O Garatuja

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

José de Alencar

I

TRÊS ANTIGOS LUZEIROS
ESCAPOS A POEIRA DOS TEMPOS

No dia 3 de novembro do ano que se contou 1659 da graça e nascimento
de Nosso Senhor Jesus Cristo, a leal cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro estava em grande alvoroto.

Não era a então nascente capital, sossegada e pachorrenta,
como a grande corte em que se transformou. Se não mente a crônica,
tinha naqueles tempos afonsinhos o gênio trêfego, e um sestro
de intrometer-se com as cousas da governança para não deixar
que os oficiais d’El-Rei lhe tosquiassem muito cerce o pêlo e a bolsa.

Promovida a corte, lembrou-se no principio alguma vez da balda antiga; mas
com a vida palaciana, breve esqueceu de todo os ardores da juventude, e aquelas
desenvolturas de rapariga.

Agora dá-se a respeito. Já não é a carioca faceira
e petulante, de saia de crivo e olhos brejeiros, estalando castanholas ao
som do fadinho. Fez-se dama; traz anquinhas, e arrasta a cauda com donaires
de matrona.

Sete horas acabavam de soar na torre do mosteiro, e apesar do muito cedo
o povo enchia as poucas ruas que formavam naquele tempo o âmbito da
cidade, ainda conchegada às abas do Outeiro de São Januário,
que a protegia com seu castelo roqueiro.

Onde porém mais alvoriçava o arruído era no Rossio do
Carmo, nome que tinha então nos livros da vereança o Largo do
Paço, ao qual não obstante a arraia-miúda continuava
a dar a alcunha popular de Terreiro da Polé.

Golpes de gente azoinada e assustadiça borbotavam uns após
outros da Rua Direita e Beco dos Barbeiros, mas sobretudo das bandas da Misericórdia,
Castelo e Ajuda, área onde mais se condensava o povoado.

Vários ajuntamentos se haviam formado aqui e ali no circuito da vasta
praça, separados pelo refluxo dos mais alvoroçados, que não
se podendo ter parados um instante, ferviam, à maneira das ondas em
torno de abrolhos, e burburinhavam sôfregos de colher pormenores da
grande nova.

Desafrontada do paço, que só muitos anos depois devia ser construído,
a praça estendia-se até a Rua da Misericórdia, onde se
erguera a nova Igreja de São josé3 cuja capela-mor, de recente
fábrica, entrava pelo mar adentro.

Do lado oposto, desde o canto da Rua Direita alongava-se um renque de lojas
e tercenas, esboço do opulento empório que derramando-se pela
várzea, havia de cobrir antes de dois séculos a vasta marinha.
No lugar onde mais tarde se edificaram as casas do Teles e o arco, famoso
na crônica fluminense, via-se ainda a velha tenda do ferreiro, que dera
nome ao lugar.

A face de terra era ocupada pela Capela de Nossa Senhora do Ó e pelos
dormitórios dos Carmelitas cuja cerca terminava na Rua da Cadeia. Ainda
não existia o templo que hoje serve de capela imperial, erguido um
século mais tarde sobre as rumas daquele.

A face do mar descortinava o formoso panorama da baía. Junto à
Ilha das Cobras balouçavam-se os galeões da frota próxima
a partir para o reino.

Na praia, onde brincavam as ondas, ainda não rechaçadas por
cais ou aterro, abicavam de instante a instante as canoas da outra banda e
as barcas dos pescadores que tornavam do mar.

Dentro da praça, mas encostada à Igreja de São José,
destacava-se a casa da Câmara, com o seu campanário, e as enxovias
da cadeia, corridas de um e outro lado do pavimento térreo.

Em frente, a alguns passos de distância, no lugar onde fica atualmente
a ucharia imperial, erguia-se o pelourinho, esse padrão do governo
da cidade, ao qual o povo chamava cruamente – a polé.

Era justamente em torno da coluna da governança, que se apinhava a
multidão, cujas vistas inquietas, desenganando-se de achar na picota
qualquer edital da vereança acerca da grande novidade, voltavam-se
para as janelas inda fechadas da Casa das Sessões.

Uma canoa de voga acabava de chegar à praia; e dela saltava nas costas
do escravo remeiro um velho seco e alto, de rija têmpera, e cujos movimentos
vivos e articulados davam-lhe ares de um grande grilo em posição
vertical, vestido de garnacha preta, com os competentes calções
e meias da mesma cor. Tinha de mais um casquete de abas reviradas, sapatos
de cordovão com fivela de prata, e uma desmedida bengala, cujo castão
de ouro, representando uma borla doutoral, lhe roçava o queixo adunco,
quando a empunhava direita.

Era esse o licenciado João Alves de Figueiredo que aproveitara os
dias feriados para refocilar em sua quinta de São Lourenço,
à outra banda. Tornando à cidade, e surpreso do alvoroto em
que a vinha encontrar, mal pisou em terra, barafustou à cata de novas.

Foi dar em uma pinha de gente, que imprensava-se para ouvir a narrativa do
caso, feita por uma voz fanhosa e estrídula.

Pertencia essa fala de arrepiar os nervos, a um sujeito pequeno, rolho, já
velhusco, vestido pelo mesmo teor e forma do licenciado, como oficial que
era do mesmo ofício. O letrado acompanhava os esguichos nasais da palavra
com um acionado consoante; seu gesto oratório mais valente era uma
lançada que dava ex-abrupto na cara do auditório, com os dois
dedos indicador e máximo, espetados à guisa de sovelão.

Havia seu perigo em escutar de perto um tão valente casuísta;
nos momentos de calor seria capaz de vazar um olho, ou esbrugar um dente ao
incauto para mostrar-lhe ao vivo a força da sua dialética.

Defronte do orador estava um frade, que pelo hábito negro, os cordões
brancos e as alpertacas se conhecia ser dos mendicantes. Era também
cheio do corpo, mas de uma obesidade balofa, que não sobressairia tanto,
se não fosse a fradesca indolência com que ele se entulhava sobre
si mesmo, metendo a cabeça pelos ombros e o ventre pelos quadris.

Com os olhos abotoados e a comer a boca do orador, por vezes tentara o frade
tomar-lhe a palavra, e afinal decidiu-se a arrancá-la à viva
força. Mas o guincho do letrado lhe retalhara como uma navalha a voz
de baixo profundo, por modo que era impossível perceber-se uma sílaba.

Reconhecendo de longe nos dois émulos o Padre-Mestre Frei João
de Lemos, da Ordem de São Francisco, e o Bacharel Dionisio Mendes Duro,
que fazia profissão de letrado forense, o licenciado desconjuntou-se
na guinada do costume, e fendida a mó de gente com um rasgo da enorme
bengala, surdiu avante.

Os três sujeitos que ali estavam em trempe, no centro da pinha de gente,
eram tidos e havidos pelo bom povo fluminense como as três grandes luminárias
da época.

Ao frade, reputavam o primeiro pregador do século. Como o licenciado,
não havia outro para decidir o mais intrincado caso in utroque jure.
Quanto ao bacharel, esse levava as lampas a qualquer no manejo dos negócios,
tanto na audiência como nas cousas da governança.

Tal era a nota e conceito das três respeitáveis cacholas, e
tão firmada estava sua voga, que os únicos a discernir eram
eles próprios, mas a respeito dos dois outros, porque em relação
a si dignavam-se de concordar com o vulgo.

Fr. João de Lemos, além de primeiro pregador, guindava-se à
honra de mestre em teologia, e grande sabedor nos cânones, o direito
por excelência. Assim, nos dois letrados, via ele apenas uns leigos,
com fumaças de doutores.

O licenciado João Alves, acreditando piamente ser um portento na jurisprudência
e sem contestação a primeira cabeleira do mundo, tinha o frade
e o bacharel na conta de dois rábulas, lardeados de sabença
de orelha e latim de algibeira.

Por sua vez o Dionísio Duro apregoava que os seus êmulos não
passavam de portadores de bulas falsas, alisadores dos bancos da escola, onde
haviam encruado umas letras gordas. Ele, sim, que estudara na prática
e era um poço de ciência, capaz de afogar em um espirro a tonsura
do frade e a guedelha do licenciado.

Com a súbita chegada de João Alves, estacou o bacharel no meio
de uma campanuda digressão.

– Então, qual é a novidade? perguntou o licenciado.

– Pois não sabe? acudiu o frade.

– Se agora ponho pé em terra! …

– Foi o prelado, que lançou a excomunhão sobre o ouvidor, tornou
o bacharel.

– Que me diz?

– Esta manhã, quando o Doutor Pedro de Mustre se ia embarcar para
a capitania do Espírito Santo, intimou-lha o Padre Rafael Cardoso,
da parte do vigário geral.

– Depois das três admoestações canônicas, concluiu
o frade.

– É a praxe; observou os cânones.

– Como ordenam as decretais, corrigiu o licenciado, Mas o porquê do
caso é que ainda estou por saber.

– Falam na devassa que tirou o Doutor Pedro de Mustre contra os familiares
do prelado no negócio da assuada ao tabelião. Parece que se
procedeu injuste et malitiose.

– A devassa foi este seu servo quem a requereu, Sr. Dionísio Duro,
como patrono do Sebastião Freire, atalhou o licenciado; e na melhor
forma e via de direito, ex vi juris et legis, ut. Ord. liv.. 5º, tít.
48: "Dos que fazem assuadas", etc.

– Que era o caso dela, non est disputandum, tornou o bacharel; mas se o julgador
a tirou ab irato, eis o ponto da questão.

– Sem falar da exceção, inímico et suspecto judice,
ponderou o padre-mestre, porque o estarem os minorenses de tonsura e hábito
ín actu delictis, é de notoriedade pública.

– Suspectus et varicator judex, sr. padre-mestre, seria o ouvidor se não
guardasse a ordenação, quando por ela requerido, ou mesmo que
o não fosse, pois era o caso de proceder-se ex offício, sicut-Filipina
no liv. 5º, tít. 45 § 3, "Mendes a Castro" – Praxe,
Parte 1ª, livro 1º, cap. 2º, n. 38, e Senator Sardinha, alegação
96, n. 22, ubi refert judicatum.

O licenciado, erriçando a cabeleira com o castão da bengala,
ameaçava despenhar sobre os dois êmulos uma cascata de citações
atinentes ao caso, sem esquecer os comentários e castigações
dos respectivos doutores. Infelizmente um rebuliço do povo atalhou
aquela torrente de erudição forense.

As janelas da casa da Câmara se abriam; e a sineta do campanário
anunciou que o Senado da leal cidade de São Sebastião ia entrar
em vereação, para deliberar sobre os negócios da república.

Entre os de maior monta que naquele dia tinham de ocupar a atenção
dos conselheiros do povo fluminense, avultava o caso gravíssimo da
excomunhão do ouvidor.

Quem refletir na disciplina rigorosa que ainda naquela época exercia
a Igreja sobre o poder temporal, embora já decaída do que fora
em antigas eras, compreenderá quanto a pena severa fulminada contra
o primeiro ministro da Justiça de El-Rei, por ele posto na capitania,
devia abalar os povos sujeitos à sua jurisdição; e derramar
na cidade o terror e a consternação.

Apesar de não ser então a população fluminense
como atestam os documentos da época, das mais fervorosas no zelo católico
e exemplares na prática do catecismo, todavia dominava na massa geral
o respeito tradicional que infundia a religião de seus maiores, e aumentado
pela superstição própria daqueles tempos de ignorância.

O conflito que o prelado levantava com a majestade secular, colocava os moradores
da terra em colisão terrível, perplexos entre o acatamento que
deviam como fiéis às censuras da Igreja,. e a obediência
que tinham de guardar como súditos aos ministros da república.

Imagine-se pois a ansiedade com que esperavam todos a junta dos vereadores
em Câmara para destrinçar com a parecer dos doutos caso tão
abstruso e emaranhado, livrando os povos do perigo iminente de ficarem, ou
excomungados ou rebeldes.

II

A MAIS AFIADA LÍNGUA ENTRE AS FAMOSAS QUE ENTÃO HAVIA
NA LEAL CIDADE DE S. SEBASTIÃO

Em outro ponto do rossio, para o lado da Misericórdia, tinha-se formado
novo motim de gente, que se apinhava para ouvir os pormenores do caso.

Quem falava era uma velha, de trunfa bem riçada em topete, com a mantilha
trançada acima do ombro e repuxada por baixo do braço direito,
o qual gesticulava de uma maneira desabrida.

Tinha a regateira uns olhos tão pequenos que pareciam dois caroços
de feijão-preto embutidos na testa; as pestanas, as comera a sapiranga
que lhe arroxeava as pálpebras. A boca, de bom tamanho, desdentada
na frente, em falando, o que era o seu estado habitual, mostrava uma língua
fina e ligeira, que espevitava os beiços delgados, como o ferrão
de uma vespa devorando por dentro a casca de uma goiaba.

Essa linguinha afiada, que tinha fama de cortar como nenhuma outra na pele
do próximo, pertencia à Sra. Pôncia da Encarnação,
que fazia vida de regateira; mas não se ocupava de outra cousa senão
de espreitar por detrás da rótula o que ia pela rua, para enredar
os vizinhos e falar mal da vida alheia.

Fronteiro a ela, e seu atento ouvinte, aparecia o Belmiro, sujeito esgrouvinhado
e macilento, com um corpo desengonçado sobre duas pernas de taquari.

As pastas de alvaiade que tinha pelo cabelo ruivo e assanhado, bem como as
dedadas de oca e zarcão, apalpadas nas mangas e peitos do gibão
de cor indescritível, estavam-lhe denunciando o ofício de pintor.

– Ninguém me tira de que tudo isto não passa de artes daquele
capeta, Deus me perdoe, do Garatuja… Sabem? O cujo da Rosalina, que ela
chama de enjeitado!… Nanja eu, que engula essa! Ai, a sujeita é matreira!
Lá isso é, não tenham dúvida! Como ela arranjou
o tal enjeitadinho tão a ponto, que foi mesmo um trás, zás;
saiu por uma porta, entrou por outra, e manda El-Rei meu senhor que me conte
novas. E o maganão do alferes, que ainda anda na corte requerendo licença
para meter-se em matrimônio, e já o filho… Olhem que não
sou eu quem diz, a cidade anda cheia… e já o filho quer passar-lhe
a perna. Pois não verão frango com gogo? O peralvilho do enjeitado
a se derrengar com a filha do tabelião, a Marta! … Sonsa como ela
só! É rapariguinha para dar sota e basto a um seminário
inteiro de minoristas, e ainda sobra! De olho só, gentes, não
estejam aí a maldar; só de piscar o olho e namorar de janela
é que eu falo, que lá do mais não sei!… Enfim eu cá
não meto minha mão no fogo por ninguém! Deus me defenda!…
Tomara eu poder com os meus pecados, quanto mais ainda por cima carregar lá
com a culpa do que os outros fazem!

Ao cabo desta lengalenga, que zunia como uma matraca tangida em ofício
de trevas por garoto formigão, tomou a Pôncia respiração,
mas para despedir-se em nova parlice.

– A tal rapariguinha… Não digam que foi a Pôncia quem contou.
Menos essa, que não quero enredos comigo! A sonsa da Marta anda desinquietando
os familiares do prelado. Os minoristas, já se sabe… isso de rapazes
perto da cachopa, é como algodão que em lhe tocando fogo, fica
logo em labareda!… Mas o Garatuja, como não lhe cheirasse a cousa,
lá fez das suas trampolinas, e pregou algum mono à clerezia,
a qual se engrilou com o Sebastião Ferreira, e então arrumou-lhe
a assuada! Pudera não! Os formigões!… Escrevam, e verão
se eu lhes engano. A tramóia toda foi arranjada pelo demônio
do Garatuja… Cruzes, filho de Belzebu, engrimanço do porco sujo!…
O tabelião e o prelado andam aí vendidos!… Sou capaz de jurar!…
Agora se o Almada também está enfeitiçado pela rapariga,
e teve algum bate-barba com o tabelião, pelo que assanhou a clerezia
contra ele… pode bem ser; não digo que não; mas com certeza
o Garatuja andou metido em toda essa embrulhada.

– Ele pode ser, disse o Sr. Belmiro. Aquele rapaz é das Arábias!…
Dizem…

Levou o pintor a mão esquerda espalmada ao canto direito da boca,
á guisa de empanada, e sombreando a voz concluiu:

– Dizem que tem partes com o demo!…

– E o senhor anda metido com ele, acudiu a Pôncia.

– Pela razão do ofício, que o diabo do rapaz tem jeito para
a cousa.

– Vá-se fiando na Virgem e não corra. Um dia, quando estiver
desprecatado, ele é capaz de embrulhá-lo nas barafundas do inferno,
e pum!… Lá vai! Carrega-o direitinho para as caldeiras do Botelho!…
Eu cá, gentes, como por mal de meus pecados moro defronte da arrenegada
da mãe, vivo me benzendo! … A rótula, todo o santo dia que
Deus manda, não me fica sem um raminho d’arruda, que é para
arredar o mofino, se lhe der na veneta de vir tentar-me!… Credo!… Que
só de pensar nisto, estou tremelicando toda por dentro e por fora,
que nem passarinha de carneiro!… e um pucarinho d’água benta com
seu raminho de alecrim, que todos os domingos trago do colégio, que
me dão os bons padres. Santos homens, agarradinhos, é verdade,
que nem escorropichado sai daí um tostão!…

Ia continuar a Pôncia, tosando um tanto a pele aos jesuítas,
com quem aliás tinha suas privanças; mas agitaram-se outra vez
as turmas de gente que cercavam a casa da Câmara por não poderem
penetrar no interior, e foi a beguina enrolada em um remoinho, produzido pelo
retrocesso da multidão.

Dera causa a esse novo rebuliço a entrada no rossio de um ajuntamento
de pessoas, que se encaminhavam em forma de cortejo para o senado fluminense.
Traziam todas as roupas talares, de estofo preto, como então usava
a gente de justiça; e se não eram rigorosamente conformes aos
preceitos da pragmática, não davam escândalo, como acontecia
na ocasião de festas e até mesmo em visitas do quotidiano.

O da frente era o ouvidor, e os outros, oficiais da justiça d’El-Rei,
por ele postos naquela capitania, que vinham todos unidos em corpo protestar
contra a violência inaudita que tinham recebido na pessoa de seu cabeça,
o primeiro ministro togado, e presidente da comarca.

Ali ia também o tabelião Sebastião Ferreira Freire,
a causa primeira da mitrada que desfechara o prelado sobre a toga do ouvidor,
e que ameaçava de grandes calamidades a cidade de São Sebastião.

Enquanto os juizes, vereadores e homens bons assentam em conselho no melhor
meio de salvar a república, remontemos nós o curso dos acontecimentos
para conhecer as causas do imprevisto sucesso, que pôs em alvoroto a
população fluminense.

III

UM TIPO QUE JÁ NÃO SE ENCONTRA NO TEMPO D’AGORA

A rua do Aleixo Manuel, que só um século depois veio a chamar-se
do Ouvidor, quando aí se estabeleceu a residência efetiva do
primeiro magistrado da capitania, naquele tempo nem indícios dava da
brilhante galeria do luxo e da moda, que se começou a formar com a
vinda de El-Rei D. João VI, em 1808.

Muito lhe faltava ainda para merecer o nome de rua, que nem toda a gente
lhe dava, dizendo simplesmente: "Para as bandas do Aleixo Manuel".
Teria então meia dúzia de casas; o mais eram cercas ou quintais.

Próximo à Travessa do Sucussara, via-se ainda a antiga loja
do mercador que primeiro ali morara e donde lhe viera o nome; e fronteiras
umas casas de taipa com dois lanços, e quatro janelas de rótulas,
como eram quase todas naquele tempo.

O lanço que ficava à direita, para o lado da esquina, era ocupado
na frente por um repartimento espaçoso, vestido de alto a baixo, com
panos de prateleiras carregadas de autos. Como não bastassem as paredes
para acomodar toda a papelada, saíam do meio delas outros renques de
prateleiras atravessados, formando uns cubículos estreitos, onde viam-se
bancas apinhadas de rimas de processos. Por detrás dessas muralhas
de autos arrumadas à guisa de torre, ouvia-se ranger a pena no papel,
sinal infalível de que aí estava a rabiscar um escrevente do
cartório.

Em uma espécie de nicho que havia para o fundo do aposento, contra
a parede interior assentava uma longa banca de pau-santo, sobre seis pés
torneados, cada qual mais grosso do que a viga da casa. Como as outras, servia
esta mesa de sapata a um castelo de papelório; mas aqui as ameias eram
feitas não só com muralhas de autos, mas com baterias de formidáveis
bacamartes encadernados em camurça vermelha.

No meio da banca, dentro da cava aberta para acomodar o corpo, surgia um
busto de homem, coberto de tabaco e poeira, com um chinó tão
escandalosamente ruivo, que já frisava com o vermelho.

Óculos de asas de estanho, trepados no respeitável cavalete,
envidraçavam de verde uns olhinhos redondos, vivos, espertos, que pulavam
das órbitas como a pupila do molusco. O queixo fino e agudo, à
feição do gume de uma fouce revirada, bem como as faces chatas
e batidas, pareciam chanfradas em carão de pau, coberto de velho pergaminho.

Constantemente sorvida, certo indício de concentração
do espírito, a boca não passava de uma ligeira comissura, que
seria imperceptível, se a conformação do rosto não
indicasse naquele ponto o hiato da gula.

Às orelhas que não invejariam as de um perdigueiro, no tamanho
e nas ouças, servia-lhes de ornato duas penas de ganso que lançando
as longas ramas sobre as espáduas, espetavam-lhe na testa os bicos
rombos e cobertos com espessa crosta de tinta.

Quando sucedia escarrapachar-se a que estava de serviço ia substituir
uma tias duas de reserva nas cantoneiras, provavelmente a mais repousada;
assim revezando-se, despejavam-se as três sobre o almaço por
modo que as folhas e cadernos de papel desapareciam devorados pelo infatigável
gregotim

A parte de mais nota era a mão, que poderia servir de bitola ao palmo
craveiro, pois assentando o punho embaixo da página, alcançava-lhe
o tope com os bicos da pena encravada nos três dedos, que a apertavam
como os cientes de uma tenaz de aço. Encolhendo-se à medida
que desciam as regras tia escrita, a tal mão de tarracha só
levantava-se da banca para virar a folha com um piparote, enxumbrado da saliva,
que o dedo mínimo furtava à boca, mas com a rapidez de um tiro
de bodoque. Nestas ocasiões o beiço em constante sinalefa, desabrochava
da cesura, graciosamente estofado, como a fava de um chichá.

Era este o dono do cartório, Sebastião Ferreira Freire, tabelião
do público, judicial e notas, da cidade de São Sebastião,
morador qualificado não só pela importância do cargo,
como pelos mais predicados de sua pessoa.

Tudo ali revestia-se do aspecto poento e venerando daquele alfarrábio
vivo, encadernado em pergaminho humano. As teias de aranha desciam do teto,
formando pelas estantes festões e requififes, com recamos e debuxos
de alto bolor. O tinteiro de chumbo, com bocal de vasta dimensão, já
desaparecia por baixo do espesso coscorão da borra, que entornando
pelo rebordo, lhe mudava a forma chata em funil, onde entrava o tubo da pena
até ao meio. Cada penada destas era a conta de uma lauda com quarenta
regras, segundo o regimento.

Terminada a página, se a boceta poedeira já não tinha
areia, por havê-la consumido o monte de escrita que lá estava
sob o calhamaço, não carecia o destemido rabiscador senão
de sacudir a esguia cabeça, e caía-lhe da cabeleira pó
bastante para matar o borrão.

Esse pó era um misto indescritível em cuja composição
entrava, além da parte sutil da terra, os borrões de tinta que
se desfaziam de secos, e o esturro da enorme boceta ali posta ao lado.

De instante a instante a mão esquerda descrevia uma espécie
de rotação, com a regularidade do pêndulo de uma guíndia.
Ressaltava do bordo da mesa onde calcava com um murro o papel; caía
a prumo, fincando as costas da boceta na banca, e abrindo a tampa com a unha
mestra do polegar, tirava uma pitada tabelioa, que é mais do que doutoral,
pitada de três dedos.

Assim carregada com aquela dose formidável de esturro, a respeitável
trempe subia direita ao nariz, para abarrotar as ventas que fungavam com estrepitoso
ronco. Então, formando chave, os três dedos penteavam a trunfa
do chinó, e beliscando rápidos a ponta da língua que
o fungo nasal espremia na boquinha, esfregavam as pontas para arredondar a
clássica bolota, que voava pelos ares com um piparote da unha mestra.

Em todo este tempo desde que a mão esquerda saía de sua posição
habitual até de novo armar-se, em forma de soco, no bordo da mesa,
a pena não cessava de esgrimir sobre o papel.

IV

PORQUE O SEBASTIAO FREIRE NÃO FECHAVA MAIS OS OLHOS PARA FAZER
O SINAL PÚBLICO

Cada dia que Deus dava, invariavelmente às oito horas de inverno e
sete de verão, escanhoado, almoçado e tabaqueado, sentava-se
o Sebastião Freire à carteira, e desunhava-se em borrar papel
até meio-dia.

À última badalada das doze trocava a banca de escrita pelo
bufete onde o esperava o jantar. Terminado este, deitava-se em um catre de
couro de veado, que tinha na varanda, e aí fazia o quilo, dormindo
a sua sesta.

Despertava da sonata com tal exatidão, que se o relógio da
torre do Mosteiro de São Bento, o regulador do horário da cidade
naquele tempo, se desconsertasse, não seria preciso tomar-se a meridiana;
porque a cabeça pontuda do tabelião espirrava da almofada infalivelmente
no momento em que a sombra do ponteiro caía sobre as duas.

