, diga-me, fazer a divisão da
Cisplatina? retorquiu o coronel com ironia. Lá está seu compadre,
dentro do queijo; e eu obrigado bem contra minha vontade a desarmar o herói
da independência de sua pátria, como um rebelde.
— Lá isso não vem ao caso; é a sorte da guerra.
Hoje ganhou meu compadre a partida, amanhã chegará a minha vez;
todavia, cá entre nós, quem manda é o mais forte; não
somos governados por um menino de sete anos.
— Quem governa é a lei, respondeu Bento Gonçalves em
tom seco.
— Burla, coronel; este mundo é governado por duas coisas: a
força ou a astúcia. O mais, isso de lei, de liberdade e justiça,
são palavras sonoras para o povo, que no fim de contas não passa
de um menino a quem se acalenta com um chocalho… O Rio Grande lhe pertence,
coronel, como a Banda Oriental a mim, D. Juan Lavalleja.
— Vamos cear, general.
— Então deixa passar a ocasião?
— Sou brasileiro; nasci cidadão do império; e assim hei
de viver, enquanto houver liberdade em meu país, porque para mim a
liberdade não é uma burla para enganar o povo, mas o primeiro
bem, que não se perde sem desonra, e não se tira sem traição.
Quando eu me convencer que para ser livre, é preciso deixar de ser
imperialista, não careço que ninguém me lembre o que
me cabe fazer. O coronel Bento Gonçalves saberá cumprir seu
dever.
Dando esta resposta com tom enérgico, o rio-grandense guiou o caudilho
à varanda onde tinham posto a ceia.
Em uma das extremidades da longa mesa, estavam colocados dois pratos com
talheres de prata destinados ao dono da casa e seu hóspede. Diante
deles fumegava um grande assado de couro, e um peixe que enchia a imensa frigideira
de barro. Havia além disso ervas e legumes.
Já estavam na varanda os gaúchos da comitiva do coronel, os
quais lhe deram as boas-noites. O Canho adiantou-se para beijar a mão
de Bento Gonçalves que era seu padrinho.
— Oh! Estás por cá, Manuel?
— Cheguei esta tarde.
— Como vai a comadre?
— Boa, graças a Deus.
— Estás um rapagão! Abanca-te; vamos cear.
O coronel tomou lugar à cabeceira, dando a direita ao hóspede.
Na outra ponta da mesa sentaram-se os camaradas e Manuel, em bancos de madeira;
cada um tirou um prato da pilha que havia no centro e colocou-o diante de
si.
Depois de servido o dono da casa e o hóspede, os pratos eram levados
pelo escravo copeira para a outra extremidade, onde os gaúchos iam
tirando seu quinhão com a faca de ponta que traziam à cinta.
— Vamos ao peixe, general, disse Bento Gonçalves servindo a
Lavalleja. Então, Manuel, andas de vadiação ou isto é
volta de negócio?
— Nem uma, nem outra coisa. Vim só para falar a meu padrinho.
— Pois fala, rapaz; não percas tempo.
— É sobre um particular.
— Está bem; então logo mais.
Terminada a ceia, enquanto os outros tomavam mate e fumavam, o coronel fez
ao gaúcho um gesto para que este o acompanhasse à sala.
— Que particular é esse? Alguma gauchada, aposto?
— Vim pedir a bênção de meu padrinho, para me dar
felicidade, e mesmo porque talvez lá me fique!
— E para onde te botas?
— Para Entre-Rios.
— Buscar o quê?
— O homem que matou meu pai!
— Hein!… Depois de tanto tempo?
— São coisas que não esquecem nunca.
— Não esquecem, bem sei; mas se perdoam; talvez o sujeito esteja
arrependido.
— Melhor; Deus o absolverá.
— Visto isto, estás decidido?
— Desde muito tempo. Há cinco anos a esta parte que descobri
o homem lá em Entre-Rios, e então pela festa vou sempre para
aquelas bandas, ver se ainda lá está.
— Estiveste invernando-o antes de charqueá-lo? replicou o coronel
a rir.
— Sabe Deus quanto me custou deixá-lo sossegado todo este tempo.
Mas eu precisava trabalhar primeiro, para que a mãe ficasse com alguma
coisa. Tudo pode acontecer; e afora eu, não tem ela quem a ajude.
— E Bento Gonçalves não está aqui, rapaz?
— Meu padrinho tem muitos por quem olhar; não pode chegar para
todos. Se eu não voltar, sempre ficará com que acender o fogo.
— Que diz tua mãe a tudo isto?
— Ela não sabe.
Bento Gonçalves deu duas voltas pela sala.
— Escuta, Manuel. Teu coração te pede o que vais fazer?
Sentes que sem isso não poderás viver descansado? Fala verdade.
— Se eu não vingasse o pai, ele me renegaria lá do céu
e não quereria para filho um poltrão ingrato.
— Com a breca! Meu ofício não é de padre! exclamou
impetuosamente o coronel. Vai, rapaz; segue teu impulso. Tenho fé em
que hás de honrar as barbas de teu padrinho; se chegar tua hora, o
que não há de suceder, descansa em paz, que eu velarei sobre
tua mãe.
— Obrigado, meu padrinho; bote-me sua bênção.
— Deus te abençoe e te acompanhe, Manuel.
Beijou o gaúcho a mão vigorosa do coronel, que ria-se estrepitosamente
para disfarçar a comoção.
Quando Manuel recolhia-se à pousada, ouviu uns rufos de guitarra
coados pelas frestas esclarecidas de uma rótula da vizinhança.
Ao som do acompanhamento arrastado, uma voz maviosa, de timbre infantil, dizia
com terna expressão uma cantiga brasileira. O gaúcho apesar
de preocupado pôde ouvir as seguintes coplas:
A minha branca pombinha.
Com tanto amor a criei;
Depois de bem criadinha,
Fugiu-me; por que, não sei.
Quis beijar o seio dela,
Bateu as asas, voou;
A minha pombinha bela,
Foi gavião que a levou.
— Bravo, Catita! exclamou a voz do Lucas Fernandes.
V – O PÁREO
Dias depois, já em outubro, na sala de uma pousada da província
de Entre-Rios, estavam reunidos vários andantes, invernistas e também
alguns capatazes da vizinhança.
Ente outros pousara ali um chileno que vinha de Mendoza ou Córdova,
e contava atravessar toda a campanha até o Rio Grande do Sul. Espécie
de mercador ambulante, misto de mascate e de aventureiro, costumava ele percorrer
as cidades e povoações do interior à cata do bom negócio,
como da boa-vida.
Trazia duas ou três mulas carregadas com uma partida de fazendas de
lã e seda, porém especialmente de chapéus-do-chile, palas
de vicunha, e guarnições de prata para arreios de montaria.
De caminho ia chatinando a sua mercadoria, e comprando animais, que mais adiante
negociava, se lhe ofereciam bom lucro.
Quando tinha a bolsa recheada, e achava encanto no lugar, deixava-se ficar
uns oito ou quinze dias, quantos bastavam para concluir alguma aventura amorosa,
ou para tirar a sua desforra dos parceiros que no jogo da primeira lhe haviam
limpado as onças.
Ao cabo de uma ou duas semanas, partia-se uma bela manhã, mais ligeiro
da bolsa, porém, contente de si, e prazenteiro sempre; levava a alma
cheia da plena confiança que adquire o homem errante, habituado à
boa e à má fortuna, afeito ao sol e à chuva.
Neste circuito, muitas vezes consumia o nosso chileno dois ou três
anos. Freqüentemente chegava até Sorocaba, onde a grande feira
de animais costuma reunir em maio grande número de marchantes de diversas
paragens. Estes concursos têm grande encanto para o viajante que pode
assim reviver as recordações de cada terra por onde passou.
Além disso, na mesa do jogo e nas apostas, corre o ouro a rodo: fazem-se
páreos fabulosos que afrontam os mais destemidos.
Estas coisas, o mascate gostava de ver para contá-las mais tarde
nalgum ponto remoto, onde ele pudesse figurar como herói da história,
no meio de alguma roda de bonitas muchachas.
Vendidas todas as fazendas, e apuradas as barganhas feitas pelo caminho,
voltava o chileno a prover-se de uma nova carregação para continuar
a vida nômade a que se habituara desde a infância. Essa locomoção
constante era um elemento de sua existência; seu espírito superficial
saciava-se logo das impressões de qualquer lugar, e carecia de uma
diversão.
As pessoas, reunidas na varanda, pitavam o infalível cigarrito de
palha, sorvendo a goles o mate chimarrão. A conversa, frouxa em começo,
veio a cair sobre a gineta, que é juntamente com as histórias
de briga e namoro o tema favorita da conversa dos gaúchos na campanha.
— Pois, senhores, é o que digo, exclamou o chileno. Nenhum
será capaz de montar a égua que trago aí.
— Talvez seja ela tão chiquita, D. Romero, que um homem não
a possa montar, e somente um gambirra, acudiu com ar sardônico um dos
camaradas.
Os outros aplaudiram.
— Uma coisa é rir, amigos, e outra fazer, redargüiu o
chileno.
— Pois sem dúvida que se há de montar, D. Romero, disse
um invernista de São Paulo.
— Quer experimentar?
— Mande o senhor puxar a sujeitinha cá para o terreiro! disse
erguendo-se um paraguaio.
D. Romero dirigiu-se ao dono da pousada:
— Faz favor, amigo, para satisfazer aos senhores.
Enquanto se foi buscar o animal que estava preso à soga no pastinho,
contou D. Romero, como em caminho o apanhara de surpresa perto de um desfiladeiro,
há três dias passados. Desde então fizeram ele e os dois
camaradas que trazia, os maiores esforços para montá-lo; mas
desistiram.
— Ainda não encontrei quem se atrevesse! concluiu o chileno.
Um sorriso incrédulo, no qual se embebia sofrível dose de
arrogância e motejo, circulou pelos campeiros.
— Porventura os senhores duvidam? perguntou D. Romero assombrando-se.
— Não se duvida do conto, mas do animal, que seja como quer
o amigo; e se não veremos.
— O senhor vem lá da terra onde se monta em carneiros ou lhamas,
como lhes chamam, disse outro companheiro.
— Com licença, tenho visto os melhores ginetes e também
entendo do riscado.
— Topa o senhor alguma coisa?
— Tudo, amigo. Tão guapa estampa de animal, não quero
que haja em toda esta campanha até Chuquisada. Em Buenos Aires, Montevidéu,
ou Porto Alegre. O ponto é apresentá-la que logo me choverão
as onças. Pois, senhores, se algum dos presentes for capaz de montá-la,
a égua é sua.
— Valeu! exclamou o paraguaio estendendo a mão ao chileno.
— Palavra de D. Romero.
— Bravo! exclamaram em coro. Venha a rapariga.
— Ei-la aí! disse o dono da pousada, apontando.
Ao lado da casa, junto à mangueira, aparecera com efeito o animal,
trazido por um rapazinho que servia de peão. Não tiveram, porém,
os companheiros tempo de examinar a égua; porque instantaneamente achou-se
ela no pátio diante do alpendre. Com dois corcovos unicamente devorara
a distância de muitas braças, que a separava da casa.
Se não fosse tão ligeiro, o rapazinho não escaparia
da fúria com que a égua se arrojara para mordê-lo; felizmente
conseguiu ele alcançar o moirão, onde passou a laçada
do cabresto, pondo-se fora de alcance.
Na presença da gente que a cercava, a égua estacou, raspando
o chão com a pata arminada de branco. Pôde-se então admirar-lhe
a perfeição da estampa. Desta vez, contra o costume, não
havia exageração da parte do chileno; era com efeito um soberbo
animal.
Talhe esbelto e fino sobre alta estatura; cabeça pequena, colo cintado
e garboso, pelo qual se encrespavam as longas crinas, esparsas como os anéis
de basta madeixa; a anca roliça, ligeiramente bombeada e ondulando
com os reflexos ardentes do luzido pêlo; os ilhais a se retraírem
com um espasmo nervos; e finalmente uma roupagem baia, que nos cambiantes
luminosos parecia veludo tecido a fio de ouro; tal era a imagem viva e palpitante
que os gaúchos tinham diante dos olhos.
Animada por um assomo de cólera, essa beleza eqüina desenhava
na imaginação daqueles homens os contornos voluptuosos de alguma
gentil morena da redondeza, quando sucedia irritá-la uma palavra ou
gesto de seu namorado. Ao mesmo tempo despertavam no ânimo de cada um
os brios do picador, embora o fero olhar que desferiam as grandes pupilas
negras da égua, sofreasse os ímpetos dos mais destemidos.
De momento a momento, aspirava o indômito animal uma golfada do vento
agreste dos pampas. Escapava-lhe então do peito um nitrido plangente
e merencório, que enternecia, como o soluço da selvagem mãe
implorando o filho perdido.
Passando o primeiro movimento de curiosidade, e feitos na linguagem pitoresca
a campanha os elogios do lindo animal, aproximaram-se todos, fechando o círculo
em torno do moirão.
Nesse instante ergueu-se do alpendre, onde estivera deitado sobre o pelego,
um gaúcho, que veio recostar-se ao parapeito. Ninguém ali o
conhecia, a não ser o dono da pousada, com quem trocou algumas palavras.
O desconhecido chegara durante a noite e vinha de longe, ao que parecia.
Estava descansando da jornada, quando o borborinho das vozes, e as risadas
que soltavam os andantes, o despertaram. Excitado da curiosidade, pôs-se
a contemplar a cena do terreiro, que ele via perfeitamente daquela posição
elevada.
Fora longa e renhida a luta dos peões com o animal, antes que lhe
deitassem a mão. Em se adiantando algum mais afoito, a égua
juntava e de um salto espantoso se arremessava longe, disparando aos ares
o coice terrível, e encrespando o pescoço para morder.
Conheceram afinal que era impossível levar sua avante pelos meios
ordinários. Foi então laçado o animal pela garupa em
um dos corcovos, e jungido ou antes, enrolado ao moirão. Preso assim
da cabeça e dos quadris, ficou tolhido de todo o movimento; mas um
tremor convulso percorria-lhe o corpo, e a polpa da narina trepidava com as
baforadas do hálito ardente, que se coalhavam na fria temperatura da
manhã como frocos de fumaça.
Em um ápice estava a égua arreada. Eram a cincha, o peitoral
e as rédeas, feitos de couro cru, que lá chamam guasca, e depois
de seco resiste ao aço.
— Quem vai, gente? perguntou um da roda.
Ninguém respondeu.
— Esfriou-lhes a gana! Exclamou o chileno com riso motejador.
— Eu cá estava à espera dos senhores para não
dizerem que lhes tomava a mão, disse afinal o paraguaio. Visto ninguém
querer, vamos nós bailar, rapariga.
— Nada, o amigo que primeiro apostou, deve ter a dianteira. Não
é, senhores?
— Pois decerto.
— Então, perguntou o paraguaio dirigindo-se ao chileno: o animal
é de quem montar. Está dito?
— E escrito.
— Não há mais arrepender?
— Palavra de um guasca. Arrebenta, mas não arrepende.
— Bravo! exclamaram em roda.
Para ter jeito de montar, afrouxou o paraguaio o laço que prendia
os quartos do animal ao tronco; e ajustando as rédeas, pôs o
pé na soleira do estribo.
Imediatamente aos olhos dos campeiros atônitos passou uma coisa subitânea,
confusa e estrepitosa; uma espécie de turbilhão para o qual
só há um termo próprio.
Foi uma erupção.
Abolara-se a égua, como a serpente quando se enrosca para arremessar
o bote. Retraiu-se o flanco sobre os quadris agachados, enquanto a tábua
do pescoço arqueou dobrando a cabeça ao peito intumescido. De
súbito, esse corpo que se fizera bomba, estourou. Espedaçados,
voaram os arreios pelos ares e o paraguaio, arremessado pelos cascos do animal,
rolava no chão.
— Irra! gritou o invernista.
Viram os campeiros desenvolver-se daquele turbilhão de pó
uma forma elegante e nervosa que relanceou por diante deles estupefatos. A
égua desaparecera; mas ouvia-se ainda o estrépito cadente do
rápido galope.
VI – A BAIA
Calmo na aparência, mas abalado no ânimo, assistira o brasileiro
à cena anterior, encostado à pilastra do alpendre.
— Que eguazinha, hein, Manuel Canho? disse o dono da pousada aproximando-se.
Respondeu o rio-grandense com um sorriso, levantando os ombros desdenhosamente.
— Não sabem levá-la.
Chegava no entanto o chileno, muito contente de si, a galhofar com a roda
dos companheiros, entre os quais vinha derreado e coberto de poeira o gabola
do paraguaio.
Manuel caminhou direito a D. Romero.
— Tenho dez moedas nesta guaiaca, disse ele erguendo a aba do ponche,
quer o senhor recebê-las pela égua?
— Por dinheiro algum a vendo; mas se tanto a cobiça o amigo,
por que não a leva de graça? Basta montá-la, retorquiu
o chileno com ironia.
— Então sustenta a aposta?
— Está entendido.
— Mande tocar o animal, Perez, disse o brasileiro voltando-se para
o dono da locanda.
Os outros olharam surpresos para Manuel Canho; embora não conhecessem
qual a habilidade do brasileiro na gineta, era tal a façanha, que todos
à uma duvidaram do bom resultado. Pasmos com o arrojo do gaúcho,
e ainda mais com a confiança e singeleza de seu modo, se preparavam
para assistir a segundo trambolhão, e rir à custa do rio-grandense,
como tinham rido à custa do paraguaio.
Posto cerco ao animal, os peões conseguiram depois de alguns esforços,
tocá-lo para o gramado.
— Basta, disse Manuel, agora deixem a moça comigo.
Tinha a baia parado a alguma distância e vibrava o olhar cintilante
sobre a gente reunida então perto do alpendre. Suspensa na ponta dos
rijos cascos, longos e delgados, de cabeça levantada, cruzando a ponta
das orelhas finas e canutadas, com o pêlo erriçado e a cauda
opulenta a espasmar-se pelos rins, parecia o animal prestes a desferir a corrida
veloz.
O Canho adiantou-se alguns passos, cravando o olhar na pupila brilhante
da baia, ao passo que soltava dos lábios um murmurejo semelhante ao
rincho débil do poldrinho recém-nascido, quando busca a teta
materna. No semblante rude e enérgico do moço gaúcho
se derramava um eflúvio de ternura.
Ao doce murmurejo, as orelhas do animal titilaram com ligeiro estremecimento,
enroscando-se como uma concha, para colher algum som remoto, esparso no ar.
Fita no semblante de Manuel a vista ardente e sôfrega, dir-se-ia que
a inteligente égua interrogava o pensamento do homem e queria compreendê-lo.
À medida que ela inalava o fluido magnético do olhar do gaúcho,
uma expressão meiga e terna se refletia na pupila negra. Serenava a
braveza e cólera acesas na próxima luta. O pêlo riçado
ia-se aveludando, as ranilhas de suspensas pousavam sobre a relva, enquanto
os flancos clássicos, alongando-se, perdiam a torção
dos músculos, retraídos para o salto.
Lentamente, a passo e passo, aproximou-se o gaúcho, até que
pôde estender-lhe a mão sobre a espádua. A égua
arisca arrufou-se de novo. Rápido foi o assomo; outra vez soara a seu
ouvido, mais terno e plangente, o débil ornejo, ao tempo que a mão,
instrumento e condutor d’alma humana, alisava-lhe a anca e a selada
com um doce afago.
Estava o generoso bruto aplacado e calmo, mas ainda não rendido.
Cingiu-lhe Manuel o colo garboso com abraço de amigo, e encostou-lhe
na cabeça a face. Os olhos de ambos se embeberam uns nos outros e se
condensaram em um mesmo raio, que fluía e refluía da pupila
humana à pupila eqüina.
Que palavras misteriosas balbuciavam os lábios do gaúcho ao
ouvido do indômito animal, com a mão a titilar-lhe os seios,
e os olhos a se engolfarem no horizonte límpido por onde se dilatavam
os pampas?
O bruto entendia o homem. Quando Manuel aspirou as baforadas da fria rajada
que vinha do deserto, a égua espreguiçou o lombo, recurvando
o pescoço para estreitar o gaúcho; e um relincho de alegria
arregaçou-lhe o beiço.
Em profundo silêncio assistiam os companheiros ao colóquio
do bruto com o homem. Essa luta da razão com a força é
sempre eloqüente e admirável; aí patenteia-se o homem,
rei da criação: o triunfo não pertence unicamente ao
indivíduo, mas à espécie.
Vendo Manuel, depois de repetidos afagos, passar a ponta do cabresto pelo
pescoço do animal, os campeiros tomaram fôlego. Seus olhares
se cruzaram, transmitindo uns a outros a expressão da própria
surpresa, e buscando o sinal da alheia. O pensamento, que assim flutuava nesses
olhares, reproduzia-se a trechos em exclamações breves e entrecortadas:
— Então?
— É verdade?
— Quem diria?
— Monta?
— Ele, parece…
— Também creio.
— Nunca pensei.
— É de pasmar.
— Só mandinga!
Atento aos gestos de Manuel, o chileno não tirava os olhos do ponto.
Ouvindo os ditos dos companheiros, retorquiu com despeito:
— Até montar, ainda há que ver.
Com efeito a baia recusava entregar o focinho ao cabresto. Encrespando de
novo o pêlo, empinou-se para soltar o galão, e arremeter pelo
pasto. Já as patas repeliam o chão, e o talhe da égua,
lançado como uma seta, perpassava nos ares.
— Não dizia! exclamou D. Romero com ar de triunfo, voltando-se
para a roda.
A resposta foi uma exclamação estrepitosa, que prorrompeu
dos lábios dos companheiros:
— Bravo!
Quando o vulto esbelto relanceava por diante dele, o Canho, com incrível
ligeireza, salto no espinhaço da égua, que lá se foi
a escaramuçar pelo campo, gineteando graciosamente e vibrando os ares
com nitridos de prazer.
Depois de algumas voltas, quis o rapaz trazê-la ao terreiro, mas encontrou
resistência, que depressa venceu. Amaciando-lhe as finas sedas da clina
com a mão direita, se debruçou ao pescoço para abraçá-la.
O inteligente bruto, de seu lado, voltou o rosto para ver o semblante do gaúcho,
e talvez agradecer-lhe sua carícia.
Domada, ou antes, rendida ao amor e à gratidão, a baia aproximou-se
do terreiro sacando com gentileza e elegância, como faria o mais destro
corcel em luzida cavalhada.
— Ganhou o animal, amigo, mas assim eu não o queria decerto.
— Que pretende o senhor dizer com isso?
Era de Manuel a pergunta; começada longe, acabou em face do mascate,
onde veio cair de um salto o irado gaúcho, que se arremessara de cima
do animal, apertando na cinta o cabo da faca.
O chileno empalideceu de leve:
— Não se afronte, que não há razão. O que
eu disse, repito. A égua abrandou de repente, ou por estar cansada,
ou por outro qualquer motivo: o caso é que não está como
dantes.
Vexou-se o Canho de seu arrebatamento, reconhecendo que não havia
realmente motivo para tanto. Mas sentia ao mesmo tempo que a presença
do chileno produzia nele uma desagradável impressão.
As súbitas antipatias são incompreensíveis; é
este um mistério d’alma, que a ciência ainda não
conseguiu perscrutar. Parece que há no magnetismo animal, como na eletricidade
da atmosfera, um fluido de repulsão e um fluido de atração;
um pólo para o amor e outro para o ódio.
Foi sem dúvida sob a influência deste último que uma
aversão irresistível se estabeleceu logo do brasileiro para
o chileno. Recente era o encontro; Manuel o tinha visto pela primeira vez
há cerca de uma hora; poucas palavras trocara com ele, e não
obstante parecia-lhe que desde muito tempo o detestava.
Entretanto a figura de D. Romero era mais própria para despertar
sentimentos benévolos. Mancebo de vinte e cinco anos, tinha um semblante
prazenteiro; o negro bigode e a pêra destacavam-se bem sobre uma tez
alva e rosada. Era mediana a estatura, mas de um porte airoso, embora com
excessivo donaire que afeta geralmente a raça espanhola.
Trajava o mancebo com a garridice de cores muito apreciada pela gente da
campanha. Lindo pala chileno, com listras de amarelo e escarlate, caía-lhe
dos ombros até pouco abaixo da cintura. Pela abertura da gola de veludo
com abotoadura de ouro, via-se o peito da camisa de fina Irlanda. As botas
eram de couro de vicunha, tão bem curtido que imitava a camurça.
Trazia um chapéu de palha alvo com o linho de que parecia tecido; esse
primor lhe havia custado oito onças em Santiago.
VII – O AMANSADOR
À admiração que provocara a façanha do gaúcho
sucedera certo menoscabo. As multidões são assim; ondas batidas
por dois ventos, o entusiasmo e a inveja.
— A égua já foi amansada, não tem que ver! dizia
um da roda.
— Aposto que fugiu há tempos de algum pasto, acudiu outro.
— Também vou para aí. A fúria não foi
grande.
— Decerto! Queria-se ver a força da gineta!
— Assim qualquer faria.
Voltou-se Manuel já de ânimo sereno, designando o animal com
um aceno da mão estendida:
— Pois a égua aí está, senhores. Quem quiser que
a monte. Se é tão fácil!
Alguns dos peões se adiantaram para outra vez tentarem cavalgar o animal:
não deram, porém, dez passos. Mal lhes pressentiu o intento,
a égua, volvendo sobre as mãos de um tranco, e upando as ancas,
arremessou tal cascata de coices, que afugentou os fanfarrões, obrigados
a buscarem refúgio no alpendre.
Então a formosa besta correu para junto do gaúcho que estava
arredio, e começou a roçar por ele o pescoço como se
o afagasse. Sossegou-a ele amimando-lhe o pêlo dourado; e voltando-se
para os companheiros, interpelou-os com ar de mofa:
— Então, não há quem queira?
Nenhum respondeu: falavam entre si.
— O homem tem partes com o diabo! Cruzes!
— O caso é que ninguém sabe donde saiu.
Entretanto Manuel tinha de novo montado, e desta vez, com toda pachorra,
sem que a égua fizesse o menor movimento de impaciência. Antes
mostrava ela grande contentamento de obedecer ao gesto do gaúcho.
— Guarde a égua, sem medo, Manuel Canho, que bem a ganhou,
disse o dono da pousada.
O brasileiro fez um gesto de assentimento; e aproximou-se do alpendre.
— Esta é a gineta que eu uso e aprendi de meu pai. Ela faz
do cavalo um amigo e não um cangueiro. Mas também, senhores,
se o bicho é mau, da casta que for, de dois ou de quatro pés,
fiquem certos que no continente também os sabemos ensinar. Caso haja
por aí algum deste lote, minha gente, botem-no para cá e verão.
Cortejou com o chapéu. Os da roda não sabiam que fazer; se
deviam zangar-se ou chasquear.
— Amigo Perez, disse no entretanto o gaúcho; por favor tenha
mão aí nos arreios enquanto volto.
— Então vai longe?
— Conforme! Vou levar esta moça que está com saudades!
Coitada… respondeu o gaúcho amimando o colo do animal.
Passou a égua a tronqueira do pasto; foi transpô-la e desfechar
em uma corrida veloz, à desfilada. Com pouco sumiu-se nos longes do
horizonte. Por algum tempo ainda ouviu-se o vibrante e generoso henito que
estridava nos ares, com o clangor argentino de um clarim.]
Simples era o segredo da proeza do gaúcho. Como todos os outros picadores
ali presentes na estância, conhecera do primeiro lance de vista, que
a égua estava parida de próximo. Esta observação,
a que não deram os mais nenhum valor, produziu nele profunda impressão.
Sua alma comovida por sentimentos afetuosos pôs-se em contato com
o instinto do animal; operou-se a transfusão; os íntimos impulsos
da recém-mãe se refletiram no coração terno do
mancebo. Compreendeu o desespero, a saudade bravia pelo filho abandonado e
a cólera terrível contra aqueles que a tinham arrebatado às
doçuras da amamentação.
Quando nitria a égua, fitando nele os olhos ou tomando o faro da
campanha, era como se lhe falasse.
Desde criança lidava Manuel com animais; fora esse o ofício
de seu pai; não havia em toda a campanha do Rio Grande amansador de
fama que se comparasse com o João Canho. o que mais se admirava no
moço gaúcho não era contudo a destreza, na qual excedia
de muito ao pai; porém sim a dedicação que ele tinha
à raça hípica.
Havia entre o gaúcho e os cavalos verdadeiras relações
sociais. Alguns faziam parte de sua família; outros eram seus amigos;
aos mais tratava-os como camaradas ou simples conhecidos.
Com os irmãos e amigos vivia em perfeita intimidade; consentia que
lhe roçassem a cabeça pelo ombro, ou lambessem-lhe a face. Muitas
vezes comiam em sua mão; andavam constantemente soltos; não
havia cabresto nem soga para eles; era corcéis livres.
Tinham esses membros da família suas vontades, que o chefe respeitava
por uma justa reciprocidade. Se acontecia agastar-se algum, e a consciência
de Manuel o acusava, era ele quem primeiro cedia; e assim faziam-se as pazes.
Aos camaradas não consentia o gaúcho aquelas familiaridades;
ao contrário, os tratava com certa reserva. Saudavam-se pela manhã
ao despontar do dia; e à noite, na ocasião de recolher. Comumente
se encontravam na hora da ração: comiam juntos, os brutos no
embornal, o homem na palangana.
Na opinião de Manuel o cavalo e o homem contraíam obrigação
recíproca; o cavalo de servir e transportar o homem; o homem de nutrir
e defender o cavalo. Se um dos dois faltasse ao compromisso, o outro tinha
o direito de romper o vínculo. O homem devia expulsar o cavalo, o cavalo
devia deixar o homem.
Só em um caso o Canho castigava o ginete brioso: era quando o bruto
se revoltava. Então havia luta franca e nobre; os dois contendores
mediam as forças, e o mais hábil ou o mais vigoroso vencia o
outro. Na sua adolescência, até aos quinze anos, fora o gaúcho
batido muitas vezes; mas já ia para sete anos que tal coisa não
lhe sucedia.
Fora desse caso do desafio, o rebenque e as chilenas eram trastes de luxo
e galanteria. Somente usava deles em circunstâncias extraordinárias,
quando era obrigado a montar em algum cavalo reiúno e podão,
desses que só trabalham como o escravo embrutecido à força
de castigo.
Tinha o gaúcho inventado uma linguagem de monossílabos e gestos,
por meio da qual se fazia entender perfeitamente dos animais. Um hup gutural
pungia mais seu cavalo do que a roseta das chilenas; não carecia das
rédeas para estacar o ginete à disparada: bastava-lhe um psiu.
Enfim o cavalo era para o gaúcho um próximo, não pela
forma, mas pela magnanimidade e nobreza das paixões. Entendia ele que
Deus havia feito os outros animais para vários fins recônditos
em sua alta sabedoria; mas o cavalo, esse Deus o criara exclusivamente para
companheiro e amigo do homem.
Tinha razão.
Se o homem é o rei da criação, o cavalo serve-lhe de
trono. Veículo e arma ao mesmo tempo, ele nos suprime as distâncias
pela rapidez, e centuplica nossas forças. Para o gaúcho, especialmente
para o filho errante da campanha, esse vínculo se estreita.
O peixe careca d’água, o pássaro do ambiente, para que
se movam e existam. Como eles, o gaúcho tem um elemento, que é
o cavalo. A pé está em seco, faltam-lhe as asas. Nele se realiza
o mito da antigüidade: o homem não passa de um busto apenas; seu
corpo consiste no bruto. Uni as duas naturezas incompletas: este ser híbrido
é o gaúcho, o centauro da América.
Contavam muitas coisas a respeito de Manuel Canho.
Não passava ele por lugar onde visse um cavalo enfermo ou estropiado
que se não apeasse, fosse embora com pressa, para o socorrer. Sangrava-o,
se era preciso; cauterizava-lhe as feridas; e até quando já
o animal se não podia erguer, ele o arrastava para a sombra e ia buscar-lhe
água no chapéu em falta de outra vasilha.
Tinha comprado alguns cavalos que os donos arrebentavam de mau trato, unicamente
para lhes dar repouso e assegurar-lhes velhice sossegada. Por causa de um
destes protegidos seus, que um vizinho derreou, teve ele uma briga feia que
felizmente acabou sem desgraça. O vizinho de uma satisfação
completa, alforriando, a pedido do gaúcho, um reiúno que tinha
feito a campanha de 1812.
Não via o Canho castigarem barbaramente um animal, sem tomar o partido
deste. Por isso afirmavam que era ele o gaúcho mais popular entre os
quadrúpedes habitantes das verdes coxilhas banhadas pelo Uruguai e
seus afluentes, o Ibicuí e o Quaraim.
Em qualquer ponto onde estivesse, precisando de um cavalo, não carecia
de o apanhar a laço: bastava-lhe um sinal e logo aparecia o magote
alegre a festejá-lo, oferecendo-se para seu serviço. O trabalho
era escolher e arredar os outros, pois todos queriam prestar-se, como seus
amigos que eram, uns por gratidão, outros por simpatia.
Quando partia, o acompanhavam algumas quadras, curveteando a seu lado, como
demonstração de amizade. Afinal paravam para segui-lo com a
vista, até que sumia-se por detrás das coxilhas.
Estâncias havia em que anunciava-se a chegada de Manuel pelo relincho
estridente, que é o riso viril e sonoro do cavalo. Era o gaúcho
recebido e afagado na tronqueira pelos camaradas saudosos, que vinham apresentar-lhe
o focinho, rifando com ciúmes uns dos outros.
Se acontece passarmos à vista da casa de algum amigo, lhe dirigimos
um olhar, dando-lhe mesmo de longe os bons-dias. Assim, contavam que os cavalos
amigos de Manuel, quando subiam o teso que ficava fronteiro à sua casa,
rinchavam de prazer, abanando a cauda com alegria.
Tais eram os contos que referia a gente da campanha. Verdadeiros ou não,
todos neles acreditavam; e até apontavam-se pessoas que tinham sido
testemunhas dos fatos.
VIII – A BARGANHA
Por sangas e coxilhas, galgando encostas e transpondo barrancos lá
vai a baia campos afora.
É um adejo essa corrida; tem a velocidade dos surtos e ao mesmo tempo
a serenidade do remígio de uma águia. Não se ouve o estrupido
dos cascos na terra, nem parece que tocam o chão. Nesse deslize rápido
e suave, sente o cavaleiro despontar-lhe asas ao corpo, enquanto o pensamento,
docemente embalado, colhe os vôos e adormece.
Descambava o sol.
Fez alto Manuel à beira de um arroio, onde havia frescura d’água,
sombra e relva. Perto erguia-se uma choça, perdida no meio dos pampas,
como uma árvore da floresta, cuja semente veio trazida pelo vento.
A égua estava ardendo por esticar os músculos e espojar-se
na grama.
— Sossegue, moça! disse o gaúcho sorrindo.
Com um molho de ervas secas esfregou-lhe o pêlo banhado de copioso
suor; e só depois disso, consentiu que ela se rolasse pelo capim e
estancasse a grande sede, não de um fôlego, mas por diversas
vezes. A impaciência materna era assim moderada pela inteligente solicitude
do gaúcho.
Enquanto o animal retouçava aparando os tufos da grama viçosa,
que vestia as margens do arroio, tratou o gaúcho de refazer as forças.
A choça estava deserta e a porta presa apenas por uma correia. No
interior, composto de uma só quadra, havia de um lado a cama feita
de estiva e forrada de pelegos; do outro o brasido onde assava uma grande
naca de charque, suspensa em um espeto. Conhecia-se que a ausência da
pessoa que aí habitava era recente, pois a carne apenas estava tostada
na parte exposta ao fogo.
Entrou Manuel sem hesitação. No deserto, uma habitação
não é mais do que um pouso. Alguém o levanta; o peão
de alguma estância que por aí pousou; um caçador talvez,
se não um evadido da sociedade. E o rancho lá fica abandonado;
aquele que aí chega depois é hóspede, como o outro que
há de vir mais tarde.
Nessa vasta solidão, onde o homem, ludíbrio da natureza, não
se possui a si mesmo, a propriedade não é mais do que a ocupação.
Nunca tivera o gaúcho ocasião de refletir sobre essa comunidade
do deserto, que entretanto agora ele compreendia por uma intuição.
Com a consciência de seu direito, tirou do espeto a carne já
assada e comeu, tendo o cuidado de substituí-la por outro pedaço,
que separou das mantas estendidas nas varas da palhoça.
Finda a colação, deitou-se para descansar um instante. Decorrido
algum tempo, ouviram-se passos e assomou no vão da porta o vulto de
um homem robusto. Dos largos ombros pendiam-lhe, á guisa de abas de
ponche, dois pelegos de carneiro; tinha a cabeça descoberta, e não
trazia mais roupa do que uma tanga de velha baeta encarnada.
Vestia a parte nua do corpo, cara, braços e pernas, um pêlo
ríspido e fulvo, semelhante ao do caititu. Na mão direita empunhava
um chuço, cuja haste grossa e faceada servia ao mesmo tempo de vara
e de clava. Na esquerda suspendia pelas quatro patas, como se fosse algum
coelho, o tigre que matara poucos momentos antes.
Correu o desconhecido os olhos pelo interior, prescrutando o que passara
em sua ausência. Vira os passos do gaúcho e do animal nas margens
do arroio.
— Deus o salve, amigo! disse Manuel erguendo-se.
— Para o servir, respondeu o desconhecido.
Era rouca e áspera a voz, porém articulada. No primeiro instante
pareceu estranho que saísse fala humana daquela boca hirsuta, como
o focinho de uma fera.
— Por que não se deita? perguntou ao gaúcho com rispidez.
Atirando a caça à banda, comeu o desconhecido a naca de carne,
ainda crua, que estava sobre o braseiro. Para beber água foi ao arroio
e estendeu-se de bruços pela margem. De volta ao rancho, aproximou-se
dos pés do leito onde o Canho estava deitado; e puxando um dos pelegos
que o forravam, estirou-o no chão e deitou-se.
Nesse momento meteu a égua a cabeça pela porta. Dando com
o gaúcho sentado, fitou nele os olhos, e começou a ornejar baixinho,
como para chamar a atenção do companheiro. Acudiu-lhe Manuel
erguendo-se.
Que alegria ao vê-lo aproximar-se! Que afagos trocados entre os dois
amigos! A Morena alongava o pescoço, estendia o focinho para os longes
da campina; e roçava a espádua pelo gaúcho, vergando
faceiramente o ombro, como se o convidasse a montar e partir.
— Ainda não, Morena; coma e descanse primeiro, dizia Manuel,
amimando-lhe o colo; há de ver o pequerrucho, mas a seu tempo!
Durante as doze horas de conhecimento que tinham, já conseguira o amansador
fazer-se compreender perfeitamente da baia. Era a égua um inteligente
animal; e depressa aprendera a linguagem pitoresca e simbólica inventada
pelo gaúcho para suas relações sociais com a raça
eqüina.
Puxando levemente a baia pela orelha, obrigou-a Manuel a pastar um trevo
gordo e apetitoso que estofava as fendas de uma lapa. A Morena quis recalcitrar,
mas cedeu submissa ao olhar imperioso do gaúcho.
Por uma terna solicitude sofreava Manuel os impulsos do amor materno, poupando
as forças da égua, que na impaciência de ver o filho,
e talvez salvá-lo, podia matar-se. Tão comum é essa sublime
insensatez na criatura racional, que não pode admirar no bruto!
Voltando à palhoça, deu o gaúcho com o caçador
que o observava da porta.
— Quer barganhar a égua?
— Não! respondeu Manuel com rispidez.
Esta proposta o desgostou.
— Dou-lhe em troca…
Volveu o homem o olhar à sua pessoa e o devolveu em torno, buscando
um objeto que servisse para a barganha proposta: descobriu a alguns passos,
meio enterrada, uma velha chilena de ferro, torta e desirmanada.
— Dou-lhe em troca esta chilena!… Não faça pouco.
A sua de prata, ou de ouro que fosse, não valia tanto. Saiba que pertenceu
ao famoso capitão Artigas, cavaleiro como nunca houve no mundo, nem
há de haver.
Sorriu-se Manuel.
— Vale muito, nem digo o contrário. Mas a égua não
me pertence.
— De quem é então?
— De ninguém. É livre.
— Está zombando?
— Dou-lhe minha palavra. É livre, tão livre como eu, disse
o gaúcho com firmeza.
— Bem: neste caso, eu a tomarei para mim.
— Com que direito?
O caçador grunhiu uma espécie de riso, que insuflou-lhe as ventas
largas.
— Vê aquela onça? Esta manhã era mais livre do
que a égua.
— Perca a esperança, que a égua não há
de ser sua.
— Por que então?
Fitando no caçador um olhar límpido e sereno, respondeu o gaúcho
com pausa:
— Porque eu não quero.
— E como se chama você, homem?
— Manuel Canho, para o que lhe aprouver.
— Pois digo-lhe eu, Pedro Javardo, que a égua há de
ser minha.
— E eu juro, palavra de um brasileiro, que se tiver o atrevimento
de pôr-lhe a mão, hei de montá-lo como um porco-do-mato
que é, para cortá-lo com estas chilenas.
— Está você falando sério?
— Experimente.
— Veja em que se mete. Ainda não achei homem que me fizesse
frente.
— Pois achou um dia.
— Tenho eu força neste braço como um touro.
— Touros costumo eu derrubar todos os dias no campo.
— Então não se desdiz?
— Tenho mais que fazer do que aturá-lo. Vou longe e com pressa.
Carregando o chapéu na testa, passou o gaúcho com arrogância
por diante do caçador; atirando-lhe aos pés uma moeda de prata,
entrou no rancho, e cortou um pedaço de carne para a viagem.
Ao sair não viu mais o caçador. Conhecedor, porém,
da índole pérfida desses abutres de espécie humana, habitantes
do deserto, redobrou de vigilância.
Não tinha dado dois passos, quando Pedro, oculto numa ramada, se
arremessou contra ele, com um salto de tigre. Estava, porém, o gaúcho
prevenido, e desviou-se a tempo; sacando a faca esperou o inimigo de frente.
A esse tempo a baia aproximou-se; quando Manuel ia montar, o caçador,
já armado com o chuço, investiu furioso.
IX – AMIGAS
Sentindo os joelhos do gaúcho a lhe cingirem os rins, a égua
disparou, sibilando nos ares como uma seta.
Rangeram os dentes de raiva ao Javardo; metendo a mão por baixo do
ponche desenrolou da cintura um laço, que num ápice girou-lhe
duas vezes em torno da cabeça, e foi arremessado longe com força
desmedida.
A Morena estancou de repente. O laço a colhera pelos peitos. Procurou
Manuel na ilharga sua faca para cortar a trança de couro, que prendia
o brioso animal, porém, não a achou; com a pressa de montar
resvalara da cinta.
Entretanto o caçador com os pés fincados no chão, fazia
grande esforço para conter o ímpeto do animal, que ficara como
suspenso na corrida veloz, com as mãos erguidas e unicamente apoiada
sobre os cascos posteriores.
— Hup, Morena! gritou Manuel debruçando-se sobre o pescoço
da égua.
A baia retraiu-se como o gato selvagem quando prepara o salto. Não
decorreu um instante; o corpo robusto do caçador, arrancado como um
cedro que o pampeiro arrebata, rolou pela encosta. Assim arrastado, bateu
acaso no toco de um pinheiro e pôde trançar nele as pernas.
Bruscamente sofreada, a égua estacou de novo, mas para colher as
forças e arrancar mais impetuosa. A trança do laço estalando
foi açoitar a cara de Pedro que rugiu como um touro.
Manuel voltou ao lugar onde lhe caíra a faca para a apanhar. Outra
vez a corrida veloz da Morena fendeu o imenso deserto, que se dilata pelas
margens do Paraná.
Levanta-se a lua.
O vulto do astro se reflete nas águas de um banhado. Entre o céu
e a terra flutuam tênues vapores que os raios da lua nova infiltram
de uma luz cerúlea e rociada. Sob essa gaza suave e transparente se
desdobra, como um lençol, a vasta planície.
Duas vezes durante a noite apeou Manuel para dar fôlego ao brioso
animal. A mãe sôfrega por chegar relutava sempre; alongando o
pescoço para o horizonte, soltava um relincho penetrante e ansiado.
Na sua impaciência, abandonava por momentos o gaúcho e avançava
pelo campo fora. Mas voltava logo arrependida e submissa.
Por que o animal selvagem e livre não corria onde o chamava o instinto
com tamanha veemência? Tinha ele necessidade do homem, carecia do auxílio
do amigo? ou uma força desconhecida o prendia à vontade superior
que o tinha domado?
Quem o pode saber?
Apesar de seu desejo de satisfazer o impulso da baia, Manuel usava da severidade
necessária para impedir um esforço que podia ser fatal. Ele
sabia que o teor da paixão é sempre o mesmo no homem, como no
bruto.
Ao alvorecer, o deserto muda de fisionomia: perde a expressão harmoniosa
e suave, para tomar um aspecto agreste. O senho é torvo. Há
nas aspérrimas devesas, que irriçam agora o horizonte, traços
de um semblante carrancudo.
Já não ondulam docemente, espreguiçando pelo campo
em brandos contornos, as lindas colinas que a imaginação pitoresca
dos gaúchos chamou coxilhas, ao recordar a curva sedutora da moreninha.
Também não se retraem mais com leve depressão os vales
macios que semelham o regaço da donzela.
As formas da campanha se convulsam agora. São belas todavia; ainda
se percebem alguns contornos maviosos; mas pertencem a um corpo rijo e inteiriçado.
Grupos de pequenos penhascos vestidos de uma vegetação ingrata
e sáfara anunciam essa fase do deserto: são como as primeiras
enervações da natureza dos pampas. Sucedem algumas rampas áridas
incrustadas de grandes seixos dispersos, estilhaços de primitivas explosões.
Afinal levantam-se grandes molhos de esguios alcantis, cobrindo a lomba dos
cerros, como híspidas cerdas.
Quando atingiu Manuel as orlas crestadas da bronca região, um bando
de urubus, vindo de remotos sítios, voava na direção
do cerro.
Descobriu-os a égua; soltando um gemido fremente e aflito redobrou
de velocidade. No desespero do temor que a arrastava, parecia querer lutar
de rapidez com o abutre. Aspirava o ar com sofreguidão, coando no olfato
as mínimas emanações trazidas pela brisa. De vez em quando
vibrava um henito agudo e estridente, como o rugido da leoa; imediatamente
estendia as orelhas para recolher algum tênue som remoto, em resposta
ao seu ofegante apelo.
Chegou enfim.
A meio da fragosa encosta havia um largo pedestal de rocha, sobre o qual
se erguiam como grupos de colunatas, algumas touças de palmeiras.
Quase ao rés-do-chão abrira o granito uma fenda estreita;
dentro via-se alguma relva e plantas que sem dúvida povoavam a caverna.
Os urubus piavam, esvoaçando de rama em rama.
Foi aí, que a égua arquejante esbarrou a corrida; não
se podendo mais ter sobre os pés caiu de joelhos; metendo o focinho
pela fenda, arrancou do peito um clangor inexprimível. Ia de envolta
nesse brado o nitrido argentino, que é o grito de júbilo do
cavalo com o rincho áspero e brusco, lamento de uma dor súbita.
Não cessava a mãe aflita de farejar o interior da caverna,
e lastimar-se ornejando submissamente. Esse primeiro instante foi só
do filho, que ali estava, ainda vivo sim, mas prestes a exalar o último
alento. Não se lembrou de nada mais; nem dela, nem mesmo do amigo generoso
e dedicado que a trouxera. Pouco se demorou porém essa atonia.
Ergueu a fronte e pôs no gaúcho olhos ternos e suplicantes,
ao passo que a pata copada e rija batia a fenda da rocha; consolou-a Manuel
afagando-a com a mão e o doce murmurejo que falava ao coração
materno. Nas farpas da pedra, gretada pela parte interior, estavam grudadas
por visgo branco réstias finas e macias de um pêlo alazão:
da parte exterior, porém, via-se pelo resbordo, molhos de fios alvacentos.
Levantara-se a Morena e pela rampa íngreme subira ao respaldo do
penhasco. Ali estava entre os troncos das palmeiras, sob um arbusto embastido,
a cama de folhas e grama, que servira de berço ao filho. Entre o fino
capim, sobre a crosta argilosa do rochedo, descobriam olhos vaqueanos o rastro
de um casco pequeno e ainda vacilante, a julgar pela leve depressão
da terra. Baralhado com este o rastro maior do puma, seguindo um trilho de
sangue na direção da selva. Em todo o circuito, desde a fenda
até à mata, o chão estava profundamente escarvado pelos
cascos da égua.
Para o fundo, o terrado declinava e abrupto sumia-se por funda barranca;
era aí o ventre da caverna a que a fenda servia apenas de glote. Acompanhando
o movimento do animal que em risco de precipitar-se alongava o pescoço,
sondava Manuel as profundezas da gruta.
Nesse momento ouviu-se um som débil e flente que vinha da fenda.
A mãe aflita correu para ali e tornou a chamar ansiosamente o filho.
Entanto os ramos se afastavam e outra égua, de pêlo tordilho,
se aproximou, seguida do seu poldrinho; viera trazida pelo rincho da companheira.
Eram amigas; abraçaram-se cruzando o pescoço e acariciando-se
mutuamente as espáduas. Depois de trocadas estas primeiras carícias,
a recém-chegada começou uma série de movimentos entrecortados
de rinchos que deviam ser a narração eloqüente dos sucessos
anteriores. A Morena atendia imóvel.
Presenciou o gaúcho do alto aquele terno colóquio, que veio
completar a notícia colhida na confissão da baia e na investigação
do terreno. Sabia agora toda a verdade do triste acontecimento.
Havia oito dias que tivera a Morena um lindo filho alazão. Uma tarde,
quase ao escurecer, o puma assaltara a malhada do poldrinho, que recuando
intrépido para fazer face ao inimigo, escorregara pela rocha e caíra
na gruta. Acudira a mãe; perseguiu o animal carniceiro, e lhe fendeu
o crânio com as patas. Quando fazia os maiores esforços para
tirar o filho, foi ali cativa do chileno, atraído pelos rinchos angustiados.
Na sua ausência conseguira o poldrinho galgar até à fenda
e introduzir por ela o focinho. Foi então que a tordilha, condoída
do órfão, se roçara com a lapa a fim de pôr-lhe
as tetas ao alcance. Amamentou-o assim alguns dias; mas os torrões
argilosos, onde pisava o animalzinho, cederam aprofundando-o pela caverna.
Lá devia estar, pois, inanido, a soltar o último alento.
X – MAMÃE
Sem hesitar penetrou Manuel na gruta.
Era difícil a entrada, pela angústia da passagem, que formava
a laringe da caverna; a garganta já era estreita e sinuosa; mas ali
duas cartilagens do rochedo cerravam o canal. A saliva que segregavam as porosidades
calcárias do granito, umedecia todo esse tubo, e o forrava de um muco
limoso.
Compreendia-se bem como a caverna devorara tão rapidamente o poldrinho.
A imitação da jibóia o envolvera da baba, para que resvalasse
ao longo da garganta. Mais uma semelhança que mostra o padrão
uniforme de cada região da terra. As monstruosidades da natureza animada
têm um ar de família com as monstruosidades da natureza inerte.
O elefante, o maior quadrúpede, é filho do Himalaia. A sucuri,
a maior serpente, é natural do Amazonas. O pássaro gigante habita
os cimos da América sob o nome de condor, e os da Ásia sob o
nome de roque.
Depois de longos e contínuos esforços, conseguiu o rapaz arrancar
da gorja do rochedo uma das guelras. Ficaram-lhe as mãos ensangüentadas;
mas nem reparou em tal coisa. Introduziu a cabeça, logo após
os ombros e surdiu enfim no ventre da caverna. O poldrinho arquejava a um
canto. Imediatamente o suspendeu com ternura e mimo, cingindo-o ao seio, para
transmitir-lhe o calor vital. Mal gemera a cria, apareceu na entrada a ponta
do focinho da Morena.
Em risco de estrangulação a mísera mãe se alongara
pela gruta a dentro, soluçando e rindo; soluçando pelo filho
moribundo, e rindo pelo filho ainda vivo; duplo sentir e avesso, que somente
se explica pelo fluxo e refluxo do oceano, a que chamam coração.
Ergueu Manuel o poldrinho, que a égua segurando pelas clinas tirou
fora da gruta e pousou sobre a relva, deitando-se para o conchegar a si.
Em semelhante situação, a mulher mãe embebia a criança
de lágrimas e beijos, e a cerrava ao seio para aquecê-lo ao seu
contato. A égua mãe lambeu o filho e o cobriu todo de uma baba
abundante e vigorosa. No fim de contas a carícia materna é a
mesma no coração racional, como no coração animal;
uma extravasão d’alma que imerge o filho e uma influição
do filho que se embebe n’alma.
A mulher chora, soluça, beija e abraça; a égua lambe,
e nesse único movimento há a lágrima, o soluço,
o ósculo e o amplexo: o amplexo da língua, que é o abraço
inteligente do animal.
Enquanto assim procurava a baia reanimar o poldrinho, estavam contemplando-a,
mudos e igualmente comovidos, o Manuel de um lado, do outro a tordilha. Esta
deitava sobre a amiga uns olhares longos; de vez em quando castigava a travessura
de seu poldrinho, arredando-o de si, quando se ele chegava para acariciá-la.
Não queria ela, a mãe feliz, dar àquela mãe desventurada
o espetáculo de sua alegria.
Aquecido pela baba ardente do seio materno, foi o coitadinho a pouco e pouco
recobrando o alento.
Fazendo um esforço, pôde a Morena roçar as tetas roliças
pela boca ainda imóvel do filho.
Aí interpõe-se o Manuel, que espiava esse instante. Tinha
a égua corrido cerca de vinte horas sucessivas, intercaladas apenas
de um breve repouso. O suor que pouco há alagava-lhe o corpo, ainda
perla sua roupagem macia. Arqueja ainda a vigorosa petrina, e o resfolgo é
ardente como o fumo de uma cratera.
Receia o gaúcho que esse leite agitado, não só pela
fadiga, como por abalos profundos, seja, em vez de licor vital, mortífero
veneno. Tira, pois, o poldrinho do regaço materno, apesar da relutância
da Morena, que afinal cede. Fora necessária alguma severidade; Manuel,
com o fragmento do laço, peara-lhe as mãos, obrigando-a assim
a repousar para melhor tratar depois do filho.
