João Guimarães Rosa

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Nascimento: 27 de junho de 1908, Cordisburgo, Minas Gerais.

Falecimento: 19 de novembro de 1967, Rio de Janeiro.

Poeta, Narrador, médico e diplomata brasileiro, nascido em Cordisburgo (no Estado oriental de Minas Gerais), em 1908, e faleceu no Rio de Janeiro em 1967.

Humanista versátil e fecundo, especializados em equilibrar preocupações científicas, os seus interesses literários e seus serviços público prestados ao seu país natal, deixou uma forma brilhante de legado que se destaca pela sua ousadia experimental.

O esplêndido romance Grande Sertão: Veredas (1956), um exercício fascinante da criação linguística e inovação genérico em que a remoção deliberada de fronteiras entre o lírico e discursos narrativos dá origem a uma sinfonia harmoniosa lexical governado pelos caprichos de melódica da língua.

João Guimarães Rosa – Vida

João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa

Nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais. Passou a infância no centro-norte de seu estado natal, onde o pai exercia atividades ligadas à pecuária. Cursou o secundário e a faculdade de Medicina em Belo Horizonte. Graduado, trabalhou em várias cidades do interior mineiro, sempre demonstrando profundo interesse pela natureza, por bichos e plantas, pelos sertanejos e pelo estudo de línguas (estudou sozinho alemão e russo).

Em 1934, iniciou carreira diplomática, prestando concurso para o Ministério do Exterior – serviu na Alemanha durante a II Guerra Mundial e posteriormente na Colômbia e na França.

Em 1958, foi nomeado ministro; é dessa época o reconhecimento da genialidade do escritor, em conseqüência da publicação de Corpo de baile e Grande sertão: veredas, ambos de 1956.

Em 16 de novembro de 1967, tomou posse na Academia Brasileira de Letras; três dias depois, em 19 de novembro, morreu no Rio de Janeiro.

Cronologia

João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa

1908: Nasce João Guimarães Rosa, no dia 27 de junho, em Cordisburgo (Minas Gerais, Brasil).
1918:
Vai para Belo Horizonte estudar no Colégio Arnaldo.
1925:
Ingressa na Faculdade de Medicina de Minas Gerais.
1929:
é nomeado funcionário do Serviço de Estatística de Minas Gerais. Escreve quatro contos, premiados em concurso da revista O Cruzeiro.
1930:
Forma-se em medicina e casa-se com Lygia Cabral Pena.
1931:
Inicia carreira de médico em Itaguara. Minas Gerais. Nasce sua filha, Vilma.
1932:
Atua como médico voluntário da Força Pública, por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932.
1933:
Vai para Barbacena como Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria.
1934:
Presta Concurso para o Itamarati, aprovado em 2º lugar. Nasce sua segunda filha, Agnes.
1936:
O livro de poemas Magma vence o Prêmio da Academia Brasileira de Letras.
1937:
Escreve os contos que iriam formar o futuro livro Sagarana. Concorre ao Prêmio Humberto de Campos, da Editora José Olympio. Obtém o 2º lugar.
1938:
É nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo. Lá conhece Aracy Moebius de Carvalho, que viria a ser sua segunda mulher.
1942:
O Brasil rompe com a Alemanha, e Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden. Retorna ao Brasil e segue para Bogotá, como Secretário de Embaixada, permanecendo até 1944.
1945:
Viagem ao interior de Minas Gerais e excursão ao Mato Grosso.
1946:
Sagarana é publicado pela Editora Universal. O livro recebe o Prêmio Sociedade Felipe d’Oliveira. Rosa é nomeado chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.
1947:
Publicação da reportagem poética Com o Vaqueiro Mariano, no jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro.
1948:
Está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana.
1948/51:
1º Secretário e Conselheiro da Embaixada em Paris. Volta ao Brasil como Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura.
1952:
Retorna aos seus “gerais” e participa de uma viagem pelo sertão.
1953:
torna-se Chefe da Divisão de Orçamento.
1956:
Publica Corpo de Baile. Em maio, lança Grande Sertão: Veredas que irá receber os Prêmios Machado de Assis, Prêmio Carmem Dolores Barbosa e Prêmio Paula Brito.
1957:
Primeira Candidatura à Academia Brasileira de Letras.
1961:
Recebe pelo conjunto da obra o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
1962:
Publica Primeiras Estórias. No Itamarati, assume a Chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras.
1963:
Candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras, e é eleito por unanimidade a 8 de agosto.
1965/66:
Seus livros são traduzidos no exterior (França, Itália, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Espanha, Polônia, Holanda e Checoslováquia).
1967:
Representa o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, como vice-presidente. Publica Tutaméia – Terceiras Estórias. Em 16 de novembro, toma posse na Academia Brasileira de Letras. Falece a 19 de novembro, vítima de enfarte.
1968:
É publicado o volume Em Memória de João Guimarães Rosa, pela Ed. José Olympio.
1969/70:
São publicados postumamente os livros Estas Estórias e Ave, Palavra.