Voltava então à banca, e esgrimia de pena até que se
fizesse noite na casa do cartório, o que sucedia meia hora mais cedo
do que na rua, por causa dos grandes armários que interceptavam a luz.

Concluída a tarefa do dia, com desencargo de consciência por
estar cumprida a obrigação, dava o Sebastião Freire sua
hora à devoção. Depois de rezar trindades, saía
pela vizinhança a, desenferrujar a língua e as pernas, que lhe
ficavam um tanto perras. Outras vezes acompanhava a dona e a filha, que iam
de visita em casa d’alguma comadre; porém mais freqüentemente
à casa da Sra. Romana, sogra do nosso tabelião, e uma das matronas
respeitáveis da cidade de São Sebastião, que as tinha
outrora de veneranda trunfa.

Esta faina diária somente se alterava nos dias de guarda, que o Sebastião
Freire como bom católico reservava ao repouso depois da missa conventual;
e nos dias de audiência, em que pela acumulação do judicial
estava ele obrigado a assistir ao despacho do ouvidor. Afora estes dias era
mais fácil desaparecer da baía o nariz do Corcovado, do que
o nariz do tabelião de cima do livro das notas.

Estirando o gregotim pelo papel, não perdia o Sebastião de
vista o cartório, e ora um, ora outro, dos olhinhos de azougue, enfrestava-se
pela aberta das cangalhas à espreita dos escreventes, que trabalhavam
na rasa, cada um em sua banca, atravancada de autos.

Era especialmente quando se preparava para pôr o sinal, que o tabelião
aproveitava para a rápida pesquisa do cartório.

O sinal, historiado e vistoso, tinha seu quê de hieróglifo;
e para o nosso homem era como um brasão de ofício ou timbre,
de que ele se desvanecia. Se lhe coubesse também alguma vez a mercê
de hábito, como a estavam dando os governadores por graça de
El-Rei, sem dúvida que as armas da família haviam de ser a cópia
do sinal público, que autenticava as escrituras lavradas nas notas.

Consistia o dito sinal em um esse gigante, que se enroscava de alto a baixo
da página. No centro dessa maiúscula via-se um feixe de riscos
sem forma com que o tabelião pretendia representar uma forja, emblema
do sobrenome Ferreira. Da extremidade inferior do esse nascia uma letra, a
qual depois de cingir a firma se enleava em iam labirinto de voltas, que figuravam
as voltas de um escapulário, símbolo do Freire.

O Sebastião Ferreira Freire tinha por timbre fazer o sinal de olhos
fechados, para mostrar quanto estava dele senhor, a ponto que mesmo dormindo,
se lhe encaixassem a pena nos dedos, seria capaz de traçá-lo
de um jacto.

Em chegando a ocasião, aprumava-se o nosso homem sobre o tamborete,
esticava o pescoço para trás, e segurando a pena a meio, verticalmente
fincava o bico no alto da página final. Nesse momento fechava os olhos,
e começava a barafunda com a rapidez da aranha a urdir o fio da sua
trama.

Depois de certo tempo, porém, uma novidade se introduzira nos hábitos
regrados do tabelião, o que em homem tão pautado e sisudo era
para admirar-se. Em vez de fechar de todo os olhos para fazer a cetraria,
apenas fingia, e pelos cantos esguichava um olhar de punção
para um ângulo do cartório, alvo de sua atenção
suspicaz.

Na betesga ou escaninho que formavam ali dois panos de prateleiras, havia
uma banca estreita, a única desafroatada das tulhas de autos e bacamartes,
e sobre a qual escrevia um rapaz de vinte anos.

Pelos modos conhecia-se que era aprendiz do ofício e tratava de ajeitar-se
para tornar-se algum dia um dos moços do tabelião, ou rato do
cartório, como dizia pitorescamente o poviléu.

O rosto fresco e rosado que salpicavam as chispas de um sorriso zombeteiro,
e a malícia não vesga ou rebuçada, mas louçã
e garrida que lhe fervilhava nos olhos travessos, essa flor de uma mocidade
isenta e viçosa, não a fanara ainda o bafio do cartório.

Ainda aquela atmosfera poenta não ressequira sua cútis, dando-lhe
o tom desbotado do almaço; nem a fadiga da vista lhe tingira de bistre
as grandes olheiras como sucedia com seus companheiros em cujo número
os havia alias de pouca mais idade.

Era justamente a ausência absoluta dessa máscara de cera que
tanto inquietava o tabelião e enchia-lhe o ânimo de suspeitas.
Aquela massa não lhe parecia da espécie de que se fazem escreventes;
muito curtida e sovada talvez não desse ainda assim para um mau carregador
de autos

– Se me sai daqui um dos tais garotos, que vivem a estropiar a escrita pira
fazer uns pedaços de regras, que lá eles lhes chamam versos?

Era esse o grande susto do tabelião, que tinha a trova em conta de
heresia e estremecia de horror com a idéia de lhe estar dentro do cartório
a trasladar-lhe autos e instrumentos, um desses endemoninhados

Uma beata de truz, em desobriga com um fradeco dengoso recendendo a pivete,
não o olharia com tamanha desconfiança, receosa de ver surgir
lhe debaixo do capuz a munheca do Tinhoso como o Sebastião Ferreira
espreitava o rapaz.

Que este não lhe entrara em casa muito de seu agrado, era cousa que
logo se percebia. Alguma razão maior houve sem dúvida que levou
o tabelião a tomar para seu cartório aquele "filhote de
cigano", como o chamava.

Não será demasia, já que estamos em cartório,
tirar as inquirições do caso.

V

COMO SE AJEITAVA UM ENJEITADO NAQUELE SÉCULO PUDICO

A sogra do nosso tabelião, a Sr.a Romana Mência, era apontada
entre as pessoas de maior devoção da cidade.

Além do terço que se rezava todas as semanas em sua casa, gostava
a devota de fazer o presépio de Natal, e suas novenas pelo correr do
ano.

Uma novena naquele tempo fazia as vezes da partida familiar em nossos dias.
Emprazavam-se umas tantas famílias do trato e conversa íntima
da Sra. Romana com o fim de festejar algum santo por tenção
especial.

Armava-se o oratório, tirava-se para a frente a imagem do santo em
cuja tenção era a novena, e durante oito dias, e à boca
da noite, rezava-se a ladainha. Afinal chegava o dia da festa, em que havia
luminárias e outras frandulagens.

Depois da reza, os velhos franceavam contando histórias do bom tempo
que não volta, e recordando as rapazias que tinham feito. As devotas
de respeito destrinçavam na vida alheia, mas sempre arrenegando dos
mexericos dos noveleiros; as meninas fingindo escutar as mães, acompanhavam
com o canto do olho os folguedos dos rapazes que saltavam no quintal, atacando
foguetes ou fazendo sortes.

Afinal vinha a ceia, forte e suculenta, como precisavam para conciliar o
sono os estômagos de nossos avoengos. Em vez do sorvete, chupava-se
o excelente ananás e a laranja, e por volta das nove horas estavam
todos recolhidos.

Uma das vizinhas da Sra. Romana Mência tinha um enjeitado, que era
estudante. Chamava-se o rapaz Ivo do Val, e fora achado uma noite à
porta da casa, onde morava então com sua família, como donzela
recatada, a Sra. Rosalinda das Neves, que veio a servir-lhe de protetora e
mãe de criação.

Boquejou-se, embuste de praguentos, que o enjeitado não era outro
senão o fruto dos amores da donzela com um alferes do terço
da infantaria, vindo do reino. O oficial prometera casamento; mas para desempenhar-se
de sua palavra honrada, esperava a licença de El-Rei, da qual aliás
não carecera para o mais que adiantara por conta da futura boda.

Assim não chegando a pedida vênia, impetrada para Lisboa, e
avultando à Rosalinda umas esperanças, que já lhe não
cabiam no justilho, enquanto lhe minguavam as outras, que dantes lhe enchiam
de abundâncias o coração, tomou a mãe da moça
as devidas cautelas para tapar a boca aos praguentos.

A moça adoeceu de ruim achaque; e ao cabo de umas tantas semanas,
lá em certa noite apareceu na soleira da porta a resmelengar, uma trouxa
que não se soube donde vinha. Disse a gente de casa que a trouxera
um rebuçado embaixo do ferragoulo, e mal ali pousou, logo deitou a
correr.

Quem isso afirmava era a velha, que estava passando o seu rosário
bem descansada, quando ouvira um grunhido na porta; e abrindo a rótula
depois dos indispensáveis exorcismos e benzimentos, logo pôs
em alvoroço a vizinhança, gritando:

– Abrenuntio! Abrenuntio!… Cruzes! Te esconjuro!

– O que é, comadre? perguntou-lhe a vizinha do lado.

– O porco sujo que me está fossando na porta, senhora!

– T’arrenego!

– E foi um maldito cigano que o trouxe! Eu bem o vi pelo buraco da rótula
quando passou cosido num couro de bode, e então deitava uma catinga
de enxofre.

– Que me conta, comadre?

– É como lhe estou dizendo.

– Espere, vizinha, que já lhe levo o meu coto bento de Jesusalém.
Se for o cão tinhoso, há de ver como espirra, por mais artes
que tenha. Aquilo é uma vela milagrosa!.

Saíram as vizinhas com os maridos, e toda a casta de relíquia
e esconjuros, e afinal conheceram que a causa do barulho era um enjeitado,
e de gente pobre, pois estava embrulhado em uma esteira velha.

No meio das exclamações de espanto e observações
das comadres, ouviu-se um risinho de mofa. Era a vizinha defronte, a Pôncia,
uma língua de lanceta, que se divertia cantarolando num falsete de
tirar couro e cabelo:

Ele sai pelo quintal,

Porém entra pela rua,

Ora, etcetra e tal;

Tudo o mais é falcatrua!

Seu alferes, al não al.

– Que é isto, vizinha, cantando a esta hora da noite?

– Ai! ai! gente; quem canta, seus males espanta.

– Enredeira do inferno! resmungou a mãe da Rosalinda.

Criou-se o menino; e chegando à idade, o mandaram à escola
aprender as humanidades, para depois lhe arranjarem algum modo de vida. O
rapaz era esperto; até demais; porém não dava para clérigo,
como dizia então o povo, dos que não mostravam aptidão
literária.

A razão desse dito é que nesse tempo a instrução
no Brasil era um privilégio das ordens regulares, especialmente dos
jesuítas. O estudante confundia-se facilmente com o minorista que se
preparava para o sacerdócio.

Ivo era assíduo no pátio do colégio, mas no tempo em
que devia prestar atenção ao mestre, distraía-se em ver
os painéis que pendiam das paredes, e as imagens das capelas. Ficava
assim horas e horas com os olhos pregados nessas figuras, como se as quisesse
embutir dentro d’alma.

Ao sair da aula, armava-se de um carvão, e lá se ia a despejar
pelos muros cio convento caretas e engrimanços de toda a sorte, pelo
que estava constantemente a levar carolo do padre-reitor, quando não
era a penitência de joelhos ou em cruz, e o jejum a pão e água.

Mas apesar de todo esse rigor, era preciso de tempos em tempos caiar as paredes
do dormitório, pois pareciam um pano de rás, com as figuras
e novidades de que as enchia o endiabrado rapaz.

Afinal, cansados os padres de aturar aquele eterno pinta-monos, e convencidos
de que era um borrador impenitente e relapso, despediram-no do pátio,
onde pouco aproveitava, pois além de ler e escrever, o mais que sabia
era de outiva, e não passava de uma tintura de cada cousa.

Assim ficou o Ivo senhor de seu tempo, para trocar as pernas pelas ruas de
São Sebastião, e riscar toda a parede que lhe caia debaixo do
carvão; donde veio chamar-lhe a gente o "Garatuja".

Com isto davam-se a perros os donos das casas, que as tinham de caiar amiúde;
mas o povo divertia-se a ver as diabruras do rapaz, como hoje em dia nos pasmatórios
da Rua do Ouvidor, aprecia as caricaturas expostas nas vidraças.

Os malignos achavam nos bonecos algumas parecenças com certos grandes
da cidade, e descobriam umas alusões aos boatos e mexericos do tempo.

VI

DESACATO QUE COMETEU IVO CONTRA AS REVERENDISSIMAS VENTAS DA COMPANHIA

É para notar que passando a Companhia de Jesus por tio solícita
em aproveitar as várias aptidões da infância, cuja instrução
tinha a seu carrego, expulsasse o Colégio de seu pátio ao rapaz
que tão decidida vocação revelava para a pintura.

Mas esse zelo e perspicácia era estimulado pelo espírito de
corporação e interesse no engrandecimento da ordem. Assim nada
o excedia quando se tratava de adquirir para o Instituto um engenho superior
ou mesmo uma aptidão artística.

Pela mesma razão, se lhes escapava a consciência do menino em
quem lobrigavam a centelha do gênio, e pressentiam nele os assomos da
independência, seu desvelo era sufocar essa alma na sua nascença,
crestá-la como ao botão de flor sem água nem sol. Assim
conseguiam muita vez um aleijão moral, que servia para beato, se não
dava para mendigo.

O Ivo cedo mostrara a ojeriza que tinha pela roupeta. Desde as primeiras
rabiscadelas, não lambuzava uma figura de raposa sem o trajo de rigor.
Os padres arrenegavam-se; o rodeiro andava constantemente de brocha em punho
para apagar aquelas artes do demo; mas ainda havia esperanças de torcer
o pepino.

Até que perdeu o reitor a paciência; e o caso não era
para menos.

Havia em São Sebastião uma velha ricaça, chamada D.
Ana Carneiro, que morava lá para as bandas da Quitanda do Marisco,
quase no canto, onde se levantou mais tarde a Igreja de São Pedro.
A Companhia andava desde muito angariando a gorda herança, quando correu
na feira a nova de que a velha fizera testamento e deixava todo o possuído
a seus colaterais.

Murchos ficaram os padres com o logro; e pode-se bem imaginar a ira fradesca
de que foram acometidos, quando ao outro dia lhes veio dar aviso um irmão,
dos de capa curta, de que na taipa da descida do Castelo para o lado do Boqueirão
da Carioca, havia um rascunho ou grotesco alusivo ao logro.

Era o Ivo que na véspera, por trindades, ao sair do pátio,
pusera o caso ao figurado. Primeiro pintara um bicho que se conhecia bem ser
um carneiro, a correr com uma velha trepada nas costas, e a cauda a abanar.
Atrás, mas logo atrás, enfiava uma pinha de narizes, de vários
tamanhos e feitios, todos a farejarem com olfato de perdigueiro o objeto que
lhes estava adiante. Cada qual desses vultos era um retrato; não havia
mais que uma roupeta e um nariz, porém tal expressão lhe dera
em dois riscos o diabrete do rapaz, que ali estava a Companhia em peso representada
pela fiel efígie de suas reverendíssimas ventas.

À vista de tamanho desacato dividiram-se os pareceres; chegou-se a
falar no Santo Ofício, e na necessidade de relaxar em carne o relapso;
também houve quem lembrasse o exorcismo e o cárcere; prevaleceu
todavia o alvitre mais prudente de abafar o negócio e evitar o escândalo.

Os jesuítas eram mestres da vida; e ninguém os excedia nessa
arte proveitosa de concertar as pancadas, "dando umas em cheio e outras
em vão", o que tornou-se hoje em dia a suma da boa política.

No fim de contas, Ivo não passava de um pobre rapaz, que deixado a
si, nada valeria, baldo como era de meios, e sem indústria para os
haver. A sua birra com os padres não vinha senão de o constrangerem
ao estudo, e do receio também de que mais tarde lhe encaixassem a roupeta
de noviço. Uma vez sobre si, e desafrontado da suspeita, não
se lembraria mais de embirrar com a Companhia.

Por outro lado, desde que perseguissem o estudante com severo castigo, não
era provável que lhe acudissem de românia como protetores, os
poderosos inimigos do Instituto? E nas mãos desses, não se tornaria
o rapaz perigoso instrumento, de cuja obra ali tinham uma tosca amostra? Estas
ponderações, fê-las o Padre Francisco Madeira, o professo
que mais voz tinha no capítulo, pelo grande fundo de saber, como pelo
tento no manejo das temporalidades. Movido por voto de tanto peso, e também
pela voga em que andava o rapazola entre o poviléu, adotou o Padre
Antônio Forte, reitor do colégio, o alvitre, e com o melhor êxito;
pois ninguém aventou a cousa que passou desapercebida.

Ficou Ivo como queria, vivendo à mangalaça pelas ruas de São
Sebastião, e nos arrebaldes, que a pouco e pouco se foram transformando
em bairros, e estão agora dentro da cidade.

Tinha naquele tempo a capital um pintor de casas, que se não era o
único, passava pelo melhor. A ele, ao Sr. Belmiro Crespo, cabe a honra
dos boscagem e frescos que talvez ainda se encontram por aí nalgum
teto de sobrado ou retábulo de igreja.

Era artífice de consciência; moía as suas tintas como
não faria um moleiro ao trigo; concertava-as na palheta com o brio
de uma doceira a anaçar gemas de ovos; e de tento na mão, traçava
na madeira, na cal ou no pano, as suas figuras, com escrúpulo de copista
e paciência de chim.

O Sr. Belmiro Crespo pintava por molde; e nesse gênero era insigne.
Mas fora daí, não havia meio de tirar dele, nem sequer uma casa,
o abecê da paisagem. Era incapaz de copiar da natureza, ainda com o
auxílio do espelho.

O nosso Ivo sentia desde muito uma atração bem natural para
a tenda do pintor, e furtava horas ao recreio para as gastar ali, de pé
na porta, a ver as grinaldas e passarinhos que o Belmiro transportava dos
recortes de papelão para os seus painéis de lona.

Agora, livre do pátio, podia fazer sua assistência na tenda
do oficial, e ali com efeito passava o melhor de seu tempo, a ajudar os vários
misteres da pintura, no que se foi tornando perito.

O Belmiro, que a princípio o tratava como um pé-rapado, começou
a acamaradar-se, logo que lhe descobriu os préstimos; e por fim tão
prendado ficou do diacho do rapaz, que o trazia nas palminhas; e muito se
rosnou pela vizinhança acerca de um pacto que o pintor havia feito
com o diabo, para este lhe servir de aprendiz em paga da alma que lhe vendeu.

Estes cochichos e dizeres vinham de uns segredos que os dois tinham entre
si, e das cachas que usavam passando horas e horas trancados, sem dúvida
a fazer bruxarias e outras maldades.

Ao mesmo tempo, aparecia grande novidade em São Sebastião.
A cansada grinalda e os pássaros com que o Belmiro invariavelmente
ornava as paredes e tetos das casas, foram substituídos por festões
de flores graciosas, e trechos de boscagens que pareciam copiados das florestas
da Carioca e Tijuca.

Dizia o Belmiro, que tardando-lhe os moldes encomendados para Lisboa, cerca
de ano, e estando os antigos já muito vistos, ele se propusera a fazer
novos, e pedia indulgência para os seus humildes esboços, filhos
só da boa-vontade.

VII

O CAIPORA QUE FOI A CAUSA DE TODA A EMBRULHADA DA EXCOMUNHÃO

Certa manhã, andava o Ivo a pautear com o nariz ao vento pelas margens
da Lagoa das Marrecas, espantando os irerês e colhendo flores para as
copiar à têmpera, lá na tenda do Belmiro.

Cobria a Lagoa das Marrecas a rechã, onde corre hoje a rua do mesmo
nome, até as fraldas dos três Outeiros do Desterro, do Carmo
e do Castelo, entre os quais se derramava como acolchoado de um divã,
cujo recosto formassem as verdes encostas das colinas.

O caminho da cidade cortava pela frente da Ermida, pequena capela da invocação
de N. S. da Ajuda, construída no lugar onde faz esquina agora a Rua
da Guarda Velha, que não passava então de um carreiro. Serpejando
pela falda do Outeiro do Carmo, na direção que ainda hoje tem
a Rua dos Barbonos, seguia pela frente do Hospício dos Barbadinhos,
e pouco adiante bifurcava-se.

Uma das voltas, cortando pelas abas do Monte do Desterro, era o caminho chamado
de Mata-Cavalos, por onde se saia da cidade para o interior. Contornando a
quinta das Mangueiras, situada em um espigão do morro, a outra volta
subia para a Carioca, encontrando à esquerda com uma vereda que descia
para a banda do Outeiro da Glória.

Estava o Ivo na encruzilhada, quando ouviu uns apitos como de sabiá
que salta de ramo em ramo, e antes que pudesse imaginar donde saíam,
apareceu-lhe em frente uma menina que vinha pelo caminho da Carioca asoquilipe,
ora sobre um, ora sobre outro pé, com os cabelos ao vento, e a saia
rocegada por causa do orvalho.

Tinha a travessa menina um rostinho de alfenim, com sobrancelhas de til,
e lábios de pincel, como não era capaz de tirá-los sobre
o marfim, em laivos de nácar, o mais delicado pintor. Embutia-se aquela
figura angélica numa como redoma que lhe formavam as ondas bastas dos
cabelos cendrados, a borbulharem em cachos dos bordos de uma pequena coifa
de seda escarlate.

Esbarrando com o Ivo, soltou a menina um grito de susto, e fazendo sem querer
uma pirueta que meteria inveja a um dançarino famoso, desandou a correr
pelo caminho em que vinha.

– Que foi, Marta? perguntou uma voz de mulher.

– Senhora mãe, um caipora!

– Ave, Maria! Minha mãe de Deus!…

– Ai, que susto! murmurava a menina estremecendo ainda como uma rola.

– Como há de ser, Sr. Sebastião Freire? Eu aí não
passo, nem que me arrastem. Então na encruzilhada!…

– Que partes são estas agora, Sra. Miquelina dos Anjos; não
parece mulher de quem é, acudiu a voz de meio bordão do nosso
Freire.

– Mas homem, se não está em mim.

– São visagens da pequena.

– Eu vi, senhor pai, acudiu Marta.

– Havia de ser algum macaco; ainda que já eles não andam por
estas paragens tornou o tabelião.

– Reparaste no pé, menina? Tinha unha de… daquele bicho?

– Isso não tinha; mas olhava para a gente com uns modos.

– Fez-te uma careta, não foi? É macaco, não tem que
ver.

– Sempre era bom esperar mais.

– Faz-se tarde, e já devíamos estar chegados. Ande daí,
mulher!

Resolveu-se afinal a Sr.a Miquelina dos Anjos a passar; mas por cautela ia
rezando à meia voz a magnificat, e ainda era preciso que o Sebastião
lhe desse uma demão, empurrando-a às guinadas com o cotovelo.

A Marta, essa ia adiante, e embora se embiocasse toda, lidando por esconder-se
dentro em si mesma a uns olhos que estava entrevendo por toda a parte e em
cada folha, contudo não mostrava lá muito medo do caipora.

Ivo, surpreso da encantadora aparição, ia persegui-la com o
pensamento já todo cheio de ninfas e dríades, quando a voz grossa
do tabelião espancou-lhe as doces ilusões, e arrojou-o da mitologia
à realidade.

Escondeu-se atrás do tronco de uma paineira, que ainda as havia nessa
altura, e espiou a passagem do tabelião que voltava com a família
de uma quinta da Carioca onde fora passar o domingo, e pousara para tornar
com a fresca da manhã, pois estavam na força do verão.

Fez-se a passagem do ponto arriscado, que era justamente a encruzilhada,
sem o menor contratempo: a viração serenara; nem um ramo farfalhou,
nem uma folha estalou no mato. Já a Miquelina respirava, quando ouviu-se
ali perto, dois passos atrás, um estrídulo, que aos ouvidos
da mulher soou como uma gargalhada de bruxo.

– O caipora! bradou ela, e disparou pelo caminho fora.

O Sebastião Freire, sarapantado e um tanto bambo das pernas, com os
olhos gázeos a saltarem desta àquela banda do caminho, lá
se foi de recuo, aos trancos, receoso de que lhe surgisse do mato algum mau
companheiro, caipora ou bicho, com que se visse abarbado.

A única pessoa da família em quem os guinchos não produziram
grande susto foi em Marta. Apesar de seu modo bisonho e tímido, bispara
ao passar o vulto do Ivo de espreita por trás da árvore; e atinou
logo com a travessura, pela simples razão de que no lugar do rapaz,
ela faria o mesmo.

Quando pois o Garatuja arremedou o conhecido regougo do macaco, conheceu
logo a pequena donde vinha a artimanha, e em vez de susto, o que teve foi
vontade de rir; mas tolheu-a o respeito aos pais, e também o acanhamento
de mostrar-se ao rapaz em correspondência de travessura com ele.

Até as abas da cidade, cujo povoado começava na Rua da Ajuda,
foram o tabelião e a sua metade em constante sobressalto por causa
do maldito macaco, que os perseguia saltando de pau em pau.

– Arrenegado bugio, gritava o Sebastião; vou deste passo encomendar-te
ao almotacé, para te filar e torcer-te o gasnete.

– E o senhor a teimar com o macaco! Quando lhe digo que é o caipora,
legítimo de Braga! Se inda agorinha lhe bispei os chifres. Não
vistes, Marta?

Ante a formal intimação. não havia titubear:

– Creio que vi!… Agora me lembro, vi mui bem!

– Não vistes nada!… berrou o tabelião perdendo a tramontana.
É forte embirrância! Declaro eu, Sebastião Ferreira Freire,
tabelião do público judicial e notas desta leal cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro por El-Rei, nosso senhor…

Aqui o nosso homem desbarretou-se com as maiores mostras de reverência.