Tomando então o poldrinho no colo, chamou a tordilha que ligeira
acudiu oferecendo as tetas para amamentar o pobrezinho desfalecido. A primeira
sucção foi débil e intermitente; depois mais forte e
contínua. Não consentiu porém o gaúcho que mamasse
muito; e recebida a suficiente nutrição, restituiu-o à
mãe sôfrega por ele.
Caíra o poldrinho no delíquio natural depois de longa privação
de alimento; sucedeu um sono reparador, que ele dormiu no regaço e
sob os olhos da mãe. Também esta, colhendo alguns molhos de
relva fresca e nutritiva, sossegou da agitação e fadiga de tão
longa corrida.
Consentiu a tordilha então que o seu pirralho brincasse, mas longe,
para não acordar o camarada; e Manuel batendo o isqueiro chamuscou
um pedaço de charque para o almoço.
Era passada uma hora.
Abriu os olhos o poldrinho, inteiriçou os membros trôpegos,
e erguendo o curto focinho, soltou um suave ornejo, que na linguagem da natureza
exprime o eterno e sublime balbucio da criança, e na linguagem dos
homens se traduz por esta palavra-hino:
— Mamãe.
Palavra inata, que o espírito traz do céu, como traz a consciência
de sua origem. Quando Deus encarna as almas, para semear a terra, imprime-lhes
dois emblemas indeléveis: a consciência da divindade e a intuição
da maternidade; o verbo divino e o verbo humano.
Quem pode afirmar que o animal seja ateu? Os mugidos merencórios
do gado ao pôr do sol, os descantes das aves na alvorada, os uivos lastimosos
do cão durante as noites de luar, o balido das ovelhas alta noite,
sabe alguém acaso se esta é ou não a prece do filho da
natureza?
O sentimento da maternidade, esse é de uma evidência muitas vezes
humilhante para a raça humana. Em todo o corpo onde há uma réstia
de vida, reside uma voz para balbuciar o verbo humano. Desde o rugido do leãozinho
até o imperceptível estalido da larva, todo o ente gerado diz
— mãe.
Também seio, dotado de faculdade conceptiva, nenhum há que
não palpite íntima e profundamente ao eco daqueles sons. Parece
que ele conserva a sensibilidade interna do contato com o filho que gerou;
a dor, como a alegria, se comunica e transmite de um a outro por misteriosa
repercussão.
XI – ADEUS
Cabriola a Morena em volta do filho, agora de todo reanimado. Não
parece já aquela ardente natureza, cheia de paixão; tornou-se
menina; ei-la agora travessa rapariga, a saltar sobre a relva em dias de folgares.
Como alegre caracola, e atira as upas lascivas, soltando relinchos de prazer.
As dengosas moreninhas das margens do Jaguarão, não se requebram
com mais gracioso donaire, ao som da viola.
Não é só amor, paixão e culto, a maternidade;
mas também e principalmente uma reprodução da existência.
Renasce a mãe no filho, volve à puerícia para simultaneamente
com ele, a par e passo, de novo percorrer a mocidade e a existência.
Deus lhe deu essa faculdade de se desviver, para que transviva na prole; sem
isso, como seria possível à débil criatura romper os
limbos da infância?
Há duas concepções.
A primeira, material, que produz o feto: é a mais breve e a menos
dolorosa. Este parto reduz-se à dilaceração do seio quando
o rasgam as raízes da nova existência que desponta. Dores cruas,
mas inefáveis; lágrimas congeladas, mas que se diluem em júbilos
santos!
Desde que nasce o filho, logo a mãe de novo o concebe, mas dentro d’alma;
há aí um seio criador, como o útero; chama-se coração.
Dura esta gestação moral, não meses, porém anos;
os estremecimentos íntimos e os repentinos sobressaltos se transmitem;
há um cordão, invisível, que prende o coração-mãe
ao coração-filho, e os põe em comunicação.
A vida é uma só, repartida em dois seres.
Admirável solicitude da natureza! O grelo, que borbulha, rompe a
terra protegido pelas rijas cápsulas da semente. O ovo é o primeiro
berço da cria, cujo germe tem em si. Na entranha, da serpe também
está o regaço e o ninho, que recolhe a prole débil. Nenhum
animal, porém, realiza a segunda gestação, a que chamam
infância, como seja a sarigüê; o filho nasce duas vezes;
a primeira vez para a mãe; a segunda vez para si.
Semelhante à membrana que forra o seio do animal, é a solicitude
do coração da mulher e a ternura que envolve a criança,
formando um berço para a alma do filho. Por isso não há
dor que se compares ao parto do coração materno, a essa dilaceração
d’alma quando separa de si o filho já criado, que nasce enfim
para os trabalhos da vida.
Cada filho é, pois, uma nova mocidade para a mulher. A mãe
só envelhece, como a árvore, quando lhe estanca no seio a seiva,
que devia despontar em renovos e viços. Que importam as rugas do córtice
e as carcomas do tronco?
A flor é a eterna juventude; e o filho é flor.
Que lindo poldrinho o da Morena! Uma pelúcia de cor alazã,
macia como a felpa de um cetim, vestia-lhe o corpo airoso e gentil. Tinha
ainda certa desproporção das formas, que em sendo belas, como
as dele, aumentam a graça da meninice.
Afastara-se Manuel para descansar o corpo sobre a grama. Enquanto festejava
a baia seu poldrinho, sem nunca se fartar de o ver e possuir, dormiu o gaúcho
um sono breve, mas profundo e reparador. Era tarde caída quando despertou.
Voltava a tordilha, guiando as selvagens coudelarias, que vinham felicitar
a exilada pela sua boa volta aos cerros nativos. Os relinchos de prazer, as
alegres cabriolas, não tinham que invejar ao mais terno agasalho da
família que revê a irmã perdida. Se diferença houve
foi a favor dos agrestes filhos dos pampas. Nenhum se lembrou que era mais
uma fome para a comunhão. O cavalo é sóbrio e generoso.
Erguendo-se o gaúcho, dispararam os magoes, e sumiram-se por detrás
de um cerro. A baia, porém, foi ter com as irmãs e conseguiu
que tornassem. Outra vez apareceu o bando, mas parou em distância ao
sinal do chefe, soberbo alazão, cuja estampa magnífica desenhava-se
em miniatura no lindo poldrinho recém-nascido. O altivo sultão
do selvagem harém avançou cheio de confiança.
Tinha a Morena contado o que por ela fizera seu benfeitor?
O pai do magote e o gaúcho saudaram-se como dois reis do deserto. Não
houve entre eles afagos, nem familiaridades; mas uma demonstração
grave de mútuo respeito e confiança.
Quanto, porém, às companheiras da baia, essas apenas viram
o alazão aproximar-se do gaúcho, fizeram-lhe uma festa como
não se imagina. Manuel recebeu-as a todas com a efusão e prazer
que sentia por essa raça predileta. A umas alisava o colo, a outras
penteava as clinas, ou amimava-lhes a garupa. E todas se espreguiçavam
de prazer e trocavam sinais de grande afeição, como se fossem
amigos de muito tempo.
Nunca Manuel sentira tamanho prazer. Achar-se no meio daqueles filhos livres
do deserto: admirar de uma vez tão grande número de lindos e
altivos corcéis; deleitar-se na contemplação das estampas
mais elegantes e garbosas; admirar a casta em sua pureza, e nos mais belos
tipos, enobrecidos pela independência e liberdade; há gozo que
se compare a este para um peão?
O avaro, nadando em ouro, não teria as inefáveis emoções
de Manuel naquele momento, ao meio dos magotes que o festejavam, escaramuçando
em torno. Também ele era filho do deserto, e desejaria fazer parte
daquela família livre, se outros cuidados não o chamassem além.
Cuidou enfim o gaúcho da partida. Cumprira o dever de… Ia dizer
de humanidade e talvez não errasse; tão inteligente e elevado
era o sentir dessa alma pelo brioso animal, que ele prezava como o companheiro
e amigo do homem! Para ele, que devassava e entendia os arcanos da organização
generosa, o cavalo se elevava ao nível da criatura racional. Tinha
mais inteligência que muitas estátuas ermas de espírito;
tinha mais coração que tantos bípedes implumes e acardíacos.
Não direi contudo dever de humanidade, mas de fraternidade, o era
decerto; posso afirmá-lo. Manuel considerava-se verdadeiro irmão
do bruto generoso, bravo, cheio de brio e abnegação, que lhe
dedicava sua existência e partilhava com ele trabalhos e perigos.
Teria a si em conta de um egoísta e cobarde se não seguisse
os impulsos de seu coração restituindo um ao outro aquela mãe
órfã ao filho desamparado. Agora que estava, uma tranqüila
e contente, o outro salvo e reanimado, e completa pela mútua adesão
aquela dupla existência, podia-se ir sossegado; e o devia quanto antes,
que um dever imperioso o reclamava em outro lugar.
Esse dever, sim, era humano; era a vingança do filho contra o assassino
que lhe roubara o pai.
Segurou Manuel com o fragmento do laço do caçador uma égua
rosilha, que já não tinha poldrinho a amamentar. Nenhuma resistência
fez o animal; todos se haviam rendido à influência misteriosa
do gaúcho; e todos desejavam tanto mostrar-lhe seu afeto, que houve
quase querelas e arrufos de ciúmes pela preferência dada à
rosilha.
Quem mais se agitou com esta escolha foi a Morena. Embebida até então
com poldrinho, toda ela era pouca para a satisfação e alegria
daquela restituição. Multiplicava-se; havia tantas mães
nela quantos sentidos; uma nos olhos, que embebiam o filho; uma nos ouvidos,
que o escutavam; uma na língua, que o lambia; uma nas ávidas
narinas que o farejavam; uma no tato com que o conchegava.
Mas onde estava ela sobretudo era naquele sexto sentido, exclusivamente
materno, que reside nas tetas lácteas, o sentido da sucção,
pelo qual a mãe sente que se derrama no corpo do filho, e se transporta
gota a gota para aquele outro eu.
Percebendo o movimento do gaúcho, foi a égua arrancada ao
jubilo materno pela lembrança do que devia ao benfeitor. Correu para
ele; e afastando meio agastada a rosilha, cingiu com o pescoço a espádua
do amigo.
Manuel abraçou-a entre sorriso e mágoa.
— Pensavas tu, Morena, que me iria sem abraçar-te?… Adeus!…
Levo de ti muitas saudades. A corrida que demos juntos, nunca, nunca hei de
esquecê-la!… Duvido que já alguém sentisse prazer igual
a esse. Falam outros das delícias de abraçar uma bonita rapariga;
se eles te apertassem como eu a cintura esbelta, voando por estes ares!…
Adeus! Lembranças ao alazãozinho.
Arrebatando-se à emoção da despedida, pulou o Manuel
no costado da rosilha, e apartou-se daquele sítio. No momento em que
virava o rosto, que tinha voltado para ver a baia, esfregou as costas da mão
pela face esquerda.
Seria uma lágrima que brotava ali?
Ficou-se imóvel a égua, com a grande pupila negra fita no cavaleiro
que afastava-se rapidamente. Seu peito arfava com ornejo profundo, que parecia
um soluço humano.
XII – VOLTA
Ao cabo de algumas quadras, ouviu Manuel estrupir longe, pela campina aquém,
outra corrida, mais veloz que a sua.
Pensou que fosse a repercussão do galope de seu cavalo, mas conheceu
que se enganava. Voltando o rosto viu a Morena, que breve se perfilou com
a rosilha.
Algum tempo seguiu assim unida, como em parelha. Sensível àquela
demonstração de carinho, o gaúcho se derreou para recostar
sobre as espáduas da amiga.
Mas o poldrinho chamou a mãe, que estremeceu; mordendo irada a rosilha,
correu à disparada para o filho, e logo tornou ainda mais rápida
ao cavaleiro, a quem breve alcançou. Ganhando a dianteira á
rosilha, fê-la esbarrar um instante. De novo a reclama a voz do sangue;
mas não lhe cede de todo a gratidão.
Ainda trôpego e débil, o poldrinho mal ensaiava os passos sobre
a encosta. A Morena ora o instigava à corrida, ora se arremessava em
seguimento do cavaleiro, soltando o hênito plangente da saudade; já
volve, já avança, quando não hesita, partida entre dois
impulsos e cativa de duas vontades em um só corpo.
Compreendeu então o gaúcho os extremos da gratidão
do animal. A mãe não queria mais separar-se do amigo que lhe
salvara o filho. Para bem certificar-se, o gaúcho perscrutou o desejo
da baia na grande pupila negra e límpida, que ela fitava em seu rosto.
Esses dois seres trocaram longo e profundo olhar; nesse contato de duas
almas soldou-se o vínculo de uma amizade que devia durar até
à morte.
Sem apear-se, suspendeu Manuel o poldrinho que travessou na cernelha, amparando-o
com o braço, como uma criança. Conheceu-se a alegria da Morena
pelo riso harmonioso e vibrante, e pelas gambetas que deu a travessa.
Partiram todos, desta vez, sem estorvo. Passadas as primeiras horas, a Morena,
que em princípio se mostrara prazenteira e contente, começou
a dar sinais de impaciência; de vez em quando mordia o pescoço
da rosilha; se esta se desviava do rumo em que iam ambas desfiladas, obrigando
assim o gaúcho a afastar-se dela, imediatamente arrojava-se contra,
repelindo a companheira, como se quisesse disputar-lhe o cavaleiro.
Bem a entendia Manuel: eram ciúmes. O amor que toma o homem à
cavalgadura, sabia o gaúcho que é retribuído sinceramente.
O ginete tem orgulho do cavaleiro que o sabe montar; como tem o soldado de
seu general.
Não consente, porém, o amansador que se fatigasse a Morena,
por causa do filho que tinha de amamentar, e por isso recusa o lombo que lhe
ela oferecia. Debalde a faceira para o tentar alonga-se como uma flecha, e
excede na corrida à rosilha. Debalde colhendo os flancos, se lança
aos arremessos, como a corça, prometendo naqueles surtos as delícias
da equitação; Manuel resiste a tudo, por amor do alazãozinho.
Dormiu o gaúcho numa restinga de mato.
Por madrugada ouviu Manuel longe uns ornejos de zanga, e não vendo
a Morena, seguiu-lhe a pista. Acabava ela de despedir a rosilha, e vinha aos
saltos, contente e folgando, oferecer o costado ao cavaleiro. Seria ingratidão
recusar; depois de amamentado o alazãozinho, partiu aquela família
selvagem, que se tinha formado no deserto, em face da natureza.
Ao pino do sol, encostou-se Manuel com uma tropilha, à frente da
qual reconheceu D. Romero.
— Bons-dias, amigo, já vem de volta? Então foi buscar
o poldrinho também? Dessa não me tinha eu lembrado.
— Viva, senhor, respondera o gaúcho secamente.
— Quer o amigo por ela com poldrinho duzentos patacões? Tenho
que fazer um mimo a certa moçoila… É pegar da palavra, enquanto
não me arrependo.
Nada mais natural do que oferecer preço por um cavalo, objeto de
comércio. Alguns donos até se desvanecem com as boas propostas
que lhes fazem. Cada preço alto é um brasão de fidalguia
para o animal.
Irritou-se entretanto o Manuel com o oferecimento do chileno. Pareceu-lhe
aquilo uma afronta igual à de pôr a preço uma pessoa de
sua família, uma irmã.
— Se lhe pesam seus patacos, pinche-os, que não faltará
quem os apanhe, respondeu com tom ríspido.
— Por pouco se escandaliza o amigo! disse o chileno sempre calmo e
polido.
— Até ver, senhor.
Por volta da noite, chegou o gaúcho à pousada, de onde saíra
havia quatro dias. O Perez já não o esperava mais, cuidando
lá consigo que o homem levara a breca, arrebentado com a égua
aí sobre algum barranco.
Depois de bem agasalhada a Morena e o poldrinho, trouxeram um bom assado
de couro com escaldado, que o Manuel comeu, escanchado na ponta do banco que
lhe servia de mesa.
Aí contou Canho ao Perez os incidentes de sua jornada pelo deserto,
tais como eu fielmente os reproduzi. O que porventura parecer estranho, corre
por conta do gaúcho, em cuja existência, aliás, havia
muitas coisas, que não se compreendiam.
— Caramba! exclamou Perez. Por uma noiva, e pelo pequerrucho que lhe
ela desse, você não fazia mais do que pela égua e seu
poldrinho.
O Canho ficou no semblante do entrerriano os olhos surpresos. Estranho sorriso
perpassou-lhe nos lábios.
— Por uma mulher, nada!
— Ai, que você está mordido, Canho! Alguma lhe fizeram.
Essas raparigas são assim mesmo: gostam de moer a gente, como pimenta
em almofariz.
— A mim, não, que não lhes dou este gostinho.
— Ora!
— Acredite, se quiser; mas digo-lhe que nunca até hoje me bateu
o coração por mulher; e desejo morrer assim. Não pode
haver maior desgraça para um homem!
— Também isso é demais.
— Eu as conheço. Gostam de todos, mas não podem viver
para um só: se morre aquele a quem pertenciam, já não
se lembram dele; e começam a querer bem a outro. Mas é só
pelo gosto de terem um companheiro; não que elas sejam capazes de sacrificar-lhe
tudo.
— Muitas são assim, não há dúvida.
— Todas, Perez. Onde acha você uma rapariga capaz de fazer o
mesmo que a baia? Porque eu salvei-lhe o filho, tornou-se cativa; e para me
acompanhar e me servir deixou sua terra, suas amigas e sua liberdade.
— Lá nesse ponto, também nós homens não
nos podemos gabar.
— Nem eu digo o contrário. Todos os amigos juntos não
valem o Morzelo que foi de meu pai; mas os homens, ao menos, não enganam
tanto!
O Perez deu boa-noite ao Canho; e foram ambos se acomodar. O gaúcho,
porém, não pôde pregar olho, durante muitas horas; o vôo
sussurrante de um morcego, que adejava no pátio, o sobressaltou.
Ergueu-se por vezes; foi ao pasto ver se a égua dormia, e se o poldrinho
desprotegido era vítima do vampiro. Fazia um frio intenso; acendeu
um pequeno fogo de ossos, porque não havia no campo outra lenha; mas
só descansou quando pôde com a haste da lança abater o
morcego.
XIII – A MALIGNA
No dia seguinte o gaúcho estava de pé ao primeiro vislumbre
da madrugada. Encilhou o Ruão e despedindo-se de Perez, se pôs
a caminho.
Três horas andadas, avistou uma casa sobre a esplanada da coxilha.
Seu coração bateu com alvoroto. Ali morava o assassino de seu
pai. Chegara enfim o dia, o momento da vingança esperada pacientemente.
Quando o Canho, parada um instante, olhava a casa, passaram por ele duas
pessoas a cavalo; um frade e um peão de cor preta.
— Parece que o homem não escapa mesmo, padre.
— Com o favor de Deus tudo é possível, filho; mas ele
está muito mal.
— Uma coisa tão de repente. Não há uma semana
que fizemos juntos o rodeio.
Canho sentiu-se inquieto. Pelo caminho que seguiam, os dois cavaleiros decerto
vinham da casa. Seria o dono a pessoa, de cuja enfermidade eles falavam?
Desceu o gaúcho o lançante da colina e aproximou-se vagarosamente
da casa, espreitando-lhe a aparência, com receio de confirmar suas apreensões.
No terreiro que havia em frente, brincava uma criança de 8 anos, cavando
um buraco na terra com a cana partida de um velho freio.
— Menino, o Barreda está em casa?
— Meu pai?… Está sim.
— Eu queria falar-lhe.
— Mas ele está doente!
— Ah! está doente! De quê?
— De doença!… A gente tem chorado muito porque ele não
escapa. Agora mesmo saiu o frade que veio para a confissão.
Manuel pensativo não escutava a tagarelice do menino.
— Diga-me; quando a gente morre, enterra-se numa cova assim, não
é? tornou o menino apontando para o buraco aberto no chão. Mas
este ainda está pequeno para o pai; é preciso cavar mais. Depois
bota-se uma cruz, não é?
— Pode-se ver seu pai?
— Entre!
A sala estava deserta; mas em um aposento contíguo, ouviam-se gemidos,
prantos sufocados, e vozes abafadas. Era o quarto do enfermo. Chegando-se
à porta, o gaúcho pôde ver o Barreda prostrado na cama
e sucumbido a uma febre violentíssima.
Ninguém fez reparo no recém-chegado. No campo, onde a morada
do pobre, como do rico, está aberta sempre ao viajante, o hóspede
não é um estranho. Além de que nesses momentos solenes
a casa como que se transforma em templo, onde todos entram levados pela curiosidade
do terrível mistério que a alma tenta perscrutar.
Outra razão especial ainda havia para demover de Manuel a atenção
das pessoas reunidas no aposento do moribundo. Todos os olhos estavam fitos
em uma velha curandeira que nesse momento examinava o Barreda. Depois de lhe
ter virado as capelas dos olhos, torcido as asas do nariz, e beliscado as
bochechas, a mulher estava agora ocupada em examinar os braços e o
peito do enfermo.
Achou ela alguma coisa, porque segurando as cangalhas de chumbo no nariz
adunco, e aproximando a candeia com a mão esquerda, esteve a examinar
pausadamente o lugar, que esfregou com um pouco de aguardente.
Acabado o exame, deitou a candeia no gravato, e levantou-se espalmando as
mãos nas cadeiras derreadas com o cansaço de estar tanto tempo
curvada. Os olhares dois circunstantes fisgaram-se no semblante da velha como
se quisessem arrancar-lhe dos lábios à força o segredo
da ciência. Ela o compreendeu. Acenando com a cabeça de um e
outro lado, para aproximar em círculo as pessoas presentes, resmungou
à meia voz:
— Não tem que ver! Eu disse logo que me chegou o recado; não
passa de bexigas. Lá está a primeira borbulha; mas não
chega a sair, concluiu ela abanando a cabeça.
A palavra bexiga produziu soçobro nas pessoas presentes. A mulher
redobrou de pranto; quanto aos mais, parentes e curiosos, foram-se esgueirando
pela porta do quarto a pretexto de estar muito quente; e com pouco desapareceram,
tremendo à suspeita de lá o contágio da terrível
enfermidade.
Foi-se também a curandeira, porque não houve quem lhe oferecesse
boa paga para ficar. A mulher do Barreda, essa não tinha acordo para
cuidar de semelhante coisa.
A todo este movimento assistiu Manuel encostado ao umbral da porta, atônito
e perplexo.
Viera com um fim, e achava-se ali como suspenso, ante aquele espetáculo,
que o impressionara profundamente. Não era a primeira vez que testemunhava
o ato supremo do passamento de um homem. Vira peões esmagados embaixo
de um cavalo rodado; outros estripados pelas pontas do touro bravo; o próprio
pai caíra a seus olhos com o coração traspassado; mas
essa agonia lenta e solene, nunca a tinha contemplado.
De repente o enfermo estortegou na cama; com a voz trôpega, cortada
pelo soluço, murmurou:
— Água!
No aposento ninguém mais estava; Manuel circulou com os olhos os cantos
e percebendo um cântaro de barro, encheu a caneca, e matou a sede ao
moribundo. Para isso foi preciso passar-lhe o braço pelas costas e
erguer o busto.
XIV – O ENFERMEIRO
Repetidas vezes Barreda, devorado pela febre, pediu água. A mulher
aproximava-se de momento a momento, receando ser chegado o transe supremo;
depois ia de novo atirar-se a um canto, onde ficava como desfalecida.
Vendo Manuel o desamparo em que estava o enfermo, pelo desespero da mulher
e medo que inspirava a outros o contágio da moléstia, não
teve ânimo de retirar-se naquele instante. Custava, porém, à
sua natureza enérgica assistir impassível ao sofrimento de uma
criatura, sem tentar um esforço qualquer para salvá-la.
Veio-lhe de repente à lembrança um caso que ouvira a seu pai.
Saiu fora, montou a cavalo, e pouco depois voltou com um novilho, que laçara
e prendeu ao lado da casa, na estaca do curral ou mangueira.
O enfermo passara do torpor à excessiva inquietação.
— Tire a roupa de seu marido, que eu já volto. Vou buscar um
remédio que há de fazer-lhe bem.
Abatido o novilho com uma pancada na nuca, em um instante Manuel esfolou-o
ainda meio vivo; e correndo à casa, envolveu o corpo do enfermo na
pele tépida e sangrenta.
Feito o quê, esperou pelo resultado, assando na brasa um pedaço
da carne do novilho para matar a fome.
Seu pai muitas vezes lhe contara que na campanha da Cisplatina, o capitão
de uma companhia caíra doente com uma febre de cavalo. O cirurgião
do regimento empregara em vão todos os meios para fazê-lo suar.
Pela manhã quando se carneava uma rês, dissera ele a rir, vendo
arregaçar o couro: “Que bom lençol! Se me tivesse lembrado,
embrulharia em um desses o capitão. Não há febre que
resista a semelhante cáustico”.
O que o cirurgião não pudera fazer, acabava o gaúcho
de pôr em prática.
Ou fosse pela energia do remédio, ou pelo vigor da organização,
operou-se na enfermidade uma crise salutar, manifestando-se durante a noite
reação franca, anunciada por abundantes suores; de madrugada
remitiu a febre, e Barreda caiu num sono profundo.
Manuel passou a noite, como o dia, fazendo o ofício de enfermeiro.
Apenas deixava o aposento do doente para ir ver seus amigos, a baia e os outros
animais a quem havia acomodado no potreiro, tendo o cuidado de fazer com um
molho de trevo seco uma cama bem macia para o poldrinho.
Durante dois dias o gaúcho velou sobre o doente, como faria por um
amigo. A mulher já reanimada cobrara sua atividade; mas espavoria-se
com a idéia de ficar só, e pediu ao Canho que não se
fosse antes de ceder de todo a moléstia.
Ao terceiro dia já Barreda, apesar de muito fraco, dava acordo de
si e atendia ao que se passava em torno. A primeira coisa em que reparou foi
naquele sujeito, cujas feições não podia distinguir,
pela obscuridade do aposento e debilidade de sua vista. Além disso
o desconhecido calcara o chapéu desabado e erguera a gola do ponche.
— Quem é? perguntou o enfermo com voz extenuada.
Canho estremeceu.
— O senhor não me conhece. Vinha para tratar um negócio,
mas encontrei-o de cama. Ficará para outra vez.
— É verdade. Estou aqui de molho, que não sei se arribarei
desta.
— O pior já passou, agora é ter paciência
— Que remédio! Olhe, que foi uma boa peça que me pregou
esta macacoa! Precisava ir à casa do Perez receber um dinheiro que
me deve um chileno; se não, é capaz de abalar sem pagar-me.
— Já ele o fez! Encontrei-o ontem caminho de Corrientes.
— Diabo! Faz-me falta esse dinheiro, disse Barreda agitando-se na
cama.
— Não se agonie; vou buscá-lo.
— Como?
— Alcançarei o homem. Dê-me o sinal.
O doente chamou a mulher, que tirou da mala um vale assinado por D. Romero
e o entregou a Manuel. Este partiu, no encalço do mascate.
Quatro dias depois estava de volta com o dinheiro. O doente dormia; Manuel
não quis vê-lo; falou à mulher. Pela primeira vez, depois
de tantos dias, Manuel olhou de frente para essa criatura, que fora a causa
involuntária da morte de seu pai. Ainda mostrava quanto devia ser bonita
há dez anos passados.
O gaúcho desviou a vista com repugnância; e entregando as moedas
que recebera do chileno, tratou de pôr-se novamente a caminho. Esse
lugar, que já não era o da caridade e não podia ainda
ser o da vingança, causava-lhe horror.
Quando se dirigia ao potreiro para montar, encontrou o menino com que falara
no primeiro dia.
— Então vai embora?
— Vou; mas voltarei logo. É pena que você não tenha
mais dez anos.
O menino estremeceu com o olhar que lhe deitou o gaúcho.
Em caminho, pela primeira vez, refletiu Manuel sobre os últimos acontecimentos,
em que se achara envolvido, sem o esperar. Até então não
se dera ao trabalho de pensar a este respeito; mas agora, na monotonia de
uma jornada perdida, seu espírito era arrastado malgrado pelas recordações
tão vivas ainda.
Era possível que ele, filho de João Canho, houvesse um momento
sustido nos braços o assassino de seu pai; e não para matá-lo,
mas para servi-lo?
Acreditaria alguém que ele, trazido àquele lugar pelo desejo
da vingança, se tivesse desvelado durante alguns dias pela salvação
do causador de sua desgraça?
Sua própria razão não concebia como isso acontecera.
Às vezes vinham assomos de dúvida, que se desvaneciam logo ante
a realidade tão recente. Manuel tinha a consciência de sua natureza
ríspida e concentrada; a indiferença e frieza que mostrava em
seu trato, não provinham de um hábito somente; eram a repercussão
interior da pouca estima em que o gaúcho tinha geralmente a raça
humana.
Entretanto, nos últimos dias ele fora tão outro, do que era
realmente! Desvelos e solicitude que nunca tivera por pessoas de sua família,
como os sentira por um estranho, pelo homem que maior mal lhe fizera neste
mundo?
O espírito de Manuel agitou-se algum tempo nesse caos de seu coração;
até que afinal, desprendeu-se uma centelha e os lábios murmuraram:
— Eu tenho de matá-lo!
Aí estava a razão. Aquele homem era sagrado para ele como a
vítima já votada ao sacrifício. Aquela vida lhe pertencia;
fazia parte de sua alma; pois era o objeto de uma vingança tanto tempo
afagada.
A idéia de que ele havia de matar o Barreda, tornava Manuel compassivo
não para o assassino de seu pai, mas para o enfermo que se revolvia
no leito de dores.
LIVRO SEGUNDO
JUCA
I – PONCHE-VERDE
Ponche-Verde é o nome de um arroio que deságua no grande rio
Ibicuí, próximo a suas nascentes.
Não há melhor arquivo para guardar as tradições
e costumes de um povo, do que seja uma etimologia topográfica. Na página
imensa do solo nacional, escreve a imaginação popular a crônica
íntima das gerações. Cada nome de localidade encerra
uma recordação, quando não é uma lenda ou mito,
que se vai transmitindo de idade em idade até perder-se nas obscuridades
do tempo
Quem sabe hoje por que chamaram ao arroio — Ponche-Verde? Acaso o banhado
onde ele nasce, coberto de limo, traça a forma característica
daquele trajo? Ou será a fina relva das margens, que de longe imita
a lustrosa pelúcia do pano?
Talvez nem uma, nem outra coisa. Porventura algum drama vivo, onde representou
sinistro papel aquela parte do vestuário nacional do gaúcho,
imprimiu à localidade o nome simbólico, hoje vago e incompreendido.
Em todo caso aí está um traço fisionômico da
campanha rio-grandense: o tipo gaúcho.
Nas margens desse arroio pelejou-se, em 26 de maio de 1843, um combate,
em que Bento Manuel derrotou as forças rebeldes sob o comando de Davi
Canabarro. Foi este o prólogo da campanha que pôs termo à
revolução; o epílogo coube ao bravo barão de Jacuí
escrevê-lo com a brilhante vitória de Porongos.
Além, onde a campina se alomba, como o dorso de uma anta, próximo
à foz do arroio, havia uma casa com alpendre para o nascente. À
direita pequeno curral, a que na província dão o nome de mangueira:
na frente uma grande figueira, isolada em meio do campo; à esquerda
uma ramada ou choça para os animais.
Embaixo, já na margem do Ibicuí, viam-se cinco ou seis ranchos
esparsos pela campina; alguns pertenciam à estância cuja casaria
destacava-se no horizonte, em meio de um bosque de arvoredos frutíferos;
outros, à gente pobre a quem o proprietário consentia habitarem
em suas terras.
O mais próximo povoado ficava a duas léguas de distância,
no passo de D. Pedrito, sobre o Ibicuí, onde mais tarde se erigiu a
freguesia de N. S. do Patrocínio.
Era sobretarde.
Estavam no alpendre da casa duas mulheres. A mais idosa, viúva de
quarenta e cinco anos, conservava na tez o lustre da mocidade: tinha ainda
uma bela fisionomia e passaria por formosa se não fora a excessiva
gordura. Quanto à outra, era menina de quinze anos, e muito linda.
Não tinham a mínima semelhança: e contudo ao vê-las
ambas ao lado uma da outra se conhecia logo que eram mãe e filha. Os
afetos de que estamos possuídos exalam constantemente de nosso íntimo
uma perspiração moral. Talvez haja em torno de nós uma
atmosfera de sentimento para a alma, como há uma para o pulmão.
Sentada em um banco, de mãos enlaçadas sobre o regaço,
acompanhava a mãe os graciosos movimentos da filha, a folgar pelo gramado.
Um terneiro alvo e brincão tentava escapar-se para correr após
a vaca; porém a travessa menina, atalhando-lhe o passo e cingindo-lhe
os braços pelo colo, impedia o intento.
Ouviu-se relinchar ao longe um cavalo. Erguendo os olhos deu a menina com
um cavaleiro que transmontara a fronteira eminência. Distraída
do folguedo, ficou um instante imóvel, com as mãos juntas e
a vista atenta. Logo após, exclamou batendo palmas:
— Manuel!… Manuel!…
— Onde, Jacintinha?
— Olhe mãezita! Respondeu apontando.
— Vejo!
Voltara a mãe os olhos na direção do cavaleiro; a filha
deitou a correr e foi com sensíveis mostras de prazer, caminho da tronqueira,
a encontrar-se com a pessoa que chegava.
Com pouco ali apareceu o Canho, montado no Morzelo e seguido da Morena e
do poldrinho, que trotavam no meio da tropilha. Apeou o gaúcho para
apertar a mão de Jacintinha, e dirigiram-se ambos ao alpendre, depois
de algumas palavras trocadas. Quem observasse a menina naquele instante, havia
de reparar na sua expressão constrangida. Um motivo qualquer retinha-lhe
nos lábios, e até no gesto, a efusão de sentimento, que
só pelos olhos e a furto lhe escapava. Manuel, porém, não
se apercebia disso; da irmã não vira mais que o vulto; se lhe
perguntassem de repente a cor de seu vestido, com certeza não soubera
responder.
Saiu a viúva ao encontro do filho, logo que ele passou a tronqueira.
A dois terços do caminho se encontraram, nenhum porém se havia
apressado; o gaúcho adiantou-se porque seu andar era naturalmente mais
desembaraçado do que o da matrona.
— Adeus, meu filho. Estais bom de saúde?
— Bom, minha mãe, obrigado. E Vm.cê, como lhe vai?
— Sempre na mesma, graças a Deus!
Subiram ao alpendre.
Deixara-se Jacinta ficar atrás, para correr ao poldrinho e o abraçar
enchendo-o de meiguices. Dir-se-ia que reconhecera o animalzinho a irmã
de seu amigo, ou se embelezara pela gentileza da donzela. Apesar de sua arisca
braveza, consentiu em ser acariciado; e chegou mesmo a brincar com sua nova
companheira.
— Que bonito poldrinho, que ele trouxe, mãezita”! exclamou
Jacinta. Tão engraçadinho!
Manuel, voltando para o grupo original, envolveu num olhar de ternura as duas
juventudes, da irmã e do animalzinho.
— Fizestes bom negócio com a égua, Manuel? Quanto destes
por ela?
— Nada, minha mãe.
— Ah! Foi presente que vos fizeram? Por quanto pretendeis vendê-la?
Alguns vinte patacões?…
— Não é de venda! respondeu o gaúcho laconicamente,
descendo ao pátio.
Nem sinal deu a viúva de estranheza por aqueles modos, aos quais
sem dúvida estava mais que habituada. Chamou a filha para mandar aprontar
a ceia.
— Manuel há de estar com fome! Sem dúvida não
jantastes, meu filho?
— Pouco e cedo.
— Então vai, Jacintinha.
Tudo isto era dito com o tom calmo e frio das coisas costumeiras. Ninguém
acreditara que ali estavam mãe e filho, no primeiro instante de chegada,
após uma ausência de meses.
Enquanto lhe preparavam a ceia, foi Manuel agasalhar com a maior solicitude
a Morena e o filho, não esquecendo os outros cavalos. Consumiu nesse
mister uma boa hora; não obstante os repetidos chamados da irmã,
só deixou seus camaradas, quando os viu bem acomodados, feita a cama
de palha, e distribuída a ração da noite.
Então decidiu-se a cear; contando porém visitá-los
antes de dormir.
A refeição era parca: churrasco, bocado clássico das
campanhas sulinas, queijos, origones ou passas de pêssego. Manuel comia
rapidamente e de cabeça baixa; seu olhar uma só vez não
procurou o semblante das duas mulheres, para colher ali um vislumbre de prazer
por sua chegada.
Francisca de seu lado, cochilando na costumada pachorra, com as mãos
cruzadas sobre o regaço, olhava o filho sossegada. Não assim
Jacintinha.
Com os lindos pregados no semblante de Manuel, meio reclinada sobre a mesa,
cintilante de vivacidade, espiava ela o menor desejo do irmão par servi-lo
prontamente. Se porém o gaúcho erguia a cabeça, ela se
enleava trêmula, não tanto de receio, com do prazer de ser olhada.
Terminada a refeição, preparou Jacintinha o chimarrão;
enquanto Manuel chupava a bomba, trocaram-se entre as três pessoas da
família algumas palavras, calmas e compassadas, sem efusão,
mas também sem o mínimo ressentimento.
— A mãe não teve novidade? Vai passando bem?
— Assim, assim, Manuel; já me sinto pesada. A gordura é
demais.
— Mãezita não gosta de andar, observou a menina.
— Como vai a bragadinha, Jacinta?
— Ah! Morreu, Manuel!…
— Coitadinha! Como? … perguntou o gaúcho enternecido.
— A mãe deu-lhe um coice! respondeu Francisca rindo.
Manuel ergueu-se de mau modo, dando as boas-noites, e saiu para o terreiro,
donde ganhou a estrebaria. A Morena e o filho o receberam com mil carícias,
que ele retribuiu; arranjou-lhes de novo a cama, com receio de que não
estivesse bem macia, escolhendo-lhes alguns molhos do capim mais tenro; depois
do quê, recolheu a seu aposento, que ficava numa espécie de sótão
por cima da manjedoura.
II – O PAI
Que anomalia era a fibra cardíaca desse homem?
Coração para uma raça bruta, músculo apenas para
sua própria espécie e até para sua família.
Quanto se expandia em amor e dedicação com os animais, seus
prediletos, tanto se retraía com frieza e indiferença ante as
mais doces afeições de sangue que o cercavam.
Não se explica semelhante aberração. Talvez que algumas
particularidades da infância de Manuel aventem a razão desse
teor d’alma tão avesso da natureza.
Eis o que referiam sobre a família e a infância do gaúcho.
João Canho, pai de Manuel, era o primeiro amansador ou peão
de toda aquela campanha; à sua destreza em montar e governar o animal
com qualquer das mãos deveu ele o apelido que adotou por nome.
Servira o amansador com Bento Gonçalves na campanha da Cisplatina;
pelejara corajosamente em vários combates; e depois de feita a paz,
viera estabelecer-se com sua mulher e dois filhos em Ponche-Verde, onde vivia
pobremente de sua arte, à qual juntava a perícia de ferrador
e alveitar.
Aos oito anos já sentia-se Manuel orgulhoso das proezas do pai. Quando
ouvia o antigo soldado recordar suas campanhas e contar as valentia que praticara
com um camarada de nome Lucas, do qual sempre se lembrava com saudades; quando
sobretudo via o potro mais terrível subjugado em um momento pelo destemido
peão, o gauchito enchia-se de admiração.
Não fossem falar de façanhas de heróis, que ele as
desdenharia por certo. Não havia para o menino outra glória
senão aquela; nada no mundo se podia comparar, no espírito do
filho, à fama do pai.
A alma do menino foi-se moldando naturalmente pelo que admirava. A vida
de peão inspirava-lhe entusiasmo. O baguá era para ele o símbolo
da força e da fereza; domar o cavalo selvagem, o filho indômito
dos pampas, significava o maior triunfo a que podia aspirar o homem. O amansador
era o rei do deserto.
Ao mesmo tempo, sempre em contato com a raça eqüina, revelava-se
a seu espírito infantil as grandes qualidades desse animal de paixões
nobres e generosas, capaz das maiores dedicações, intrépido,
sóbrio, leal, paciente na ocasião do sacrifício, impetuoso
no momento do perigo.
O menino sentia em si essa mesma natureza, o germe daquelas virtudes, e
assim gradualmente ia-se operando em seu caráter uma espécie
de identificação entre o cavalo e o cavaleiro. Era a misteriosa
formação do centauro.
No meio dessa existência tranqüila, a asa negra da desgraça
roçou pela casa de João Canho.
Foi em maio de 1820.
Estava o amansador uma tarde pitando no alpendre, enquanto a mulher ninava
ao colo o Juquinha, o úuacute;ltimo filho. Viu João aproximar-se um
cavaleiro à disparada, e pouco depois esbarrar no terreiro. apeou-se
rápido e correu para o gaúcho.
— Não me conhece, amigo?
O Canho surpreso respondeu:
— Pode ser; mas não me recordo.
— Sou o Loureiro, de Alegrete. Venho do Salto; os castelhanos juraram
empalar-me, e me vêm no encalço. Estou perdido se o amigo não
me der um abrigo.
— Entre, senhor; esta casa está a seu dispor.
— Mas se eles souberem que eu me refugiei aqui, não lhes poderei
escapar.
— Fique descansado.
Entrou o Loureiro, a quem Francisca, pela recomendação do
marido, agasalhou o melhor que pôde. Entretanto João Canho, em
pé no alpendre, olhava o horizonte onde aparecia ao longe um ponto
que vinha crescendo. Eram sem dúvida os castelhanos.
Pouco depois apearam-se quatro gaúchos orientais. Um deles, mais
apressado, tomou a mão:
— Está em sua casa, amigo, um homem de Alegrete, que chegou neste
instante. Queremos falar-lhe!
João hesitou um momento, se devia negar a presença do Loureiro
em sua casa. Repugnava-lhe mentir; tanto mais quanto essa mentira era inútil.
Os castelhanos tinham naturalmente visto na poeira o rasto fresco do animal.
— O homem está aí dentro, senhores. Agora o falar-lhe,
é outra coisa. A que respeito?
— Sobre um negócio urgente.
— Mas qual é?
— Ele sabe.
— Ah! é o negócio que ele sabe? disse o Canho sorrindo.
— Justo!
Pois esse pediu-me ele que o tratasse em seu nome.
— E o amigo aceitou?
— Por que não? Estou pronto sempre a servir um patrício.
— Pois olhe, desta feita não andou bem, asseguro-lhe.
— Veremos.
Os castelhanos se impacientavam, cruzando entre si olhares suspeitos.
— Vamos ter com o homem.
Atravessou-se na frente o João Canho com ar resoluto.
— Senhores, o homem está descansando. Se querem fazer outro
tanto, ali está o rancho.
— Falemos claro, amigo. Viemos à caça do sujeito, e
por força que o havemos de levar.
— Daqui desta casa, não; salvo se ele mesmo quiser ir.
— Veja que somos quatro, e estamos disposto a ir às do cabo.
— Ainda que fossem vinte. Nesta casa ninguém entra sem licença
de seu dono, e este sou eu para os servir, senhores.
Manuel que de dentro ouvira a altercação, saiu fora no alpendre
movido por infantil curiosidade. Seu pai, de pé nos degraus da escada,
aproveitando um instante em que os castelhanos se consultavam entre si, voltou-se
para o gauchito:
— Corre; diz ao homem que fuja para a estância! Um cavalo selado,
no quintal, já!… Tua mãe que feche a porta; eu os entretenho
por cá; ele que se musque!
Estas palavras, rápidas e impetuosas, foram lançadas à
meia voz no ouvido do menino, que de seu próprio impulso, e empurrado
pela mão sôfrega do pai, ganhou de um salto a porta.
Era o tempo em que os castelhanos havendo tomado partido, caminhavam para
o alpendre em atitude ameaçadora. O Canho recuou, mas para alcançar
de um pulo o canto onde estavam seus arreios. Travando das correias das bolas,
que tangidas pelo braço robusto, giraram como um remoinho em volta
da cabeça, caiu sobre os adversários.
Os orientais, já senhores do alpendre, fugiram para o terreiro com
medo de serem esmagados pela arma terrível. Em pé sobre a escada,
o Canho os dominava outra vez, e repelia com vantagem os repetidos ataques.
Um dos orientais, armado de uma lança, no momento de subir ao alpendre,
correra à janela com o intuito de penetrar na casa. Quando Canho voltou-se
armado com as bolas, atento ao movimento dos outros adversários, não
viu aquele que lhe ficava de esguelha e se havia encolhido.
Por algum tempo, durante a luta dos outros, ele forcejou para arrombar a
janela; vendo, porém, que João Canho levava de vencida diante
de si pela ladeira abaixo os outros já bem maltratados, mudou de plano.
Agachou-se por detrás do parapeito, com a lança pronta.
Desejara Manuel depois que deu o recado voltar para junto do pai; porém,
não consentiu a mãe, que fechou a porta, tirando a chave. Espreitavam
ambos pelo olho da fechadura o que se passava fora, quando o menino avistou
o oriental agachado.
— Ele vai atacar o pai! exclamou o menino.
A mesma idéia da emboscada atravessou o espírito da mulher,
que abriu de repente a porta. Manuel precipitou-se armado com uma faca imensa,
e chegando defronte o oriental, disse-lhe com raiva:
— Eu te mato!
Não se mexeu o oriental; ficou na mesma posição; apenas
fez um gesto breve ameaçando o menino com a lança; porém
este, longe de fugir, encarou com o sujeito, receando que se sumisse, antes
de o pai chegar.
João Canho voltava da coça que dera nos castelhanos, os quais
ainda o seguiam de longe, mas para apanharem os animais e safarem-se. Nisto
Francisca, debruçada no alpendre e trêmula de susto, soltou um
grande brado para advertir o marido do perigo dela e do filho, ameaçados
pelo sujeito agachado.
— Corre, João!
Vendo o oriental frustrado seu intento de surpreender o adversário,
ergueu-se para ganhar o terreiro e escamar-se. Mas João Canho, pensando
que o grito da mulher era para adverti-lo da volta dos castelhanos por ele
repelidos, voltara-se rapidamente e pusera-se em defesa, espreitando onde
poderiam estar os assaltantes.
Aproveitou-se o oriental desse engano; de um salto caiu no terreiro e cravou
a lança nas costas de João Canho. Ferido, o amansador soltou
um rugido medonho, e voltou-se com tal sanha, que o oriental espavorido pulou
no cavalo e desapareceu.
Quando ele sumia-se com os companheiros, o amansador expirava nos braços
da mulher.
Manuel em pé, ao lado daquele grupo fúnebre, segurava maquinalmente
a lança assassina, que tinham acabado de arrancar da ferida. Foi nessa
posição, com os dentes rangidos e os lábios crespos de
cólera, que ele recebeu a extrema bênção do pai.
III – O PADRASTO
Nunca soube-se com certeza da causa por que os quatro castelhanos perseguiam
Loureiro. Mais tarde este deu algumas explicações, a instâncias
dos amigos; porém notava-se na história por ele contada sensível
lacuna, e muita confusão.
Estabelecido com negócio de fazenda em Alegrete, fora Loureiro até
o Salto para comprar um sortimento de mercadorias de que precisava sua loja.
Aproveitou a ocasião para ver Concórdia, cidade argentina que
fica na margem ocidental do Uruguai.
Demorando-se alguns dias na pousada, se travou de razões com um sujeito
de nome Barreda, capataz de uma estância de Entre-Rios, que aí
estava também de volta de Buenos Aires. Resultou da altercação
desafiar o castelhano a Loureiro, que achou mais prudente mudar de ares.
Voltou imediatamente ao Salto, e mandando sua bagagem por Uruguaiana, tomou
em direção a Bagé, onde tinha umas cobranças que
fazer. Seguia seu caminho quando, chegando ao alto de uma coxilha, disse o
peão:
— Aqueles vêm com pressa!
Referia-se a alguns cavaleiros que despontavam ao longe, e se aproximaram
rapidamente. Loureiro lembrou-se do desafio e estremeceu. Como escapar? Na
campanha não é fácil achar um refúgio; por toda
a parte o horizonte aberto e descortinado.
— Queres ganhar uma dobra? Veste o meu pala, e deita a correr diante
daqueles sujeitos.
O camarada compreendera: apenas uma ondulação do terreno o
escondeu, trocou pelo pala vermelho seu ponche azul; recebeu as moedas e despediu-se
a correr. Entretanto o Loureiro contornou a coxilha, cuidando sempre de manter-se
fora da vista dos cavaleiros.
Sucedeu o que ele esperava. Os castelhanos, pois eram eles, vendo fugir ao
longe o homem de pala vermelho a quem perseguiam, não repararam na
falta do outro cavaleiro, e o deixaram à esguelha abrigado pela rampa
do terreno.
Apenas os viu passar, Loureiro deitou a correr não mais para Bagé,
nem para o Salto de onde saíra, e sim para Ponche-Verde, que era a
fronteira mais próxima do ponto onde se achava.
Essa era a história contada por Loureiro. Mais tarde, porém,
falou-se de um namoro da mulher do Barreda com o negociante, que se apaixonara
pelos belos olhos da espanholita. O marido, tendo-os surpreendido, desafiara
o continentista, que fugira naquela mesma noite.
A notícia da morte de Canho chegou ao Loureiro em Alegrete, dois
meses depois. Penalizou-o em extremo aquela desgraça a que ele dera
causa. Lembrou-se da viúva que ficara ao desamparo com dois filhos
menores; e sentiu-se obrigado a amparar a família órfã.
Fez uma viagem a Ponche-Verde com essa intenção.
Francisca era ainda muito bonita; as roupas de luto realçavam sua
tez fina e delicada; e as lágrimas, derramadas pela perda do marido,
tinham acendido em seus lindos olhos um fulgor irresistível.
Loureiro não foi insensível a esses encantos. Rendido à
beleza da viúva, teve um impulso generoso, que o fez refletir por muitos
dias, antes de tomar qualquer resolução definitiva. Afinal,
aproveitando um momento em que estava só com a viúva, disse-lhe:
— Fui eu, sem querer, a causa da desgraça que a senhora sofreu,
perdendo seu marido. Se pudesse restituí-lo, sem dúvida que
o faria. Não podendo, faço quanto está em mim: ofereço-lhe,
para o substituir, outro que há de estimá-la tanto ou mais.
Francisca chorou, e não respondeu. As palavras do Loureiro foram
repetidas por toda aquela redondeza, como um trecho eloqüente. Não
houve quem não aplaudisse o seu ato, como um rasgo admirável
de generosidade. Vieram os vizinhos em chusma a felicitar a viúva;
as amigas se desfizeram em elogios à bondade e mais prendas do noivo.
Francisca aceitou sem repugnância a mão que lhe ofereciam.
O casamento foi marcado a princípio para o fim do luto; porém
tanto insistiram sobre a necessidade de abreviar o ato, tanto falaram da satisfação
d’alma do defunto, por ver sua esposa e filhos amparados, que se antecipou
a época.
Uma pessoa não fora ouvida, que, entretanto, acompanhava com ansiedade
o desenvolvimento do drama da família. Era Manuel, então na
idade de nove anos. Sombrio e taciturno desde a morte do pai, o menino gastava
o tempo com os arreios, o cavalo, as roupas e armas do amansador, o que ele
considerava sua exclusiva e também única herança. Podiam
dispor do mais, da casa e do campo; daquilo não, que lhe pertencia,
como insígnia ou brasão de família.
Esta solidariedade das gerações não é um privilégio
da aristocracia. A alma imortal, em qualquer nível da sociedade, tende
a projetar-se no futuro, além do túmulo; por isso tem necessidade
de criar raízes profundas nas tradições do passado.
A olhar durante horas e horas aqueles objetos órfãos do dono,
Manuel sentia derramar-se pelo seio uma força imensa, que de repente
o crescia de muitos anos. De menino ficava quase homem: e então uma
voz íntima lhe anunciava que o filho havia de ser digno do pai.
Quando o Loureiro voltou a Ponche-Verde, da primeira vez, o menino o recebera
com repugnância, mas sem aversão. Não podia ser indiferente
a causa da morte do pai; esse indivíduo era uma legenda viva de sua
desgraça; o coração confrangia-se em face dele. Por outro
lado, seu espírito infantil reconhecia a inocência do negociante;
e por vezes contemplava nele o documento eloqüente do valor e generosidade
de João Canho.
Tornando porém o sujeito repetidas vezes, e recebido com mostras
de bom agasalho pela viúva, começou o menino a incomodar-se
com as visitas. Desejara que sua mãe não acolhesse com bondade
o estranho, e nem mesmo o visse. Se no princípio afastava-se do Loureiro,
agora, mal o avistava, saía para evitar que lhe falasse. Durante a
visita, levava a chamar pela mãe sobre qualquer pretexto, e a importuná-la
com o fito de fazer que deixasse a companhia do hóspede.
Já próximo do casamento, uma das amigas da viúva talvez
de acordo com esta, deu-lhe a primeira notícia.
— É mentira! É mentira!… gritou a criança
em desespero.
Como insistisse a mulher, afirmando ser verdade, Manuel atirou-se a ela
com furor, rasgando-lhe a roupa e arranhando-lhe o rosto com as unhas. Foi
necessário que a mãe o castigasse. A pobre alvissareira jurou
nunca mais se intrometer com semelhante diabrete.
Dias depois, estando Loureiro em casa da viúva, sucedeu sair ao campo,
depois do almoço, para dar uma volta a pé. Observou ele que
Manuel o seguia, e demorou-se a esperá-lo, talvez com o desejo de granjear
enfim as boas graças do teimoso menino. Este, porém, que o viu
parar, fez o mesmo. Seguiu pois o negociante, mas sempre acompanhado de longe
pelo filho de Canho. A tentativa reproduziu-se duas vezes sem resultado.
Muito adiante, percebeu Loureiro perto de si ligeiras pisadas; voltou-se.
Ali estava o menino, e trazia empunhada uma grande faca, maior que o seu braço;
sem dúvida era a de João Canho.