João Guimarães Rosa – Biografia

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, teve como pia batismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária – uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné.

Era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por “seu Fulô” – comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias.

O nome do pai, de origem germânica – frod (prudente) e hard (forte) –, e o nome da cidade natal, o “burgo do coração” – do latim cordis, genitivo de cor, coração, mais o sufixo anglo-saxônico burgo –, por sua sonoridade, sua força sugestiva e sua origem podem desde cedo ter despertado a curiosidade do menino do interior, introvertido e calado, mas observador de tudo, estimulando-o a se preocupar com a formação das palavras e com seu significado. Esses nomes de quente semântica poderiam ter sido invenção do próprio Guimarães Rosa. Outro aspecto notável de sua obra foi sua preocupação com o ritmo do discurso, desde cedo manifestada, que o ajudaria a compor, mais tarde, juntamente com outros atributos, a magistral prosa-poética rosiana.

Aos 7 anos incompletos, Joãozito começou a estudar francês, por conta própria.

Em março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual o menino fez amizade imediata.

Em companhia do frade, iniciou-se no holandês e deu prosseguimento aos estudos de francês, que iniciara sozinho. Aos 9 anos incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre Candinho, em Cordisburgo.

Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se – não suportava a comida, retornando a Belo Horizonte matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e, desde logo, para não perder a oportunidade, tendo se dedicado ao estudo da língua de Goethe, a qual aprendeu em pouco tempo.

Sobre seus conhecimentos lingüísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G.*, com apenas 16 anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor, recentemente falecido, quando cursavam o 2º ano, em 1926, ocorreu a morte de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela. O corpo do estudante foi velado no anfiteatro da Faculdade.

Estando Ismael de Faria junto ao ataúde do desventurado Oseas, em companhia de João Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”, que seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Em 1929, ainda como estudante, João Guimarães Rosa estreou nas letras.

Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Visava mais os prêmios (cem mil réis o conto) do que propriamente a experiência literária; todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930. Mais tarde, Guimarães Rosa confessaria que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a moldes alheios – era como se garimpasse em errada lavra.

Seja como for, essa primeira experiência literária de Guimarães Rosa não poderia dar uma idéia, ainda que pálida, de sua produção futura, confirmando suas próprias palavras em um dos prefácios de Tutaméia: “Tude se finge, primeiro; germina autêntico é depois.”

Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes; essa primeira união não dura muito, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G.*, tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro Passos. O fac-símile do quadro de formatura encontra-se atualmente na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, da Faculdade de Medicina da U.F.M.G. No referido quadro de formatura está estampada a clássica legenda, em latim, com os dizeres “FAC QUOD IN TE EST”; figura, também, a reprodução de uma tela do pintor holandês Rembrandt Van Rijn em que é mostrada uma aula de anatomia (A lição de anatomia do Dr. Tulp, datada de 1632).

O discurso do orador da turma foi publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23 de dezembro de 1930.

Depois de formado, Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, então município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos; ali, passa a conviver harmoniosamente até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por “seu Nequinha”, que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi.

Seu Nequinha era adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem do Grande Sertão: Veredas. Ademais, consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha de percorrer. No conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério – comum entre os médicos que exerciam seu ofício na zona rural – de condicionar o montante da remuneração a ser recebida à distância percorrida para visitar o doente.

Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto – Uai, eu?, de Tutaméia.

Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina. Aliás, foi justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz elétrica, que o futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, Antônio Augusto de Lima Coutinho, chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já estava resolvido. É ainda Vilma quem relata que sua mãe chegou a se esquecer das contrações para apenas se preocupar com o marido – um médico que chorava convulsivamente!

Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos àquela cidade. Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha; uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em conversa com os “calões” na “língua disgramada que eles falam”, como diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de Sagarana, que resolveu “viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles”. Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia, Guimarães Rosa refere-se com especial carinho a essa gente errante, com seu peculiar modus vivendi, seu temperamento artístico, sua magia, suas artimanhas e negociatas.

De volta de Itaguara, Guimarães Rosa atua como médico voluntário da Força Pública, por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932, indo servir no setor do Túnel. Posteriormente entra para o quadro da Força Pública, por concurso. Em 1933, vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – “quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação”. Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco.

Quando Guimarães Rosa servia em Barbacena, um amigo de convívio diário, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo lugar.

Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de “vocação” para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:

Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre ‘après avoir couché avec…’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material – só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez – nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.

Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. Ademais, embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D. Aracy.

Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém. A concessão da homenagem foi precedida por pesquisas rigorosas com tomada de depoimentos dos mais distantes cantos do mundo onde existem sobreviventes do Holocausto.

Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Com efeito, Guimarães Rosa, na qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes dos judeus, facilitando sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo governo brasileiro e pelas autoridades nazistas, exceto quando o passaporte mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor, D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de Davi que os nazistas pregavam nos documentos para identificar os judeus. Nos arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa. Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo.

Apenas dizia: “Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência.”

Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, cognominado “o pequeno Chagall dos trópicos” já que, no início de sua carreira, tentou adaptar para a temática dos trópicos a maneira do pintor, gravador e vitralista russo MarcChagall, recentemente falecido. Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de “morte parcial” vivida pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas).

Em dezembro de 1945 o escritor retornou à terra natal depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina.

Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.

Em 1948, Guimarães Rosa está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951, de volta ao Brasil, é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador). Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.

Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus “gerais” e participa, juntamente com um grupo de vaqueiros, de uma longa viagem pelo sertão; o objetivo da viagem era levar uma boiada da Fazenda da Sirga (município de Três Marias), de propriedade de Chico Moreira, amigo do escritor, até a Fazenda São Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40 léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias, dela participando Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim. Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava – “ele perguntava mais que padre” –, tendo consumido “mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes”, com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja – usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias…

Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve para os pais:

Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão.

E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos”… “Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

A partir de 1958, Guimarães Rosa começa a apresentar problemas de saúde e estes seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda.

A propósito, na referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:

… também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.

É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a matéria – “… the nothingness of matter and the allness of spirit” –, negando categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte.

Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois.

Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes.

Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do país.

A posse na Academia Brasileira de Letras ocorreu na noite de 16 de novembro de 1967.

Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa nota-se, claramente, ao final do mesmo, sua voz embargada pela emoção – era como se chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena consciência de que chegara sua HORA e sua VEZ. Com efeito, três dias após a posse, em 19-XI-1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro.

Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo, estamparia em sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres: “MORRE O MAIOR ESCRITOR”.

* A Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, fundada em 1911, passou a chamar-se, a partir de 1927, Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (Faculdade da UMG); embora federalizada em 1949, somente em 1965 pasou a vigorar a denominação Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (Faculdade de Medicina da UFMG).

O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23 de dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse lingüístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa sua oração argumentando com uma “lição da natureza”:

Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de troncos alheios logra ella chegar á altura – faltando-lhe as raizes, que sómente os annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas.

Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha bocca a discussão de um thema scientifico, nem ponha nesta despedida these alguma de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem incolor dos semidoutos e o plagio ingenuo dos compiladores.

Em seguida, evoca a origem medieval das solenidades universitárias:

Venho tão unicamente pedir a palavra de senha ao nosso Paranympho, nesta hora plena de emoção para nós outros, quando o incenso das bellas cousas velhas, desabrochando em nossa alma a flor do tradicionalismo, nos evoca Iena, a douta, e Salamanca, a inesquecível, emquanto o anel symbolico faz-nos sonhar com uma leva de Cavalleiros da Ordem da Esmeralda, que recebessem a investidura ante magica frontaria gothica, fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitraes.

Dando continuidade ao discurso refere-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio pelos problemas da gente brasileira:

E a sua sabia eloquencia discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e as condições do nosso meio infectante.

Mais adiante, continua

Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a servir de pasto.

Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘…et sans amour…’

Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista, humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna, bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos atos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da expressão, homens no meio dos homens.

Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘… como a ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo.

Tambem, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor collaboradora dos clinicos avisados.

De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os companheiros o abanassem.

E a um deles, que se offerecera trazer-lhe modernissimo ventilador elétrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento, respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘ – Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas sim a solicita solidariedade dos meus amigos…’

Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o medico da familia?

Mais adiante refere-se às pesadas críticas de que sempre foram alvo os médicos, destacando entre os que tentaram denegrir a classe a figura do genial dramaturgo Molière e fazendo menção a sua peça L’Amour Médecin, mas contrapõe a essas críticas uma série de gestos meritórios e de real grandeza praticados por médicos abnegados, a ponto de elas lhe parecerem cada vez mais injustificadas:

Ao lado dos sacerdotes e dos estrangeiros, os medicos sempre alcançaram o record indesejavel de principaes personagens do anecdotario mundial.

Satiras, comedias e bufonices não os pouparam.

Era fatal. As anecdotas representam a maneira mais commoda das massas apedrejarem, no escuro do anonymato, os tabus que as constrangem com sua real ou pretensa superioridade.

E Molière, hostilizando durante toda a vida medicos e medicina com tremenda guerra de epigramas, não passou de um speaker genial e corajoso da vox populi do seu tempo.

Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.

A causa?

Parece-me simples.

É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’, arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!

Guimarães Rosa prossegue em sua linguagem peculiar e, já na parte final do discurso, refere-se à “Oração” do “illuminado Moysés Maimonides”:

Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico, ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o humano, naquelle que soffre!…

E terminando:

Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento, mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza: ‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero, é que o socorro já vem perto!).

E, quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as despedidas dos meus collegas, eu lamento não poderem falar-vos todos elles a um tempo, para que sentisseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.

posse na Academia Brasileira de Letras ocorreu na noite de 16 de novembro de 1967 sendo que, na oportunidade, o escritor foi saudado por Afonso Arinos de Melo Franco – mineiro de Belo Horizonte, mas com fortes laços a ligarem-no à legendária e sertaneja Paracatu –, que pronunciou importante discurso denominado O Verbo e o Logos.

Em fragmento exemplar de sua oração, Afonso Arinos procura estabelecer um paralelo entre a obra de Mário de Andrade e a de Guimarães Rosa, ambos “revolucionários”, mas cada um a seu modo:

Não me parece possa haver comparação entre o vosso e o estilo de Mário de Andrade, como algumas vezes se tem feito.

A renovação lingüística que Mário se propôs era mais imediata, impetuosa e polêmica; em uma palavra: destruidora. O grande polígrafo tinha em vista, ao lado da criação própria, demolir, arrasar as construções condenadas da falsa opulência verbal ou do academicismo tardio. O trabalho de demolição se faz às pressas e, no caso de Mário, com uma espécie de consciência humilde do sacrifício que impunha à própria durabilidade. No vosso caso, a experiência, pela época mesma em que começou, foi sempre construtiva. Não tendes em vista derrubar nada, desfazer nada de preexistente, mas levantar no espaço limpo. Não sois o citadino Mário, que precisava dinamitar o São Paulo burguês para erguer no chão conquistado a Paulicéia desvairada. Sois o sertanejo Rosa, conhecedor dos grandes espaços e forçado a tirar de si mesmo, no deserto, os antiplanos e os imateriais da construção. Devemos respeitar a Mário pelo propósito de sacrificar-se na destruição. Podemos admirar e partilhar em vós a esperança construtora. Não esqueçamos que os chapadões do Brasil Central permitiram, nas artes plásticas, a maior aventura de liberdade formal do mundo moderno, que é Brasília. Ali nada se demoliu, tudo se construiu, no campo livre. Despertastes as inusitadas palavras que dormiam no mundo das possibilidades imaturas.

Fizestes com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com as linhas e os volumes inexistentes: uma construção para o mundo, no meio do Brasil.

Ressalte-se que três dias antes da posse do novo acadêmico fora lançado no Rio de Janeiro o livro Acontecências, de sua filha Vilma, que estreava como escritora.