– que Deus guarde…

Novo desbarretamento.

– … por muitos e dilatados anos, como todos havemos mister a bem do reino
e da religião católica apostólica romana, única
verdadeira…

Tomou respiração e continuou:

– Declaro que é macaco, do que dou testemunho e porto por fé,
e em prova da verdade firmo com meu público sinal…

Estacou de repente o Sebastião, e caindo em si, viu que não
estava no cartório a ler o fecho de uma escritura, mas em caminho para
a casa. Encapelou o feltro paulistano na cabeça, e deitou-se a pernadas
pela Rua da Ajuda.

Ao entrar em casa, Marta disfarçadamente volveu o rosto e viu de esguelha,
no canto, o Ivo, que a espreitava.

VIII

SUMIÇO QUE LEVOU UM CUPIDO ARMADO EM GUERRA, E ESTAMPADO EM
PERGAMINHO

Aquele encontro em diante, tornou-se o Ivo menos assíduo na tenda
do pintor.

Levava os dias agora a calcurriar a Rua do Aleixo, já atirando pedras
aos passarinhos, já perseguindo os gafanhotos na relva, ou as rãs
nas touças de bananeiras. Tudo lhe servia de pretexto para volver atrás,
passar e repassar por diante das gelosias; e fincar-se horas e horas, como
um mastro de Natal, em frente à porta do tabelião.

Tornava a casa muito contente de si, quando lograva entrever pela rótula
uma sombra que podia ser do talhe de abelha da menina Marta, como do cocó
da Sra. Miquelina, ou mesmo do gato da casa. O quer que fosse lhe dava uns
repiques no coração; e aos olhos subia uma névoa rubra,
que lhe escurecia a vista; mas nesse crepúsculo aparecia-lhe o rostinho
de prata que ele vira com sua redoma de cabelos castanhos.

Ao cabo de alguns dias gastos nessa vadiagem, sentiu Ivo o impulso irresistível
de comunicar o querido objeto de seus pensamentos e inundá-lo com as
abundâncias de seu coração.

Ivo era mecânico, para falar a linguagem coeva, pois que artista naquele
tempo servia para indicar os gramáticos e retóricos, ou os matreiros
férteis em manhas; e nada disso tinha o nosso estudante, cujo pecado
não passava de uma ponta de sarcasmo, ao demais original, pois lho
dera a natureza, e não o podia negar.

Mecânico e artífice, não por mister e necessidade de
ganhar a vida, senão por veia, tinha n’alma as primaveras floridas,
que os poetas chamam lirismos.

O céu de uns olhos límpidos havia luzido naquela existência;
e os raios que lhe infiltrara no seio, estavam abrolhando em flores e boninas,
que por força haviam de romper-lhe do coração.

O que havia ele de dizer a Marta e o como havia de falar-lhe, não
o sabia. Poetas são como as brisas, que pelo espaço vão
caladas e tristes, mas encontrando as franças das roseiras, logo desatam
em suaves arpejos.

Começou o rapaz a cismar e andou um par de dias zonzo até que
tomou-se de uma rebentinha, que parecia corrupio o estouvado, a girar de uma
banda para outra.

Arranjou como pôde um pedaço de pergaminho de Flandres, tamanho
de palmo; e depois de bem respançado, meteu-o na grade. Então,
munindo-se das cores precisas, trancou-se em casa e ei-lo a esboçar
a miniatura, em que punha toda sua arte.

Foi apalpando o branco com a laca e a sombra para fazer os encarnados,. até
que se destacou em colorido a figura esboçada de um cupido brincão
e gentil, armado em guerra, de arco e aljava. O pintor o figurava em ação
de brandir uma seta, cuja ponta embebia na luz de uma estrela radiante em
céu azul, para cravar um coração caído por terra
e já crivado por um molho delas.

Terminado o colorido e bem apalpadas as sombras e realces, quando ia passar
à iluminação, esqueceu-se que faltava-lhe pão
d’ouro para o farpão das setas, e correu à tenda do Belmiro
a pedir-lhe um tantinho dele; de caminho foi arranjando o conto que lhe havia
de fazer, para ocultar o verdadeiro fim.

De volta, achou-se em branco o nosso Ivo. Tinha-lhe desaparecido o painel,
sem deixar indícios de quem o levara. A câmara onde trabalhava
tinha uma só porta que ele tivera o cuidado de fechar à chave,
e uma janela que dava para a cerca. Era por aí sem dúvida que
entrara o larápio.

Correu ao peitoril, e só descobriu um gozo da cozinha, acocorado no
quintal em frente dele, e a olhá-lo com focinho chocarreiro, como se
estivesse aplaudindo o logro, que haviam pregado no nosso namorado, e mofando
de sua figura estatelada.

Dando com os olhos no cão teve o rapaz um pressentimento cruel. O
pergaminho, apesar do respanço e da imprimadura, no fim de contas não
passava de couro de carneiro, e todo o cachorro tem sua queda para esse despojo
animal, até mesmo quando o encontra no cisco em forma de sapato velho.

Convencido de ser o gozo quem surripiara o malfadado cupido, e talvez àquela
hora o tinha no bucho, o Ivo, com o sangue a ferver-lhe, galgou de um pulo
o batente da janela, e foi-se como um raio ao cão. Mas esse, que lhe
pressentira o ímpeto, escafedeu-se. Perseguiu-o o pintor, bem resolvido
a agarrá-lo e abrir-lhe o ventre para extrair a miniatura, de que ainda
esperava aproveitar o pergaminho. Batendo o mato e correndo o rossio da cidade
no encalço do fugitivo, consolava-o a idéia, de que o verdete
e o zarcão dariam cabo do bicho.

Lá por volta de Ave-Maria, tornou ele a casa prostrado de fadiga,
esgalgado de fome, mas sobretudo minado pelo desespero, que é a pior
das rafas, Pois esmicha a alma.

Afagar por muitos dias um pensamento; sonhar a realidade dessa inspiração;
brotá-la da imaginação, como a árvore brota a
flor; vê-la espontar, a princípio tênue gomo, depois capulho,
mais tarde já botão, e finalmente corola esplêndida, recendendo
fragrância, e vertendo as mais lindas cores!

Chegar até aí, e quando não faltava senão o último
toque, suprema carícia que o poeta e o artista não se cansam
de fazer ao seu lavor, antes de o despedir de si, ver perdida a obra querida,
o filho de sua alma, e não só perdida para ele, como para o
mundo; condenada antes de vir à luz!

Essa dor, só a imaginam os que marcou Deus com o selo da fatalidade
para fazerem de sua alma a hóstia do progresso, e darem sua vida à
comungação dos povos: são os mártires da ciência
e da arte. Ivo estava predestinado a ser um desses.

Para o mancebo, o painel era a sua primeira prenda de amor; e todavia por
maior que fosse o desgosto do namorado, sobrepujava a desconsolação
do pintor.

Ao entrar em sua casa da Rua do Cotovelo, esbarrou-se o Ivo com a Sra. Rosalina
que o esperava, inquieta por causa de sua ausência. Ao vê-lo porém,
dissipou-se o desassossego em que estava; e ficou apenas uma certa sofreguidão
alegre, porque lhe esboçava nos lábios um sorriso, a muito custo
disfarçado.

Ivo não deu por isso, aborrecido como vinha de sua vida, e ia passando
sem falar com a madrinha. Foi esta que o reteve:

– Ivo!…

Como não tivesse resposta, insistiu:

– Ivo!… Responde, gente!

– Estou ouvindo! respondeu afinal o rapaz com um modo emburrado.

– Esta noite, quero levar você a uma parte.

– Eu não vou!

– Como há de ser agora? Se prometi à Sra. Romana.

– Qual Romana? acudiu lesto o rapaz. A sogra do tabelião?

– Ela mesma, menino, sem tirar, nem por.

Ivo hesitou um momento, buscando um disfarce para voltar da primeira resolução.
Afinal saiu-se com esta:

– Como é aqui perto, eu posso ir até a porta.

– Pois sim.

E a Rosalina esfregou as mãos de contente.

IX

PROVA-SE A BOA RAZÃO QUE TEVE CAMÕES ENTRELAÇANDO
A MITOLOGIA COM O CATOLICISMO

Que era feito do painel?

Ivo teve ímpetos de pedir à madrinha novas dele; mas arrependeu-se.
Entretanto ninguém lhas podia dar tão cabais; pois fora ela
com sua mão quem o tirara do cavalete, onde o deixara o rapaz, enquanto
corria à tenda à cata do ingrediente para a iluminação.

Esta ligeireza da Rosalina carece de explicação.

De muito ruminava a antiga noiva do alferes nos modos de arranjar uma entrada
com a Sra. Romana Mência, geralmente conhecida entre os garotos da cidade
pelo expressivo apelido de matrona, que lhe valera sua muita severidade com
as fraquezas do próximo.

Ora, a crônica dos amores da Rosalina e o episódio do enjeitado,
apesar dos vinte anos decorridos, ainda estavam bem vivos na memória
da matrona; e tanto bastou para que se baldassem todas as investidas da mãe
do Ivo.

Mas não desacoroçoou a Rosalina; e cada vez mais se ocupou
do modo de insinuar-se na casa da Romana. Carecia disso, não só
para satisfação de seu amor-próprio ofendido, como para
ajeitar a proteção de tão boa madrinha em favor do seu
Ivo.

A Sra. Romana Mência era sogra do tabelião, e este bem podia
admitir no seu cartório o rapaz, encarreirando-o em sua profissão,
das melhores naquela época; pois era nos cartórios e nos conventos
que se formavam então os homens para o manejo dos negócios da
república; da mesma forma que hoje se fazem os estadistas nas tricas
das secretarias, e nas alicantinas e rabulices do foro.

Na ocasião em que Ivo, fechando a porta da câmara, espirrou
pelo corredor como um foguete à busca da tenda, a mãe que o
viu tão pressuroso quanto refolhado, teve uns assomos de saber o que
estava fazendo o rapaz. Empurrou a porta e achou-a fechada. Mais se lhe acendeu
a curiosidade; rodeando pelo quintal bispou da janela o painel, que estava
bem à mostra no meio do aposento.

Ai!… exclamou alvoroçada. Que Menino Jesus tão lindo, Senhor
Deus!… De repente entrou-a um pensamento, que a pôs em faísca.
Lembrara-lhe que a Romana Mência era uma devota, como não havia
outra, perdida por tudo quanto era santo e cousa de beatice.

Recobrando a sua agilidade, do tempo do alferes, quando tantas vezes saltara
essa mesma janela para ir-lhe ao encontro na cerca, por trás da atafona,
a Rosalina com algum esforço conseguiu apoderar-se do painel, e cosendo-se
com ele dentro da mantilha acatassolada, deitou-se de um fôlego para
a casa da matrona.

Esta não se achava só, mas concertando com a nora e mais a
Engrácia, uma das vizinhas, a novena daquela noite. Vendo entrar pela
casa, e sem licença, a Rosalina, as duas se admiraram; mas a velha
inquizilou-se ao sério.

Quem a chamou cá, mulher?

– Com perdão de Vossa Mercê, Sra. Romana, pela confiança
de entrar assim na casa alheia, sem pedir licença; mas como é
para bem!…

– Isso é que está por ver, que seja para bem, redargüiu
a voz fanhosa da velha.

– Ai! era preciso que não fosse devota do Menino Jesus!

– A que vem isso agora?

– É ou não é?

– Se doutro modo não se vai e me deixa descansada, digo-lhe, senhora
abelhuda, que sou e torno a ser. Agora musque-se!

– Pois então, exclamou a Rosalina, desenrolando a mantilha com ar
de triunfo, recreie esses olhos em sua benta imagem.

Com um gesto patético apresentou o painel.

A Miquelina e a Engrácia caíram logo em êxtase diante
da pintura; mas a velha desconfiada e prevenida levou algum tempo a firmar
a vista, e compenetrar-se bem do que olhava. Então não se pôde
conter e, pondo as mãos, entrou por sua vez em adoração.

Passado aquele primeiro enlevo contemplativo, cobraram as três a fala,
e com a Rosalina fizeram um perfeito quarteto de tagarelice.

– Onde achou este retábulo, mulher? perguntou Romana.

– Foi o Ivo, o meu enjeitadinho que pintou! respondeu a Rosalina cheia de
si

– Que me diz? Pois ele é capaz!

– Oh! tem uma habilidade, que é cousa por maior; o Belmiro não
pode com ele.

– Há de trazê-lo cá. Em o vendo, logo conheço
se é verdade.

– A senhora pode experimentar.

– Deixe estar que ninguém me logra.

A esse tempo travara-se entre a Miquelina e a Engrácia renhida disputa
a respeito do painel.

– Mas, senhora, dizia a Miquelina, está-me catucando cá dentro
que este não é o Menino Jesus!

– Quem há de ser então? O Arcanjo São Miguel?

– Também não. Quem diz que este painel é de devoção?
A mim está-me parecendo pintura de pouca vergonha!

– Jesus! Que blasfêmia! Pois não está vendo as asas de
querubim?

– Mas este coração aqui, assim todo crivado, como almofada
de renda? Aqui há tafularia, senhora.

– O coração… Mas é para significar as tribulações
que a gente passa antes de ganhar o céu. Estes são os espinhos…

– Espinhos não, são setas, e bem setas.

– Vem dar na mesma.

– Eu cá, não sei o que tenho; mas era capaz de jurar que isto
não passa de bruxaria.

– Qual, senhora! Pois eu não vi o Ivo quando estava copiando do próprio
que tem nos seus divinos braços a Virgem Santíssima dos Carmelitas?

A Rosalina tivera essa idéia, quando pela primeira vez deu com o painel.
não podendo compreender que o filho tirasse da fantasia, sem auxílio
de cópia, o lindo vulto do Menino Jesus. Não duvidou pois dar
como visto, o que fora apenas imaginado.

– Que é pintura de devoção logo se vê, observou
a velha Romana. Se não fosse, não punha o menino assim nuzinho,
sem malícia nenhuma, o inocente! Nessas pinturas desavergonhadas, não
vêem como eles escondem as patifarias, que nem parecem?

Esta razão era sem réplica; à vista dela ficou assentado
que o painel representava o Menino Jesus; e a Sra. Romana o colocou sobre
uma toalha no trumó, mandando logo recado ao seu capelão e confessor,
um frade capucho, para vir benzê-lo.

Foi aí que o viu o Ivo, ao entrar em casa da Romana, na alheta da
Rosalina, que o puxava pela aba do gibão com receio de que lhe escapasse.

E não era sem razão; pois o rapaz, ao transpor a soleira, estava
como que cheio de espavento, e quisera achar-se a léguas daí.

X

DO ALVOROÇO QUE PRODUZIU UM GRILO NA NOITE DA NOVENA

Havia novena essa noite.

Já as devotas começavam a chegar; e lá estava o tabelião
com a família. Foi o Ivo recebido com muitos agasalhos pela velha Romana
e todo o mulherio, que estava em contemplação diante da pintura.
Atarantou-se o rapaz, e não sabia como atar-se, quando felizmente deu
o tirador da ladainha sinal para começar a novena.

Colocou-se o rapaz de modo que pudesse espiar o rostinho de Marta, oculto
sob o capuz da mantilha, que ela de propósito conservava sobre a cabeça
para melhor recolher-se no seu pudor, como a corola da flor que cerra com
o raio do sol.

Bem vontade tinha a menina de lançar de esguelha e a furto uma olhadela
para ver como rezava o rapaz; não se animando, vingava-se em contemplar
o improvisado Menino Jesus, como se o quisesse comer com a vista.

Notou a Sra. Romana que a neta várias vezes errara as palavras da
reza; com o que teve algum desconsolo, pois seu maior desejo era fazer de
Marta uma devota insigne, digna de receber a herança de seu oratório,
de suas imagens, relíquias e todo o mais beatério.

Terminada a novena, os velhos sentaram-se na calçada, sobre o tijolo,
com exceção do tabelião e algum outro também qualificado,
para quem vieram cadeiras de couro. Rolou a prática sobre as novas
do reino trazidas pela última frota, e afinal, depois de tocar em outros
vários temas, veio a cair na mudança da única matriz
que possuía então a nascente cidade, da Igreja de São
Sebastião do Castelo, onde a tinham colocado desde a primitiva fundação,
para a igreja de São José, de recente fábrica, e apenas
acabada.

Foi este para nossos dignos antepassados negócio da maior monta, ou
como agora se diria, a "grande questão". Não abalaria
tanto os ânimos hoje em dia a mudança da corte para as cabeceiras
do São Francisco, onde há muito devera estar, como naqueles
tempos afonsinhos a mudança da sede paroquial da freguesia de São
Sebastião do Rio de Janeiro.

Se já existira imprensa, com a sua gíria moderna, que rajadas
de eloqüência tribunícia não haviam de aparecer a
propósito? E como andaria em bolandas a opinião pública,
essa bonita peteca dos jornalistas?

No estrado do oratório, corrida a cortina de crepe sobre o altar e
as imagens, sentaram-se as devotas para a costumada prática. Bisbilhotou-se
a vida do próximo; contaram-se histórias de almas do outro mundo
ou casos de bruxos e lobisomens. Tudo isto, a um tempo, em contínua
tagarelice, cada uma escutando e palrando do mesmo passo.

E não se fala de uns cochichos que se perdiam no rumor da prática
animada. Esses eram de lábios frescos e rosados, donde se escapavam
a medo, envoltos em um suspiro ou na reticência do pudor.

Quanto aos rapazes, saltavam no quintal, ao clarão da fogueira, impacientes
pela hora da ceia.

– Querem ver como eu tiro já as velhas do estrado para a mesa? Esperem
vocês, disse Ivo aos companheiros.

O diabrete do rapaz ouvira cantar um grilo ali perto, e foi-lhe à
cata. No lugar onde o apanhou havia um pé de perpétuas, das
quais escolheu a mais aveludada. Acercando-se então da porta que ficava
próximo ao estrado, atirou certeiro a flor no regaço de Marta,
que pensou morrer de susto.

– O que é? disseram as outras.

– Caiu uma cousa!

– Não sei! respondeu Marta sacudindo o vestido.

Não apareceu a perpétua que estava bem fechada na mão
direita donde passou disfarçadamente para o seio. O Ivo se escondera
logo depois de atirar a flor, mas a menina o vira de relance.

A infatigável curiosidade feminina procurava ainda o objeto caído
no colo de Marta, quando ouviu-se novo estrépito, e alguma cousa bateu
na cabeça de uma devota. Mas em vez de ficar-se como a outra, descansada
e quieta, começou a dar pulos tontos.

Foi uma debandada. Dispersou-se o mulherio como por encanto, no meio de guinchos
e faniquitos. Esta desgrenhava o cabelo cuidando que o trasgo, pois era um
com certeza, lhe ficara preso ao toucado. Aquela sacudia as saias, examinando-as
por dentro e por fora. Essa outra embiocava-se, para examinar no seio, se
por acaso não se enamorara a larva dos dois jenipapos.

Ao grande espalhafato acudiu o tabelião, apunhando a enorme boceta
de tabaco, à guisa de pelouro, na carência de outra arma ofensiva.
Os outros velhuscos da roda, qual mais destemido, o acompanhavam, este com
um pedaço de tijolo, aquele com um tamanco velho.

Dos primeiros a acudir, se não o primeiro, foi o Ivo, e em tão
boa hora que amparou sem querer o corpinho trêmulo de Marta, quando
ela ia cair; mas apenas a apertou nos seus braços, que a desmaiada
logo ficou de todo restabelecida, e fugiu-lhe como uma sombra.

A causa de toda a balbúrdia fora o grilo, que tão a ponto lançara
o Ivo na roda das mulheres, e quando contava-se a história de uma borboleta
preta, que chupava sangue à gente, e não era outra senão
uma velha bruxa.

Como previra Ivo, deu o susto em resultado apressar a ceia, visto que se
tinham desmanchado as rodas, e não havia que fazer àquela hora
para entreter o resto do tempo.

Depois da ceia, e antes de recolher-se com a família, escapuliu M4arta
de perto da mãe, e foi ao quintal colher uma perpétua para deixá-la
sobre o trumó, aos pés do Menino Jesus.

Nesse entretanto o tabelião, sempre grave, compassado e sacramental,
como um instrumento em devida forma, chamava de parte a dona de casa.

– Sra. Romana, minha respeitável sogra, poderá dizer-me quem
é este rapazola que vi hoje aqui pela primeira vez?

– É o sobrinho da Rosalina.

– A do alferes? perguntou o tabelião vincando a testa.

– Fale mais baixo, Sr. Sebastião, que ela pode ouvir!

– Vistos os autos, a referida está aqui?

– Que tem isso agora? Por que andaram a fazer enredos da pobre? E não
passa da Pôncia, aquela linguazinha de…

– Pois, Sra. Romana, minha respeitável sogra, urge que ponha cobro
a isso, porquanto, se a supradita e mais o bonifrate do filho, que a espertalhona
alapardou em sobrinho, se meterem aqui, nem sua filha e minha mulher, nem
a sua neta, filha minha e da sua também supradita filha, tornarão
a pôr os pés em casa onde se agasalha gente descomedida, que…

– Ora, Sr. Sebastião, guarde seu palavreado lá para a rabulice.
A Rosalina há de vir com o filho e o senhor também com a Miquelina
e a Marta!

– A senhora teima? perguntou o tabelião em tom sacramental.

– Teima é a sua de engrimar-se com a coitada da mulher, que não
lhe fez mal nenhum.

– Escandaliza os bons costumes; e bem vê que sendo eu um oficial do
público, judicial e notas, não posso tolerar…

– E que remédio tem o senhor?

– Não me afronte, Sra. Romana, senão… senão…

Fez o Sebastião uma reticência tabelioa, prenhe de solenes ameaças.

A velha, porém, fincara as mãos nos quadris; e surdindo por
baixo do nariz do tabelião, perguntou-lhe em ar de desafio:

– Senão, o quê?

– Senão eu me recolho ao silêncio! respondeu o tabelião
com dignidade.

– É o melhor que pode fazer.

XI

NO FIM DE CONTAS EI-LO O RATO DENTRO DO QUEIJO

Não eram passados oito dias depois da novena, quando pela volta das
sete horas da manhã, apareceu a Sra. Romana Mência em casa do
genro.

Acabava precisamente o Sebastião Ferreira a, sua refeição
matinal, e esgravatava metodicamente a dentuça com uma pena de galo,
esperando que pingassem as sete para encaminhar-se ao cartório.

D. Miquelina e a filha, sentadas ao lado direito da mesa, não tinham
concluído a reza, em que o tabelião, como de costume, se despachava
mais depressa que elas.

– Deus esteja nesta casa! disse a velha entrando.

– E os anjos a acompanhem, senhora mãe!

– Amém! disse Marta.

– Muito bem aparecida, Sra. Romana!

– Onde a gente é querida, sempre há de ser bem aparecida.

Não deixou o tabelião de reparar na visita da sogra àquelas
horas canônicas do trabalho; mas foi quando notou o desempeno da velha,
com a mantilha passada por baixo do braço direito, e a venta arregaçada,
que o Sebastião Freire agourou mal daquela vinda tão fora de
vila e termo.

Avisando como homem prudente em evitar a tormenta, fungou os restos da pitada,
que estivera a rolar em bolota nos dedos, e foi-se esgueirando para ganhar
o. cartório. Mas atalhou-lhe o passo a matrona, com ar decidido de
quem traz negócio de monta.

– Temos que falar, senhor meu genro.

– São horas de abrir o cartório; bem sabe, primeiro a obrigação,
depois a devoção.

– Pode abrir seu cartório. Quem lhe impede? Se é mesmo por
ele que venho.

– Pelo meu cartório, Sra. Romana Mência!…

Soltando esta exclamação foi tal o pasmo do tabelião,
que inteiriçando-se-lhe o vulto já tão esguio, tomou
a figura de um ponto de admiração. O oficial das justiças
d’El-Rei não compreendia que ingerência poderia ter uma mulher,
fosse ela sua sogra, em tão grave assunto.

– Pelo cartório, ou cousa que lhe pertence, que eu desta barafunda
não pesco.

– Por certo que não é para mulheres entenderem com o serviço
da república; muito fazem elas já em tanger o fuso e a roca,
que algumas nem de remendar a roupa da casa se lhe dão.

– Está bom, isso é lá com a Miquelina. Com ela se avenha,
que eu em brigas de marido e mulher não me meto. Só lhe digo
que não fui eu quem lha meti a casa, mas o senhor quem andou arrastando-lhe
a asa, cerca de dois anos, como namorado sem ventura, até que afinal
por diligências do D. Abade de São Bento..

– Ora pois deixemos estas histórias velhas, senhora, e vamos sem mais
detença ao que a trouxe, que o tempo perdido não se recupera.

– Encontra-se o desejo com a boa vontade; nem para outra cousa estou eu aqui
há um poder de tempo, e o senhor a dar à taramela.

– Sra. Romana, não se exceda. Isto não são modos de
se falar a um tabelião do público, judicial e notas por El-Rei,
que Deus guarde muitos e dilatadíssimos anos.

– Amém, e a todos nós para o servir e respeitar. Quer então
saber a que vim?

O Sebastião Ferreira, temendo que uma resposta vocal provocasse novos
ricochetes da velha, concentrou-se desta vez em um aceno compassado, abanando
com a cabeça do alto a baixo.

– Pois eu lhe digo. O senhor há de precisar de um escrevente ou copista
para o cartório.

– Não há tal… ia dizendo o Sebastião.

– E eu tenho um papafina para lhe dar. É o Ivo.