Receou Loureiro que o menino, projetando alguma travessura, viesse a ser
vítima da arma:
— Para que é esta faca, Manuel?
— Para te matar!
— A mim? Que mal lhe fiz eu, meu filho?
— Não sou teu filho!… gritou a criança querendo
ferir.
Enquanto o negociante subtraía-se aos golpes, esforçando por
arrancar a arma das mãos do menino, ele rangia os dentes, repetindo
com voz surda:
— Não hás de casar com minha mãe!… Não
quero!
Francisca apenas soube do que era passado, quis castigar o filho e o faria
sem a intervenção de Loureiro. Depois ficou a cismar se o menino
teria razão naquela repugnância. As pessoas do seu conhecimento
a quem ela comunicou seus receios, os desvaneceram, zombando de semelhantes
escrúpulos. Não passavam de caprichos de criança os aborrecimentos
do Manuelzinho. O melhor remédio para isso era apressar o casamento;
breve o menino se acostumaria com o padrasto, e acabaria por estimá-lo,
como devia.
Casou-se enfim a viúva. Nesse dia ninguém viu Manuel.
— Onde estaria?
Abraçado com a cruz de pau que indicava, no meio do campo, o lugar
onde repousavam as cinzas de João Canho.
IV – MORZELO
Uma semana depois do casamento, Juca o filho mais moço da viúva,
que teria cerca de três anos, adoeceu.
A princípio a enfermidade se apresentou sem o mínimo caráter
de gravidade; não fizeram caso. Dias depois o mal tomou de repente
um aspecto assustador, e ao cabo de algumas horas sucumbiu a criança.
Ficou a mãe inconsolável, não só da perda de
seu filho mais querido, como também do pouco zelo que tivera no começo
da moléstia. O marido a acompanhou no pesar; os vizinhos e pessoas
da casa, todos, se mostraram sensibilizados com a morte do menino.
Manuel foi exceção no luto, como havia sido na alegria.
Enquanto os mais choravam, ele brincava risonho com o irmãozinho
morto e já posto no caixão.
Uma rapariga, que ali estava, pergunto-lhe:
— Você não tem pena de seu maninho?
— Pena de quê?… Ele vai para onde está nosso pai.
não quis o outro que lhe deram, não!… Também eu
hei de ir, mas depois que tiver feito uma coisa!
Com a perda do irmão, ainda mais arredio da casa tornou-se o menino,
do que era desde o casamento. Passava o tempo a campear, comia nos ranchos
com os peões, e muitas vezes sucedeu por lá dormir. A mãe
descansava sabendo que ele estava bom; e deixava-o em plena liberdade. A presença
do filho produzia um vexame inexplicável, se não era um vago
remorso.
Alguns meses passados, Loureiro falou em mudar-se para sua casa do Alegrete;
a mulher acedeu prontamente a esse desejo, e começaram os preparativos.
Ambos sentiam certa repugnância por estes lugares.
Manuel declarou desde logo que não sairia da casa paterna, senão
amarrado. Resolveram pois não contrariá-lo; havia na vizinhança
um velho peão, homem de confiança, a quem se podia incumbir
a guarda do menino, até que o isolamento em que ia ficar vencesse a
sua obstinação.
Tinha o negociante destinado a tarde da véspera da partida para fazer
suas despedidas aos moradores da estância. Nesse desígnio se
encaminhou para a varanda onde guardavam os animais.
Ali estava Manuel sentado em um cepo, divertindo-se em escovar o pêlo
de um cavalo. O animal nada tinha de bonito; era alto, ossudo e esgalgado,
mas saía-lhe fogo dos olhos, e a firmeza dos jarretes anunciava sua
força e impetuoso vigor. Chamava-se Morzelo; fora o cavalo predileto
de João Canho, o sócio de seus triunfos nas parelhas, o companheiro
fiel de suas excursões e viagens. Não havia em toda a campanha
de Bagé um corredor de fama como aquele.
— Arreie meu cavalo, disse o Loureiro a um peão que saía
da choça.
— O cavalo está se ferrando.
— Não há aí outro animal?
— Só o Morzelo, que foi do defunto.
— Pois arreie.
Manuel estremecera. Vendo entrar o peão, atirou-se ao peito do cavalo,
cingindo-lhe o pescoço com os braços, e procurando defendê-lo
com seu corpo contra o intento do rapaz, que se preparava par selar o animal.
— Não arreia que eu não deixo! exclamou o menino com
raiva.
Lágrimas de cólera e dor saltavam-lhe dos olhos, e caíam
sobre a cabeça do animal que ele apertava ao peito para subtraí-lo
ao freio. O Morzelo, dócil e submisso, deixava abraçar-se pelo
menino; mas a sua pupila negra às vezes incendiava-se e desferia rápidas
centelhas.
Acudiu o negociante que ouvira os gritos de Manuel e, retirando-o à
força, acenou ao peão indeciso:
— Ponha o freio!
— Não há de pôr! gritou Manuel. Quer tomar o cavalo
de meu pai, como já tomou a mulher. Está muito enganado!
O teimoso menino, aproveitando-se da comoção que suas palavras
tinham produzido no negociante, escapou-se e travou do freio, forcejando por
tirá-lo da mão do peão. Nova luta se travou entre Loureiro
e o enteado, a quem o desespero duplicava as forças.
O negociante irritado subjugou o menino contra as varas da ramada, enquanto
o peão, assoviando com certa indiferença escarninha, acabava
de arrear o animal.
— Solta-me, demônio! gritava Manuel.
— Meio, sossegue, se não quer que o amarre.
— Tu és capaz?
O peão acabara de selar o cavalo, que puxara para fora da ramada. Prendendo
Manuel dentro da palhoça, o negociante saltou na sela, antes que o
alcançasse o menino que forcejava por abrir a cancela, mal segura com
uma correia.
Vendo Loureiro montado no cavalo, sucumbiu o menino. Com o semblante horrivelmente
pálido, os braços caídos e o corpo vacilante, seus olhos
pasmos projetavam-se das órbitas, com o arrojo de sua alma, para o
animal que não podia proteger.
Entretanto o Morzelo, parado ainda, fitava de esguelha a pupila nos olhos
do menino, soltando um relincho soturno, que lhe arregaçava o beiço,
e mostrava a branca dentadura. Seria acaso um riso sardônico do cavalo?
O caso é que os olhos do menino irradiaram; e do choque dos dois lampejos
súbitos, chispou uma centelha ardente. Nesse momento, não obedecendo
o Morzelo ao toque das rédeas, o negociante roçou-lhe as esporas.
Estremeceu todo o brioso cavalo, mas estacou, na aparência calmo; foi
quando o negociante fincou-lhe as rosetas, que ele girou sobre os pés
com espantosa rapidez, e atirou-se pelo campo fora aos trancos, semelhante
a uma bala que salta fazendo chapeletas.
O menino seguia a cena com ansiedade; seu peito ofegava; a respiração
ardente lhe crestava os lábios entreabertos; por vezes seu rosto como
que imbutia-se em uma lividez marmórea, cuja expressão era má
e sinistra.
De repente soaram dois gritos: um de prazer, outro de angústia.
O Morzelo, abolando o corpo, rodara pela cabeça, esmagando o cavaleiro
no chão duro e pedregoso. Quando o peão chegou em socorro do
negociante, já o achou moribundo.
A esse tempo o cavalo correra para Manuel que o abraçou, e saltando
ligeiramente na sela, começou a ginetear pelo campo. O árdego
animal, pouco antes furioso contra um cavaleiro destro e robusto, agora dócil
e submisso sob a mão débil de um menino, escaramuçava
pelo gramado soltando relinchos de alegria, e amaciando o galope para não
sacudir o gauchito.
V – A GUAIACA
Levaram o estancieiro em braços para a casa. Oito dias depois faleceu
em conseqüência do desastre.
Ficou Francisca outra vez viúva. Os dois infortúnios, sofridos
dentro de um ano, embotaram a pequena dose de sensibilidade que lhe coubera
em partilha. Tornou-se de uma indiferença extrema para os desgostos,
como para os prazeres. Quando, meses depois, deu à luz uma menina,
filha póstuma do segundo matrimônio, este acontecimento não
passou para ela de um acidente material; algumas dores curtidas, e mais uma
cria na casa.
Manuel cresceu, mas sempre concentrado e misantropo. Parecia que essa alma
em flor, crestada ao desabrochar, se confrangera em um capulho negro e rijo.
Lá se encontra no algodoeiro, entre as cápsulas cheias de alvo
e macio cotão, algum enfezado aleijão herbáceo que nutre
as larvas. Era o coração do rapazinho um aborto semelhante.
O espírito guarda ainda mais do que a matéria as primitivas
impressões. É uma lâmina polida a consciência do
menino, onde a luz da razão nascente esgrafia com extraordinário
vigor as primeiras imagens da vida. Muitos outros raios projetam depois em
nós sombras vigorosas, que todavia não desvanecem esse estereótipo
indelével da infância.
Para Manuel, o mito da realidade, bem cedo esboçado, foi a morte
do pai. ele entrou no mundo pelo pórtico da dor. O triste acontecimento,
que o arremessou prematuramente da infância à adolescência,
coincidiu com os outros fatos, que, embora restritos ao círculo da
família, e encerrados em um breve espaço de tempo, formaram
uma espécie de miniatura da vida. Nessa página se desenhou em
esforço a imagem da existência humana.
Das criaturas mais queridas do homem que se finara, uma, sua esposa e companheira,
subtraíra-se à memória daquele a quem jurara eterna fidelidade
e se entregara a um estranho. Outra, o Juquinha, débil criança,
desprendida deste mundo desde que lhe tinham morto o pai, roubado a mãe,
voara para o céu.
Os camaradas, esse apêndice da família, haviam passado do serviço
de Canho para o do Loureiro com a maior indiferença. Não pareciam
ligados a seu antigo patrão, mas ao dono da casa qualquer que ele fosse.
Não achava pois o menino em torno de si um coração
humano, que se identificasse com sua dor, e partilhasse a saudade que enchia-lhe
a alma. Só o cavalo, só o Morzelo, parecia compreendê-lo.
Esse amigo fiel não esquecera o dono, nem esmorecera. Depois da morte
do amansador, não consentiu que ninguém o montasse a não
ser o filho, porque este aprendera do pai a falar-lhe. Quando o intruso da
casa teve o arrojo de cavalgá-lo, suportou paciente a afronta, mas
para vingar o senhor.
Era essa a interpretação dada por Manuel à catástrofe
que matou Loureiro. Não lhe passava pela mente que esse acontecimento
fosse filho do acaso, enxergava nele a punição de um crime,
e uma lição que o brioso animal infligira à mulher ingrata.
Assim o primeiro símbolo do amor que se gravou n’alma de Manuel
não foi uma figura humana, porém o vulto de um corcel.
Isolou-se o menino cada vez mais do seio da família. Um cilício
moral interpôs-se entre o filho e a mãe; da parte desta era quase
um remorso; da parte daquele um profundo ressentimento. À natureza
inerte da viúva faltavam as ternas expansões do amor materno,
que podiam ainda mesmo dilacerando-lhe a alma nos espinhos, penetrar o coração
de Manuel e atraí-lo.
Mais tarde Jacintinha talvez pudesse vencer o afastamento do irmão
e trazer de novo seu coração ao regaço da família.
Adorava ela Manuel, mas tal respeito lhe infundia o gaúcho, que a enleava
e retraía. De um lado o rapaz sentia-se tomado de simpatia pela menina;
porém recalcava este impulso e o combatia, porque via nele uma cumplicidade
com o esquecimento de Francisca pela memória de João Canho.
Podia ele amar a filha do homem que fora causa da morte do pai? Devia considerar
sua irmã o fruto de uma união que ele condenava como um perjúrio
e uma ingratidão?
Foi deste modo que a alma do gaúcho emigrou, da família primeiro
e depois da sociedade humana, para a raça bruta que simbolizava a seus
olhos a fidelidade, a dedicação e a nobreza. Seu coração
ermo e exilado buscou naturalmente na comunhão dessas criaturas a correspondência
dos sentimentos inatos ao homem.
De semelhante exotismo moral há milhares de exemplos no mundo. Não
vemos a cada instante indivíduos nascidos no seio de uma família
honesta ou de uma classe superior, que se aclimatam na sentina da sociedade?
Em Manuel a aberração fora mais profunda, pois o lançara
longe de seus semelhantes; felizmente, porém, o coração
não se depravou; conservava suas afeições, elos morais
que só desamparam a criatura quando o vício gasta a alma; acreditava
no amor e na amizade; sentia a atração do bem. Mas toda esta
seiva robusta se transplantara para regiões estranhas e diferentes
daquelas, onde viçam e florescem as paixões humanas.
Desertando das afeições domésticas, não se eximira
contudo o rapaz de seus deveres de filho e irmão. Cedo compenetrou-se
da responsabilidade que pesava sobre ele como chefe da família. Loureiro,
tido em conta de abastado, só deixara dívidas; a pequena loja
pouco valia; e faltando quem a dirigisse, nada.
Ficar no mesquinho espólio de João Canho uma guaiaca de couro
de veado, bordada a fio de seda em pontos de debuxo. A aba ou capirota da
bolsa, era abotoada por uma moeda de prata. No centro de uma cercadura de
rosas, via-se um coração vermelho traspassado por uma seta verde.
Já tinham as cores desbotado com o tempo, mas o trabalho estava perfeito,
e revelava ainda sua primitiva beleza.
Fora esse o presente de amor que Francisca dera ao Canho, quando se namoravam.
Manuel, chamando a si exclusivamente os objetos de uso pessoal do pai, que
a mãe deixara à sua disposição, encontrou a bolsa
e chorou. Como fizera com a roupa e outros trastes, guardou-a para um dia
trazê-la consigo, quando fosse homem. Aceitando o encargo que lhe deixara
o pai de prover à decente subsistência da família, o rapaz
lembrou-se da bolsa, e abrindo-a para medir a capacidade, murmurou consigo:
— Cheia de onças e patacões, juntamente com a casa, chegaria
bem para minha mãe viver sossegada o resto de seus dias, e dar um dotezinho
a Jacinta. Então poderei dispor de mim; se morrer, não farei
falta a ninguém!…
Depois de ficar um instante pensativo, concluiu:
— É preciso que eu encha a bolsa.
Desde então a escarcela, fechada dentro de uma mala, recebeu todo
o dinheiro que o rapaz ganhou com seu trabalho. Tinham decorrido quase doze
anos depois da morte de João Canho, quando o gaúcho conseguiu
enchê-la.
Nesse dia Manuel foi rezar junto à cruz de pau, e repetir o juramento
que tinha feito, de vingar a morte do pai. Nada mais o detinha; assegurara
o futuro da família; agora podia dispor livremente de sua existência.
À noite, ao recolher-se, Manuel disse a Francisca:
— Esta madrugada saio para Entre-Rios.
— Boa viagem, meu filho.
— O que tem nesta bolsa é para a mãe e Jacintinha.
— A que vem isto agora?
— Talvez eu não volte!
— Manuel! balbuciou a viúva.
Jacintinha chorava.
O gaúcho afastara-se para escapar à emoção,
mas parou na porta, de costas voltadas para a mãe e a irmã;
hesitava; de repente voltou apressado, abraçou a ambas, e desapareceu.
Nos olhos borbulhava uma lágrima, que não chegou a brotar,
pois logo estancou.
Partira Manuel, e aí estava de volta, sem ter cumprido ainda o seu
terrível juramento. Depois de dois meses de ausência, não
achou um sorriso para a mãe e a irmã, de quem se podia ter separado
para sempre.
VI – MANO
No dia seguinte ao da chegada, mal rompeu a alvorada, já estava o
gaúcho com seus novos amigos, a baia e o poldrinho. Tirou-os fora para
respirarem o ar frio da manhã, e brincarem sobre a relva. Enquanto
caracolavam alegremente mãe e filho, Manuel, sentado num cocho de pau
lavrado, estava-se a lembrar de um bonito nome para dar ao poldrinho.
Jacintinha, aparecendo no alpendre, os viu e aproximou-se. Não deixava
a menina de sentir sempre um invencível acanhamento quando chegava-se
perto do irmão. O amor que lhe tinha a arrastava muitas vezes; e outras
mais a arredava; porque ela vivia entre dois receios, de importunar o irmão
com sua insistência, ou de o desagradar com sua esquivança.
Ao avistá-la, o primeiro gesto do gaúcho foi de enfado; não
pela irmã, mas por ele que desejava estar só, para gozar da
companhia de seus amigos. É necessário advertir que havia um
pudor extremo na afeição que Manuel votava aos animais. Se o
encontrassem a abraçar algum e a amimá-lo, como já tinha
acontecido, corava. Era a sós que as expansões de seu coração
desafogavam-no livremente.
— Oh! como é bonitinho, Jesus! Que veludo!… E as clinas!…
aneladas como os meus cabelos!
Estas exclamações soltara-as Jacinta cruzando as mãos
de admirada. Depois de um instante de contemplação, sentou-se
na outra ponta do cocho, e fazendo covo e regaço do vestido, começou
a chamar o poldrinho com essa linguagem especial que têm as mulheres
para cada espécie de animal, desde os pintainhos. Ao mesmo tempo que
os lábios apinhados exalavam um som muito semelhante a um muxoxo contínuo,
batia ela com os dedos no regaço.
Parece que a menina enfeitiçou o poldrinho, pois não tardou
ele em vir aos pulos pôr-lhe a cabeça ao colo, e entregar-se
nos seus braços. Sem mais cerimônia começou Jacintinha
a beijá-lo, e fazer-lhe cócegas nas orelhas; daí um momento
eram os maiores camaradas, e folgavam travessamente pelo gramado.
Foi de ciúme o primeiro movimento de Manuel, ao ver a simpatia das
duas crianças; e lembrando-se que o pai de Jacintinha roubara Francisca
à memória do esposo, e ao amor do filho, irritou-se.
Não bastava que lhe tivessem desterrado o coração da
família, ainda por cima vinham magoá-lo no exílio, perturbando
suas inocentes afeições e seduzindo o objeto delas?
Nisto reparou na égua, que a alguns passos olhava a menina a folgar
com o poldrinho. Um estranho não veria no animal coisa que lhe despertasse
atenção. Para o gaúcho, porém, a baia tinha uma
atitude; aquela posição frouxa e descansada sobre as quatro
patas, exprimia, em um animal brioso e árdego, certo embevecimento
de ternura, que ameigava-lhe o coração. A moça, criada
no campo, é assim; quando a fronte reclina, e o pezinho buliçoso
dorme sobre a esteira, não há que ver, tocaram-lhe no coração.
Mas, além do gesto, a baia sorria de prazer, e Manuel bem lhe percebia
os palpites que estremeciam os rins e se comunicavam, em doces vibrações,
à longa e basta cauda. Estava o animal possuído de uma terna
emoção que o enlevava.
Compreendeu Canho que a mãe sentia-se feliz vendo o contentamento
do filho. Os raios daquela pupila cintilante penetraram em sua alma, e apagaram
as sombras que um mau sentimento já aí espargia.
De repente o espírito do gaúcho achou-se envolto em uma dessas
ilusões agradáveis, que se estendem pelos horizontes da imaginação
como lindas miragens. Representou-lhe a mente um casal de belas criancinhas,
brincando na esteira; ao lado de uma linda moreninha que os contemplava rindo-se
de gosto.
E a ilusão foi tal, que Manuel começou a ver nas ondulações
do lustroso pêlo da baia as inflexões de um colo airoso e os
requebros sedutores do talhe da rapariga; nos saltos do poldrinho a graciosa
petulância do menino. Ao mesmo tempo que por estranha confusão
lhe parecia que as tranças aneladas de Jacintinha se desatavam pelas
espáduas como a formosa clina de uma poldrinha, e o pé travesso
batia o chão com a altivez e ardimento de um casco gentil.
Arrancou-o do êxtase a voz da irmã.
— Como se chama ele, Manuel?
— O poldrinho? … Não sei.
— Ah! ainda não tem nome!… Pois há de ser Destemido!
O gaúcho abanou a cabeça.
— Então, Voador.
Repetiu Manuel o gesto negativo.
— Está bom… Relâmpago?
— Não, disse Canho apanhando a lembrança que despontara.
Há de chamar-se Juca.
— Juca!… O maninho que…
Cravando um olhar rijo na menina respondeu ele pausadamente:
— Sim; o mano que morreu.
— Bravo! exclamou Jacintinha batendo as mãos.
E repetindo aquele gazeio do princípio, começou de chamar
o poldrinho, intermeando-lhe o nome.
— Juca!… Juquinha!… tome, tome!…
Correndo a ela o poldrinho, cingiu-o ao solo e o levou a Manuel.
— Ande, sô Juca, ande, venha abraçar o mano! Assim!…
A exclamação da menina, ao ouvir o nome do poldrinho, fora direita
ao coração do gaúcho. Aplaudindo essa ressurreição
de um ente querido na pessoa do lindo animal, Jacintinha entrara no ádito
daquela alma exilada da sociedade humana. Juca era o elo que os unia, pois
a menina se elevava até ele, considerando-o como um irmão. Pela
vez primeira, Manuel estreitou a irmã ao peito, cingindo-a e ao poldrinho
em um mesmo abraço. A égua veio roçar a cabeça
ao ombro do gaúcho; e assim consagrou-se a doce comunhão daquela
nova família.
— E ela?…
— Chama-se Morena, respondeu o gaúcho, beijando a baia entre
os olhos.
VII – A LANÇA
Tinha decorrido um mês quando Manuel se pôs de novo a caminho
para as margens do Uruguai, que atravessou no passo de Itaqui. Montava a Morena;
adiante trotava o Juca, e ao lado gineteavam o Morzelo, o Ruão e o
resto da tropilha.
Desta vez o gaúcho ia devagar; receava chegar cedo; tinha medo que
sua vingança lhe escapasse ainda.
No fim da outra semana, estava em Entre-Rios, na casa de Perez. Quis perguntar
pelo Barreda, e hesitou. Se ele tivesse morrido? Pouco durou essa inquietação.
O entrerriano passara pela pousada na véspera.
Manuel tomou outra vez, depois de três meses, a direção
da casa. Avistando-a, recordou-se do espetáculo a que assistira, e
sentiu um movimento de compaixão, que logo abafou.
O gaúcho não tinha ódio ao Barreda.
A vingança da morte do pai não era para sua alma a satisfação
de um profundo rancor; mas o simples cumprimento de um dever. Ele obedecia
a uma intimação que recebera do céu; à ordem daquele
que sempre tinha presente à sua memória. E obedecia friamente,
com a calma e impassibilidade do juiz, que pune em observância da lei.
Foi por isso que desta vez, avistando a casa, não sentiu a menor
emoção.
Recolheu a tropilha em um capoão e mudou os arreios da Morena, em
que viera, para o Morzelo. O generoso cavalo, amigo fiel de João Canho,
também devia ter sua parte na vingança.
Eram 11 horas do dia; uma trovoada estava iminente, que nublava o céu,
obumbrando os raios do sol.
Manuel atravessou a esplanada a galope, e chegando à porta da casa,
bateu com o cabo da lança. Instantes passados, apareceu na soleira
um homem de baixa estatura e forte compleição, orçando
pelos 50 anos. Era o Barreda; sua aparência já não conservava
o menor vestígio da grave enfermidade.
O gaúcho não deu tempo a que o entrerriano o reconhecesse,
nem mesmo o interrogasse.
— Tu não me conheces, Barreda. Sou Manuel Canho, filho do homem
que assassinaste cobardemente. Bem sabes o que me traz aqui à tua porta,
depois de doze anos.
O castelhano recuara por precaução, apenas percebera o intento
do gaúcho:
— Não tenhas medo: se eu fosse um assassino como tu, há
muito tempo já teria te estendido morto, antes que soltasses ai Jesus!
Vim para te matar em combate, e restituir a teu coração a lança
que deixaste no corpo de meu pai. Encilha o cavalo, toma as armas, e sai cá
para o campo.
— Então reza o credo, que és um homem morto.
Fechou-se a porta, e o Canho, parado a uma quadra, esperou o entrerriano.
Este não tardou, vinha bem montado, e trazia um arsenal de armas: pistolas
nos coldres, faca à cinta, lança na garupa, e as bolas meneadas
na mão direita.
Os dois inimigos arremeteram com igual sanha. À meia carreira o Barreda
lançou as bolas; mas o Morzelo, atento e destro nesse exercício,
parou, e de um tranco pôs-se fora do alcance do terrível projétil.
Brandindo a lança, Manuel correu então sobre o castelhano.
Mas este já tivera tempo de armar as pistolas, e com elas em punho
esperava o gaúcho para atirar pelo seguro, a alguns passos de distância.
Não logrou seu intento, pois o gaúcho fazendo escaramuçar
o Morzelo, procurou de longe iludir a pontaria, para precipitar-se contra
o inimigo apenas este lhe deixasse uma aberta, e cravar-lhe a lança.
Foi então uma luta de rapidez e agilidade entre cavalos e cavaleiros;
enquanto estes mudavam de atitude a cada instante, ora mascarando-se com o
corpo do animal, ora, quando fugiam à desfilada, voltando a frente
para não perder os movimentos do inimigo, os cavalos de seu lado apostavam
de ligeireza e força nos galões que davam para o lado, e na
prontidão com que empinavam para rodar sobre os pés, ou arremessar
o salto.
Afinal o gaúcho, aproveitando um descuido, investiu contra o Barreda,
que desfechou um sobre outro seus dois tiros. Longe de se estirar pelo flanco
do animal para cobrir-se, Manuel se expôs para não sacrificar
o Morzelo: mas ele confiava na sua ligeireza e na segurança do olhar.
A cada tiro mergulhava, por assim dizer, no espaço que o separava da
terra.
Ágil também, o castelhano evitou a ponta da lança,
mas com o choque dos dois animais, esbarrado na disparada lhe resvalou um
pé até o chão. Nada seria, pois facilmente ganharia ele
a sela, se o Morzelo não tivesse mordido com raiva o pescoço
do castanho.
Vendo-se desmontado, Barreda correu para ganhar a porta da casa, onde se
ouvia alarido e choro de mulher.
Tomando então a manopla, e fazendo voltear as bolas, o gaúcho
atirou-as; o castelhano caiu estropiado a cinqüenta passos da casa. Em
um instante Manuel estava sobre ele, calcando-lhe o pé no peito.
— Pede perdão a Deus, que chegou tua hora.
O castelhano de raiva emudecera.
A mulher do Barreda prostrava-se nesse momento aos pés de Manuel,
implorando compaixão para o marido. Riu-se o gaúcho com dureza
e escárnio:
— Virá outro marido para a consolar.
Arredando a desgraçada mulher, chegou o ferro da lança aos
olhos do castelhano:
— Conheces!… É a lança com que há doze anos
feriste meu pai à traição. Eu jurei que havia de cravá-la
em teu coração, mas depois de vencer-te em combate leal. Chegou
o momento.
Com uma calma feroz, espetou o ferro da lança, no corpo do assassino
de seu pai, atravessando-lhe o coração como faria com uma folha
seca.
Morzelo, que se conservava imóvel ao lado, durante toda esta cena,
avançou a um sinal do senhor, e porventura ensinado, pisou com a pata
a face contraída do moribundo, que ainda estremeceu, ante essa derradeira
afronta.
Enquanto a vítima se debateu nas vascas da agonia, Manuel a contemplou
friamente. Quando se apagou o último vislumbre de vida, se afastou
sem lançar um olhar de compaixão à mulher desmaiada.
Nessa ocasião, o cavalo do morto chegou-se ao corpo para o farejar,
soltando lamentos de dor. Comoveu-se o gaúcho com essa prova de amizade;
e aproximando-se acariciou o animal.
Queria ele consolá-lo da perda que sofrera?
Súbito cortou os ares um henito fremente e aflito, ao tempo que reboava
pela campanha o estrondo de um tiro.
Manuel Canho tombou, rolando pelo chão.
VIII – A CRUZ
Tanto que Manuel lanceara o entrerriano assomava no teso fronteiro um peão.
Era esse o mesmo negro que, dois meses antes, o gaúcho encontrara
perto da casa, em companhia do frade chamado para confessar Barreda. Pertencia
ele à estância da qual era capataz o morto.
Percebendo o que sucedera, e conhecendo que seu auxílio já
não podia salvar a vítima, colheu o negro as rédeas ao
cavalo, que a princípio arremessara na esperança de chegar a
tempo. Saltou no chão, e por cima da sela, armado o trabuco, preparou
a pontaria com a maior atenção.
Quando teve bem firme pela mira a bota direita do gaúcho, o que lhe
dava certeza, com o desconto da arma, de atravessar o coração
da vítima, um sorriso de caçador arregaçou o beiço
do negro, que desfechou o tiro.
Antes porém que batesse o cão da espingarda na caçoleta,
repercutira a dois passos um relincho agudo.
Era a Morena. Saindo do mato, onde a deixara o gaúcho, a égua
parara um instante no alto da lomba, e estivera contemplando de longe a cena
do combate. Chegava justamente o peão, cujos movimentos despertaram
a atenção do corajoso e inteligente animal.
Pressentiu a égua que a pontaria feita pelo peão ameaçava
a existência de seu amigo, do homem que a restituíra a seu filho?
Ou obedeceria ela a um impulso repentino, levada unicamente pelo desejo de
correr ao lugar onde estava o Morzelo?
Ninguém sabe até onde se pode elevar o instinto do bruto generoso,
sobretudo quando se põe em comunicação com almas da têmpera
de Manuel Canho.
Arrancando aos galões, a Morena dispara como uma bala. Ao passar
por junto do peão, desfechou-lhe nas costas um coice que o atirou de
bruços sobre a macega, aos pés do cavalo; e foi esbarrar junto
ao corpo de Canho, estendido numa barroca do terreno.
Estancando aí para farejar o corpo, sobre o qual também o
Morzelo estendia o focinho, a égua soltou outro relincho estridente,
e rodando sobre os pés volveu a corrida com igual velocidade, na direção
onde havia tombado o peão. Tão pouco tempo decorrera, que este
ainda não se recobrara da dor e surpresa, e jazia emborcado no chão.
Ouvindo o estrupido do animal que se aproximava e receoso de uma nova refrega,
o negro levantou a cabeça a custo, e estremeceu. A égua estava
sobre ele; porém, coisa mais terrível do que o vulto do animal
tinham distinguido seus olhos.
Na altura do braço esquerdo da Morena, onde termina a omoplata, apareceu-lhe
um semblante ameaçador que o espavoriu. Ao mesmo tempo, semelhante
à projeção de mola de aço, vibrou um punho que
arrebatou-lhe da mão o trabuco fumegante.
O Canho pois não estava morto, como supusera o negro, nem sequer
ferido.
Para o gaúcho, o rincho era a palavra do cavalo; ele compreendia
o sentido dessa linguagem rude, mas enérgica. Na Morena sobretudo,
nenhuma impressão, nenhum movimento traduzia a voz do inteligente animal,
que não repercutisse fielmente n’alma do rio-grandense.
Ouvindo-lhe o nitrido, Manuel adivinhou às primeiras notas o soçobro
do temor e a angústia, pela trêmula vibração da
voz sempre límpida e argentina. Voltando-se de chofre, entreviu rapidamente
o salto da égua e o vulto do negro com o trabuco apontado para ele.
Antes do pensamento já o instinto da conservação o tinha
lançado ao chão, contra uma leiva natural do terreno, que o
podia proteger.
Fora inútil, se a Morena o não tivesse prevenido, derrubando
o negro antes que o tiro partisse. A mãe extremosa acabava de pagar
sua dívida de gratidão ao homem que lhe salvara o filho, salvando
por sua vez a existência do generoso amigo.
Manuel o compreendeu; quando ele caiu, já o tiro havia soado, e contudo
não fora ferido, nem ouvira sibilar a bala. Estremeceu, pensando que
em sua dedicação o intrépido animal se houvesse sacrificado,
arrojando-se contra a arma assassina.
Com que extremo de gratidão e alegria não cingiu ele o colo
da Morena, inquieta por vê-lo no chão! A égua, porém,
não lhe deu tempo de acariciá-la, pois voltou sobre os pés,
levando suspenso à espádua o gaúcho seguro apenas pela
ponta da bota na anca, e pela mão esquerda segura na cernelha. Não
passara de todo o perigo; o negro ainda conservava na mão a arma homicida.
Arrebatando-a, Manuel a brandiu nos ares, para esmigalhar o crânio
do inimigo. Este, erguendo meio corpo sobre os cotovelos, juntou as mãos,
implorando compaixão.
Ainda o gaúcho pôde ver o movimento quando já desfechava
o golpe; imprimindo à arma diverso impulso, foi ela, girando como a
pedra de uma funda, cair longe numa touça de macega.
— Vai enterrar teu capataz, disse Manuel.
O negro obedeceu à ordem. A haste da lança, cravada no coração
da vítima, surdia fora da cova cerca de uma braça. Manuel quebrou
um troço da outra lança com que pelejara Barreda, e atou-o de
través com um tento de couro cru, formando os braços de uma
cruz.
Terminada assim a triste cerimônia, procurou no campo uma pedra para
deitá-la no pé da cruz, sendo ele o primeiro a praticar esse
ato de piedade e respeito pelas cinzas do morto.
Muita gente ignora o que significa esse costume de chegar o passante uma
pedra para a cruz, erigida à beira do caminho. É uma singela
devoção do povo. Em falta de lousa, sela-se o túmulo
com um cômoro de seixos.
Quando Manuel partiu desse triste lugar, sentiu na face uma ligeira umidade:
era lágrima, ou gota de suor que lhe escorria da fronte?
Atravessando a Banda Oriental, o gaúcho passou a fronteira em Jaguarão.
Queria ver Bento Gonçalves e falar-lhe. Depois do que fizera, carecia
para viver tranqüilo da aprovação de seu padrinho. O coronel
era para ele o símbolo da coragem, da honra, da justiça, da
virtude. Aquilo que ele achasse bom devia merecer a graça de Deus.
Bento Gonçalves tinha em Camacã duas propriedades: a chácara
do Cristal, residência habitual de sua família, e a estância
de São João, distante daquela quatro léguas. O serviço
militar porém o retinha constantemente em Jaguarão, onde aquartelava
o 4º regimento de cavalaria, cujo comando reunia ao da fronteira.
Muitas vezes o chamavam fora da vila as necessidades do serviço,
ou visitas às próximas estâncias, nas quais havia de ordinário
jogo forte de parada. Como todo o homem habituado a uma existência cheia
de perigo e agitações, o coronel carecia das emoções
desse passatempo.
IX – A VIOLA
Em caminho da fronteira, que ele acabava de transpor para a vila, teve Manuel
a fortuna de encontrar o coronel. O comandante oriental, D. Frutuoso Rivera,
o convidara para uma tertúlia.
— Pois agora é que voltas, rapaz? exclamou o coronel, reconhecendo
o afilhado. Já te supunha estaqueado!
— Ainda não, meu padrinho! disse o gaúcho a rir.
— É que os tais amigos são da pele do cão; o
cuchillo não lhes cochila na mão, replicou o coronel fazendo
um trocadilho com o nome castelhano de punhal.
— Desta vez, cochilou e está dormindo, que só há
de acordar no dia do juízo.
— Então?…
Esta pergunta do coronel foi acompanhada de um revés da mão
direita estendida, figurando o bote de uma espada.
— Nada; plantei-lhe no coração a lança que ele
deixara lá em casa há doze anos.
— Conta-nos isso, rapaz. Quero ver como te saíste.
O coronel suspendeu a perna no estribo, e descansando sobre o quadril, dispôs-se
a ouvir a narração do Canho.
O gaúcho referiu tudo o que passara entre Barreda e ele; mas simplesmente,
sem encarecer a sua intrepidez e destreza nem desfazer no adversário.
O gaúcho tinha consciência, mas não orgulho de seu valor.
Para um rio-grandense, e especialmente para o filho de João Canho,
ser bravo, tanto como o mais bravo, era obrigação. Não
havia mérito nisso.
— Muito bem, Manuel.
— Então, meu padrinho, acha que não me saí mal?
— Caramba! Desafiaste sozinho teu inimigo e o mataste em combate leal,
escapando à traição! Melhor do que isso não há!
Até serviste de médico e enfermeiro ao sujeito; e o puseste
são para a viagem do outro mundo.
Acompanhou o coronel estas palavras com uma grande risada. Nesse momento
excitou-lhe a atenção um salto da égua. O lindo animal,
vendo a comitiva do comandante, parara em distância; mas a pouco e pouco
se fora aproximando. Como tentasse um camarada pôr-lhe a mão
na espádua, ela relanceou dum pulo, saltando uma touceira de cardos.
— Oh! Que lindo animal trazes tu, Manuel! exclamou Bento Gonçalves
com satisfação de picador. É para negócio? Abre
preço, rapaz!
— Não, senhor, esta não se vende.
O gaúcho hesitou balbuciando:
— Mas se meu padrinho…
— Nada, Manuel; sei o amor que a gente toma a estes brutos. Aposto que
lhe queres tanto bem como à tua namorada.
Na despedida, quando o gaúcho lhe beijava a mão, o coronel
deixou-lhe na palma uma onça de ouro.
— Em Jaguarão comprarás uma mantilha de ponto real,
e um turbante de plumas: a mantilha é para minha comadre, o turbante
para tua namorada.
E dando de rédeas ao ginete, sumiu-se em uma nuvem de pó.
Era dia de Nossa Senhora da Conceição.
A vila tinha ares domingueiros; acabara a missa havia pouco tempo; ainda
as ruas estavam cheias de grupos de mulheres com mantilha e homens em trajo
de cidade.
Apeou-se Manuel Canho a uma loja, onde se vendiam fazendas, chá,
rapé e quinquilharias. Escolheu a mantilha para sua mãe, e um
turbante de plumas escarlates para Jacintinha. Naquela época esse toucado
era uma das últimas novidades da moda; consistia em uma faixa de cetim
bordada a ouro, cingindo a cabeça em forma de coifa, e ornada com duas
ou três plumas que se anelavam pelos cabelos.
Acomodados os dois objetos na boceta de folha de pinho, que ele ocultou
debaixo do poncho, Manuel encaminhou-se à venda, onde da vez passada
tinha pousado.
Junto do balcão estava uma grande roda de peões e gente do
povo a beber genebra e a parolar. No alpendre, que seguia em continuação
à queda da taberna, via-se também outra roda de peões;
estes já haviam molhado a garganta e se entretinham em descantes ao
som da viola, a qual ia correndo de mão em mão, à medida
que passava ou acudia a inspiração.
Eram mais ou menos os mesmos sujeitos que aí estavam reunidos no
dia do desarmamento de Lavalleja. Na primeira roda destacava o Lucas Fernandes,
antigo miliciano que exercia agora o ofício de seleiro. Na segunda
se distinguiam o Félix, rapaz sacudido de seus vinte anos, que ainda
era aparentado com o seleiro e trabalhava na sua tenda; finalmente o ferrador,
o tropeiro, o carneador e o peão, que tinham, havia dois meses, se
apresentado como noivos à Catita e por ela foram recusados.
Também aí estava o Chico Baeta fazendo roda a uma formosa
rapariga de cabeção de cacondê e saia de cassa branca
com ramagens azuis. Era a Missé, que trazia o peão de canto
chorado.
No momento em que entrou o Canho, cabia a mão ao carneador, sujeito
largo de ombros e corpulento bastante. Tendo aparecido a Catita começou
o tocador a requebrar-se para ela, ruminando consigo um mote para cantar-lhe.
Nesse dia estava a Catita toda faceira e cheia de si, com uma saia curta
de cetim azul, um corpinho de belbutina escarlate franjada de prata, e sapatinho
raso de duraque com meia de renda que mostrava o moreno rosado da perna roliça.
Tinha chegado naquele instante da missa; e ouvindo tanger a viola na venda
que ficava contígua à sua casa, correu para lá com a
petulância e liberdade próprias da cidade e educação
da gente de sua classe.
O carneador, que também era barqueiro, pois remava nas lanchas da
charqueada, para trazer a carne à vila onde se baldeava para os iates,
lembrou-se de tirar o tema do verso da segunda profissão, mais poética
sem dúvida que a de matar reses.
Saiu-se por isso com esta quadrinha:
Lá vem um barco à bolina,
Carregadinho de flor;
É meu coração, menina,
Atopetado de amor.
À cantiga do barqueiro respondeu Catita com um momo de enfado, levantando
os ombros desdenhosamente e voltando-lhe as costas. A menina tinha birra antiga
do sujeito, não só pelas enormes bochechas e imenso corpanzil,
como pelas denguices com que ele a perseguia desde certo tempo.
Já se afastava da roda a menina, quando arrependendo-se ou talvez
sentindo o arrojo do estro que também ela cultivava como flor agreste,
voltou-se com um riso brejeiro, e ao som da viola tangida pelo carneador,
atirou-lhe com a pontinha do beiço esta resposta.
Sou canoa pequenina
Do rio do Jaguarão…
Repetiu duas vezes este começo, dando tempo talvez para acudir-lhe
a rima; por fim terminou assim:
Sou canoa pequenina
Do rio do Jaguarão,
Não vejo barco à bolina,
O que vejo é tubarão.
A última palavra foi acompanhada de uma careta, com que a Catita procurou,
insuflando as bochechas, arremedar ao carneador. Uma estrondosa gargalhada,
que desnorteou o sujeito, aplaudiu por muito tempo o epigrama da menina.
Corrido, o tocador para não dar o braço a torcer, ainda continuou
por alguns instantes a baralhar desengraçadamente na viola, até
que descartou-se dela entregando-a ao Félix.
Por sua vez o rapaz fez seus requebros à Catita, que ria-se, mas
não lhe dava corda. Havia no trato da menina para com o oficial da
tenda de seu pai um ar de superioridade, que percebia-se à primeira
vista, e contra o qual Félix não se revoltava; ao contrário
o aceitava com humilde submissão. Essa arrogância que ele não
sofreria do mestre da tenda, nem de qualquer outro homem, causava-lhe íntimo
prazer . via nela um sinal do bem que Catita lhe queria.
Entretanto o Canho, tendo afrouxado a cincha do Morzelo, enquanto descansava,
aproximou-se da roda para ouvir os descantes e assistir ao passatempo, não
perdendo de vista a Morena e o poldrinho que excitavam a admiração
e os gabos dos entendidos.
Catita foi uma das que se recostaram ao parapeito do alpendre para festejar
o Juca, nesse dia de uma travessura e gentileza sem igual. Ora gambeteava
como um cabrito pela rua afora, subindo ao respaldo das casas; ora começava
a fazer afagos e negaças à mãe, pronta sempre a brincar
com ele.
Vendo a menina debruçada no parapeito e desejoso de chegar-se, Félix
ofereceu a viola a quem desejasse.
— Então, gente, não há quem queira?
Ao que parecia, já estavam todos satisfeitos da brincadeira, pois nenhum
dos peões tomou o instrumento, pouco havia tão disputado.
— Já que ninguém quer!… disse o Canho estendendo
a mão.
Depois de afinar a viola, e acertar um acompanhamento simples e fácil,
porém vivo como o trinado do sabiá, o Canho, encostando-se na
ombreira da porta e erguendo os olhos ao céu, como quem procurava ali
no azul diáfano o raio da inspiração, começou
a descantar.
Sua voz era cheia e sonora. Apesar de um tanto áspera, não
deixava de haver doçura nas notas vibrantes que se desprendiam de seus
lábios; mas era a harmonia agreste dos lufos do vento no descampado,
ou do canto da seriema na macega do banhado.
Começou ele atirando o mote de seu descante, neste rápido
estribilho:
Livre, ao relento,
Pobre, sem luxo,
N’asa do vento
Vive o gaúcho.
A atenção geral foi vivamente excitada. As pessoas presentes
fizeram roda e ficaram suspensas dos lábios do Canho, cuja fisionomia
torva de ordinário, brilhava nesse momento iluminada por lampejos de
inspiração.
X – O TURBANTE
Depois de uma pausa, o Canho feriu de novo as cordas da viola. A roda se
apoderara do estribilho, que repetiu em coro, respondendo Manuel alternadamente
ao mote com uma das coplas da cantiga.
Livre, ao relento,
Pobre, sem luxo,
N’asa do vento
Vive o gaúcho.
Quanto possui, traz consigo,
Dorme no chão sobre a grama,
Serve-lhe o poncho de abrigo,
A xerga da sela é cama.
Livre, ao relento, etc.
No banhado, na coxilha,
Onde pára, chega em casa;
Dá-lhe o churrasco a novilha,
Dos ossos arranja a brasa.
Livre, ao relento, etc.
Ainda não rompe a aurora,
Já no rancho o mate chupa;
Por estes campos afora,
Sempre a correr. Upa!… Upa!…
Livre, ao relento, etc.
No rio é barco, navega,
Montado no seu cavalo;
No campo faísca e cega
Saltando por sanga e valo.
Livre, ao relento, etc.
Ponteiro como o tufão,
Rompendo os montes d’areia,
Pincha a manopla da mão
Que o touro feroz boleia.
Livre, ao relento, etc.
Vence o ginete ligeiro
Na caça o veado arisco.
Tem as asas do pampeiro,
Tem o fogo do corisco.
Livre, ao relento, etc.
A ema veloz alcança,
Como um gigante, seu braço,
Que rijo meneia a trança
E longe arremessa o laço.
Livre, ao relento, etc.
Arreda! Arreda!… No campo
Lá vem roncando a borrasca.
Não é trovão, nem relampo,
Mas sim a fúria dum guasca.
Livre, ao relento, etc.
Senhor de todo este pampa
Que tem o céu por dócil;
Rei do deserto, ele campa
No trono do seu corcel.
Livre, ao relento, etc.
S’está na vila ao domingo,
Na toada da viola
As saudades de seu pingo
Cantando, o peito consola.
Os aplausos que por diversas vezes tinham interrompido o trovador, prorromperam
afinal. Onde aprendera o gaúcho letra tão bonita? Era tirada
de sua cabeça, ou tomada de alguma cantiga que ouvira nas cidades?
Soltando a última nota, Manuel afastou-se rapidamente e sentou-se na
outra ponta do alpendre onde lhe trouxeram almoço. A roda a pouco e
pouco se foi dispersando; e instantes depois já não restava
senão um ou outro amigo da cachaça, que não podendo bebê-la
por falta de cobres, ao menos queria sentir-lhe o cheiro consolador.
De repente sentiu o Canho cingir-lhe o pescoço um colar macio e tépido;
eram os braços da Catita que ela tinha enlaçado como uma cadeia.
Voltando o rosto surpreso, viu o gaúcho um rostinho mimoso, banhado
em um sorriso provocador, e esclarecido por um olhar lânguido e fagueiro.
— Você me dá aquele poldrinho, sim? dizia a voz, doce
como um favo de mel.
Manuel desatou secamente o enlace que o prendia, e desviou-se da menina
aborrecido. Aquele pedido lhe parecia uma ofensa; e o modo por que fora feito
ainda mais o contrariava.
Arredando-se do lugar onde estivera sentado, procurou esquecer-se da menina;
acabado que foi o almoço, acendeu o cigarro, ajustou os arreios, e
cuidou de pôr-se a caminho.
Ia montar quando sentiu que lhe faltava alguma coisa: era a boceta que deixara
ficar sobre o banco onde a princípio estivera sentado. Voltou a procurá-la.
Catita a tinha visto, e movida pela curiosidade, sem pensar na indiscrição
que cometia, a abrira. A vista do lindo turbante a fascinou; quis experimentar
se lhe servia; ajustou-o na cabeça; e começou a faceirar-se
pelo alpendre, segurando nas saias em ar de mesura.
Nessa ocupação a veio achar o Canho; dos dois o mais enleado
não foi ela, que breve recobrou a sua petulância ordinária
e saiu-se com um gracejo.
— Já sei que foi para mim que trouxe este lindo toucado. Fico-lhe
muito obrigada, disse fazendo-lhe uma mesura. Serve-me perfeitamente; e até
diz com o meu corpinho de belbute!
Em verdade não se podia imaginar um enfeite mais gracioso para aquele
rostinho gentil, moldurado pelas tranças aneladas de uns lindos cabelos
negros. Catita parecia um anjinho de procissão, como os vestem ainda
hoje, com um trajo bem profano.
O olhar aveludado que ela deitava a Manuel e o sorriso que lhe brincava
nos lábios, ninguém imagina que brilho, que beleza e sedução
davam a esse mimoso semblante.
Manuel, alcançando a mantilha, fugiu sem importar-se com o turbante,
e tão depressa que nem ouviu a voz da menina a chamá-lo:
— Moço, tome o seu toucado!
Quando o Lucas Fernandes saiu fora, já o gaúcho sumira-se na
estrada; daí induziu o seleiro que fora aquilo um meio de dar o presente
a Catita. Ele não acreditaria por certo que um homem tão desempenado
como o gaúcho tivesse medo de uma criança de treze anos.
Em Bagé comprou o Canho outro presente para Jacintinha, em substituição
do turbante. Desta vez escolheu um indispensável, nome que davam então
a uns sacos de seda bordados de miçangas.
XI – MANCEBO
Cresceu o Juca.
Manuel esmerou-se em sua educação. A seiva era ardente e generosa;
o exemplo da mãe, assim como os conselhos e desvelos do amigo, desenvolveram
com extraordinário vigor aquela natureza impetuosa.
Assistindo a essa expansão de força e instintos nobres, sentia
o gaúcho júbilos paternos.
As gentilezas do poldro o faziam palpitar; tinha verdadeiro orgulho, não
de possuir, mas de dominar pelo amor como uma criatura sua, o bizarro animal.
Quando ia à povoação e a gente corria às portas
para vê-lo passar, montada na linda égua, e acompanhado pelo
formoso poldrinho que caracolava ao lado, tinha-se o gaúcho em conta
do homem mais feliz e invejado de toda aquela campanha.
Às tardes os dois irmãos, pois Jacintinha fora admitida ao
grêmio dessa mútua afeição, passavam a brincar
com a Morena e o Juca. Manuel, depois que não era só a querer
os seus amigos, perdera aquela nímia suscetibilidade de pudor, que
dantes tanto o segregou; o exemplo da menina o animava. Demais, quem somente
os olhava era Francisca, sentada no alpendre. Essa não se dava do que
faziam os filhos; nem mesmo sentia o isolamento moral em que eles a deixavam.
Todavia, no meio do contentamento destes brincos, tinha Manuel às
vezes um soçobro. Vinha sentar-se à parte, silencioso. Admirando
o donaire da Morena e os flexuosos contornos de suas formas, suspirava; alguma
coisa faltava àquela beleza, que ele não sabia definir. Todas
as cordas do coração vibravam com as emoções que
nele despertava a companhia desses amigos queridos; mas uma havia, que logo
depois de percussa, distendia-se brandamente, sob o mágico influxo
de uma saudade que se dilatava além, pelo tempo afora.
O gaúcho não tinha outro passado, além da infância
monótona e triste que vivera naquela estância; todas as suas
recordações estavam encerradas na casa paterna. Entretanto às
vezes sentia ele vagas reminiscências de uma delícia inefável,
que lhe invadia os sentidos e se apoderava de toda sua alma. Então
errava-lhe ante os olhos uma linda imagem de mulher vaga e indecisa, que talvez
já vira, mas não se lembrava quando; e, coisa singular, essa
imagem assomava como uma transformação do vulto gracioso da
Morena.
Muitas outras vezes, punha-se Manuel a observar a menina e a baia, e inadvertidamente
se esquecia ao ponto de compará-las, como se fossem criaturas da mesma
espécie: duas raparigas, uma ainda menina, e a outra já moça.
Pareciam-lhe mais lindas que os anelados cabelos louros de Jacinta, as clinas
negras e crespas da baia. Era alva a menina, alva como o leite derramado sobre
uma conchinha de nácar. Ao irmão se afigurava que seria mais
sedutora nas faces e pelo colo da mulher, uma tez ardente e voluptuosa como
a tinha a Morena. Esbelteza de talhe, mimo de formas e graças titilantes
de beija-flor, ninguém as possuía como a filha do Loureiro;
e contudo aquela vigorosa carnação das ancas e o esgalgo dos
rins, que debuxavam a estampa da baia, Manuel as contemplava com deleite.
Devia de ser aquele o tipo da beleza na mulher.
De repente as duas criaturas se confundiam, ou antes se transfundiam. Esse
vulto gracioso de menina crescia, tornava-se donzela e revestia as prendas
que ele invejava da Morena, para uma bonita moça. E daí, dessa
alucinação dos espíritos, surgia um sonho ou visão,
que um poeta chamara seu ideal; mas para o rude gaúcho era apenas seu
feitiço.
Essa visão tinha o moreno suave e o sorriso fagueiro da menina que
ele vira em Jaguarão; mas sobretudo, a cintilação do
olhar que lhe traspassara o coração como a faísca de
um raio.
Depois de semelhantes desvarios, ficava o gaúcho preso de um estranho
acanhamento. Não se chegava para as duas criaturas; nem mesmo se animava
a deitar-lhes os olhos. Se acaso alguma delas vinha fazer-lhe uma das costumadas
carícias, o esquisito rapaz se afastava corando. Em compensação
redobrava seu carinho pelo poldro. Abraçava-o com transportes veementes,
e o envolvia da mística efusão paternal, que é uma refração
do amor conjugal. Quando o homem estreita o filho ao coração,
ele sente palpitar naquele tenro seio duas vidas; a primitiva donde ele gerou-se,
que é uma vida dúplice e mútua, e a recente, borbulha
ainda aderente ao tronco por dois pontos, a teta materna e a mão do
pai.
Não obstante o crescimento precoce de Juca, não quis Manuel
embotar esse vigor nascente: deixou que se expandisse livremente na plenitude
da natureza selvagem. Aos três anos porém atingira o potro seu
completo desenvolvimento. Aquela gentileza infantil dos primeiros pulos cedeu
ao arrojo viril do salto e ao passo altivo do corcel. O casco batia e escarnava
o chão com ufania; já a pupila incendiava-se com os fogos da
paixão, e o relincho, que ele soltava aos ares, tinha a máscula
vibração do clarim.
Enfim estava Juca um mancebo.
Quem já provou o contentamento de se reviver no filho homem, compreenderá
o que sentiu Manuel nesses dias. Pela primeira vez montou ele o soberbo ginete,
e deu algumas voltas pelo campo. Insensivelmente lhe acudiu a lembrança
daquele tempo em que seu pai, João Canho, o levava, a ele novato, em
sua companhia para habituá-lo a viajar.