Guimarães Rosa não teve coragem de comparecer ao evento e escreveu, compungido, para a “jovem colega”: “Vir eu queria, queria. Posso não. Estou apertado, tenso, comovido; urso. Meu coração já está aí, pendurado, balançando. Você, mineirinha também, me conhece um pouquinho, você sabe.” Na noite da posse o novo acadêmico mais parecia um menino arrebatado, incapaz de se conter mas, ao mesmo tempo, sendo obrigado a fazê-lo; um menino grande que tivesse obtido nota 10 nos exames finais… Ao invés da atitude ligeiramente superior que se poderia esperar de um “imortal” em data tão solene, deixava transparecer sua satisfação, sua alegria, seu encantamento. Chegara a pedir ao presidente da Academia, Austregésilo de Athayde, que encomendasse uma banda de música, incumbida de atacar “fogosos dobrados” e mais uma “meia dúzia de foguetes” para compor o clima de festa. Como se pode ver, uma atitude diametralmente oposta à de outro mineiro, também de forte ascendência galega, o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade, tão avesso às honras acadêmicas…

No discurso de posse (1 h e 20’ de duração), Guimarães Rosa procura traçar o perfil do seu antecessor e amigo, o ministro João Neves da Fontoura, de quem fora chefe-de-gabinete no Itamarati; refere-se, também, ao patrono da cadeira n. 2 da Academia, Álvares de Azevedo – “o que morreu moço, poento de poesia” – e ao fundador dessa mesma cadeira, Coelho Neto – “amoroso pastor da turbamulta das palavras”. Vale lembrar que, nos dias que antecederam a posse, o escritor recorrera ao médico Pedro Bloch a fim de que este o ajudasse a controlar rigorosamente a voz, a respiração e a velocidade de leitura do discurso, em mais uma demonstração de forte tendência perfeccionista.

No início de sua oração, o novo acadêmico refere-se com grande ternura à terra natal e ao fato de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por “Cordisburgo”:

Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: ‘Os pastos de Vista Alegre’. Santo, um ‘Padre-Mestre’, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha sido talvez seu único gesto desengajado, gratuito. Tomada da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico.

Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou ‘O Burgo do Coração’. Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.

Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz Cordisburgo…’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do Sul’.

Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de pungente beleza, em que fala sobre a fé e a amizade:

João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte.

Até que falou: – ‘A vida é inimiga da fé…’ – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a ação é um enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim…’ Posso calá-lo?

Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento.

E Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, “impregnado de hinduísmo”; repetindo a frase “as pessoas não morrem, ficam encantadas”, que pronunciara pela primeira vez em 1926, diante do ataúde do desventurado estudante Oseas, vitimado pela febre amarela; referindo-se ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem em sua obra, o majestoso habitante das veredas – cognominado “a palmeira de Deus” –, hoje em processo de extinção mercê do instinto predatório de inescrupulosos que visam o lucro a qualquer preço; e, finalmente, apresentando-se a João Neves como “Cordisburgo”, última palavra pública que pronunciou:

Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira.

De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas.

Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.

Mas – o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?

‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para provar que viveu.

Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: João Neves da Fontoura.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas.

E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O mundo é mágico.

— Ministro, está aqui Cordisburgo.

FEITICEIRO DAS PALAVRAS, CABOCLO UNIVERSAL

-Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas…

Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão.

Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior!

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho.

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda parte. Grande Sertão: Veredas

Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa

Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens.

João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa

“Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim.”

Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são minha maior aventura.

Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu, em 19 de novembro de 67, Guimarães Rosa tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. Depois desse volume, escreveria apenas outros quatro livros. Realização, no entanto, que o levou à glória, como poucos escritores nacionais. Guimarães Rosa, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo.

“A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão.” Grande Sertão: Veredas

Três dias antes da morte, Guimarães Rosa decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Homem de temperamento emotivo e sensível, foi traído pela emoção. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria.

Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: “…a gente morre é para provar que viveu.”

Joãozito, como era chamado pela família, nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, cidadezinha mineira próxima a Curvelo e Sete Lagoas, área de fazenda e engorda de gado. Viveu lá durante dez anos. João era filho de Floduardo Pinto Rosa e de Francisca Guimarães Rosa. O casal teve outros 5 filhos.

Todos depois de João.

João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa

“Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.”

Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, LES FEMMES QUI AIMMENT. Aos dez anos, vai para Belo Horizonte, morar com o avô.

Está no ginasial, e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond, o futuro amigo.

“Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar” Carlos Drummond de Andrade

João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa

Até ingressar na Faculdade de Medicina, João Guimarães Rosa obtém licença para freqüentar a Biblioteca da Cidade de BH, dedicando o seu tempo, além dos estudos, às línguas, à História Natural e aos Esportes. Em 1930, formado, o médico vai exercer a profissão em Itaguara, onde fica por dois anos. Guimarães revela-se um profissional dedicado, respeitado, famoso pela precisão dos seus diagnósticos. O período em Itaguara influi decisivamente em sua carreira literária.

Para chegar aos pacientes, desloca-se a cavalo. Inspirado pela terra, costumes, pessoas e acontecimentos do cotidiano, Guimarães inicia suas anotações, colecionando terminologias, ditos e falas do povo, que distribui pelas histórias que já escreve.

“Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago…” – foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. Grande Sertão:Veredas

Nos tempos da Faculdade, Guimarães Rosa dedica-se também à literatura. Levado pela necessidade financeira, escreve contos para a revista O Cruzeiro. Concorre quatro vezes, em todas sendo premiado com cem mil réis. Na época, escreve friamente, sem paixão, preso a moldes alheios.

Em 32, ano da Revolução Constitucionalista, o médico e escritor volta a Belo Horizonte, servindo como voluntário da Força Pública. A partir de 34, atua como oficial médico em Barbacena. Paralelamente, escreve. Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas MAGMA recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de VIATOR, concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado CONTOS, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em SAGARANA, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.

João Guimarães Rosa
ROSA – VAQUEIRO DOS SERTÕES DOS GERAIS
Foto de “O Cruzeiro”, tirada em 1952, quando aos 44 anos de idade, foi rever seu velho sertão.
Viagem de muitas e muitas léguas, transportando uma boiada

Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos.

Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. Grande Sertão: Veredas

“Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte.”

Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma – que lançou na década de 80 o livro RELEMBRAMENTOS, GUIMARÃES ROSA, MEU PAI, uma coletânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor -, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordamento de sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas. Rosa tinha conhecimento profundo de húngaro, russo e chinês, além de falar alemão, inglês, francês, romeno e italiano, entre outras línguas. O conhecimento de línguas estrangeiras seria um aliado de Guimarães Rosa, especialmente no que diz respeito à tradução da sua obra, já que o escritor mineiro se notabilizou pela invenção de vocábulos, além do registro da linguagem sertaneja brasileira, inacessível a tradutores estrangeiros.

O homem nasceu para aprender, aprender tanto quanto a vida lhe permita.

Em 38, Guimarães Rosa é nomeado consul-adjunto em Hamburgo, permanecendo na cidade até 42. Durante a Segunda Guerra, passa por uma experiência que detona seu lado supersticioso. É salvo da morte porque sentiu, no meio da noite, uma vontade irresistível, segundo suas palavras, de sair para comprar cigarros.

Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeio. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar. Seguindo a missão diplomática, Guimarães Rosa serve, em 42, em Baden Baden; de lá, vai para Bogotá, onde fica até 44. O contato com o Brasil, no entanto, era freqüente. Em 45, vai ao interior de Minas, rever as paisagens da infância. Três anos depois, é transferido para Paris.

1946. “Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço”.

O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender – e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar a feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto:
– Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!… – que era como se Diadorim estivesse dizendo. Grande Sertão: Veredas

João Guimarães Rosa
Casal Guimarães Rosa

Entre outubro e novembro de 1949, Guimarães Rosa e a mulher Aracy realizam uma viagem turística à Itália. No ano seguinte, nos meses de setembro e outubro, o casal refaz o roteiro, visitando as mesmas cidades. Como de costume, o escritor utiliza cadernetas para gravar sensações, descrever tipos e paisagens, anotar expressões, burilar algumas outras. Essas anotações não têm um objetivo específico. Anota como um viajante curioso, como um permanente estudante da vida e da natureza, sempre voltado pra o seu trabalho, documentando, armazenando idéias, exercitando-se no manejo da língua portuguesa.

“Arco íris proxíssimo! parece andar com o trem. Seu verde é belo – bórico – vê-se o roxo, anil. Não tem raízes, não se encosta no chão. Está do lado oeste, onde há nuvens estranhas, escuras, de trombas d’água. E cidades e aldeias sobre montes, grimpas. Do lado do mar, o sol se abaixa. Tudo claro. como o trem divide o mundo” Grande Sertão: Veredas

Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 51. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso.