Espetou-se no cume da ponta da cabeça a ruiva cabeleira do tabelião;
os olhos esbugalharam-se; e a voz soçobrou-lhe no esôfago com
a concussão que sofrera todo o indivíduo.

– O da Rosalina? gaguejou o homem.

– Esse mesmo, sem tirar nem pôr! retorquiu a matrona sem voltar pé
atrás.

– Com a devida vênia, a senhora não está em seu juízo;
minha sogra, desembuchou afinal o tabelião.

– Tão são tivesse o senhor o miolo, que já me está
cheirando a mandioca puba!…

– Sabe acaso a senhora, o que seja um cartório? Pois aqui lho digo:
é o depósito da paz e honra das famílias, em cujas notas
se guardam os títulos de seus haveres, e os segredos de suas casas.
Não será muito chamá-lo o tombo da cidade, pois que aí
se vão lavrando e autuando todos os sucessos da república, ainda
os menos importantes. E para um mister de tamanha ponderação,
há de se admitir aí qualquer valdevinos…

– Apre lá! Não me esteja a estrelicar os ouvidos com suas cantigas.
O rapaz há de dar um bom copista. Ande lá! Tem uma letra chibante!…

– Tire semelhante idéia da cabeça, senhora. E com sua licença!…

– Não se ponha comigo nestes pontos, Sr. Sebastião. Olhe, depois
não se arrependa! intimou a velha, mostrando-lhe a unha do polegar,
que espetava o indicador com frenesi.

Já a meio da porta o Sebastião parou perplexo. As palavras
da sogra davam-lhe que pensar; e não era a primeira vez, que melhor
avisado, ele tinha mudado de parecer diante daquela ameaça da velha.

Boquejavam pela cidade que a Romana Mência tinha uma bota de potro
inteiriça, que fora de seu defunto marido, cheia de meias doblas e
patacos em prata; a qual, segundo os noveleiros, estava enterrada por baixo
do oratório da casa.

Se fora essa bota o talismã que prendera o Sebastião aos encantos
da Miquelina, não reza a crônica; mas que era ela o condão
com que a velha amansava o turrão do genro, e lhe abaixava a grimpa
no meio de seus frenesis, nisso maldavam os murmuradores, quando ao cair da
tarde, na Ribeira do Peixe, tomando a fresca e assistindo à chegada
das canoas dos pescadores tasquinhavam na vida alheia.

Verdade ou não, o caso é que o tabelião já a
meio da porta, parou atado, e esteve um instante a considerar no meio de tirar-se
da embrechada. A Romana, que esperava pela volta, disfarçou.

– Enfim não havemos de brigar por causa disto, disse afinal o Sebastião
virando-se.

– É como queira; eu cá danço segundo me tocam, replicou
a velha.

– Vou pensar sobre o caso, e depois falaremos.

– Está bem aviado! Ainda vai pensar? Pois eu cá não
sou de sanxa e marranxa; já pensei e repensei. Basta que trouxe o rapaz
comigo, para duma feita deixá-lo no cartório. E por sinal que
há de estar bem cansado de esperar, o coitado, feito pé de muro,
aí defronte da casa.

– Então a senhora já contava com a cousa?… perguntou o Sebastião
sentindo revoltar-se a sua dignidade de homem e de tabelião.

– Pois eu podia capacitar-me de que o senhor rejeitasse um tão bom
achado?… Olhe, que o rapaz escreve que é mesmo um debuxo.

O tabelião sacudiu os ombros desdenhosamente.

– Mande-mo cá, senhora, que eu lhe tirarei os pontos.

Sumiu-se o Sebastião pelo corredor, em demanda do cartório,
onde em pouco foi achá-lo a Sra. Romana, que levava o nosso Ivo à
sirga, tirado pela aba do gibão.

XII

DO PRIMEIRO TRASLADO QUE O IVO TIROU NO CARTORIO

Demorou-se a matrona. Empurrando o rapaz à frente do genro, disse-lhe:

– Aí o tem; há de ser preciso tosá-lo seu tanto, que
está muito peludo.

E voltando sobre os pés, foi-se a Sra. Romana à sua obrigação.

– Peludo!… resmoneou o tabelião entre dentes; quando eu o acho delambido
demais! Todavia hei de pô-lo a jeito.

Esticou-se o Sebastião no tamborete, equilibrando o gancho dos óculos
em cima do beque, abriu a boceta com um estalo sonoro, e sorvida em cada venta
a pitada mestra com um estrépito solene, dirigiu a palavra ao Ivo,
que o estava espreitando através do acanhamento de se ver metido naquela
arriosca.

– Com que então, moço, você quer ser da obrigação
deste cartório?

– Se for do gosto de Vossa Mercê; que eu estou pronto a ser não
só da obrigação, mas também da devoção.

– Como se entende isto?…

– Saberá Vossa Mercê que isto subentende-se.

– Fale-me raso e chão, moço; que eu não sou homem de
remoques.

– Com perdão de Vossa Mercê eu queria dizer que hei de esforçar,
não só pela vontade de ganhar, senão pelo gosto de o
servir.

O tabelião fungou o resto da pitada, arregaçando as ventas;
o que nele equivalia a interjeição de suspeita e desconfiança.

– As falas não são más, resta ver as obras.

Metendo uma costaneira de papel entre o índice e o máximo da
mão esquerda, com a direita escolheu na pilha de bacamartes que tinha
ao lado um volume.

– Tire-me o traslado desta escritura, disse o Sebastião Ferreira abrindo
o volume no lugar onde estava marcado com uma tira de couro.

– É para copiar palavra por palavra? perguntou o Ivo, que não
sabia o que era traslado.

– E sem faltar uma vírgula.

– Em que letra quer Vossa Mercê que eu copie? Em letra redonda, cursiva,
grifa, itálica ou bastarda?

– Hem! hem! fez o tabelião; embasbacado com aquela nomendatura. Nada,
moço; aqui não se querem dessas artes e novidades; que são
boas para copistas de pergaminho. Escreva-me letra de mão e bem corrida,
como está aí nas notas.

Ajoelhou-se o Ivo do outro lado da mesa, e sacando do bolso o seu tinteiro
de chifre e a pena de ganso bem aparada, preparou-se a tirar o traslado do
bacamarte reclinado diante dele sobre um enorme cunhete de jacarandá.
Tinha o rapaz a maior confiança no seu bonito talhe de letra e esperava
sair-se bem das provas; mas surgiu-lhe um embaraço com o qual não
contava, e que o fez descoroçoar da, empresa.

Era a escrita do Sebastião Ferreira a mais tabelioa que se pode imaginar;
dificilmente conseguiam os velhos escreventes meter-lhe o dente. Uma linha
tremida estendendo-se horizontalmente, e com umas pontas que lhe saíam
para cima e para baixo, tal era o aspecto desse gregotim indecifrável.

Debruçado sobre o bacamarte, o Ivo concentrava todos os esforços
para destrinçar aquele texto emaranhado, e já lhe corria o suor
pela testa abaixo, sem que tivesse conseguido soletrar duas palavras.

Extenuado, reconhecendo a impossibilidade de penetrar jamais o sentido daquele
hieróglifo, assentou o rapaz dar de mão à empresa, e
voltou-se para o tabelião na intenção de comunicar-lhe
a resolução em que estava. Mas o Sebastião Pereira, de
todo entregue ao desempenho do ofício, não dava fé, nem
do que ia pelo cartório, nem mesmo da presença do Ivo, ali,
a dois passos dele.

Ficou pois o rapaz com os olhos pregados no tabelião, acompanhando-lhe
a pena que ringia sobre o papel e à espera da primeira pausa, para
encartar a sua despedida. No mais atento de sua observação estremeceu
de susto.

Na porta a que dava costas o tabelião, se abrira uma fresta por onde
enfiou o olhar curioso de um cantinho apenas dos mais lindos olhos castanhos,
que dar-se podem. Se não fosse a volta da testa de marfim que aparecia
no batente da porta, o rapaz não se teria apercebido da aparição.

Esqueceu o Ivo tudo, o cartório onde estava, o tabelião e mais
o seu gregotim, para espreitar aquele cantinho de olho que o espiava pela
fresta da porta. Era ele capaz de jurar que a dona do olhar de maliciosa se
estava rindo dos apertos em que o via.

Com receio de que o surpreendesse o Sebastião no mais doce de seu
enlevo, arranjou-se de novo o Ivo em posição de escrever, puxou
à frente o grosso in-fólio para lhe servir de baluarte contra
os óculos do tabelião, e assentou no alto do papel, segundo
as regras caligráficas, a mão pronta a lançar o rasgo
da primeira letra no mais asseado bastardo.

Mas sentiu certas cócegas nas pontas dos dedos, e sem saber como,
achou-se a fazer a bico de pena a cópia fiel daquela fresta da porta,
onde aparecia o céu de uma testa de marfim, e um olhar que era a estrela
do tal céu.

Bem percebeu Marta pelos modos, que o moço lhe estava. tirando as
feições; e escondeu-se de vergonhosa, mas para voltar logo depois,
descobrindo um pouquito mais do rosto. Disfarçava a sonsa, fingindo-se
atenta para outro ponto da sala, e a descuido mostrava o lindo perfil; até
que de repente sumia-se, como se então somente descobrisse o Ivo a
observá-la.

Não obstante as negaças da menina, traçara o rapaz o
seu desenho, e aproveitando uma vez em que Marta se mostrava mais, a contemplava
com olhos de amante e artista, para dar os últimos toques à
figura.

No mais absorto, assustou-o certo ruído cavernoso, semelhante ao ornejo
de um jumento, e que não era senão o estrépito da pitada
do Sebastião Ferreira, ecoando pelas cavernas ou fossas nasais. Achou-se
então o rapaz em face do carão descarnado e impassível
do tabelião, que lhe estava observando o pasmo.

– Que faz você aí embasbacado, moço? perguntou o tabelião.

Teve o Ivo um estremeção, que ia dando em terra com o bacamarte.
Felizmente segurou-o a tempo, quando ele escorregava pela aba da mesa.

– Estava à espera do senhor tabelião, respondeu Ivo aproveitando
a primeira desculpa que lhe acudiu.

– À minha espera!… Não está má!

– Pois não é Vossa Mercê que dita?

– Ditar o que, moço, se já lhe apontei aí a escritura…

– Ah! é para copiar deste livro?…

– Então, moço! E avie-se, que isso de lesmas, não servem
cá para escreventes. Quer-se sujeito despachado!

Receoso de ser recambiado do cartório, arranjou-se o Ivo para dar
conta da tarefa, e outra vez com a pena embutida nos três dedos, abriu
o corte da primeira maiúscula. Mas aí estava a dificuldade.
Que letra lançaria ele se não conseguira destrinçar ainda
as rabiscas do tabelião?

Relanceou para a porta um olhar de desespero; mas já a fresta se havia
cerrado, e não viu ali para consolá-lo em sua aflição
nem sequer o olhar à sorrelfa, que poucos momentos antes o viera desinquietar.
Com o espirro paterno, Marta fugira espavorida.

Nestas estreitas sentiu o rapaz no peito do gibão o amarrotar de um
papel; e indagando da novidade, descobriu que era uma folha de almaço
a sair do bacamarte, e justamente pelo verso da maldita escritura que estava
condenado a copiar sem entender.

Examinando o manuscrito, pareceu-lhe pelo jeito, ser um traslado da tal abstrusa
escritura, começado a tirar por algum escrevente do cartório.
Sem mais e à ventura, pôs mãos à obra, e com pouco
estendeu sobre o papel todo o traslado em um bastardinho bem lançado
e do mais lindo talho.

Levantou-se o rapaz, e por cima da mesa apresentou a cópia ao tabelião,
mas vendo que este não se distraía lá da sua tarefa,
meteu-lha por diante do nariz.

– Hem!… Então já acabou, moço?

– Veja o senhor tabelião!

– Está bom; já se vai desasnando! Ora vejamos lá isso!

Fincou bem os óculos no cavalete, encrespou o sobrolho sobre a testa,
enfiou a carranca, e empinando-se no tamborete, esticou a folha de papel aberta
a dois palmos do nariz.

Imediatamente a cara tabelioa decompôs-se toda, e embrulhou-se numa
careta displicente, como uma bexiga assoprada, quando lhe falta o ar e se
enruga.

O Ivo ficou frio.

– Sempre arranha no ofício; mas olhe, moço, esta letra casquilha
e delambida pode servir lá para iluminações e grifarias;
cá no foro não se admitem estas desenvolturas. Está entendendo?…
Quer-se um talhe de letra corrida, e que seja composta e sisuda como se requer
nas cousas de justiça. Uma escrita à-toa como esta, que aí
todo o gato e sapato pode ler sem titubear, não vai bem nuns autos.
Isto de papel forense, nem todos lhe metem o dente; é preciso ter prática.
Faça-me uma letra pelo molde tia minha, e vamos bem. É deixar
correr a pena!

Ouviu o Ivo com espanto esta lição de caligrafia forense, e
revoltado nele o sentimento do belo, ia protestar, quando pareceu-lhe que
de novo entreabria-se a fresta da porta, e tanto bastou para dar-lhe a força
de conter-se. Não eram aqueles gregotins, que o obrigavam a fazer e
a decifrar, os elos que o prendiam à casa de Marta?

No dia seguinte tomou o Ivo conta da mesa de cedro em que o encontramos.
Ficava-lhe a dois passos a mesa de um outro escrevente, de nome Sabino, moço
como ele, e que não se conformava com a presença desse intruso,
pois vinha disputar-lhe o lugar de calouro do cartório, que ele até
ali ocupara sem rival.

Tinha o Sabino vinte anos, e como esses vermes que se formam no coco, e tomam-lhe
a feição e o gosto, parecia o rapaz um feto concebido e criado
no cartório. Borrado de tinta e poento como uns autos, a cútis
era de almaço amarrotado, os beiços arregaçados como
as beiras do protocolo, e a cabeça arrepiada que nem as abas de baeta
preta que desciam da mesa.

Quando se dirigia a seu canto, percebeu Ivo o olhar com que o examinava o
colega, e conheceu que ia ter nele um amolador. Felizmente dividia-os um pano
de prateleira, que interceptaria a espionagem.

XIII

UMA EDIÇÃO ANTIGA DO PRELADO MODERNO

Ao tempo destes acontecimentos, cuja importância talvez escape ao leitor
L’ indiferente, que não perscruta os arcanos da história, nem
se ocupa do encadeamento dos fatos, ainda a leal cidade de São Sebastião
não tinha bispo, e muito menos capelão-mor.

Mas por isso não deixava o povo fluminense de ser menos religioso,
do que é hoje em dia; nem também de grassar pela recente colônia
essa lepra social, que chamam com a maior propriedade de "lazarismo",
e que vai cada vez mais carcomendo a consciência da grande cidade imperial.

Era então administrada a igreja fluminense por uma simples prelazia
criada desde 1557 por breve de Gregório III; e no ano de 1659 ocupava
esse cargo o Doutor Manuel de Sousa e Almada, presbítero do hábito
de São Pedro.

Nomeado por provisão de 12 de dezembro de 1655, tomara posse em julho
de 1659, e sem apresentar o seu titulo de nomeação entrou a
exercer a jurisdição eclesiástica na diocese, com aquele
escândalo do abuso, que tão bem aclimatou-se cá na terra.

Era o Doutor Almada um padre às direitas. De mediana estatura e bem
apessoado, envergava a batina e os hábitos talares com uns modestos
ademanes que dão o cunho à elegância eclesiástica.
Também não havia quem no altar fizesse com tanta graça
uma genuflexão, nem suspendesse o sagrado cálice.

Doce e mansueto, sempre envolto em uma cordura que o vestia como sobrepeliz,
o canônico doutor nunca se alterava. Assim deixou lama de sua grande
habilidade e prudência, do que se encontra notícia no almanaque
histórico do Rio de Janeiro, interessante crônica de Duarte Nunes,
tenente de bombeiros desta capital no fim do século passado. Felizmente
ainda não havia a praga das gazetas; do contrário com a labutação
de escrever notícias de incêndios, em louvor próprio,
não teria o homem folga para esmerilhar antigualhas.

Voltando ao nosso doutor, havia quem dissesse que, sob aquele bioco de alfenim
que lhe açucarava o risonho semblante, dormia uma cólera fradesca,
terrível em suas explosões; e tanto mais para temer quando,
receosa do escândalo, ela subtraia-se a todas as vistas para estrebuchar
em segredo, escondendo os seus esgares.

Destes acessos, parece que lhe ficava uma raiva fria e cruel, que ele embainhava
no coração. Era como a brasa de ferro que se bate na forja,
e da qual se tira a lâmina fina e buída do estilete.

A verdade é que o novo prelado da igreja fluminense, no seu fervor
de curar do rebanho e granjear o amor de suas ovelhas, se houve por modo que
anos depois os cariocas, já bastante edificados por suas virtudes,
assestaram-lhe contra a casa uma peça de artilharia, devidamente escorvada,
com a mecha acesa, e calculada para dar tempo aos autores da graça
de se porem ao fresco.

Isso corre por conta do tenente de bombeiros, que não nos diz se do
tiro resultou incêndio, nem se antes deste declarado já tinha
ele comparecido. Apenas sabemos que o canônico doutor escapou da entrosga,
e como lhe cheirasse a cousa a chamusco, foi tratando de passar-se a Portugal,
privando assim esta ingrata cidade do espetáculo de suas virtudes.

Apenas mitrado, isto é, empossado da mitra que lhe conferiu o breve
do Santo Padre, deu o Doutor Almada a amostra do pano de que era feita a sua
batina.

Refogado na soberba que o clero opunha naquele século ainda à
decadência de sua antiga primazia, imbuído nas falsas doutrinas
consagradas pela bula da ceia, o Doutor Almada, como em geral os sacerdotes
daquele tempo e muito mais os prelados, julgava-se revestido de um poder superior
a toda autoridade temporal, qualquer que fosse a sua jerarquia.

Recebendo do rei a graça e mercê de sua nomeação,
entendia que, uma vez provido, escapava à mesma jurisdição
da qual lhe provinha o cargo; e não só isso, mas que lhe competia
incontestável proeminência e censura sobre a coroa e seus ministros
para defesa da religião católica,

O prelado fluminense, e como ele os mais, acreditava-se ingenuamente revestido
de autoridade para excomungar qualquer ministro secular, e até o próprio
rei, se o embaraçasse no exercício de sua jurisdição
eclesiástica. É verdade que nem por sombras se lembrara ele
de jamais desembainhar o seu gládio espiritual e afrontar-se com a
própria coroa, contentando-se em arranhar-lhe o braço secular
na pessoa de seus ministros. Tinha o clero de então a manha que dura
ainda hoje, na igreja e no estado, de amaciar a cabeça com toda a espécie
de bajulação, para devorar o corpo.

Foi a mudança da Sé o ponto que o novo prelado escolheu para
exibir-se, e mostrar a suas ovelhas o pulso com que tangia o cajado apostólico.

A cidade de São Sebastião, que então era simplesmente
"leal", pois não havia ainda praticado o insigne heroísmo
de receber D. João VI e a sua corte de validos: a futura capital do
reino unido e depois, do grande império, formava naquela época
uma só freguesia, cuja matriz era a velha Igreja de São Sebastião,
do orago da cidade e de sua primitiva fundação.

Situada no cimo do Morro do Castelo, onde o seu esqueleto ainda em pé
campeia sobre a baia, e onde assentou-se a primitiva povoação,
a Igreja de São Sebastião, símbolo da expulsão
dos franceses e conquista da terra, tinha para o povo fluminense um caráter
legendário. Aí estavam, naqueles muros, arquivadas as primeiras
e gloriosas tradições da sua cidade. Esse templo fora como o
berço da religião para a nascente colônia.

Mas contra esse generoso sentimento do povo surgiu como sempre sucede, o
fermento do egoísmo que subleva a camada superior da sociedade. Com
o incremento natural da população, foi a cidade descendo das
encostas da colina e estendendo-se pelas várzeas que a rodeavam, sobretudo
pela orla da praia que cinge o regaço mais abrigado da formosa baía,
e corre em face à Ilha das Cobras.

Aí, fronteiro ao ancoradouro dos navios, com o fomento do comércio,
se ergueram as tercenas e os cais, onde não tardaram a agrupar-se em
volta das casas das alfândegas e dos contos as lojas e armazéns
dos mercadores. Após essas, embora já mais arredadas da beira-mar,
vinham as outras classes trazidas pelo desejo de estarem mais próximas
ao centro do povoado, onde é mais ativo o tráfego.

À medida que a cidade abandonava as alturas para se espraiar na planície,
a Matriz ia ficando longe para os moradores do bairro mais povoado. As ladeiras
do Castelo, principalmente a do Beco do Cotovelo, primam no íngreme
da rampa, talhadas como foram pelo molde das escadinhas e ziguezagues de Lisboa
e Porto. Galgar uma subida dessas, em horas de soalheira, e na força
do verão, é uma estafa capaz de arrefecer a mais sincera devoção.

Solitária no alto do morro hist&oacoacute;rico, em face dos bastiões
aluídos do antigo castelo roqueiro; já isolada das residências
do governador e ministros de El-Rei, outrora grupadas em torno dela, começou
a velha Sé a ser desdenhada. Com exceção dos carolas
e das beatas, a quem não faziam mossa nem o sol, nem a chuva, os fiéis
buscavam de preferência para seus atos de devoção algum
templo mais próximo; e só iam à Matriz nas festas da
municipalidade ou para atos paroquiais.

Com a sagração da Igreja de São José, que se
acabara de construir, foi a velha Sé despojada de sua proeminência
política; pois o Senado, por sugestão do governador e a empenho
dos principais moradores, começou a celebrar "as festas do Estado",
como então se chamavam as nacionais, em o novo templo. que ficava na
melhor posição.

Então caiu a Matriz em completo abandono e desleixo, não conservando
de sua primazia, como casa paroquial. mais do que um nome vão. Ao próprio
domingo já não concorriam fiéis à missa paroquial;
corriam os banhos e liam-se as excomunhões, para as paredes, que não
havia na igreja viva alma. As festas da Páscoa e do Natal, únicas
entre as anuais, que ainda ali celebravam-se, para terem quem as assistisse,
levava o vigário a sua negralhada. que o acompanhava mal contente por
se ver privada de ir ao Colégio dos Padres ou a São Bento, onde
havia. outra pompa.

Estavam as cousas neste ponto, quando empunhou o báculo o Doutor Almada;
e visto por ele e examinado o caso, resolveu logo mudar a Sé para a
ermida do patriarca São José.

Mal constou a determinação, assanharam-se os homens da governança,
despeitados com o prelado pela arrogância com que este dispunha em negócio
de tanta monta e tão do interesse do povo, sem ouvir seus procuradores
e conselheiros.

XIV

ONDE SE MOSTRA QUE SE OS POVOS SERVEM DE INSTRUMENTO, TAMBÉM
OS REIS SERVEM AS VEZES DE PRETEXTO

Ninguém mais do que o ilustríssimo Senado desejava a transferência
da Sé, que em grande parte promovera, retirando da Igreja de São
Sebastião os assentos dos camaristas. Se não a levara avante,
fora pelo receio de desagradar a El-Rei, obrando em negócio que excedia
a sua alçada. Agora, porém, o caso mudava de figura; e cumpria-lhe
zelar na manutenção de seus privilégios, menoscabados
pelo prelado.

Preparados de antemão os bandos de sequazes, que usurpam o nome do
povo, convocou-se sessão extraordinária para assentar no que
mais convinha; e aí, em presença do governador, ouvidor-geral,
provedor e oficiais da Câmara, levantou-se Francisco Pires Chaves, procurador
do Conselho, para representar contra a mudança que à sua notícia
chegara. E depois de bem exposto o caso, concluiu por este teor:

– ‘Basta que São Sebastião é o divino Padroeiro, por
cuja proteção se tomou a cidade, obrando nessa empresa façanhas
e milagres, que os antigos experimentaram sensivelmente por sinais visíveis,
e os presentes veneram por tradição viva na memória do
povo. Essa eficaz proteção ainda agora a logramos, assim nas
matérias de guerra, ficando esta cidade somente livre dos inimigos
que invadiram todas as praças do Brasil; como também no tocante
à saúde, livrando-nos de peste e contágio, como cada
um por si tem testemunhado.

"E porque, mudada a fábrica da Igreja do Santo Padroeiro para
outra de orago diverso, como se intenta fazer, altamente perde-se a primeira
instituição paroquial, e o primeiro ser e nascimento da igreja
fluminense; acrescendo o receio em que ficariam os moradores de que, diminuída
a devoção que sempre lhe tiveram, e tarada à cidade a
invocação de seu nome, se dispensasse o nosso Santo Padroeiro,
que sempre o foi, de acudir-nos em nossas necessidades; por isso e mais razões
óbvias e naturais, requeiro em nome do povo, e na presença das
suas autoridades se resolva no melhor parecer, para que o glorioso São
Sebastião não perca o seu título de Padroeiro de sua
igreja e paróquia, que tem desde o nascimento da cidade. E nestes termos
receberei Justiça e mercê."

Ouvidos os pareceres e tomados os votos que sem discrepância adotaram
as razões deduzidas pelo procurador do Conselho, assentou-se em câmara
que ficasse o negócio da Matriz no mesmo estado em que até então
se havia conservado, enquanto se esperava que Sua Majestade, atendendo ao
que se lhe havia avisado sobre a matéria, decidisse como fosse a bem
do povo; e desta determinação mandou-se dar comunicação
ao prelado.