Tinha Juca a beleza da mãe com que se parecia na elegância
do talhe e esbelteza da forma. Entretanto sob essa estampa, igualmente fina
e delicada, palpitava uma estrutura mais nervosa e robusta. A mesma roupagem
dourada não tinha as suaves ondulações da baia; ao contrário,
inflamava-se com vivos e brilhantes reflexos.
XII – CAMARADA
Enquanto aí nesse canto desliza a existência obscura e tranqüila
do Canho no seio da família, além ensaia-se o drama terrível
que breve há de ensangüentar a província e transformá-la
em um campo de batalha.
Desenvolvia-se nesse momento o prólogo da revolução,
que não tardaria a romper.
Desde 1832, quando se realizou em Jaguarão o desarmamento de D. Juan
Lavalleja pelo coronel Bento Gonçalves da Silva, plantaram-se na província
os germes de uma conspiração, no sentido de proclamar a independência
da república. O caudilho oriental tinha empregado os maiores esforços
para fomentar essa propaganda, que favorecia seus planos de trêfega
ambição.
Data desse tempo a criação das sociedades secretas, ramificadas
por todos os pontos da província. Aí se preparavam, sob a invocação
de liberdade, os elementos políticos para a revolução,
cuja tendência real havia de ser determinada no momento pelos homens
de influência, que assumissem a direção dos acontecimentos.
Retirando-se da província, onde permanecera algum tempo, Lavalleja,
de volta a Buenos Aires, obteve para o futuro estado a proteção
secreta de Rosas, já elevado à ditadura, pela necessidade da
salvação pública, como o declarou o congresso. Acompanhara
ao caudilho o Fontoura, que tão saliente papel veio a representar na
república de Piratinim. Naturalmente assistiu ele às conferências
onde se planejou a grande Confederação do Prata, formada dos
três estados independentes: de Buenos Aires sob a ditadura de Rosas,
Montevidéu sob a ditadura de Lavalleja, e Rio Grande sob a ditadura
de Bento Gonçalves.
Nesse partido que se preparava para a resistência armada, havia uma
fração que era francamente republicana, e aspirava à
independência para formação de um estado unido da grande
Confederação do Rio da Prata. O espírito republicano
dominava essa fração a tal ponto que desvanecia de momento a
repugnância tradicional das duas famílias da raça latina.
Mais tarde essa antipatia se teria de manifestar, como sucedeu com a Cisplatina.
Neto e Canabarro eram a alma da opinião republicana.
A outra fração muito mais numerosa do partido da resistência
não tinha idéias de separação e independência.
Limitava-se a restaurar e manter o que chamava liberdade, palavra tão
vaga na linguagem dos partidos, que em seu nome se cometem os maiores atentados
contra a lei e a justiça.
A essa numerosa parcialidade, da qual era chefe incontestado Bento Gonçalves
da Silva, o homem de maior influência na província, aderiram
sinceramente não só os liberais da campanha como a classe militar,
decaída do antigo lustre com a política democrática e
pacífica, inaugurada pela revolução de 7 de abril.
Assim, por uma contradição muito freqüente em política,
dois interesses opostos, mas ofendidos, se reuniam para destruir o obstáculo
comum. É o efeito dos governos fracos e perplexos como foi o da regência
trina; sofrem ao mesmo tempo a irritação dos aliados e o desprezo
dos adversários.
Por muito tempo Bento Gonçalves, apesar da sedução
do mando supremo, que sorria à sua ambição, resistiu
às instâncias do grupo republicano. A história lhe fará
essa justiça: que sua energia, a lealdade de seu caráter, e
o grande prestígio de seu nome, contiveram a revolução,
desde muito incubada no ânimo da população.
Porventura não atuaria no espírito do coronel o princípio
monárquico tão fortemente quanto o sentimento da nacionalidade
e sobretudo da dignidade da raça. Como brasileiro devia repugnar-lhe
a comunhão com os povos de origem espanhola, que ele, veterano encanecido
nas pelejas, havia combatido desde os primeiros anos.
Nem podia escapar à sua perspicácia o futuro que estava reservado
ao Rio Grande, na sonhada confederação. Fora preciso cegar-se
completamente para não conhecer que o novo estado seria mais uma presa
do caudilho feliz, que nos devaneios de sua ambição aspirava
à restauração do antigo vice-reinado de Buenos Aires,
para trocar então por uma coroa o chapéu de ditador.
Receoso da agitação que se manifestava na província,
o governo da regência chamara à corte Bento Gonçalves,
e afirma-se que ele voltara disposto a empregar sua influência em bem
da ordem pública. A verdade é que, embora acusado de excitar
os ânimos, não se aproveitou para proclamar a revolta de tantas
ocasiões que lhe ofereceram repetidos motins, especialmente o de 24
de outubro de 1834.
Bem longe de defender a revolução, a julgou talvez com extrema
severidade. Não foi unicamente um crime político, um atentado
à integridade do Império, foi mais do que isso: foi um grande
erro que felizmente não se consumou. A separação do Rio
Grande seria um sacrifício de sua nacionalidade, que brevemente ficaria
absorvida, senão aniquilada pela anarquia das repúblicas platinas.
Não se decepa um membro para dar-lhe força.
A história, superior às paixões, restabelecerá
a verdade dos fatos. Não é meu propósito antecipá-la.
Dessa página apenas destaco o vulto do homem que figurou como protagonista
da tragédia política, em cuja cena também se representou
o drama simples e obscuro que me propus narrar.
Sucediam-se os dias na vaga expectativa de um acontecimento, que parecia
inevitável, quando correu a notícia da demissão de Bento
Gonçalves, apeado pelo presidente dos dois comandos, o do 4º corpo
de cavalaria e o da fronteira de Jaguarão. Esse e outros atos de energia
teriam sopitado a resistência, cuja fraqueza contagiava os auxiliares
da administração. A mudança do presidente, talvez com
uma concessão a Bento Gonçalves, reanimou seu partido, sem contudo
satisfazê-lo.
A demissão do coronel foi considerada como um desafio lançado
pelo governo à revolução; e portanto estabeleceu-se na
campanha uma convicção de que o rompimento dessa vez era inevitável.
Esse ato enchera a medida do descontentamento.
Manuel soube da notícia em uma estância próxima, onde
a trouxera um peão chegado naquele momento de Bagé. Entrando
em casa, achou a mãe e Jacintinha sentadas numa esteira a trabalhar.
— O coronel foi demitido!
Não se disse mais palavra. Todos compreendiam o alcance do fato. Passado
o primeiro movimento de surpresa, Francisca levantou-se e foi procurar a mala
velha de João Canho; enquanto a filha tratava de arranjar a roupa do
irmão, a velha limpava a reiúna, encostada e sem serventia desde
1812. Manuel de seu lado revistava seus arreios, o laço e as bolas,
consertando ou substituindo as peças estragadas.
Estes preparativos de longa ausência, talvez eterna, duraram dois
dias. Ao cabo deles, o gaúcho abraçou a mãe e a irmã,
que se debulhavam em pranto, e montando no Juca, partiu a galope acompanhado
da Morena e mais tropilha.
Em caminho soube que o coronel já não estava em Jaguarão,
e se retirara à sua estância. Seguiu, portanto, na direção
de Camacã, onde chegou ao cabo de oito dias de jornada.
Bento Gonçalves tomava seu mate chimarrão passeando na varanda.
— Então, que novidade é esta?
— Eu assim que soube, vim. Bem si que meu padrinho não precisa
de mim; mas o coração me pedia.
— E por que não hei de precisar de ti, rapaz? disse Bento Gonçalves
abraçando-o. Estava justamente eu à procura de três camaradas
valentes e prontos para tudo. Assim arranjo-me contigo que vales por três,
mas tens um corpo só, o que não dá tanto na vista como
um farrancho de capangas.
— Força, não terei; mas boa-vontade tenho por dez. Pode
ficar certo.
Bento Gonçalves ia freqüentemente a Porto Alegre, onde gozava
de uma grande popularidade conquistada por seu caráter franco, gênio
liberal e maneiras cavalheirescas. Em princípio, essas excursões
tinham um fim político; irritado com a demissão, assentara de
reagir, ameaçando a presidência com manifestações
populares em favor de sua causa.
Satisfeito porém o amor-próprio com o receio que seu nome
incutia, descansou na certeza da mudança próxima, não
só do presidente, como do governo-geral pela eleição
de Feijó para o cargo de regente. O fim das constantes visitas a Porto
Alegre já não era senão dar pasto à prodigiosa
atividade, consumindo o tempo nos divertimentos da capital, e nos jogos de
azar onde se perdiam grandes somas.
Depois de sua chegada a Camacã, era Manuel quem acompanhava Bento
Gonçalves nessas excursões freqüentes. Naquele tempo não
havia segurança pelos caminhos; e um homem da posição
do coronel devia ter muitos inimigos, para com razão acautelar-se contra
qualquer surpresa.
Tal era porém a confiança que tinha em si e no camarada, que
viajava tão tranqüilo como no meio de uma escolta.
XIII – A PROMESSA
Uma semana tinha decorrido, depois que Manuel Canho deixara Ponche-Verde.
Deviam ser 10 horas da manhã.
Estava Jacintinha sentada no alpendre da casa ocupada em bordar a crivo
uma nesga de cambraieta. Seus dedos ágeis iam debuxando os relevos
do desenho, estampado em um molde cujos lavores apareciam sob a transparência
do linho.
A linda menina prometera a Nossa Senhora cobrir com uma toalhinha bordada
por suas mãos o berço de seu adorado Menino Jesus, para que
a Virgem em sua infinita bondade conservasse à mãe o filho ausente.
Por isso, desde muitos dias se ocupava a menina tão assiduamente
com esse trabalho. Estava impaciente por cumprir a promessa, e assegurar para
seu querido irmão a proteção da Mãe de Deus. Em
sai fé ingênua, imbuída das crenças populares,
pensava ela que o favor divino dependia dessa humilde oblação.
Acabada a toalhinha e levada ao altar para servir no dia de Natal, Manuel
ficaria invulnerável; não haveria mal que lhe chegasse mais.
Soou no campo o tropel de uma cavalo. Erguendo os olhos com a curiosidade
própria de sua vida retirada e monótona, viu Jacintinha um cavaleiro
desconhecido; pelo ar, como pelo trajo, dava mostra de não ser do lugar.
Tinha um chapéu de abas curtas e reviradas, com galão à
moda espanhola; calções e jaleco de pano verde-escuro bordado
com torçal escarlate; faixa de seda vermelha; e botas à escudeira.
O cavaleiro também de seu lado já tinha descoberto Jacintinha,
e olhava para ela atentamente. Passando além da casa, voltou-se na
sela e assim caminhou algum tempo para não perder de vista a moça.
Seguiu o desconhecido na direção do pequeno povoado, que se
compunha apenas de uma dúzia de casebres agrupados na margem do arroio.
Não havia decorrido meia hora, quando ele tornou pelo mesmo caminho,
passando segunda vez em frente à casa. Agora, porém, trazia
o cavalo, a sacar, não só para mais garbo do andar como para
disfarce da demora.
Esse passo alto e cadente, que o animal tira com nobreza, apesar de vivo
e pronto, pouco avança; e sucede muitas vezes, colhendo a rédea
o cavaleiro, ser marcado no mesmo lugar, à semelhança de um
soldado quando executa uma evolução. Foi justamente o que sucedeu
daquela vez.
Quase fronteiro ao alpendre, o desconhecido fez o cavalo brincar no mesmo
terreno, sem adiantar uma polegada; ao contrário, de vez em quando
empinava o garboso ginete, que passarinhando recuava a escarvar o chão.
No meio destes floreios o cavaleiro cortejo com um gesto de galanteria a
moça, que excitada pelo rumor erguera os olhos, porém logo os
abaixou confusa para o bordado, onde ficaram pregados.
Depois de algumas escaramuças, para chamar de novo a atenção
da menina, vendo que era baldado o intento, usou o cavaleiro de uma estratégia.
Fez empinar o ginete e soltou um grito fingindo espanto ou medo. Assustada,
Jacintinha voltou-se, cuidando que uma desgraça sucedera ao desconhecido.
Mas este, risonho e sempre galante, fez um novo cortejo com o chapéu,
e partiu a galope, antes que a menina voltasse a si da surpresa.
No dia seguinte repetiu-se a cena da véspera, com a diferença
de que Jacintinha já prevenida noa mostrou a mesma curiosidade, embora
até certo ponto a sentisse. Em vez de olhar de frente para o cavaleiro,
ela acompanhava de esguelha seus movimentos, parecendo unicamente ocupada
com o bordado.
A insistência do desconhecido em passar todas as manhãs afugentou
Jacintinha do alpendre ao cabo de três ou quatro dias. De dentro da
casa, pela fresta da janela, sem ser vista, reparava quando o mancebo já
de volta de seu passeio, sumia-se ao longe; e então ia tomar o cantinho
do costume.
Um dia o desconhecido, suspeitando do que passava, depois de ter acabado
seu passeio, escondeu-se por perto. Quando a menina tomou seu lugar, ele aproximou-se
sem que o percebessem, e ficou enlevado em contemplar a beleza da irmã
de Manuel. Por acaso Jacintinha deu com os olhos nele, assim embebido em êxtase
e adoração; estremeceu, empalidecendo de susto; quis erguer-se
para fugir, mas caiu sobre o banco, e aí ficou palpitando com a cabeça
baixa e o corpo inerte.
O desconhecido tinha desaparecido, e três dias não voltou.
À tarde, aparecendo uns dois peões que vinham ver a viúva
e saber notícias do Manuel Canho, falaram das novidades da terra e
contaram o que se dizia pelas vendas e povoações a respeito
da rusga.
— Agora está arranchado na estância um chileno que veio
da outra banda, e vai até Cruz Alta; ele diz que a rusga não
tarda.
— Pois decerto, desde que demitiram o compadre, acudiu Francisca.
Jacintinha estremeceu, ouvindo falar no estrangeiro. Foi com a voz trêmula
e disfarçando sua confusão que ela perguntou a um dos peões,
enquanto o outro continuava a conversa com a mãe:
— Esse sujeito que chegou… também vai para a rusga?
— Qual! Anda vendendo seu negócio, e o mais é que traz
coisas bem chibantes! Não quer ver? Ele mostra…
— Não! respondeu Jacintinha banhada em uma onda de púrpura.
Quando se retiraram os peões, a moça no meio das cismas em
que se enleava seu espírito, murmurou consigo:
— Qualquer destes dias ele se vai embora e eu fico descansada.
Livro Terceiro
MORENA
I – A MULA
Cruzando a coxilha grande, que atravessa a província de São
Pedro, se alonga a serra do mar, como a bossa granítica daquele espinhaço.
Ao norte ficam as altas regiões, as chapadas da montanha; ao sul
dilata-se a imensa campanha que vai morrer nas margens do Uruguai e do Paraná.
Estas vastas campinas, que se desdobram pelas abas da coxilha grande, são
como as páginas de um capítulo da história do Brasil.
O dorso da coxilha é o lombo do livro; as folhas espalmam-se de um
e outro lado. Aí escreveram as armas brasileiras muita coisa admirável:
grandes feitos, combates gloriosos, brilhantes painéis em rude tela.
Que recordações heróicas não despertam os nomes
de São Borja, Ibicuí, Rosário, Corumbá, Índia-Morta,
São Carlos, Catalã, Taquarembó e Paissandu!
A imperícia e negligência lançaram, é verdade,
feias nódoas no brilho daquelas páginas, e algumas por infelicidade
bem recentes nódoas. As fronteiras onde outrora foi Artigas batido
sucessivamente em vários combates, percorreu-as impune há quatro
anos o bárbaro paraguaio, desde São Borja até Uruguaiana;
e ao cabo dessa afronta, sitiado por forças três vezes superiores,
esfaimado e inanido, logrou uma capitulação honrosa.
Ainda bem que o heroísmo brasileiro acaba de escrever nas laudas
selvagens do Paraguai uma grande epopéia. A lembrança daqueles
erros do passado, já de todo a apagaram as vitórias memoráveis
de Riachuelo, Tuiuti, Curuzu, Humaitá, Itororó, Peribebuí
e outras jornadas gloriosas.
Sete anos havia que na campanha rio-grandense cessara o estrépito
das armas. Depois que Buenos Aires, temendo a reação do patriotismo
brasileiro afrontado com as tristes jornadas de Sarandi e Itusaingó,
pedira a paz, a província de São Pedro gozou de alguma tranqüilidade.
Embora às vezes repercutisse na fronteira a agitação
dos estados vizinhos, as labutações pacíficas da indústria
sucederam geralmente às lides guerreiras.
Entretanto quem percorresse a campanha no mês de agosto de 1835, observaria
certo movimento que não era normal, e desaparecera desde a paz de 1829.
Pelas estradas encontrava-se a cada instante gente armada, que ia se reunindo
pelo caminho, e formando pequenas partidas; assim como em sentido inverso,
famílias que emigravam de um para outro ponto da província.
O aspecto animado daquela gente, a sofreguidão que se traía
em sua marcha, o ar resoluto das fisionomias queimadas pelo suão, eram
sintomas bem claros da próxima luta.
Essa agitação que se propagara por toda a fronteira, desde
Jaguarão até São Borja, convergia para as proximidades
da capital, mas especialmente para as margens do Piratinim. Aí, ao
que parecia, era o ponto de reunião; as próximas estâncias
situadas à beira do rio, estavam desde muitos dias cheias de hóspedes
e peões, recém-chegados.
Onde o movimento se fazia mais sentir, era na estrada que, partindo de Porto
Alegre como a aorta dessa nascente civilização, se bifurca na
Encruzilhada, e lança as duas artérias tibiais uma para Uruguaiana
e outra para Jaguarão. Por esta segunda estrada, em um dos últimos
dias de agosto, caminhavam alguns viajantes que se dirigiam da vila do Erval
à de Piratinim.
Adiante algumas braças, ia uma moça que teria pouco mais de
dezesseis anos, apesar do completo desenvolvimento de sua beleza. A roupa
de montar era de ganga; a saia, que se desfraldava em largas dobras, não
apagava de todo os contornos das formas graciosas, cujo firme relevo traía-se
com o movimento da equitação. O jaquéu justo, talhado
à guisa de fardeta curta de soldado e enfeitado de alamares e dragonas
de retrós, desenhava com a correção do cinzel antigo
um busto encantador.
Era a moça de um moreno suave, que nos momentos de repouso, em contraste
com o jaquéu escuro, se desvanecia; porém quando a agitava alguma
comoção, sua cútis velutava-se com o fulvo arminho de
uma corça. Nunca sob róseas pálpebras brilharam com tão
vivo fulgor, mais lindos olhos crioulos, grandes e rasgados; nem brincou,
entre lábios feiticeiros, sorriso mais brejeiro e provocador.
Sobre o trançado opulento que lhe cingia a nuca, trazia a moça
um chapéu verde-claro, de pêlo de seda e copa alta, com uma fita
branca e um ramo de rosas por tope. Atualmente esta parte do traje da formosa
cavaleira seria um atentado inaudito contra o bom-gosto e tornaria horrível
a mais gentil das amazonas, que pelo verão galopam nos passeios de
Petrópolis. Naquela época porém era a moda, e em geral
a achavam tão bonita, como a das botas que hoje trazem as senhoras.
O caso é que o tal chapeuzinho verde, todo enfeitado, dava ao rosto
da moça um arzinho pimpão, que enfeitiçava.
A seu lado ia outra cavaleira mais idosa e cheia de corpo; essa porém
montava de escancha como um homem. Era o uso antigo nas províncias
do sul. As bandas do vestido aberto de chita, que lhe caíam a um e
outro lado, descobriam até o joelho as pernas da gorducha amazona.
Seguiam a alguma distância dois cavaleiros com um traje ambíguo
entre paisano e militar; um deles vestia a farda da antiga milícia;
o outro apenas tinha barretina e patrona do mesmo uniforme. Ambos porém
traziam sobre os ombros o infalível poncho de pano azul, forrado de
pelúcia vermelha.
Pouco mais era de meio-dia. O sol abrasava, embora a espaços as baforadas
da brisa mitigassem a calma. Crestada pelo sol, a macega parecia o pêlo
arrepiado de um mula xucra.
Os dois viajantes haviam interrompido por momentos uma prática bastante
animada; o da farda, homem de 50 anos, magro, de barba cerrada, cogitava;
o outro, rapaz de 25 anos, tendo passado as rédeas pelo dedo mínimo
da mão esquerda, estava ocupado em preparar com a faca a palha para
um cigarro.
— Assim mesmo, Sr. Lucas Fernandes, estou quase apostando que a coisa
há de dar em nada, disse o mais moço, tirando uma fumaça.
Tantas vezes que os homens depois de tudo arranjado se arrependem!
— Hein! respondeu o mais velho, caindo em si da distração.
Que diz?
— Digo que ainda tenho meu medo de ver tudo isto dar em água
de barrela.
— Medo tenho eu, Félix, de chegarmos tarde, quando já
o negócio estiver acabado. Queria ter o gostinho de entrar com o coronel
em Porto Alegre, para ensinar aquela cambada.
— Tal e qual o senhor me disse, vai fazer um ano, e não passamos
do Erval; agora talvez que fiquemos por Piratinim ou Camacã.
— Se estou dizendo que o negócio desta vez é sério!
Quando saía de Jaguarão, o Neto me disse: “Quem for patriota
há de estar em Piratinim até o fim de agosto.” Vê
você?
— E onde foi ele?
— Ninguém sabe ao certo; mas eu suspeito que foi longe entender-se
com os castelhanos; não que precisemos deles, mas para ter as costas
guardadas. Sempre é bom.
— Pois olhe, Sr. Lucas, eu cá antes queria ter pelas costas
um touro bravo, do que um castelhano manso. A maneira de guardar a gente as
costas, é dar neles de rijo. O Neto bem sabe disso.
— Ele lá sabe o que faz, que o tal de Buenos Aires, o Rosas,
também está metido nisso. No caso de ser preciso, o sujeito
nos ajudará a escovar o pêlo aos imperiais.
— A falar a verdade, eu antes queria sová-los, a eles. Enquanto
me lembrar do que fizeram aí por Bagé e Alegrete, que me contou
meu pai, não se acaba esta gana que tenho de tirar uma desforra. Quer
que lhe diga, Sr. Lucas Fernandes, eu estou que sentiria mais prazer em meter
a faca no lombo de um castelhano, do que em abraçar a mais bonita rapariga
de Buenos Aires.
— E cuida você, que eu também não lhes tenho vontade?
Mas é preciso paciência para suportar por algum tempo ainda;
depois que nos tivermos livrado cá da cáfila dos imperiais,
então é que os castelhanos hão de ver a cor do riscado.
Eles pensam que é uma coisa, mas há de sair-lhes outra muito
diversa.
A este ponto foram os dois viajantes obrigados a interromper a conversa,
por causa de um pequeno incidente.
A mula em que ia a moça tinha empacado à beira da estrada,
e resistia aos esforços da cavaleira. Com as orelhas espetadas, olhos
ardentes e pêlo erriçado, o lindo e possante animal parecia farejar
algum perigo oculto.
— Que é isto, Catita? perguntou Lucas.
— Esta mula hoje não está boa, Sr Lucas, não
sei o que tem, disse a gorducha. Todo o caminho veio torcendo-se, e agora
não quer andar!
— Que remédio tem ela? acudiu Félix.
— Não é nada, mamãe! disse Catita.
— Depois levas aí um trambolhão?
— Ora qual, Vidoca! atalhou Lucas.
— Esqueci-me da minha esporinha, por isso está brincando comigo,
tornou Catita a rir.
— Espere que eu a ensino.
Félix avançou, vibrando com força o rebenque.
— Heta, mula!
Aquela interjeição enérgica soou ao mesmo tempo nos lábios
do rapaz e na anca da mula, onde o látego estalou com força.
A mula partiu escoiceando, no meio das risadas dos dois viajantes. Era destra
cavaleira a Catita; apesar dos saltos do animal, ela manteve-se firme na sela,
e sem perder a elegância de seus movimentos. Contudo dificilmente continha
a mula, que irritada com o castigo corria forcejando por tomar o freio.
Nisto ouviu-se ao longe o rincho sonoro de um cavalo.
Buffon distinguiu no cavalo cinco espécies de rincho, que exprimem
suas diversas paixões. O rincho da alegria, no qual a voz se eleva
sustentando-se por muito tempo e expira em sons agudos. O rincho da cólera,
breve, crebro e estridente, acompanhado pelo estrépito das patas. O
rincho do temor, breve também, porém rouco e cheio, semelhante
ao rugido do leão. Finalmente o rincho da dor, que é antes um
gemido ou estertor da respiração opressa.
Há porém além destes um nitrido vibrante e incisivo
que é a interjeição do cavalo, quando chama o companheiro
distante. Era desta espécie o que tinha repercutido naquele momento
pela campanha.
Respondeu-lhe perto um nitrido mais possante que vibrou pelos ares.
II – O ALAZÃO
A moça erguendo os olhos, viu sobre o alto de uma pequena coxilha,
ao lado do caminho, assomar um cavalo.
A formosa estampa se debuxa contra o azul diáfano do horizonte, como
uma estátua de bronze sobre alto pedestal. O porte é majestoso;
a atitude briosa e arrogante. Com a fronte erguida, coroada pela crina soberba
que o vento agita como a juba do leão, o altivo corcel lança
pelo vale um olhar sobranceiro. A mão esquerda finca na terra, com
o jarrete de aço distendido, enquanto a destra, batendo amiúde
mas cadente, escarva ligeiramente o chão.
A roupagem é do mais puro e brilhante alazão, sobre o qual
destaca a seda opulenta das crinas e da longa cauda, bem como a orla de branco
arminho que cinge-lhe a raiz do casco alto, de rijas tapas, fino e bem copado.
Outrora os mestres da nobre arte da gineta acreditavam que dos quatro elementos
da natureza derivavam as cores predominantes na raça hípica,
e daí tiravam indícios a respeito das qualidades e defeitos
do animal. Assim o preto indicava a terra, o branco a água, o castanho
o ar, e o alazão o fogo.
Quem visse o lindo ginete, cujo pêlo cintilava com os raios do sol,
acreditaria que realmente aquele soberbo animal tinha nas veias o fogo que
dardejava na pupila negra, e cujo fumo resfolgava dos grandes alentos na respiração
ardente. Os hipogrifos, que combatiam entre chamas, deviam vestir aquela auréola
esplêndida, que envolvia o brioso corcel.
Tinha esse cavalo os traços que entre os árabes indicam o
animal de fina raça. Cabeça pequena e descarnada; fronte larga,
alçada com ardimento e nobreza; grandes e proeminentes, os olhos límpidos
que afrontavam o sol; orelhas curtas, rijas, canutadas, e tocando-se nas extremidades,
pescoço largo e na volta garboso, como o colo do cisne; as pernas delgadas
e nervosas, mostrando no relevo dos músculos sua firmeza e elasticidade;
o peito amplo e vigoroso; a anca redonda, mas fina; os flancos delgados, esbeltos
e flexíveis.
Não pertencia, porém, o corcel à aristocracia hípica
do Oriente; era um selvagem americano, um filho dos pampas. Viera das tropas
bravias que povoam as estepes do Sul; provinha dos baguás que montavam
os guaicurus. Tinha melhor genealogia que as coudelarias dos califas; descendia
da natureza virgem; nascera no deserto.
Não recebeu a América, do Criador, as três raças
de animais, amigos e companheiros do homem, o cavalo, o boi e o carneiro.
Este fato, que à primeira vista parece uma anomalia da natureza, revela
ao contrário um desígnio providencial. Regenerar é a
missão da América nos destinos da humanidade. Foi para esse
fim, que Deus estendeu de um pólo a outro este vasto continente, rico
de todos os climas, fértil em todos os produtos, e o escondeu por tantos
séculos sob uma prega de seu manto inconsútil.
O gênero humano pressentiu esta alta missão regeneradora da
América, dando-lhe a designação de Novo Mundo. De feito
é nas águas lustrais do Amazonas, do Prata e do Mississipi,
que o mundo velho e carcomido há de receber o batismo da nova civilização
e remoçar.
Para não exaurir, mas concentrar, a seiva exuberante da terra virgem,
despovoou-a o Criador daquelas raças nobres, que ela estava destinada
a juvenescer. Mas apenas a semente caiu na vigorosa argila que a esperava,
desenvolveu-se com uma possança formidável. Como ao homem europeu
e a todos os animais domésticos que formam a família irracional,
como a todos os produtos úteis do velho continente, a América
adotou o cavalo; mas a este parece que o concebeu no seio do deserto, e o
fez selvagem de seus pampas.
Tem o potro americano sobre o potro árabe a grande superioridade
da natureza. A liberdade é força e beleza; nem há no
mundo outra nobreza real e legítima, senão essa. A elegância
da forma, a altivez da expressão, a coragem, o pundonor e o brilho,
são donaires que ao homem, como ao cavalo, dá a consciência
de sua liberdade.
Do espartano, que ainda hoje nos enche de admiração com o
exemplo de seu heroísmo e sobriedade, fazemos o maior elogio nesta
frase — “era um cidadão livre”. Daquele brioso cavalo
se podia dizer da mesma forma, para exprimir com eloqüência a sua
formosura e nobreza; “era um corcel livre”.
Nenhum homem o escravizara jamais; nenhum se atrevera a castigá-lo;
era indômito ainda como no tempo em que percorria os pampas nativos.
Mas o potro selvagem tinha um amigo, quase um pai, a quem o ligara um profundo
sentimento de gratidão. E daí sem dúvida lhe provinha
a altivez e majestade que ressumbrava em seu porte.
O contato de nossa raça desvanece no animal o espanto selvagem que
sente ainda o mais intrépido na presença do rei da criação.
A amizade do homem inspira, sobretudo ao cavalo, uma emulação
generosa, um heroísmo admirável. O Bucéfalo de Alexandre,
o Morzelo de César, e o Orélia do rei D. Rodrigo, foram dignos
dos heróis a quem serviram.
Não tivera a moça tempo de admirar a linda estampa do alazão,
porque apenas se desvaneceu ao longe o eco do relincho, ele desceu a coxilha
à disparada, e atravessando a estrada, sumiu-se por detrás de
uma restinga de mato.
Aí, encontrou outro animal, no qual era fácil reconhecer a
Morena, pelas formas esbeltas e elegantes, vestidas da linda roupagem baia.
Fora ela que chamara o filho. Pouco depois apareceram o Morzelo e o Ruão,
nossos antigos conhecidos, que tinham seguido de perto o Juca.
Todos juntos se aproximaram do lugar onde estava o Canho deitado sobre o
pelego à sombra de uma árvore. O gaúcho não dormia,
mas tinha os olhos fechados e o rosto coberto com a aba do poncho. Parecia
prostrado pela fadiga; tinha feito em duas semanas mais de duzentas léguas.
Quinze dias antes estava em Camacã quando recebeu um recado de Bento
Gonçalves que o chamava a toda a pressa.
O coronel lutava com um acesso de cólera terrível. Cruzava
o aposento de uma a outra banda, trovejando como um temporal desfeito.
— Por quem me tomam eles!… Pensam que admito semelhante loucura?
Estão enganados!… Tinha que ver que eu fosse por minhas mãos
entregar o continente ao mazorqueiro!…
Manuel surpreso daquela agitação, esperou que o coronel se apercebesse
de sua presença.
— Ah! estás aí?…
Bento Gonçalves foi a uma banca onde estavam emaçadas algumas
cartas que ele acabara de escrever.
— Monta a cavalo, Manuel, e não pares enquanto não estiverem
entregues todas estas cartas. Começarás pelo Rio Pardo e acabarás
em Alegrete, na estância do coronel Bento Ribeiro. Aí poderás
descansar. Tens dois soberbos corredores, o Juca e a Morena; és o primeiro
peão que eu conheço. Se não deres conta da mão,
ninguém mais o fará decerto.
— Fique descansado, meu padrinho, disse o gaúcho.
E partiu.
Na véspera passara por Bagé, de volta de sua comissão:
tomara a estrada de Piratinim por um atalho, deixando Erval à direita;
e fizera ali uma parada, contando chegar à vila por volta da noite.
Os animais pararam, a olhar afetuosamente o gaúcho; porém
o Juca, mais afoito, chegou-se perto e farejou-lhe o rosto para ver se dormia,
ou talvez para avisá-lo que era tempo de pôr-se a caminho. Habituado
a estas familiaridades, Manuel descobriu o rosto e correspondeu ao afago do
alazão puxando-lhe carinhosamente a orelha.
De repente ecoou pelo campo um grito no meio de confuso tropel.
Erguendo-se rapidamente viu o gaúcho alguns animais de carga a correr
pela várzea, e mais longe uma mula corcoveando para arrojar de si a
moça que a montava. Um preto se lançara com a intenção
de tomar-lhe o freio; porém, o animal furioso o tinha arremessado ao
chão.
Quando o alazão passara pelo caminho a todo o galope, acudindo ao
chamado da Morena, uma tropilha, que seguia o mesmo caminho dos viandantes,
se espantara. As bestas retrocederam de corrida; o rumor dos couros que cobriam
a bagagem ainda mais exasperou a mula que tomando o freio disparou, apesar
de todos os esforços da gentil cavaleira.
Com o pescoço enroscado, o queixo fincado aos peitos, e o corpo encolhido,
a mula assanhada dava saltos e corcovos terríveis. Ora contraía-se
toda, e logo distendia-se no arremesso, forcejando para romper os arreios
que a ligavam. Catita, porém, não perdia o equilíbrio
e fustigava com o chicote a cabeça do animal.
Entretanto aos saltos a mula afastava-se da estrada. Na direção
que ela seguia, o terreno elevado e pedregoso formava uma barranca sobre a
charneca ou tremedal, a que na província dão o nome de sanga.
Se a moça não conseguisse domar o animal, o que não parecia
provável, na carreira cega em que ia, a catástrofe seria inevitável.
Tudo isto passara rapidamente ante os olhos do gaúcho. Compreendendo
o perigo que ameaçava a moça, ele não teve tempo de refletir.
Passou a mão ao laço, atirado sobre a grama junto aos arreios,
e saltou no costado do Juca.
III – A PARADA
O alazão arrojou-se e fendeu os ares como uma águia; os pés
nem pareciam tocar a terra, de tão rápida que era a corrida.
Com pouco vencendo a grande distância, aproximou-se da mula, que no
auge da fúria, disparava em trancos formidáveis. A borda do
precipício já não estava longe, e não tardaria
que o animal num daqueles saltos precipitasse do barranco abaixo.
A gentil cavaleira sentira a iminência do perigo, e parecia que se
preparava para evitá-lo. Sua mão, colhendo as amplas dobras
da saia do roupão, revelava a intenção de saltar da sela.
Naquelas circunstâncias, em um terreno tão áspero e com
a sanha do animal, a resolução da moça podia ser-lhe
fatal.
Mas que fazer? Diante estava o precipício do qual aproximava-se com
espantosa velocidade. Se tinha de morrer, Catita preferia que fosse antes
ali sobre o campo, do que no fundo de um barranco onde talvez seu lindo corpo
chegaria dilacerado pelas pontas de pedra e tocos das árvores. Essa
idéia triste porém, não se demorou no espírito
da moça, passou como uma borboleta agoureira roçando as asas
negras por seu espírito e logo se desvaneceu.
A destemida cavaleira, fiada em sua agilidade, contava livrar-se do furioso
animal saltando da sela no momento oportuno. Para ela, a catástrofe
iminente, cujo desfecho estava tão próximo, ainda não
passava de um divertimento. Com a descuidosa imprevidência da mocidade,
não podia acreditar que um incidente comum se convertesse para ela
em uma desgraça.
Observando os movimentos da moça, Manuel hesitou um instante. Seu
plano concebido de relance, na ocasião de saltar sobre o costado do
alazão, era alcançar a mula, e travando-lhe do freio subjugá-la
para que a moça pudesse apear-se sem perigo. Se, apesar da velocidade
do Juca, não houvesse tempo de apanhar a mula por causa da pequena
distância em que já estava da barranca, então como recurso
extremo, o gaúcho tivera uma idéia:
— É laçar mula e moça tudo junto! disse o Canho
consigo.
Por isso tinha passado a mão ao laço no momento de partir;
mas percebendo agora na cavaleira o intento de saltar do animal receou ver
burlado seu plano. Podia, no momento de alcançar ele a mula, ter já
saltado a moça que ficaria então esmagada pelas patas do alazão.
Também no atirar o laço via o perigo de esbarrar a mula bruscamente
na ocasião de pular a cavaleira, a qual perdendo o equilíbrio,
sucumbiria aos coices do animal enfurecido.
Nesta perplexidade, ainda mais se complicou o caso com um grito que feriu
o ouvido do gaúcho, reboando pela campanha:
— Salta, Catita!
Era a voz estrepitosa de Lucas Fernandes que, advertido pelo grito do preto,
transmontara a galope, em companhia de Félix, uma pequena coxilha,
e vendo o que passava, compreendera o perigo da filha e a única esperança
de salvação que restava.
— À direita! acrescentara Félix.
Um movimento que fez a moça para voltar o rosto e um rápido
aceno da mão indicavam que ela ouvira a advertência do pai, e
apenas aguardava um momento oportuno para seguir seu conselho. Ao Canho não
escapou esta muda resposta, que pôs o remate à sua contrariedade.
— Não salte! exclamou ele em tom resoluto.
Ouvindo a recomendação do gaúcho em contrário
à sua ordem, o Lucas perfilou-se na sela e arrancou do peito um berro
formidável:
— Salta, com mil demônios!
— Não, replicou o gaúcho imperiosamente.
Catita, voltando a custo o rosto, viu de través Manuel que estava
apenas a três braças de distância, e compreendeu que ele
vinha em seu auxílio. Revoltou-se a vaidade da moreninha contra esse
importuno. Antes despenhar-se do precipício, do que dever a salvação
a alguém.
Estaria a moça presa já da vertigem dessa corrida veloz, ou
era a petulância natural de seu ânimo juvenil, que a fazia brincar
assim com a morte? Por uma ou outra causa ela, que um instante concebera a
esperança de refrear a mula, castigou-a de novo com força. O
animal, já colérico, exasperou-se, arrancando como uma péla.
Mas o alazão, sentindo a leve pressão dos joelhos do Canho,
projetou-se como a haste de uma lança arremessada com vigor; e em dois
tempos alongou-se pelo flanco da mula, disposto a espedaçar-lhe a cabeça
ao menor sinal do gaúcho.
Deitando-se sobre o pescoço do cavalo para tomar o freio à
mula, sentiu Manuel uma doce pressão na ilharga, ao mesmo tempo que
ressoava a seus ouvidos uma risada zombeteira. Catita estava sentada na garupa
do alazão, com a mão passada pela cintura do gaúcho.
Como isto acontecera, ninguém poderá compreender, tão
rápidos e imprevistos foram os movimentos da moça.
Convencida do risco de atirar-se do animal abaixo, Catita hesitava quando
percebeu Manuel. Precipitando a corrida da mula para evitar que o gaúcho
a salvasse, ela não pretendia sacrificar-se como parecera. Tinha avistado
adiante uma árvore, sob cujos ramos ia passar.
Foi ali que Manuel alcançou a mula. Já suspensa a um dos galhos
a moça sentou-se tranqüilamente nas ancas do cavalo, e ali ficou
de garupa, como naquele tempo era usa viajarem as mulheres que tinham medo
de montar.
Com a surpresa que sofreu, Manuel esteve um instante perplexo, não
sabendo a que atender, se à moça que ria-se ainda, se à
mula que fugia sempre. Foi quando o animal com as mãos já erguidas
sobre o precipício ia despenhar-se, que Manuel, atirando o laço,
o suspendeu em meio da queda.
Para isso o gaúcho se lançara do cavalo abaixo; e apoiando
a trança da árvore, imprimira tamanho arranco ao laço
que a mula, cingida pelos peitos, rodou, estendendo o costado pelo chão.
Nisso chegaram Lucas e Félix; em um momento estava a mula subjugada
pelos dois viajantes, que, depois de tirados os arreios, meteram-lhe o rebenque
de rijo.
— Deixa-te de partes, mula! dizia o Félix.
Catita tinha saltado da garupa do alazão, e observava de semblante
risonho a luta dos três homens com o animal. Havia em seu rosto gentil
uns assomos de orgulho satisfeito, por ter escapado, incólume e sem
auxílio, ao perigo.
— Que tal a rapariga, hein? perguntou o Lucas Fernandes.
— Sacudida, como ela só! respondeu o rapaz. Pensei que não
agüentasse.
— E eu também! Caramba!
— Ora, papai! disse a moça com um ligeiro muxoxo. Não
caio por tão pouco; nem preciso que me segurem para saltar da sela.
Estas palavras foram ditas com direção ao Canho, que enrolava
o laço tranqüilamente. Acompanhando o olhar da filha, reparou
Lucas no taciturno gaúcho.
— Então o senhor não queria que a menina saltasse, camarada?
disse o furriel de milícia com um riso cheio.
— Não, respondeu concisamente o gaúcho.
— E por que razão?
Manuel encolheu os ombros.
— Ele tinha medo que eu caísse debaixo dos pés do alazão.
Papai não o viu correndo para agarrar a mula pelo freio; mas quis mostrar
que também sou gauchinha! Saltei-lhe na garupa!
— Deveras?
— Tal e qual! disse Manuel sorrindo.
— Assim, rapariga.
Aproximava-se a Maria dos Prazeres, choteando no machinho:
— Sempre escapaste, menina?
— Então, mamãe.
— Jesus! Vi-te em pedacinhos, debaixo dos pés da endemoninhada
da besta. Sou capaz de jurar que está espiritada.
— Mamãe teve muito susto?
— Ainda tu falas! Estou sem pinga de sangue.
Entretanto o Canho, tendo enrolado o laço, tocou na aba do chapéu
e saltou sobre o Juca.
— Até mais ver, senhores!
— Também nós vamos, disse Lucas Fernandes. Anda, Catita.
A rapariga arregaçando a saia de montar, e apoiando a ponta do pé
no bocal do estribo, pulou na garupa do cavalo em que montava o pai.
— O senhor que rumo segue? perguntou o miliciano.
— Parei aqui para descansar, respondeu o Canho, iludindo a pergunta.
— E o mais é que precisamos fazer o mesmo. Não achas,
Vidoca?
— Que dúvida, Sr. Lucas. Eu estou que não posso comigo;
então com este susto, estão me tremendo as carnes, como se tivesse
frio de maleita.
Contrariado por esta companhia que lhe viera tão fora de propósito,
e cogitando algum meio para descartar-se dela, o Canho dirigia-se para restinga
de mato onde estivera deitado. Era o único lugar, que por ali havia,
próprio para descanso, não só pela boa sombra, como pela
proximidade d’água.
Examinando com atenção disfarçada o gaúcho,
Fernandes desconfiava que sob aquela reserva taciturna havia algum mistério,
que ele procurava com afinco perscrutar.
Naqueles tempos de agitação, que precederam a guerra civil,
a suspeita do miliciano era natural. A conspiração lavrara surdamente
por toda a província; e receava-se de um momento para outro a explosão.
Depois de alguns instantes de observação, Lucas reatou a conversa.
— Nós cá vamos para Piratinim visitar a madrinha de
Catita, minha irmã Fortunata, que nunca viu a afilhada, depois que
se fez moça. Se o senhor também segue este caminho, iremos juntos.
— Não sei ainda que rumo tomarei. Tem seus conformes.
— Está bom. Vejo que não quer que se saiba.
Neste ponto, pela estrada que lhes atravessava em gente, na distância
de duas braças, passou um cavalo ruço pedrês, baralhando
em rápida guinilha. Ia montado por um peão com poncho de baeta
encarnada e levava de garupa uma rapariga de seus vinte anos. Com o vento,
a saia de chita da rapariga levantava, mostrando as pernas bem torneadas e
descalças.
Catita reconheceu a Missé, e disse-lhe adeus:
— Também vamos chegando para a festa, exclamou a rir o peão,
e não era outro senão Chico Baeta.
Sabendo que a revolução ia rebentar em Piratinim, o rapaz
deitou a roupa na carona, a namorada na garupa, e transportou-se com tudo
quanto possuía para sua nova residência.
Tinham os viajantes chegado ao capoão onde Félix e Maria dos
Prazeres tratavam de arranjar, sobre a grama, a refeição que
tiravam dos alforjes.
IV – CONHECIDOS
Catita, sempre tão pronta para ajudar a mãe quando era preciso,
agora sentada à parte sobre a relva, fitava longos olhos no gaúcho,
ocupado em arrear o alazão, para se pôr a caminho quanto antes.
No olhar da rapariga brilhavam diversos sentimentos, como em um raio de
luz cintilam várias cores do prisma.
Admirava-se Catita da indiferença de Manuel. Ela sabia que era bonita;
e quando não fosse tanto como lhe diziam constantemente, não
se julgava indigna de merecer um olhar, ao menos de curiosidade. Esse homem
que tinha corrido em socorro seu, parecia nem já se lembrar que ela
existia e ali estava perto dele.
Contudo não perdera a esperança de atrair a atenção
do gaúcho, e por isso lhe estava deitando aqueles olhares dengosos,
capazes de enfeitiçar um morto. Lá tinha um certo pressentimento
que o rapaz, voltando-se para ela, não partiria assim com aquele desapego.
Mas não era só a faceirice que tinha a rapariga enlevada na
contemplação do gaúcho. Essa fisionomia sombria, mas
enérgica, a impressionara. Ela adivinhava, sob aquela aparência
concentrada e fria, o fogo intenso da paixão, sopitado, como a chama
do betume que lastra por baixo d’água.
Ao mesmo tempo esse perfil saliente, de traços acentuados, acordava
no fundo de sua memória vagas e indecisas reminiscências, que
deviam estar ali desde muito tempo adormecidas. Não sabia a moça
se já tinha visto este semblante, ou algum com ele parecido.
Um momento, a vista do gaúcho encontrou o olhar fito da rapariga,
e desviou-se com desgosto, como se a tivesse ferido alguma luz muito viva.
Nesse movimento descobriu imóvel, em frente dele, Lucas Fernandes
que traçou rapidamente com a mão direita um sinal cabalístico.
Manuel sem mostrar surpresa nem dar grande importância ao acidente,
reproduziu o sinal.
Aproximou-se então o miliciano com vivacidade, e travando da mão
ao gaúcho, deu-lhe o toque simbólico, soprando ao ouvido uma
palavra misteriosa.
Com esse reconhecimento, que revelava a existência de um vínculo
secreto entre ambos, o Lucas Fernandes pouco adiantou na confiança
de Manuel, que se manteve na mesma reserva.
Embora dedicado e com entusiasmo ao serviço de uma causa, nem por
isso a pouca estima que a raça humana inspirava em geral ao gaúcho,
se tinha amortecido. Ao contrário, mais em contato com ela, sua alma
sentia-se por assim dizer esfrolada ao atrito das paixões torpes e
ignóbeis que truaneavam diante dele.
Para Manuel a causa a que se dedicara era um homem, e nada mais. A afeição
que recusava à sua espécie se concentrara ultimamente em um
indivíduo. Bento Gonçalves se tornara para ele um símbolo,
uma veneração. Tinha pelo velho guerreiro admiração
profunda; e enchia-o de orgulho a idéia de estar ligado a ele por um
laço espiritual.
Não sabia Manuel o que intentava o coronel; e nunca se preocupara
com isso. Para quê? Sua missão era acompanhar, servir, defender
o seu homem, e morrer quando fosse preciso para salvá-lo ou para vingá-lo.
por isso, apenas Bento Gonçalves fora demitido do comando da fronteira
de Jaguarão e do 4º corpo de cavalaria, o gaúcho, pressentindo
que ele tinha necessidade nesse momento de rodear-se de seus amigos mais leais,
partiu logo para Camacã, onde se retirara o coronel.
Bem se vê que importância ligava o Canho à sociedade
secreta em que o tinham filiado. No seu modo de ver não passava de
um meio de se enganarem os homens uns aos outros. Para servir o coronel ele
não queria nem companheiro, nem ajudante: gostava mais de fazer as
coisas só.
Como a refeição estivesse pronta, Maria dos Prazeres chamou
o marido; e Félix aproximou-se impedindo as perguntas que Lucas ia
dirigir ao Canho.
— Vamos ao churrasco? disse o miliciano.
— Nada; já estou pronto, e não tenho tempo a perder.
— Precisamos falar, retorquiu o furriel com intenção.
— Será para outra vez.
Fazendo um cumprimento de través, montou o gaúcho o alazão,
que escarvava a terra para devorá-la. Nesse momento, da tropilha que
esperava a curta distância, avançou o Morzelo, que veio meneando
a cauda farejar o furriel.
De mau humor pela reserva e partida do Canho, o miliciano não reparou
no cavalo; mas este começou a dar sinais manifestos de súbita
alegria, soltando um ornejo que bem parecia um riso de prazer. Esta circunstância
impressionou logo a Manuel; ele sabia que seus cavalos tinham o mesmo gênio
arisco e desconfiado do dono; pelo que pareceu-lhe estranha aquela repentina
afabilidade do Morzelo.
— O senhor conheceu meu pai? perguntou de chofre o gaúcho a
Lucas.
— Seu pai?… repetiu o miliciano.
Os dois olharam-se; só então se tinham lembrado, que nenhum
sabia o nome do outro, apesar de estarem juntos e conversando havia meia hora.
— João Canho, de Ponche-Verde!
— Era seu pai? Ora, se o conheci, meu amigo velho de outros tempos,
quando no continente havia homens, que hoje parecem mais bonecos de cheiro
que outra coisa, sobretudo os tais lá de Porto Alegre. João
Canho? Sabe de que idade nos conhecemos?… Espere!… 1798…
eu tinha 12 anos e ele 14. Andamos juntos na escola em Rio Pardo.
— Mas então o senhor é o furriel?
— Isso mesmo. Depois, ele seguiu lá seu rumo até que nos
encontramos no tempo de Artigas. Os dois Bentos, bem sabe, andavam sempre
juntos; eu servia às ordens de um, ele era camarada do outro.
— Estivaram em Taquarembó?
— Em Taquarembó, em São Borja, em Catalã, onde
filamos o Verdum. Naquele tempo não se fazia tantas partes, como hoje,
para brigar. A gente passava o trabuco a tiracolo, encilhava o pingo, e era
só farejar para sentir onde cheirava o chumasco. Agora para se fazer
uma rusgazinha de nada, são tantas as histórias que já
aborrecem.
— Mas cá o Morzelo, ele também o conhecia, que está
aí a fazer-lhe tantas festas?
— Ah! é verdade! exclamou o furriel atentando para o animal.
Não tinha reparado; é o cavalo do Canho? Pois não me
havia de conhecer! Fui eu que o salvei, e deu-me que fazer! Uma doença
dos diabos.
— Lembro-me. Quando o pai foi a Montevidéu? Por sinal que ele
voltou no cavalo do senhor.
— Se o Morzelo não podia nem se mexer. Então você
conheceu o Lucas, hein, meu velho? disse o furriel amimando o pescoço
do cavalo.
Manuel era outro. Uma expressão de alegria expansiva se tinha derramado
por seu rosto, antes carrancudo. Sem sentir, apeara-se para melhor prestar
atenção às palavras do furriel, e se embebera completamente
nas reminiscências que lhe falavam de seu pai.
— Então não quer mesmo? perguntou o miliciano, designando
com um gesto o lugar onde estava a mulher convidando-o para comer.
— Jante o senhor, que eu espero.
Sentaram-se os cinco viajantes na grama, ao redor de alguns pratos com churrasco,
bolachas, bananas e laranjas.
O Lucas tanto comia, como falava; e Manuel escutava com prazer a evocação
de fatos que ele tantas vezes, em criança, ouvira dos lábios
paternos.
De quando em quando porém, sentia o gaúcho um constrangimento,
encontrando os olhos negros de Catita fitos em seu rosto com uma insistência
que ele não compreendia. Esse olhar curioso e ao mesmo tempo provocador,
fazia-lhe o efeito de uma farpa no flanco de um touro.
— Come, Catita. Estás aí pasmada!
— Não é para menos, acudiu Félix. O susto que ela
teve! Escapou de pinchar-se do barranco abaixo.
— Maria Santíssima! exclamou Vidoca.
— Lá isso, não, atalhou o Canho; na sanga não
caía.
— Se já estava quase na beira!
— Mas eu tinha meu laço.
Os outros riram. Catita indignou-se:
— Então o senhor queria laçar-me?
— Pois que dúvida!…
— Se fosse capaz, eu…
A rapariga articulava estas palavras pálida e com um tom de ameaça,
mas não pôde concluir; a voz finara-se no lábio balbuciante.
Ergueu-se despeitada, vendo o ar desdenhoso com que Manuel pela primeira vez
a encarava.
A primeira vez que apareceu o desconhecido, depois de sua ausência
de três dias, estava completamente outro do que antes parecia. Já
não era o cavaleiro risonho e faceiro, porém um mancebo pensativo,
acabrunhado por algum oculto pesar; seu formoso cavalo castanho partilhava
a tristeza do senhor: não tinha mais o garbo antigo, andava agora a
passo, com o pescoço estendido e a cabeça baixa.
Jacintinha, que deixara o alpendre apenas reconheceu de longe o cavaleiro,
acompanhando-o com a vista pela fresta da janela, reparou na mudança
que se tinha operado no ar e maneiras do mancebo. Teve um pressentimento de
que era ela a causa dessa mágoa, e por sua vez reclinou a cabeça
pensativa.
Dias depois a moça descobriu que lhe faltava, lá para certa
costura, uma tira de fazenda. Consentindo Francisca na despesa, prometeu fazer
a encomenda pelo próximo peão que fosse a Sant’Ana do
Livramento.
— Quem sabe se o sujeito que está arranchado na estância
não terá?
— Ele é mascate?
— O Antônio disse que era.
— Pois mande-a ver.
O peão incumbiu-se da comissão, e no dia seguinte apresentou-se
em casa de Francisca o desconhecido cavaleiro, que não era outro senão
D. Romero. Avistando-o, Jacintinha arrependeu-se de sua imprudência,
e quis remediá-la não aparecendo ao mascate; mas era tarde.
Ele a tinha cortejado com um modo tão delicado!