O resultado é uma reportagem poética: COM O VAQUEIRO MARIANO. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas CORPO DE BAILE, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa – autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro – adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão Veredas, lançado em maio de 56. Em ensaio crítico sobre CORPO DE BAILE, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada CAMPO GERAL, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar.

Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.

O sertão está em toda a parte…

Sobre Grande Sertão: Veredas em 1956.

Carta ao amigo Silveirinha, o embaixador Antonio Azeredo da Silveira: “Eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente. Foi uma experiência transpsíquica, eu me sentia um espírito sem corpo, desencarnado – só lucidez e angústia”

Acordei último. Alteado só se podia nadar no sol. Aí, quase que não se passavam mais os bandos de pássaros.

Mesmo perfiz: que o dia ia dever ser bonito, firme. Chegou o Cavalcânti, vindo do Cererê-Velho, com recado: nenhumas novidades.Para o Cererê-Velho recambiei aviso: nenhumas novidades minhas também. O que positivo era, e do que os meus vigiadores do rededor davam confirmação. Antes, mesmo, por mais, que eu quisesse ficar previnido, o dia era de paz. Grande Sertão: Veredas

“A experiência documentária de GR, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e o nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico – tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional, para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório, e na verdade, o Sertão é o Mundo”. Antônio Cândido

O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que se estende por 760 páginas, focaliza numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflete um autor de extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa.

Para Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.

Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão, avançar – correndo amouco… Aí, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se encheu de cuspes. Babei… Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram… Ao que – fechou o fim e se fizeram. Grande Sertão: Veredas

” O sertão é do tamanho do mundo”

É o regional, o verdadeiro, o autêntico regional, que se projeta e conquista dimensão universal, sintetizada na condição humana – o homem é o homem, no sertão de Minas ou em qualquer outro lugar do mundo.

Eu estou depois das tempestades.

O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo… Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor algum? O senhor enche uma caderneta… O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?… Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei. Grande Sertão: Veredas

O lançamento de Grande Sertão Veredas causa grande impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes.

Torna-se um sucesso comercial, além de receber três prêmios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se um “caso” nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da terceira geração modernista brasileira.

Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam.
– “E a guerra?!” – eu disse.
– “Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!…
Nas vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando: por tanto que, assim tristonhamente, a gente vencia. Grande Sertão: Veredas

“Não me envergonho em admitir que Grande Sertão Veredas me rendeu um montão de dinheiro. A esse respeito, quero dizer uma coisa: enquanto escrevia Grande Sertão, minha mulher sofreu muito, porque eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela, como sou um fanático da sinceridade lingüística, isso significou para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele”.

” A inspiração é uma espécie de transe. Só escrevo atuado, em estado de transe…”

Sufoquei numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim.
Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo mundo sair. Eu fiquei. E a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo e disse…
Diadorim – nú de tudo. E ela disse:
– “A Deus dada. Pobrezinha…”
Diadorim era mulher como o sol não ascende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. Grande Sertão: Veredas

Em 62, é lançado PRIMEIRAS HISTÓRIAS, livro que reúne 21 contos pequenos. Nos textos, as pesquisas formais características do autor, uma extrema delicadeza e o que a crítica considera “atordoante poesia”. No ano seguinte, em maio, candidata-se pela segunda vez à ABL(Academia Brasileira de Letras), sendo eleito por unanimidade. O ano de 1965 marca a expansão do nome e do reconhecimento de Rosa no exterior; já o ano de 67 anuncia-se grandioso para Guimarães Rosa. Em abril, vai ao México, representando o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores. Na volta, é convidado, junto com Jorge Amado e Antonio Olinto, a integrar o júri do do II Concurso Nacional de Romance Walmap. No meio do ano, publica seu último livro, também uma coletânea de contos, TUTAMÉIA. Nova efervescência no meio literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como “a bomba atômica da literatura brasileira”; outros consideram que em suas páginas encontra-se a “chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua criação”.

O escritor decide, então, tomar posse na Academia Brasileira de Letras, no dia 16 de novembro de 67, dia do aniversário de João Neves da Fontoura, seu antecessor. No dia 19, Guimarães Rosa morreu, em decorrência de um enfarte.

“O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas”.

O céu vem abaixando. Narrei ao senhor.
No que narrei, o senhor até ache mais do que eu, a minha verdade.
Fim que foi. Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.

 

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