Bufou o Doutor Almada ao ler a carta que lhe enviara o Senado nesse mesmo
dia 3 de agosto, e enxergou nela um atentado contra a sua jurisdição.
Não viu que pelo direito do padroado, à coroa exclusivamente
competia destinar o lugar do culto, e nem admira tal cegueira em um prelado
do século XVII, quando do mesmo, se não pior achaque, padecem
os bispos de hoje.

No dia seguinte "desembainhando as armas espirituais", como disse
o Senado a El-Rei, o imperioso prelado despediu contra a ilustríssima
Câmara uma bomba eclesiástica de formidável calibre. Avalie-se
da força do projétil por esta intimativa: "Agora lhes digo,
que se em três dias que lhes dou pelas três canônicas admoestações
que começarão da entrega desta, não revogam o assento
que fizeram, os hei de declarar aos que se acham assinados na sua carta por
incorridos na excomunhão da bula da ceia, e do mesmo modo hei de declarar
a qualquer pessoa que nesta matéria fizer qualquer impedimento direta
ou indiretamente. E por esta os notifico a Vossas Mercês para dita declaração."

A essa bomba não admira que respondesse o povo anos depois com o tal
canhão que embocaram à porta do prelado; e se em vez de uma,
os gaiatos carregassem a peça com três balas, não fariam
mais nem menos do que praticou o Doutor Almada com as três canônicas
admoestações.

Hoje em dia talvez muita gente ignore o que é excomunhão. Não
foi assim naqueles tempos de prisca fé, quando bastava a palavra para
fazer arrepios, e com razão, que era bem má graça ficar
a gente como pesteado, de quem todos fogem, e a vagar por este mundo como
um refugo do inferno, à espera de que o leve o demo, ou se lhe cosa
na pele.

Por isso não deve surpreender que arrefecesse um tanto o entusiasmo
do Senado pela defensão do padroado real, em pró do qual aliás
não duvidariam os camaristas "pôr suas cabeças",
como disseram na carta de 6 de novembro a Afonso VI. Responderam ao prelado
protestando que no acórdão tomado nunca fora seu intento encontrar
a jurisdição eclesiástica, senão só acudir
à sua obrigação, por ser a Sé igreja do padroado
d’El-Rei, para que em tempo nenhum se lhe pudesse dar em culpa, e argüir
de pouco zelosos no serviço do dito Senhor; pelo que esperavam que
não continuasse com a censura notificada.

Interpôs o governador seus bons ofícios, e afagada a soberba
do prelado com o tom submisso do Senado, condescendeu este em suspender a
excomunhão intimada, até resolução de El-Rei,
a quem se dirigiram as duas partes, pela frota de novembro, a primeira que
partiu depois desta ocorrência.

Reza a crônica que no intuito de justificar a sua determinação
de mudar a Sé, afirmava o Doutor Almada que a Igreja de São
Sebastião estava em mato, sendo preciso que o vigário lhe abrisse
caminho para o trânsito dos fiéis nas festas e procissões.
Não faltava à verdade o reverendo; apenas omitia uma circunstância
bem insignificante: que o mato era de malvas, bredos e grama.

Assim terminou o conflito entre a mitra e o Senado; ou antes, sopitou-se
para rebentar pouco depois, e com maior violência, como veremos.

XV

UTILIDADE QUE UM NAMORADO PODE TIRAR DOS RIVAIS E DOS PINTOS

À rua da Quitanda, nome que lhe viera da banca de marisco, já
então mudada para a Praia do Peixe, foi morar o reverendo Doutor Almada,
numa casa próxima ao canto da Rua do Ouvidor, e fronteira ao quintal
do tabelião.

Construída ao gosto do tempo, de regulares dimensões, o que
se via mais notável na tal casa era uma grande pitombeira que havia
na cerca, onde servia de regalo à vista pela beleza de sua copa frondosa,
e de refrigério à calma pela fresca sombra que derramava no
horto.

Era costume naquele tempo, mais do que hoje, de acompanharem-se as dignidades
da igreja de não pequeno número de fâmulos, de ordinário
mancebos que na qualidade de minoristas cursavam as aulas e se preparavam
para tomar as ordens maiores. Formavam essas famílias eclesiásticas
pequenos seminários, que se não eram de profanidades, como dizia
um célebre pregador, não estavam isentos delas.

Entre os fâmulos do nosso prelado, e primeiro dos minoristas, contava-se
um sobrinho, Cláudio de nome, endiabrado rapaz, que fazia-as todas
e dava sota e bastos ao mais arteiro dos garotos da cidade.

As horas de folga e os dias de sueto, passava-os aquela rapazia trepada na
pitombeira, comendo fruta e desinquietando as vizinhas, a quem atiravam as
cascas e perseguiam de galhofas. De todas, porém, as mais expostas
às chácaras dos minoristas eram a Miquelina, mulher do tabelião,
e sua filha Marta, por ficarem defronte.

Das grimpas da árvore, ocultos pela folhagem, devassavam os rapazes
não só todo o quintal, como a varanda de jantar, e os quartos
do outão. Não punham mãe e filha o pé na cerca,
nem passavam por perto das janelas, que não fossem alvo dos remoques
e chacotas dos brejeiros.

Advertido o Sebastião do desaforo, uma vez saiu à varanda com
a sua mais grave compostura tabelioa; e em voz de audiência, fanhosa
e estridente, intimou aos rapazes que se comedissem. A resposta foi uma tremenda
surriada e um granizo de caroços de pitomba, que bombardeou a respeitável
penca do Sebastião Ferreira.

Vendo em grave risco, não somente a integridade de sua pessoa, como
a dignidade de seu caráter público, o tabelião bateu
em retirada, e abrigou-se por detrás de uma pilastra da varanda.

Com os escreventes acudira o Ivo, que aproveitara a ocasião de avistar-se
mais de perto com Marta, e atirar-lhe um segredinho ao passar por alguma porta
entreaberta. À vista do desacato que sofrera o Sebastião, correu
o rapaz a ele:

– Deixe-os estar, senhor tabelião, que amanhã virei munido
de meu bodoque, e então lhes faremos as contas. Hão de ver o
que é mais rijo, se as suas pitombas, ou os meus carolos de barro.

Ficou o tabelião um instante perplexo, e como saboreando o antegosto
daquela desforra que lhe oferecia o escrevente; mas ao cabo, resolveu não
consentir na travessura do rapaz.

– Nada de vias de fato, moço, que não condizem com um oficial
de Justiça de El-Rei. Estou que eles com a ceboleta que lhes dei se
aquietarão; e quando não, irei então às vias judiciais,
e terão de haver-se comigo.

Longe de se aquietarem, redobraram os minorenses as diabruras, e tão
apoquentadas se viram a Miquelina e a filha, que todo o santo dia viviam encerradas
na sala de frente, para escaparem às chançonas dos formigões.
Não tardou porém que desconfiassem do couto, e então
levavam a espiar pela rótula, atirando bouquinhas e escritinhos pelas
frestas.

Quando se tornavam por demais insuportáveis, a senhora Miquelina mandava
pela filha chamar o tabelião, o qual tomando a competente pitada, sobraçava
o seu espadim de cerimônia, encaixava na cabeça o enorme tricórnio,
e saía fora flanqueado dos escreventes armados de réguas, cunhetes
e cabos de vassouras. Com a aparição daquele piquete, desaparecia
o bando dos minorenses, que se ocultava no canto da casa, à espera
de vez para outra investida.

A princípio mordia-se o Ivo com a maganeira dos minorenses; porém
mais tarde, cogitando melhor, se consolou da perseguição que
faziam à moça, pelas ocasiões que lhe davam de vê-la
no cartório, quando ia ao pai com recado da senhora Miquelina.

Além dessas rápidas entrevistas, arranjara o Ivo um meio engenhoso
de comunicar-se inocentemente com Marta.

Tinham as casas antigas uma particularidade, de que nunca me deram cabal
explicação. Havia nas portas interiores junto ao solo, uma pequena
aberta em meia-lua, de palmo de altura. Se era para não impedir ao
bichano a caça dos ratos; se para dar a estes passagem franca, evitando
que roessem a tábua ou esburacassem o soalho, é ponto este de
arqueologia que ainda não foi decidido, e espera a profunda investigação
dos que desenterraram os ossos de Estácio de Sá.

O certo é que na porta da serventia interior do cartório havia
um rombo daqueles; e que uma galinha com a sua ninhada de pintos, abusando
da liberdade, que as donas de casa costumam deixar nesse período interessante
da criação, todas as manhãs se introduzia no santuário
forense; e faltando com o respeito devido à veneranda poeira daquela
arca, levava a ciscá-la por baixo das mesas e prateleiras.

Foi essa visita uma fortuna para o Ivo, que sentia a sua jovial mocidade
sufocada pelo silêncio espesso e polvorento daquela atmosfera de alfarrábios.
Desde o primeiro dia em que apareceu-lhe a ninhada no cartório, buscou
ele entrar na privança e ganhar a amizade daquela família galinácea.
Mas a poedeira mostrou-se arisca, lembrada sem dúvida dos pontapés
que lhe disparavam o tabelião e seus escreventes, quando ela passava-lhes
por baixo da mesa.

Mudaram essas disposições logo ao outro dia, pelo cuidado que
teve o rapaz de levar no bolso do gibão uma broa seca de milho, a qual
lhe servia não só para ir merendando enquanto copiava, mas também
para familiarizar-se com a ninhada, espalhando as migas, que ela vinha comer
a seus pés.

A cabo de uma semana estavam íntimos, a ponto que em toda confiança
deixava a galinha ao Ivo apanhar-lhe algum dos pintainhos, e alisar-lhe a
penugem dourada. Então levou o rapaz de casa certo papelinho, onde
havia pintado um coração com asas que voava pelos ares, como
se fora um pombinho, e que era de súbito trespassado por uma seta cruel.

Esse papelinho feito em rolo e atado com um fio de seda cor-de-rosa, guardara-o
ó rapaz no peito da véstia com todo o resguardo porque nem o
perdesse, nem o amarrotasse.

Na volta do meio-dia, vinda que foi a ninhada ao cheiro da broa, apanhou
o Ivo um dos pintainhos, e pondo-lhe no pescoço à guisa de colar
o papelinho enrolado, guardou-o na gaveta, tendo o cuidado de o regalar de
migas, para evitar que piasse muito forte e avisasse o tabelião.

Não tardou que assomasse à porta o rostinho de camafeu da Marta,
que vinha a recado da mãe, por causa das perseguições
dos rapazes do prelado. Como os olhos da menina, embora com disfarce, de curiosos
que eram, todas as vezes se enfrestavam pelo vão dos armários,
viram o pintainho, que lhes mostrava o Ivo, e mais a redoma de papel que tinha
ao pescoço.

Se ela entendeu a mímica, não se sabe; mas no dia seguinte
quando a ninhada beliscava-lhe os pés impacientes pelos farelos da
broa, notou o brejeiro do escrevente que um dos pintainhos tinha uma crista
artificial. Era nada menos que uma perpétua branca, na qual contra
todas as noções da botânica, achou o nosso namorado um
perfume suavíssimo.

Desde então se estabeleceu por aquele novo correio uma correspondência
inocente e pitoresca; pois de urna parte escreviam as pinturas e da outra
as flores.

É preciso advertir que apesar da esperteza do Ivo, não passavam
de todo desapercebidas do Sabino estas artes.

XVI

PERIGO DE METER UMA FRANGA NO POLEIRO, QUANDO NÃO SE TEM O
COSTUME DE LIDAR COM A CRIAÇÃO

Cedo veio uma manhã, fatal manhã, que dissipou os fagueiros
sonhos do nosso Ivo, e anuviou-lhe os dias prazenteiros, ali fruídos
naquele soturno aposento, que lhe fora um seio de Abraão.

E todavia raiava o sol brilhante, e o céu ria-se de tão azul
e transparente. Os passarinhos chilreavam entre os ramos das árvores,
meneadas pela fresca brisa do mar, que já começava a soprar;
e o escrevente, de coração farto e espírito folgazão,
esforçava-se com ardor e prazer no trabalho, para adiantar o cumprimento
da obrigação, de modo a distrair uns momentos, os mais felizes
da sua vida, quando pingasse meio-dia da torre de São Bento.

Ainda faltava cerca de meia hora; mas a galinha, ou porque esse dia se expedisse
nas suas correrias, ou porque se fosse cada vez mais amorando ao lugar, apresentou-se
com a ninhada. Recebeu o rapaz com o costumado alvoroto, que logo cedeu a
grande desconsolo; pois desta vez não traziam os pintainhos a prenda
a que se acostumara o nosso namorado.

Já se sabe que não ganharam as migas da broa; além de
parecer-lhe justo castigar a pouca diligência do mensageiro que vinha
debalde, entendia o rapaz que era o modo de escorraçar dali a ninhada,
e fazer que a menina reparasse o seu esquecimento, se não era antes
alguma pirracinha.

Piavam os pintos e cacarejava a galinha, a espicaçarem-lhe as pernas,
e ele a enxotá-las com a ponta do pé e a régua; donde
tal ruído se levantou, que já era um escândalo naquele
soturno asilo da murmuração forense. Felizmente o Sebastião
Ferreira, quando se embrenhava em um alfarrábio, não dava pelo
que ia cá fora.

Nessa conjuntura soou pelo cartório um "zute", ao qual levantaram
os escreventes a cabeça de supetão para fitarem o vulto do tabelião.
Este segurando na mão esquerda um auto, com a direita erguida e espetado
para o Ivo o indicador, três vezes fechou em croque e abriu a formidável
falange.

De pronto acudiu o rapaz ao chamado, acercando-se da mesa grande.

– Um edital por este teor e forma! disse o tabelião com o laconismo
do costume.

Mas a galinha e sua ninhada não deixavam de atormentar o Ivo à
gana das migas de broa; e faziam tal matinada e cacarejo por baixo da mesa
e entre as pernas do Sebastião Ferreira, que deu ele enfim pelo atrevimento
dessa profanação de seu cartório transformado em terreiro
de criação.

– Enxote-me esta cambada, moço! gritou o velho escriba.

Fê-lo o Ivo, mas debalde, que a ninhada lhe voltava no encalço:

– É teimar em vão, já agora tomou esta manha.

– Feche a porta que já não tornam.

– E o buraco? retorquiu o Ivo apontando para o rombo. O remédio é
prendê-la no galinheiro.

– Pois prenda-a, e não me atormentem.

Isto, disse o Sebastião ao Ivo e à galinha conjuntamente.

Lesto, como o galgo que aventou a caça, tangeu o rapaz diante de si
a ninhada pelo corredor a fora em busca do quintal, com o ouvido alerta e
olhar à espreita na esperança de lobrigar de longe a filha do
tabelião. Mas não viu sombra da linda imagem que trazia n’alma.

Encaminhou-se pois ao galinheiro, bem desconsolado de sua vida; e lá
deixou, com a ninhada, a esperança de receber naquele dia a lembrança
do costume. Ao voltar tropicou com a fraqueza e tremor que lhe deu das pernas.

E não era para menos. Encontrara-se rosto a rosto com a Marta, que
ali estava diante dele, palpitante, como um passarinho sob o olhar do gavião,
e fechada em seu enleio, como a flor que abrocha em botão, com o temporal.

Tinha a menina cingida ao seio pelo braço esquerdo uma franga de penas
mui alvas, que a brancura de sua tez escurecia. Andava triste aquela diva
do poleiro, talvez pelo seu estado interessante, pois achava-se no primeiro
choco. Daí vinham os desvelos de Marta, que depois de a tratar, ia
levá-la ao galinheiro.

Com o susto que sentiu a rapariga dando com o Ivo em frente a si, escorregou-lhe
do braço a franguinha que, passado o primeiro instante de atordoamento,
disparou a correr. Após ela partiu Marta, e no encalço de ambos
Ivo, que se não fez esperar.

Começaram então as corridas e reviravoltas, de que se lembra
com saudades quem em menino se divertiu a apanhar uma galinha no terreiro
da casa paterna. E os logros que pregava a maldita, e as quedas que se davam
no brusco torcer do corpo, e as boas gargalhadas com que se adubava a travessura?

No meio do pega que ia pelo quintal, não sei como foi, que os dons
em vez de apanharem a franga, se agarraram a si. Um maldoso era capaz de cuidar
que se tinham abraçado.

– Ai! gritou Marta, soltando-se da cadeia que a prendia.

Trêmulo, o rapaz não teve ânimo, nem forças de
retê-la; e ficou palerma, a olhar, balbuciando em voz sumida:

– Não foi por querer!…

– É capaz de me pegar?… acudiu Marta com petulância, acenando
uma corrida. Nem nada!

– Quer ver?

E o Ivo disparou atrás da menina uma nova corrida, que depois de muitas
negaças e risadas, veio como a primeira acabar em abraço.

Desta vez, naturalmente pelo cansaço, deixaram-se ficar os namorados
como estavam, arrimados a uma latada de maracujás, juntinhos e entrelaçados
pela cintura.

Ápage! Que tremenda algazarra soou de repente na copa da pitombeira
Onde já estavam encarapitados o Cláudio e seus companheiros.

– Está bonito!

– Ai! que desejos!

– Mais outro!

– Bem apertadinho!…

– Agora uma beijoca!

– Ora, sem cerimônia!

– Sô malandro!…

– E o velho tonto que não dá pela maroteira!…

– Pato choco!

– Quiá! Quiá! Quiá!…

– Abraça, abraça, que da pele te há de sair!

– Gostas, hem? Pois hei de dar-te um bem apertado, mas é de embira!…

– Ora vejam que patola!

– Bigorrilhas!

– Desavergonhado!

Esta saraiva de chutas e ditérios misturada de caroços de pitomba,
não veio aos esguichos, o que talvez se induza das falas assim apanhadas.
Foi uma vaia e caiu de roldão sobre os dous míseros namorados,
como o fracassar de um raio que os fulminasse.

Marta, criando-lhe asas o pejo, sumiu-se no interior da casa. Quanto ao Ivo,
seu primeiro ímpeto foi afrontar a récua dos minoristas, e expugná-los
a pedra. Mas lembrou-se do tabelião, e esfriou; embiocando-se no gibão
e esgueirando-se pela cerca, pôde ganhar o corredor.

– Que ficou a cheirar lá por dentro, moço? gritou-lhe o tabelião
ao vê-lo entrar.

– Saberá Vossa Mercê que… Sim, senhor, que… a franga deitou
a correr, e foi preciso apanhá-la!…

– Apanhar… apanhar… repetiu o Freire arremedando o Ivo com o seu mais
esganiçado falsete. Apanhar precisava você na cabeça,
mas era um carolo desta régua.

– Alto lá, Senhor Sebastião, que os truques não foram
do ajuste.

– Não me respingue, hem!

Ainda uma vez sofreou o rapaz o seu ímpeto, lembrando-se de Marta
cujo piso sutil lhe parecera ouvir do lado da porta.

XVII

PROGNÓSTICO TIRADO POR UM TABELIÃO DA ASCENSÃO
OU GRAVITAÇÃO DO NARIZ DE SEU ESCREVENTE

Sentado à mesa de cedro, no meio da furna de prateleiras e autos,
o Ivo jurou a si mesmo recuperar o tempo vadio, dando conta com a maior presteza
da tarefa do edital.

Mas se o corpo ali estava em face da folha de almaço estendida sobre
mesa, o espírito lá andava-lhe a correr pelo quintal, fazendo
estrepolias por causa da franga, e escondendo-se em um seio palpitante, coberto
por um justilho pérfido.

No meio destas cismas, deu o Sebastião Ferreira um tremendo espirro
que arrancou o escrevente ao seu enlevo, e o pôs de pena armada, pronta
a acometer a abstrusa gíria do edital. Por uma coincidência que
mostra quanto é verdade haverem dias caiporas, ou nefastos, como lhe
chamaram os romanos, sucedeu que no alto do manuscrito campeava uma letra
maiúscula, de golpe bastardo, e essa letra era um M.

Possuído de um repentino fervor, começou Ivo a talhar no ar
com o bico da pena os contornos da letra, que afinal se desenhou no papel
com um traço finíssimo, como se faz no primeiro esboço
da pintura. Satisfeito de sua obra, ficou a contemplá-la com certo
enlevo.

Era aquela a inicial do nome querido; e pois não admira que aí
se viessem agrupar as doces reminiscências e os fagueiros pensamentos
que lhe ei> chiam a alma, ainda mais naquela hora tão próxima
do primeiro abraço.

Todas estas abundâncias do coração namorado se derramavam
no papel, sobre aquele M adorado, mas pelos bicos da pena em cetrarias ou
arabescos de toda a sorte e nos mais delicados lavores de paisagens. Aqui,
em um dintorno da letra, eram pombinhos arrulando beijos; ali, pelos travados
e ligamentos, anjinhos a brincar esvoaçando entre as flores, colibris
beliscando as frutas, e por toda a parte emblemas de amor, como corações
agrilhoados, molhos de setas, e cupidinhos vendados.

Tudo isto, ia o rapaz penejando sobre o papel com extrema rapidez, e no fogo
da inspiração. Passada porém a primeira efusão,
depois que verteu a flor de sua imaginação, no desejo de variar
os ornatos e compor novas figuras para as cetras e tabões, entrou a
banzar.

Nesse ponto, rondando o cartório com um olhar de esguelha, como era
seu costume, o Sebastião Ferreira descobriu o Ivo na postura de um
cismático, imóvel, com os cotovelos fincados na mesa, a cabeça
presa entre as mãos espalmadas e os olhos pasmados para o teto.

– Hum! fez o tabelião sorvendo uma pitada.

Na sua mocidade gostava o Freire de caçar, e tinha seus galgos e perdigueiros.
Dai veio achar ele certa analogia entre um escrevente de cartório e
um cão de caça. Ensinara-lhe a experiência que o nariz
do bom escrevente deve sempre cheirar o papel, como a venta dó bom
podengo farisca o chão. Escrevente que anda com o nariz ao vento, perdeu
o rumo, e não há que fiar nele.

Em vista desta regra cinegética aplicada ao tabelionato, o Sebastião
Ferreira ergueu-se devagarinho e rodeando por detrás das estantes,
na ponta dos pés, achegou-se ao Ivo pelas costas; mas recuou espavorido
quando viu o grande M historiado que borrava toda a folha de papel destinada
a um edital!

Horrível profanação! Escândalo inaudito, e que
podia danar um cartório sempre conceituado entre os mais graves! Fazer
de um papel forense uma borradela cheia. de poucas-vergonhas! Sem dúvida
que era uma inconcebível enormidade, de memória de homem nunca
vista.

Atarascado pela indignação, que o impava como a um velho odre,
o tabelião bem quis pregar no atrevido a mais tremenda descalçadeira,
que é possível imaginar; mas a raiva apertava-lhe o gasnete,
e com violento esforço apenas esguichou uma palavra, que levou a rilhar
entre os dentes, de tão cerrados que estavam os queixos.

– Birrrrr… bante!…

Essa cascata de erres despenhou-se como um cesto de cacaréus por escada
abaixo, e estrondou na sílaba final.

Não teve o Ivo tempo de voltar a si do susto, pois travando-o pela
gola do gibão, o Freire levou-o de arrastão até a porta
da entrada, e empurrou-o na rua. Depois do que pela janela varejou o chapéu,
o tinteiro de chifre, e tudo o mais quanto pertencia ao perverso rapaz.

Restava a folha de papel onde se estavam desvergonhadamente derrengando os
horríveis penejados. Mas o Freire não se animou a tocar nessa
obscenidade:

– Suma-me daqui esta pouca-vergonha! intimou ao mais velho dos escreventes.
Reduza-a a pó que não fique sinal.

Limpo assim o cartório da praga que o infestara, voltou o tabelião
ao seu tamborete, mas não à ocupação, que estava
ainda muito cheio do desaforo para cuidar em outra cousa. Contudo não
esbravejava; apenas resmungava entre si umas cousas que se não entendiam;
e lá de vez em quando assentava uma reguada no próximo bacamarte,
e acompanhava-a de uma exclamação neste gosto:

– Marau!…

Ou senão:

– Excomungado!…

Foi assim que em um momento viu-se o Ivo transportado dos jardins esplêndidos
de seus castelos encantados para o olho da Rua do Aleixo, onde ainda se achava
atordoado com o que lhe acontecera.

Mas não era ele rapaz que sucumbisse com um contratempo. Deitou-se
a andar para a casa e em pouco voltou armado de um bodoque. Saltando a cerca
do tabelião, na esperança de rever Marta e falar-lhe, o estouvado
rapaz consolou-se de sua desventura, fuzilando o Cláudio e sua récua
com bolotas de barro e coquinhos da praia, de que trazia os bolsos atopetados.

Os minoristas ainda lá estavam na pitômbeira, à espreita
de Marta, para a atormentarem com as costumadas pilhérias e requebros.
Assaltados de repente pela metralhada do bodoque, tentaram afrontá-la
despejando sobre o Ivo um balde de ameaças e insultos; como, porém,
a réplica lhes vinha em carolos que doíam, e já lhes
começavam a pular os galos na cabeça e os vergões nas
costas, tramaram afinal descer para escovar o pêlo ao atrevido, o que
percebido pelo assaltante, inspirou-lhe o prudente arbítrio de se pôr
fora do alcance da tal súcia de malandros!

XVII

DA PESCA FAMOSA QUE FEZ O IVO NOS BAGRES QUE LHE PERSEGUIAM A PIABINHA

Enquanto, como o rato no miolo do queijo, o Ivo cocava a menina de seus olhos
dentro da própria casa, as impertinências e filostrias dos minorenses,
se por um lado faziam-lhe certas cócegas, por outro não deixavam
de trazer-lhe seu proveito.