O chileno mostrou a Francisca e à filha uma grande porção
de jóias e galanterias, que trazia para tentar as damas. As duas mulheres
se esquivaram, dizendo que estes objetos não eram para elas, e sim
para gente rica; mas D. Romero tinha palavras tão insinuantes, maneiras
tão corteses, que elas não puderam afinal resistir ao desejo
de ver coisas tão bonitas.
Na passagem dos objetos de mão em mão, o chileno aproveitou
a ocasião para cerrar os dedos mimosos da moça. Ela zangou-se,
mas encontrou um olhar suplicante, que a desarmou. Contudo resguardou-se contra
nova tentativa.
D. Romero cativara o agrado de Francisca e desde então era bem recebido
sempre que se apresentava em sua casa sob qualquer pretexto.
V – REBULIÇO
Fatos de suma gravidade se passavam por aquele tempo.
O partido republicano, de quem Neto era a alma, senão a cabeça,
tinha visto com intenso desgosto a hesitação de Bento Gonçalves
em proclamar a revolução. Acreditando que justamente irritado
com a demissão, o coronel romperia abertamente contra a presidência,
esperavam os radicais se apoderarem do movimento para mais tarde em ocasião
oportuna o dirigirem a seus fins; o que realizou-se com efeito em 1836, depois
da prisão de Bento Gonçalves, vencido no combate do Fanfa.
Conhecendo, porém, que da próxima regência de Feijó
confiava o coronel obter reparação dos agravos que sofrera e
garantias para o seu partido, os republicanos temeram perder a disposição
favorável dos espíritos, criada pela demissão do homem
de mais influência da campanha, e resolveram precipitar o acontecimento.
O dia 7 de setembro, aniversário da independência, foi marcado
para a revolução, que devia romper ao mesmo tempo na capital
e outros pontos da província. Não podendo, nem lhes convindo,
dispensar um chefe tão prestigioso como Bento Gonçalves, era
sob a invocação de seu nome, que tudo se fazia.
Neto estava em Piratinim, onde procurava reunir ocultamente alguma força
com que marchasse sobre a capital e Rio Grande, sendo preciso. Sita em uma
eminência, cercada por bibocas e serras cobertas de mato, essa vila
oferecia condições favoráveis à defesa no caso
de ataque. Por essa razão, e também por sua posição
topográfica, foi ela escolhida para centro do movimento.
Para aí pois tinham convergido os mais ardentes partidistas da revolução,
aqueles que desejavam tomar nela uma parte ativa, e ter a glória de
pelejar os primeiros combates em pró da libertação da
província. Entre estes, um dos mais prontos fora o Lucas Fernandes,
que, a pretexto de visitar a irmã, se transportara com a família
para o foco da revolução.
Chegando à vila na noite do dia em que os deixamos descansando para
concluir a jornada, o Lucas não consentiu que Manuel procurasse outro
rancho, senão a casa de sua irmã. Não só devia
ele essa atenção ao filho de seu velho amigo, como sorria-lhe
a idéia de ter por companheiro das novas lutas, o herdeiro do nome
e da coragem de seu antigo camarada João Canho.
Aceitou Manuel pousada por aquela noite, contando partir pela madrugada.
Embora o coronel lhe permitisse descansar na estância de Bento Manuel,
o que não fizera, podendo portanto demorar-se em Piratinim; contudo
desejava o mais depressa possível tranqüilizar o espírito
de seu padrinho a respeito do desempenho da comissão.
O Lucas, porém, não o deixou partir só; sabia que o
gaúcho ia a Camacã, e aproveitou o ensejo para ver e aproximar-se
do coronel. O antigo miliciano acudira ao apelo de Neto; mas combater sob
as ordens imediatas de Bento Gonçalves era uma honra, que ele compraria
a custo dos maiores sacrifícios.
Lá se foram portanto os dois à estância de São
João, onde acharam o coronel ocupado em trabalhos rurais. Teve Lucas
uma primeira surpresa; pensava ele ver ali já pronto um pequeno exército,
e Bento Gonçalves à sua frente, disciplinando-o para a guerra.
Lembrou-se porém que talvez fosse necessário não originar
suspeitas nos legalistas para apanhá-los desprevenidos.
Esperou que o coronel lhe falasse a respeito da revolução;
mas correndo os dias sem que isto sucedesse, e aproximando-se o 7 de setembro,
animou-se ele a tocar no assunto.
— Qual, revolução! Deixe-se disso; vá para casa
e fique sossegado.
Desta vez azoou completamente o furriel; e por muitas horas não esteve
em si. Foi pedir explicações a Manuel, que não podia
dá-las. Este nada sabia, nem indagava. Em Bento Gonçalves precisando
de seu braço estava pronto sempre; cumpriria suas ordens, sem inquirir
da razão e fim.
Até que raiou o dia 7 de setembro, tão ansiosamente esperado.
Lucas Fernandes largou-se para a Capela, como chamava então o povo
a freguesia do Viamão, por causa da ermida de Nossa Senhora da Conceição,
edificada em 1751. É um sítio aprazível, a quatro léguas
da capital, de que forma um arrebalde muito concorrido em dias de festa.
Havia ali grande animação no dia 7 de setembro de 1835. Desde
muito cedo viam-se pelas ruas bandos de gente do povo, e especialmente peonada,
percorrendo as ruas em trajes domingueiros, e com uma faixa verde e amarela.
As mulheres traziam o emblema das cores nacionais a tiracolo, os homens na
cinta ou no chapéu.
Entrando em uma venda, onde estava de bródio uma grande porção
de gaúchos a galhofar e beber, o furriel criou alma nova.
— Hoje é hoje! dizia um da roda piscando o olho para os outros.
— Dia grande, dia de mata galego, acrescentou outro.
— Vão pagar o novo e o velho.
— Eu cá prometi à Nicota que lhe havia de levar de presente
um rebenque de guasca feito do couro dum!
Risadas e interjeições pitorescas recheavam o bródio
popular. O taberneiro, amarelo e esgazeado, não sabia como se ater.
Às vezes enxergava nas fisionomias desabridas dos gaúchos visos
de ameaça, que emprestava às suas palavras uma significação
horrível. Outras vezes porém o riso gostoso e franco dos homens
o tranqüilizava até certo ponto, fazendo-lhe pensar que não
passavam aqueles ditos de simples chalaça e brincadeira.
— Ah sô galego! gritou a voz taurina do Lucas Fernandes, dando
no balcão um murro formidável.
Com a estremeção que sofrera, o taberneiro saltou três
vezes sobre os pés, como um dançador de corda.
— Genebra a fartar para esta rapaziada sacudida. E não me respingue!
continuou o miliciano atirando uma meia dobla sobre o balcão.
Com este rasgo o furriel ganhou logo as boas graças da súcia;
seu tom decidido, as proezas que referiu, e o galão da velha fardeta,
elevaram-no enfim por unânime e espontânea eleição
ao posto de capitão, que ele aceitou por bem da pátria. Foi
o primeiro ato da revolução rio-grandense, essa promoção
democrática.
A história talvez não consigne tão importante circunstância;
por isso a registramos aqui.
Momentos depois o capitão Lucas percorria triunfante as ruas de Viamão
à frente da troça de peões, que ele se propunha disciplinar,
afagando a idéia de transformá-la em companhia, e mais tarde
elevá-la a batalhão, o que o obrigaria a tomar o posto de coronel.
Afinal, quem sabe?… Os generais se faziam daquela massa.
Ansioso esperava o seleiro o sinal para soltar o grito da revolução,
quando um cavaleiro a toda a brida esbarrou na praça e meteu-se pelo
povo falando ao ouvido de um e de outro. Os gaúchos de orelha murcha
iam-se esgueirando, e breve achava-se o futuro batalhão de Lucas reduzido
a uma dúzia de farroupilhas, que o acompanhavam ainda ao cheiro da
genebra, soltando berros descompassados.
— À capital, camaradas! bradou o furriel. Mostremos a estes
poltrões como se briga.
— Viva o capitão! Morram os galegos! respondeu a súcia.
Instantes depois corriam à desfilada pela estrada de Porto Alegre;
vários bandos de rapazes e parelheiros que tinham vindo à festa
em Viamão foram por patuscada reunindo-se à troça; e
assim investiu a caterva pelas ruas da capital fazendo um alarido infernal.
Seriam oito horas da noite.
No estado dos ânimos, esperando-se a cada momento o rompimento da
revolução, pode-se imaginar o efeito que produziria aquela cavalgada
à disparada pelas ruas da cidade. Acresce que o marechal Barreto avisara
da fronteira que estava designado o dia 7 de setembro para o rompimento.
Supuseram todos que a cidade era assaltada.
A guarnição correu a postos. Reboou um tiro de canhão
na casa do Trem; tocou a rebate nos quartéis; a guarda de permanentes
marchou para o palácio e um piquete de cavalaria saiu a fazer um reconhecimento
sobre o inimigo. Por toda a parte não se ouvia senão estrépito
d’armas e tropel de animais.
Os festeiros, apenas sentiram o cheiro da pólvora, muscaram-se; houve
muito cavalo estropiado e muito parelheiro descadeirado; mas a troça
desapareceu como por encanto. Só o nosso intrépido Lucas Fernandes,
fantasiando ter ainda atrás de si o batalhão evaporado, fazia
floreios de esgrima com a catana, preparando-se para dar uma carga sobre o
piquete.
No meio desse entusiasmo foi agarrado por dois permanentes que tiveram ordem
de o recolher ao xadrez. Lá ia ele seu destino pela Rua do Ouvidor
meditando filosoficamente sobre a sorte das revoluções qual
outro Mário, quando um dos soldados pôs-lhe a mão no braço
por segurança.
— Largue-me! Por força ninguém me leva.
Era o momento em que passavam dois cavaleiros. Um deles ouvindo aquela voz,
esbarrou o animal:
— O que é isto, Sr. Lucas?
— Manuel!… Traído, amigo, traído!
O gaúcho reservou a explicação para mais tarde.
— Deixem o homem, disse ele para os dois guardas.
— E quem é você?
— Eu já lhes digo! replicou Manuel passando a mão ao punho
da faca.
O outro cavaleiro adiantou-se:
— Espera lá, rapaz.
Firmando-se nos estribos e tomando o tom do comando disse para os guardas:
— Permanentes, este homem está solto.
— O coronel! murmuraram os guardas.
Era com efeito Bento Gonçalves que chegava da sua estância.
Os guardas se retiraram cabisbaixos.
— Não lhe disse, homem, que se deixasse de rusgas? Iam-no filando!
exclamou o coronel a rir.
O furriel guardou nessa ocasião um silêncio eloqüente.
Mais tarde porém revelou ele a Manuel em confidência um pensamento
que levara a ruminar durante muitos dias.
— Ninguém me tira desta. Quem desmanchou a rusga foi o coronel!
Que pena! Uma coisa tão bem arranjada.
Manuel sorriu lembrando-se das cartas que por ele enviara Bento Gonçalves
a toda pressa, mas não disse palavra.
Desde que entrou no espírito do furriel aquela convicção,
Bento Gonçalves desceu três furos em sua admiração
e respeito.
— Um homem que desmancha rusgas!… Não tem que ver! O
coronel voltou lá da corte com o miolo transtornado.
VI – DESENGANO
Era noite fechada.
Jazia a vila de Piratinim em profundo silêncio, submergida nas trevas.
Apenas a trechos ouvia-se, entre os primeiros silvos do temporal iminente,
o pio monótono da coruja na matriz, ou um murmúrio de vozes
a escapar-se do coice de uma porta.
Era aí a taberna, onde os peões jogavam a primeira ao clarão
de uma candeia de graxa cuja luz oscilante e mortiça, filtrando pelos
interstícios da porta, cortava a treva espessa como o vôo de
um pirilampo.
Também, quando passava a rajada, podia-se escutar o chiado sutil
de uma guitarra, tocada à surdina. Partiam estes sons de uma casa próxima
à igreja de Nossa Senhora da Conceição, que então
servia de matriz à paróquia. Um vulto, embuçado em um
poncho escuro de gola erguida, caminhava da esquina da rua onde ficava a casa
até a torre da igreja, e aí chegando retrocedia. Na ida, como
na volta, parava algum tempo à janela da casa, e encostava o ouvido
na rótula; então, ouvia-se o tangido soturno da guitarra que
ele trazia por baixo do poncho.
Na sala interior dessa casa estavam três pessoas.
As duas cunhadas e comadres, sentadas no vão da janela que abria
para o quintal, continuavam a prática de todas as noites. Durante um
mês que estavam juntas, não tinham desfiado ainda todo o rosário
de histórias e novidades.
Vidoca não acabara de contar as festas e enredos de Jaguarão,
nem as faladas dos castelhanos com as raparigas daquela fronteira. Quanto
à Fortunata, esta não esvaziaria em um ano o saco dos mexericos
de Piratinim, e a crônica de toda a vila, casa por casa.
Um tanto arredada, em um ângulo da sala, Catita cosia à luz
da vela colocada em uma cantoneira. Às vezes a mão da rapariga,
puxando a linha para cerrar o ponto, ficava um momento suspensa no ar; e notava-se
na sua cabeça uma ligeira inflexão. Parecia, pelo ar absorto
da fisionomia, que sua atenção era atraída para outro
ponto. Mas logo voltava à costura, redobrando de rapidez no ponteado.
O que a distraía eram os sons da guitarra que pipilavam no silêncio
da rua, e às vezes se destacavam entre as crepitações
da lenha no fogo da cozinha.
— Lucas não vem mais hoje, que diz você? perguntou Fortunata
à cunhada.
— Eu sei lá, comadre, quando ele vem? Há um par de dias
já que se espera à toa. Com esta história de rusga, o
homem anda mesmo que parece uma mosca tonta.
— Mas em parte quem lhe mete tanta caraminhola no casco é aquele
malandrinho. Já viu que sujeito mal-encarado, senhora?
— Que quer? O Lucas engraçou com ele. Arrenego de semelhante
bisca!
— E onde foi buscar aquele nome de… como é mesmo?
— Não te lembras, Catita?
— O quê, mamãe?
— Como se chama aquele sujeito que foi com teu pai?
— Manuel Canho.
— Ora veja!
— Se isto é nome de gente!
— Mas você não viu outra, comadre. Sabe que apelido ele
deitou no cavalo? Juca!
— Tão bom é um como o outro!
— E tem uma égua que chama Moreninha!
— Desaforo! Aquilo é de propósito.
— Quando a mula em que vinha Catita ficou espiritada, pediu-se a ele
a égua e não quis dar. Disse que ninguém, senão
ele, monta nela! Já se viu que partes?
— Pois eu hei de montar! disse a rapariga batendo com o pé no
chão.
— Não há de ser por meu gosto.
— E faz muito bem, comadre.
— Enquizilo com o tal sujeito, que ninguém faz uma idéia;
e o Sr Lucas enquanto não lhe suceder alguma, não descansa.
Neste momento a guitarra chilrou com mais força na porta. Catita
fez um gesto de impaciência; deitando arrebatadamente a costura sobre
o banco onde estivera sentada, disfarçou dando algumas voltas pelo
aposento e afinal dirigiu-se para a frente da casa.
Foi direita à janela; abriu sorrateiramente a rótula e espiou
para a rua. O vulto parado à porta aproximou-se mal que a percebeu:
— Que faz você aí, Félix?
— Pois ainda pergunta?
— É escusado andar com estas coisas. Perde o seu tempo!
— Então, Catita, esta é a esperança que você
me dá?
— Não tenho outra.
— Não foi o que você me disse em Jaguarão.
— Não me lembro disso.
— Você me disse, que chegando aqui havia de decidir.
— Pois está decidido. Não gosto de você, como
hei de ser sua noiva?
— Catita!
— Não quero enganar a ninguém.
— Agora é que fala assim.
— Algum dia disse que lhe queria bem?
— Mas também por que não me desenganou logo?
— Por quê?… Porque você não me aborrecia como
agora, que passa toda a noite rondando esta porta. Quem visse, havia de dizer
que você é meu namorado.
Félix fez um movimento de cólera; e depois de uma pausa murmurou
com voz surda:
— Bem sei a causa disso!
— Ah! Sabe? Está mais adiantado do que eu.
— Não disfarce, Catita. Cuida que eu não tenho olhos
para ver?
— O quê?
— Você ficou assim desde que nos encontramos com Manuel Canho.
Logo naquele dia você não tirou os olhos dele. Bem reparei.
— Só isso? perguntou a moça com uma risadinha de escárnio.
— Depois, pensa que eu não via como você se enfeitava
por causa dele? A cada instante se requebrando, para ver ser o enfeitiçava;
mas ele, nem caso?
— Félix, melhor é que você se ocupe com sua vida.
Me deixe descansada.
— É para ver se é bom querer bem a quem lhe paga com
desprezo.
— Pois se assim é, não tem você de que se queixar.
Faça como eu que sofro calada.
— Então confessa? Gosta dele? exclamou Félix furioso.
Catita caiu em si.
— Não disse isto!
— É escusado negar. Já sei o que queria; pode ficar descansada
que não hei de aborrecê-la mais. Meu negócio agora é
com ele.
— Que pretende você fazer, Félix?
— O mesmo que me fizeram; traspassar-lhe o coração, mas
com este ferro.
A faca do rapaz luzia nas trevas.
Recobrando-se do soçobro que sentira, a moça proferiu estas
palavras com a voz fria e pausada, embora ferida ainda por um imperceptível
tremor:
— Vinga-se bem, Félix. É o modo de matar-me mais depressa.
Fechou-se a rótula.
Nesse momento, reboou no princípio da rua um tropel de animais, e
um grito estrondoso farpou o silêncio da noite.
— Alvíssaras, patriotas! Viva a revolução!
VII – O SOLUÇO
Três vezes o mesmo grito reboara, ecoando longe nas grotas e fraguedos
que cercam o sítio da vila de Piratinim.
As duas comadres, tomadas de susto no meio de sua palrice, não souberam
de primeiro momento a que atribuir o estranho clamor, cujo sentido não
compreendiam. A idéia vaga de toda a sorte de perigo, desde um simples
canhambola, até o assalto por um demônio-legião, perpassou
como um raio por seu espírito alvoroçado.
— Santa Bárbara!… murmurou a Fortunata e travou-se com
o rosário.
Vidoca, apesar de grande medo, entrevira uma esperança; e com o ouvido
atento aguardava a confirmação de uma suspeita. Foi quando pela
terceira vez estrugiu o mesmo brado.
— É, é mesmo! Ora essa! exclamou erguendo-se.
— O quê, senhora? balbuciou a Fortunata.
— O Sr. Lucas! Aquele grito é dele!
Correndo para a frente, a Vidoca achou a filha à janela. Catita também
reconhecera a voz de seu pai, e de novo abrira a rótula. Seu coração
batia precipitadamente contra a soleira; porém não era de medo.
Com os olhos alongados pela rua procurava devassar as trevas, para distinguir
mais depressa as pessoas que sem dúvida para aí se dirigiam.
Pensava ela que Manuel vinha com Lucas?
Entretanto, aos brados do furriel, toda a vila pôs-se em alvoroço.
A peonada, abandonando a gordurenta mesa de jogo saía das tabernas
aos trambolhões; abriam-se as casas dos patriotas; o povo apinhava-se
nas ruas, que a luz dos fachos começava a esclarecer.
Pouco depois, no meio de um grande clarão avermelhado, via-se o Lucas
Fernandes esticado sobre os loros proclamando à multidão que
o cercava, suspensa não de seus lábios, mas da barba hirsuta
que lhe cobria o rosto como espessa floresta.
— tomamos Porto Alegre de assalto, camaradas! O presidente fugiu,
dizem que para Rio Grande, outros que para a corte duma feita! Bento Gonçalves
já pôs outro em seu lugar; com este pode-se contar; é
homem seguro. Agora só falta o xumbregas do tal marechal de borra.
Mas o coronel não tarda aí para ensiná-lo.
— Viva Bento Gonçalves!
Este grito prorrompeu da turba e foi saudado com uma aclamação
frenética de entusiasmo.
— Aquilo é que é homem, prosseguiu o furriel. Éramos
cento e cinqüenta quando marchamos para a capital; mas bastou ele, o
Lucas e o Manuel Canho, nós três, para levarmos tudo raso!
A esse tempo notava-se um novo movimento na multidão. Um sujeito que
passava deixou cair algumas palavras entre as quais se ouvira o nome de Neto.
Depreendia-se que este acabava de receber notícias do auditório
do furriel para o ajuntamento que se formava em frente à casa do chefe
republicano.
A multidão foi-se escoando; os fachos desapareceram; e o furriel,
completamente isolado, teve de ganhar a casa de Fortunata, só e às
escuras. Durante o curto do trajeto, pôde ele meditar sobre a inconstância
da popularidade e a ingratidão das turbas.
Achou na porta as mulheres que o esperavam com ansiedade; mas ele entrou
carrancudo e sinistro como uma tempestade. Abraçou as três com
uma voz de trovão.
— Então o que houve, Sr. Lucas?
— Pois é preciso que diga? Pensavam que eu não havia de
voltar cá sem a rusga?
— Mas conte à gente!
— Não tem que contar! replicou o furriel com um tom desabrido.
Ninguém mais tugiu. As duas cunhadas trocaram um olhar, e cuidaram
de apressar a ceia.
Catita conservou-se indiferente a toda essa cena: havia em seu belo rosto
uma nuvem de tristeza. Quando seus olhos puderam de longe distinguir a figura
do pai, no meio da multidão, procuraram ansiosamente ao lado o vulto
de Manuel; não o encontrando vendaram-se.
— A ceia está pronta, Sr. Lucas, disse Vidoca.
O furriel ergueu-se:
— Manuel ainda não chegou?
— Aqui, não! responderam as duas comadres.
— Onde se meteria ele?
Os brilhantes olhos de Catita, fitos no semblante de Lucas, pareciam arrancar-lhe
as palavras dos lábios. Ela estremecera ouvindo a primeira frase; mas
não sabia que pensar. Tinha Manuel chegado à vila com seu pai,
ou este o havia perdido de vista desde Porto Alegre?
Nisto bateram à porta; e o gaúcho apareceu.
— Tenham boa-noite, disse ele sem olhar para alguma das três
mulheres.
Sentaram-se todos à mesa e cearam. À medida que o furriel
calcava o estômago ia-lhe voltando o bom-humor, o entusiasmo revolucionário
e a facúndia habitual. Então, sem que lhe pedissem, contou às
mulheres as suas proezas na tomada de Porto Alegre; não esquecendo
as façanhas do Canho, que em sua opinião se mostrara digno do
pai.
Na situação em que tinham ficado os negócios políticos
no dia 7 de setembro, era realmente para surpreender o desenlace, cuja notícia
acabava de chegar a Piratinim.
Mas, depois daquele dia, alguns amigos de Bento Gonçalves o tinham
convencido de que a revolução era inevitável. Nada a
podia mais conjurar, no ponto a que haviam chegado as coisas. Se o coronel
recusasse tomar a direção do movimento, ele se transviaria com
toda a certeza e produziria as conseqüências que os espíritos
moderados desejavam evitar. O meio mais seguro de prevenir a separação
da província era sem dúvida a revolução; ela tirava
o pretexto aos republicanos.
Persuadido por estas razões, Bento Gonçalves partira para
Camacã, de onde a 20 de setembro marchara sobre a capital à
frente de 150 gaúchos. Derrotada na ponte da Azenha uma pequena força
de 40 praças da guarda nacional, nenhum obstáculo mais encontrou.
O presidente, baldo de recursos para opor à rebelião, embarcou-se
a bordo de uma escuna de guerra e retirou-se para a cidade do Rio Grande,
tentando organizar aí a resistência.
Senhor da capital, onde assumira a presidência o cidadão Marciano
José Ribeiro, Bento Gonçalves, investindo-se do comando das
armas, despachou imediatamente Manuel Canho com uma carta para Neto, em Piratinim,
comunicando-lhe os últimos acontecimentos e avisando-o da necessidade
de bater quanto antes o tenente-coronel Silva Tavares, comandante de uma força
estacionada no Erval.
O Lucas, apenas soube que Manuel partia, resolveu acompanhá-lo; convencido
de que em Porto Alegre não havia mais inimigo a combater, o furriel
queria aproximar-se do lugar onde acreditava que ia travar-se a luta.
Chegando à vila naquela noite, enquanto o miliciano proclamava às
turbas, Manuel procurou Neto para entregar-lhe a carta; e ordenando-lhe este
que fosse descansar e voltasse no dia seguinte, dirigiu-se então para
a casa de Fortunata, onde acabava de entrar.
Enquanto o furriel se desfazia em bravatas, sentia o gaúcho o brilho
dos olhos de Catita fitos em seu semblante; e às vezes passava as mãos
arrebatadamente pela fronte como para espancar uma obsessão do espírito.
De novo bateram à porta. Desta vez era o Félix que vinha a
pretexto de ver o mestre. Ao entrar, o rapaz sorriu com amargura, relanceando
um olhar que passou por Catita e foi cravar-se em Manuel.
— Estás contente, hein, rapaz! disse-lhe o Lucas; e recomeçou
pela décima vez a história de sua ilíada.
Félix porém não o escutava. Toda sua atenção
estava empregada na rapariga e no gaúcho. A princípio, assustada
com a presença do rapaz, Catita disfarçara as olhadelas apaixonadas
que pouco antes deitava sobre Manuel; porém logo depois irritada daquela
coação, arrostou as iras do ciumento, voltando-se completamente
para o gaúcho e ficando como absorta no seu rosto.
Félix tiritava de raiva; e por longe perpassou-lhe a idéia
de puxar a faca e cravá-la uma e muitas vezes no coração
da rapariga. Ainda assim não se vingava, porque lhe parecia que a ponta
de aço não cortaria como o gume daquele olhar com que ela lhe
atravessava o coração.
O furriel, exausto das novidades e repleto de pirão, se debruçava
sobre a mesa e começava a afinar o ronco.
— Vá se deitar duma vez, Sr. Lucas, disse a Vidoca.
— São mesmo horas de se recolher a gente.
Com esta despedida formal, ergueram-se, o Félix para sair, e o Canho
para ganhar pelo quintal um puxado, feito à direita da casa, e onde
o haviam arranchado.
— Tenho um particular com o senhor! disse Félix ao gaúcho
com voz soturna e apontando para o corredor de saída.
Canho fez um gesto afirmativo:
— Boa-noite. Podem encostar a porta que eu fecharei; não vou
longe.
Saíram os dois. Até dobrarem o canto não trocaram palavra.
Manuel esperava um tanto surpreso, porque não lhe ocorria qualquer
motivo para explicar aquela entrevista com ares de mistério.
Finalmente parou Félix e voltando-se para o companheiro, disse-lhe
sacando fora o poncho:
— Esta noite um de nós deve matar o outro!
— Por quê? perguntou Manuel com sossego.
— Pois pergunta?
— Decerto, respondeu o Canho sem mudar de tom. O motivo por que você
me quer matar, pouco me importa saber; eu nunca perguntei à jararaca
por que morde a gente. Mas para que eu o mate, é preciso ter uma razão;
não mato gente à toa.
— Você bem sabe a razão, tornou Félix rangendo-lhe
os dentes. Eu gosto de Catita!
— E que tenho eu com isso?
— Você também gosta dela.
Respondeu-lhe um riso de escárnio.
— Logo vi que não estava no seu juízo. Aposto que veio
da venda? redargüiu o Canho.
— Não tenho que lhe dar satisfações. Estou aqui
para brigar e não para sofrer desaforos.
— Nem eu para ouvir mentiras.
— Nega que ela gosta de você?
— Vou dormir; adeus!
— Não disfarce, foi ela mesma que me contou esta noite, há
bocadinho.
— Pois perde seu tempo!
— Mas enquanto você viver, ela não fará caso de
mim.
— E por isso me quer matar? Pois olhe: não estou disposto a
morrer por causa de mulheres. Procure outro motivo, que por este decerto não
brigamos.
Ecoou perto um som abafado, semelhante a um soluço. Os dois voltaram-se
para conhecer a causa, e viram apenas um vulto que dobrava a esquina fronteira;
adiantando-se alguns passos, levados pela curiosidade, chegaram à rótula
de uma casa cujo interior aparecia iluminado por entre a fresta da janela
cerrada.
Exalava de dentro um ambiente espesso, carregado com a fumaça de
graxa e de tabaco, bem como um surdo zumbir de muitas vozes, misturado com
o tinir de moedas, com o sussurro da guitarra e o estalo das cartas batidas
sobre a banca. Facilmente se percebia que estava na taberna a costumada roda
de jogo.
— Quer apostar a briga? perguntou Félix de repente.
— Está feito. Assim é melhor.
Félix empurrou a porta, e os dois penetraram no corredor.
O vulto desaparecera.
VIII – A DAMA
Ouvindo, ou antes suspeitando o convite que Félix dirigira ao Canho
no momento de sair, Catita foi à janela.
Para quê? Nem ela o sabia; talvez para ver a direção
que os rapazes tomavam, ou para escutar as primeiras palavras que entre si
trocariam. Com o rosto colado nas frestas da rótula esperou que os
dois saíssem.
O silêncio profundo que ambos guardavam assustou a rapariga. Presa
de uma ansiedade cruel correu à porta, ganhou a rua e protegida pela
escuridão pôde, esgueirando-se ao longo das paredes, acompanhar
Manuel e Félix, sem que eles a percebessem.
Assim, a poucos passos deles, oculta no vão que havia entre duas
casas, pôde ouvir toda a conversa. Quando, porém, Manuel recusou
brigar com Félix por sua causa, a alma da rapariga, confrangida pelas
palavras de desprezo, estalou em um soluço. Receosa de trair-se resvalou
para dobrar a próxima esquina e de todo afastar-se; foi nessa ocasião
que os dois viram seu vulto e quiseram segui-lo. Mas ela se tinha encoberto
no oitão da casa.
Depois que Manuel e o companheiro entraram na taberna, Catita arrastada
pela ardente curiosidade foi, transida e perplexa, encostar o rosto à
rótula. A noite ameaçava chuva; de vez em quando vinha uma rajada
que traspassava; e contudo sentia a moça brasar-lhe a fronte. Repeliu
sobre as espáduas a mantilha que trouxera, apertando a mão contra
o peito para sopitar as rijas palpitações do coração,
que faziam tremer a gelosia.
Pela fresta que deixavam as abas da janela cerrada, Catita viu através
do xadrez da rótula um aposento esclarecido por três ou quatro
candeias de latão. No centro havia uma pequena mesa oblonga sobre a
qual estavam apinhadas umas quinze pessoas, gaúchos e peões,
atentas ao jogo. No fundo, a Missé tocava na guitarra um lundu, ao
som do qual sapateavam alguns rapazes.
Manuel tomou lugar a um canto da mesa, defronte de Félix. Enquanto
os outros continuavam o jogo da primeira, armaram eles um pacau para decidir
a aposta. Da primeira cartada o Canho bateu nove e ganhou a partida.
— Bem lhe disse eu que não havíamos de brigar.
— Veremos! disse o rapaz a voz surda.
Manuel encolheu os ombros.
— Não há mais quem queira?
— Topo eu! exclamou o Chico Baeta, atirando um patacão sobre
a mesa.
Correram as cartas, e Manuel ganhou não só esta como as partidas
seguintes. As moedas de prata passaram da bolsa do peão para as mãos
de seu feliz parceiro.
— Quer ir tudo contra o Pombo? Olhe que é um pingo de mão
cheia.
— Vá! respondeu Manuel cortando o baralho.
A sorte ainda o favoreceu. Chico levantou-se desesperado.
— Que veia! exclamaram os outros.
— Ninguém resiste.
— Não dá mais desforra? perguntou Chico desesperado.
— Enquanto quiser.
— Pois eu paro a Missé.
— A Missé? replicou Manuel com um sorriso interrogador.
— Não conhece? Pois veja que bonita rapariga. Vem cá,
Missé!
— Que é isto? perguntou a rapariga aproximando-se da mesa.
— O Chico parou você no jogo, disseram algumas vozes.
— Hein?
— É para me desforrar, Missé! Mas se não queres!
— Desde que você empenhou sua palavra!… respondeu a rapariga
com a voz repassada de mágoa.
Uma lágrima lhe desfiou lentamente pela face:
— Não te desconsoles, meu bem. Olha, se eu te perder, amanhã
arremato para mim as primeiras balas dos caramurus, a troco das relhadas e
laçaços que hei de arrumar-lhes. E se isto tem de suceder, não
é melhor que fiques amparada?
— Deixa-te dessas idéias, Chico. Havemos de ganhar: eu tenho
boa mão; quero cortar o baralho.
Um riso jovial espancara de repente a melancolia do lindo rosto da rapariga
e espargira nele o brilho da esperança.
— Então valeu? perguntou o Chico a Manuel.
— Eu topo tudo! respondeu este.
Desde o princípio da cena que cessara o jogo da primeira; todos os
parceiros, agora atentos ao pacau, aguardavam a decisão da partida
de empenho.
A Missé talhou as cartas. Cada um dos dois parceiros tirou três
alternadamente do baralho colocado no centro. Cabia a mão ao Chico.
Este no meio a ansiedade geral, começou a filar o ponto na palma. A
primeira carta voltada sobre a mesa era um quatro, as duas restantes emborcadas
uma sobre a outra, escorregavam lentamente ao atrito dos dedos do jogador.
— Figura! disseram em torno, vendo aparecer a pluma do valete de espadas.
O Chico não falava; todo ele estava nos olhos. Ajeitando as duas
cartas e voltando-as em sentido contrário, começou a filar a
terceira; era esta a que devia determinar o ponto, e portanto as probabilidades
do ganho.
— Queremos isto bem chuleado! disse um peão.
— Vê logo, Chico! atalhou a Missé impaciente.
— Qual! Pois aí é que está a graça!
Manuel, deitando no meio da mesa, sob uma pilha de moedas, suas três
cartas cobertas, se derreara contra o banco e olhava a sorrir o rosto do parceiro
agitado pelas várias comoções do jogo.
— Quadrejou!
Esta exclamação partiu dos lábios de alguns que distinguiram
primeiro no alto da carta as quinas de dois losangos de ouro; quando estes
levantavam a cabeça para resfolgar daquela atenção imóvel,
os outros por sua vez gritaram, vendo as duas marcas no lado da carta:
— Ainda quadreja!
A emoção e curiosidade tocavam agora o auge; com um cinco, o
Chico bateria pacau. Todos os olhos estavam presos no branco da carta, que
subia lentamente espremida pelos dedos convulsos do jogador. Ninguém
respirava; quanto à Missé e o amante, pareciam assombrados.
— Envido! acudiu Manuel rindo.
O Chico abaixou as cartas, e esperou um momento. Não havendo quem
aceitasse o envite, continuou a filar o ponto com a mesma lentidão.
De vez em quando parava, tolhido pela emoção; até que
afinal levantou-se dum ímpeto, como impelido por súbita explosão;
entanto o peito arquejante respirava estrepitosamente soltando, ou antes,
aspirando uma palavra, que soltara-se de todos os lábios.
— Pintou!
Com efeito aí estavam espalhadas na mesa as três cartas, o valete,
o quatro e o cinco de ouros que faziam nove. O Chico tinha batido pacau, e
tiritava de prazer. Abraçado com a Missé começaram ambos
a sapatear um passo de tatu, chorando como duas crianças, tanta era
a alegria. Os outros companheiros contemplavam enternecidos aquela cena.
— Pois eu ainda envido! disse Manuel com a maior calma.
Houve geral surpresa. Já todos supunham a partida ganha, quando se
levanta aquela voz para lembrar que ainda faltava alguma coisa; pois não
se conhecia o ponto do contrário.
— Ah! quer empatar? disse Chico com um riso amarelo.
— Empatar?… Quero ganhar!
— Mas olhe que foi pacau batido!
— Há outro mais valente do que esse.
— O de ás.
— E o de coringa.
— Então envida mesmo?
— Já disse.
— Pois topo.
Fizeram-se várias paradas, casando moeda com moeda; e todos ansiosos
esperaram pelo desfecho da partida, cujo interesse cada vez subia de ponto.
— Olhem; o ás aí está, disse Manuel voltando
com a ponta da unha a primeira das três cartas, e o coringa também.
O Chico e os parceiros do envite empalideceram, vendo quase realizado o
dito do Canho.
— E a outra? disse um, apontando para a última carta.
— Esta, não tem que ver, é figura, e não passa
de uma dama para fazer cortesia à moça.
Acabando de proferir estas palavras, que ele endereçou com um sorriso
à Missé, o gaúcho voltou rapidamente a carta. Foi profundo
o assombro; era com efeito uma dama; o Chico tinha perdido. O dinheiro, o
cavalo e a amante pertenciam ao Canho.
Quando passou a confusão que seguira ao primeiro espanto, viu-se
o Chico apertando pela última vez a Missé em seus braços.
— Não chores, meu bem. Faz de conta que eu morri! Amanhã
vou te esperar lá no outro mundo!
Manuel segurou-o pelo braço no momento de passar a porta.
— Faz-me um favor?
— Qual?
— Aceite o Pombo, como lembrança da primeira vez que nos vimos,
há cerca de três anos. Não se dirá que Manuel Canho
separou um gaúcho de seu melhor amigo. O mais, o dinheiro e a mulher,
acha-se a cada canto; porém o cavalo, que nos entende, e se liga ao
nosso destino no trabalho e na guerra, na vida e na morte, este, uma vez perdido,
custa a achar outro, quando se acha. Senhores, boa-noite!
Dirigindo esta saudação às pessoas presentes, o Canho
ganhou a rua; tinha dado alguns passos, quando um vulto deslizou na sombra
e conchegou-se a ele. Que sorriso de desprezo perpassou nos lábios
do gaúcho!
— É mulher!… murmurou ele.
O temporal, que ameaçava desde o princípio da noite, estava
prestes a desabar; as serras de nuvens negras, amontoadas no horizonte, começavam
a inflamar-se. À luz crebra e lívida dos relâmpagos, a
vila adormecida assomava como o espectro de uma ruína no foco de um
incêndio.
Voltando-se nesse momento, viu a mulher de longe um vulto que os seguia;
com a mão convulsa travou do braço do gaúcho e levou-o
por diante até sumirem-se no fim da rua.
Tinham os dois chegado a uma das extremas da vila, em lugar ermo, onde a
escarpa íngreme do terreno formava um barranco profundo.
Manuel passou o braço pela cintura da mulher, e sentiu um corpo trêmulo
e agitado que se apoiava nele. Mas nesse momento aquele seio arquejou, estalando
num soluço.
Afastou-se o gaúcho rapidamente, arredando com um movimento brusco
o talhe da moça. Com esse movimento abriu-se a mantilha, que deslizando
sobre os ombros, deixou descoberta a cabeça da desconhecida. Rasgava-se
nesse momento um relâmpago, que iluminou o belo rosto de Catita.
Manuel ficou imóvel em face da aparição incompreensível.
Entretanto os relâmpagos sucediam-se e no meio dessa auréola
deslumbrante ele via aquele mesmo olhar que três anos antes o fascinara
e desde então cintilava nas sombras da sua alma.
Dominando afinal aquele encanto, o gaúcho quis afastar-se, porém
a moça tomou-lhe o passo, cruzando as mãos para suplicar-lhe
que não a deixasse. Catita assistira a toda a cena da taberna, e fora
com o coração ralado de ciúmes que ela acompanhara Manuel
para impedir o seu encontro com a Missé.
— Manuel! balbuciou a moça.
As palavras expiraram no lábio trêmulo, mas desfolhando-se
num sorriso que enlevava.
O gaúcho lançou um olhar para o barranco; era um precipício;
mas não estava ali em face, outro mais perigoso? Não se abria
diante dele no sorriso fascinador daquela mulher, numa voragem para sua alma?
Travando do galho de uma árvore, Manuel arremessou-se, e desapareceu
na espessura da folhagem.
Catita caiu de joelhos.
Ao grito que rompeu-lhe do seio, acudiu uma pessoa; era a Missé,
que a tinha seguido de longe.
IX – BOMBEIRO
Os dias seguintes foram chuvosos. O manto espesso da cerração,
desdobrando-se pelos cerros e coxilhas, tornava a campanha triste e soturna.
Cerca de doze léguas de Piratinim, para as bandas do Erval, no rancho
de uma estância, perdido no meio do campo, estavam reunidos seis peões
que parolavam, comendo um grande churrasco; fora, os cavalos arreados e presos
à soga sem freios, pastavam na grama.
— Então você acha, Félix, que o Neto ainda está
em Piratinim?
— Pois que dúvida!
— E que gente terá?
—Uns duzentos, mas olhe que é boa gauchada.
— Eu não lhe dou nem metade; e não passam de farroupilhas.
— Talvez que amanhã os vejamos de perto, disse Félix
a rir. Tomara eu!
Neste ponto os animais deram aviso. Um dos peões saiu fora do rancho
para correr os olhos pelo campo; mas nada avistou que lhe despertasse a atenção.
Entretanto os cavalos continuavam a indicar, por seu ar espantadiço,
a aproximação de alguém. Com as orelhas espetadas, perscrutavam
eles uma restinga de mato que ficava a alguma distância.
Suspeitoso o peão saltou na sela e botou-se para o lugar. Pareceu-lhe
ver um vulto perpassar entre a folhagem, e não se enganava: de feito
um cavaleiro ali estava desde algum tempo agachado entre as árvores,
à espreita do que passava pelo campo. Conhecendo pelos movimentos do
peão, que fora, senão percebido, ao menos suspeitado, tratou
de evitar o encontro que parecia infalível, pois a língua de
mato, além de estreita, era um raleiro, que de perto facilmente se
devassava com a vista.
Um selvagem naquelas circunstâncias subiria ao cimo das árvores,
para ocultar-se no mais basto da folhagem; mas nada separa um gaúcho
de seu cavalo no momento do perigo: seria o mesmo que deceparem as pernas
do centauro, e o reduzirem a um tronco mutilado.
Ganhando a orla oposto da mata, o desconhecido fez deitar-se numa biboca
funda e cheia de capim a tropilha que trouxera; e cobriu tudo isso com algumas
braçadas de folhas secas. Então estendeu-se pelo flanco do Morzelo
de modo que era impossível descobri-lo do lado oposto. Um dos pés
apoiava na orelha esquerda do cavalo, o outro o animal o segurava nos dentes
como a cana do freio; finalmente, com a mão escondida no cabelo da
cauda, o desconhecido parecia colado ao corpo do quadrúpede.
Quando o peão chegava à restinga viu à esguelha um
cavalo estropiado, que se afastava pelo campo manquejando. Bateu o mato e
nada descobriu de suspeito; retirou-se portanto convencido que o vulto não
era outro senão o do Morzelo arrebentado por alguma viagem.
Entretanto o animal, sempre manquejando, ganhou uma canhada, que não
se podia ver do rancho, e escondeu-se numa touça de sarandis. Aí
o cavaleiro descansando da posição incômoda, mas sempre
alerta, permaneceu até cair a noite.
Manuel, pois era ele, separando-se bruscamente de Catita, na noite de sua
chegada a Piratinim, ouviu da biboca onde saltara, a conversa da moça
com a Missé; e depois a seguiu de longe até que viu ambas se
recolherem à casa da Fortunata. A filha do Lucas tremia com a idéia
de deixar só a amiga e por isso a obrigou a ficar em sua companhia.
O Canho recolheu-se também; mas não pôde dormir. Toda
a noite via debuxar-se diante dele o quadro vivo daquela tempestade sinistra.
Rasgavam-se os relâmpagos; e do seio da luz celeste desprendiam-se duas
centelhas que lhe traspassavam a alma e embebiam nela uma lava satânica.
Eram os olhos de Catita.
Pela manhã dirigiu-se o gaúcho à casa de Neto, onde
encontrou D. Juan Lavalleja, Verdum, Onofre, Crescêncio e outros republicanos
orientais e rio-grandenses. O caudilho o incumbiu da comissão perigosa
de reconhecer a posição e importância exata da força
de Silva Tavares, comandante do Erval, bem como de espreitar seus movimentos.
Partiu o Canho como bombeiro. Assim chamam na campanha as vedetas destacadas
que precedem os corpos militares, explorando o campo, e dando aviso da aproximação
de qualquer partida suspeita. A etimologia dessa palavra, desconhecida na
língua com semelhante significação, nenhum sábio
por certo a aventará. No estilo pitoresco do gaúcho, o bombeiro
é o peão que surge de repente, para não dizer que estoura
como uma bomba, do meio da macega, e desaparece logo.
Nesse mesmo dia, soube Manuel na estrada do Erval que a força de
Silva Tavares estava arranchada em uma estância à margem do Orqueta,
nas vizinhanças do Serrito. Com efeito, seguindo as indicações
e guiado por sua perspicácia, verificou o gaúcho pela madrugada
a exatidão da notícia. Restava porém saber quantos homens
tinha o chefe legalista, e ver por seus olhos que gente era, para levar a
Neto uma informação segura.
Aproximou-se da casa o mais que era possível sem denunciar-se; mas
conheceu que perderia o tempo inutilmente, pois Silva Tavares, cuja finura
e astúcia tinham fama na campanha, espalhara também seus bombeiros
em todas as direções para prevenir um assalto.
Manuel conseguira iludir a vigilância de alguns dos bombeiros, empregando
para esse fim todos os ardis imagináveis; mas corria o risco de ser
descoberto a cada instante sem ter colhido os indícios necessários.
Logo que fechou a noite, ele voltou à restinga, e montado na Morena,
aproximou-se sutilmente do rancho, onde conversavam os peões.
Mas então por que foi mesmo que você deixou as farroupilhas,
Félix?
Ora, foi o diabo de uma rapariga, que depois de se divertir comigo, há
mais de dois anos, começou a requebrar-se com um sujeito que apareceu
de repente.
É costume delas!
Não admito; eu cá defendo as muchachas.
Pois defenda, que há de achar uma para lhe dizer na bochecha, como
me disse a mim a Catita, que se eu matasse o namorado, primeiro matava a ela!
Que tal a pequena?
E como se chama o cujo?
Diz ele que é Manuel Canho; mas eu penso que é Manuel Cão;
e senão vocês hão de ver como lhe deito a coleira vermelha;
assim lhe ponha eu os luzios uma vez!
Então você escamou-se com medo.
Medo!
Não digo do sujeito, mas da rapariga.
O sujeito, desafiei-o; não quis brigar por nada. Então passei
para os legalistas; quero ver se ele agora tem desculpa.
Nada mais importante ouviu o gaúcho nem sobre sua pessoa, nem a respeito
da força e plano de Silva Tavares. Resolveu portanto apresentar-se
francamente na estância, como um viajante em trânsito.
Pela madrugada tirou os arreios do lugar onde os tinha escondido, e selou
o Juca. Eram sete horas da manhã quando surgiu de repente no terreiro,
sem que soubessem como ali aparecera.
Sua chegada, sem aviso prévio dos bombeiros, excitou logo as suspeitas
de um homem baixo e gordo que se via pela janela de um quarto a embalar-se
na rede. Erguendo-se com uma vivacidade e presteza admiráveis para
sua corpulência, saltou na varanda, mas com o disfarce de chamar um
peão. O rico pala indicava ser homem de posição. Manuel
reconheceu o comandante, porém não pestanejou:
Que temos? disse o tenente-coronel, como se casualmente e só então
visse o recém-chegado.
Nada; quero descansar, respondeu o gaúcho com a maior serenidade.
Donde vem o amigo?
Da capital.
Ah! Vem de Porto Alegre! Então viu a rusga. Conte-nos lá como
foi isto.
Não tem que contar. Chegou o Bento com uns vinte farroupilhas de
poncho amarelo; fez uma careta, e tudo começou a tremer.
E o amigo?
Eu, vou me chegando para casa.
Aonde?
Em Ponche-Verde.
Ah!… Mas você é um rapaz sacudido, e nós carecemos
de gente.
Lá isso não! Também os outros precisam, e eu vim-me
andando.
Manuel tinha-se apeado; mas conservava-se perto do Juca, pronto ao primeiro
sinal.
Diga-me, passou por Piratinim?
Ontem por estas horas.
Que gente tem o Neto?
Há de andar por cinqüenta.
Está bom; vá descansar. Olá,. Camaradas! acomodem aqui
o amigo, gritou o oficial para um grupo de soldados e paisanos que se aproximava.
Ao ouvido perspicaz de Manuel aquele acomodem soou com timbre especial que
o pôs alerta; e tinha razão, porque a gente espalhando-se pelo
terreiro deitava-lhe cerco para evitar que escapasse. Nisto uma voz exclamou:
Agarrem que é o camarada de Bento Gonçalves.
Mas já o Canho estava na sela, e o impetuoso alazão arrancando,
de um salto salvou o cerco, e disparou pelo campo fora. Dez ou doze balas
acompanharam de perto o gaúcho, que as ouviu sibilar bem perto da cabeça.
Então o intrépido rapaz voltou-se para cortejar de longe, agitando
o chapéu no ar:
Já sei o que desejava, senhores, até mais ver.
Os bombeiros do rancho, ouvindo os tiros, saltaram na sela e puseram-se
no encalço do fugitivo, que ao passar fronteiro à restinga soltou
um grito vibrante:
Helô!…
Imediatamente a tropilha rompeu do mato e seguiu o cavaleiro que afastava-se
com espantosa rapidez. O alazão não corria, voava, e com pouco
desapareceu por detrás de uma coxilha.
Contrariado por ver escapar-lhe o inimigo, um dos peões, o que montava
melhor animal, arremessou as bolas contra o resto da tropilha que ficara atrás
não por serem maus corredores, mas por não poderem acompanhar
a velocidade inaudita do alazão e da baia. Um dos animais caiu com
os pés tolhidos pelas correias; mas, fazendo um esforço, conseguiu
erguer-se. Passava nesse momento de corrida o Félix, que o lanceou
nos ilhais, arremessando-o outra vez no chão.
Entretanto o fugitivo, depois de algumas horas vendo-se fora do inimigo,
moderou a desfilada em que ia para dar fôlego aos animais.
Então, Morena, a coisa esteve quente? disse o cavaleiro sorrindo
e passando a mão pelas clinas da baia, no momento em que ela emparelhava
com o alazão. E o nosso Juca brilhou, hein? Foi a primeira vez que
sentiu o cheiro da pólvora. Nós cá já conhecíamos
o zunir das balas: é como um besouro!
Nisto Manuel vendo chegar o resto da tropilha e dando por falta do Morzelo,
sentiu um aperto de coração. Sua vista ansiosa interrogou o
Ruão, que soltou um rincho melancólico.
X – ÚLTIMO DEVER
Não era possível que Manuel abandonasse o Morzelo, seu amigo
de infância, o confidente de suas mágoas, o companheiro fiel
e dedicado de João Canho.
Nem de longe semelhante idéia perpassou em seu espírito. Morena
e Juca eram sem dúvida os mais lindos e briosos corcéis, que
jamais pisaram com a rija pata a verde grama dos pampas. Manuel os amava com
entusiasmo e dedicação; mas ao velho amigo, votava ele amizade
profunda, repassada de certo respeito, ou quase veneração.
O cansaço produzido pelo longo serviço; a rigidez dos músculos,
ressequidos pela muita idade; o amortecimento do fogo e vigor de outrora,
se diminuíam o valor físico do ginete, aumentavam a afeição
de Canho. Ele tinha por estas debilidades do ancião uma piedade filial.
Montado no Juca, ardente mancebo, ou na Morena, travessa rapariga, o gaúcho
não escolhia caminho, nem rodeava uma cerca ou largo valado, que preferia
salvar de um pulo. No Morzelo porém evitava todo o esforço que
podia alquebrar as forças do velho; e poupava com solicitude os sobejos
do antigo vigor, bem como os brios do veterano corcel, facilitando-lhes as
gentilezas, para não humilhá-lo diante da baia e do alazão.
Esteve Manuel um instante perplexo, não porque nutrisse a menor dúvida
sobre o que exigiam dele, em relação ao Morzelo, sua consciência
e seu coração. Pensava como faria chegar a Neto o resultado
da missão de que se incumbira.
A ponto justamente de seu desejo apareceram além três cavaleiros
nos quais o gaúcho reconheceu à primeira vista o Chico Baeta,
e mais dois parceiros do famoso pacau. Ao sinal de que lhes desejava falar,
pararam eles à espera do gaúcho.
O Chico Baeta cortejou Canho friamente, como quem guardava dele profundo
ressentimento. Não escapou ao gaúcho esta circunstância
apesar da sua triste preocupação; mas tinha coisa mais séria
a tratar do que as carrancas do amante da Missé.
Você vai para a vila? perguntou Manuel chamando-o de parte.
Conforme! respondeu o peão de mau modo.
É preciso que vá, e sem perda de tempo, tornou o Canho com
autoridade. Diga a Neto… ouça! Diga que Silva Tavares está
nas vizinhanças do Serrito, na estância da encruzilhada do Orqueta
com o Piratinim. Terá cem homens, metade soldados, o resto paisanada;
mas a cada hora chega gente. Para atacar, o melhor é pelo passo da
Maria Gomes; ganhar a estrada do Erval, e voltando cair sobre os sujeitos
pelo fundo da estância. Mas o tenente-coronel é vivo como azougue,
e está alerta. Adeus!
Curioso e interessado nos pormenores que o gaúcho lhe comunicava, esquecera
Chico por momentos sua má-vontade, que tornou, passado o incidente,
com a despedida de Manuel.
E por que não vai o senhor mesmo ganhar essas alvíssaras?
Tenho que fazer por cá.
Ora! Não há na vila quem o mereça?… disse o
Baeta com um riso de mofa, em que se percebia travo de fundo pesar.
Canho interrogou com um olhar severo a fisionomia do peão.
Você tem alguma coisa comigo, Chico? É por causa do pacau?
Bem viu que foi uma brincadeira: a rapariga lá a deixei naquela mesma
noite.
Brincadeira, não! Dívida de jogo é dívida de
honra. Eu não sou ladrão para tomar aquilo que perdi. O senhor
ganhou a moça; ela é sua, lhe pertence. Senti cá dentro:
mas não tinha que ficar zangado com o amigo, porque a sorte o favoreceu.
Agora o que nunca pensei foi que se fizesse pouco caso da rapariga e a deixassem
andar aí rolando pelas ruas como um trapo que o vento arrasta. A Missé
não é nenhum peixe podre, Sr. Manuel Canho! Há aí
alguma que lhe chegue aos pés, mesmo dessas mulheres de truz? Então
quando ela se enfeita, mete a todas num chinelo! E para bailar o tatu? Que
requebros, que denguices de minha alma! Ai, nem me falem!
O Chico Baeta enternecido mergulhou a cabeça pelo ombro para disfarçar
o choro que lhe marejava do coração.
Uma rapariga como esta é para se tratar assim de resto, que nem rebotalho?…
Quanta gente graúda não se daria por feliz de possuir um peixão
daqueles? Sempre tão desejada e tão querida, quem nunca pensou
que havia de nadar à toa pelas ruas, como matungo sem dono? Coitadinha,
cortava o coração de a ver assim desprezada; quando me encontrava
com ela, fazia tudo para a consolar: “Ele não te conhece, Missé;
por isso… — Qual? me respondia; não o mereço.”
E lá vão quase oito dias!
Mas, Chico!… atalhou Manuel atônito do que ouvia.
Não tem mas nem mês, Sr. Canho, retorquiu o peão formalizado.
O senhor me afrontou duas vezes: a primeira vez me fazendo passar por um homem
namorado de uma mulher à-toa de que ninguém faz caso, assim
um lorpa que apanha o cisco da rua. A segunda vez tratando de resto minha
companheira que o senhor ganhou para sua namorada e não para sua escrava.
É o que lhe digo; o senhor me insultou, e me há de dar satisfação.
Bem; eu lhe escutei calado; agora ouça. A Missé é a
mais bonita moça que pode haver; naquela noite não sei com foi
que nos perdemos, e você viu que no outro dia saí a toda pressa
com a incumbência do Neto. Mas que ver, Chico, o preço que tem
para mim sua namorada? Eu daria tudo para voltar agora mesmo à estância,
e saber onde ficou um amigo que não trocaria por todas as raparigas
do mundo. Quem sabe se o mataram?…
Que amigo é esse? perguntou o Chico.
Morzelo, o cavalo de meu pai. Se o tiverem morto, hei de vingá-lo!
Mas Neto espera as notícias; quando eu voltar, será tarde sem
dúvida. Por um homem seguro que vá a Piratinim já, sem
tomar fôlego, embora arrebente, eu dou o que tenho de mais valor, dou
a Missé. Quer ser esse homem, Chico?
Como?
Faço uma aposta. Se você chegar à vila ainda com dia,
bateu nove; tira a desforra do pacau e ganha a rapariga. Mas você não
é capaz!…
Sério!
Feche! exclamou Canho estendendo a mão.
Está fechada.
Mal soavam estas palavras, que já os dois cavalos arrancavam à
rédea solta em direção oposta. Quando os peões
devorando as lombas da várzea atingiam o dorso das fronteiras coxilhas
e iam transmontar, voltaram-se para trocarem rápido aceno; dois gritos
fenderam os ares.
Saudades à Missé!
Abraço no Morzelo!
Mesmo a correr, Manuel saltando para a garupa do animal, afrouxou os arreios
que na rápida passagem pelo campo arremessou dentro da primeira moita,
onde ficaram ocultos. Qualquer outro dificilmente acertaria depois com o lugar
perdido no meio da vasta planície; mas para o gaúcho cada acidente
da campanha era um traço, uma feição de sua fisionomia,
e mesmo de relance gravava-se profundamente em sua memória.
Livre dos arreios, o intrépido peão lembrando-se que Juca
já correra seis horas, chamou a Morena, e de um salto se transportou
para o outro animal, sem afrouxar a carreira em que ia.
De espaço em espaço deixava o Canho um dos animais da tropilha
escondido nalguma sanga ou restinga. Agora só o acompanhava o alazão;
mas não perto como de costume, e sim muito de longe, quase a perder
de vista. Quando o gaúcho precisasse dele, bastava um sinal da baia.
Já durava algumas horas aquela corrida, quando surdiram longe alguns
cavaleiros. Manuel tinha o maior empenho em não ser visto; sobretudo
por aqueles homens que ele suspeitava serem os peões do rancho, ou
pelo menos gente de Silva Tavares; era preciso deixá-los passar sem
o pressentirem, para prosseguir em busca de Morzelo.
Ao avistar os cavaleiros não teve a menor surpresa nem hesitação.
Desde muito que ele estava preparado para os encontros; prevenira qualquer
situação em que se poderia achar: para cada uma inventara recurso,
quando a posição não lhe oferecesse.
Assim, antes que os cavaleiros o descobrissem, pois de precaução
ele corria deitado sobre o animal, já a baia estava mergulhada em um
brejo coberto de tanchagens e aguapés, cujas folhas gigantes ocultavam
a cabeça da égua e o corpo do homem.
Os peões não tardaram a passar.
O Félix está queimado! dizia a rir um dos cavaleiros.
Não abre a boca!
Pois se o cão raspou-se!
Manuel não ouviu mais do que estas palavras; porém não
lhe escapou que o ferro da lança do rapaz estava ensangüentado
de fresco.
Decorrida meia hora depois do primeiro encontro, Manuel descobriu não
pela frente, mas à direita um troço de gente a cavalo. Era,
sem dúvida, alguma partida pela qual o Silva Tavares mandara bater
a campanha em roda da estância para evitar surpresas.
Desta vez a posição era crítica. Manuel estava em campo
raso, onde não ser percebia touça de macega, ou moita de camboim,
capaz de esconder um veado, quanto mais um homem e seu cavalo. O gaúcho
porém não trepidou; já então montava ele o Juca.
Não se imagina a rapidez incrível com que deixou-se escorregar
ao longo de uma ondulação do terreno, sobre o qual o alazão
deitou-se, cobrindo-o inteiramente com seu corpo. Entre o chão e o
flanco do animal apoiado no cômoro de relva, havia um vão onde
o gaúcho se estendera comprimido pelo peso do quadrúpede; os
interstícios que podiam denunciar o trajo, eram tapados pelos tufos
de capim.
O troço de gente armada passou a duas braças do Juca, e não
vendo mais que um animal deitado, como se encontra a cada instante na sombra,
seguiram seu rumo, e sem a menor suspeita de que deixavam ali o inimigo.
Afinal avistou Canho além o rancho dos peões, e imediatamente
distinguiu a meio caminho um vulto negro, que ele reconheceu. Era o corpo
do Morzelo. Estaria vivo ou morto? O rincho triste e plangente da Morena,
que assomara ao longe a sota-vento, era uma elegia de dor e saudade.
Quando Manuel chegou junto do corpo, tinha o coração túmido
e os olhos cheios de lágrimas. Ainda vivia o velho corcel; mas estava
moribundo. Lançar-se a ele; sondar-lhe a ferida; rasgar a camisa para
estancar-lhe o sangue; foi o primeiro ímpeto do gaúcho. O cavalo
fitou os olhos no dono, com uma expressão eloqüente e expirou.
Ajoelhado junto ao cadáver, e abraçado com ele, Canho deu
expansão à sua dor.
— Morreste, meu amigo; chegou tua hora. A nossa, a de teu companheiro
de infância e de teus camaradas, talvez não esteja longe; talvez
que vamos ter contigo muito breve! Mas eu sempre pensei que a ti, o bravo
dos bravos, estava reservada a fortuna de morrer combatendo, e não
pela mão traiçoeira de um malvado!… Morreste por dedicação;
mas serás vingado, amigo! Eu juro sobre tua sepultura; e esses dois
irmãos juram comigo.
O Juca e a Morena que gemiam sobre o corpo do companheiro, escavaram o chão
com a pata, e dardejaram ao longe um olhar que parecia uma espadana de fogo.
Canho fez um esforço; tinha ainda um dever a cumprir para com o amigo:
era o de dar-lhe sepultura, para que não fosse pasto dos abutres. Com
o ferro da lança e as mãos abriu uma cova profunda na próxima
capoeira; e arrastando o corpo de Morzelo o inumou nesse jazigo que ele consagrou
com uma cruz, como se fosse o túmulo de um cristão. Para Manuel
aquele era o símbolo do que há de santo na terra.
XI – DESÂNIMO
Fazia lusco-fusco.
Desenganados da caça que tinham dado ao bombeiro, voltavam os peões
ao rancho, quando ouviram um estrépito medonho; e um turbilhão
caiu sobre eles.
Era o Canho e sua tropilha à disparada; o homem soltara brados espantosos;
os cavalos rinchavam com estranha ferocidade. Manuel os tinha habituado a
combater; pareciam leões na peleja.
Os peões transidos, supondo-se atacados por força muito superior,
dispersaram pelo campo fora. Um caiu ferido pela espada do gaúcho;
ao outro alcançou o arremesso da lança; além o terceiro
era colhido o laço enquanto o companheiro rolava com o animal esmagado
pelas bolas. Se algum tentou levantar-se, os cavalos o acabaram a coices.
Dos dois peões que restavam, um escapara-se; o outro, Manuel o seguia
de perto e arremessando-se como um tigre na garupa estringiu-lhe o corpo em
um abraço. Era o Félix.
— Aqui estou! Não te querias encontrar comigo?
Isto dizia o gaúcho ao ouvido de Félix, metendo as chilenas
no ventre do animal, e sem tirar os olhos do outro peão que adiante
corria. Entretanto desprendendo o laço amarrava os braços do
prisioneiro de modo a tolher-lhe os movimentos.
— Foste tu que lanceaste o Morzelo?
— Fui!
— E quem o boleou?… Responde, se não queres que os chimarrões
te devorem vivo!
A ameaça era terrível.
— Aquele que lá vai, respondeu Félix.
— Ah! Então é preciso nos despedirmos; tenho pressa.
— Mata duma vez!
— Matar-te, a ti? Não; hás de viver, para namorar Catita
ou alguma outra. sempre que ela olhar para ti, prometo que te lembrarás
do bravo que assassinaste como um cobarde.
Ouviu-se então o ranger do ferro na carne e um terrível bramido.
Saltando outra vez no Juca, Manuel abandonou Félix e continuou a perseguir
o último dos peões; aquele que primeiro insultara e abatera
o brioso corcel, atirando-lhe as bolas.
Durante a curta cena anterior o gaúcho não parara um instante:
mas como então montava o cavalo de Félix, nenhum avanço
tivera sobre o fugitivo. Agora, porém, de cada tranco do alazão,
ganhava terreno. Contudo fora necessário que não lhe faltasse
o espaço para alcançar o peão já muito distante.
Era esse justamente o receio de Manuel observando a direção
que levavam; a estância não podia ficar a muitas quadras; embora
estivesse resolvido a seguir o matador do Morzelo até no seio do acampamento
inimigo, quando chegasse, já o acharia refugiado dentro de casa e defendido
pela força legalista.
Nisto luziram ao longe os fogos da estância; calculando a distância
e a dianteira do peão, o gaúcho soltou um assovio.
— Morena!
Entre os dois animais era difícil distinguir o melhor corredor. Em
grande distância o alazão vencia a mãe; mas no primeiro
ímpeto a égua excedia ao próprio filho na velocidade.
Por isso a chamava o gaúcho.
Poucos instantes depois o vulto esbelto da Morena perfilou-se com o alazão
e Manuel passou rapidamente de um a outro animal.
— Upa!… Upa!…
A baia fendeu os ares como a asa negra do tufão; quando o peão
surgia no clarão que derramava fogo pelo terreiro, os soldados atônitos
viram precipitar-se um vulto negro, como uma águia em seu arremesso;
e um corpo rolou aos seus pés.
Imediatamente correram às armas; soou a fuzilaria; e do turbilhão
de fumo desenvolveu-se a sombra do gaúcho que fugia incólume
entre uma chuva de balas. Já ele estava fora do alcance, quando recebeu
nova descarga de um posto avançado, que o viu sumir-se ao longe nas
trevas,
Manuel ouvira quatro tiros, e só duas balas tinham sibilado a seus
ouvidos; uma se amortecera nas dobras de seu poncho batido pelo vento; mas
a outra?
Morena devorava o espaço; nunca Manuel habituado à velocidade
da égua sentira aquele ímpeto que lhe recordava a corrida vertiginosa
da baia pelos pampas à busca do filho recém-nascido. Depois
de algum tempo julgando-se livre de perigo, quis moderar-lhe o impulso, mas
ela desobedecendo-lhe pela primeira vez redobrou a rapidez.
Esta insistência fez-lhe supor que era perseguido; o faro e o instinto
do animal excediam sua perspicácia. Nisto reparou na ausência
do alazão; quanto aos outros animais, era natural que ainda estivessem
descansando das fadigas daquele dia tão penoso nos lugares onde os
deixara. Mas Juca? Por que não aparecia? Tivera acaso a mesma sorte
do Morzelo?
Manuel chamou o alazão com o costumado sinal; um vento rijo impelia
o somo na direção da corrida; e o silvo que soltara repercutiu-lhe
longe, mas pela frente. Debruçando-se então, pruriu o focinho
da baia para que ela chamasse o filho com o nitrido fremente que fendia os
ares. A Morena ficou muda; e arremessando-se com um novo ímpeto perpassou
nas trevas como a sombra fugitiva e silente do corvo arrebatado pela procela.
Ao cabo de algumas horas dessa corrida delirante, a petrina da baia começou
a resfolegar com uma espécie de estertor. Um pressentimento cruel cerrou
o coração do gaúcho, que de um salto arrojou-se no chão.
— Está ferida!
Quando os pés do gaúcho tocavam a terra, Morena que sustivera-se
até aquele instante com supremo esforço, deixou-se cair exânime
sobre a relva. A mão convulsa do gaúcho, tateando-lhe o corpo,
sentiu a tépida umidade do sangue derramado pela anca do animal.
Faiscar lume, acender fogo com palha e gravetos, foi o primeiro movimento
de Manuel. Ao brilho vivo da chama, a baia fez um esforço para erguer
a cabeça, pondo no amigo os olhos amortecidos. Bem a compreendeu ele;
o animal receava que o fogo desse aviso ao inimigo; mas naquele momento pouco
importavam a Manuel os que o perseguiam; o verdadeiro, o terrível inimigo,
era o golpe que ameaçava essa existência querida.
Prontamente examinara Manuel o ferimento e reconhecera sua gravidade. A
bala penetrando de revés na anca se entranhara, mas não atravessou
do lado oposto. Teria-se alojado e amortecido nas vísceras? Nesse caso
o ferimento era mortal. Encontraria o osso da rodela e aí se alojara?
Se assim fosse, não havia lesão essencial; mas o esforço
inaudito que fizera o animal e a grande perda de sangue, o punham em risco
eminente.
— Água!… murmurou o gaúcho.
Só então reparou que se achava à borda de uma capoeira
nas cercanias de Piratinim. De um cordão da serra dos Tapes que passa
junto à vila descem inúmeros arroios; Canho descobriu um à
pequena distância: rasgando a própria camisa, lavou a ferida
e aplicou-lhe uma compressa para estancar o sangue.
De joelhos ao lado do corpo da Morena, com os olhos fitos na cabeça
do lindo animal, o gaúcho engolfou-se numa cisma dolorosa e tão
profunda que não percebeu um ligeiro rumor de folhas secas pisadas
por um pé sutil.
— Assim devia ser!… balbuciaram seus lábios frouxos.
Vivemos juntos, morreremos juntos, no mesmo dia. Morzelo, nosso velho amigo,
foi o primeiro: deixou-nos esta manhã. Nós ficamos para vingá-lo;
ele deve estar contente. Juca, a esta hora talvez já esteja com o padrinho;
já terá conhecido o pai e o mano. A bala sem dúvida traspassou-lhe
o coração, porque não soltou um gemido, não chamou
nem por ti, nem por mim; foi mais feliz; não sofreu como tu, Morena!…
Um soluço abafou por momentos a voz do gaúcho.
— Foste tu quem te mataste, amiga, e para salvar-me! A bala em vez
de atrasar a carreira, te deu asas; sentiste que me perseguiam, e voaste para
me pôr fora do alcance do inimigo. E nem um gemido; nem um sinal por
onde conhecesse que estavas ferida! Ah! se eu adivinhasse!… Para que
fugirmos? Melhor era morrermos ambos combatendo, e vingando o nosso Juca!
Eu só, não terei forças nem coragem! Que vale um homem
meio morto; eu já morri no Morzelo, já morri no Juca; quando
acabar de morrer em ti, que fico sendo? Uma cabeça sem corpo; uma mão
sem braço! Então, melhor é dormirmos juntos no seio da
terra.
Manuel correu os olhos em torno procurando um lugar onde abrir a cova que
devia recebê-los a ambos. Uma faixa vermelha listrava o horizonte, anunciando
a alvorada.
Neste momento o rumor tornando-se mais distinto excitou o reparo do gaúcho;
mas com suprema indiferença pelo perigo, nem sequer volveu ele os olhos
para perscrutar a causa. Que maior desgraça lhe podia sobrevir? Que
mal ainda restava, de que valesse a pena guardar-se?
XII – A BALA
Raiava a manhã em Piratinim.
A rótula do oitão na casa de Fortunata abriu-se, e apareceu
ali o gracioso rostinho de Catita, ainda amarrotado do sono.
Os lábios rubros começaram um bocejo que se desfez em um sorriso,
enquanto as costas da mão esquerda encostada à fronte protegiam
os olhos sonolentos contra a luz do dia. Tudo é gentil na mulher formosa;
até esse desalinho do acordar.
A fresca brisa, que agitava os cabelos cacheados da menina em volta de sua
cabeça, breve espancou-lhe as névoas do sono, e restituiu à
tez a doce transparência da folha da rosa que se deslaça.
Ouvindo a voz da mãe, que a chamava, Catita se embuçou na
mantilha e marrando em um lenço alguma roupa, correu ao quintal onde
a esperava Maria dos Prazeres. Ambas desceram a encosta da colina, e seguiram
em direção ao rio. O tempo estava quente para aqueles climas,
e convidava ao banho.
Caminhando adiante com o pé ligeiro e o meneio airoso de seu andar,
a rapariga devia enlear-se nalguma cisma; pois não se voltava para
faceirar com a mãe, nem se abaixava para colher na relva estrelada
de flores, as boninas de que tanto gostava. Em seus lábios risonhos
esvoaçava um ligeiro descante, cuja letra mal se percebia:
Livre, ao relento,
Pobre, sem luxo,
N’asa do vento
Vive o gaúcho.
Dias antes a rapariga achara casualmente no fundo de sua memória
o eco dessa toada; e desde então que a repetia, buscando o fio que
a tecera à breve história de sua vida. Onde e quando a ouvira?
De repente desenhou-se em sua fantasia a cena passada três anos antes
no alpendre da taberna em Jaguarão. No rapaz sentado a distância
reconheceu o perfil de Manuel Canho, e compreendeu a estranha impressão
que o gaúcho produziu nela já moça, quando o vira ultimamente.
Estas recordações volveram o espírito da menina às
preocupações que o absorviam durante a semana. Ela sabia que
Manuel partira como bombeiro para reconhecer a posição do inimigo;
e pressentia quanto essa missão era perigosa. Voltaria dela o gaúcho?
E voltando continuaria a mostrar-lhe o mesmo desdém?
Foi interrompida nestas cismas pela voz de Maria dos Prazeres.
— Não vamos muito longe, não, menina; podem os caramurus
aparecer por aí de repente.
— Qual, mamãe! Eles são capazes?
— O seguro morreu de velho.
— Então agora que Neto já tem um poder de gente.
— Pois não disseram que ele saía com a tropa esta noite?
— Ficou para hoje.
— Que desgraças não vai haver com esta rusga, minha
Virgem Santíssima!
apesar da insistência da mãe, Catita continuou a margear o rio
até o sítio que oferecia melhor banheiro, pela completa solidão
e espessura da folhagem que o recatava, assim como pela bacia espaçosa
formada na curva da corrente.
Enquanto Maria dos Prazeres com sua costuma pachorra descansava sentada
na relva à beira do rio, a rapariga caiu n’água como um
passarinho que mergulha e se espaneja. Estava ela entregue ao inocente folguedo,
nadando e fazendo passos de dança, quando pela abóbada de verdura
que ensombrava o rio, se propagou o surdo tropel de um cavalo.
Nada mais natural naquela paragem; contudo a moça receando a aproximação
de alguém, saiu apressadamente do banho. A mãe estava ainda
de camisa, sentada no chão, a esfriar o corpo; de vez em quando riscava
a flor d’água com a ponta do pé, que logo encolhia.
— Já acabaste?
— Já, mamãe.
— Está muito frio?
— Não senti!
— Uih!
Durante este curto diálogo, Catita escondida entre a folhagem, vestia-se
ligeira, acompanhando o tropel que se aproximava.
— Entre, mamãe!
— Já vou. Que pressas, gentes!
Nesse momento a ramagem farfalhou; um vulto passava. Catita cuidando reconhecer
o cavalo de Manuel Canho, obedeceu ao primeiro impulso e o seguiu. Não
se enganava; uma réstia de sol iluminou o pêlo aveludado do Juca.
— Que é, Catita? perguntou Maria dos Prazeres assustada.
— Creio que os caramurus aí vêm!
— Ai! meu São Brás!… Eu bem dizia!
A mulher de Lucas, metendo os pés na pachorra, sem importar-se com
a transparência e frescura de seu trajo, nem com a sorte da filha, empurrou-se
para a vila, onde chegou de uma batida, deitando os bofes pela boca. Tendo-lhe
o mato arrancado metade da fralda, imagine-se em que estado chegaria a rechonchuda
matrona. Felizmente era cedo e o quintal da casa de Fortunata se estendia
até as abas do povoado.
Se Catita procurasse um meio para ficar só e livre de seguir seu
impulso, não podia acertar melhor. Não foi porém a malícia
que inspirou a lembrança, embora a aproveitasse. Reconhecendo o alazão,
a rapariga acreditou que a chegada repentina do gaúcho significava
a aproximação do inimigo; quando acudiu a reflexão, ela
quis chamar a mãe e tranqüilizá-la, observando que o perigo
ainda estava longe, pois o Canho não se apressava em entrar na vila.
Mas sorriu e continuou a seguir o cavalo, o qual embora levasse um grande
avanço, deixava na ramagem os traços de sua passagem e o caminho
aberto. Ao cabo de alguns instantes ouviu a rapariga outro relincho, mas este
era triste e soturno como um lamento. O alazão estava parado em um
raleiro de mato.
Perto via-se, prostrado em uma cama alta de capim, o corpo da Morena; o
sangue que lhe corria da ferida encharcava o chão. De instante a instante
o generoso animal perdia o alento; já não tinha força
de mover a cauda para afugentar as moscas e um reflexo baço e vítreo
começava a cobrir-lhe a retina.
Ouvindo o gemido do alazão, os olhos da égua cintilaram, procurando
o filho, mas logo amorteceram; a cabeça que só se erguera com
um esforço tombou pesadamente, e súbito estertor percorreu-lhe
o corpo.
Comovida profundamente com esta cena, Catita correu para o animal, e sentando-se
no chão pôs-lhe no regaço a cabeça inerte que estreitou
ao seio, cobrindo-a de carinhos e de lágrimas. Entretanto Juca lambia
a ferida e o corpo da baia, procurando com a baba cheia de seiva e vitalidade,
estancar o sangue e restituir-lhe o calor aos membros entorpecidos.
De vez em quando a rapariga deitava o olhar em torno à procura de
Canho; ela adivinhara sua presença recente no cuidado com que estava
feita a cama da Morena, e no chapéu suspenso a um ramo seco de árvore.
Naturalmente o gaúcho se afastara em busca de algum remédio.
Não se enganava.
Manuel reconhecera que não havia meio de estancar o sangue enquanto
a bala estivesse alojada junto ao osso, impedindo a aderência das carnes
e ligação dos vasos ofendidos. Tendo preparado a cama dentro
do mato, e ajudado a baia a arrastar-se até ali, mal rompeu o dia partira
para a vila com intenção de munir-se de um objeto qualquer que
lhe servisse de tenta e de pinça.
Nesse momento Juca descobrindo um gozo que saíra do mato e farejava
o sangue, o arremessou longe com a pata.
O cãozinho desapareceu.
XIII – OS CHIMARRÕES
Voltou Canho afinal com uma haste de ferro, arqueada na ponta à maneira
de uma torquês: foi tudo quanto pôde obter de um ferreiro cuja
especialidade era fazer pregos e arcos de barril. Quando entre uma fresta
do mato, descobriu longe o grupo que formavam Morena, Catita e Juca, foi terrível
a impressão.
— Morta? disse ele precipitando-se.
— Não! balbuciou Catita, mas tão timidamente que Manuel
a compreendeu mais pelo gesto do que pela fala.
Os olhos do gaúcho encontrando os da rapariga, não se desviaram,
como outrora. Quem eles viram não era mais a mulher bonita e sedutora,
e sim um coração que entendia e partilhava sua dor; uma alma
que naquele momento solene entrava na santa comunhão de suas afeições.
Ajoelhando em frente da moça, curvou-se quase sobre o seu regaço
para observar a Morena; e com um gesto de angústia mostrou-se a lividez
que se derramava pelo cristalino dos olhos do animal. Catita pressentira esse
gesto, e duas lágrimas correram-lhe pela face.
— Enquanto a bala estiver dentro, o sangue não estanca e…
Um soluço abafou a voz do gaúcho, que preparou-se para tentar
a operação. Só então abraçou o alazão,
a quem na véspera julgara morto. O Juca estendeu o focinho para o horizonte,
meneou a cabeça, olhou a mãe, e gesticulou. O que pretendia
ele exprimir com isso? Manuel entendeu que o alazão perseguido correra
toda a noite em sentido contrário, para fazer que o inimigo perdesse
a pista da Morena.
Depois dos maiores esforços para extrair a bala, o Canho descoroçoado
derrubara a cabeça aos peitos, ajoelhado ao lado do corpo da Morena,
quando uma voz formidável reboou entre as árvores.
— Cá está o cujo.
Era o Lucas Fernandes, que rompendo o mato, se apresentou impávido
ante os olhos da filha e do gaúcho. Lançando uma vista rápida
à cena, própria para surpreender outro homem que não
fosse o furriel, travou ele do braço do Canho.
— Há uma hora que andamos à sua procura, Manuel; aqui
estão os amigos.
O Canho afastou-se para evitar que os estranhos penetrassem naquele sítio.
À beira do mato encontrou Verdum, Ortis, Rolin e outros. Os orientais,
sabendo da volta do bombeiro, tinham improvisado um ataque ao acampamento
do Silva Tavares; Neto, de partida para Pelotas com o grossa da força,
lhes cedera uns trinta peões e com esse punhado de gente pretendiam
os caudilhos levar ao cabo a temerária empresa; sem o Canho porém
sentiam que nada poderiam fazer.
Lucas aplaudira com entusiasmo o plano, e se incumbira de procurar Manuel
que fora visto na vila ao romper da alvorada. Os caudilhos impacientes o tinham
acompanhado em sua pesquisa.
Manuel ouviu três discursos, um de Ortis, outro de Verdum, e o último
do furriel; cada um dos oradores expôs com veemência o plano de
ataque e exaltou os resultados do esplêndido triunfo, que decidira da
sorte da revolução, abatendo de uma vez o poder imperial.
— Em 1832 eram trinta e três; agora seremos trinta e sete, quatro
de mais! exclamou Verdum, batendo no ombro do Canho. Que diz, amigo?
— Eu não posso! respondeu Manuel pausadamente.
Foi geral o espanto.
— Que é isso, homem?
— Acha que somos poucos!
Manuel encolheu os ombros.
— Os senhores são trinta e sete; ontem quando lá estive,
eu era um só.
— Mas por que razão não quer você vir conosco,
Manuel?
O gaúcho calou-se; o que ele sentia, os outros não poderiam
compreendê-lo.
— Algum dos senhores abandonaria seu irmão e seu amigo quando
ele está a expirar?
— Acima de tudo a pátria!
— Minha pátria é a campanha onde corre meu cavalo.
— Se fosse João Canho que me ouvisse neste momento, já
ele estaria na sela.
A invocação do nome do pai abalou o coração
do gaúcho, pois recordou-lhe a abnegação do antigo soldado
quando se tratava de cumprir um dever. Nesse momento sentiu na mão
o atrito de uns dedos sôfregos e a impressão de objeto frio e
pesado. Era uma bala. Catita com o tato admirável da mulher a extraíra
da ferida, e viera mostrá-la timidamente a Manuel. Ali estava ela com
os olhos baixos, trêmula, como se tivesse cometida uma falta.
O gaúcho cerrou-lhe a ponta dos dedos com força. A essa interrogação
impetuosa respondeu o olhar ardente da rapariga.
— Sigam que eu já os alcanço.
Pronunciando estas palavras rapidamente, o gaúcho arredou com um
gesto os companheiros, e correu ao lugar onde estava a Morena. O sangue estancara;
e o animal babujava, ainda sem força para mastigar um molho de tenra
grama.
A esperança iluminou o torvo semblante do gaúcho. Com um movimento
convulso apertou ele ao seio o corpo trêmulo de Catita, e saltando no
Juca desapareceu.
Teriam decorrido duas horas depois da partida de Manuel, quando o mesmo
cãozinho que o alazão afugentara apareceu na orla do mato, e
soltou um latido, a que respondeu perto um surdo regougo.
Catita estremeceu, vendo que estava cercada por uma matilha de cães
chimarrões. Esses animais, criados nas charqueadas, às vezes
se multiplicam prodigiosamente, e vagam em bandos pelos campos, como lobos
carniceiros; naquela época andavam eles famintos, porque a revolução
fizera abandonar a carneação das reses.
Compreendeu a moça o perigo da Morena e o seu próprio se não
desamparasse o animal ferido à voracidade dos cães. Os molossos
farejavam o sangue arregaçando as belfas e escancarando as fauces erriçadas
de longos dentes acicalados. Longe ressoou o latido furioso de outra matilha
que se aproximava.
Nem um momento a idéia de abandonar a Morena para salvar-se, passou
pelo espírito da corajosa moça. Ajoelhando-se ao lado da baia,
cingiu-a com seus braços, e encomendou a alma a Deus.
Nesse momento supremo, ante a morte horrível que a ameaçava,
ela sentiu um grande consolo, lembrando-se que morria por Manuel.
XIV – VISÃO
Alcançando Verdum, Manuel embora disposto a partilhar a sorte do combate,
declarou ao coronel que o ataque naquelas circunstâncias, com tão
pouca gente, era uma imprudência; porque o inimigo estava alerta e não
se deixaria surpreender.
O oriental insistiu; o resultado foi uma carnificina que ele pagou com a
vida. Era a primeira derrota da revolução, a que devia seguir-se
em poucos dias a do capitão Porciúncula no Arroio Grande.
Manuel e Juca bateram-se como leões e vingaram a Morena de uma maneira
terrível. Quando passavam no meio de um turbilhão por entre
os inimigos, dir-se-ia o gênio do extermínio cavalgando um corcel
de asas de fogo.
Vem do que de seus companheiros já não restavam no campo senão
cadáveres, o gaúcho como um tigre saciado da carnificina, escapou-se.
Perseguido de longe pelo inimigo avistou ele adiante o furriel, cuja cavalgadura
estropiada galopava sobre três pés.
Passar, suspender Lucas nos ares e encaixá-lo no lombo do Ruão,
foi coisa de relance. O miliciano ainda supunha-se espetado na ponta da lança
inimiga, que já corria à desfilada, tangido pelo gaúcho.
Era alta noite, quando avistaram as torres de Piratinim. Manuel dirigiu-se
ao raleiro onde havia deixado Catita e Morena; a escuridão não
permitia distinguir os objetos; mas ele reconheceu logo que o sítio
estava deserto e fora recentemente o teatro de uma luta; havia ali um tépido
odor de sangue. Com o coração estringido por um terrível
pressentimento, faiscou lume do fuzil e acendeu um molho de capim seco.
— Cães! murmurou Manuel transido.
Que horrível espetáculo! No meio do chão revolto viam-se
grandes charcos de sangue; e ossos ainda mal despojados da carne, esparsos
aqui e ali pela orla do mato. Em um desses acervos de detritos animais, descobriu
Canho um pano que ergueu com a ponta da faca e aproximou do fogo.
— Conhece? disse ele para Lucas pasmo ante esta cena.
A voz de Canho pronunciando aquela palavra tinha um acento medonho. Um calafrio
percorreu o corpo do alferes, cujo espírito parecia recuar espavorido
ante a idéia que assomava. Seu olhar esbugalhado era uma ânsia
e uma interrogação.
— É da saia de sua filha!
— Catita!
O nome da filha envolto em um gemido dilacerante, eis tudo quanto se exalou
dessa alma selada pela estupidez da dor.
— Foi o senhor quem matou-as, a ambas, arrancando-me daqui. Agora
havemos nós de ficar também; os cães naturalmente voltam.
Um estranho riso, que repercutiu na treva como o crocito da coruja, acompanhou
estas palavras. O furriel era sem dúvida um homem destemido; mas aquele
riso penetrou no seu cérebro como a lâmina de um estoque; súbita
alucinação mostrou-lhe o quadro espantoso dos cães famintos
esgarçando-lhe em lanhos as carnes palpitantes.
Assombrado, Lucas fugiu.
Manuel, porém, o perseguiu escarniçadamente, e conseguiu afinal
agarrá-lo.
Como ia voltar com ele ao sítio donde saíra, encontrou em
caminho um troço de dez cavaleiros.
— Quem vai lá?
— Passe seu caminho.
— Manuel!… Escute!
— Quem é?
— Não conhece mais o Chico Baeta? E os outros?
— Lá ficaram.
— Todos?
— Menos os dois que vê. Antes lá ficassem também.
— Até Verdum?
— Foi dos primeiros.
— A coisa vai mal. Agora mesmo chegou este camarada com uma notícia.
O Marques sabendo que Bento Gonçalves já estava em Camacã
para reunir-se a Neto, mandou uma partida…
— Contra o coronel?
— Sim, para prendê-lo ou matá-lo, que é o mais certo.
Manuel não quis ouvir o resto; assobiou para chamar a tropilha; e
saltando no lombo do primeiro cavalo que se aproximou partiu com o Chico e
os outros peões, para baterem campo até Camacã, e derrotarem
qualquer emboscada, ou morrerem defendendo Bento Gonçalves.
A notícia não era muito exata; o major Marques, o atual visconde
de Porto Alegre, comtemporizava diante das forças de Porciúncula,
esperando a junção com Silva Tavares, para atacar o chefe rebelde
e derrotá-lo, como sucedeu em princípio de outubro.
Quanto a Bento Gonçalves, Manuel o encontrou dias depois na margem
do Camacã além do passo do Mendonça. O coronel reunia
alguma força para marchar sobre Pelotas, quando soube que Neto havia
derrotado Silva Tavares no passo do Retiro.
Manuel, outra vez bombeiro, foi incumbido pelo coronel de espiar os movimentos
da força do major Marques, o qual podia ameaçar Piratinim, e
dirigir-se à capital desde que achasse o caminho desimpedido.
Eram oito horas do dia.
Oculto na coroa de mato, que cingia a crista de uma pequena coxilha a cerca
de duas léguas de Piratinim, o Canho espreitava a campanha, especialmente
um ponto distante, à margem do rio. Ali arranchara uma partida de exploradores
destacados da força do major Marques.
Manuel a observava desde a véspera e suspeitava que achando a vila
desprevenida, tentasse uma surpresa; por isso a precedia obra de uma légua,
pronto a dar aviso aos rebeldes, no caso de ataque.
Com os olhos fitos no alvo, e o corpo debruçado sobre o pescoço
de Juca, Manuel absorvia-se no pego de recordações dolorosas
em que se debatia sua alma desde a noite terrível do combate. Nas trevas
de seu espírito ressurgia, tocado pela doce luz da esperança,
o quadro que ele vira partindo: Catita a velar com terna solicitude pela Morena,
sua irmã na beleza e na dedicação. Súbito aqueles
dois vultos queridos sumiam-se num turbilhão espesso; e o painel suave
não era mais do que um charco de sangue coalhado de ossos.
A alma do gaúcho se embotara; nem para a vingança tinha mais
as energias de outrora. Vingar-se de quem, de um vil animal faminto, que saciara
a rafa? Nessa existência fulminada só palpitava ainda uma fibra:
a do dever, ou antes, da lealdade. Dedicara-se a uma causa: não podia
repudiá-la.
No meio destas cogitações, o pêlo do alazão que
Manuel cobrira de uma crosta de lama para disfarçá-lo, hispou-se
com um ligeiro arrepio, e a ponta das orelhas afiladas canutaram-se com excessiva
rijeza, o que denotava extrema atenção. Despertado por estes
sinais, e vendo o largo peito do corcel que sublevava-se num amplo resfôlego,
Manuel lançando rapidamente a mão às narinas do cavalo,
pôde recalcar a tempo o possante nitro que se desatava já.
Devia ser bem poderosa a causa, que assim perturbava o inteligente corcel,
fazendo-o esquecer sua prudência e calma inalterável em face
do inimigo. O gaúcho embebeu o olhar na pupila cintilante do cavalo
e pela primeira vez não o compreendeu. Entretanto nos ares passava
uma repercussão quase imperceptível, como o zumbir de uma vespa.
Os exploradores ao longe arreavam os animais para partir. Manuel voltando
às suas lucubrações, observava maquinalmente o que ali
passava, mas através da visão horrível que não
o abandonava; ele via tudo por entre aquele prisma negro.
Outra vez o quadro suave da despedida assomou a seus olhos; mas a pouco
e pouco as imagens se debuxaram com mais vigor; os vultos animavam-se e viviam.
A Morena se erguera espasmando os flancos; o talhe esbelto de Catita ondulava-lhe
sobre o dorso, ufano deste troféu. A moça e a baia não
formavam mais do que uma só existência e uma só pessoa.
Era o tipo da beleza esplêndida da campanha; a rainha dos pampas; a
gazela do deserto, a amante do centauro americano; a gaúcha enfim.
— Manuel!
Quando esta palavra suspirou entre as folhas, como um arpejo da brisa, Canho
levou rapidamente as mãos ao rosto para espancar a alucinação
dos sentidos.
Mas era realidade e não sonho a suave aparição. Catita
assomava entre a ramagem, por onde perpassou ligeiro o vulto da Morena. foram
seus lábios que murmuraram o nome dele; foram seus olhos que cintilaram
na espessura.
— Viva! balbuciou o gaúcho.
É ocasião de referir a cena que se passou depois do assalto
dos chimarrões.
Resignada a morrer, Catita ficara debruçada sobre o corpo da Morena.
um dos molossos primeiro arrojou-se, e abocanhando-lhe a saia arrancou uma
tira. Com o grito da moça, a égua despertou; e vibrando o casco,
esborrachou o focinho do cão.
O curativo da ferida e a nutrição que recebera tinham restituído
à baia algum vigor; e fazendo um esforço pôde erguer-se
sobre as três patas, e preparou-se para defender valentemente a vida
da amiga que velara sobre ela com tanta solicitude.
Nesse momento os latidos que a moça ouvira em distância aproximaram-se;
e um turbilhão passou ante seus olhos. Era uma rês com sua cria
assaltada por outra matilha de cães. o animal já ensangüentado,
às vezes voltava a face ao inimigo para defender o filho; mas acossado
fugia após o bezerro.
Os molossos que haviam atacado Catita seguiram os outros e desapareceram
com eles. Aproveitando o respiro, a moça rompeu com a égua por
dentro do mato, e afastou-se o mais que pôde daquele sítio funesto.
Morena a acompanhava a custo; de vez em quando cedia à fraqueza; mas
afinal chegaram à vila.
Entanto a rês exausta da fadiga, depois de muitas voltas pelo campo
fora, veio cair com o filho no mesmo lugar onde estivera a égua, pensando
achar ali um refúgio. A matilha famulenta devorou-os ainda vivos: o
banquete durara até a noite, poucas horas antes da chegada do Canho.
Já então Catita tinha abrigado no quintal da casa a baia,
que seus desvelos breve restabeleceram. Depois de alguns dias, a moça
pela manhã, quando ia ao banho, montava mesmo em pêlo na Morena,
que gineteava com ela pelo caminho, juntas brincavam nadando no rio, e folgavam
escaramuçando pelo campo.
Pareciam duas amigas de infância, a fazer travessuras de criança.
Nesse dia a baia despediu como uma flecha pelo campo afora; quando a moça
a quis reter, ela soltou um nitrido vibrante e redobrou a corrida. O coração
de Catita palpitou em doce alvoroço; pressentira a aproximação
de Manuel.
Não se enganara; ao cabo de meia hora, a baia resvalou sutilmente
pela coroa de mato, onde estava oculto o bombeiro: foi então que a
moça murmurou o nome do Canho, a quem seus olhos agora distinguiam
entre a folhagem.
Ei-los em face. Morena acariciou o senhor, e abraçou o filho com
o pescoço. Manuel olhava Catita; e a moça embebia-se nesse olhar.
Todo o tempo que a alma dele tinha deixado de beber essa imagem querida; todo
o tempo que a paixão dela se tinha guardado, como o perfume de uma
flor agreste, para influir-se no coração do amante; todo esse
longo passado, não vivido, resumiu-se naquele olhar.
Entretanto os exploradores, que tinham visto a baia passar ao longe e sumir-se
na coroa do mato, botaram os cavalos nessa direção, e suspeitando
alguma emboscada, deram uma descarga para desmascarar o inimigo.
As balas que sibilavam por cima de suas cabeças, não arrancaram
os dois amantes ao enlevo da paixão. Suas mãos se tocaram: Catita
reclinou a frente enrubescida; e Manuel colheu a flor dos seus lábios
mimosos que soluçaram num beijo.
O tropel que reboou perto arrancou o gaúcho àquele êxtase
inefável. Impelindo a Morena com um gesto, acompanhou de longe com
os olhos o vulto da moça que afastava-se rápida e sutil por
entre a folhagem; depois arremeteu contra o inimigo.
Quem já observou os ziguezagues de um raio que listra o horizonte,
pode fazer uma idéia do que foi a corrida do gaúcho pelo campo,
através dos muitos inimigos que o atacavam. Passou entre eles como
a centelha elétrica, deixando um rastro sinistro; e apagou-se de repente,
submergindo-se no seio da terra.
Metidos, ele e Juca, em tremedal profundo, zombaram durante muitas horas
das pesquisas dos exploradores.
LIVRO QUARTO
UPA!
I – A TIRANA
Que bela noite de luar jaspeia os cerros de Piratinim!
Há uma festa na vila. O regozijo das primeiras vitórias da revolução
associa-se ao prazer da novena. Lá no adro da matriz passeiam os bandos
de moças e rapazes por baixo das arcadas e palmeiras iluminadas com
lanternas de papel de várias cores.
Próximo ao coreto, no terreiro cingido por festões e colunas
enramadas com folhas de canela, dançavam a tirana que é o lundu
gaúcho. As violas trinavam no meio do coro formado pelas risadas, pelos
ditos joviais, e pelo rosetear das chilenas.
Catita, de pouco chegada, acompanhava com vivo interesse as evoluções
graciosas do par, que sapateava no meio do terreiro. Amiúde seu corpinho
gentil arfava com a súbita expansão do passarinho que abre as
asas para voar; o pezinho buliçoso e sôfrego calcava o chão
com ímpeto, como se o quisesse repelir.
Ao lado da moça estava um mancebo elegante vestido a primor: tinha
jaqueta curta de veludo azul com botões de prata; a calça larga
da mesma fazenda rematava em franja de renda branca, pouco abaixo do joelho;
o xale de touquim amarelo que servia de faixa, apertava à cintura um
punhal com cabo de nácar e uma pistola de coronha tauxiada a ouro.
Sobre as preguilhas de cambraia do peito da camisa, caíam as pontas
do lenço de garça escarlate, que ele trazia como gravata. As
botas acamurçadas de couro de terneiro, copavam-se de modo a mostrar
a perna bem torneada que debuxava a meia de seda cor de castanha.
Esse casquilho era o nosso conhecido D. Romero, cujo semblante gentil e
talhe garboso davam mais realce ao lindo traje. Atirando o pala e o bolívar
em cima de um banco, o mancebo dirigiu galanteios à Catita, convidando-a
à dança.
Enlevada com os elogios que fazia o mancebo à sua beleza, a moça
pagava-lhe em ternos sorrisos; mas recusava o convite, apesar da tentação
da viola. Afinal tanto insistiu o chileno que ela rendeu-se.
— Pois sim! murmurou a medo.
Catita não queria tomar parte da função por causa da
ausência de Manuel; porém não pôde mais resistir.
Há na natureza humana dessas excentricidades; o coração
que nas grandes lutas atinge ao heroísmo, é de uma tibieza incrível
nas pequenas contrariedades.
Essa moça, que já uma vez arrostara a morte por causa de Manuel;
que em um acesso de ciúme não recuara ante o maior sacrifício;
que, para receber o primeiro beijo de seu amado, atravessara sorrindo por
entre uma chuva de balas, seria capaz ainda em um assomo da paixão
de repetir qualquer daqueles atos de intrepidez e abnegação,
porém não tinha forças para cerrar os ouvidos aos dengues
de um casquilho, nem para esquivar-se ao delírio do bailado voluptuoso.
O que é a vaidade na mulher, senão essa mesma vertigem que
alucina o homem sob o nome de glória? Sede insaciável de luz,
embriaguez de admiração, na qual muitas vezes afogam-se a honra
e a virtude.
D. Romero saltara no terreiro, e bailava com a graça e a bizarria
andaluza. Ninguém sapateava com mais garridice, fazendo retinir as
rosetas das chilenas ao ritornelo cadente do fandango.
— Assim, roseteiro! diziam os rapazes com entusiasmo.
— Por vida que a Catita fica pelo beiço.
— Que esperança! E Canho?
— Leva carona!
O chileno tinha chegado a Piratinim quinze dias antes, e era novidade da terra.
À tarde, quando ele saía a gauchar no seu lindo cavalo castanho
não havia moça que não entreabrisse a rótula para
deitar-lhe olhadelas matadoras. D. Romero, embora apreciasse e retribuísse
essas demonstrações, assestara seus fogos sobre a filha do Lucas.
Depois de algumas voltas, o chileno atirou o desafio a Catita em um passo
novo e floreado que todos lhe invejaram.
— Como arrasta a asa o peralta!
— Mas não pilha!
— Pois eu aposto.
Catita havia recusado o desafio de todos os rapazes da roda; e sabia-se
o motivo, que era a ausência de Manuel. Agora estavam ansiosos por ver
o que ela fazia. Uns apostavam pelo Canho, outro por D. Romero.
— Então!
Essa exclamação partiu dos últimos, vendo o talhe feiticeiro
da menina colear-se, como o pescoço de um cisne.
Mas o frêmito de um corcel fendera os ares, atravessando por esse
rumor festivo como lâmina buída que traspassasse um coração
em júbilo. Um raio de lividez perpassou no semblante da moça,
que retraiu-se por um supremo esforço. Para disfarçar o movimento
e responder à atenção geral, travou da guitarra, que
a seu lado acabava de afinar um cantor de modinhas.
Depois de alguns prelúdios, soltou Catita esse descante:
Entre tantos que me querem
A nenhum posso querer:
Sorte que todos preferem
Só um soube merecer.
Ai! ai! não vejo meu bem.
Já tarda, por que não vem?
Repetia ela segunda vez o estribilho, quando abriu-se a roda, e um vulto,
arrebatando a viola das mãos do tocador, saltou da sela no terreiro.
Era Canho.
Não tarda, faceira, não
Tu chamaste; ele chegou;
Arreava o alazão
Quando a viola chiou.
Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
Teu bem, caramba, aqui está.
Manuel já não era o mesmo homem. O amor tinha domado o rei
do deserto, o centauro dos pampas: e o atirava de rojo aos pés de uma
mulher. Ele dançava com bastante graça, fazendo ruflar as chilenas;
e ninguém improvisava melhor no desafio. Entretanto quem o conhecesse
passava por uma estranha surpresa, vendo aquele caráter indômito
e rígido tão fora de sua natureza. O gavião real, arrulhando
como a juriti, não produziria igual impressão.
Por sua vez Catita lançou-se de uma pirueta no torvelinho, com a
veemência de um desejo por muito tempo sofreado. Não se imagina
a rapidez das evoluções, a flexibilidade dos requebros, e a
sutileza do passo, que meneavam esse corpinho gentil nas ondulações
voluptuosas da dança gaúcha.
Quem disse, que eu lhe chamei,
Enganou-o, meu senhor;
Se meu coração já dei,
Não sou cigana de amor.
Ai! ai! não vejo meu bem;
Já tarda, por que não vem?
O desafio continuou por algum tempo entre Manuel e Catita:
Ai, vida que me maltratas
Com este fino bailar;
Por que logo não me matas
Se tu me queres matar.
Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
Teu bem, menina, aqui está.
Já se queixa que o maltrato;
Quem foi que me fez assim?
Todo o homem que é ingrato
Não se chegue para mim.
Ai! ai! não vejo meu bem.
Se ele tarda, é que não vem!
Machuca este coração,
Machuca, bem machucado,
Que tu não bailas no chão,
Mas neste peito chorado.
Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
Teu bem, menina, aqui está.
Coração de meu benzinho,
Não havia machucá-lo;
Que lhe fiz aqui seu ninho
No meu peito pra guardá-lo.
Ai! ai! não vejo meu bem
Tarda tanto; é que não vem.
Requebra, vidinha, assim,
Requebra-me esse corpinho,
Não tenhas pena de mim,
Que estou feito um cavaquinho.
Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
Teu bem, menina, aqui está.
O cavaco é boa isca,
Chegando ao fogo se inflama;
Mas se meu peito faísca,
Não há quem lhe sopre a chama.
Ai! ai!, que perdi meu bem;
Não espero mais ninguém.
Tirana, meu bem, tirana,
Tirana de meu amor;
Por que assim você me engana
A fingir este rigor.
Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
Já me vou, não torno cá.
Quem me dera, ser tirana,
Pois havia ser querida;
Nem daria a quem me engana,
Tanto amor e minha vida!
Ai, não fuja, não, meu bem,
Que me mata esse desdém!
O último verso de Catita foi um rasgo admirável da tática
feminina.
Reparando que D. Romero de arrufado se afastava, a faceira improvisou aquele
estribilho, que respondia a Manuel, e ao mesmo tempo consolava o chileno,
a quem ela o enviou em um olhar provocador.
Quando Manuel cheio de prazer voltava à roda, depois da dança,
avistou pela primeira vez o chileno, que nesse momento falava a Catita.
O coração do gaúcho confrangeu-se. A vista de uma serpente,
elando-se ao corpo de sua amada e cingindo-lhe o colo, não produziria
nele a angústia que sentiu.
Alguém, batendo-lhe no ombro, suspendeu talvez seu primeiro ímpeto.
Deste pancas na tirana. Gostei!
Era o Chico Baeta que trazia de braço a Missé. A rapariga saudou
o gaúcho com um sorriso malicioso, lançando um olhar para o
lado de Catita.
Então? Vens tomar uma guampa?
— Obrigado, respondeu Canho afastando-se.
II – SEÑORITA
Terminara a festa.
Manuel, encostado à ombreira da porta de Fortunata, estava olhando
o azul do céu aljofrado pelo esplêndido luar.
A rótula abriu-se.
— Que me quer você, Manuel? disse uma voz suave.
— Dizer-lhe adeus, Catita. Vou a Buenos Aires! Já estou de
partida.
— Que viagem é essa agora? exclamou a moça com voz trêmula.
E para tão longe?
— O coronel mandou.
Catita sabia o poder que Bento Gonçalves exercia sobre o gaúcho.
— Quando se quer bem…
— Acabe, Catita.
— Não; para quê?
Manuel travou da mão da moça e falou-lhe com um tom rápido,
apontando para o canto da rua onde se percebiam vultos de animais.
Ali está Juca e Morena. Vem, deixemos o mundo; o pampa será
nossa pátria; ele é imenso; nós o encheremos com o nosso
amor. Lá seremos nós dois unicamente; ninguém poderá
separar-nos. Vem!
— Não, murmurou a menina assustada daquelas palavras e do tom
em que eram proferidas. Tenho minha mãe.
— Ah! Então bem vê que devo partir. O coronel conta comigo.
— Mas volte depressa, eu lhe peço!
— E é preciso pedir-me, Catita?
A conversa prolongou-se; os dois amantes retardavam a hora da partida repetindo
os protestos e as juras de seu afeto. Afinal chegou o instante da separação.
Adeus, Catita. Lembra-te que hoje só tenho a ti no mundo. Minha vida
é teu amor; tu podes matar-me com uma palavra, com um olhar, como aquele
que esta noite vi em teus olhos…
— Manuel!
— Aquele homem… disse Canho com a voz surda. Desde o primeiro instante
em que o avistei, tive um pressentimento de que hei de matá-lo; e nunca
ofendeu-me.
— Que me importa ele? Vai descansado, Manuel; tu levas minha alma,
porque eu só vivo para ti. Lembra-te que eu já te amava com
paixão, quando tu nem sequer me olhavas!
Um beijo selou estas últimas palavras; e Manuel arrancou-se dos lindos
braços que lhe cingiam ternamente as espáduas.
Quando ele afastava-se, viu à claridade da lua um vulto que o fitava
com um só olho, pois o outro, bem como grande parte do rosto, estava
coberto de parches. Essa pupila única chamejando no meio daquela máscara
tinha um aspecto sinistro.
Canho reconheceu Félix; e apoderou-se dele um sentimento de compaixão
por aquele infeliz. Podia ser morto o inimigo, depois que o vencera em combate;
mas desonrá-lo marcando-lhe a fronte com o estigma de seu ódio,
não devia.
Foi com um aperto de coração que Manuel deixou Piratinim.
Ainda o galope de seu cavalo reboava ao longe; Félix que o vira partir
apalpou na cinta o cabo de uma navalha que trazia, e sorrateiramente foi se
aproximando da rótula onde Catita se conservava absorta na saudade
de tão repentina separação.
Como voltara Félix a Piratinim, depois do que era passado?
O mesmo ódio que o levara ao campo dos legalistas, o trazia de novo
para os rebeldes. Desde que não se tratava de ensinar os castelhanos,
pouco se importava que vencessem os caramurus ou os farroupilhas; contanto
que ele se vingasse do homem a quem detestava.
Deixado por Canho no meio do campo, com um golpe que lhe fendera o rosto
transversalmente, vazando o olho esquerdo e rasgando os lábios, o rapaz
conseguira transportar-se a um rancho próximo, habitado por um peão
com a mulher e os filhos. Aí ficou alguns dias curando-se.