Não era esse atrevimento dos rapazes que fazia a Senhora Miquelina
mandar a Marta com recado ao pai a fim de vir pôr cobro a tais demasias,
e que portanto lhe dava a ele, Ivo, o contentamento de ver a moça e
gozar-se de seu meigo sorriso?

Uma vez porém despedido da casa, e por modo tão duro, imagine-se
a gana que tinha o ex-escrevente aos minorenses, sobretudo com a lembrança
da vaia que lhe tinham passado e à Marta. Além de que, era o
Cláudio um rapaz bem apessoado; e portanto ao enjeitado deviam ferver
os ciúmes, vendo-o a requestar a moça com tamanho afinco.

Ia escapando que na semana decorrida depois de sua despedida, tentou o Ivo
meios de obter do tabelião que relevasse a primeira falta, e de novo
o tomasse ao serviço do cartório. Valeu-se para isso do empenho
da Senhora Romana, que já lhe tinha servido de madrinha da primeira
vez, a quem para melhor dispor-lhe a vontade levou de mimo um São João
Batista pintado por ele.

Desta vez, porém, o Sebastião Ferreira mostrou-se inexorável,
e toda a costumada petulância da velha não pôde com ele.
Basta que a lembrança do cano de bota recheado de moedas achou-o impenetrável.
Nada, que tratava-se da honra do ofício público e decoro de
seu cartório.

Reduzido pois, mas não resignado, à antiga e triste condição
de pé de muro, vivia o ex-escrevente a rondar as cercanias da casa
do Freire, obrigado a se esconder do tabelião, como dos minoristas
que não lhe perdoariam as bodocadas.

De tudo, á que mais ralava ao nosso namorado era essa espionagem dos
fâmulos do prelado, a qual não só lhe metia sua ponta
de ciúme, como impedia-lhe de aproveitar as furtivas ocasiões
de falar a Marta.

Um dia faltou-lhe a paciência; e assentou de acabar com aquela penitência,
ainda que saísse uma estralada. Levou a cogitar a noite; e pela manhã
cedo, foi à ribeira do Rossio do Carmo, e lá arranjou de um
camarada pescador um anzol de garoupa com uma guita capaz de agüentar
um tubarão.

Como era uso naquela época, a entrada da casa do Sebastião
Ferreira tinha, além da grossa porta inteiriça, uma rótula
com seus postigos. Mas esta em vez de se conservar fechada, como sucedia no
geral das moradas, andava sempre escancarada por causa da passagem freqüente
das partes e moços do cartório que iam e vinham na constante
labutação forense.

Esquivou-se o Ivo pelo corredor e agachou-se atrás da porta, à
espreita.

Não esperou muito tempo. Apenas soou meio-dia ouviu-se um vozeio na
rua, entremeado de risadinhas abafadas. Eram os minorenses que vinham na forma
do costume bulir com a Miquelina e a filha, e se apinhavam junto à
rótula.

Desde certo tempo a mulher do tabelião, para defender-se da apoquentação
dos formigões, fechava uma das janelas, e abrigava-se com Marta nesse
canto da sala, onde não a podiam bispar os peraltas por mais que enfiassem
os olhos entre as gretas.

Mas os diabretes desconcertaram-lhe o plano. Em achando fechada a janela
metiam-se no corredor, a espiar pelo buraco da fechadura. Era aí que
os esperava o Ivo, a quem desde o princípio não escapara a manobra.

Nesse dia, pois, quando o Cláudio e mais três companheiros estavam
mais entretidos em espiar, revezando cada um sua vez de pôr o olho à
fechadura, o enjeitado reunindo sutilmente as fraldas das sotainas, prendeu-as
com o anzol, cujo cordel tivera antes o cuidado de atar com segurança
ao trinco da porta.

Executada a empresa, escapuliu-se o Ivo sem que o pressentissem, e chegando
à rótula do cartório, fronteira do tabelião, colou
a boca na fresta para gritar com disfarce na voz:

– Uhl uhl velho urubu!

Ergueu-se furioso o tabelião, que brandiu o espadim e precipitou-se
para a porta, mas depois de revestir-se de solenidade precisa, encasquetando
o grande tricórnio. Seguiram-no os escreventes, armados, como de costume,
de vassouras, réguas e tamboretes.

Ao ranger da chave na fechadura, os minorenses advertidos escamaram-se para
não serem apanhados em flagrante. No meio da rua, porém, esticada
a guita do anzol, esbarrou-os de repente na carreira, dando com eles de trambolhão
em terra.

Nesse momento chegava à porta o tabelião que vendo prostado
o inimigo, o apostrofou com extrema veemência:

– Corja de biltres!… Malandros!… Sevandijas!… O que vocês mereciam
era que eu lhes tonsurasse as orelhas, para dar-lhes juízo, brejeiros!

Entretanto arremetiam os escreventes, de réguas e vassouras em punho,
bem dispostos a sacudir a poeira do costado dos rapazes, e aplicar-lhes uma
sova mestra. Sentindo fervilhar-lhes o lombo, além de lhes arder as
orelhas, afinal levantaram-se os minorenses disparando novamente a correr;
mas outra vez a cambulhada dos rapazes, empencados ao anzol, estrebuchou no
chão.

Nesse momento, além, na rua, soou uma surriada formidável:

– Formigão!… Uh!… Formigão!…

– Fiau!… Fiau!.

– Basculho de igreja!…

– Morrão de tocheiro!…

– Minhoca de sacristia!

– Rabadilha de frade!…

E todo este berredo cortado de assobios estridentes, e acompanhado pela matinada
infernal de umas matracas improvisadas com taquara rachada, e pelo ronco de
um imenso caramujo.

Era autor dessa grazinada de ensurdecer, um bando de estudantes leigos, a
quem o Ivo tivera o cuidado de avisar, prometendo-lhes um fartão de
riso, sem contudo explicar-lhes a peça que ia pregar. Sempre houve,
e ainda subsiste uma birra dos estudantes leigos com os seminaristas ou meninos
do coro, a quem apelidam de formigão por achar-lhes certa semelhança
com a saúva, uma das espécies desse térmita. Com que
prazer pois não aceitaram os rapazes o convite do Ivo, e não
se esconderam na vizinhança por detrás de uma cerca, à
espera do momento?

Surpreendidos com o aparecimento dos estudantes, e vendo-se na presença
de testemunhas, os escreventes que sabiam o valor da prova, desistiram da
sova que se dispunham a dar. Além de que, percebendo-se afinal a causa
dos repetidos trambolhões dos minorenses, dispararam todos em uma estrepitosa
gargalhada.

Fustigados por esse riso implacável, Cláudio e os companheiros
arrancaram tão furioso sacalão, que afinal escaparam-se deixando
no anzol um farrapo da sotaina.

XIX

MOSTRA-SE A VERDADE DOS DOIS ANEXINS, QUE "O BOCADO NÃO
É PARA QUEM O FEZ" E QUE "PAGA O JUSTO PELO PECADOR"

Restituído ao tamborete furado, que lhe servia de curul, o Sebastião
Ferreira repotreou-se contente de si, e tossiu uma risada, o que antes só
lhe acontecera duas vezes na sua vida de tabelião: a primeira ao receber
a carta que o confirmava no ofício; a segunda, quando teve a sentença
favorável nos embargos opostos ao esbulho que o escrivão da
provedoria tentou fazer de suas prerrogativas.

A lição famosa dada aos minoristas do prelado vingava-o não
só das contínuas amofinações com que eles o atormentavam
e à família todos os dias, mas sobretudo do insólito
desacato de que fora vítima quando pretendeu desalojá-los da
pitombeira.

– Quem seria o da lembrança! disse o tabelião para os escreventes
que olhavam-no embasbacados. Olhem que merecia umas páscoas; e eu que
lhas daria de boa-vontade.

Entreolharam-se os escreventes, como consultando a resposta.

– Então não atinam com o cujo?

– A peça foi de truz; agora quem a pregou!… Isso lá como
se pode saber! acudiu um.

– Ele parece que não passou… ia dizendo o outro.

– Pois não estão vendo que foi o sonso do Sabino? atalhou o
tabelião.

O bloco do rapaz, com a cabeça entre os ombros, fingindo uma certa
vergonha de ser descoberta sua estrepolia, escondia de modo a dar-lhe mais
tom, um sorriso maligno, empastado nos lábios amarelos.

– Eu não!… respondeu ele dando uma cotovelada na ilharga, o que
era sinal certo de grande emoção.

Essa negativa, com o sotaque particular que lhe imprimiu o rapaz, e o revirado
d’olhos que lhe servia de asterisco, era a mais ingênua das confissões
voluntárias.

São de todos os tempos e de todos os dias estes e quejandos disfarces;
pois no fim de contas a lei deste mundo tem por mote aquele versículo
do bom Virgílio: Sic vos, non vobis.

Abençoados e felizes da terra, são os vobis para quem trabalhamos
nós outros. Na cabeça do rol estão os primazes, vobis
coroados, que se divertem à nossa custa, atirando às rebatinhas
dos grandes vassalos sacos de ouro e maços de cédulas, fabricados
com o suor do pobre e o pêlo que tosam a este povo bonacho!

Voltou enfim o cartório ao habitual sossego e modorra. Acabada a féria,
na saída, o tabelião (espantoso sucesso), atirou um peteleco
na venta do Sabino, e introduziu-lhe sorrateiramente na munheca um tostão
de prata.

Assim foram surripiadas ao Ivo as honras e, o que mais é, o proveito
da engenhosa pescaria de formigões, que tivera a fortuna de engendrar
não somente para descanso de Marta e alívio seu, como para entrar
nas boas graças do tabelião.

Também o culpado fora ele, que durante os trambolhões dos minorenses
se deixara ficar escondido atrás da cerca, no meio dos estudantes,
que instigava, mas longe da porta onde ficara atado o cordel do anzol.

Entretanto os minorenses, desesperados com a vergonha que tinham sofrido,
e abespinhados como os maribondos quando os assanham, ardiam por tomar sua
desforra do tabelião, a quem principalmente atribuíam a armadilha
de que tinham sido vitimas. Bem desconfiavam eles que aí andavam o
dedo e a ronha do Ivo, mas dispostos a pespegar-lhe uma sova a propósito,
o primeiro ímpeto foi contra o Sebastião, a cujo mandado obedecera
o escrevente. Ignoravam ainda a despedida do Garatuja.

Na tarde daquele mesmo dia, estava o pecador" do Ivo escondido no quintal
em segredinhos com Marta, quando o "justo" Sebastião Ferreïra,
já de retorno, vinha pela Rua da Quitanda em busca da sua casa à
esquina da Rua do Aleixo.

Fora o tabelião dar seu giro do costume, e aproveitara para referir
em cada porta o caso engraçado. Agora voltava deleitando-se ainda com
a lembrança das gargalhadas que o tinham aplaudido, e caminhava teso
e compassado ao longo da cerca do prelado.

Fatal imprudência!

De repente sentiu o Freire meter-se-lhe entre as tíbias, um objeto
que ele a princípio cuidou ser a própria bengala; mas não
teve tempo de averiguar, porque apesar de sua grave compostura foi obrigado
a ir de ventas ao chão e esborrachar a respeitável penca.

Babatando com esforço pôde erguer-se, mas sem bengala nem tricórnio,
quando outra vez esgrimiu-lhe pelas canelas a taquara que o Cláudio
com os companheiros, enfiavam pelo buraco da cerca. As ventas do tabelião
de novo se achataram; e mais uma figueira foi plantada.

Finalmente, fulo de pó e bílis, conseguiu erguer-se o Sebastião
Ferreira, mas foi para receber a mais tremenda encapelação,
que já sofreu atrevido calouro no pátio de uma academia.

Os minorenses, saltando da cerca, tinham caído sobre ele de petelecos
e chufas:

– Uh!… Uh!… mestre urubu!…

– Velho fuinha!

– Estais tonto, pato choco!

– Ora vejam, que pascácio? A cair pelas ruas!

– Se estará triscado!

– Qual! São manhas do sendeiro!

– Agüenta, ó pax-vóbis!

– Olha o casquete, que te esquece! disse o Cláudio fincando-lhe dum
murro o tricórnio na cabeça.

– Este traste será próprio? acudiu outro empolgando a penca
afogueada do tabelião.

– Com certeza é postiço!

– Puxa-o tu, que logo verás! Eu cá aposto que é beque
de algum saveiro! Tanto espremeram as ventas do pobre homem, que afinal rompeu
uma descarga de espirros, a modo de fuzilaria, e respingou de tabaco e monco
os olhos e a boca dos rapazes. Diante desse fogo rolante fugiram os assaltantes,
tomados de nojo e perseguidos pelas galhofas dos companheiros que haviam escapado
à metralha narigal.

Nesse momento assomou o prelado à porta da rua, e com sua habitual
mansuetude exortou os seus fâmulos, ordenando-lhes que se recolhessem:

– Pode seguir descansado, senhor tabelião, que já os acomodei.
Isto de rapazes, são como cachorros, que em pilhando a porta aberta,
embestegam por ela afora, e não há ter mão neles.

O Sebastião Ferreira não se dignou ouvir. Amarrotado pela encapelação
na qual entretanto nunca perdera a sua gravidade, enveredou para a casa, onde
chegou bufando de cansaço e de raiva. O pavio de uma candeia não
arderia mais do que o magriço tabelião aceso em ira.

No entanto o Ivo, desapercebido do que sucedera, obtinha de Marta mais um
abraço, que vinha completar as duas dúzias em três dias;
e animado com esse sucesso atreveu-se, ainda que balbuciante, a pedir uma
boquinha.

Teve em resposta um muxoxo, e viu desaparecer como por encanto o vulto da
menina, que deitara a correr espavorida.

XX

UM BECA DO SÉCULO XVII QUE NÃO CHEGA AOS CALCANHARES
DOS MODERNOS TEMUDOS

À rua da Misericórdia, próximo do Beco do Cotovelo,
onde tinha residência, estava o Ouvidor Geral, Dr. Pedro de Mustre Portugal,
em sua recâmera particular, atarefado com o despacho de processos.

Era homem de boa fêvera, nédio e socado, com uma dessas gorduras
maciças e rubicundas, verdadeira polpa fradesca, da que se cria ao
grosso unto do refeitório, e na manga lassa do hábito.

Cá, por fora dos conventos, também a terra produz dessa fécula
substancial, quando a pachorra se mete em bombachas ou cuecas, e deita a dormir
a consciência. Foi naturalmente por esse modo que o Dr. Pedro de Mustre
Portugal obteve a rija carnadura que lhe realçava a compostura, e dava-lhe
um aspecto, senão majestoso, certamente que importante pelo volume.

Sentado no telônio, sobre o estrado, esclarecido pela frouxa luz de
uma lâmpada de azeite de mamona, o primeiro ministro da Justiça
de El-Rei folheava os autos e os ia aviando, não sem escaparem-lhe
algumas observações, que nada tinham com as ordenações
e os provarás.

– Han-han!… murmurava com certo sonsonete; cá está o Matias
Cosme!… Havemos de ver agora em que param as soberbias!… Se, torna a voltar
a cara para não se desbarretar quando eu passar? Tornara!…

Salpicou o magistrado esta última palavra com um riso de mofa, e guardou
no fundo da gaveta os tais autos, passando a examinar o seguinte da rima que
tinha à esquerda, e que a um e um transferia para a direita.

– Oh! oh! oh!… exclamou entre riso. Patrono do réu, o Duro! Há
de levar a liçãozinha do costume, para não se ter em
conta de grande letrado!… Cuida lá de si para si que pode ensinar
aos mais, o pedante!…

Sem consultar a ordenação, nem recorrer ao sujo canhenho, travou
o nosso magistrado da pena, e escreveu dum jacto Indeferido, tendo o cuidado
de calcar a mão para fazer uma <1etra bem grossa, já que
não podia em voz ainda mais grossa chimpar o despacho lacônico
e peremptório na bochecha do bacharel.

Destas ingenuidades que tinha o Mustre a sós e entre si, não
vão fazer mau juízo a seu respeito. Passava por um dos magistrados
mais honestos, que des. de a criação dá Ouvidoria-Geral
do Rio de Janeiro haviam nela servido.

Em seu tempo, e isto basta para honrar sua memória, cessou uma balela
que toda a gente repetia na cidade. Corria que certos mercadores de São
Sebastião metiam-se com os ouvidores logo que estes chegavam à
terra, e tanto faziam que os induziam a aceitar de empréstimo alguma
soma, com que os tinham a jeito para seus pleitos e os de seus aderentes.

Também diziam de outros que, rendidos aos encantos de alguma ninfa
da Carioca, trocavam a venda de Têmis pela de Cupido; e lá se
iam ao sabor dos afagos, as sentenças com que Vênus comprava
seus atavios e galas.

Ninguém ousou jamais suspeitar o Dr. Mustre de uma peita ou suborno.
Cumpria à risca a ordenação não recebendo cartas
relativas a demandas; e levava este escrúpulo ao ponto de tratar as
partes desabridamente, quando o procuravam.

Tinha pois a consciência de ser um magistrado integérrimo. E
seguro de que não o podiam comprar; nem influir por empenho ou ameaça,
no exercício de sua jurisdição, do mais não se
preocupava. Assim entendia que lhe era lícito sofismar uma lei para
dar quinau em um advogado; demorar um processo para vexar a parte e obrigá-la
à bajulação; inclinar-se em um ponto controvertido à
decisão que favorecia seus amigos; satisfazer enfim todos seus caprichos
e veleidades, dando-lhes a feição de opiniões.

É esta a pior espécie dos maus juizes. Acastelados na sua honestidade,
que nem sempre é inexpugnável, põem a Justiça
ao serviço de suas paixões e venetas; e quando vem o clamor,
não falta quem os defenda como íntegros, lançando à
conta de erro, o que aliás foi astúcia.

Seriam oito horas da noite, quando bateram rijo à porta exterior da
recâmera. Surpreso de que o viessem perturbar àquela hora em
seu trabalho, ergueu-se o Dr. Pedro de Mustre para ver quem o procurava.

– Com licença de Vossa Mercê, senhor doutor ouvidor-geral! disse
o Sebastião Ferreira arremetendo pela porta adentro.

– Servo do senhor doutor ouvidor-geral!… disse da porta o licenciado João
Alves de Figueiredo já nosso conhecido.

– Pode entrar, senhor licenciado; boa-noite, Sebastião Ferreira! Que
novidade há?

Ainda revolto pela cena da encapelação, o homem não
esperou que voltasse o ouvidor a seu telônio, e foi desde a porta acompanhando-o
com a sua queixa.

– Aqui me tem Vossa Mercê em sua presença para querelar do prelado
e seus fâmulos que esta mesma tarde me perseguiram com voltas e assuadas,
chegando sua malvadez a ponto de me maltratarem gravemente o corpo em diversas
partes, como vossa mercê pode ver, sem o menor respeito, já não
digo à minha pessoa, mas à justiça de El-Rei, nosso senhor,
cuja sou oficial.

Falou neste jeito por meia hora o Sebastião Ferreira, contando os
pormenores da afronta que sofrera e acabou apresentando ao Dr. Mustre sua
querela em que requeria devassa na forma da Ordenação.

Adivinhou logo o ouvidor que o requerimento era obra do licenciado, e preparou-se
para notar-lhe os lapsos ou descuidos, a fim de acachapar o velho advogado
com a ciência que lhe dava o provimento de El-Rei; porque da que se
bebe nos livros, tinha bem pouca.

Essa presunção de grave jurista ia a ponto no magistrado, que
sua rubrica era Dr. Portugal, querendo assim reviver para si a fama de seu
homônimo, o Dr. Domingos Antônio Portugal, desembargador da Casa
da Suplicação e autor da obra Tractatus de Donationibus Regiis.

Entretanto apesar dessas fumaças, o nosso ouvidor não queimava
as pestanas sobre os livros, e além das Ordenações e
das Extravagantes, era milagre encontrar-se em casa dele outra qualquer letra
de fôrma.

Acabando de ler o requerimento espalmou o doutor a mão sobre o papel
e disse com um sorriso:

– Careço de competência, senhor licenciado!

– Com a devida vênia, a ord. do livro 2º, tít. 1º,
§ 27, é expressa.

– Sem dúvida, quando ao tempo em que foi cometido o malefício,
não andava o querelado em hábito e tonsura.

– Verum tamen! replicou o licenciado empertigando-se na ênfase doutoral.
Pondere Vossa Mercê que o foro secular tem a primazia, pois a regra
é que ninguém pode escapar à manus regia. É assim
que a devassa se deve abrir, e os minorenses que venham com os seus artigos
na forma da Ordenação, pois a seu tempo se verá se hão
de receber-se.

Bem desejava o Dr. Pedro de Mustre dar uma lição ao prelado
e vigário da vara pelas contínuas picardias que praticavam,
intrometendo-se a cada instante com as cousas seculares. Mas empenhado o seu
amor-próprio na questão com o licenciado, esqueceu tudo e meteu
os pés à parede.

– Implorando a vênia do senhor ouvidor-geral… disse o tabelião
curvando-se.

– Diga!

– Penso que não haverá dúvida, pois os biltres, com
perdão de vossa mercê, têm hábito sim, mas de tonsura
nem sinal.

– Está bem certo?

– Assim estivesse de obter desagravo.

– Pois há de obtê-lo, que lho digo eu. Amanhã abrirei
a devassa. Desque não são tonsurados!

XXI

COMO SE ARRANJAVA OUTRORA UM MOTIM PARA DESFATIO DO BOM POVO FLUMINENSE,
EM VEZ DAS INSÍPIDAS LUMINÁRIAS QUE LHE DÃO AGORA

No dia seguinte abriu o Dr. Pedro de Mustre a devassa e, inquiridas as testemunhas,
mandou em segredo de justiça lhe fosse o feito concluso para julgar.

Quando chegou à notícia do prelado que o ouvidor estava devassando
de seus fâmulos, o reverendo urrou com a afronta, e no primeiro momento
disse cousas que muito haviam de alegrar a Satanás, se as ouviu. Vindo
a reflexão, mandou chamar o vigário forâneo, o licenciado
Vilalobos, e com ele praticou> encerrados ambos na câmera eclesiástica.

Nessa mesma tarde apresentou-se em casa do ouvidor o Padre Rafael Cardoso.

Era uma sexta-feira, e contava-se 30 de outubro. Estava o Dr. Pedro de Mustre
aproveitando o tempo em arranjar uma pacotilha para a viagem que tinha de
fazer por aqueles dias ao Espírito Santo, onde ia em correição
tirar devassa da morte do capitão-mor assassinado à boca-de-fogo,
assim como de outros graves malefícios. Apreciador do bom prato, o
digno magistrado não deixava, nas suas excursões judiciárias,
de levar sofrível provisão de alguns temperos prediletos, que
naquele tempo, e talvez que ainda hoje, se não encontravam pelo interior.

Já tinha ele diante de si na mesa vários embrulhos de drogas,
e ajuntava uma porção de cominhos espalhados na gaveta, quando
entrou-lhe o Padre Rafael Cardoso.

– Deus dê boas-tardes ao senhor ouvidor.

– As mesmas a Vossa Reverendíssima. O que o traz por esta sua casa?
perguntou o magistrado com fingida simpleza.

– Motivo bem desagradável, senhor ouvidor; mas está nas mãos
de vossa mercê que daí não venham outras e piores conseqüências.

– Como então?

– Bem a meu pesar. e por obediência ao superior, que é um dos
preceitos da nossa Santa Religião, venho por ordem do reverendíssimo
senhor Vigário-geral, licenciado Francisco da Silveira Vilalobos, notificar
a vossa mercê para devolver incontinenti a devassa tirada por esta Ouvidoria
contra os fâmulos do reverendíssimo prelado ao juízo eclesiástico
a quem só releva este assunto

– Ah! foi só a isso que veio? E se eu não quiser receber semelhante
notificação?…

– O senhor ouvidor não fará isso!

– E por que o não farei, reverendo, se desconheço a autoridade
com que o vigário-geral ou ainda o administrador se intromete na jurisdição
secular, e tem a protérvia de mandar intimações a mim,
ouvidor-geral desta comarca?

– Assim, Vossa Mercê persiste?

– Tenho dito.

– Neste caso sou forçado a consignar a vossa mercê três
dias para cumprir a notificação sob a pena de excomunhão
maior, que em nome do senhor vigário-geral lhe comunico pelas três
canônicas admoestações.

Ao ver o tom citatório, que tomou o beleguim do vigârio-geral,
e sobretudo ao ouvir a ameaça de excomunhão, teve o Dr. Pedro
de Mustre ímpetos de agarrar o padre pelo gasnete, e atirá-lo
pela janela fora. Mas avisou que seria derrogar de sua hierarquia, tomar ao
sério aquela farsa eclesiástica.

Entretanto havia o Rev. Rafael sacado do bolso da batina um rolo de papel,
e depois de ler por três vezes a canônica e paternal admoestação,
estendeu o rolo ao magistrado.

– Vem a ponto! disse o ouvidor com ar zombeteiro. Estava mesmo à cata
de um papel para embrulhar este cominho!

E seu dito, seu feito.

– Cautela, senhor ouvidor! Veja o que faz!…

O Dr. Pedro de Mustre cresceu para o padre, e calcou-lhe a manopla no ombro:

– O reverendo já fez as suas três admoestações;
agora quero eu fazer-lhe uma, uma só e que não tem nada de canônica.
Suma-te e não me esgote a paciência.

Não recalcitrou o Padre Rafael Cardoso, que só ao transpor
o limiar da porta sentiu dissipar-se o calafrio que produzira nele o olhar
do ouvidor.

Ficou em segredo essa ocorrência, da qual não transpirou nova
na cidade. Por sua parte o ouvidor acreditando que a tal notificação
não passava de uma ameaça para meter-lhe medo, persistiu em
não tomar ao sério a empófia do prelado, e a ninguém
falou do caso, que ele tinha como não sucedido.