Félix sabia que tinha de ficar horrivelmente desfigurado com o gilvaz.
Nunca mais Catita o poderia amar, nem mesmo vê-lo sem repugnância.
Que valia a vida para ele? Estava pronto a dá-la toda pela vingança:
já não tinha neste mundo outra esperança, outro fim,
outro destino.
Qual seria porém essa vingança? Queria uma, estupenda, medonha,
feroz como nunca houvesse antes dele. Foi no delírio da febre de sangue,
quando o cérebro fervia-lhe como o chumbo na retorta, que se gerou
o horrendo aborto, jamais concebido pelo rancor, em uma imaginação
alucinada.
Manuel amava Catita, embora negasse. Não tinha ele, Félix,
em seu rosto a marca indelével desse amor cruel? Pois bem; quando o
namorado estivesse de todo rendido pela moça; quando pusesse sua ventura
em olhar para aquele rosto feiticeiro, então se levantaria a mão
implacável da vingança, e…
— Eu farei dela, o que ele fez de mim; uma caveira viva! murmurou
o enfermo estorcendo-se no delírio da febre. Catita ficará horrível.
E eu matarei assim de fome a alma do cão, como ele matou-me a esperança
de minha vida! Quem poderá amar a fúria? Só eu; como
só ela me poderá amar!
O sonho dessa monstruosa paixão entre dois monstros brilhou nas alucinações
do enfermo como o laivo sinistro de um relâmpago no meio do vermelho
clarão de um incêndio.
O sobrinho de Lucas tendo chegado à vila na véspera, inventou
facilmente um motivo para explicar sua presença no acampamento de Silva
Tavares. Encontrando-se com alguns bombeiros inimigos, os acompanhara para
obter esclarecimentos, que deviam servir de muito a Bento Gonçalves
e Neto. Depois de alguns dias, desconfiados, os companheiros quiseram matá-lo,
e ele batendo-se com valentia conseguira escapar-se.
— Mas ficaste ferido? perguntou o furriel.
— E logo no rosto! disse Catita com sincera compaixão.
— Isto foi depois! respondeu o rapaz secamente.
— Conte! insistiu a moça.
Félix cravou nela a solitária pupila, com uma expressão
cruel.
— Eu lhe contarei um dia!
Missé que estava presente surpreendeu esse olhar torvo, e sentiu a
repercussão do que passava na alma do peão.
Desde a noite do pacau, a existência livre e descuidada da rapariga
sofrera uma alteração profunda. Não fora porém
o fato de ter o Chico feito dela uma parada de jogo, que produzira o abalo;
longe de a ofender, aquela ação a enobrecera; sentia orgulho
em sacrificar-se por seu amante, e prazer vendo a confiança absoluta
com que seu homem dispunha dela, como de uma coisa inteiramente sua.
O que a humilhou cruelmente foi o desdém de Canho; depois de a ter
ganho em uma partida tão disputada, deixou-a como uma coisa à-toa,
que não valesse a pena abaixar-se para apanhar do chão. De que
lhe servia ser bonita e sedutora, se um homem se julgava com o direito de
escarnecê-la?
Este despeito seria passageiro talvez se não sobreviesse uma circunstância
para avivá-lo a cada hora. Missé observou nas maneiras do Chico
sensível mudança; as ardentes efusões e as repetidas
carícias de outrora iam amortecendo. A causa desse resfriamento, a
rapariga o pressentira logo: era o desdém de Canho, que influía
indiretamente sobre o peão.
Quem não conhece os efeitos desse contágio moral, sobretudo
quando uma organização elevada domina as individualidades inferiores?
Chico, depois da indiferença do gaúcho, começou a achar
sua amantes menos formosa, e a subtrair-se à fascinação
que a rapariga tinha exercido sobre ele. Cada manifestação desse
arrefecimento era um espinho que traspassava o coração de Missé.
Desde então gerou-se na alma da rapariga um desejo veemente e irresistível
de ser querida pelo Canho, ao menos um dia, uma hora, quanto bastasse para
aplacar sua vaidade ofendida. O amor de Manuel por Catita causava-lhe ciúme
implacável.
Nestas condições a Missé devia compreender o olhar
de Félix; havia uma afinidade entre as paixões que tumultuavam
no seio de ambos.
Tal era a disposição de ânimo em que Félix espreitava
da rua deserta o vulto da filha do Lucas, reclinada na janela, com a fronte
pensativa apoiada na rótula. Um raio da lua, passando pela aberta do
telhado fronteiro, esbateu contra a parede; e o lindo semblante da menina
desenhou-se naquele limbo de luz com enlevadora suavidade.
O peão que cerrava com a mão convulsa o cabo da navalha, preparando
o salto, ficou imóvel e extático ante aquela doce aparição
que emergira da sombra. A beleza da menina ainda exercia sobre ele uma poderosa
fascinação: sua coragem vacilou; a mão tremeu horrorizada.
Então apagando-se a lembrança do que o trouxera ali, o rapaz
embebeu-se na contemplação daquela imagem querida.
Quanto tempo esteve assim não o soube. De repente foi arrebatado
àquele sonho inefável por uma dor cruciante. Catita gazeou na
ponta dos lábios o estribilho da cantiga do gaúcho, que Manuel
costumava repetir ao som da viola.
Toda aquela admiração, que sentia Félix um momento
antes, se transformou em raiva. Cerrando outra vez o cabo da navalha com terrível
frenesi, arrojou-se ébrio de cólera e cego de furor.
Mas a imagem de Catita desaparecera. Tão fora de si estava o rapaz
que não percebeu a causa. Um vulto se aproximara da rótula interceptando-lhe
a vista, e proferira em voz baixa uma palavra castelhana:
— Señorita!
A moça assustada bateu precipitadamente a rótula: e D. Romero
atordoado achou-se em frente de Félix que brandia a navalha. Quando
o chileno sacava rapidamente da cintura o cuchillo para defender-se, o peão
que tivera tempo de compreender a situação, recuou:
— Desculpe; não era o senhor que eu procurava.
E sumiu-se.
III – NOIVA
Um mês já tinha decorrido depois que Manuel partira de Piratinim
para cumprir a missão que lhe dera Bento Gonçalves.
Era meio-dia. Francisca e a filha jantavam, quando ouviram o tinir de chilenas;
o gaúcho entrava. Jacintinha saltou-lhe ao pescoço dando gritos
de prazer; a mãe ergueu-se, mas não podendo correr por causa
da emoção, de longe mesmo abençoava o filho enquanto
não o podia abraçar.
— Por cá não houve novidade? perguntou Manuel sentando-se.
— Só muitas saudades suas, respondeu Jacintinha.
— E cuidados, acrescentou a velha.
— Então lembraram-se de mim?
— Pois isso se pergunta Manuel? disse a moça com doce exprobração.
Está vendo que ingrato mãezinha?
— O compadre já venceu?
— Ainda não, mas não tarda.
— Então ainda voltas?
— Parto esta noite. Venho de Buenos Aires, onde meu padrinho mandou-me
levar uma carta a Rosas. Aproveitei para lhe dar um abraço, não
posso demorar-me.
Jacintinha, que tinha corrido ao terreiro para festejar e abraçar
Morena, Juca e os outros amigos, entrou pálida, com os olhos úmidos:
— E o Morzelo, Manuel? disse a moça.
O gaúcho ergueu os olhos ao céu.
— Coitado!
Houve um instante de silêncio.
Durante o jantar a conversação rolou já sobre os sucessos
da revolução, já sobre os acidentes da casa durante a
ausência de Manuel. Terminada a refeição veio o mate,
e o gaúcho, preparando um cigarro de palha, foi pitar no alpendre,
onde o acompanharam a mãe e a irmã.
Antes de se aproximarem de Manuel, as duas mulheres trocaram entre si em
voz baixa algumas palavras que acenderam nas mimosas faces de Jacintinha vivos
rubores.
— Agora, quando as coisas se arranjarem, a mãe há de
ir a Porto Alegre.
— Eu, meu filho? Daqui para a cova de teu pai. Não presto mais
para nada.
— Ora deixe-se disso. E quem há de criar os seus netos… quando
a Jacintinha casar?
— Sim, é tempo de pensar nisso; já está uma moça.
— E bonita, que faz gosto!
— Muito obrigada. Foi você que me pegou essa moléstia.
Não deixaram as duas mulheres de sentir no trato e na expressão
de Manuel grande mudança; mas entregue ao prazer de o ver, não
tinham tempo de reparar no tom expansivo e meigo com que falava o gaúcho;
tão diverso do gênio seco e ríspido de outrora.
Continuando a conversa por algum tempo, observou Manuel que Jacintinha não
cessava de fazer à mãe sinais misteriosos.
— Jacintinha tem algum segredo!
A velha sorriu e a moça fez-se de lacre.
— Fala, menina!
— Não! Fale você, mãezita!
— Pois sim.
— O que é?
— Espere! exclamou Jacintinha fugindo confusa e envergonhada.
Ficando só, Francisca referiu a Manuel que um moço castelhano
de passagem por Ponche-Verde, gostara de Jacintinha e a pedira em casamento;
porém ela respondera que nada decidia senão pela vontade de
seu filho. Então ficou assentado esperarem pela volta dele, Canho.
— Jacintinha está caída pelo diacho do rapaz e ele merece
porque é muito galante e tem alguma coisa de seu.
— Que faz ele?
— É mascate.
— Castelhano… mascate… Como se chama? perguntou o gaúcho
com ansiedade.
— D. Romero Garcia.
— Ele!… exclamou o gaúcho erguendo-se arrebatadamente.
Por algum tempo Manuel percorreu o alpendre com passos agitados, até
que dominado seu abalo, aproximou-se da mãe, que o observava surpresa,
sem ânimo de fazer-lhe uma pergunta.
— Com esse homem é impossível! Jacintinha seria desgraçada.
Ela que se esqueça desse sujeito; não faltam noivos galantes,
sobretudo quando a noiva é de fazer inveja.
— Porém, Manuel…
— Não se fale mais disto.
Sabendo da resolução de Manuel, Jacintinha chorou amargamente;
mas uma só queixa não proferiram seus lábios contra o
irmão, que ela amava.
O Canho selava o Ruão, preparando-se para a partida, quando chegou-se
a irmã que vinha despedir-se da Morena e dos outros animais. Havia
em seus olhos os traços do pranto recente e na fronte uma sombra de
mágoa.
— Você está triste, Jacintinha? perguntou o Canho, lembrando-se
de Catita.
— Não, balbuciou a menina, debulhando-se outra vez em lágrimas.
Manuel amava, e sua alma passava então por aquela fase de bem-aventurança,
que anuncia o despertar do coração e é por assim dizer
a aurora suave do amor. Como podia ele ser de todo indiferente às mágoas
de uma alma enamorada?
Esquecendo o mascate, Manuel pediu à irmã que lhe contasse como
nascera sua afeição. Se fosse feliz, Jacintinha não teria
forças para satisfazer a curiosidade de Manuel, mas era desgraçada.
Referindo o romance de seu amor, a ingênua menina mal pensava que expunha
o plano de sedução empregado pelo chileno, e do qual felizmente
a salvara sua austera virtude.
A Canho, porém, não escaparam as intenções de
D. Romero; e foi estremecendo de horror que ele ouviu estas palavras, com
as quais a irmão concluiu:
“Na véspera da partida, ele ceou aqui; eu pedi-lhe muito que
ficasse até você chegar; mas recusou, dizendo que só uma
coisa o faria não sair de madrugada como esperava. Não sei o
que era. Quando estava para se despedir, disse-me que havia de passar a noite
no rancho com os olhos fitos na janela de meu quarto e por isso me pedia que
a deixasse aberta.
Depois que ele se foi, eu me encostei na janela, para que me visse; mas
comecei a sentir tanta fraqueza que não me podia ter; cuidei que ia
desmaiar. De repente, não sei como, ele estava junto de mim, abraçando-me;
eu queria fugir e chamar por mamãe, mas não tinha forças.
Então me deu um beijo, que me fez desmaiar de todo, soltando um gemido.
Mãezita correu para ver o que era e não viu mais ninguém.
Ela diz que eu sonhei; mas eu ainda sinto aqui o beijo, que me queimou.”
O pudor, esse anjo da guarda da menina casta, salvara Jacintinha, arrancando-lhe
aquele gemido profundo que assustou a mãe. Canho compreendeu perfeitamente
o perigo por que passara a irmã, e por vezes seus olhos dardejaram.
De repente sentiu congelar-se o coração, lembrando-se que deixara
Romero em Piratinim, perto de Catita.
Jacintinha, muda e palpitante, esperava com os olhos fitos na fisionomia
do gaúcho, onde perpassavam os vislumbres das paixões que se
agitavam nessa alma vigorosa.
— Não fiques triste, Jacintinha. Se esse homem for digno de
ti, casará contigo. E te prometo que antes de um mês voltarei
com ele. Estás contente?
— Mas o que acha você nele?
— Eu não o conheço; vou tirar informações.
Manuel dizia a verdade. Ele nada sabia desse indivíduo a quem encontrara
por momentos quatro vezes apenas em sua vida, e de quem nunca se lembrara
de indagar. E para quê? Antipatizara com aquela figura desde o primeiro
momento em que a vira; e até onde ia essa ojeriza, ele o disse a Catita.
Uma idéia, porém, lhe acudira, que mudou o curso de seus pensamentos.
Se o mascate não fosse um bandido, por que não o obrigaria a
cumprir a promessa feita a Jacintinha, casando-o com ela? Assim ao menos esse
ente inútil, senão prejudicial, serviria para dar alguma felicidade
à mulher que o amava sinceramente.
Uma hora depois Canho montava a cavalo e partia à desfilada.
Ao despedir-se, já na sela, disse à Francisca, sorrindo com
intenção:
— Daqui a um mês cá estou de volta!
Jacintinha corou.
IV – NA MISSA
Era domingo. O sino da matriz de Piratinim tocara a primeira vez chamando
para a missa.
Já pronta, com seu vestido escarlate e mantilha preta, Catita esperava
impaciente que a pachorrenta Maria dos Prazeres se acabasse de enfeitar. A
menina ia da porta do quarto de sua mãe à porta da rua, donde
lançava um olhar para o largo.
Passou a Missé.
— Não vem?
— Mamãe não acaba de se aprontar.
— Ele já deve estar lá! disse a rapariga com um riso
malicioso.
Catita corando fugiu para dentro e achou a mãe ainda de anágua,
mas já com o enorme pente de tartaruga pregado no cocó, à
semelhança do tejadilho de uma antiga traquitanda. A moça voltou
desesperada; lágrimas de despeito lhe saltaram dos lindos olhos.
— Não tarde muito, olhe lá! tornou a Missé com
o mesmo riso brejeiro. Tantas que morrem por ele!…
— Eu não sei o que tem mamãe hoje! Nem de propósito!
— Quem sabe se já percebeu?
A menina deu um muxoxo.
Finalmente Maria dos Prazeres concluiu a obra monumental de seu penteado,
e partiu para a missa com a filha.
A igreja estava cheia quando chegaram. Atravessando por meio do povo, Catita
passou roçando com D. Romero. O chileno aproveitou o momento para apertar
a mãozinha mimosa que refugava os folhos da saia, e murmurar uma palavra.
— À meia-noite na rótula?… Sim?…
Catita esquivou-se trêmula e foi sentar-se distante. Nesse momento teve
um remorso; e pediu perdão a Deus, invocando a lembrança de
Manuel.
Debalde procurou ela refugiar-se na oração e nas reminiscências
de seu amor. Sentia fascinação irresistível que a atraía.
A vaidade de cativar o bonito chileno, que tantas outras lhe disputavam, o
prazer de triunfar de suas rivais, sopitava o remorso que a pungia.
Se ainda amasse Manuel com os extremos de outrora, estaria preservada de
semelhante fraqueza. Mas aquela paixão, como todas as explosões
violentas, foi súbita. A exuberância de sua alma bastava para
nutrir durante a vida inteira um afeto ardente e profundo; porém ela
a despendera durante alguns dias nas expansões do amor insano que rojara
aos pés do gaúcho. Seu coração devia ficar fatigado,
senão exausto; a vaidade embebeu-se nessa esponja seca.
Catita sofrera uma desilusão. O homem por quem ela se estremecia
era o gaúcho terrível; o caráter indômito que afrontava
o céu e desdenhava do perigo; o filho do pampa, que avassalava o deserto
e calcava o mundo com a pata de seu corcel.
Esse herói de seus belos sonhos, esse rei de sua alma, ela o admirava
com um entusiasmo ardente. Para merecer-lhe um olhar, o que não fez?
Para ser por ele amada, não hesitou em sacrificar-lhe em tudo. Ela,
tão altiva e sempre adorada, suportou sem queixar-se o desprezo; e
sujeitou-se às maiores humilhações para merecer desse
homem um sobejo que fosse de afeição.
Manuel, que uma repugnância invencível afastava dessa moça,
apesar da fascinação de seu olhar, Manuel afinal a amou; e então,
rompido o óbice que por tanto tempo contivera seu afeto, este se despenhou,
como uma catarata, arrojado e impetuoso. O coração, durante
tantos anos sopitado, sentiu ao despertar uma sede insaciável de amor.
Nos dias que se seguiram ao encontro na coroa de mato, e ao primeiro beijo
trocado entre os sibilos das balas, Canho não se fartava de olhar e
admirar Catita, de beber-lhe o sorriso dos lábios, a graça e
perfume de sua formosura. Abandonando a luta da revolução recente,
recolheu-se a Piratinim para estar perto da mulher querida e não perder
um instante de adoração.
Catita viu o rei de seu coração, o senhor de sua existência,
transformar-se de repente em um servo humilde e cativo, submisso a seus menores
desejos. Libado o primeiro prazer desse triunfo, a moça foi insensivelmente
subtraindo-se à poderosa influência que sobre ela exercia o gaúcho.
Manuel tinha o garbo natural do talhe e das maneiras; agora, que amava,
sua fisionomia se embebera de uma expressão meiga e terna. Para quem
não o conhecesse antes, era um taful quando vestia o seu chiripá
de seda escarlate e sua jaqueta de merinó verde; ou quando dançava
a tirana, requebrando o corpo e arrastando a asa.
Mas para quem o vira outrora, aquela excessiva ternura embotava seu enérgico
semblante; o sorriso namorado parecia hóspede nos lábios de
ordinário cerrados pela contensão de uma vontade firme e rígida.
Juca, o selvagem corcel, o livre bagual, filho dos páramos, já
não reconhecia naquele mancebo guapo o seu amigo e irmão, o
intrépido ginete, como ele fero e indômito.
A alma que uma vez subtrai-se ao domínio de outra, reage com um impulso
irresistível. Na há pior déspota do que seja o cativo
submisso, quando se revolta.
O amor de Catita, de escravo que era, tornou-se verdadeiro tirano. Submeter
essa alma que a tinha dominado outrora aos mínimos caprichos; fazer
do gaúcho terrível, que os mais bravos temiam, um brinco de
moça faceira, e folgar com as paixões violentas daquele coração
como uma criança imprudente com as lavas de um vulcão, foram
os deleites dessa afeição.
Depois que Manuel partira, sentiu a Catita um vácuo em sua existência;
os galanteios de D. Romero a divertiram a princípio, depois lisonjearam
sua vaidade de moça bonita. A Missé desenvolveu então
uma arte admirável para perder sua rival; não lhe escapava ocasião
de excitar o orgulho da amiga e de facilitar ao chileno os meios de aproximar-se
dela.
D. Romero conseguiu por duas ou três vezes falar à Catita na
rótula; mas de longe em longe. A moça lembrava-se às
vezes dos protestos que fizera a Manuel, e mostrava-se então esquiva
e receosa.
Quando o chileno na igreja lhe pedira em voz baixa uma entrevista alta noite,
a moça estremecendo procurou expelir de seu coração a
imagem daquele homem; mas não o conseguiu. Momentos depois seus olhos
o procuravam.
D. Romero com um gesto desdenhoso parecia tê-la esquecido; e sorria
a alguém do lado oposto. Catita reparou: era uma rival. Seu olhar súplice
pediu perdão.
Acabada a missa, quando ela passava corando perto do chileno, este murmurou
de novo, mas com um tom breve e imperativo:
— Espera?
— Sim, balbuciou a moça.
Nesse momento ouviu um riso sardônico; voltando-se, avistou Félix
que fitava nela a pupila sinistra, isolada naquele rosto sempre coberto da
máscara hedionda. Teria ele escutado?
Catita afastou-se com uma aperto de coração.
Sua suspeita era real. Félix ouvira as palavras trocadas, e adivinhara
o resto. Com o faro da vingança ele pressentira o namoro do chileno
desde a noite da partida de Manuel; e por isso abandonara, ao menos por enquanto,
seu primeiro plano. Ferir o coração de seu inimigo, fazendo
da amante um horror, era cruel; mas torturá-lo com a perfídia
da mulher amada, seria atroz.
V – CONFEITOS
À meia-noite, D. Romero embuçado em um poncho escuro, passeava
defronte da casa de Fortunata.
Mais longe, na esquina da matriz, um vulto cosido com a parede e oculto
pelo ângulo da rua, espreitava desde muito tempo os movimentos do namorado.
Eis que o primeiro galo soltou além nalgum quintal remoto o grito
de alerta, a que os outros responderam sucessivamente; a rótula abriu-se
timidamente, e fechou-se logo. Aproximou-se D. Romero, que sentiu através
do gradil um hálito ardente e perfumado.
— Querida! murmurou o taful.
— O que é?
— Abra um pouquito.
— Não; tenho medo.
— Medo de quê, flor? De ser amada, como jamais foi outra mulher
neste mundo? Ou medo de matar-me de felicidade, com a luz desses olhos formosos?
A rótula entreabriu-se de leve, mas quanto bastou para que o namorado
passasse a mão, a fim de impedir que ela se fechasse de novo. A conversa
continuou pela fresta.
— Eu trouxe um regalito para você, querida. Adivinhe o que é?
— Não sei!
— Pois olhe!
Alargou-se a fresta; e na sombra desenhou-se o perfil do rosto encantador
da moça, que reclinava a fronte para olhar o objeto na mão do
chileno.
— São confeitos mui lindos, disse ele. Quero adoçar
este coração ingrato, que me faz tanto penar. Prove para ver
como são gostosos!
D. Romero tirou então do cartucho, enfeitado com laço de fita
e perfumado de baunilha, um confeito que retirou rapidamente quando a moça
quis tocá-lo com o dedo.
— Há de ser na boca!
— Ora!
— Que mal faz?
— Tenho vergonha.
— Tome; eu lhe peço.
Depois de alguma resistência, Catita consentiu em colher sutilmente
com a ponta dos lábios o confeito que lhe oferecia Romero, o qual repetiu
o galanteio por duas ou três vezes.
Um suspiro sublevou o seio da moça:
— Ai!… Estou tão cansada! Não sei de quê!…
— De ser cruel? perguntou o taful sorrindo.
— Que noite tão linda!… Como é bom gozar desta
frescura.
Os lábios de Catita debulhavam as sílabas dessas palavras,
com uma voz frouxa e lenta, enquanto os olhos se engolfavam no azul diáfano
com um sentimento de delícia inefável. Depois, cedendo à
languidez que a invadia, a fronte reclinou-se apoiando na ombreira da janela.
— Que preguiçosa! disse D. Romero gracejando.
Entretanto o vulto da esquina, cosido à parede, assistia de longe
a esta cena em extraordinária agitação. Às vezes
arrojava-se para diante com os dentes rangidos, levando à cinta a mão
que apertava o cabo da faca. Nessas ocasiões porém algum motivo
detinha; agarrava-se ao ângulo da parede, procurando um apoio para resistir
ao ímpeto, e para dominar o impulso da carreira, que malgrado seu erguia-lhe
os pés do solo precipitando-o. Por fim deixou-se cair de joelhos; e
ficou ali estrebuchando como um homem na agonia.
Sem dúvida um sentimento mais poderoso sobrepujava o ciúme
que no primeiro momento impelia o desconhecido contra o rival feliz. Mas a
luta se renovava a cada instante; e ninguém podia prever o resultado
final desse choque de duas paixões infrenes.
De repente um bramido rompeu do peito cavernoso do desconhecido, que se
arremessou com um salto de tigre.
Vira a rótula escancarada e pressentiu o que ia acontecer. Quando
chegou ao lugar, a janela estava completamente fechada; e o chileno havia
desaparecido. Onde podia ele estar, senão dentro da casa?
O desconhecido quis atirar-se contra a janela, para despedaçá-la;
mas foi subitamente paralisado pela mesma força que de outras vezes
o sofreara. Dos beiços crespos de cólera escaparam-lhe, como
uma golfada de fel, estas palavras envoltas em um riso de fera.
— Se não for este maricas, há de ser o outro, o cão!
Dobrando-se com um movimento de desespero, para arredar-se da janela, deitou
a correr como um possesso pela rua fora.
Nessa noite, Lucas Fernandes estava de guarda à entrada da vila,
em uma casa que servia de quartel. O furriel promovido a alferes fora ultimamente
ferido em um combate; e por isso resignava-se a ficar em Piratinim, quando
se combatia em Pelotas, Camacã e São José do Norte.
Tinha o miliciano se deitado depois que fizera o seu quarto a pitar e a
palestrar com os camaradas; roncava, como um porco, atirado sobre o couro
que lhe servia de cama. Eis que chega um homem a correr.
— Que é isso, Félix! disse um dos gaúchos que
estavam de vigia. Há novidade?
— Quero falar ao Sr. Lucas.
— Sobre quê?
— O negócio é só com ele.
— Desembucha duma vez.
— Onde está o homem?
— Olha! Se fores capaz, acorda-o.
— É uma pedra no fundo dum poço.
Foram precisos com efeito os maiores esforços para despertar o furriel.
— Que diabo me querem vocês?
Félix murmurou algumas palavras rápidas ao ouvido do miliciano,
que ainda tonto de sono, não percebeu-lhes o sentido.
— Hein!…
O rapaz repetiu; desta vez o pai de Catita, compreendendo, soltou um berro
formidável.
— Hei de espatifá-lo!
E partiu a correr, brandindo furiosamente o chanfalho, e acutilando o vento
com desespero. Félix o seguia de perto, conduzindo o troço dos
soldados e gaúchos que estavam acordados e tinham ouvido o grito do
miliciano.
Apesar da diligência empregada por Félix para chamar o Lucas,
eram decorridas perto de duas horas depois que se fechara a rótula.
Oculto na esquina desde o princípio da noite, o rapaz vira sair o furriel,
mas ignorava o lugar para onde se dirigia; por isso antes de chegar ao quartel,
havia batido em diversas casas, onde costumava ele passar as noites jogando
e prosando.
A porta de entrada estava interiormente fechada. O pai, ferido na sua honra,
não esperou que a viessem abrir; ajudado por Félix arrombou-a,
enquanto os gaúchos punham cerco na casa pela frente e pelo quintal.
Ao estrépito da porta espedaçada, as duas matronas soltavam
gritos estridentes, que de envolta com os latidos do cão, os miados
do gato e o cacarejar das galinhas formavam um concerto horríssono.
A habitação estava completamente no escuro; foi preciso que
Félix, tirando fogo do isqueiro, acendesse um grane molho de palha
arrancado a um rancho próximo.
Ao clarão desse facho, Lucas penetrou no interior; antes porém
de entrar, voltou-se para os gaúchos que cercavam a casa e lhes disse
com uma voz que a raiva estrangulava:
— Não o deixem fugir; mas não o matem. Quero trincá-lo
vivo.
O ímpeto do furriel esbarrou no limiar do quarto da filha. Catita
em pé, com os cabelos desgrenhados, as vestes decompostas e os braços
abertos enchia o vão da porta, impedindo a passagem. O talhe curvado
para diante e a fronte reclinada, exprimiam submissão à cólera
paterna, ou intenção de afrontar o perigo.
— Sai! gritou o pai.
— Não.
Lucas arrojou-se levando por diante a moça que foi bater contra a
parede do aposento, quase desmaiada. Em um momento foram corridos todos os
recantos do quarto, mas inutilmente; ninguém encontraram.
— Viste com teus olhos? perguntou Lucas a Félix, sentindo renascer
uma vaga esperança.
— Olhe! disse o rapaz apontando.
No poial da janela via-se o pala de D. Romero e o seu chapéu à
bolívar. Esse vestígio de sua desonra, levantou no coração
do pai ultrajado uma cólera tão violenta, que de um ímpeto
arremessou a filha ao chão para esmagá-la debaixo dos pés.
Maria dos Prazeres que chegava, e já advertida do que ocorrera, acudiu
envolvendo a filha com os braços.
— Misericórdia! meu Deus!
O grito de aflição da mãe aplacou no coração
do pai a sanha feroz que dele se apoderara. Erguendo os olhos ao céu
para pedir perdão da morte que estivera a consumar, Lucas estremeceu.
Entre dois caibros apareciam quebradas as ripas: as telhas que deviam cobri-las
escorregando tinham deixado vão suficiente para a passagem de um homem
de talhe delgado. Não havia dúvida; o chileno se escapara por
ali e talvez não andasse longe.
Com um gesto, o furriel mostrou a aberta a Félix e aos gaúchos
que assistiam à cena. De chofre esvaziou-se o aposento; todos haviam
compreendido instantaneamente, e lançaram-se no encalço do fugitivo.
Enquanto os outros iam pelo chão bater os arredores, Félix
cravando a faca na parede, e apoiando o pé na janela, alcançou
um caibro e ganhou o telhado da mesma forma por que o fizera meia hora antes
o chileno.
Ouviram-se então brados de furor e estrépito de armas, do
lado da matriz. Lucas correu naquela direção seguido pelos peões:
e dois tiros soaram repercutindo ao longe pelas cavernas dos cerros.
VI – VOLTA
O sol brilhava em meio de um céu do mais lindo azul. A aragem branda,
esgarçando as nuvens que apareciam no horizonte, franjava de branco
arminho esse manto aveludado.
Catita, encostada à ombreira da janela, cismava, contemplando os
esplendores do dia.
O semblante sempre risonho e petulante da graciosa menina, estava amortecido
pela mágoa. Fatigados e baços, os olhos apenas se inflamavam
por momentos de efêmeros lampejos; e esse não eram mais as cintilações
da estrela, porém os surdos vislumbres de um incêndio sopito.
Nos lábios se desvanecera o delicado matiz; a vespa babujara essa rosa
florida, pungindo-lhe o seio.
Um noite, algumas horas, bastaram para produzir nessa vida uma revolução
profunda. A menina gentil e descuidosa já não existia; na expressão
da fisionomia, como na atitude de seu corpo, ressumbrava a preocupação
d’alma ao transpor o limiar desse caos que chamam o mundo.
Na folhagem de uma árvore fronteira à janela dois gaturamos,
cuja penugem brilhava ao reflexo do sol como pingentes de esmeralda, se namoravam,
adejando de ramo em ramo, e chilrando o seu canto mavioso; os olhos de Catita
fitaram-se um instante naquela cena e se anuviaram. Duas lágrimas ardentes
lhe desfiaram pelas faces.
Como se aquele pranto a humilhasse, a moça enxugou rapidamente os
olhos, e erigiu a fronte arrostando o pesar que um momento a oprimira.
— Sou feliz!… Ele me ama!…
O lábio, murmurando estas palavras, esboçara um sorriso que
se desfolhou como a flor pálida do outono, ao sopro ardente do suão.
Insensivelmente o espírito da moça, desprendendo-se deste
incidente, voltou à preocupação constante, que desde
a véspera o absorvia. Seu pensamento remontava ao dia da partida de
Manuel, e acompanhava o curso de sua vida durante essa última fase.
Chegava a um ponto em que um abismo se abria a seus pés, e ela se precipitara
nele sorrindo, enlevada em um sonho voluptuoso.
Era no momento em que sentindo-se cansada recostara a fronte lânguida
na ombreira da janela. D. Romero estava ali a galantear; ela já não
escutava suas palavras, mas sentia-se embeber da voz e dos olhares do cavaleiro.
Os dedos mimosos, que a princípio retinham a rótula com tamanho
cuidado, afrouxaram deixando-se colher pela mão impaciente do chileno.
Ela, Catita, pensou em esquivar-se, mas não pôde. Por quê?
Não sabia se eram as forças que lhe faltavam, ou a delícia
do êxtase que a engolfava.
Depois Romero debruçou-se na janela, cingiu-lhe o talhe, conchegando-a
ao seio, e pousou um beijo ardente em seus lábios ávidos. Foi
então que a rótula fechou-se sem que ela se apercebesse, e o
sonho inefável continuou até o instante em que a despertou um
estrépito horrível.
— É seu pai! disse Romero.
— Que quer ele?
— Matar-me!
Essa palavra a arrancou ao doce enlevo. Só então sentiu que
estava na profundeza do abismo, e não no berço aéreo
das nuvens, embalada pelo sopro acariciador das brisas celestes.
Como se dera esse transe em sua vida? Eis o que ela não compreendia,
o que desde a véspera perscrutava sem cessar nos refolhos da consciência,
e não achara ainda em sua alma a explicação, ou pelo
menos os indícios da força poderosa que a precipitara.
Nessa cogitação, sobressaltou-se a moça; acudia-lhe
uma circunstância mínima, que até então escapara.
Fora depois de ter provado os confeitos que ela caiu no suave delíquio,
desamparada inteiramente de sua vontade.
Tinha Romero usado de algum filtro para rendê-la ao seu amor?
Não se enganava Catita nesta suposição. De fato o chileno,
resolvido a rematar naquela noite a aventura que já o detivera demais
em Piratinim, e não querendo contar só com seu galanteio, recorrera
a um meio eficaz e por diversas vezes empregado com feliz êxito.
Em seu giro constante, o mascate encontrara outrora nos pampas um velho
guaicuru que tinha por costume embriagar-se com o suco de uma planta indígena.
Bastava-lhe sorver dessa resina a porção contida na unha para
cair em um torpor, que logo se transformava em rapto celeste.
D. Romero a troco de ferragens e munições comprara do índio
velho uma porção da resina, e tendo experimentado por si mesmo
o efeito, compreendeu que lhe podia prestar, em certas ocasiões, grande
serviço, vencendo em minutos resistências que durariam longos
dias.
Fora um grumo dessa resina deitado sutilmente na cuia de mate, que ia-lhe
entregando Jacintinha, se o pudor indignado não reagisse contra a ação
do narcótico, arrancando o gemido doloroso que repercutiu no coração
materno.
Os confeitos perfumados que ele dera a Catita estavam impregnados da mesma
essência inebriante; mas a filha do Lucas, seduzida pela vaidade, não
teve para protegê-la, nem o véu casto do pudor, nem a ara do
amor materno.
Entretanto, quando lhe acudia a explicação tão sofregamente
procurada; quando a intervenção dessa causa estranha lhe fazia
compreender o que antes parecia impossível, Catita, por uma contradição
inexplicável, repelia essa idéia e exclamava consigo:
— Não! Não foi isso!…
Em seu orgulho não se podia considerar uma vítima. Fora ela
mesma, que decidira de sua sorte; e empenhara tudo ao homem a quem amava.
Eis que soa ao longe o relincho de um cavalo. Catita estremeceu. Aquela
nota selvagem, afinada na grande harpa do deserto, ao sibilo do pampeiro,
e ao crépito do raio, só a tinha o Juca, o brioso alazão.
Canho estava pois de volta.
Um calafrio percorreu o corpo da moça, que sublevou-se a meio para
fugir espavorida, mas caiu pesadamente como um fardo inerte, sobre o poial
da janela.
Era com efeito Manuel que chegava. Atravessando rapidamente a vila, apeou-se
à porta da Fortunata. A casa parecia deserta; Lucas ainda não
se recolhera da perseguição ao chileno.
Percorrendo os aposentos, chegou o gaúcho ao quarto onde estava Catita,
ainda prostrada pela forte comoção. Ouvindo o tinir das chilenas
de Canho, a moça fez um esforço inaudito e levantou a cabeça,
mas sem erguer os olhos.
Manuel parara a alguns passos de distância, partido entre duas emoções:
o soçobro de ver a amante, e a surpresa dolorosa dessa recepção
glacial.
— Catita! balbuciou com a voz transida.
A moça cobriu as faces com as mãos, para defendê-las
contra o olhar de Manuel, enquanto seu peito martirizado estalava em um soluço
convulso.
— Ah!
Não foi uma exclamação; mas um rugido bravio que rompeu
do peito do gaúcho, por entre os lábios cobertos de uma espuma
sangrenta.
Ou porque a mesma veemência da aflição brandisse as
fibras de sua alma, ou porque a vergonha daquela humilhação
reagisse em seu coração contra o remorso, Catita por súbita
transformação ergueu a fronte selada com uma calma impassível.
Sua voz era firme, embora áspera como o ranger do vidro:
— Jurei que lhe pertenceria, Manuel: acreditava que lhe queria bem.
Enganei-me; o homem que eu devia amar, era outro. Me perdoe; esqueça-se
de mim que não merecia ser sua mulher.
Manuel ouvia o borborinho destas palavras; e sentia que lhe caíam,
a uma e uma, dentro d’alma, como o granizo gelado que durante o inverno
peneira sobre a campanha, e mata a semente no seio da terra.
À porta assomou a figura de Lucas Fernandes. Avistando-se, os dois
corações, feridos pelo mesmo golpe, se lançaram um ao
outro, como para se ampararem mutuamente contra o infortúnio:
— Desonrado, Manuel! exclamou o pai, apertando em seus braços
o gaúcho.
Este não proferiu palavra; mas nas profundezas d’alma repercutiu
o grito que ele conseguira sufocar nos lábios; e no semblante derramou-se
todo o fel, que lhe extravasava do coração.
Lucas viu essa expressão de uma dor imensa: e arrancando a faca da
cinta do Canho arrojou-se para a filha. No primeiro assomo Catita empalideceu,
mas recobrando-se apresentou ao pai o seio para que ele o ferisse.
Durante esta cena rápida e muda, Manuel não se movera. Ele
não se julgava com direito de deter a mão do pai que vingava
sua honra; e no fundo d’alma talvez desejasse antes ver morta a mulher
que amara, do que transformada em um ente desprezível.
Uma vertigem passou pelos olhos de Lucas, e a faca lhe resvalou da mão
inerte. Canho o arrastou para fora.
Passada aquela grande comoção, o pai contou ao amante, no
meio de blaterações de furor e soluços de cólera,
a cena que na véspera ocorrera e as informações que lhe
dera Félix, a respeito dos acontecimentos; bem como a diligência
inútil que tinham empregado para apanhar o chileno. Manuel escutava
em silêncio. Seus lábios pareciam selados como um túmulo.
A serenidade das grandes cóleras da natureza enquanto se não
desencadeiam, derramava-se em sua fisionomia, que parecia embutida em máscara
de aço.
Um piquete tinha parado na rua; a alta estatura de Bento Gonçalves
assomou na porta.
— Já de volta, Manuel? disse ele dirigindo-se ao gaúcho.
Este permaneceu imóvel sem dar o menor sinal de ter ouvido o coronel
e se apercebido de sua chegada.
Bento Gonçalves surpreso daquela atonia voltou-se para as outras
pessoas presentes interrogando-as com o olhar. Lucas abaixou a cabeça.
Foi a Fortunata que referiu o que havia ocorrido.
O coronel aproximou-se de Canho e apertou-o nos braços com efusão,
procurando em sua alma uma palavra de consolo para tão grande dor.
— Vem; teremos combate esta noite!
Despertado por aquela voz generosa, Manuel compreendeu o pensamento do guerreiro;
mas um triste sorriso fugiu-lhe dos lábios. Tomando a mão do
coronel a impôs sobre o coração, como se quisesse exprimir
com aquele movimento que o tinha já morto e extinto. Depois, entregando
a carta de Rosas a Bento Gonçalves, apartou-se lentamente.
VII – O PINHEIRO
A essa hora corria D. Romero à rédea solta pela campanha.
Evadindo-se de casa da Fortunata pelo telhado, o chileno ganhou rapidamente
um mata-pasto que havia por detrás da matriz, e no qual, por precaução,
ocultara ele seu cavalo, deitando-lhe uma focinheira de couro para impedir
que rinchasse.
O mascate era um aventureiro prudente e sagaz. Embora a empresa não
parecesse oferecer o menor risco, ele sabia por longa experiência que
de repente surgem complicações imprevistas. Por isso era seu
costume trazer sempre as armas na cinta e o cavalo ao alcance da mão.
Foi sua salvação. Se não tivesse tão pronta
a fuga, infalivelmente cairia nas mãos dos peões que o perseguiam,
dirigidos e instigados por Lucas e Félix. Assim mesmo, antes que pudesse
apanhar o cavalo foi atacado por três que o seguiam mais de perto. Conhecendo
que sua salvação dependia de um ato de desespero, o chileno
investiu com fúria contra os agressores, desfechando-lhes repetidos
golpes de espada, e dois tiros de pistola que os feriram e atordoaram.
Aproveitando-se desse momento de vacilação pôde ele
saltar no cavalo e desaparecer. Quando Lucas chegou ao lugar, nem mais se
ouvia o estrupido do galope.
Vendo-se fora da vila, antes que o furriel montasse a cavalo para persegui-lo,
Romero, que até então não tivera outro pensamento senão
fugir, tratou de orientar-se no meio da campanha e seguiu no rumo do oriente.
O chileno tinha-se dirigido para aquele lado da província com intenção
de percorrer as vilas e povoados do sertão até Cruz Alta. Da&iiacute;
se ainda fosse tempo de ir à feira de Sorocaba, se passaria a Curitiba
com os marchantes e invernistas; senão entraria na Confederação
por São Borja.
Como a ninguém comunicara sua intenção, pensou que
podia seguir com segurança a rota já traçada. Esperava
alcançar no dia seguinte a Encruzilhada, donde mandaria buscar sua
bagagem, que ficara na locanda.
O sol transmontava.
D. Romero, tendo corrido durante o resto da noite e boa parte da manhã,
descansara algumas horas em um rancho, e continuava agora a jornada mais tranqüilo.
Montava outro animal; o castanho galopava ao lado.
Embalava-se o chileno nas recordações de sua aventura, quando
o animal deu sinal de inquietação, copando as orelhas para trás
e insuflando as narinas. O cavaleiro voltou-se, e em toda a extensão
que abrangia seu olhar do algo da coxilha, nada avistou.
Mas o inquieto animal resfolgava esforçando por tomar o freio. Romero
pensou que fosse a vizinhança de alguma onça das matas de Canguçu;
pouco disposto a perder o tempo com essa caça, soltou as rédeas
e deixou o cavalo disparar. Às vezes parecia-lhe ouvir longe um surdo
estrépito, como o do mar batendo na praia do Albardão; mas esse
rumor passava com a lufada.
Entretanto o cavalo redobrava de velocidade, e parecia sentir a aproximação
do perigo.
Afinal convenceu-se o chileno que não se enganava; e voltando-se
descobriu longe um ponto negro, como a asa de uma águia que rasasse
pela terra. Era a vingança que voava sobre ele; tal foi o pressentimento
que cerrou o coração do fugitivo.
O vulto crescia de momento a momento. Romero passou-se para o castanho,
seu destemido parelheiro, e debruçado sobre o pescoço do animal
confiou-lhe a sua salvação. O brioso cavalo compreendeu o que
o senhor esperava dele, e arrojou-se a toda carreira.
Mas não era um homem: era um turbilhão que o perseguia. Observando
uma última vez, viu o fugitivo destacar-se perfeitamente do alto da
colina, no azul do céu, o vulto sinistro do Canho. Juca, sentindo que
fora reconhecido, e já não tinha necessidade de emudecer, soltou
o nitrido.
A vasta solidão, como uma lâmina imensa de bronze, percutida
pelo raio, vibrou aquele grito estridente, cujos ecos, reboando no espaço,
se propagaram ao longe pelo ermo.
O chileno sentiu gelar-se o coração; entretanto esse homem
era bravo e muitas vezes na sua vida afrontara o perigo com o sorriso nos
lábios. Mas o gaúcho lhe inspirava misterioso terror; desde
o primeiro dia em que o viu, sentira essa obsessão inexplicável.
Certo de que sua hora aproximava-se, o fugitivo contava os instantes pelo
tropel do alazão que se aproximava com rapidez espantosa. Já
ouvia-lhe o ornejo, terrível como o surdo rugir do tigre; e armava
as pistolas para fazer face ao inimigo.
Nisto assomou-lhe pela frente, à distância de duzentas braças,
um troço de cavaleiros.
Nas situações desesperadas, uma intervenção
estranha desperta sempre a esperança. O chileno lembrou-se que podia
ser uma partida de legalistas; e nesse caso estaria salvo.
A revolução já havia triunfado em toda a província.
O marechal Barreto e o tenente-coronel Silva Tavares se tinham refugiado no
Estado Oriental com os destroços das forças do governo.
Mas a presença do novo presidente Araújo Ribeiro reanimara
a resistência. Alguns chefes legalistas, como o coronel Albano, o major
Marques e outros, se empenhavam em levantar gente. Já o capitão
Procópio, à frente de 500 homens, batera os rebeldes e os expulsara
do distrito do Rio Grande até São Gonçalo.
A estrela do chileno não o tinha abandonado. Era justamente uma partida
que ia reunir-se ao coronel Albano na Encruzilhada. Bastou ao fugitivo uma
palavra para ser bem recebido.
— Os rebeldes me perseguem!
— Aonde? perguntaram vinte vozes.
Romero voltou-se. O Canho tinha desaparecido. Ainda os legalistas bateram
os arredores por algum tempo; mas aproximando-se a noite, dirigiram-se à
povoação.
Na Encruzilhada, Romero, que levava a bolsa bem fornida, ajustou seis capangas
destemidos para o acompanharem; despachando um portador para avisar os seus
camaradas do lugar onde o deviam encontrar, partiu para Rio Pardo.
Estava ele há quatro dias nessa vila, esperando pela bagagem. Arranchara-se
na casa de um lojista, seu conhecido de outras vezes que por ali passara.
Ali se julgava seguro, mas por precaução não saía
à rua senão guardado pelos camaradas.
Ao lado morava uma antiga apaixonada em quem ele procurava soprar a chama
extinta. Lembrada da facilidade com que o taful se desprendera de seus laços,
a moça andava arisca; mas afinal, depois de muito rogada, prometeu
esperar o namorado na janela, ao toque de recolher.
Era noite há muito, e noite escura. D. Romero deixou que seus inseparáveis
capangas se acomodassem; e ganhando a sala conchegou-se à janela do
canto, que ficava encostada à casa vizinha. Os dois sobrados eram da
mesma altura, e ambos tinham janelas de balcão, de modo que os amantes
debruçados podiam quase tocar-se.
Estava a rua completamente deserta. Uma sombra apareceu na janela próxima.
— Amor, sua mãe já dorme?
— Para quê?
— Para conversarmos mais perto?
— Cuida que eu já esqueci?
— Ingrata! Assim me paga as saudades que curti ausente dela!
— Eu não acredito!
— Quem me trouxe a Rio Pardo? Não foram esses lindos olhos que
de longe me arrastam, e de perto me repelem?
— Ai!
Soltando um gritozinho de susto, a moça retraíra-se para dentro.
— Que é? perguntou o chileno.
— Não ouviu, ali defronte?
Em face havia o muro em ruínas de um quintal abandonado. Malvas silvestres
e arbustos cobertos de abóboras formavam uma vegetação
luxuriosa que estofava as brechas do valo junto do qual se elevava um pinheiro.
— Foi o vento, disse o chileno.
— Vi uma pessoa em cima do muro.
— Ora! Havia de ser o pinheiro! replicou o chileno rindo-se.
— Tive um susto!… suspirou a moça esquivando-se.
Romero aproveitou o ensejo para escalar a grade, a fim de passar ao balcão
vizinho.
— Espere!
A moça foi até ao meio da sala para assegurar-se de que todos
dormiam, mas não teve tempo. Um grito cortado atravessara o espaço.
Arrastando-se à janela, trêmula e fora de si, apenas vira um
vulto que perpassou no ar e sumiu-se. Era porventura o arremesso de algum
abutre, que soltara o pio lúgubre, caindo sobre a presa?
O chileno tinha desaparecido.
Todos os esforços dos capangas, acordados em sobressalto, foram inúteis
para descobri-lo.
VIII – A FACA
Embora seja domingo, as ruas de Piratinim estão desertas. Os habitantes
recolheram-se fugindo aos raios abrasadores do sol.
Faz um calor de sufocar.
O céu tem o lívido azul de uma lâmina de aço.
Algumas nuvens brancas e densas que surgem no horizonte parecem estanhadas
na atmosfera pesada e baça.
A trechos passa uma lufada ardente, como o bafo de uma fornalha. Lânguidas
e flácidas pendem as folhas das árvores, crestadas por esse
respiro do deserto. Os pássaros emudecem; o gado bufa, e toda a natureza
anseia como opressa por uma angústia inexprimível.
Os peões, vaqueanos da campanha, pressentem a aproximação
do pampeiro.
A essa hora, Lucas, presa de viva inquietação, percorria de
uma extremidade à outra o corredor da casa. Quando passava pelo quarto
da filha, insensivelmente abafava os passos, e escutava na porta, com a sofreguidão
de perceber qualquer rumor. Chegado à entrada da varanda, onde terminava
o corredor, parava um instante e deitava um olhar oblíquo à
Maria dos Prazeres, que estava no canto habitual da janela, a cochichar com
a cunhada.
Depois de uma pausa, em que se manifestava bem claramente a oscilação
de seu espírito entres os sentimentos encontrados que o agitavam, continuava
o interrompido passeio.
O furriel tinha envelhecido anos nesses poucos dias, decorridos depois da
fuga do chileno. Essa tenacidade que nenhum revés abatera nunca, antes
carecia da luta e do perigo para não consumir-se, não pôde
resistir ao golpe que sofrera com a desgraça da filha.
Fora ferido na honra, que é o cerne da raça gaúcha,
altiva e cavalheiresca. O extermínio da família inteira não
o esmagaria, como a vergonha atirada à sua face e na pessoa da filha
a quem ele adorava.
O corpo direito e inflexível do furriel vergou ao peso daquela desgraça;
os pesares sulcaram seu rosto abrindo rugas profundas; até a voz estrepitosa
que no formidável diapasão parecia condensar todas as energias
dessa organização, mostrava ter-se espedaçado no grito
da dor, e se tornara rouca e surda.
Desde a noite fatal, Lucas evitava de encontrar-se com a filha, a qual por
seu lado, sentindo a família retrair-se, se refugiara nessa esquivança,
para entregar-se completamente a seu infortúnio.
Naquele dia, porém, o amor do pai, até então subjugado
pelo pundonor do soldado, reagiu. O furriel pensou que a filha também
sofria, e teve pena dela. Ao mesmo tempo uma idéia sinistra relanceou
em seu espírito.
Lembrou-se que no momento de sua alucinação, quando se arrojara
sobre Catita para traspassar-lhe o coração, a faca do Canho,
caindo no chão, se escondera sob a fímbria do vestido, e ali
ficara. Através do horror que ainda lhe inspirava aquele ímpeto
homicida, ele via o olhar morno da moça fito na ponta do ferro; e o
sorriso de escárnio com que ela parecia despedir-se da existência.
Muitos dias tinham passado depois daquele acontecimento; e era natural que
o tempo houvesse apagado no espírito da moça qualquer pensamento
funesto. Todavia o furriel estava inquieto e a custo continha sua impaciência.
Não se animando a bater à porta do quarto e chamar Catita,
adiantava-se disposto a informar-se com Maria dos Prazeres do que fazia a
filha. Mas o pudor de seu profundo ressentimento o tolhia, receoso de mostrar-se
fraco diante da mulher e da irmã.
Afinal, não pôde resistir, e avançou até ao meio
da varanda.
— Onde está ela? disse com voz soturna.
— Lá no quarto, respondeu a mulher.
— Fazendo o quê?
— Chorando. Que mais? tornou a Maria dos Prazeres levantando os ombros.
— E… e a faca?
— Que faca, Sr. Lucas?
O furriel pôs os olhos na mulher, surpreso de que ela não o compreendesse,
e afastou-se logo sem responder.
— Sabe, comadre; o homem não anda bom, não! Depois dessa
desgraça, parece que lhe virou o miolo.
— Não é para menos! acrescentou a Fortunata.
O pressentimento de Lucas não o enganava; o perigo que pressagiava
seu coração de pai era real.
Catita, sentada no seu quarto, contemplava justamente a faca do Canho, esquecida
a um canto desde o dia em que seu pai a ameaçara. Naquela manhã,
no meio das tristes cogitações que a assaltavam de novo, seu
olhar percebera na sombra a cintilação do aço.
Foi o luzir de uma esperança.
De que lhe servia a ela a vida senão de sofrimento e vergonha? O
assomo de orgulho que no primeiro instante a excitara a ponto de considerar
a sua desgraça como uma glorificação do amor, abateu-se.
O homem por quem se perdera, aparecia-lhe agora no seu verdadeiro aspecto,
como um sedutor vulgar.
Ao mesmo tempo, pensava que sua falta a tornara um suplício constante,
senão um opróbrio, para aqueles que mais a queriam. Viva, eles
a desprezavam; morta, haviam de chorá-la e, quem sabe, talvez lhe perdoassem.
Sua consciência como um juiz severo a condenou, e ela aceitou consolada
essa expiação, que seria o termo de seu martírio. Resolvida
a realizar imediatamente seu pensamento, ajoelhou-se diante de um registro
de Nossa Senhora. Sua oração foi breve; ela sentia a impaciência
do desespero.
Apanhando a faca, apalpou o lindo seio para dirigir o golpe pela palpitação,
e atravessar logo o coração. Apoiou o ferro na ombreira da janela
e se atirou sobre, para cravar nele o peito.
Mas estacou trêmula.
Ouvira o relincho argentino, que outrora lhe anunciava a chegada de Manuel.
Absorta na emoção daquele acontecimento, e numa vaga expectação,
ficou a moça por muito tempo imóvel, na mesma posição
em que a surpreendera o incidente.
Um sorriso de júbilo despontara em seu lindo semblante fanado pelas
lágrimas. Por que voltava Manuel, a quem não esperava mais ver?
Ela sabia que o gaúcho só tinha em Piratinim uma coisa que o
prendesse: era seu amor.
Como o frouxo vislumbre de uma alvorada que se desprende a custo das sombras
da noite e de repente some-se no seio da procela, assim desvaneceu-se o sorriso
nos lábios da moça.