Quanto ao prelado e sua roda, como esperassem reduzir o magistrado a abrir
mão da devassa, assentaram que não era prudente metê-lo
em brio com a divulgação do fato, o que tornaria indispensável
a excomunhão. Embora resolvido a não recuar da grave censura,
quando a necessidade o exigisse, entendia o prelado que não devia levar
o ouvidor a tal extremo, tendo por mais prudente prevenir do que punir.

Assim decorreu o tríduo da notificação e veio o dia
de finados que esse ano caiu em domingo. Durante esse tempo preparou-se o
Dr. Pedro de Mustre para a viagem do Espírito Santo, fixando sua partida
precisamente para a segunda-feira.

Já o galeão, que o governador pusera à disposição
do presidente da comarca para transportá-lo em sua correição,
estava sobre amarra, defronte do Rossio do Carmo, aprestado para a viagem
e só esperava o magistrado para levar d’âncora e fazer-se ao
mar.

A viagem do ouvidor era naquela época fato importante, e pois servia
de tema à parlice das calçadas e boticas. Sucedeu que ouvindo
falar da próxima partida do Dr. Pedro de Mustre, a qual estava para
a madrugada seguinte, o Padre Rafael Cardoso soltou uma risadinha sarcástica.

– Vê-lo-emos!

– Cuida V. Revma que não se partirá o ouvidor?

– Não sei, tornou o padre, metendo-se na concha. Se nesta terra, onde
tudo anda em bolandas, se consente comércio com excomungados!…

– Mas então?…

Rompera essa exclamação do pasmo que deixaram na roda as palavras
encobertas do padre.

– Deus lhes dê as boas-noites, disse o reverendo embrulhando-se na
capa; e sem mais abalou.

Derramou-se imediatamente pela cidade o boato assustador de que o Dr. Pedro
de Mustre ia ser excomungado pelo prelado, se àquela hora da noite,
sete dadas, já não estava. Uns recebiam a nova persignando-se;
outros volviam os olhos em torno, como se receassem o contacto do réprobo;
e por toda a parte o rebate ia assoprando no ânimo da população
o terror e o assombro.

Não foi Ivo dos últimos a saber da novidade; e atinando com
a razão do conflito armado entre o prelado e o ouvidor, sem mais detença
tomou seu partido.

Imediatamente deitou-se para o Beco do Cotovelo; mas em vez de buscar a casa,
bateu à rótula da tia Pôncia:

– Quem é? perguntou a regateira acudindo ao bater.

– Sou eu, tia Pôncia, não me conhece?

– Ah! o enjeitadinho?. . Ora, esta minha língua escorrega, que é
um Deus nos acuda. Mas não foi por mal, menino. E para bem dizer não
é crime ser enjeitado, ainda que… Está bem, isto agora não
vem ao caso. Então, menino, que bom vento o trouxe por cá? É
grande novidade?

– Pois não sabe o que vai pela cidade?

– Eu?… Sou lá alguma abelhuda mexeriqueira para andar metendo o
nariz por toda a parte! Mas visto isso, sucedeu alguma cousa? O que é,
menino? Ande, não se taça de rogado! Diga de uma feita!

– Ora, faça-se de novas? Então ainda lhe não soou que
o prelado ia excomungar o ouvidor?

– Abrenuntio!… Credo!.. – Quem se pode julgar seguro quando a gente grande
leva dessas!… Mas é que alguma ele fez, o tal doutoraço, que
também não é lá boa rês. Eu desde que vi
aquele toutiço de frade, que lhe tirei as inquirições.

– O ouvidor não fez nada de mais, tia Pôncia. O prelado, ou
lá sua gente, que eu não duvido fosse ele mesmo, começou
a desinquietar a família do tabelião, e como este não
esteve pela graça, deram-lhe uma assuada. Era o caso de devassa, e
o Dr. Pedro de Mustre por queixa do Sebastião Ferreira, tratou logo
de tirá-la, como tinha de obrigação. Daí vem tudo.

– O caso é este?… disse a velha piscando os olhinhos. Pois, menino,
adeus, que tenho mais em que cuidar. (

Fechou a Pôncia a rótula; mas poucos instantes decorridos, o
Ivo oculto numa esquina a viu sair à sorrelfa embrulhada na mantilha
e enfiar rua acima a trote batido.

Era o que ele esperava.

Uma hora depois nos quatro cantos da cidade corria a voz de que o motivo
da excomunhão fulminada pelo prelado não era outro no fundo,
senão a raiva de ver burlados os seus requebros pela filha, do tabelião.

A tia Pôncia tinha lançado em uma ou duas casas de terço,
por onde passou, aquela semente que brotou com rapidez espantosa. O povo murmurava:
e teria dado desde logo sinais de descontentamento, se não fosse a
hora da noite, pois já estavam muitos recolhidos.

Em todo o caso o motim ficava armado pelas comadres, tão jeitosamente
como o fariam as gazetas, que são as comadres do tempo de agora.

XXII

UMA CERIMÔNIA QUE JÁ NÃO SE VI: HOJE EM DIA,
APESAR DE AINDA HAVER PROCISSÕES E MASCARADAS DE IGREJA

Amanheceu o dia 3 de novembro sob a grave expectação de um
grande acontecimento.

Muito antes das primeiras e tênues alvoradas, abriam-se as portas das
casas e os moradores vinham à soleira, na esperança de colher
algum vago rumor, que lhes comunicasse o começo do sucesso extraordinário
que todos esperavam, mas ninguém previa qual fosse.

Avistando-se uns aos outros, inquiriam-se mutuamente acerca do caso que os
punha em alvoroto; mas nada com isso adiantavam, pois nada mais sabiam além
do zunzum, que tinha corrido a noite passada, e a que dera causa a indiscrição
do Padre Rafael Cardoso.

Quando a primeira barra listrou o horizonte sereno e esclareceu os cimos
da Jurujuba, o Dr. Pedro de Mustre Portugal saiu de sua casa, e acompanhado
por sua comitiva, composta de dois beleguins e um galego, dirigia-se ao porto
a fim de embarcar para o Espírito Santo.

À porta os vizinhos e alguns curiosos que tinham vindo ao cheiro da
novidade, se despediam do magistrado com os costumados votos:

– Boa viagem, senhor ouvidor!

– Deus o acompanhe!

– Amém! E o traga a salvamento.

– Que vossa mercê torne, como vai, na paz do Senhor!

E outras muitas variantes da mesma cortesia, a que o Dr. Pedro de Mustre
respondia:

– Obrigado, minha gente! Obrigado; até a volta em que espero achá-los
a todos em paz com a sua consciência e com a justiça.

Nisso rompeu entre os presentes o Padre Rafael Cardoso, acompanhado de dois
acólitos com tochas acesas. Perfilando-se em frente ao magistrado,
desdobrou um papel onde se via o grande selo da Igreja, e alçando-o
com a mão esquerda à guisa de estandarte, levantou-se no bico
dos pés a fim de fulminar do alto com a palavra e o gesto ao corpulento
magistrado:

– Auctoritate Dei Patris Omnipotentis et Filii et Spirítui Sancti
et beata Dei genitricis Maria, omniumque Sanctorum, pro Vicario generale,
te excommunicamus, doctor Petrus de Mustre Portugalis, anathematisamus, et
a limitibus sancta matris Ecclesioe sequestramus; et nisi resipuerint et ad
satisfactionem venerint, sic extinguetur lucerna eorum ante viventem in soecula
saculorum.

Depois de ter ejaculado de um jorro a fórmula do ritual romano, o
reverendo ingurgitou-se como um odre para gritar, vibrando a execração
com o braço hirto:

– Anathema sit! Amen! Amen! Amen!

O povo em torno caíra de joelhos e automaticamente, possuído
de indizível terror, ia repetindo: – Amém!

Ficara o Dr. Pedro de Mustre atordoado com a excomunhão maior que
lhe acabava de lançar o padre. Além de não acreditar
que o vigário-geral fosse capaz de levar a efeito a sua ameaça,
a solenidade da cerimônia e o terror que infundia no povo, o deixaram
profundamente abalado.

Quando deu por si, estava só, no meio da rua; já o isolamento
do réprobo caía sobre ele; nas esquinas ainda aparecia alguma
gente a olhar o maldito; mas não ousava aproximar-se; e os próprios
meirinhos, um tanto arredados, procuravam um pretexto para se escamarem.

Ordenou-lhes o ouvidor que levassem aviso do acontecido a alguns amigos e
pessoas de conselho, pedindo-lhes para virem à sua casa; feito o que
recolheu-se a esperar que chegassem para deliberar com eles no mais consoante
à difícil conjuntura em que se achava.

Entretanto o povo afluía para a casa da Câmara, onde naquele
tempo se consultavam e decidiam os mais graves negócios da governação
e regimento da terra; pois aí estavam os juizes e procuradores do povo,
que formavam o Senado da cidade.

Isto sucedia naquele bom tempo de governo absoluto, em que havia franqueza
e lisura. Agora, que se diz por aí vivermos em regime constitucional,
ainda se ajuntam no mesmo sítio, onde era a antiga vereança,
os que se inculcam de representantes da nação; mas já
nas suas horas de aflição, nos seus dias inquietos, o povo não
aflui mais para ali, pois tem os mais olhos voltados para São Cristóvão.

Ao rebate que ia pela cidade acudiu logo o juiz do povo, João Batista
Jordão; como presidente que era da Câmara, convocou todos os
oficiais dela, e bem assim os homens bons e o povo, para em vereação
avisar-se sem perda de tempo sobre o caso estranho e tão fora da norma
comum, que não havia exemplo de outro.

Estavam já bem excitados os ânimos. A insistência que
fizera o prelado para a mudança da Matriz, era ainda muito recente;
e deixara viva no espírito popular certa indisposição
contra o Dr. Almada.

O povo tem a religião do passado: ele venera as tradições
da pátria e da cidade; deleita-se com as relíquias e antigualhas,
que lhe são como recordações da infância, e lhe
retraçam o berço onde se embalou à sombra da fé
rude de seus antepassados. Por isso não há mais puro santuário
da história, do que seja o povo.

Os fluminenses daquela era, em que a vida não se tornara ainda uma
empresa a comanditar, tinham seu fraco pela velha igreja, que primeiro se
erguera na terra selvagem da Guanabara; e eram particularmente devotos de
São Sebastião, que, na sua crença ingênua, se mudara
para o Rio de Janeiro a fim de servir de patrono a essa terra de sua predileção.

Esse fermento de desfavor contra o Dr. Almada, veio azedá-lo a excomunhão
do ouvidor, geralmente atribuída na cidade aos escândalos do
prelado que sabiam ser derretido por mulheres, e que se metera a engraçar
com a filha do tabelião.

Se ainda havia alguma consideração nos ânimos tolhidos
pelo respeito à igreja, desapareceu de todo com a irrupção
que fez na praça um magote de rapazes. Era a corporação
dos estudantes, que vinha também requerer à Câmara remédio
contra o excesso e exorbitância da autoridade eclesiástica.

Já naquele século, essa respeitável corporação
tinha aquele "diabo no corpo", que no tempo de hoje faz estrepolias
nos exames, e mais tarde deve produzir a alma nova da nação,
a mocidade regeneradora de uma sociedade católica.

Não era de admirar, pois, a parte ativa que tomavam os estudantes
no motim; sobretudo sabendo-se que Ivo estava à frente deles, e os
fazia rir a gargalhadas.

XXIII

ONDE SE VE TRABALHAR A GOVERNANÇA ANTIGA, E SE RECONHECE QUE
NESSE MECANISMO HAVIA DE MAIS UM CILINDRO CHAMADO POVO, QUE HOJE NÃO
EXISTE

Agora que são conhecidas as causas do alvoroto em que se achava esta
pacata cidade na manhã de segunda-feira, 3 de novembro de 1659, podemos
continuar a narrativa dos sucessos que ocorreram depois.

Acabava de entrar no Rossio o Dr. Pedro de Mustre Portugal, com o seu acompanhamento
da gente de justiça; encaminhou-se ele direito à vereança
onde era esperado, e foi recebido no maior silêncio, com uma tão
ansiosa curiosidade, que modernamente na linguagem parlamentar chama-se –
"movimento geral de atenção" – e é a canela
com que os taquígrafos, umas vezes por ironia e outras por lisonja,
polvilham a insípida aletria de certos discursos.

– Senhor juiz do povo, oficiais da Câmara, homens bons da cidade e
quantos me ouvem: A Vossas Mercês em Câmara, venho expor o mais
grave atentado cometido contra a majestade de El-Rei, nosso senhor, e sua
autoridade que a todos nós fiéis súditos, cumpre defender.

Narrou o ouvidor o conflito suscitado pelo vigário-geral a propósito
da devassa; e arrazoando largamente sobre a incompetência da autoridade
eclesiástica para avocar a si o processo da alçada, declarou
que ia ordenar a prisão dos autores da assuada, por ser caso disso;
e concluiu com a excomunhão que naquela manhã lhe fora lançada.

– Dessa iníqua e exorbitante censura, atentatória da autoridade
real de que estou investido e com a qual oficiava, já apelei coram
probo viro, e de novo apelo ante omnia a precepto comminationis, porque desconheço
qualquer jurisdição que possa tolher a execução
da lei, e empecer no exercício de suas prerrogativas ao Soberano de
quem todos, eclesiásticos e prelados, são vassalos e súditos,
como o restante do povo. E assim requeiro que se tome em Câmara a minha
apelação para produzir seu efeito suspensivo, até que
Sua Majestade resolva.

Em vista da gravidade do caso, deliberou o Senado pedir ao governador e capitão-general
a sua assistência pessoal em Câmara; ao que deferiu ele permitindo
que viessem os vereadores a seu quartel ou residência, no que se acordou
para o dia seguinte. E não só por dar maior solenidade ao ato,
como para melhor esclarecer o intrincado ponto de praxe forense, sujeito à
disputação, deliberou a Câmara convidar os mais afamados
doutores in utroque jure, que floresciam então na heróica cidade
de São Sebastião.

Foram, segundo rezam as memórias do tempo, os seguintes luminares,
de cujos nomes sacudimos a poeira dos tempos para enviá-los à
posteridade com esta crônica: os reverendíssimos Frei Pedro e
Frei Mauro da Trindade, da Ordem de São Bento; os carmelitas Padre-Mestre
Frei Francisco de Lima, Frei João Pacheco e Frei Antônio da Conceição;
o Padre Francisco Madureira, da Companhia; e o padre-mestre pregador da Ordem
de São Francisco; este na classe dos teólogos; quanto aos juristas
sabemos do licenciado João Alves de Figueiredo (que era o patrono do
tabelião), e mais Gaspar Leitão Amovo, Dionísio Mendes
Duro, Antônio de Barros e Bartolomeu de Oliveira.

Bem se vê quanto já era abundante de letrados a cidade de São
Sebastião e se naquele tempo estivesse em uso. a empreitada de códigos
e leis, não faltaria quem a tomasse.

Entre aqueles nomes que citamos figuraram também o D. Abade de São
Bento, o prior do Carmo e o provincial dos jesuítas, pela razão
mui simples de que, sendo os cabeças de sua ordem, não podia
haver aí sabedoria que não viesse deles, por mais duro que tivessem
o casco.

Deviam estes luzeiros da ciência solver a importante questão
de que dependia àquela hora a paz e sossego da cidade, a saber: se
a apelação interposta da excomunhão tinha ambos os efeitos
e portanto suspendia a pena espiritual. Hoje não se faria tamanho barulho
e gasto de saber com uma questão forense; cada juiz nasce mestre, tem
a jurisprudência infusa; não carece de ler, nem de consultar:
é o que sai.

Enquanto nas livrarias dos conventos e telônios de advogados se deitam
abaixo as rimas de bacamartes, e se vão espoando os alfarrábios
de cujo ventre hão de sair as eruditas citações para
lardear as consultas, os vereadores, tendo provido à urgência
do caso, trataram de jantar. Pautados pelo antigo anexim romano – Sine Cerere
et Baccho friget Venus – já naquele tempo entendiam os conspícuos
senadores fluminenses, que de barriga vazia não se pode deliberar sobre
a governança e regimento dos povos.

Por outro lado, pensaram eles que era de bom conselho deixar esse intervalo
de um dia para arrefecer a irritação popular. Donde se vê
que a protelação, esse achaque de nossa administração,
vem de longe: é mal crônico.

O motim, que se formara pela manhã, não tinha aumentado, mas
conservava-se no mesmo estado de surda agitação, como a tempestade
encadeada pela calmaria. Sentia-se ali dentro, no seio da turba, a ebulição
da cólera popular; mas alguma força oculta a sopitava.

O respeito tradicional à religião, o terror da Igreja, e os
sentimentos de devoção que animavam os fluminenses, deviam conter
os ímpetos da indignação popular contra o prelado, que
no fim de contas, apesar de quanto o acusavam, era não somente um sacerdote,
mas a primeira autoridade eclesiástica da igreja fluminense.

O povo é sempre assim: uma força magna e irresistível,
porém cega. Carece de nem o dirija, e o maneje. O que dispõe
desse poder tem a revolução fechada em sua mão.

Era essa cabeça que faltava então ao povo fluminense. O motim
ali estava no meio da praça como uma bombarda carregada de metralha,
à espera que lhe acendessem a mecha, e o arrojassem contra a arrogância
eclesiástica, para a derrocar em um momento.

Qual seria porém esse que ousasse empunhar o cutelo popular? Os principais
da cidade, aqueles que andavam na governança e estavam no costume de
conduzir a plebe? Esses, ainda mesmo servindo-se dela para promover seu interesse,
temiam-se da agitação mais forte que pudesse desencadear-lhe
as iras.

Naquela emergência, estimaram os vereadores a manifestação
popular que os apoiava; mais do que isto, porém, seria perigoso, e
fora de toda a regra, pois tinha o povo seus procuradores e conselheiros para
avisarem no que mais convinha, e prover a tudo que fosse para seu bem.

Estava portanto gorado o levante, se o Ivo percebendo o jeito que tomaram
as coisas, não se incumbisse de arranjar a cabeça que faltava
ao tronco popular.

Veremos como se houve nesse mister.

XXIV

PROCESSO PELO QUAL INVENTOU O IVO O QUE HOJE SE CHAMA O HOMEM DA
SITUAÇÃO

Ao toque de meio-dia foram-se dispersando os magotes da gente. Os moradores
tornaram a casa onde os esperava o caldo, pois não havia naquele tempo
quitandeiras e freges, onde o popular achasse jantar a qualquer hora e em
cada canto.

Depois da refeição as ruas de novo se encheram; mas como nada
mais ocorrera de novo, e as cousas continuavam no pé em que a tinha
deixado pela manhã o Senado fluminense, concentrou-se o ânimo
da população na expectativa do dia seguinte, no qual à
vista do acórdão tomado em Câmara, com a assistência
do governador e conselho dos luzeiros da ciência, se tinha de decidir
a questão.

Correram pois as horas da tarde em sossego; os ranchos de povo que desfilavam
pelas ruas, embora animados ainda por um resto do alvoroto da manhã,
já não tinham aspecto irritado e sôfrego, mas ao contrário,
palravam com moderação a respeito das ocorrências do dia.
o garatuja 65

O assunto que de preferência os ocupava era o voto dos teólogos
e juristas consultados sobre a intrincada questão; faziam conjeturas
e comentos acerca das disposições de cada um, e do alvitre que
adotaria.

– Olhem! acudiu um orador de esquina, dos que hoje abundam. Os padres do
Colégio, esses podem ter certeza que são contra o Almada, pois
é seu costume andar sempre a jogar as cristas com os bispos, prelados
et reliqua. Lá quanto aos outros é perder a esperança;
então os beneditinos!… Se o Almada não se sai do mosteiro!…

No meio destas diversões veio a noite, e com ela outra vez se escoou
o poviléu, deixando ermas as ruas escuras. A pouco e pouco foram-se
extinguindo os fogos, e não tardou que a cidade dormisse a sono solto.

Lá pela volta das dez horas, foi o silêncio profundo da noite
quebrado por um tanger de sino, que despertou parte da população.
Pelo toque logo se reconheceu que era rebate no campanário da Câmara,
o que ainda mais espanto causou, sobretudo no estado em que se achavam os
ânimos.

Abrindo as portas, e saindo à rua, avistaram os moradores por cima
dos telhados, lá para as bandas do Rossio do Carmo, um clarão,
que avultava no meio da profunda escuridão da pequena cidade, a qual
não conhecia ainda nem os lampiões de azeite de peixe, quanto
menos o gás.

– É fogo! disseram.

Os primeiros despertos correram direitos ao ponto e de caminho iam dando
vozes e rebates de fogo, que avisavam os mais; de modo que em poucos instantes
meia cidade corria pelas ruas, e a outra não tardava a acompanhá-la.

Esbarrou-se a multidão com uma cousa que não esperava.

No alto do pelourinho estava um retábulo armado com pintura de transparente.
A tela esclarecida pelo anverso com cabeças de breu representava em
grande o vulto de São Sebastião, baixando do céu ao Morro
do Castelo. Com uma vergasta que tinha na mão direita, o divino padroeiro
expelia da sua cidade uma caterva de porcos que se tinham introduzido nela
e estavam a fossar-lhe os muros. Na mão esquerda tinha o Santo arvorada
sua bandeira, e a confiava à guarda do Sebastião Ferreira Freire,
ali pintado em própria figura.

Mas o traço, sobre todos notável do painel, era que os porcos
tinham tonsura e cara de gente, vendo-se no maioral da frente a do prelado,
e em seguida toda a fradaria, que o rodeava, desde o vigário-geral
até o Cláudio minorense.

Atinando com a alegoria, a multidão disparou em um frouxo de riso,
cujo burburinho cobriu o murmúrio das ondas a rolar na praia. Rompeu
a revolução da gargalhada, a mais assoladora, e às vezes
a mais cruel de todas as revoluções.

O respeito de que o seu caráter sacerdotal cingia o prelado, a força
moral, essa formidável barreira que resiste às iras populares,
nos seus mais terríveis assomos, o ridículo a acabava de aluir
com um sopro.

Era obra do Ivo, bem se percebe, a tal alegoria ou como hoje diríamos,
a caricatura, e não ficava somenos nem pelo chiste, nem pelo desenho,
às melhores que figuram ai pelas ruas da corte em dias de carnaval.

Desde meio-dia trabalhara o Garatuja sem descanso, ajudado pela malta de
estudantes que pulava de contente com a estrepolia, e aplaudia a lembrança
do rapaz, sem importar-se com o desacato à religião, que estavam
preparando naquele retábulo.

Enquanto de pintava, os outros preparavam a armação e as cabeças
de breu para o transparente.

O rebate foi dado por um pirralho, que animosamente trepou ao telhado da
casa da Câmara, e lá se foi com a sutileza de um gato até
o campanário, onde debruçado à beirada, conseguiu tanger
o sino.

Entretanto o povo, passada a primeira impressão, indagara entre si
do autor dessa lembrança; e não faltava quem atribuísse
o inesperado e misterioso aparecimento do retábulo à intervenção
do poderoso São Sebastião que aí se representava para
assim comunicar sua vontade aos moradores da cidade. Esse encanto do maravilhoso
é irresistível para a imaginação popular.

Aproveitando o momento de comoção, Ivo galgou os degraus da
pilastra hasteando uma bandeira de São Sebastião, em tudo semelhante
à do painel:

– Povo de São Sebastião, é preciso entregar sua bandeira
àquele a quem o nosso divino padroeiro escolheu para defendê-la!

– Bem avisado! gritou uma voz.

– Vamos sem mais detença à casa do Senhor Sebastião
Ferreira, nosso tabelião!

– À casa do tabelião! gritaram todos.

Estremunhado de sono, saltou o Freire da cama aos clamores que o apelidavam,
e às tontas chegou à janela para ver o que lhe queriam; mas
não antes de lhe assegurarem de fora que eram de paz.

Num instante a turbamulta o envolveu e arrebatou: de modo que o pacífico
tabelião achou-se sem acordo próprio e quase sem conhecimento
de si, no meio da rua, levado em charola, com a bandeira de São Sebastião
arvorada na sinistra, e uma catana empunhada na destra.

Como isto se fizera, não o sabia ele. Viu-se no meio de um torvelinho
de gente, e cercado, de fogaréus, que lançavam pelas ruas onde
passavam uns lampejos sinistros e faziam-lhe calafrios, lembrando-lhe os autos-de-fé.

Eis como inventou o Ivo o "homem da situação". O
que ele fez com o seu pincel, ainda hoje há quem o faça com
uma gazeta, e com o mesmo desembaraço e petulância. Do que não
se precisa mais é de povo, essa antigualha sem serventia. Paga-se a
música dos alemães; abre-se uma finta com o nome de subscrição
para retrato ou jantar; e aí está uma notabilidade, um chefe
de partido, um medalhão.

XXV

UM DOS CASOS EM QUE A AUTORIDADE OBTEMPERA PRONTAMENTE A VONTADE
DO POVO, E TIRA A SARDINHA COM A MÃO DO GATO

A troça dos estudantes com o Ivo à frente, servia de vanguarda
ao motim, e fazia uma algazarra tremenda ao estalo da matraca, e ao zunido
das cega-regas.

– Abaixo o prelado!

– E mais a sua clerezia!

– Fora com a súcia!

– Não queremos simonia!

– Â fogueira com eles!

– E os formigões?…

– Havemos de pô-los à viola!

– Qual viola, uma pisa!

– E o tal Cláudio?…

– Eu cá, em o pilhando, migo-lhe os focinhos!