— Não! balbuciou. Ele não pode mais amar-me!…
Nem eu a ele…
De novo seus olhos se embeberam no espelho da lâmina de aço,
e sua alma refugiou-se na idéia de morrer.
— Se ele quisesse matar-me!
Nesse momento bateram com força à porta. A moça conheceu
a voz de seu pai, que dizia:
— Abre, Catita!
Depois de um instante de hesitação em que a moça perscrutou
debalde a razão desse chamado do pai, e da sofreguidão alegre
que denunciava sua voz, ela ocultou a faca embaixo do travesseiro da cama
e abriu a porta.
Lucas entrou de um ímpeto, e travando das mãos da filha, disse-lhe
açodado:
— Ele está aí! Veio para se casar contigo! Assim é
como se nada tivesse acontecido!… Não vês como eu choro
de alegria?… Há de ser hoje mesmo, agora, neste instante. Já
se mandou avisar o padre. Vai te vestir. Não te demores.
Catita ouvia o pai de surpresa em surpresa. As palavras de Lucas a arrebatavam
a tal ponto à realidade de sua triste posição, que ela
não se animava a interrompê-lo para pedir-lhe uma explicação,
temendo que a ilusão se desvanecesse, e sua alma fosse de novo precipitada
no desespero.
Foi quando seu pai terminou, que lhe escapou dos lábios essa exclamação:
— Então ele ainda me quer?
— Pois duvidas?
— Depois do que houve?
— Por isso mesmo!… Anda, veste-te.
Desta vez a moça pensou enlouquecer. Lucas saiu deixando-a naquele
pasmo de uma angústia cruel.
IX – O LAÇO
Afastando-se de Bento Gonçalves no dia de sua volta a Piratinim e
depois da cena cruel que se passou no quarto de Catita, entre o pai e a filha,
Manuel se dirigira à locanda onde tinha arranchado o chileno.
Examinando o chão em torno da casa, notou o rasto de um animal que
ele reconheceu imediatamente, apesar de o ter visto poucas vezes. Uma coisa
que o peão observa logo no cavalo é o andar; de duas vezes que
encontrara o chileno a gauchar no castanho, lançou Manuel um rápido
olhar ao animal. Não foi preciso mais.
O rasto seguia ao longo da rua; apesar de apagado pelo casco de outros animais
e pelas pisadas da gente a pé, o gaúcho foi acompanhando aqueles
vestígios, até o campo que servia de rocio à vila. Aí
a pista, perfeitamente distinta e fazendo uma volta, dirigia-se ao mata-pasto
por detrás da matriz, donde se afastava pela campanha fora.
Quando Canho se curvava para melhor examinar o rasto, Juca e a Morena o
acompanhavam reparando nos seus movimentos e farejando o chão. Ao sair
da vila, os dois animais conheciam a pista tão bem como o gaúcho,
e podiam segui-la a galope.
Romero levava seis horas de avanço; porém Manuel tinha os
dois melhores parelheiros de toda a campanha e a sua atividade infatigável.
Ao cair da tarde ele avistou longe no horizonte o fugitivo; e com pouco
mais o teria alcançado, se não fosse a intervenção
da peonada do coronel Albano. Tendo avistado a partida antes do chileno e
suspeitando que fosse de legalistas, Manuel previu o que ia acontecer.
Encoberto pelo esteiro de mato que bordava as margens de um arroio, o gaúcho
contornou a lomba de uma grande coxilha, ganhando a frente aos legalistas.
Assim quando estes batiam a campanha na direção de Piratinim
à caça do farroupilha, este, oculto em um pequeno cerro do lado
da Encruzilhada, observava seus movimentos.
Desde então Manuel não perdeu mais de vista a Romero. Com
a paciência de um caçador, espreitando a ocasião segura
para desfechar o bote, o seguiu até Rio Pardo.
Defronte da casa do lojista, onde se aboletara o chileno, havia aquele pardieiro
coberto de uma vegetação espessa e frondosa, que pelo fundo
se unia com o mato da entrada da vila. Ali oculto, Manuel passava o tempo
a espiar os movimentos de Romero.
O mascate pouco saía, e sempre acompanhado pelos seus capangas. Em
casa era raro chegar à janela, isso mesmo com muita precaução.
Embora se julgasse escapo da perseguição, tinha a prudência
de não se expor.
Canho contava que essa incessante cautela se desvaneceria com o tempo, sobretudo
em alma tão fútil e inconstante como a de Romero. Não
se enganou: na quinta noite um recado da vizinha fez-lhe esquecer tudo o mais.
Quando Manuel, de pé sobre o muro, alcançava o tronco do pinheiro
a fim de subir à copa, a moça o avistara, mas de relance apenas;
tanto que Romero volvendo os olhos não viu mais do que o esguio tronco
de árvore.
Oculto entre a rama dos galhos, esperou até o momento em que o chileno
subiu à sacada para alcançar a janela vizinha. Então
o braço projetou-se; o laço arremessado com força apanhara
o namorado pela cintura, semelhante à garra fatal e invisível
de um grifo que o arrebatasse pelos ares.
Ao mesmo tempo que atirara o laço, Manuel se arrojara ao chão;
de modo que a trança de couro correndo na forqueta de um galho, à
guisa de cabo, suspendeu Romero sobre o pardieiro, sem que o corpo arrastasse
pela rua.
Atirar-se ao mascate, amordaçá-lo com o poncho, ligar-lhe
pés e mãos, atá-lo ao costado do Ruão, e partir
levando consigo o prisioneiro, não gastou ao Canho o momento que durou
a surpresa do chileno. Quando este deu acordo de si, galopava pela campanha
em posição horizontal.
Às oito horas da manhã parou Canho para dar repouso aos animais
e almoçar.
O gaúcho encostou Romero, sempre atado de pés e mãos,
ao tronco do ombu, que oferecia aos viajantes uma sombra refrigerante. Correndo
o campo laçou uma vitela, e sem dar-se ao trabalho de matá-la,
tirou-lhe da ilharga um pedaço de lombo. Instante depois a carne assava
no tampo de couro, que o calor do fogo, encolhera, tornando-o covo como uma
panela.
Manuel soltou os braços do chileno, atirou-lhe com sua ração
de carne, e tratou de tomar a sua parte da refeição.
Desde que tinha caído nas mãos do gaúcho, Romero ainda
não lhe ouvira uma só palavra. Manuel o tratava como ao novilho
fujão que se laça no campo e se leva à soga para o curral.
Não se dignava nem mesmo ameaçá-lo com um gesto. E para
quê? Aquele torvo semblante era a fisionomia de uma tempestade; sentia-se
a faísca do raio no olhar lívido que rutilava da pupila negra.
Quando Romero deu acordo de si, admirou-se de estar vivo ainda. Que pretendia
dele então o Canho? Queria entregá-lo a Lucas ou matá-lo
aos olhos de Catita?
Enquanto comiam os dois viajantes, um homem arrastando-se pelo chão
por entre a macega, se aproximava sorrateiramente do ombu. Pelo emplastro
de pano que trazia no rosto era fácil conhecer Félix.
Chegando a duas braças do tronco, parou indeciso. Ali estavam dois
homens a quem ele votava ódio mortal: um lhe tinha mutilado o rosto,
o outro lhe mutilara a alma; aquele o fizera hediondo, este o transformara
em fera; ele tinha sede de sangue, mas como o tigre, de sangue quente, bebido
no coração donde borbota.
Félix andara até aquele dia à pista do chileno, e voltava
desesperado quando de longe avistou Juca e logo pressentiu que Manuel andava
por perto. Descobrindo os dois viajantes, não se imagina a raiva que
sentiu por ver o gaúcho senhor da vingança, tão cobiçada
por ele.
Afinal decidiu-se o rapaz; apontando o trabuco para Manuel, armou a caçoleta;
mas o rangir do ferro ainda soava, quando o gaúcho, a quem nada escapara,
caiu sobre ele e arrancou-lhe a arma da mão.
Félix enfurecido precipitou-se sobre o chileno para cravar-lhe a
faca no coração; mas achou-se em face de Manuel que ao cabo
de breve luta o desarmou.
— Mata-me de uma vez, demônio! gritou o rapaz em um acesso de
raiva; ou antes acaba logo de matar-me, pois já começaste. Olha,
o que fizeste de mim.
Arrancando o pacho que lhe cobria o rosto, o desgraçado mostrou uma
coisa horrível; um rosto fendido a meio, que parecia rir satanicamente
com os lábios disformes daquela boca artificial.
Manuel sentiu um movimento de compaixão, que logo sopitou. Impassível
e taciturno, passou do rosto mutilado do rapaz ao semblante de Romero um olhar
frio que transia. O chileno estremeceu de horror ante aquela ameaça.
Entretanto o gaúcho atou-lhe de novo os braços e pondo-o no
costado do Ruão partiu, apesar da sanha de Félix que, vendo
sua vingança próxima a escapar-lhe, arrojou-se ainda uma vez
contra o gaúcho, procurando ao menos insultá-lo para que ele
o matasse. Baldado esforço; porque o braço ágil e robusto
de seu adversário o conservava em distância.
Horas depois paravam dois cavaleiros à casa de Fortunata. Lucas chegando
à porta reconheceu com surpresa Manuel e Romero a quem o gaúcho
soltara os laços na entrada da vila.
A um volver d’olhos do Canho, o mascate apeou-se e entrou na varanda.
Lucas com a vista pasma, não sabia que pensar, quando o gaúcho
aproximando-se murmurou uma palavra, a primeira que pronunciavam seus lábios
depois que partira:
— A noiva.
Como se um raio de luz rompesse a crosta dessa alma, o pai compreendeu tudo
e correu ao quarto da filha.
X – A BODA
Há almas de esponja, que o menor revés espreme; mas também
o menor bochecho d’água basta para inchá-las.
Romero tinha uma dessas almas. Aniquilado pela ameaça que pesava
sobre ele, apenas compreendeu o desígnio de Manuel pôs-se ao
nível da posição criada pelos acontecimentos. Aceitou
portanto o papel de noivo, com boa graça e rosto alegre.
Logo ocorreu-lhe que não estava em traje de cerimônia; e comunicou
este pensamento a Maria dos Prazeres, a qual achou-lhe toda a razão,
pois não concebia que um homem se casasse com roupa do diário
e amarrotada.
Sabendo que sua bagagem ainda estava em Piratinim, dirigiu-se Romero à
locanda, acompanhado por Manuel; enquanto Lucas ia apressar o padre coadjutor,
e convidar a melhor gente da vila. A notícia do repentino casamento
não produziu grande surpresa; todos achavam natural a reparação;
e estimavam concorrer para a alegria da boda, que não era somente a
festa da ventura, mas sobretudo a festa da honra.
Trajado a primor, D. Romero tornou à casa de Fortunata, que já
estava cheia de moças e rapazes ansiosos de verem a noiva.
Esta não se fez esperar.
Catita vinha resplandecente de beleza. Coroava-lhe a fronte a auréola
de júbilo celeste que devia cingir as virgens mártires expirando
em um êxtase de bem-aventurança. Havia em seu rosto a expressão
vaga e indefinível que resta, quando a alma se desprende da terra para
remontar ao céu.
Depois que Lucas a deixara debatendo-se em uma incerteza cruel, a moça
julgou compreender o sentido das últimas palavras de seu pai. Manuel
queria sacrificar-se para salvá-la: ela não devia aceitar o
sacrifício; mas não tinha ânimo de recusá-lo. Esse
amor ardente e generoso era uma bênção que a purificava.
— Ser dele e morrer! balbuciou.
E vestiu-se com suas roupas mais garridas.
Assomando à porta com a fronte baixa, não viu nenhuma das
pessoas ali reunidas na sala. Só passado o primeiro vexame, coando
a medo o olhar entre os cílios, procurou Manuel; mas quem encontrou
foi D. Romero que lhe ofereceu a mão sorrindo com faceirice e requebrando
o talho gentil, realçado pelo rico traje.
— Señorita! dizia ele fazendo uma mesura.
A moça teve uma vertigem. Sua alma arrebatada violentamente ao corpo
hirto submergiu-se em um abismo de vergonha e dor. Desde então ela
não teve mais consciência de si. O chileno tomou-lhe a mão
fria como gelo e a conduziu sem a mínima resistência.
Durante essa cena rápida, Manuel de pé, a um canto do aposento,
parecia de todo estranho ao que passava. O olhar frio e baço, fito
no chileno, era o único vínculo que prendia essa consciência
à vida externa.
Mudo como uma sombra, sinistro como uma aparição, fazia lembrar
o espírito satânico das lendas da média idade, esperando
o momento de arrebatar ao inferno a alma do precito.
O vestido de Catita roçou-o e ele não a viu. Uma nuvem densa
ocultava-lhe tudo quanto não era aquele homem, cuja passagem deixara
em sua vida o rastro da fatalidade.
O acompanhamento seguiu para a matriz que regurgitava de gente. Já
o sacristão acendera os círios do primeiro altar da epístola,
e o coadjutor, de roquete, descia os degraus da capela-mor.
A cerimônia foi breve. No momento de pronunciar as palavras que deviam
ligar para sempre sua existência à dessa moça a quem seduzira,
o chileno hesitou, volvendo automaticamente a vista em torno, como se procurasse
um ponto de apoio a seu espírito perplexo; mas encontrou o olhar de
Manuel, e curvou a cabeça.
Momentos depois os noivos entraram na casa, que uma festa improvisada havia
transformado durante a cerimônia, adornando-a com ramos de flores, palmas
de coqueiros e lanternas de copos pintados.
O sol acabava de esconder-se no horizonte; flocos de vapores cor de fogo
se erguiam lentamente no ar e condensavam-se na atmosfera. Os arrebóis
do ocaso tinham listras rúbidas que pareciam laivos de sangue. A brisa
do crepúsculo, de ordinário fresca e embalsamada com o hálito
das flores, vinha impregnada de súlfur e exalava um sopro morno.
Fazendo honra ao banquete, os convidados não se apercebiam desses
presságios do próximo temporal; nem ouviam os mugidos dolentes
do gado carpindo o morrer do dia.
A função durou até meia-noite e foi muito divertida.
D. Romero nadava em prazer; a única sombra que podia anuiar o seu horizonte,
era a torva fisionomia de Canho, e esta havia desaparecido desde o começo
da festa.
Já todos os convidados se despediram, repetindo ainda uma vez os
parabéns, e fazendo votos pela felicidade dos noivos. A casa repousa
em silêncio, apenas interrompido pelo eco da tirana, que ainda ressoa
ao longe de algum peão saudoso da festa.
Catita, sentada no seu quarto com as mãos cruzadas sobre os joelhos,
o busto vergado como o cálix de uma flor cheia de orvalhos, e os olhos
cravados no chão, perdia-se em um pélago de dor. A mísera
não sabia qual era maior vergonha e suplício para ela: se a
falta passada, se a reparação tardia. Antes tinha ela o direito
de desprezar o homem que abusara de sua inocência; agora esse homem
era seu esposo; ela o recebera de Deus, aos pés do altar, como o companheiro
de sua existência.
Entretanto Romero entregue a pensamentos muito diversos, contemplava sua
noiva com volúpia. Nunca a vira tão bela, como naquela atitude
de mórbida languidez, que punha em relevo os contornos suaves do talhe.
Nesse momento esquecia quanto ocorrera nos últimos dias para lembrar-se
unicamente que a linda moça era sua noiva.
Quando seus olhos saciaram-se da imagem sedutora, o chileno aproximou-se:
um calafrio percorreu o corpo de Catita, que estremeceu sentindo em sua mão
o contato dos dedos do marido.
— Querida!… murmurou Romero.
— Deixe-me! suplicou a moça.
— Não seja má! Tenha pena do que sofri nestes dias de
ausência; se não me lembrasse de sua felicidade, cuida que daria
ao trabalho de fugir e defender-me? Deixava que me matassem logo; mas eu sabia
que não me matavam a mim unicamente! Diga, tantas saudades curtidas
longe daqui não valem um beijo, um só?
Pronunciando estas palavras, o chileno cingiu com o braço o talhe da
noiva, procurando estreitá-la ao peito; porém ela, estrincando
o corpo como uma serpe, escapou-se daquele abraço que lhe causava horror,
e refugiou-se em um canto do aposento.
— Nunca! tinha ela exclamado com veemência.
E o lábio erriçado pela ira e pelo terror, depois que arremessou
essa palavra impetuosa, ficou vibrando como a lâmina sonora de um estilete
percutida com força.
Essa energia e súbita resistência surpreenderam um momento
ao chileno, que respondeu com um motejo.
— Por que me quer tanto mal assim, muchacha? É por que sou
agora seu marido?
Catita compreendeu o sarcasmo.
— É por ser meu marido, sim, que eu lhe tenho horror. Até
ontem o senhor não foi mais do que a minha desgraça: eu podia
perdoar-lhe e esquecer. Hoje é a minha vergonha! Antes me queria amarrada
na forca, do que unida ao mais vil dos homens.
A moça abatida com o estupor que lhe causara a presença de
Romero, se tinha deixado arrastar àquele casamento; mas agora na solidão
de seu aposento, ameaçada pelas carícias do ente desprezível,
sua alma reagia contra o opróbrio dessa cruel situação.
— Serei tudo que você quiser, Catita; mas o meu crime qual foi,
senão o amor cego que lhe tenho?
— Seu amor seria para mim um insulto!
— Lembre-se que já fui bem castigado com o receio de perdê-la
para sempre. Não acha que mereço seu perdão? Eu suplico
de joelhos.
Romero caminhava para a moça, que recuou horrorizada até o
leito. Aí no desespero de se ver sem defesa, à mercê daquele
homem, que era seu marido, acudiu-lhe uma lembrança. Metendo a mão
trêmula por baixo do colchão apalpou o cabo da faca de Manuel.
Entretanto Romero aproximando-se passara o braço pelo colo da noiva,
e inclinou-se para beijá-la. Catita retraiu-se violentamente, e o ferro
grilhou em sua mão. Ouviu-se um grito de aflição.
A faca rolou pelo chão, ao tempo que a moça caía desmaiada
sobre o leito. Faltaram-lhe as forças pensando que já o coração
de Romero estava traspassado pelo ferro; quando este apenas cortara as roupas
e arranhara a epiderme.
O chileno sorriu vendo a moça inanimada. Esse amor travado de ódio,
a luta violenta que prostrara aquela mulher, o excitavam.
— Agora é minha!
Nesse momento alguém travou-lhe do punho. Era Manuel.
XI – PRANTO
Pouco falta para a madrugada.
A noite arrasta-se pesada e lúgubre no meio de uma calma assustadora,
que estranha a natureza. Nem um sopro de aragem bafeja a terra, encandecida
ainda pelo intenso calor do sol. As estrelas rubras e imersas em um limbo
escuro, parecem tochas a bruxulear na sombra de um templo forrado de crepe.
No horizonte opaco se debuxam as cúpulas das árvores, semelhantes
a massas de granito.
Essa estagnação de luz, de ar e vida, imprimia à natureza
uma imobilidade medonha; dir-se-ia o orgasmo que precede à convulsão
e ao delírio.
Dois vultos passaram. Caminhavam rapidamente ao lado um do outro, e dirigiram-se
a um ermo bronco e erriçado de fraguedos que ficava nas abas da vila.
Quem os visse de longe a par como camaradas de prazer e ventura, não
suspeitaria decerto que iam matar-se.
A algumas braças de distância seguiam dois animais a passo.
Eram Juca e a Morena que de longe acompanhavam o senhor; como se pressentissem
a desgraça iminente, eles tão altivos sempre e tão impetuosos,
caminhavam tristes e cabisbaixos, pisando sutilmente para não despertarem
os ecos da noite.
Chegados a uma rechã, que ficava entre uma charneca profunda e uma
fraga alcantilada, Manuel parou voltando-se para o companheiro, e enrolando
no braço esquerdo o seu poncho.
D. Romero tivera a cautela de armar-se e, bem disposto como estava a acabar
de uma vez com essa obsessão que sobre ele exercia o gaúcho
desde a primeira vez, resolvera matar esse homem, quebrando sua influência
maléfica, ou sucumbir logo, morrendo às suas mãos.
Sem proferir palavra, sem trocar uma injúria ou ameaça, os
dois inimigos atacaram-se com a faca em punho e com uma sanha terrível.
O chileno não era mais o rapaz enervado pelos prazeres; o rancor percutindo
as energias sopitadas dessa organização, tornara o casquilho
de ontem um campeão formidável.
Durante algum tempo não se ouviu mais do que o triscar do ferro quando
as facas se roçavam, e o resfolgo da respiração. Mas
afinal o chileno conhecendo que não podia lutar contra o punho de aço
do gaúcho, deu um salto para trás e pôs-se fora do alcance
da faca.
Tirando então da cintura as pistolas desfechou os dois tiros sobre
o Canho. Uma das balas embebeu-se nas rugas da bota; a outra, queimando os
cabelos do gaúcho, bateu contra o rochedo. Romero não teve tempo
de ver o efeito dos tiros; antes que se dissipasse a fumaça, Canho
se precipitara sobre ele como um tigre, o arremessara ao chão, e lhe
calcara o pé sobre o pescoço.
A estrangulação foi rápida. Uma crispação
violenta percorreu o corpo do chileno, e deixou-o já cadáver.
Manuel em pé, com os olhos no semblante do morto, teve uma cruel
decepção. A vingança terrível, que devorava sua
alma, ali estava sem pasto para saciar-se, diante daquele mesquinho despojo.
As más paixões humanas têm a mesma natureza das feras.
O tigre sedento, que depois de percorrer a selva não acha para mitigar-lhe
a calma mais do que o resto de um reptil exangue, deve sentir aquele desespero.
O gaúcho empurrou com a ponta do pé o cadáver, que
rolou pelo despenhadeiro; e dirigiu-se ao lugar onde percebia os vultos de
Juca e Morena, que tinham assistido imóveis à luta. O silêncio
e a espécie de estupor moral que se apoderara do Canho desde o dia
fatal da perdição de Catita, se comunicara a seus dois amigos
e companheiros. Eles três não formavam mais do que uma alma,
uma vontade, cujo foco era o coração do gaúcho.
Se não estivesse tão concentrado em si mesmo e abstraído
do mundo exterior, ao aproximar-se Manuel teria percebido uma sombra que se
esgueirou por detrás da folhagem de alguns arbustos.
A mão do gaúcho, encontrando os arreios nas costas da Morena,
começou automaticamente a apertar a cincha, que é costume afrouxar
enquanto o anima descansa. Em meio desse movimento maquinal o espírito
foi arrebatado por um turbilhão de pensamentos. A fronte derrubou-se,
e um soluço rompeu do peito arquejante. Pela primeira vez em sua vida
aquele homem soube o que era o pranto, e chorou como uma criança.
Nesse momento a mesma sombra que sumira-se pouco antes, assomou entre a
folhagem, indecisa se devia avançar ou retrair-se.
Entretanto Manuel, com a alma já desafogada daquela ânsia que
o sufocava, cingiu nos braços o colo da Morena e do Juca, e estreitou-os
fortemente ao peito; a voz que desertara de seus lábios, balbuciou
enfim algumas palavras truncadas pelo ofego:
— Aqui estou, meus amigos! Fui ingrato; amei-a mais do que a vocês
e ela me traiu, me abandonou! Era mulher; sabia falar; havia de mentir. Oh!
eu bem quis fugir-lhe, eu que desde menino aprendi a conhecê-las. Mas
a fatalidade me arrastou.
A angústia sufocava-lhe a voz por instantes:
— Há quatro anos que vocês me acompanham e até hoje
um só dia não cansou a dedicação que têm
por mim; também nunca me prometeram coisa alguma. Ela, jurou-me seu
amor e um mês depois era… uma desgraçada!
Manuel esmagou as lágrimas que lhe saltavam dos olhos; e constringiu
o seio para sufocar-lhe o arquejo.
— Fujamos deste mundo infame! Vamos ao deserto, onde o homem é
fera como o tigre. Lá ninguém há de ser enganado pelo
amigo e traído pela mulher. Cada um só conta consigo; se quer
um irmão tem o seu cavalo fiel. Noiva, encontra-se no primeiro rancho:
de manhã não se conhecia, à noite já esqueceu.
Vamos, amigos, vamos aos pampas! Lá, somente lá, naquela imensidade,
poderei matar esta sede que eu sinto n’alma, esta sede de espaço,
que me sufoca. Correr!… Quero correr! correr sem parar, correr sem
fim, até que se abra o inferno para nos devorar!…
A sombra imóvel resvalou. Sentindo que procuravam travar-lhe da mão,
o gaúcho voltou-se, e viu um vulto de mulher ajoelhada a seus pés.
— Manuel!
Nesse momento o orbe imenso da lua assomava no horizonte como a boca da forja
que exala um fumo ígneo. Seu rúbido clarão, desdobrando-se
pelo ermo, debuxou o semblante pálido de Catita com os cabelos desgrenhados
e a alucinação na fronte.
Manuel recuou transido de horror, voltando o rosto para subtrair-se à
visão que o perseguia.
— Eu te suplico, Manuel! Não me fujas, não me abandones
neste desprezo que eu sinto de mim mesma! Mata-me! Esmaga-me a teus pés,
como uma coisa vil. Abençoarei a morte, por mais cruel que seja, dada
por ti.
Ofegante, despedaçada pela dor, arrastou-se aos pés do gaúcho,
rojando a fronte pelo chão, e umedecendo com os soluços o pó
que seus cabelos levantavam.
XII – O PAMPEIRO
Um ruído surdo reboou pelas grotas e algares que alcantilavam o cerro
abrupto. Parecia que a terra arquejava com o estertor de um pesadelo.
Ao mesmo tempo uma exalação ardente como o vapor de uma cratera
derramou-se pela solidão. As feras uivavam longe na profundeza das
selvas; e as aves espavoridas passaram soltando pios lúgubres. Os dois
cavalos, com o pêlo eriçado, resfolgavam aquele bafo ígneo,
semelhante ao fumo de uma batalha; eles o conheciam: era o sopro da pátria
selvagem; era o fôlego do pampa.
De repente a lua sepultou-se. Céu e terra submergiram-se num oceano
de trevas. O aluvião das procelas se arremessara do horizonte e inundara
a imensidade do espaço. Houve então um momento de silêncio
pavoroso; era a angústia da natureza asfixiada pela tormenta.
Afinal ribombou o trovão na vasta abóbada negra, sobre a qual
o relâmpago despejava cataratas de chamas. Não era uma tempestade;
mas um turbilhão de tempestades, bacantes em delírio, que tripudiavam
no céu. Como os touros acossados pelo gaúcho arremetem com fúria
e rompem a selva bramindo, assim o tropel das borrascas disparava pelo espaço.
O pampeiro, varrendo dos cimos dos Andes todas as tempestades que ali tinham
condensado os calores do estio, verberava na imensidade as pontas do látego
formidável com que ia açoitar o oceano.
Atônitos e mudos de espanto, os animais contemplavam o grande paroxismo
da natureza. A voz do trovão, o verbo das grandes cóleras celestes,
sopitava todos os gritos e todos os rumores. A terra pávida e estupefata
recebia a tremenda flagelação no meio das gargalhadas satânicas
do raio que surriava fustigando as escarpas do rochedo.
Únicos, no meio dessa horrível subversão, aquele homem
e aquela mulher não se apercebiam dos furores da procela; dentro de
suas almas lhes tumultuava outra furiosa tormenta que as devastava com sanha
mais terrível que a do raio.
Abraçada aos pés do gaúcho, Catita murmurava:
— Nunca amei senão a ti, Manuel, eu juro. Não digo isto
para que me perdoes. Não mereço, não quero perdão.
Mas vê o que sofri, e estou sofrendo neste momento. Tu foste traído;
e eu que me traí a mim mesma?… Eu que me detesto mais do que
tu podes detestar a infeliz que te enganou?… Amar, e sentir-se indigna
desse amor, não há maior suplício, Manuel!
A alma do Canho se crispava, semelhante ao mísero que tomado de vertigem
à beira do precipício se estorce e contrai para escapar à
fascinação do abismo, e debalde estende as mãos convulsas
em busca de algum frágil apoio. Com os olhos fitos no semblante da
moça, que os relâmpagos cingiam de uma auréola fulmínea,
a alma do gaúcho se arrojava de novo nas torturas atrozes por que passara
durante os últimos dias, esperando assim subtrair-se à irresistível
atração dessa mulher, a quem amava ainda, mas com assomos de
furor.
— Manuel, por piedade, Manuel, não me fujas. Ouve! A mulher
que tu amaste não existe mais, morreu, ninguém sabe dela. Esta
que te fala, nunca a viste, não a conheces; é uma desgraçada
que por acaso encontras em teu caminho e que te implora de joelhos a esmola
de uma palavra, de um olhar. Não te pede senão compaixão
para este desespero com que te ama. Que te custa? Deixa-me seguir-te ao deserto;
quando minha presença te aborrecer um dia, atira-me, ou deixa-me no
rancho abandonado onde nunca mais voltarás, mas onde eu ficarei te
esperando sempre até morrer consumida pela doce esperança.
Durante esta súplica férvida e soluçante, Manuel lutava
com a comoção que o invadia. voltado com o impulso do homem
que se precipita, ele estacava como suspenso por uma força ingente;
entretanto o que o detinha era apenas a mão frágil de uma mulher.
Afinal, cedendo à fascinação, curvou-se lentamente
para Catita, que viu ressumbrar-lhe na fisionomia o soçobro d’alma.
— Ah! tu és bom! Tens dó de mim!
— Não! exclamou Canho com veemência.
Repelindo a moça arrebatadamente, ia correr ao lugar onde o esperavam
os animais, quando Catita com um ímpeto bravio atalhou-lhe o passo:
— Leva-me contigo ou mata-me! exclamou cerrando convulsivamente as mãos
do gaúcho.
O olhar alucinado de Manuel pousou um momento no semblante de Catita e sondou
a profundeza do precipício que se abria quase a seus pés, iluminado
pelo lívido clarão do relâmpago. Sua mão terrível
abarcou na cabeça da moça as longas tranças negras, revoltas
pelo sopro da tempestade, e arrastou-a até a borda do abismo.
Rasgou-se nesse momento o céu e a meio do algar, suspenso aos galhos
de uma árvore seca, apareceu o cadáver do chileno:
— Olha! Ele te espera! disse Manuel suspendendo a moça para arremessá-la
no precipício.
Mas Catita lhe cingira os braços ao pescoço; seu hálito
crestou-lhe o rosto. A esse contato desamparou-o toda sua força; os
braços lhe caíram inertes e ele afastou-se com o passo trôpego,
vacilando como um ébrio. A moça, espavorida do que fizera, seguia
Manuel com um olhar pasmo.
Nesse momento um sopro glacial cortou como uma corrente de gelo a atmosfera
abrasada.
O peito de Manuel dilatou-se num amplo respiro. Semelhante ao homem que
saísse de uma caverna abafada, ele bebia aquele ar frio às golfadas;
com os lábios descerrados, os braços abertos, parecia receber
um amigo a quem estreitava ao peito.
— O pampeiro!… exclamou.
O filho do deserto, assomando no horizonte, soltou seu primeiro bramido,
que sibilou no espaço e fendeu como uma seta o ronco do trovão.
Imediatamente as tempestades que trotavam no firmamento fugiram pávidas
para os confins da esfera, como um bando de capivaras ouvindo o berro da jibóia.
O pampeiro é a maior cólera da natureza; o raio, a tromba,
o incêndio, a inundação, todas essas terríveis
convulsões dos elementos não passam de pequenas iras comparadas
com a sanha ingente do ciclone que surge das regiões plutônicas
como o gigante para escalar o céu.
Ei-lo, o imenso atleta que se perfila. Seu passo estremece a terra até
as entranhas; a floresta secular verga-lhe sob a planta como a fina relva
sob a pata do tapir; seu braço titânico arranca os penhascos,
as nuvens, as tempestades, e arremessa todos esses projéteis contra
o firmamento.
Luta pavorosa que lembra as revoltas pujantes do arcanjo das trevas precipitado
pela mão do Onipotente nas profundezas do báratro. O maldito,
prostrado no seio das chamas eternas, ressurge possesso levantando-se para
ascender ao céu; nada lhe resiste; a abóbada do firmamento treme
abalada por seu ímpeto violento. Mas que Deus incline a fronte, e Satã
cairá fulminado pelo olhar supremo.
O ímpeto do tufão toma todas as formas da ferocidade; sua
voz é a gama de todos os furores indômitos. Ao vê-lo, o
terrível fenômeno afigura-se uma tremenda explosão da
braveza, do rancor e da sanha que povoam a terra.
Aqui o pampeiro surge e arremete como cem touros selvagens escarvando o
chão; ali sente-se o convólvulo de mil serpentes que estringem
as árvores colossais e as estilhaçam silvando; além uiva
a matilha a morder o penhasco donde arranca lascas da rocha, como lanhos da
carne palpitante das vítimas; agora são os tigres que tombam
de salto sobre a presa com um rugido espantoso. Finalmente ouve-se o ronco
medonho da sucuri brandindo nos ares a cauda enorme, e o frêmito das
asas do condor que rui com hórrido estrídulo.
E tudo isto, sob um aspecto descomunal e imenso, não é senão
a voz e o gesto do gigante dos pampas, concitado das profundezas da terra,
para subverter o orbe.
Manuel recobrara o alento respirando o ressolho do tufão, e vendo-se
envolto por essa grande alma do deserto. O fracasso dos rochedos arremessados
às nuvens e chocando-se no espaço; o estrépito das florestas
convulsas que estalavam entre as garras do ciclone; o ruído das casas
arrancadas ao chão que se desfaziam no ar trituradas como um torrão
de argila; todos esses ecos de ruína e devastação deleitavam
aquele coração enganado.
O espírito de Manuel sentia naquele momento a necessidade de cavalgar
o tufão como a um corcel bravio, e precipitar-se com ele pelo espaço,
arrasando tudo em sua passagem e matando em sua alma a sede horrível
que sentia de mortes, desastres e catástrofes.
Quando ia montar na baia, outra vez o prendeu a mão de Catita que
se precipitara com veemência e esforçava para retê-lo.
Mas repelindo-a com rudeza, saltou ele no lombo da Morena que desapareceu
como a folha arrebatada pelo sopro do pampeiro.
Levado pela corrida veloz, Manuel sentiu no peito uma constrição
que em seu desvario lhe pareceu de uma tenaz ardente. Catita se lançara
na garupa da Morena no momento de partir; era sua mão delicada que
lhe esmagava o coração.
Sem forças para desprender-se daquela cadeia, queimando-se ao tépido
contato do talhe voluptuoso da moça que estreitava-se com ele, o gaúcho
soltou um bramido, como se chamasse em socorro seu o pampeiro, e precipitou-se
numa corrida louca e esvairada, cuidando fugir assim ao tormento.
Mas abriu-se diante a fauce escâncara do abismo. O pálido clarão
da lua, surgindo dentre as brumas da procela, iluminou o alcantil que sumia-se
pelo antro profundo. Agarrado a uma ponta de rochedo, à borda do despenhadeiro,
via-se o busto de Félix com a faca nos dentes, lutando com o tufão
e devorando com os olhos a distância que ainda o separava do gaúcho.
A Morena ia estacar; Manuel, reclinando-se ao pescoço, gritou-lhe:
— Upa!
Ouviu-se um anseio, um estridor de ramos partidos, o baque de um corpo no
fundo do algar, o estrupido de um galope ao longe; e a voz formidável
do ciclone cobriu todos esses pequenos rumores. Súbito, porém,
como se o filho do pampa só houvesse deixado as estepes nativas para
buscar o gaúcho e levá-lo ao deserto, a natureza quedou-se.
Cadáver depois da tremenda agonia.
O sol despontava.
A manhã límpida e serena esparziu a doce luz por aquela terra
convulsa. No meio dos sobejos da borrasca, entre as estilhas dos troncos seculares,
as farpas de rochedo e o solo revolto, o tenro grelo da semente rompia o seio
da terra; e a flor azul de uma trepadeira estrelava suas pétalas aveludadas.
NOTAS AOS LIVROS PRIMEIRO E SEGUNDO
I
Gaúcho e pião são até certo ponto sinônimos;
ambos estes vocábulos designam o habitante da campanha do Rio Grande,
o sertanejo do sul, cujos costumes têm muitas afinidades com o vaqueiro
do norte.
Todavia o primeiro destes vocábulos exprime antes o tipo, a casta,
enquanto que o outro se aplica especialmente ao mister ou profissão.
Assim gaúcho é o habitante livre, altivo e independente da campanha,
que ele percorre como senhor, levando a pátria, como o antigo Cita,
nas patas do seu corcel. Pião é proletário que se ocupa
da criação do gado nas estâncias, para o que deve ter
suma destreza em montar a cavalo, correr as reses no campo, laçá-las
ou boleá-las sendo preciso.
O habitante da campanha do sul não se deslustra por ser pião,
que ele tem em conta de uma profissão nobre; mas honra-se de ser gaúcho,
de pertencer a uma casta independente, distinta e mais viril do que a dos
filhos das cidades, enervados pela civilização.
Por isso, muitos estancieiros ricos fazem timbre de ser gaúchos;
adjetivaram o termo para designar os traços característicos
da casta, como a lança gaúcha; e criaram o verbo gauchar para
exprimir uma das feições do tipo, a ociosidade e a casquilharia
a cavalo. O gaúcho é o janota da campanha.
Em uma obra do Sr. D. Alexandre Magarinos Cervantes, Caramuru, que eu só
conheço por um artigo crítico do Sr. Torres Caicedo, há
um estudo sobre o gaúcho argentino, do qual talvez aproveitasse muitas
observações o Sr. cônego Gay na curiosa nota 99, de sua
História da República Jesuítica do Paraguai.
Desconheço a etimologia dos dois vocábulos, e ignoro se alguém
antes de mim já se deu ao trabalho de investigá-la, o que é
provável. Todavia indicarei de passagem o resultado de minhas conjeturas
a este respeito.
Gaúcho, de origem castelhana, usado principalmente nas margens do
Prata, donde passou para o Rio Grande, parece-me ser corrutela do termo espanhol
gacho, o qual se aplica ao boi ou cavalo que anda com a cabeça baixa;
daí figuradamente se disse sombrero gacho por chapéu de abas
largas caídas, e se derivou gachonear e gachoneria, que exprimem a
idéia de faceirice e galanteio. Ou pela forma do chapéu de baeta;
ou pela garridice do pião, tocador de viola, cantador de modinhas,
pernóstico e cheio de lábias; ou pela forma do chapéu
desabado; teriam começado a aplicar-lhe aquele termo, cuja pronúncia
gatcho a aspiração áspera do guarani tornou a princípio
em gáutcho, e depois mais abrasileirada em gaúcho.
Quanto à palavra pião, a dificuldade não está
na formação do vocábulo, mas na metáfora que ele
encerra.
Geralmente os lexicologistas consideram peão e pião um mesmo
vocábulo com significações diversas. Quer me parecer
que peão vem do latim bárbaro pedo, onis, homem de pé
grosseiro, qui pedes latos habet; daí se derivou o italiano pedone,
infante, isto é, soldado ou criado a pé, o francês pion,
e o espanhol peon, com a mesma significação.
Pião vem do latim pinus, o pinheiro, e pinea, a pinha; donde os italianos
derivaram pina, os espanhóis pinon, os franceses pignon e nós
pinhão. Talvez em muitas significações dessa palavra
pião, influísse também a palavra pinna — asa, pena,
para exprimir a idéia do movimento de rotação.
Peão é pois o homem que anda a pé; e figuradamente
o mercenário, o indivíduo de baixa classe, o soldado de infantaria,
e a peça conhecida do xadrez. Pião é a grimpa da torre;
o mastro que levanta ampara o cimo da tenda; o eixo do moinho; o reparo do
canhão; a pitorra ou carrapeta; e finalmente a peça de manejo
em torno da qual se fazem girar os animais no picadeiro, quando os domam e
ensinam.
Seria uma anomalia que peão, isto é, pedestre, fosse adotado
para significar a profissão de homens que passam a vida a cavalo, com
tal excesso que têm à porta do rancho o animal arreado de manhã
até à noite, e não andam cem passos a pé. Ainda
que há exemplos de tais inversões etimológicas, parece-me
que a metáfora foi inspirada pelo termo de picaria, pelo manejo de
ensinar os animais.
II
Os espanhóis que primeiro povoaram a América Central, deram
o nome de sabanas às imensas planícies rasas que se dilatam
por aquelas regiões, e que realmente, no dizer dos viajantes, parecem
à noite cobertas de um branco lençol.
É o mesmo que os ianques chamam far-west, e os russos estepes. O
termo espanhol foi adotado no francês e inglês; entre nós
anda usado por boas autoridades. Quanto ao russo estepes já o vi empregado
pelo Sr. A. Castilho, se não me falha a memória, em um trecho
da tradução de René.
Ambos são expressivos; mas nenhum tem a energia e a beleza do nome
americano pampa.
III
A princípio respeitei a corrutela da palavra poncho, que o vulgo pela
homonímia confundiu com o antigo vocábulo português ponche,
de significação muito diversa.
No espanhol, donde recebemos as duas palavras, há diversidade na
terminação; nas crônicas antigas o mesmo se observa; mas
creio que modernamente cessou a distinção, e aí está
o lugar Ponche-Verde para o indicar.
Foi esse nome topográfico a razão de adotar em princípio
a versão moderna, do que logo me arrependi.
IV
Idiotismos e gíria da campanha:
Sanga, pequena várzea ou brejo. — Coxilha, colina. — Cerro,
monte, às vezes pedregoso. — Lomba, ladeira, encosta. —
Restinga, língua de mato à beira dos arroios. — Banhado,
pequeno vale ou baixa. — Biboca, barrancas e grutas. — Rincão,
pastio para cavalhadas. — Potrero, pequeno pasto próximo à
habitação e cercado por valado. — Mangueira, curral. —
Posto, rancho do pião. — Ramada, choça de folhas. —
Estância, fazenda de criação. — Capataz, administrador
da fazenda. — Charqueada, fábrica do charque ou carne-seca. —
Carneador, o pião que mata a rês, esfola e manteia a carne. —
Salgador, o que a salga. — Descarnador, o que limpa e prepara o couro.
— Chimango, o que toma conta dos ossos para extrair a graxa. —
Continentista, o habitante do Rio Grande, termo de origem colonial, criado
para o distinguir do habitante da ilha de Santa Catarina. — Baiano,
todo o brasileiro do norte. — Canela vermelha, o paulista. — Castelhanos,
os espanhóis americanos. — Cachetilha, janota da cidade, oposto
ao gaúcho que é janota da campanha. — Churrasco, carne
apenas sapecada. — Assado de couro, carne que se assa ainda pegada ao
couro, que lhe serve de caçarola. — Mondongo, tripas ensopadas.
— Bagual, cavalo selvagem, xucro. — Poldro, a cria da égua
enquanto pequeno. — Potro, poldro que atingiu todo o crescimento, mas
não é cavalo ainda. — Macega, uma espécie de capim.
— Pago, pasto.
V
O laço é muito conhecido em todo o país; quanto às
bolas, são peculiares à campanha do Rio Grande do Sul e do Prata,
onde os primeiros colonos receberam dos indígenas essa arma terrível.
Consta de três bolas de pedra, de ferro, ou de madeira, retovadas
(cobertas) de guasca e presas a três fiéis (correias), ligadas
pela extremidade. Uma dessas bolas é mais pequena e o seu fiel mais
curto; chama-se manopla; nela segura a mão, quando imprime a rotação
ao projétil, para arremessá-lo. Costuma atirá-la 50 passos
antes do animal que serve de alvo.
VI
Os arreios à gaúcha, muito usados nas províncias do
sul, são bem conhecidos.
Compõem-se de muitas peças: primeiro se deita no costado do
animal o xergão, que é um suador ou acolchoado para evitar que
o animal se pise; em segundo lugar a carona de baixo que é uma grande
manta; depois a xerga, pequeno cobertor de lã, sobre o qual põem
a forma de ferro do selim, a que chama lombilho; em cima desta outra carona
ou capa de sola bordada.
Acocham tudo isto com a cincha, cilha muito larga, e cobrem com um pelego
de carneiro colorido e um coxonilho preto. Finalmente vem a badana, pequeno
couro apertado por uma sobrecincha estreita. Parece-me que a origem desses
arreios se deve atribuir à introdução, em Espanha e Portugal,
dos usos e costumes mouriscos. Até as grandes esporas chamadas chilenas
do nome Chile, talvez não sejam mais que uma exageração
das antigas esporas mouriscas, muito usadas no tempo do descobrimento e colonização
do Brasil.
VII
Há neste livro algumas inovações filológicas.
Escrevo capoão e não capão, o nome da coroa ou ilha
de mato. Além de mais correta, e conforme a etimologia — Caa-apuam,
tem a vantagem de não se confundir com o outro vocábulo de origem
portuguesa. Assim como dizemos capoeira, derivado da mesma raiz — caa-apuam-era,
mato raso, por já ter sido cortado, não há razão
para sermos incorretos em capoão.
Henito — do lat. hinnitus, donde os franceses derivaram hennissement,
não encontrei em Morais ou Constâncio. Fonseca, creio que dá
hinnir e hinnito. Para exprimir o rincho triste e prolongado do cavalo, não
conheço mais perfeita onomatopéia do que esse vocábulo
hinito.
A longa aspiração na primeira sílaba da palavras esdrúxula,
traduz perfeitamente o rincho de dor; assim nitrido exprime o rincho viril
e marcial do corcel.
O latim hinnio veio sem dúvida da mesma raiz que o saxônio
wannian, lamentar-se, donde os ingleses tomaram whinny para exprimir a mesma
idéia do rincho plangente.
VIII
A respeito do desarmamento de Lavalleja em 1832, achei bom cabedal na excelente
obra do Sr. Pascual — Apuntes Para la Historia de la Republica Oriental.
Quanto, porém, à revolução rio-grandense de
1835, tive de consultar os jornais do tempo, onde se acham transcritas as
participações oficiais. Não encontrei, nem tive notícia
de crônica ou memória escrita sobre este importante acontecimento,
cuja lição não aproveitou; pois desde 1850, estamos reincidindo
nos mesmos erros, cometidos por Portugal, e por nós desde a independência
até que apareceu a explosão.
NOTAS AOS LIVROS TERCEIRO E QUARTO
I
Parece escusado advertir que ao caráter de Romero, neste livro, não
se quis imprimir um cunho nacional. Da raça há sem dúvida
traços bem salientes, na índole casquilha e aventureira; o mais
é resultado do temperamento, que forma a individualidade, independente
de quaisquer acidentes locais.
Não podia pois caber na mente do autor a idéia de lançar
o odioso personagem à conta de uma raça que renova na América
as tradições gloriosas da Europa; e de um povo ilustrado, que
tanto se distingue por sua perseverança e energia nas conquistas da
liberdade e da civilização.
Também, por forma alguma, exprimem sentimentos e convicções
do autor os ditos e observações malévolos de certos personagens
a respeito de orientais e argentinos, designados comumente na campanha pelo
termo castelhanos.
Nas fronteiras, o contato de populações de nacionalidade diferente
produz geralmente a repulsão com seu cortejo de lutas e vinganças,
embora algumas vezes se estabeleça uma certa adesão, como apoio
à resistência contra o respectivo governo. Essa é a história
da nossa fronteira do sul; ao mesmo tempo couto de caudilhos nossos e refúgio
de rebeldes estrangeiros.
A civilização que se vai propagando por aquelas regiões
há de brevemente desvanecer esses resquícios de barbaria, estreitando
a união de povos ligados pelo mesmo amor da liberdade, e pelas mesmas
aspirações de engrandecer o nome americano.
II
Neste livro, como em todos do mesmo gênero que tem escrito o autor,
se há de ler freqüentemente em diálogos — diz e faz,
na 2ª. Pessoa singular do imperativo, em vez de dize e faze, conforme
a lição gramatical.
É um idiotismo brasileiro, senão português ainda, como
aquele que pela mesma apócope suprimiu o e final na 2.ª pessoa
singular do indicativo de muitos verbos. Os antigos diziam, ele induze, seduze,
conduze, etc., dize, faze, luze, quere, etc. Depois de João de Barros
se começou a dizer, ele induz, seduz, conduz, diz, faz, quer, conservando-se
porém o e no imperativo.
Geralmente a 2.ª pessoa singular do imperativo é uniforme com
a 3.ª pessoa singular do indicativo. Exp.: ele tem, tem tu, ele está,
está tu, ele ama, ama tu, ele põe, põe tu, etc. Ora o
povo tem o instinto gramatical; e portanto, nos verbos de uso vulgar, adotou
a fórmula diz (tu), faz(tu), por mais natural e breve e eufônica.
Outro idiotismo brasileiro que se há de achar nas obras do autor
é janta, palavra que não traz o dicionário de Morais.
O uso a derivou do verbo jantar, com a mesma boa razão que teve para
fazer monta de montar, cava de cavar, planta de plantar, etc.
No Brasil é freqüente na linguagem familiar o emprego desse
vocábulo para exprimir a refeição que se toma no meio
do dia, no ordinário das casas. No norte especialmente a palavra jantar
serve mais para indicar a janta com aparato, o banquete, ou pelo menos o convívio.
Assim tenho ouvido dizer com muita propriedade: — Põe a janta
na mesa — São horas da janta, etc. Dei um jantar a alguns amigos
— Fui convidado para um jantar.
Jantar neste caso distingue a hora do banquete, que podia ser pela manhã,
como almoço, ou à noite, por ocasião da ceia.
É natural que certos críticos não achando a palavra
nos dicionários, a capitulem de erro, esquecendo que os léxicons,
onde vão beber a lição da língua, são meramente
portugueses e portanto omissos a respeito de muitos brasileirismos que escaparam
ao erudito pernambucano A. de Morais Silva, e que talvez se propagaram posteriormente
à confecção de sua obra.
Ainda o Brasil era colônia de Portugal quando, sem licença
dos clássicos e dos gramáticos, ia criando palavras novas à
medida de suas necessidades. Citarei — bandeirante, sertanista, matuto,
bombear, amadrinhar, orelhano, invernista, açouteira, e tantas outras
de derivação portuguesa, sem contar muitas de raiz americana
ou africana.
Cumpre que nos compenetremos dessa verdade. O uso de nosso povo e o bom-gosto
dos escritores nacionais hão de cunhar palavras brasileiras, apesar
das iras clássicas e das excomunhões dos gramáticos.
III
Além dos idiotismos rio-grandenses, notados no 1.º volume, se
encontrarão neste os seguintes:
Guampa, jarro ou copo de chifre. — Tomar uma guampa equivale ao idiotismo
fluminense, tomar uma pinga ou matar o bicho. — Farroupilha, nome dado
aos rebeldes. — Caramurus, nome do partido legalista em princípio.
— Parelheiro, não só o que aposta no jogo das corridas,
como os rapazes que voltam do passeio à rédea solta, porfiando
carreiras. — Rusga, barulho, motim, escaramuça; no norte do Brasil,
penso que rusgar se aplica com preferência como sinônimo de ralhar.
— Rosetear, fazer retinir a roseta das esporas andando ou dançando;
é um cacoete gracioso dos gaúchos que por essa prenda são
chamados roseteiros. — Levar carona, ser enganado. — Dar pancas,
sobressair, fazer bonita figura, exceder-se. — Ginete, usa-se muito
freqüentemente na significação clássica de cavaleiro
destro e bem parecido; distingue-se de monarca, porque este termo refere-se
ao cavaleiro vistoso que traz arreios de prata e veste-se com entono e casquilharia,
embora não seja dos mais destros. — Bolívar, naquele tempo
era um sombreiro à semelhança do que usava o célebre
general boliviano, cuja popularidade foi causa de se vulgarizar o uso daquela
forma de chapéu, e tornar-se moda na campanha. — Chulear, espreitar
o ponto no jogo do pacau, trinta-e-um, etc., fazendo trejeitos e moganguices.
— Coringa, é palavra muito geral em todo o Brasil para designar
o dois de paus naqueles jogos.
IV
Reservei-me para nesta última nota dizer alguma coisa sobre o livro,
já em parte sujeito às provas públicas.
O acolhimento feito pelos órgãos mais ilustrados da imprensa
desta corte ao 1º volume foi dos mais benévolos; a ponto que o
autor é obrigado a lançá-lo à conta da generosidade.
Assim corresponda o 2º volume à expectação criada
pelas palavras amáveis de escritores de tanta e merecida autoridade.
Há elogios que obrigam, como no antigo mote se dizia da nobreza a respeito
dos cavaleiros.
O 1º volume é o desenho de um grande cenário, e o esboço
de um caráter vigoroso, cuja exuberância ainda não foi
revolta e propelida pelo esto da paixão.
No 2º volume começa o drama: o cenário se anima e o caráter
apenas traçado entra em ação. O despertar daquele coração
devia ser violento: é uma explosão; é um amor que nasce
no meio dos combates sanguinolentos, e na hora aziaga se refugia nas vascas
da natureza, nas lutas espantosas dos elementos.
Se o drama está na altura dos caracteres, se estes se desenvolvem
na ação naturalmente e com a lógica das paixões
humanas, pontos são estes que pertencem à crítica. O
autor se dispensa de maiores observações: apenas dirá
que de propósito procurou tirar as situações mais comoventes
de cenas triviais.
Não faltará quem increpe o livro de inverossímil, na
parte relativa ao cavalo. Duvidar hoje, depois de tantos fatos e de tão
respeitáveis testemunhos, dos resultados admiráveis do instinto
dos animais, é uma excentricidade que não vale a pena de refutar.
Demais, neste livro, a maior parte dos atos inteligentes praticados pelo cavalo
são antes atribuídos pelo gaúcho ao animal, do que atestados
pelo escritor.
Quanto à parte histórica, o autor foi mais sóbrio do
que desejava, e quiçá do que esperava o leitor; limitou-se a
atravessar de relance o prólogo da revolução rio-grandense.
A isso o obrigaram seus escrúpulos; trinta e cinco anos, menos de meio
século, não bastam para arquivar fatos e personagens tão
ligados ainda ao presente pelos vínculos das paixões e da família.
Nem todos os bustos dessa galeria são, como o de Bento Gonçalves,
da classe daqueles homens que ao sair do mundo entram logo na posteridade.
Muitos há cuja memória sofre uma espécie de incubação
antes de pertencerem à história.
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