Tomando a direção que lhe deu o Ivo, chegou a multidão
em frente à casa do ouvidor, a quem saudou com repetidos clamores,
instando por sua presença.

Velava ainda o Dr. Mustre, cogitando nos sucessos do dia e suas conseqüências;
e pois ouvindo os reclamos do povo, acudiu pronto. Foi recebido com estrondosa
ovação ao aparecer no lumiar da porta.

– Viva o Dr. Portugal!

– Viva!…

– Por muitos e longos anos!

– Viva!…

– São Sebastião, pelo nosso ouvidor!

– Pelo nosso ouvidor!

Destacou-se o Ivo, e acenando aos sujeitos que traziam em charola o Sebastião
Ferreira para chegá-lo à frente, assim falou ao magistrado:

– Aqui estamos, os povos da cidade, e o Sr. Sebastião Ferreira Freire,
a quem por influição do seu e nosso divino padroeiro, escolhemos
e nomeamos por nosso procurador para defender-nos contra a arrogância
da clerezia; e todos vimos para requerer a vossa mercê, como ouvidor
de nossos agravos e principal ministro da Justiça de El-Rei, aquela
que nos é devida, pela afronta que sofremos na pessoa do nosso tabelião.

– Queremos despicá-lo!

– Cala-te daí! Deixa falar o rapaz.

– Está conclusa em mão de vossa mercê, continuou o Ivo,
a devassa tirada contra os criados do prelado; e porque não é
bem que se retarde a punição dos culpados, pedem os povos aqui
reunidos que vossa mercê profira sua respeitável sentença,
para ser executada esta mesma noite; assim que daqui não sairemos sem
ela.

– Venha a sentença! gritou a turba.

Não podia o Dr. Mustre cogitar melhor desforra contra o prelado do
que essa que lhe acabava de sugerir o Garatuja.

Vendo-se apoiado pela efervescência popular, e podendo em todo o tempo
escusar-se a pretexto de coato, decidiu-se o magistrado a responder à
mitrada com uma chibatada de sua vara branca de ouvidor.

– Despachar os feitos com a maior presteza, é da obrigação
do juiz: como é da minha satisfação prover as urgências
dos povos de minha jurisdição, e deferir as suas súplicas,
sendo elas fundadas em boa razão. Esperai enquanto torno!

Já se dissipara o atordoamento em que havia caído o Sebastião
Ferreira; mas ao passo que fora saindo desse embotamento moral, o começara
a invadir uma sorte de embriaguez: era a carraspana dessa jerebita, que chamam
popularidade, e à qual não resistiam os pacíficos tabeliães
de outrora, como também não lhe escapam hoje os nédios
e maciços barões.

Vendo-se à testa daquele ajuntamento de gente, que requeria dos ministros
d’El-Rei em tom de mando, e não de súplica, o nosso tabelião
revestiu-se da sua importância de cabeça dos povos de São
Sebastião, e enchendo-se de entusiasmo, exclamou:

– A sentença, senhor ouvidor, pois se recusais a estes povos a justiça
real, não estranheis que apelem eles para a justiça de Deus!

– Sim, apelaremos!

– Apelemos já!

– Â toca do padre!

– Deite-se fogo à casa!

– Devagar, camaradas, clamou Ivo; é preciso fazer as cousas em regra.
Se os bichos têm de ir lá parar, que vão com todas as
cerimônias.

– Assim é!

– Esperemos a sentença.

Esta não se demorou. Breve assomou de novo à porta o Dr. Mustre,
que deu leitura do decreto judicial pelo qual declarando precedente a devassa,
sujeitava a prisão e livramento aos minorenses, fâmulos do prelado,
ordenando se incluísse seus nomes no rol dos culpados, e se expedisse
mandado de captura.

Com uma salva de aplausos foi acolhida a sentença, da qual o escrivão
ad hoc lavrou logo o termo de publicação, passando incontinenti
o mandado de captura, que foi entregue aos beleguins da Ouvidoria para o cumprirem
com assistência dos povos.

Poucos momentos depois atopetava-se a multidão na Rua da Quitanda
em frente da morada do prelado, cuja cerca foi invadida, e posta em sítio
a casa. Esta conservava-se fechada como estava, e em silêncio, apesar
do vozeio e burburinho do povo. Adiantou-se o beleguim, e batendo na porta
com a vara, proferiu a seguinte intimação:

– Em nome d’El-Rei, e por ordem do senhor ouvidor-geral, intimo os moradores
da casa, ou quem nela estiver, a que abram a porta a fim de cumprir a diligência
que me foi ordenada, e não o fazendo à 3ª notificação,
procederei a arrombamento e penetrarei à viva força e de mão
armada, se for preciso.

Mal acabava o beleguim, que de supetão abriu-se a porta e assomou
nela o vulto do prelado.

– Retirem-se, desavergonhados, que não se pisa a soleira desta casa,
sem nossa vênia!

– Vênia? Nós do povo lha escusamos.

– Avie com isso, meirinho!

Impelido pelo arrojo do popular, o meirinho desenrolou o mandado:

– Com o presente mandado de captura, requeiro a Vossa Reverendíssima,
Sr. Dr. Manuel de Sousa Almada, que entregue à prisão os seus
fâmulos, Cláudio de Sousa…

– Insolente, bradou o padre, cuja cólera fez explosão. Desafio-te
e a essa canalha, que transponham o batente desta porta. Aquele que o fizer
será maldito; em nome de Deus o excomungo, e o teto desta casa se abata
sobre os ímpios que a profanarem.

Ante essa execração, feita com gesto solene e voz retumbante,
a multidão recuou pávida; mas ali estavam os estudantes para
meterem o padre a ridículo, desarmando-o assim do prestígio
que devia exercer no espírito daquela gente.

Rapazes, em lhes dando para rir, não respeitam as cousas mais sagradas;
assim que soltaram os garotos um chorrilho de impropérios:

– Como grunhe o cevado! gritou um brejeiro, aludindo ao painel.

– Anda lá, acudi ti outro farsola; deite os bacorinhos para fora!

Romperam as gargalhadas e chacotas com que a multidão, de novo excitada,
assaltou a casa do prelado.

Terríveis deviam ser as conseqüências desse embate da onda
popular, e não era dado prever, os excessos que praticaria essa plebe,
irritada com a resistência, e dirigida por meia dúzia de rapazes
estouvados.

– Entregue os réus!

– Queremos os .minorenses!

– Havemos de trancafiá-los na cadeia.

O prelado esmagou-os sob o olhar altivo e recolheu-se com a dignidade de
um ministro da Igreja.

XXVI

AINDA UMA VEZ SE PROVA QUE O POVO É EM TODOS OS TEMPOS A MESMA
CRIANÇA TRAVESSA, A QUEM SE ENGAMBELA COM UM DOCE OU UM BONECO

Felizmente nesse momento da maior exacerbação, apareceram ali
os camaristas, acompanhados de outros moradores que andavam na governança
da terra, e tinham preponderância sobre o povo.

Avisados do tumulto que ia pela cidade, e do perigo que ameaçava o
Dr. Almada, receosos por um lado dos desmandos populares, e por outro do desagrado
d’El-Rei que por certo não levaria a bem o desacato à Igreja
com ofensa da dignidade prelatícia, tinham os principais acudido com
presteza no intento de evitar algum desastre.

Chãos e simples. como eram, os ‘homens bons" daquele tempo valiam
mais sem contestação do que os ‘eminentes estadistas",
que por aí andam a granel, pois não há gazeteiro que
os não amasse em tal quantidade que o forneiro-mor ocupado em cozinhá-los
para ministros, não lhes dá vazão.

Às suasões do Batista Jordão, o juiz, às advertências
e rogos dos mais camaristas e principais.. moderou-se a turba, sofreando os
ímpetos com que já investia contra a casa do prelado. Porventura
obteriam os prudentes que se retirasse o ajuntamento, e aguardasse o povo
a resolução que ia tomar o Senado, se não fosse a rapaziada,
que embirrou em levar a sua avante.

– Sem os formigões, daqui não arredaremos o pé!

– Querem que nos retiremos? Pois dêem os culpados à prisão.

– Cumpra o mandado!…

– Ou havemos nós de cumpri-lo.

– Não reconhecemos couto!

– Faremos respeitar a justiça d’El-Rei!

– Não o afrontarão na pessoa do seu ministro, que não
consentimos!

Estas vozes carregadas de ameaças, circunscritas no princípio
ao tropel dos estudantes, se propagavam logo pelo grosso da multidão.
Conheceram os camaristas a dificuldade de obter a dispersão do povo.
sem até certo ponto atender à sua reclamação,
que no fundo era da maior justiça, pois não pedia mais do que
a execução de um mandado expedido pela Ouvidoria da Comarca.

Assentaram então os apaziguadores do motim em instar com o prelado
para entregar os minorenses à prisão, por bem da paz e para
evitar dano irreparável.

– É preciso lavrar o auto de resistência, ponderou um dos camaristas.

– Meirinho!…

O beleguim sacou do bolso o tinteiro de chifre, e sentando-se na soleira
da porta. começou a lavrar sobre o joelho o auto de resistência
que precede ao arrombamento.

Aproveitaram-se os camaristas dessa pausa para interporem sua mediação;
e avisado o meirinho que demorasse quanto pudesse a sua grifaria, alcançaram
o juiz e o procurador que o prelado os admitisse a entrar para conferirem
sobre o caso.

A princípio mostrou-se intratável o reverendo; mas ouvindo
a vozeria do povo. que já revolvia-se impaciente com a demora da conferência,
e percebendo o terror de que se achavam possuídos os próprios
camaristas, assustados com os excessos em que ia romper o motim, tornou-se
mais acessível à acomodação.

Insistira o juiz nestes termos:

– Não dizemos que Vossa Reverendíssima entregue seu sobrinho,
ou aqueles fâmulos seus de mor estimação; porém
os outros… se os entregasse, podia-se alcançar do povo que se aquietasse,
enquanto que assim recusando-lhe tudo, vai-se irritando, e ao cabo quem sofre
somos todos nós.

– Os clérigos menores, de hábito e tonsura, fâmulos da
Igreja, de que sou humilde ministro, esses, senhor juiz, não há
poder que mos faça entregar à justiça secular, da qual
não são súditos.

– Neste caso caia sobre Vossa Reverendíssima o peso das calamidades,
que vai acarretar a sua obstinação.

– Havia um meio, insinuou o prelado.

– Vossa Reverendíssima dirá.

– Tenho aí dois moços que ainda não receberam a tonsura,
mas destino-os também para clérigos, se forem aptos. Esses,
vestindo-lhes o hábito, podiam servir para apaziguar a canalha, se
Vossas Mercês interpuserem seu bom conselho.

O primeiro impulso dos camaristas foi repelir essa mistificação,
mas urgia um remédio qualquer, se não queriam ver desencadear-se
a fúria popular, alagando a cidade de sangue.

Vieram os tais moços, como os chamava o prelado. Eram um moleque e
um caboclo, ambos cativos, os dois coitados, que iam servir de vitimas expiatórias
das estrepolias dos minorenses. Vendo-os, quiseram recuar os camaristas; mas
o povo fora rugia de cólera, e começava a assaltar as janelas
com pedras e calhaus.

– Ao menos, observou o Chaves, que era gracioso, arranjemos-lhes uma tonsura,
ou coisa que se pareça. Venha lá uma tesoura.

Enquanto se metiam o moleque e o caboclo em hábito e tonsura, saiu
o juiz à porta:

– Moradores de São Sebastião, e povos da cidade! Por bem da
paz e sossego de todos pensamos em conferenciar com o reverendíssimo
prelado sobre a entrega dos réus; e mostrando a plena justiça
da vossa reclamação, o reduzimos a restituir desde já
à prisão dois dos culpados, fazendo o mesmo aos outros logo
que os tenha à mão.

– Todos, queremos, todos e já!

– Mas como? gritou o Chaves. Se amolaram as palanganas, e lá se vão
zunindo!

– Aonde?

– Para o mosteiro em busca de asilo. Agora é assobiar-lhes às
botas, ou aos calcanhares.

– Pega! exclamou um mais ardente e disparou a correr.

Outros o seguiram maquinalmente. Ao mesmo tempo o meirinho com seus acólitos,
capturando os dois improvisados minorenses, se afastaram com eles, levando
após a maior porção do povo.

Assim conseguiram os camaristas salvar a casa do prelado da devastação
que a ameaçava.

A poucos passos de distância os estudantes, expulsando os beleguins,
tomaram conta dos presos e fizeram com eles coisas do arco-da-velha. Basta
que, no dia seguinte, o caboclo amanheceu em cuecas, atado a um mastro, à
guisa de judas em sábado d’aleluia, e com o couro pintado de azul.
Quanto ao moleque, nu em pêlo, com uma crosta de vermelhão que
o envolvia do cabelo à sola dos pés, e com o apêndice
de um cabo de navio servindo-lhe de cauda, saltava no meio da rapaziada em
figura de diabrete, e representava menos mal o seu papel de palhaço
do inferno.

Era já dia claro; e ainda o motim percorria as ruas da cidade, esperando
a hora da sessão, que a Câmara convocara para o quartel do governador.

XXVII

ONDE SE VÊ A IMPORTÂNCIA JURÍDICA DO MEDO NA DECISÃO
DOS CASOS MAIS INTRICADOS DA TEOLOGIA

A casa de residência do governador, ou seu quartel, como diziam então
pelo respeito ao elevado posto de capitão-general, ainda estava por
aquela época na Rua da Cruz, que depois veio a ser Rua Direita, e ultimamente
com o sestro em que deu a nossa vereança passou a Rua de 1º de
Março.

Essa mania de mudar os nomes às ruas e pô-los à moda,
é nada menos que uma barbaria e degradação igual à
que se perpetrava com os antigos monumentos e quadros empastando-os de arrebiques
à moderna. Em um caso, profanação da arte; em outro,
profanação da história: dois relicários do coração
humano.

Nas mudanças sucessivas por que passa o nome de uma parte da grande
cidade, escreve o povo fluminense um capítulo da sua história
íntima. Assim, folheai essa página de pedra e cal, que se chamava
até o ano atrasado Largo do Paço.

Sua primeira designação, nos tempos primitivos, foi campo do
Ferreiro da Polé. Subiu depois a Rossio quando as casas o cercaram.
Carmo, atesta a edificação do convento dessa Ordem; Terreiro
do Governador, a residência da primeira autoridade da capitania; Praça
do Palácio, a elevação de cidade a capital de vice-reinado;
e finalmente Paço, a corte real que pouco tardou em trocar-se por imperial.

Entretanto que significa Pedro II escrito naquelas esquinas? Simples lisonja
de cortesão. O augusto filho do fundador do império não
tem particularidade alguma com essa praça, onde estão os paços
que, se hoje o hospedam, foram de seu pai e de seu avô; e triste daquele
a quem cinge uma coroa, se carecesse de uma esquina de rua para ir à
posteridade!

O que dizemos do primeiro cidadão, aplica-se aos patriarcas e aos
outros medalhões da política. Erijam-lhes estátuas de
ouro, se quiserem; levantem-lhes monumentos de bronze; dediquem-lhes templos
e altares; mas não se meta a câmara a tralhona, usurpando essa
prerrogativa do povo soberano de criar os nomes e formar as tradições
de sua cidade natal.

Se não mente a crônica, era no lugar onde está hoje a
Caixa da Amortização e Correio, que se levantava a residência
do governador, a qual foi destruída na invasão dos franceses
em 1710.

Para aí se dirigiram desde as 7 horas o juiz e oficiais da Câmara,
bem como as pessoas gradas e sabedoras pelo senado convocadas; iam todos solícitos
de acudir com pronto remédio ao sucesso extraordinário que desde
a véspera trazia em alvoroto a cidade.

Esperava-os o Governador Tomé Correia de Alvarenga, não menos
sôfrego de pôr termo à agitação do povo.
Durante a noite, ciente do que ia pela cidade, mandou ficar sua guarda assim
como a gente do terço a postos e de prontidão para o que pudesse
acontecer; mas fez-se desentendido, e absteve-se da menor intervenção.

Empenhado em arranjar uma representação da Câmara e povos
de São Sebastião pedindo a El-Rei para provê-lo, a ele
Tomé Correia, no efetivo governo das capitanias no sul, que estava
servindo interinamente, tratava de agradar a todos e pois não lhe convinha
tirar razões e ir às mãos com o motim que era lá
com a clerezia.

Ao entrar a sessão, ouviu-se na rua grande alarido. Era a troça
dos estudantes que voltava, trazendo no centro o tabelião e à
frente o moleque lambreado de vermelho, e montado em um cabrito. Atrás
vinha uma súcia de meninos que seguravam a cauda do diabrete, como
se fosse a amarra de uma âncora.

– Senhor juiz e oficiais em Câmara, gritou o Ivo, aqui trazemos a Vossas
Mercês este exímio teólogo para consultar sobre o caso
intrincado. É grande sabedor de excomunhões, bruxarias e demonices.

Gargalhada estrondosa, seguida de formidável apupada.

– Salta, capeta!

– Silêncio, que o cabrito vai espirrar!

– Não é espirro. É um latinaço que lhe esguichou
pelas ventas.

– Então o cabrum é doutor?

– De borla e capelo.

– Quiá!… Quiá!… Quiá!…

De véspera esperava-se que a sessão convocada pela câmara
fosse das mais importantes de que havia notícia, já pela gravidade
das circunstâncias e já pelos grandes luzeiros da ciência
que tinham de dar seu voto.

Nessa conformidade se tinham preparado os teólogos e juristas, recheando-se
de latim, abarrotando-se de citações abstrusas, para desbancar
os argumentos ex-adverso. Dir-se-iam os improvisadores do atual parlamento
em véspera de um debate solene.

Bom é saber-se que dos teólogos, só os jesuítas
propendiam para o ouvidor, por espírito de oposição à
mitra; e dos juristas apenas o licenciado Figueiredo, por ser patrono do tabelião,
encostava-se ao parecer daqueles.

Os mais, ou pelo anexim popular de que "lobo não come lobo",
ou pelo receio de jogar as cristas com a Igreja, eram todos pelo prelado,
e se dispunham a sustentar em Câmara, com uma torrente de doutores,
que a excomunhão fora decretada conforme o direito e leis da Igreja
e do Reino, não podendo suspender-se pela interposição
do recurso, que só tinha o efeito devolutivo.

Durante a noite, porém, operou-se grande mudança no espírito
dos sábios teólogos e juristas; parece que o livro do povo ali,
à rua, aberto em todas as páginas, ensinou-lhes mais em uma
hora, do que haviam aprendido toda a vida em comentários e tratados
de praxistas.

Assim, logo cedo compareceram, não mais para arrazoados jurídicos,
senão para tomar uma deliberação, com que o povo se acomodasse.
Do prurido de disputações, se algum ainda tinha resquícios,
a vaia dos estudantes acabara de aplacá-lo de todo.

Decidiram em Câmara por unanimidade que a apelação interposta
suspendia a excomunhão como entre outros doutores sustentavam Farinácio
Scácia e o Senador Temudo; e pois continuava o ouvidor no exercício
de sua jurisdição, devendo aguardar-se a decisão superior
e representar se a El-Rei sobre a necessidade de uma providência que
de futuro evitasse tão graves conflitos entre a autoridade eclesiástica
e secular.

Neste sentido, diz o Dr. Baltasar da Silva Lisboa escreveu se ao prelado
intimando que suspendesse a censura até determinação
de Sua Majestade.

Assim terminou aquela refrega do povo fluminense cujo último ato foi
conduzir em triunfo à sua casa o cabeça do motim.

O velho e pacato Sebastião Ferreira Freire ia um tanto amarrotado
das bolandas em que andara; porém satisfeito a mais não poder
com a desforra que tomara do prelado e sua gente.

XXVIII

MAIS UM EXEMPLO DA INGRATIDÃO DAQUELES A QUEM A POPULARIDADE
ELEVA AO PINÁCULO DA GLÓRIA

Três dias depois dos acontecimentos referidos, terminado o jantar,
espaciava o tabelião pela cerca, saboreando ainda a ovação
que havia recebido, e pavoneando-se em sua importância.

Ao passar junto de um arvoredo embastido, pareceu-lhe ouvir um sussurro de
vozes e espreitando por entre a folhagem, descobriu sua filha Marta em requebros
e galanteios com o Ivo.

O rapaz instava por aquela beijoca, há tanto tempo pedida e desde
então negaceada pela sonsa da menina, que bem desejos tinha de a receber,
mas faltava-lhe o ânimo de consentir. Coisas de namorados.

Cansado já de instâncias, queixumes e arrufos, que tudo havia
debalde empregado, usou Ivo de esperteza. Disfarçando para apanhar
Marta desprevenida, enlaçou-a de repente pela cintura, e prendendo-lhe
os braços, conchegou-lhe o talhe ao peito, para colher os lábios
vermelhos, que em vão tentavam fugir.

Já o beijo abria as asas arrulando sobre a mimosa boquinha, quando
se interpôs como uma cabeça de medusa. o ruivo chinó do
tabelião.

– Alto lá!… gritou o Sebastião Ferreira.

Confusos e trêmulos, os dois namorados encolhiam-se como se esperassem
esconder-se dentro em si ao sobrolho crespo do pai irritado. Contemplou-os
o Sebastião alguns instantes a gozar do seu enleio, e travando a cada
um do braço, levou-os de roldão ao cartório.

Ainda lá estava o escrevente juramentado, aproveitando a última
réstia de dia. o garatuja 75

– Lavre-me uma escritura de esponsais, visto ser eu suspeito, e competir-lhe
a substituição. Sem detença.

– Pronto! respondeu o escrevente com o livro aberto.

– Entre partes, 1º outorgante Maria Sebastiana Ferreira Freire, por
um lado, e pelo outro Ivo… – Ivo… Ivo de quê? perguntou ao enjeitado
atônito.

– Ivo das Ervas…

– Escreveu?

– Das Ervas, disse o escrevente repetindo a deixa.

O tabelião deu tempo a fazer o cabeçalho da escritura. Marta
morria-se de susto e vergonha, não atinando com o que vinha a ser aquela
cerimônia. Tão peco não era o rapaz, que estremecia, mas
de comoção e júbilo.

– E pela 1ª outorgante foi dito que de sua mui livre e espontânea
vontade, sem a menor coação, e com o consentimento de seu pai
e mãe, promete casar-se com o 2º outorgante na forma do Sagrado
Concilio Tridentino, levando-lhe em dote o direito de sucessão deste
oficio de tabelião e a quinta parte do que render o contado, em vida
do atual serventuário, pai dela outorgante. Mas declara que é
isto sob a condição de nunca mais trabalhar o dito 2º outorgante
como artífice de pincel, ou cousa que se pareça, deixando para
todo o sempre o baixo mister da pintura, e ocupando-se tão-somente
do serviço do cartório, o que há de firmar sob juramento,
e não o cumprindo, ficarão de nenhum efeito estes esponsais.

– Mas… ia recalcitrando o Ivo.

– Se quiser é assim. Pintor é casta que me não entra
cá na família. Marta há de casar-se com um escrevente,
para que eu tenha sucessor.

O Ivo coçou a orelha.

– Mas podia vossa mercê esperar pelo neto, que lhe havemos de dar.

– Arranje-se você lá com ele; eu cá preciso segurar-me,
que já estou maduro.

Tinha o Ivo amor a seus pincéis e sonhava com a glória; mas
os olhos pretos de Marta volviam para ele com um tão mavioso requebro.

– Decida! tornou o tabelião.

– Aceito.

– E pelo 2º outorgante foi dito que de sua parte aceitava e prometia
sob juramento, et cetera, et cetera.- Menina, chama tua mãe para assinar.

Enquanto o escrevente punha o fecho da escritura, o Sebastião Ferreira
fez o Ivo jurar sobre um missal a condição a que ficava sujeito
para obter a mão de Marta.

Concluída a cerimônia, voltou-se o tabelião para os dois
noivos:

– Agora podem-se beijar, na conformidade da lei.

Mas esse beijo ob veniam paternam e como sanção do contrato
esponsalício, era desenxabido e não tinha o sainete daquele
que o velho tio desastradamente perturbara. O Ivo pousou ao de leve os lábios
na fronte rubescente de Marta, prometendo-se mais tarde, naquela mesma noite
talvez, roubar à boca faceira de sua amada, outro beijo mais saboroso.

O casamento dos noivos efetuou-se um ano depois. Já compenetrado da
realidade da vida, o Ivo esquecera os seus pincéis, para tornar-se
um escrevente de cartório, ao gosto do futuro sogro, a quem devia suceder.
Viveu feliz; e se alguma vez lhe perpassavam pela mente os sonhos de glória,
que haviam embalado sua juventude, era nuvem passageira.

A leal cidade de São Sebastião perdera um artista, o primeiro
talvez que nasceu em seu seio; mas nem se apercebeu disso, como não
se apercebe ainda hoje dos talentos que a sua indiferença vai mirrando,
e caem por aí esmagados sob a pata do charlatanismo insolente.

Veja também

John Locke

PUBLICIDADE John Locke, nascido em Wrington (Inglaterra), estudou em Oxford. Em 1688, fora nomeado membro …

Gugu Liberato

PUBLICIDADE Antonio Augusto Liberato de Moraes, muito conhecido por” Gugu”, foi um importante apresentador de …

Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche

PUBLICIDADE Quem foi Friedrich Nietzsche? O filósofo alemão influente Friedrich Nietzsche (1844-1900) é conhecido por seus …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site é protegido por reCAPTCHA e pelo Googlepolítica de Privacidade eTermos de serviço aplicar.